A Depressão Como Objeto Jornalístico - Ericson Saint Clair

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    BRAZILIAN JOURNALISM RESEARCH - Volume 8 - Nmero 1 - 2012166

    A DEPRESSO COMOOBJETO JORNALSTICO:explorando o arquivo do GrupoFolha (1970-2009)

    Copyright 2012SBPjor/ Associao

    Brasileira dePesquisadores em

    Jornalismo

    ARTIGO

    ERICSON SAINT CLAIRUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

    RESUMO - Investigamos indcios da construo cultural do distrbio psquico dadepresso como uma atualidade miditica no Brasil. Para isso, exploramos sua

    definio como objeto jornalstico a partir do exame do corpusde pesquisa formado

    por matrias do Grupo Folha, especialmente a Folha de S. Paulo, ao longo dos ltimos

    quarenta anos. Nossa abordagem do arquivo de notcias permite-nos delinear quatro

    regies principais de estratgia de produo discursiva, expostas e exemplificadas

    no artigo. A partir destas observaes, pleiteamos ento uma nova perspectiva para a

    anlise da funo da imprensa na publicao de matrias de divulgao de pesquisas

    cientficas acerca da depresso. Entenderemos seu papel no simplesmente como

    disseminadora automtica de verdades cientficas, mas como exploradora de umazona cinzenta do domnio da opinio, encarada como representao dos destroos do

    saber circulante, em que est em jogo a produo da prpria atualidade do distrbio.

    Palavras-chave:Depresso. Discurso. Imprensa. Subjetividade.

    ABSTRACT - We investigate evidence of the cultural construction of depression inBrazilian media. To this end, we have explored its definition as a journalistic subjectby examining the corpus of research materials from Folha Groups newspapers,

    especially Folha de S. Paulo, over the past forty years. Our approach to the news

    archives has allowed us to outline four main strategic regions of discourse

    production, revealed and exemplified in the article. Based on these observations, we

    have advocated a new perspective for the analysis of the presss role in publishing

    materials for dissemination of scientific research regarding depression. We will

    interpret its role not simply as the automatic disseminator of scientific truth, but

    as the explorer of a gray area of the field of opinion, regarded as a representation of

    the rubble of circulating knowledge, where what is at stake is the production of the

    current nature itself of the disorder.

    Keywords:Depression. Speech. Press. Subjectivity.

    DEPRESSION AS A JOURNALISM SUBJECTexploring the Folha Groups files (1970-2009)

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    INTRODUO E ALGUNS PRESSUPOSTOS

    Deparar-se com um objeto de pesquisa da atualidade implica

    aceitar os desafios de uma empreitada estimulante: como propor uma

    anlise que apresente novas perspectivas em meio proliferao acelerada

    de opinies, saberes e fragmentos de discursos que ansiosamente buscam

    cercar este objeto fugidio que compartilha conosco as incertezas prprias

    de quem vive o contemporneo? O fenmeno nebuloso que a chamada

    depresso e, em especial, sua mediatizao, configura um desses

    objetos aparentemente inapreensveis diante do falatrio estridente que

    provocam. Neste texto, lanamo-nos ao desafio de propor uma histria do

    presente, ao abordar a construo dos sentidos da depresso na imprensa

    brasileira a partir da anlise do corpus de pesquisa formado por 178matrias publicadas por jornais do Grupo Folha, especialmente do jornal

    Folha de S. Paulo, entre os anos de 1970 e 2009. Foram selecionadas

    matrias que tratavam especificamente do tema da depresso como

    distrbio psquico passvel de tratamento. Excluem-se, portanto, outros

    sentidos atribudos depresso para alm de uma entidade clnica1.

    Basta descrever o arquivo, ensinava-nos a arqueologia de um Foucault

    certamente mais irnico do que ingnuo em sua proposta, cujas simples

    descries de arquivo continuam a nos inspirar ainda hoje.Partimos de alguns pressupostos importantes, cuja exposio

    neste espao consideramos fundamental para o acompanhamento

    do texto. O primeiro deles diz respeito ao modo como encaramos a

    histria da depresso na imprensa (ou a histria da mdia de maneira

    mais abrangente2). Trata-se de uma investigao que no enxerga

    necessariamente um padro evolutivo na histria (como se a histria da

    depresso na mdia fosse a descrio neutra de uma sucesso progressiva

    das pesquisas cientficas sobre o tema ou, ainda, uma progresso otimista

    do modo de construo do discurso jornalstico). Por outro lado, no

    subscrevemos discursos que encaram o poder miditico apenas como

    manifestao do poderio econmico de determinados grupos. Apesar de

    no ignorar esta instncia de poder, encaramo-la como uma solidificao

    (potente, mas provisria) de um jogo plural de relaes que se do para

    alm dos grandes grupos de imprensa. Novos ecos foucaultianos aqui:

    poder so sempre poderes intencionais, mas no subjetivos.Em segundo lugar, mais importante do que afirmar, repetidamente,

    que a mdia uma instncia de poder, interessa-nos trazer luz suas

    estratgias, que no so as mesmas em todos os casos. Nem imprensa

    golpista, nem imprensa neutra: nossa abordagem dispensa dizer o que

    a mdia , acreditando ser mais produtivo, a partir da exumao de seus

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    arquivos, dizer o queela faz, comofaz, com quemfaz. H aqui uma clara

    inteno de buscar as unidades discursivas (FOUCAULT, 2005, p. 30) a

    partir da descrio dos acontecimentos discursivos que nos interpelam:

    como apareceu um determinado enunciado, e no outro em seu lugar?

    Finalmente, devemos esclarecer que a anlise dos arquivos

    de matrias de um jornal nos permite talvez produzir apenas algumas

    hipteses sobre os efeitos visadoscom o auxlio de certas estratgias

    discursivas. Nada poderemos afirmar, assim, de seus efeitos reais

    sobre as audincias. Poderemos supor, porm sem o mesmo rigor que

    pretendemos atingir com a dissecao dos efeitos visados, quais seriam

    os efeitos possveisdesta circulao discursiva3. No seremos fatalistas,

    no entanto. No seria coerente ratificar uma teoria do poder pluralista seignorssemos a potncia inventiva dos sujeitos em contato com o que

    circula midiaticamente todos os dias. Isso no nos impede, entretanto,

    de enfatizarmos a maquinaria de efeitos visados a partir do mergulho no

    arquivo de um rgo de imprensa.

    Debruar-se sobre um arquivo de quarenta anos trouxe-nos

    uma grande diversidade de hipteses, que restringiremos neste texto

    a dois segmentos, diante da natural limitao de espao: o primeiro

    segmento focar nas estratgias de produo discursiva na divulgaode pesquisas cientficas sobre depresso, que resumiremos a quatro

    principais linhas de ao; em seguida, debateremos a premissa de que

    a imprensa dissemina verdades cientficas, propondo uma perspectiva

    alternativa, em que localizaremos o papel da imprensa na proliferao

    de algo distinto de uma verdade, em uma espcie de zona cinzenta da

    opinio, cujo foco principal a pura produo de atualidades, o que

    entendemos a partir da inspirao de textos de pensadores to diversos

    quanto Niklas Luhmann, Alain Badiou e Gabriel Tarde.

    1 A depresso no Grupo Folha

    Por que investigar especificamente a depresso na imprensa

    como objeto de pesquisa? Se o objetivo fosse unicamente mapear as

    estratgias discursivas da imprensa de divulgao de pesquisas cientficas

    em geral, outros objetos nos seriam igualmente profcuos: doenas

    cardacas, aquecimento global, obesidade etc. Contudo, nosso especialinteresse pela depresso se justifica por algumas razes. A espantosa

    frequncia da divulgao de pesquisas cientficas sobre a depresso

    na mdia nos provoca uma genuna curiosidade sobre o fenmeno. Em

    uma avaliao de superfcie, a expanso miditica da depresso ratifica

    os impressionantes nmeros dos organismos mundiais de sade. No

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    mundo, a Organizao Mundial de Sade (OMS) estima que haja 121

    milhes de deprimidos. No Brasil, seriam 10% da populao. Segundo o

    Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), os casos de aposentadoria por

    invalidez por depresso cresceram 16% entre 2007 e 2008. Finalmente, a

    venda de antidepressivos cresceu 40% de 2005 a 2009 no pas.

    Todavia, como comuniclogos, evitamos discutir o aumento

    do nmero de casos clnicos de depresso nas ltimas dcadas.

    Sequer endossamos (ou negamos) a realidade de uma entidade

    clnica denominada depresso. Com isso, no queremos afirmar

    que desconsideramos os fatores de causa disto que se chama (com

    propriedade ou no) de depresso. Apenas delimitamos nosso domnio

    de atuao: no a produo real de depressivos, mas a produodiscursiva da depresso como distrbio psquico na imprensa. Como

    pesquisadores de mdia, afirmar at que ponto a contaminao discursiva

    da depresso na mdia engendra novos deprimidos est alm de nossas

    possibilidades. Entretanto, no consideramos menor o estudo das

    condies de transmisso social da moda da depresso. Na verdade, a

    reside de fato nossa mais sincera inquietao.

    Iniciemos, assim, com os dados colhidos sobre a expanso da

    moda da depresso, como mostra a Tabela 1. Das 178 matrias analisadasdesde os anos 70, 55% delas encontram-se na ltima dcada (at 2009).

    Tabela 1: Depresso no Grupo Folha. Porcentagem do total de 178 matrias consultadas, por dcada

    Dcadas Nmero de matrias (% do total)

    Dcada de 1970 4%

    Dcada de 1980 10%

    Dcada de 1990 31%

    Dcada de 2000 55%

    Fonte: elaborao do autor

    O recrudescimento das matrias sobre depresso trouxe consigo

    uma pluralidade de estratgias discursivas de construo do distrbio

    como objeto miditico. Encontramos quatro linhas principais de atuao.

    a) Seleo interessada dos especialistas consultadosAs matrias que refletem temas cientficos aprofundam um

    mtodo comum ao jornalismo que a consulta aos especialistas,

    indivduos cujas falas carregam consigo uma autoridade conveniente

    quilo que apurado pelo profissional de imprensa. Diante de uma

    pesquisa cientfica, frequente encontrarmos a opinio de especialistas

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    Ericson Saint Clair

    para debater o que foi descoberto. No caso especfico da depresso,

    em que temos um antagonismo claro entre perspectivas biologizantes e

    psicossociais no que diz respeito compreenso do distrbio, talvez to

    importantes quanto as pesquisas cientficas que fazem parte da pauta

    sejam os especialistas selecionados para coment-las.

    Em matria da Folha da Tardede trs de Novembro de 1977

    denominada Depresso aumenta dia-a-dia em todo o mundo, um

    psiquiatra consultado para comentar a expanso dos casos: Quanto

    mais aumenta a populao, maior se torna a solicitao do indivduo em

    relao ao meio, obrigando-o a uma vida mais ativa e de concorrncia,

    para a qual ele no est preparado. Em virtude disso, ele faz o quadro da

    depresso (FOLHA DA TARDE, 03 nov. 77).Vejamos agora outro exemplo, bem mais recente, em que se

    consulta um neurologista para comentar a incidncia de depresso em

    crianas e adolescentes:

    A culpa dos pais tambm pode ser aliviada se a depresso deixarde ser encarada como resultado de falha de carter ou de criao.Como qualquer doena, ela precisa ser diagnosticada e controlada.Caracteriza-se pela dificuldade do crebro em usar certassubstncias, como serotonina, dopamina e noradrenalina, paraadministrar informaes entre os neurnios, explica o neurologistaJoo Radvany, do hospital Albert Einstein (SP). Esto em jogopredisposio gentica, educao e fatores sociais, ambientais ecomportamentais(FOLHA DE S. PAULO, 04 set. 03, grifo nosso).

    Esse trecho significativo: apesar da descrio de diversos fatores

    tidos como influentes para o desenvolvimento da depresso, a recorrncia

    a um especialista neurologista privilegia uma destas causas, a biolgica.

    A justaposio dos dois trechos de matrias acima, pertencentes

    a datas distantes no tempo, no nos autoriza dizer, entretanto, que houve

    uma abrupta interrupo da visibilidade miditica das causas piscossociais

    em proveito da biologizao do distrbio e suas consequentes indicaes

    de tratamento, como podemos averiguar pela Tabela 2.

    Tabela 2:Tratamento da depresso no Grupo Folha. Porcentagem do total de matrias consultadas,por dcada

    Dcadas Tratamentos (% do total de matrias por dcada)

    Medicamentos TerapiaMedicamentos

    e terapiaAlternativos

    naturaisEletrochoque

    ou ECTOutros

    No hreferncia

    Dcadade 1970

    33% - 17% - - - 50%

    Dcadade 1980

    22% 11% 22% 11% 11% - 23%

    Dcadade 1990

    33% 4% 16% 5% 2% - 40%

    Dcadade 2000

    15% 5% 16% 6% 2% 9% 47%

    Fonte: elaborao do autor

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    Apesar do boomde menes aos tratamentos da depresso por

    medicamentos na dcada de 90, encontraramos uma reduo destas

    referncias na dcada seguinte. No h um crescimento homogneo

    das menes da biologizao da depresso em detrimento da ateno a

    seus fatores psicossociais. Contudo, nossa sensao de que haveria um

    aumento da visibilidade miditica das causas biolgicas da depresso nos

    ltimos anos pode, talvez, ser justificada pela seleo de determinados

    especialistas que direcionam o sentido da pesquisa publicada.

    Esta primeira estratgia pode ser mais bem compreendida se

    cotejada com a seguinte.

    b) Deficincia da exposio do contraditrio das pesquisasVimos como a seleo de determinados especialistas no lugar

    de outros implica um direcionamento especfico do discurso jornalstico.

    No caso da divulgao de pesquisas cientficas acerca da depresso, o

    conhecimento da disputa entre uma viso biologizante e uma cultural

    no gera necessariamente um debatena reportagem, efetivado com a

    consulta de, no mnimo, um especialista a mais para cada tendncia.

    Nossos nmeros informam justo o oposto, como podemos ver na Tabela

    3. O banalizado princpio de conduta jornalstica de ouvir todos oslados, certamente idealizado (mas no por isso improdutivo), pouco se

    v no que se refere cobertura da depresso.

    Tabela 3: Segunda opinio de especialista nas matrias sobre depresso. Porcentagem do total dematrias consultadas, por dcada

    Dcadas Segunda opinio de especialista (% por dcada)

    Dcada de 1970 -

    Dcada de 1980 -

    Dcada de 1990 2%

    Dcada de 2000 9%

    Fonte: elaborao do autor

    Publicar uma pesquisa cientfica para, em seguida, entrevistar

    um especialista que a corrobore, sem buscar contradiz-lo com a

    recorrncia a outro especialista de rea distinta, sub-repticiamenteendossar sem crtica tal pesquisa. Contudo, isto no nos autoriza dizer

    que haja um compromisso tcito da imprensa com alguma verdade

    cientfica especficasobre a depresso (como defenderemos na segunda

    parte deste artigo).

    Por fim, haveria ainda outras modalidades desta deficincia

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    Ericson Saint Clair

    de exposio do contraditrio na construo discursiva da depresso

    na imprensa. Muitas pesquisas so divulgadas como a mais nova

    descoberta da cincia, ignorando o histrico de trabalhos (e reportagens)

    produzidos sobre o mesmo tema, muitas vezes com resultados diversos.

    O que notamos que se, por um lado, em seu conjuntodiversificado,

    as matrias no tm comprometimento com uma verdade cientfica

    especfica, individualmente elas tendem a endossar acriticamente a

    pesquisa da vezcomo verdade. Recorramos Tabela 4 para esclarecer

    nossa perspectiva. Percebemos como, em um grande conjunto, no h

    forte hegemonia da presena de uma causa especfica para a depresso

    nas matrias ao longo das dcadas.

    Tabela 4:Causas da depresso nas matrias do Grupo Folha. Porcentagem do total de matriasconsultadas, por dcada

    Dcadas Causas (% do total das matrias, por dcada)

    SomenteBiolgicas

    SomentePsicossociais

    Biolgicas epsicossociais

    OutrasNo se sabe

    ao certoNo h

    referncias

    Dcada de 1970 17% 33% 33% - 17% -

    Dcada de 1980 44% 22% 11% 6% - 17%

    Dcada de 1990 28% 32% 9% 4% - 27%

    Dcada de 2000 15% 27% 16% 1% 2% 39%

    Fonte: elaborao do autor

    Salientamos que grandes grupos como causas somente

    biolgicas escondem matrias to dspares quanto as seguintes:

    Depresso pode ser causada por ao de vrus, de 22 de Agosto de

    2005 e Depresso pode ter origem em herana gentica do indivduo,

    de 23 de Novembro de 1985. Mesmo dentro do prprio conjunto de

    causas biolgicas, encontramos uma imensa diversidade de pesquisas

    que nunca dialogam entre si nas matrias. Em suma, h um relativo

    equilbrio das menes das duas grandes linhas explicativas causais da

    depresso nas matrias tomadas em geral. Tal equilbrio, porm, no

    se sustenta nas matrias individuais pela quase ausncia da exposio

    do contraditrio das pesquisas divulgadas (Tabela 3), o que poderia seralcanado com a consulta a especialistas divergentes, por exemplo.

    c) Depoimentos pessoais como ratificao das pesquisas

    Nas duas ltimas dcadas, houve um considervel aumento

    de depoimentos pessoais de supostamente depressivos nas matrias

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    do Grupo Folha (Tabela 5). Mais do que mera ilustrao das pesquisas,

    defendemos que tal crescimento indica outra estratgia discursiva na

    produo do objeto miditico da depresso.

    Tabela 5: Depoimentos pessoais nas matrias sobre depresso do Grupo Folha. Porcentagem do totalde matrias consultadas, por dcada

    Dcadas Depoimento pessoal (% por dcada)

    Dcada de 1970 -

    Dcada de 1980 6%

    Dcada de 1990 18%

    Dcada de 2000 17%

    Fonte: elaborao do autor

    A primeira matria da Folha de S. Pauloencontrada em que se

    expe um depoimento pessoal de 19 de Junho de 1989, intitulada

    Depresso: o mal dos sculos. Nela, um homem procurava trazer sua

    colorao pessoal ao sofrimento do distrbio por que passava:

    De certa forma, o ler, o pensar e o escrever so as nicas formasque encontro, pelo menos no momento, de me liberar desse pesoenorme no corao. Descanso algum tempo, alguns meses quemsabe, e de repente afundo outra vez nesse buraco. Enquanto tiver

    foras, escreverei (FOLHA DE S. PAULO, 19 jun. 89).

    Em uma primeira leitura, baseando-nos apenas neste exemplo,

    poderamos encarar o aumento dos depoimentos pessoais nas

    matrias como uma concesso da imprensa ao espao diferenciado

    da subjetividade, em que as singularidades inventivas dos sujeitos

    relativizariam os relatrios secamente preparados por organizaes

    cientficas. Ocorre que a maior parte dos depoimentos produzidos,

    especialmente nas duas ltimas dcadas, difere bastante do estiloadotado pelo precursor que citamos acima.

    Em termos foucaultianos, encontraramos nestes casos menos

    esttica de si do que homens infames (2009), aqueles indivduos

    cuja realidade da existncia s nos chega por conta de, algum dia,

    terem esbarrado nas grades do poder4. desta maneira que notamos

    uma maior homogeneizao dos depoimentos encontrados nas

    matrias sobre depresso. Os depressivos entrevistados restringem-

    se a descrever o mais fidedignamente possvel seus sintomas, que

    se tornam os personagens principais de suas narrativas. o caso

    da adolescente que envia carta ao especialista do jornal buscando

    compreender o que se passa com ela e imediatamente alertada sobre

    a possibilidade de estar deprimida. Encontramos este exemplo na

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    Ericson Saint Clair

    matria Depresso e ansiedade vo alm da crise da adolescncia,

    que reproduzimos em duas partes, sendo a primeira a carta da jovem

    e a segunda a opinio do psiquiatra consultado.

    Tenho 18 anos e me sinto estranha e triste. Meu pai pega no meup e s critica o que fao. Estou no ano do vestibular e s estudo.Ando preocupada com meus pensamentos. Sinto meu corpoformigar e tenho falta de ar. O que acontece comigo?

    Tristeza, pensamentos estranhos e dificuldade de encarar a vidapodem ser sinais de depresso. A pessoa fica infeliz, para baixo,sem pique de fazer as coisas. [...] Ano de vestibular difcilmesmo [...]. Vale a pena achar um espao na sua agenda paraprocurar a ajuda de um especialista um terapeuta, um psiclogoou um psiquiatra que converse com voc, cheque o que estacontecendo, verifique se voc est deprimida mesmo e proponhaum tratamento. O que no d ficar vendo a vida com essas lentes

    escuras e sem foco (FOLHA DE S. PAULO, 03 set. 01).

    Poderamos supor que tal pasteurizao da descrio de si possa

    estar vinculada, especialmente a partir da dcada de 90, publicao da

    quarta edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes

    Mentais (DSM), a bblia dos psiquiatras, que base no somente para

    a criao de diagnsticos em consultrios mdicos como tambm para

    resolues de investimentos governamentais e regulamentaes de

    planos de sade. Smbolo da ascenso da psicopatologia descritiva, querevolucionou os mtodos diagnsticos dos distrbios mentais, o DSM,

    desde sua terceira edio, privilegia a descrio exclusiva dos sintomas

    dos distrbios para a composio do diagnstico, em detrimento da

    contextualizao aprofundada dos mesmos (BEZERRA, 2007). O DSM traz

    uma lista de nove sintomas que caracterizam a depresso, e a frequncia

    de quatro ou cinco deles por, no mnimo, duas semanas j justificaria

    o diagnstico. Esta disposio descritiva favoreceria a produo dos

    depoimentos pautados por simples descries de sintomas. Com isso,

    no afirmamos que o DSM provoca, em uma lgica causal determinista,

    a produo desses depoimentos pasteurizados. De todo modo, no

    seria absurdo pensar que o aumento dos depoimentos de depressivos

    corrobora tal tendncia, somada ainda crescente exposio de uma

    imagem de si prprio que esfacela os liames do pblico e do privado.

    Contudo, para alm desta leitura, gostaramos de atentar

    para o papel dos depoimentos como estratgia discursiva nasmatrias observadas. Se eles surgem no contexto da divulgao de

    uma pesquisa, confirmando-a, terminam por contribuir para que

    esta pesquisa adquira concretude, realidade imediata. como se nos

    dissessem que a pesquisa to real que faz brotar naturalmente seus

    personagens diante de nossos olhos.

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    Em 22 de Novembro de 2007, por exemplo, a matria Droga

    antiobesidade pode elevar em 40% risco de depresso divulgava pesquisa

    holandesa sobre o medicamento Acomplia, usado no tratamento da

    obesidade. O depoimento de uma mulher que se tratava com o remdio

    confirmava o que era, afinal de contas, apenas uma pesquisa, sujeita a

    debates e contraprovas:

    A professora Ana Maria Cardoso, 52, um exemplo. Ela conta quesempre se considerou uma gorda feliz, mas que, um ms apsiniciar o tratamento, comeou a se sentir deprimida, sem vontadede sair de casa. S chorava. De repente tudo ficou cinza, afirma.Ela diz que demorou pelo menos duas semanas at associar adepresso medicao. Assim que falei com meu mdico, elesuspendeu a medicao e, em poucos dias, eu j me sentia outra(FOLHA DE S. PAULO, 22 nov. 07).

    Colher o depoimento de uma dona de casa sobre o aumento

    do preo do arroz aps a divulgao de um aumento inflacionrio no

    o mesmo que ilustrar uma matria a respeito de uma pesquisa

    sobre depresso, objeto to passvel de ser captado por perspectivas

    distintas. Ao dispor desta estratgia, a matria sutilmente torna a

    pesquisa mais verossmil.

    Passemos, finalmente, ltima estratgia discursiva que

    indicamos em nosso trabalho.

    d) Negligncia sobre as precondies da pesquisa

    Nenhuma pesquisa cientfica pode ser desvinculada de

    suas condies de possibilidade. Poderamos listar uma srie delas,

    na linhagem de Bruno Latour (2004) e sua indicao dos diversos

    atores humanos e no humanos em um procedimento de pesquisa.

    Entretanto, para o que nos importa aqui, limitemo-nos a concordar queum trabalho cientfico no pode dispensar o contexto histrico-social-

    econmico em que produzido.

    Nas matrias divulgadoras de pesquisas sobre depresso,

    encontramos certa negligncia em relao a esses fatores condicionantes

    dos trabalhos publicados. Patrocinadores das pesquisas, posies

    polticas dos institutos que as produzem e outros elementos so

    comumente ignorados. No so, entretanto, totalmenteignorados. E

    precisamente aqui que encontramos, nesta negligncia irregular dasprecondies das pesquisas publicadas, uma nova estratgia discursiva.

    Caso fossem sempreignoradas, poderamos afirmar que as precondies

    no fariam parte da produo discursiva das reportagens estudadas. Isto

    implicaria algumas consequncias. No o caso presente, todavia. Aqui

    tambm, como no caso dos especialistas consultados, h uma seleo

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    interessadana indicao das condies de produo das pesquisas.

    Um exemplo esclarecer nosso ponto. Em 16 de Setembro de 2002,

    a Folha traz a notinha Identificada nova sndrome: a depresso ps-frias:

    Pesquisadores espanhisdivulgaram uma nova sndrome detectadaem jovens, mulheres e crianas: a depresso ps-frias. Trata-se deum problema caracterizado por perturbaes do sono, taquicardia,tristeza e ansiedade em pessoas que retornam a atividadesrotineiras como o trabalho e o estudo aps grandes pausas (FOLHADE S. PAULO, 16 set. 02, grifo nosso).

    Sobre as fontes da pesquisa acima, o mximo que sabemos

    a nacionalidade dos pesquisadores. No sejamos complacentes em

    atribuir tal negligncia ao fato de o texto dever conformar-se ao curto

    espao destinado s notinhas de jornal. Outra notinha, publicada em 9de Junho de 2003, intitulada Estudo liga sexo depresso, apresenta

    maior cuidado na descrio dos meios que propiciaram a pesquisa:

    Um estudo polmico, patrocinado pela fundao norte-americanaconservadora Heritage, associa o sexo depresso. Segundoa pesquisa, realizada com 2800 estudantes de 14 a 17 anos,aproximadamente 25% das garotas que tm vida sexual ativadizem sofrer de depresso. Esse percentual de 8% entre as queno mantm relaes sexuais (FOLHA DE S. PAULO, 09 jun. 03,grifo nosso).

    No s conhecemos a entidade patrocinadora da pesquisa

    como tambm somos informados de que ela seria conservadora, e

    que o estudo seria polmico. A lgica simples (e simplria): associar

    sexo depresso polmico, especialmente se quem financia o estudo

    uma entidade conservadora. curioso que algo to espantoso quanto

    associar depresso vida sexual ativa, como seria o caso da depresso

    ps-frias, por exemplo, no seja igualmente considerado polmico.

    Sendo assim, aps a sugesto de que as estratgias discursivasde produo da depresso como objeto miditico nas matrias do Grupo

    Folha obedeceriam a quatro linhas gerais de ao, passemos segunda

    parte do trabalho. Nela, discutiremos como tais estratgias engendrariam

    um papel bastante prprio para a imprensa na divulgao da depresso

    como entidade clnica.

    2 Uma zona cinzenta da opinio

    Aps a anlise do modus operandi das quatro principais

    estratgias discursivas, afirmar simplesmente que a imprensa dissemina

    verdades cientficas ignorar seus (micro)poderes de inveno de

    sentidos diversos para a depresso. certo que a matria-prima para

    tais estratgias pode ser encontrada, em grande medida, nas pesquisas

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    mesmas. Entretanto, isto no nos permitiria defender que a imprensa

    apenas reflete os resultados divulgados pela cincia, como se houvesse

    um conluio secreto promovido por no se sabe quem e em quais termos.

    Ao mesmo tempo, ao contrrio de nossas apostas ao incio da

    pesquisa de doutoramento, em 2008, conclumos que a imprensa no

    escolheu um lado da disputa pelos sentidos da depresso entre causas

    socioculturais e biologizantes, em proveito destas. Ao menos no Grupo

    Folha, no encontramos esta ratificao hegemnica da somatizao da

    subjetividade (cf. Tabela. 4, mais acima). Por outro lado, esta surpresa

    advinda da pesquisa do arquivo do Grupo Folha no nos transformou

    em Cndidos. Em outras palavras, o fato de o conjunto das matrias no

    se aliar a uma verdade especficadefendida pela cincia no que toca depresso no significa que a imprensa no corrobore o princpio de

    que o lugar privilegiado de produo de verdades na atualidade seja o

    domnio cientfico. Se, por exemplo, em um nico ms o mesmo jornal

    publica duas pesquisas contraditrias com ares de verdade (com o

    auxlio de estratgias discursivas como as que citamos anteriormente),

    no podemos dizer que este veculo defenda umaverdade especfica,

    mas podemos afirmar que ele contribuiu para tornar inquestionvel o

    direitoda cincia de fazer a triagem do verdadeiro e do falso.Ora, se o papel da imprensa no o de apenas disseminar uma

    verdade cientfica especfica, tambm no o de mera propagao de

    opinio em sua acepo mais genrica, visto que o prestgio das pesquisas

    lhe fornece automaticamente um lugar superior quele destinado a uma

    opinio sem base cientfica. Nem preto, nem branco, mas cinza: h aqui

    uma regio especial da opinio que irredutvel tanto verdade quanto

    a uma espcie de senso comum generalizado.

    A avalanche de pesquisas sobre a depresso indcio muito

    provavelmente de uma moda do tema entre cientistas, mas seu sucesso

    na comunidade cientfica no justifica necessariamente a moda social

    da depresso que a imprensa contribui para difundir. Entretanto, como

    fonte principal da opinio (TARDE, 2005; LUHMANN, 1992), a imprensa

    por si s fonte potente de modas. Luhmann nos inspira neste ponto.

    Com ele, aprendemos que a informao tudo aquilo que se seleciona

    sob o critrio da novidadee do conflito. O ritmo das notcias pauta-se peladescontinuidade dos acontecimentos do dia. H, assim, uma diferena

    organizada entre a vida das pessoas e a vida cotidiana das notcias.

    Esta descontinuidade gera uma impossibilidade da integrao das duas

    temporalidades em jogo. De um lado, a vida cotidiana, em seu devir,

    pluralidade e diferena; de outro, a avalanche de estatsticas, quadros

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    comparativos e nmeros despejados diariamente pelos jornais. Assim, a

    quantificao/exatido da vida cotidiana raramente natural. No caso

    da depresso, a proliferao de pesquisas diferentes, com resultados

    muitas vezes dspares, vai perfeitamente ao encontro desta sede de

    informao (entendida como sugere Luhmann) da imprensa.

    Arriscamos dizer que o compromisso da imprensa no caso

    da depresso menos com a verdade cientfica do que com a prpria

    atualidadedo tema. Atualidade, aqui, considerada no apenas como

    aquilo que acaba de acontecer, mas como tudo o que inspira atualmente

    um interesse geral (TARDE, 2005, p. 8). Poderamos ir um pouco mais

    longe, talvez, e afirmar que o compromisso da imprensa com o tema da

    depresso (e talvez isto possa ser generalizado para outros casos) no outro seno com a imprensa mesma, com seu prprio funcionamento,

    com seu poder de difuso de algo que, se no verdade, tambm no

    pura opinio sem base.

    Essa nossa zona cinzenta da opinio no caso da depresso

    aproxima-se bastante da prpria definio de opinio dada pelo filsofo

    Alain Badiou: a opinio so representaes sem verdade, configurando

    os destroos anrquicos do saber circulante. A opinio no dever ser

    falsa ou verdadeira, portanto: seu nico dever ser comunicvel, sendoo alimento da sociabilidade. Diante de uma nova verdade, as opinies se

    alteram, sem contudo tornarem-se verdadeiras:

    Uma verdade este seu efeito de retorno transforma oscdigos de comunicao, modifica o regime de opinies. No queas opinies tornem-se verdadeiras (ou falsas). Elas so incapazesdisso, e, em seu ser-mltiplo eterno, uma verdade persisteindiferente s opinies. Mas elas se tornam outras. O que querdizer que os juzos antes evidentes para a opinio no so maissustentveis, que so necessrios, que os modos de comunicao

    se modificam etc. (BADIOU, 1993, p. 71, nossa traduo).

    Em Badiou, uma verdade5 transforma necessariamente os

    cdigos de opinio. No caso da depresso, esta transformao mais

    catica, visto que as pesquisas envolvendo este tema esto em constante

    luta, em que encontramos, no mnimo, dois lados bastante distintos,

    relativamente equilibrados, mas ainda assim no homogneos em si

    mesmos. Desta luta de mil soldados, a imprensa suga sua atualidade,

    promovida com suas prprias estratgias.O socilogo Alain Ehrenberg (2008, p. 125) defende que os meios

    de comunicao contriburam para a proliferao de uma gramtica da

    vida interior para as massas no caso da depresso. Podemos endossar

    esta hiptese, mas apenas no que se refere aos efeitos visados pelas

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    publicaes, sem considerarmos o real uso dos sujeitos a partir do que

    lhes chega midiaticamente. Alm disso, dada a pluralidade de estratgias

    discursivas na formao do objeto miditico da depresso, no

    concordamos que haja apenas umagramtica da vida interior difundida.

    Em outras regies cientficas provvel que isto tenha ocorrido com

    maior fidelidade. O vocabulrio do cdigo gentico (especialmente aps

    o Projeto Genoma) e a linguagem relativa aos problemas cardacos,

    por exemplo, produziriam regimes de opinio muito mais constantes

    e uniformes do que no caso depresso. Outras pesquisas confirmariam

    ou rebateriam nossa aposta. Sobre depresso, no entanto, muito se diz,

    mas esta loquacidade plural, permitindo arranjos de discurso diversos.

    Defendemos que, por meio de estratgias discursivas muitoespecficas e pulverizadas, a imprensa mantm atual o tema da

    depresso, beneficiando-se justamente da pluralidade de vises que o

    distrbio depressivo provoca no prprio seio da cincia. Seria, portanto,

    nesta zona cinzenta da opinio que se inventa esta potncia soft

    produtora de atualidade cientfica sem ser propriamente cincia, sem ser

    propriamente senso comum. Em suas incertezas, a depresso um objeto

    privilegiado na produo de comunicabilidade. Afirmar que a imprensa

    corrobora totalmente a viso biologizante da depresso ignorar suasfinas estratgias discursivas. Ironicamente, quando ns, pesquisadores,

    dizemos chega de verdade!, na esteira de nossa herana filosfica mais

    recente, esta zona cinzenta da opinio parece concordar conosco de uma

    maneira perversa, que nos convm, portanto, comear a destrinchar.

    NOTAS

    1 Nossa pesquisa de doutoramento, base deste artigo, pretende-se umpouco mais abrangente: alm do arquivo do Grupo Folha, consultamostambm o arquivo da Revista Veja, em que focamos nos sentidos da palavradepresso nos ltimos 40 anos, para alm das reportagens de cincia.

    2 Cf. Gonalves; Saint Clair (2008).

    3 Tomo emprestada esta nomenclatura (efeitos visados, efeitos reais, efeitospossveis) de Patrick Charaudeau (2010, p. 25).

    4 Cf. ainda a leitura de Deleuze acerca da infmia em Foucault: Foucaultconcebe uma infmia de raridade, aquela dos homens insignificantes,obscuros e simples, que somente so levados luz pelas queixas,

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    Ericson Saint Clair

    REFERNCIAS

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    5 Verdade em Badiou o processo real de fidelidade a um evento (1993,

    p. 39), uma ruptura imanente, uma vez que no h cu de verdades epartindo do pressuposto de que o que torna possvel o processo de verdade evento no estava entre os usos comuns de uma situao.

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    A DEPRESSO COMO OBJETO JORNALSTICO

    Artigos de Jornal

    Depresso aumenta dia-a-dia em todo o mundo. Folha da Tarde, SoPaulo, 3 nov. 1977.

    Depresso pode ter origem em herana gentica do indivduo. Folha deS. Paulo, So Paulo, 23 nov. 1985.

    Depresso: o mal dos sculos. Folha de S. Paulo, So Paulo, 19 jun.1989.

    Depresso e ansiedade vo alm da crise da adolescncia. Folha de S.Paulo, So Paulo, 3 set. 2001.

    Identificada nova sndrome: a depresso ps-frias. Folha de S. Paulo,So Paulo, 16 set. 2002.

    Estudo liga sexo depresso. Folha de S. Paulo, So Paulo, 9 jun. 2003.

    Depresso em jovem tem feies prprias. Folha de S. Paulo, SoPaulo, 4 set. 2003.

    Depresso pode ser causada por ao de vrus. Folha de S. Paulo, SoPaulo, 22 ago. 2005.

    Droga antiobesidade pode elevar em 40% risco de depresso. Folha deS. Paulo, So Paulo, 22 nov. 2007.

    Ericson Saint Clair doutorando em Comunicao e Cultura pela UFRJ emestre em Comunicao pela UFF. autor de Gabriel Tarde e a Comunicao:por um contgio da diferena(Editora Multifoco, 2012). Suas pesquisasprivilegiam as interfaces entre Comunicao, Histria e Subjetividade. E-mail:[email protected]

    RECEBIDO EM: 26/03/2012 | ACEITO EM: 02/05/2012