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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE”: O PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA E O CONFINAMENTO RACIAL DA CLASSE MÉDIA BRANCACampinas 2019

A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE O PROGRAMA DE …

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO

“A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE”: O

PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO

ENSINO SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA E O

CONFINAMENTO RACIAL DA CLASSE MÉDIA

BRANCA”

Campinas

2019

DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO

“A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE”: O

PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO

SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA E O

CONFINAMENTO RACIAL DA CLASSE MÉDIA

BRANCA”

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Estadual de Campinas como parte dos requisitos

exigidos para a obtenção do título de Doutora em

Ciência Política.

Supervisor/Orientador: Armando Boito Júnior

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE

DEFENDIDA PELA ALUNA DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO E ORIENTADA

PELO PROF. DR. ARMANDO BOITO JÚNIOR

CAMPINAS, 2019

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Araujo, Danielle Pereira de, 1986-

Ar12c Ara"A cota paulista é mais inteligente": o Programa de Inclusão com Mérito no

Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) e o confinamento racial da

classe média branca / Danielle Pereira de Araujo. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

AraOrientador: Armando Boito Júnior.

AraTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Ara1. Classe média. 2. Meritocracia. 3. Racismo institucional. 4. Cotas raciais.

I. Boito Júnior, Armando, 1949-. II. Universidade Estadual de Campinas.

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: "São Paulo's cotas is smater": the merit inclusion program in

the paulista public higher education (PIMESP) and the racial confinement of the white

middle class

Palavras-chave em inglês:

Middle class

Meritocracy

Institutional racism

Racial quotas

Área de concentração: Ciência Política

Titulação: Doutora em Ciência Política

Banca examinadora:

Armando Boito Júnior [Orientador]

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães

Gislene Aparecida dos Santos

Mário Augusto Medeiros da Silva

Sávio Machado Cavalcante

Data de defesa: 30-09-2019

Programa de Pós-Graduação: Ciência Política

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-8821-5369

- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1753947252157460

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de

setembro de 2019, considerou o(a) candidato(a) Danielle Pereira de Araujo

aprovado(a).

Prof(a) Dr(a) Armando Boito Júnior

Prof(a) Dr(a) Antônio Sergio Alfredo Guimarães

Prof(a) Dr(a) Gislene Aparecida dos Santos

Prof(a) Dr(a) Mário Augusto Medeiros da Silva

Prof(a) Dr(a) Sávio Machado Cavalcante

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no

SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-

Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

DEDICATÓRIA

Dedico às mulheres que me guardaram, protegeram,

mas acima de tudo que me ensinaram a lutar:

Vaulice, Gabriela e Mãe Marta (In memoriam).

AGRADECIMENTOS

O caminho até a entrega dessa tese não foi trilhado só por mim, assim como

essa história não é só minha. E por isso agradecer a todas as pessoas que tornaram

esses anos menos dolorosos ou mais esperançosos merecia muito mais que uma ou

algumas páginas. Como não as tenho, registrarei de modo muito breve e com certeza,

injusto, alguns dos muitos “corpos insubmissos” que apareceram nessa caminhada e

me fizeram acreditar que resistir é o único caminho possível.

Em primeiro lugar, registro meu agradecimento ao Professor Armando Boito

Júnior pela paciência e as trocas frutíferas ao longo desses anos.

Aproveito para registrar também meu agradecimento à secretaria da Pós-

graduação em Ciência Política pelo apoio à distância. Meus sinceros agradecimentos à

Pró-Reitoria de Graduação da UNESP e à ADUSP por terem contribuído com a

construção do “inventário do real”.

A terra da luz deu-me também a família de coração. Obrigada Daysi, Larinha,

Lara Borges, Adelaine, Diane, Regiane, Shirley. Ao Pedro e Isabela, minha eterna

gratidão pela coragem e parceria.

Agradeço a todos que conseguiram tornar os dias frios em Campinas em

momentos de aconchego e conforto. Lauren, Paulinha, Luis Julião, Talita, Raulino e

Regi, meu obrigada pela acolhida, pelos cafés, pelos jantares e, como não podia deixar

de ser, pelos risos e sambas que embalaram tantas vezes nossos encontros. Muito

obrigada.

O Rio de Janeiro me presenteou com sambas, sonhos, aprendizados e lutas.

Obrigada Daniela, Tatiana, Linda, Tati Sacilotto, Daniele Lopes, Vikki pelas trocas,

risos e choros. Ludmila, sou eternamente grata a você pelos momentos regados a

muito axé e dança que me lembraram a importância de celebrar a vida com o corpo.

Ao Iderley pelos anos de companheirismo e insistência no diálogo. Obrigada

por ter sido parceiro de tantas horas duras.

E como continuo a desbravar águas dantes não vistas (?), em Portugal, agradeço

à Silvia Maeso pela humildade e pelas trocas que também tornaram essa tese possível.

E às insubmissas por me fazer acreditar que sonho e luta se constroem na coletividade:

Mari, Patrisha, Ana, André, Camila, Danuza, Cíntia, Raquel e Carmen. Obrigada povo!

Ao Flávio, por ter se tornado um abrigo desse lado de cá do Atlântico.

E finalmente, como é preciso retornar às origens para continuar seguindo firme,

agradeço o porto seguro que tem sido minha família (que cresceu!). Manu, Eduardinho,

Joaninha, Gabi, Adriano e ela, a mulher que sempre disse que eu podia: D. Vaulice.

Vocês estão comigo no melhor que há em mim.

O que queria eu dizer, especificamente,

quando falava da perda do meu corpo? E,

se Malcolm estava certo e tínhamos o

dever de preservar a nossa vida, como

podia eu ver essas vidas preciosas como

uma simples mola colectiva, como o

resíduo amorfo da pilhagem? Como podia

eu privilegiar o espectro da energia negra

em detrimento de cada raio de luz

particular? Eram notas sobre como

escrever e, portanto, sobre como pensar.

O Sonho alimenta-se de generalizações,

de restringir o número de questões

possíveis, de privilegiar as respostas

imediatas. O Sonho é o inimigo de toda a

arte, do pensamento corajoso e da escrita

honesta. E tornava-se claro que isto valia

não apenas para os sonhos criados pelos

americanos para se justificarem a si

mesmos, mas também para os sonhos que

eu conjurara para os substituir. Pensara

que tinha de espelhar o mundo exterior,

criar uma cópia a papel químico das

pretensões brancas à civilização.

Começava agora a ocorrer-me questionar

a lógica dessa própria pretensão.

Esquecera o hábito, inculcado pela minha

mãe, de me questionar a mim próprio, ou

antes, ainda não apreendera o seu sentido

mais profundo, o sentido que perdura toda

uma vida. Na altura, mal começara a

aprender a vigiar a minha humanidade, a

minha fúria e mágoa- ainda não percebera

que a bota que te pisa o pescoço tanto

pode deixar-te paranóico como pode

tornar-te mais nobre.

( Entre Mim e o Mundo, Ta-Nehisi

Coates)

RESUMO

A presente tese analisa o processo que culminou na rejeição, pelos docentes das

universidades estaduais paulistas, do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino

Superior Público Paulista (PIMESP) em 2013. Gestado pelos reitores das três

universidades estaduais de São Paulo (Universidade Estadual de Campinas,

Universidade Estadual Júlio de Mesquista, Universidade de São Paulo), em estreita

colaboração com o governo do estado de São Paulo, o PIMESP propunha-se a ser um

programa inclusivo no ensino superior, mas com o grande diferencial de priorizar o

mérito no processo de seleção do público beneficiário. Se, por um lado, o

posicionamento contrário à proposta advindo dos docentes das três universidades

estaduais paulistas expôs as limitações do PIMESP, por outro, o enquadramento dado

ao debate, a partir dos dilemas apresentados pelos docentes como inclusão versus

mérito, raça versus classe, políticas universais versus políticas focalizadas, evidenciam

a estrutura racista e elitista que informa a prática política daquela fração da classe

média branca que ocupa a universidade. Nesse sentido, o principal objetivo na presente

tese é evidenciar que a defesa do mérito aliada ao refutamento de políticas de ação

afirmativa com recorte étnico-racial, se converteram em estratégias discursivas

(re)produzidas pela fração da classe média branca no contexto de avaliação do

Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista e que cumpriu

uma dupla função: mascarar a hierarquia do trabalho e naturalizar o racismo

institucional. Como objetivo secundário, buscaremos também situar o PIMESP

inserido em uma lógica que orientou outras políticas de “inclusão” propostas pelas três

universidades paulistas entre os anos de 2004 a 2014. A partir das contribuições da

abordagem marxista de classe média e do conceito de racismo institucional

(Carmichael & Hamilton, 1967), a presente tese buscará explorar de que forma a

narrativa da “inclusão” nas universidades estaduas paulistas naturalizam as hierarquias

de classe e raça.

Palavras Chave: classe média, meritocracia, racismo institucional, cotas raciais.

ABSTRACT

This thesis analyzes the process that culminated in the rejection, by professors of São

Paulo state universities, of the São Paulo Public Higher Education Merit Inclusion

Program (PIMESP) in 2013. Gestated by the deans of the three state universities of São

Paulo (State University of Campinas, Julio de Mesquista State University, University of

São Paulo), in close collaboration with the government of the state of São Paulo,

PIMESP proposed to be an inclusive program in higher education, but with the great

differential of prioritizing merit in the process of the selection of the beneficiary public.

If, on the one hand, the teachers' contrary position to the proposal exposed the

limitations of PIMESP, on the other, the framework given to the debate, based on the

dilemmas presented by the teachers as inclusion versus merit, race versus class,

universal policies versus focused policies, they highlight the racist and elitist structure

that informs the political practice of that fraction of the white middle class. In this sense,

the main objective of the present thesis is to show that the defense of merit, together

with the refutation of affirmative action policies with ethnic-racial approach, were

constituted as discursive strategies (re) produced by that fraction of the paulista middle

class in the context of evaluation. of the Merit Inclusion Program of the State of São

Paulo, which fulfilled a dual function: to mask the hierarchy of labor and to naturalize

institutional racism. As a secondary objective, we will also seek to situate PIMESP in a

logic that guided other policies of “inclusion” proposed by the three universities of São

Paulo from 2004 to 2014. From the contributions of the Marxist middle class approach

and the concept of institutional racism (Carmichael & Hamilton, 1967), the present

thesis will seek to explore how the narrative of “inclusion” in São Paulo state

universities naturalizes class and race hierarchies.

Keywords: middle class, meritocracy, institutional racism, racial quotas.

LISTA DE FIGURAS, GRÁFICOS E TABELAS

Figura 1: Disciplinas da Grade Curricular do Profis ......................................................... 214 Figura 2: A redenção de Cam ........................................................................................ 249

Gráfico 1: Brancos e negros com Ensino Superior entre 1988 e 2013 ........................... 30

Gráfico 2: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com

nível de escolaridade Elementar (alfabetizados) .......................................................... 259

Gráfico 3: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com

nível de escolaridade 1º Grau ....................................................................................... 260

Gráfico 4: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com

nível de escolaridade 2º Grau ....................................................................................... 261

Gráfico 5: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com

nível de escolaridade Superior ...................................................................................... 262

Tabela 1: Matriculados 2012 na Usp, Unesp e Unicamp ............................................. 153

Tabela 2: Avaliação Inep x Políticas de ação afirmativa.............................................179

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABE- Associação Brasileira de Educação

ABC- Academia Brasileira de Ciência

ALESP- Assembleia Legislativa de São Paulo

CONSU- Conselho Universitário

CONFENEN- Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino

CRUESP- Conselho de reitores das Universidades Estaduais de São Paulo

EESC- Escola de Engenharia de São Carlos

Etecs- Escolas Técnicas Estaduais

Fatecs- Faculdades de Tecnologia

FUVEST- Fundação Universitária para o Vestibular

GT- Grupo de Trabalho

ICES- Instituto Comunitário de Ensino Superior

Inclusp- Programa de Programa de Inclusão Social da USP

IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

ONU- Organização das Nações Unidas

PAAIS- Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social

PRG- Pró-Reitoria de Graduação

PROFIS- Programa de Formação Interdisciplinar Superior

PIMESP- Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista

PNAD- Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar

PPIs- Pretos, Pardos e Indígenas

PSDB- Partido da Social Democracia Brasileira

REUNI- Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais

SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso

SDECTI- Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e

Inovação

STF- Superior Tribunal Federal

UNESCO- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNESP- Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

UNICAMP- Universidade Estadual de Campinas

UNIVESP- Universidade Virtual do Estado de São Paulo

USP- Universidade de São Paulo

SUMÁRIO

Índice INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 14

CAPÍTULO 1 - INVENTARIANDO O REAL: ESCOLHAS METODOLÓGICAS E

CONCEITUAIS .......................................................................................................................... 27

O trabalho de campo ................................................................................................................... 32

O conceito de classe média ......................................................................................................... 39

O conceito de Racismo Institucional a partir da contribuição do pensamento negro ............... 51

CAPÍTULO 2: AS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS E POLÍTICAS DA COMPREENSÃO

EUROCÊNTRICA DE RAÇA E RACISMO NO CONTEXTO BRASILEIRO ....................... 62

O projeto UNESCO e a escola sociológica paulista ...................................................................... 63

As políticas afirmativas sob o olhar do pensamento social brasileiro ...................................... 100

As lutas do movimento negro e as encruzilhadas do direito no sistema capitalista ................ 112

CAPÍTULO 3: O PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO ENSINO SUPERIOR

PÚBLICO PAULISTA (PIMESP) ............................................................................................ 128

A UNESP e a aprovação parcial do PIMESP ............................................................................... 180

A UNICAMP e a rejeição ao PIMESP: a escolha pela bonificação (PAAIS) e pela continuidade do

Programa de Formação Interdisciplinar Superior (PROFIS) ...................................................... 199

A USP e a rejeição ao PIMESP: a reformulação do sistema de bonificação .............................. 225

Considerações gerais ................................................................................................................. 247

CAPÍTULO 4: “A REDENÇÃO DE CAM”: O ESTABELECIMENTO DA EDUCAÇÃO

PÚBLICA NO BRASIL E O MELHORAMENTO DA NAÇÃO ............................................ 249

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 266

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 270

14

INTRODUÇÃO1

Políticas afirmativas no ensino superior dizem respeito à institucionalização de

dispositivos que promovam o acesso e a manutenção de estudantes pertencentes a

grupos sociais que historicamente foram privados do acesso à educação superior. Tais

ações remontam ao início dos anos 20002 e para a presente tese, interessa-nos o debate

sobre as modalidades de reserva de vagas e bonificação. O sistema de reserva de vagas

(ou cotas, como ficou popularmente conhecido) é a modalidade de ação afirmativa que

mais tem sido utilizada pelas universidades públicas brasileiras (FERES JR et al, 2013).

Até 2013, nacionalmente, as universidades que aderiram às políticas de ação

afirmativa com reserva de vagas totalizavam 70. Desse total, 44% eram estaduais e 56%

federais3. Segundo levantamento feito por Feres Jr et al (2011), as universidades que

adotaram reservas de vagas somavam 84,3% (59), 32,9% (23) haviam instituído

acréscimo de vagas4 e 18,6% (13) adotaram bonificação.

A adoção de reserva de vagas não implica, necessariamente, a adoção de cotas

étnico-raciais: em 2011, as universidades com reservas de vagas para egressos da escola

pública correspondiam a 87% (61) do total de universidades que utilizavam essa

modalidade de política afirmativa, contra 57% (40) das universidades que tinham cotas

étnico-raciais (FERES JR.et al, 2011).

O estabelecimento de políticas de ação afirmativa no ensino superior público

brasileiro nos anos 2000, por meio da Lei Federal nº 12.711/20125 foi um importante

1 Antes de adentrarmos no texto, válido explicar dois termos que constam no título. Em relação à

expressão “a cota paulista é mais inteligente”, ela faz referência ao título de uma matéria publicada no

portal Portal Aprendiz do grupo UOL e de autoria de Gilberto Dimenstein, jornalista que dentre outros

trabalhos, foi colunista do Jornal Folha de São Paulo por 28 anos, além de ser criador do portal catraca

livre (Cf. DIMENSTEIN, 2012). Em relação ao termo “confinamento racial”, é alusivo ao artigo “O

confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro” do antropólogo José Jorge de Carvalho (Cf.

CARVALHO, J. J., 2006) 2 A Universidade Estadual do Norte Fluminense e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro foram as

primeiras universidades públicas a adotar políticas afirmativas, em 2000 e em 2001, respectivamente. No

entanto, o projeto de lei nº 12.711, que tramitava no Congresso Nacional desde 2001, e que previa a

reserva de vagas em universidades públicas para pessoas oriundas de escola públicas, negros e indígenas,

só viria a ser aprovado em 2012. 3 Em 2013 existia um total de 96 universidades públicas estaduais e federais no País (Feres Jr et al, 2013). 4 Em relação ao aumento de vagas, vale ainda salientar que com a criação do Reuni (Programa de Apoio

ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), que entre outras ações expandiu a

quantidade de vagas ofertadas nas universidades públicas, algumas universidades (19 ao total)

aumentaram a quantidade de vagas sem, no entanto adotar políticas inclusivas. 5 Ou Lei de Cotas como popularizou-se, e vez por outra utilizaremos na presente pesquisa.

15

marco político para a história da ampliação do acesso ao ensino superior por negros6 e

indígenas no Brasil.

A presente pesquisa visa analisar o processo político (e os conflitos evidenciados

ao longo dele) que resultou na rejeição do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino

Superior Paulista (PIMESP) e, a manutenção, até 2017, da modalidade de bonificação

em detrimento da reserva de vagas7 nas três universidades públicas estaduais do Estado

de São Paulo.

Importante destacar que, a referida tese, se propõe a oferecer uma análise acerca

dos conflitos na constituição do que estamos a chamar de agenda “inclusiva” no interior

das universidades estaduais paulistas, a partir da apresentação da proposta do PIMESP

em 2013. Nesse sentido nos propomos a analisar a fase de formulação do “problema”,

isto é, a partir do debate gerado pelo PIMESP, buscaremos perceber os principais

elementos discursivos presentes na disputa entre docentes e Estado pelo enquadramento

do “problema” de acesso às universidades e por sua solução. Portanto, a presente

pesquisa não contempla a fundo a fase pós-rejeição do PIMESP, isto é, a reformulação e

a solução do problema, dessa vez encampada pelos movimentos sociais em articulação

com os docentes das próprias universidades.

Os debates realizados, por mais de uma década, quanto à possibilidade de

adoção de políticas de ação afirmativa com a modalidade de reserva de vagas étnico-

raciais pelas universidades públicas do estado de São Paulo – Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Universidade de São Paulo (USP) e

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – foram pautadas por um

posicionamento fortemente contrário à adoção da reserva de vagas étnico-raciais.

As universidades estaduais de São Paulo mantiveram-se por mais de uma década

na contramão da tendência nacional: as universidades estaduais (Rio de Janeiro, Bahia,

6 Optarei pelo uso do termo negro ao longo do texto, sempre que possível, por entender que a

terminologia – preto e pardo – empregada pelo IBGE e utilizada na formulação de algumas políticas

públicas, inclusive no PIMESP, busca, por meio da nomeação dos sujeitos, domesticar os espaços de

enunciação, ofuscando a potência política e o poder aglutinador do termo negro. Mas esse

posicionamento também está embasado em estudos sobre mobilidade social (HASENBALG, 1979;

SILVA, 1978; HENRIQUES, 2001; SOARES, 2000; JACCOUD & BEGHIN, 2002; OSÓRIO, 2003;

RIBEIRO; 2006) e outras pesquisas realizadas pelos institutos de pesquisas demográficas (IBGE, INEP)

no Brasil que demonstram que pretos e pardos compartilham níveis de acesso à educação, moradia, saúde,

trabalho muito próximos. Diante disso, as informações demográficas na presente tese, são extraídas dos

dados oficiais, onde há separação entre as categorias pretos e pardos, mas que na presente pesquisa estão

agrupados em todas as tabelas na categoria negro. 7 Estamos nos referindo à reserva de vagas tal como têm sido adotadas em outras universidades públicas:

com acesso direto à universidade, pós-aprovação no vestibular, sem cursos preparatórios como propunha

o PIMESP, por exemplo.

16

Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul) foram as primeiras universidades no Brasil a

adotarem as cotas étnico-raciais (entre os anos de 2002 e 2003). Foi também no

contexto das universidades estaduais onde mais rapidamente esse tipo de política

afirmativa teve expressiva adesão, antes mesmo da criação da Lei federal em 2012 (Cf.

FERES JÚNIOR, DAFLON & CAMPOS, 2011; FERES JÚNIOR, DAFLON,

CAMPOS, BARBABELA & RAMOS, 2013).

Parcela majoritária dos docentes das universidades estaduais paulistas insistiu na

manutenção do sistema de bonificação (pelo menos até 2017), que consistia no

acréscimo de pontos nas provas do vestibular com foco nos egressos de escolas

públicas. Entretanto, inúmeros estudos já comprovaram que esse tipo de sistema alcança

resultados inexpressivos (Cf. FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, BARBABELA &

RAMOS, 2013), pouco alterando o quadro de disparidades de acesso entre negros,

indígenas e brancos.

No ano de 2012, frente à pressão dos movimentos sociais (e os impactos dessa

mobilização nas eleições daquele ano) e da ampla adoção por parte das universidades

brasileiras do sistema de reserva de vagas, o governador de São Paulo, Geraldo

Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em articulação com os

reitores das três universidades públicas estaduais, os representantes da Universidade

Virtual do Estado de São Paulo8 (UNIVESP) e o Centro Paula Souza9, finalizaram a

proposta do PIMESP, e colocaram para aprovação dos corpos docentes das três

universidades. O cenário de conflitos e tensões gerado durante aquele processo de

avaliação, em nossa análise, orientado por posições e interesses de classe, parece ainda

carecer de estudos que busquem conhecer mais sobre os motivos da resistência à adoção

das cotas no ensino superior público paulista.

Em síntese, o PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos

de escolas públicas e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de

8 Criada em 2008 pelo governo de Geraldo Alckimin, a UNIVESP, foi a resposta do governo à falta de

vagas nas universidades. UNIVESP então foi criado para suprir a demanda por mais vagas nas

universidades estaduais paulistas a baixo custo e investimento, oferecendo ensino superior à distância.

Desde a sua criação, a Universidade à distância tem recebido inúmeras críticas, como: a qualidade

duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, beneficiamento da iniciativa

privada do setor de equipamentos e programas de informática, sucateamento do ensino superior público,

desvirtuamento dos fins originais do ensino à distância e uso desse tipo de ensino para legitimar a

exclusão uma vez que os estudantes que cursam Univesp não moram necessariamente em lugares

distantes que os impedissem de acessar os cursos presenciais das universidades públicas estaduais

paulistas. 9 O Centro Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de

Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219

Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs).

17

pretos, pardos e indígenas (PPI). No entanto, ao passar no vestibular, todos os cotistas

teriam que fazer um curso semipresencial, a ser realizado no Instituto Comunitário de

Ensino Superior (ICES), com duração de dois anos e com grade curricular que incluiria

disciplinas como “serviços e administração do tempo”, “gerenciamento de projetos”,

“profissionalização”, “inovação e empreendedorismo”.

O debate realizado pelo corpo docente das três universidades públicas paulistas,

esteve marcado pelo questionamento da viabilidade e/ou da necessidade do sistema de

reserva de vagas, motivado por receio de que: 1) o referido sistema causasse ranhuras ao

sistema meritocrático e, 2) que a presença dos cotistas pusesse em causa a qualidade das

universidades públicas de São Paulo, internacionalmente conhecidas pela excelência na

produção de conhecimento.

A conclusão do processo de avaliação do PIMESP: rechaço por duas

universidades, UNICAMP e USP, e aprovação parcial pela UNESP10. Apenas em 2017,

a partir da forte pressão dos movimentos sociais (movimento negro, movimento

estudantil), os conselhos universitários da UNICAMP e da USP aderiram11 ao sistema

de reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas. O cenário de conflitos e tensões,

que acompanharam os debates em relação à adoção de reserva de vagas nas três

universidades paulistas nos últimos anos, parece ainda carecer de estudos que busquem

conhecer mais profundamente os motivos da resistência à adoção das cotas étnico-

raciais. Nesse sentido, a presente pesquisa buscará visibilizar as estratégias discursivas

pelos quais as categorias políticas de raça e racismo estiveram ocultadas ou

minimizadas nos discursos dos docentes das universidades paulistas.

É importante já pincelarmos em linhas gerais a nossa interpretação acerca da

resistência da fração da classe média branca paulista às políticas afirmativas. Em

primeiro lugar, entendemos que tem uma fração da classe média alta e branca que

historicamente, tem resistido a qualquer tipo de política que confronte a meritocracia

porque esse tipo de política estará obviamente questionando o seu lugar privilegiado na

estrutura de classes, arranhando também o igualitarismo jurídico, outro princípio caro à

classe média. Em segundo lugar, e como consequência do primeiro ponto, a fração da

classe média alta e branca poderá vir a fazer algum tipo de concessão no que concerne

10 Pontos extras em cima da nota obtida no vestibular do aluno que vem de escola pública. 11Importante assinalar que, mesmo aprovando o sistema de reserva de vagas, o contingente de vagas

destinadas aos negros e indígenas nas três universidades dar-se-á de modo progressivo até 2021, período

no qual a meta estabelecida pela Lei Federal nº 12.711/2012 deverá ser atingida.

18

à flexibilização da ideologia meritocrática (frente à pressão dos movimentos sociais)

desde que o elemento central que a distingue da classe trabalhadora seja mantido (isto

é, a realização de trabalho não-manual) e nesse sentido outras narrativas serão

mobilizadas por essa classe com a finalidade de reproduzir a sua distinção. E aqui

entra o terceiro ponto relativo à presença da perspectiva integracionista ou

assimilacionista como caminho defendido pela classe média branca à pressão dos

movimentos sociais pela democratização do acesso ao ensino superior público paulista.

Defenderemos nos capítulos seguintes, que o PIMESP foi rejeitado pela fração

da classe média branca abastada não pelo seu caráter racista, mas pelos perigos que

apresentava a manutenção da reprodução dessa classe. Nossa interpretação está

baseada em dois pontos principais. Em primeiro lugar, pela primeira vez o Estado e os

gestores da burocracia educacional paulista estavam a propor cotas para negros,

indígenas e estudantes de escola pública, reservando vagas12 e, portanto, ampliando o

acesso e interferindo na distribuição de vagas. E em segundo lugar porque o desenho

institucional do PIMESP com a criação de um instituto com um currículo voltado a

suprir demandas do mercado de trabalho13, ameaçou borrar a linha distintiva dessa

fração da classe média (branca, abastada e historicamente monopolizadora da

universidade) em relação à classe trabalhadora, além de trazer o perigo da

sobrecertificação (grande quantidade de pessoas diplomadas).

Contra o PIMESP, os docentes mobilizarão um imaginário ligado às idéias de

despreparo, inadaptação, deficiência para se referir aos beneficiários da política de

cotas, questionando a legitimidade daqueles em ocupar o espaço da universidade

pública. Nesse sentido, os docentes se opuseram ao PIMESP e defenderam as políticas

de inclusão já existentes nas três universidades (como a bonificação e a isenção da taxa

de inscrição no vestibular) porque essas políticas, em nosso entendimento são na

realidade rearranjos comésticos que mantem intocadas as estruturas de poder e os

12 Ainda que, pela Proposta, os cotistas não pudessem acessar diretamente a universidade. 13 No capítulo 3 discutiremos mais sobre esse ponto do PIMESP mas para já, o objetivo de capacitação

para o mercado profissional era ponto central da referida proposta, como podemos ver nas palavras de um

dos idealizadores do Programa, Carlos Vogt, para quem “[...]a capacitação é o principal objetivo do ICES

[…] Trata-se de cursos sequenciais de capacitação e formação superior de dois anos com diploma que

habilita o aluno a atuar em áreas que não exigem formação técnica específica, como por exemplo, alguns

cargos em setores de prestação de serviços e alguns cargos públicos” (GRILO, Gabriel. O PIMESP é um

bom método de inclusão? Jornal do Campus/USP, São Paulo, 11 de abril de 2013. Opinião. Disponível

online). Nesse sentido, entendemos que sendo a classe trabalhadora e trabalhadores precarizados (onde

encontra-se grande parcela de negros pobres) os grupos que historicamente tem ocupado os cargos com

menos exigência de formação técnica, a classe média viu-se atemorizada com a possibilidade de diluição

da sua condição distintiva a partir da implantação do ICES.

19

imaginários inferiorizadores acerca dos beneficiários, frutos do temor partilhado pela

classe média branca, ainda que não explicitamente nomeado, acerca do “perigo da

degeneração” da universidade, tanto no sentido racial como no sentido de classe. Na

presente tese, chamaremos a esse tipo de política defendida pela fração da classe média

branca abastada de políticas integracionistas ou assimalacionistas.

Ainda quanto às políticas, que estamos denominando de integracionistas

vigentes nas universidades estaduais paulistas no período analisado, é preciso que

façamos dois apontamentos. O primeiro diz respeito à importância de assinalarmos que

o entendimento que acompanha a presente tese é de que há diferenças entre os

pressupostos que orientam as políticas “inclusivas” vigentes nas universidades

paulistas entre 2004 e 2014 (incluindo a proposta do PIMESP) e as políticas

afirmativas com reserva de vagas étnico-raciais definidas pela Lei de Cotas e

defendidas historicamente pelos militantes negros no Brasil.

A interpretação que orienta a presente tese é a de que tanto as políticas de

“inclusão” vigentes na USP, UNESP e UNICAMP como o PIMESP foram arranjos

institucionais que têm no cerne das suas diretrizes o entendimento de que os grupos

beneficiários desse tipo de política são um problema, invisibilizando e

desresponsabilizando os mecanismos de exclusão da própria estrutura social vigente ao

mesmo tempo em que converte a “vítima” em “culpado” pela sua situação de exclusão

na qual foi impelido a estar. Além disso, as referidas políticas partem do entendimento

de que os beneficiários das políticas afirmativas precisariam da autorização e da gestão

do grupo “majoritário” para serem incluídos em determinados espaços (Cf.

GOLDBERG 1993; HESSE, 2004; ARAÚJO; MAESO, 2013). E é precisamente

nesses dois aspectos que, para nós, reside a diferença entre as políticas inclusivas de

acesso ao ensino superior concebidas pela classe média branca paulista abastada e a

Lei de Cotas, proposta pelo governo federal e respaldada por diversas lideranças

negras no Brasil.

A Lei de cotas prevê reserva de vagas justamente porque reconhece que

existem grupos historicamente desfavorecidos na competição por acesso a recursos e

que, portanto o Estado teria como prioridade mudar esse quadro, submetendo valores

como meritocracia e igualitarismo aquele fim. A reserva de vagas implica que o cotista

não estará submetido a “filtros extras” (meritocráticos) que na realidade funcionam

para impedir o acesso direto à universidade como: exigência de cursos preparatórios

(caso do Profis na Unicamp e do PIMESP) ou ainda atingir determinadas notas nos

20

exames vestibulares para conseguir acesso a bônus, caso do Programa de Programa de

Inclusão Social da USP (INCLUSP) e do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão

Social (PAAIS) 14. Nesse sentido, a Lei de cotas ao garantir a reserva de vagas

desestabiliza, em alguma medida, a reprodução da desigualdade e da classe média ao

“secundarizar o critério meritocrático” (CAVALCANTE, 2015).

O segundo ponto diz respeito a própria concepção das políticas afirmativas no

ensino superior. Temos consciência dos limites desse tipo de política no que tange à

sua capacidade em desmontar as estruturas que mantem as opressões e em algumas

passagens da presente tese essa posição será explicitada, mas é importante registrarmos

para já que essa problematização não visa qualquer tipo de desligitimação da existência

delas e muito menos a desaprovação do fato das políticas afirmativas estarem a

décadas na agenda de reivindicação do movimento negro (SANTOS, 2012; DAFLON,

et al 2013; RIOS, 2014).

Nesse sentido não nos identificamos com algumas críticas às políticas de ação

afirmativas que analisam a reivindicação por esse tipo de política como um equívoco

do movimento já que a criação desse tipo de política, na visão daqueles críticos,

amorteceria os conflitos, fragmentaria os grupos e, portanto, obstacularizaria a luta

radical. Entendemos que esse tipo de crítica ignora os desdobramentos das políticas

afirmativas no que tange à confrontação da gramática jurídico burguesa-racista e a

possibilidade de radicalização da luta. Com isso não queremos dizer que as cotas

étnico-raciais rompem com a estrutura capitalista e seu ordenamento jurídico, mas em

alguma medida há a criação de possibilidades reais de democratização da estrutura

burguesa. O fato de a classe média branca ter se debatido e degladiado com o Estado e

a burocracia institucional ao longo de mais de uma década, rejeitando até onde pode a

reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior, talvez seja uma evidência de que

esse tipo de política longe de mero mecanismo de domesticação e fragmentação da

luta, pode sim desordenar as “regras do jogo”.

A “presença ausência do racial” (APPLE, 1999; ARAÚJO & MAESO, 2013)

marcará profundamente a narrativa em torno da adoção da reserva de vagas étnico-

raciais entre os docentes das universidades estaduais paulistas. Nesse sentido, analisar o

processo de discussão sobre a adoção da modalidade de reserva de vagas étnico-raciais

permite perceber como a evocação de brechas legais, como autonomia universitária, foi

14 Regras vigente para o período analisado (2004-2014).

21

mobilizado pelos docentes para se contrapor ao PIMESP, mas também à Lei de Cotas

do governo Federal.

É de fundamental importância compreender como se dá o processo que leva à

definição do tipo de ação afirmativa implementada nas universidades estaduais. Esse é,

na verdade um dos aspectos mais importantes das políticas de ação afirmativa, já que

isso definirá o raio de alcance da política em termos inclusivos.

Transcorrida mais de uma década da implementação das primeiras medidas de

ação afirmativa no ensino superior no Brasil15, as pesquisas produzidas em relação ao

tema, parecem ainda não dar a devida atenção às ideias que sustentam os

posicionamentos em torno da política e, além disso, o pertencimento de raça e classe

dos principais sujeitos e grupos envolvidos no debate, principalmente sobre o conflito

que perdurou por tantos anos nas universidades estaduais de São Paulo até a aprovação

das cotas em 2017.

O panorama das análises sobre as Políticas de ação afirmativa no Brasil, apesar

de ser, aparentemente, bastante diverso, é composto por estudos que, em sua maioria,

estão preocupados em avaliar aquela política pública, analisando a sua validade, as

justificativas morais cabíveis para a sua criação, os seus aspectos procedimentais e os

seus impactos. No entanto, e considerando que o processo de implementação das ações

afirmativas no ensino superior suscitou um grande debate nacional16, torna-se

indispensável uma análise que considere como central nesse processo político, a

articulação entre classe e raça e de que forma essa acomodação orientou discursos e

ações, deixando evidente os interesses que orientaram a oposição à adoção às cotas

étnico-raciais no Brasil e que teve em São Paulo seu reduto mais duradouro.

15 A primeira Universidade Pública a adotar cotas étnico-raciais como critério de seleção foi a

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a partir da seleção de 2002/2003. Por meio de lei estadual, foi

estabelecido que 50% das vagas dos cursos de graduação das universidades estaduais seriam destinadas

a alunos oriundos de escolas públicas, aplicada em conjunto com a lei aprovada em 2002, a qual

estabelece que as mesmas universidades destinem 40% de suas vagas a candidatos pretos e pardos

(MOEHLECKE, 2002). 16 Entre 2002 e 2013, ano da criação da Lei 10.558 que estabeleceu o Programa Diversidade na

Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar

estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente

desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros, o debate público acerca

das cotas ganhou manchetes de jornais e foi fruto de intenso debate entre diversos cientistas sociais,

intelectuais e professores (CAMPOS, 2012). Em paralelo ao debate, aumentava-se rapidamente o

número de universidades com cotas: em 2013 já eram 70 as universidades a contar com as cotas étnico-

raciais e para egressos advindos do sistema público de ensino. Dessa percentagem, 44% são estaduais e

56% federais, de um total de 96 universidades públicas estaduais e federais existentes no País (FERES

JR et al, 2013).

22

A lei, que estabeleceu a obrigatoriedade da adoção das políticas nas

universidades federais17, não abrange as universidades estaduais, como é o caso das

universidades estaduais paulistas. As políticas de ação afirmativa nas universidades

estaduais resultam de iniciativas de indivíduos e ou/grupos das próprias universidades

ou ainda de legislação estadual, o que confere a tais políticas desenhos institucionais

diversos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da reserva de

vagas nas universidades federais e a sanção da chamada “lei de cotas” (nº 12.711) em

2012, corroboraram a importância da adoção de medidas de acesso de negros e

indígenas às universidades públicas. Nesse contexto, até 2013, 32 das 38 universidades

estaduais existentes no País adotaram modelos de ações afirmativas, incluindo as três

universidades públicas paulistas (FERES JR et al, 2013).

Contrapondo-se à modalidade de ação afirmativa de reserva de vagas para

negros e indígenas, adotada pela maioria das Instituições de Ensino Superior públicas,

as universidades estaduais paulistas aderiram, inicialmente, aos programas de

bonificação. Somente em 2013 a UNESP instituiu a modalidade de reserva de vagas:

apenas 391 vagas para negros e indígenas, de um total de 7.259 vagas disponíveis. A

USP e a UNICAMP seguiram com os sistemas de bonificação até a adoção de reserva

de vagas em 2017.

A bonificação oferecida a alunos Pretos, Pardos ou Indígenas (PPI’s) na USP é

de apenas 5%, em média18. Os dados produzidos pela Fundação Universitária para o

Vestibular (FUVEST) não desmembram as informações dos candidatos PPI’s aprovados

e que ingressam via o Programa de Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp),

impossibilitando que saibamos os números reais sobre a inclusão de negros e indígenas

desde a adoção da modalidade de bonificação no vestibular.

Os números divulgados pela USP apenas revelam que entre 2006 e 2012 o índice

de ingressantes na universidade por meio do Inclusp variou entre 24% e 28%. No

entanto, os números não dizem exatamente qual o perfil desses 28%: quantos são

negros? São advindos de que tipo de escola pública? Escolas públicas menos

prestigiadas ou escolas técnicas com qualidade superior às demais escolas públicas? A

17 Em 2008, o Governo Federal instituiu que a destinação de recursos do Programa de Apoio a Planos de

Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) somente ocorreria se as referidas

instituições aderissem às ações afirmativas. Importante mais uma vez destacar que ainda assim as

universidades estaduais foram as primeiras a criarem ações afirmativas e foi onde as ações afirmativas se

expandiram mais rapidamente (FERES JR et al, 2013). 18 Regimento em vigor para os anos que a presente tese abarca (2004-2014).

23

dubiedade dos números impossibilita uma avaliação da eficiência dessa política de

bonificação para fins de inclusão de grupos excluídos do espaço da universidade.

O sistema de bonificação adotado pela Unicamp oferecia, até 2015, 20 pontos ao

candidato que se autodeclarasse preto, pardo ou indígena e mais 60 pontos para os

candidatos autodeclarados baixa renda. Com a crescente pressão dos movimentos

sociais, para o vestibular de 2016 houve incremento na bonificação: 60 pontos às notas

da primeira fase para candidatos que tivessem cursado integralmente o ensino médio em

escolas públicas e mais 20 pontos para candidatos que se autodeclararem pretos, pardos

ou indígenas e que também tivessem cursado o ensino médio em escola pública.

Além da bonificação na primeira fase, os candidatos selecionados para a

segunda fase e que cursaram integralmente o ensino médio em escolas da rede pública,

teriam uma adição de mais 90 pontos na prova de redação e outros 90 nas provas

dissertativas. Candidatos aprovados na primeira fase, autodeclarados Pretos, Pardos ou

Indígenas (PPI’s) e que também tivessem cursado o ensino médio na rede pública,

passariam a ter 30 pontos adicionados na segunda fase, além dos 90 referentes à

condição de escolaridade.

As mudanças na bonificação na UNICAMP e na USP foram, sem dúvida, um

reconhecimento de que o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social não estava

impactando no aumento da presença de PPI’s na Universidade. No entanto, a

remodelação da bonificação continuou a não incluir significativamente os PPI’s em

decorrência da média da nota de corte ser alta.

Em suma, a modalidade de bonificação e as cotas sociais -com foco em egressos

da escola pública- não estavam garantindo o acesso de negros e indígenas ao ensino

superior. Os impactos das políticas de bonificação utilizadas pelas universidades

estaduais paulistas continuam envoltos em controvérsias, já que as três universidades

carecem de uma gestão transparente dos dados e análises aprofundadas dos reais efeitos

no que tange ao aumento de PPI’s e até mesmo de egressos da escola pública.

Entretanto, alguns estudos têm apontado para o caráter incipiente da modalidade de

bonificação, uma vez que esse tipo de modalidade de ação afirmativa não corrige

distorções de pontuação entre os cursos: “aqueles mais prestigiosos e disputados são

pouco tocados pelo sistema de bonificação, enquanto aqueles menos competitivos

costumam ser mais impactados por essa modalidade de ação afirmativa” (FERES JR et

al, 2013, p. 9).

24

Diante do exposto, as questões que norteiam a presente pesquisa são as

seguintes:

1. As universidades estaduais de São Paulo estão entre as últimas

universidades públicas brasileiras a introduzirem nos seus processos seletivos, o sistema

de reserva de vagas étnico-raciais, passando-se mais de uma década entre a primeira

universidade a implementar o sistema e a adesão pelas estaduais de São Paulo. E por

quê? Por quais motivos as universidades púbicas do estado de São Paulo, até 2017,

notabilizaram-se pela resistência ao modelo de Políticas de ação afirmativa propostas

pelo Governo Federal, levando seus principais representantes a proporem modelos

alternativos de “inclusão” como o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino

Superior público paulista (PIMESP)?

2. Como se deu o processo político que culminou na reprovação do

Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista (PIMESP)

proposto pelos reitores das três universidades estaduais de São Paulo, mas rejeitado pela

ampla maioria dos docentes das três universidades? A rejeição dos docentes ao PIMESP

foi pautada por uma posição exclusivamente de classe média?

3. É possível extrair evidências de que, a partir dos argumentos dados pelos

docentes para a rejeição da proposta do PIMESP, as justificativas -como mérito e

autonomia universitária- dissimulam a operacionalização do racismo institucional?

As hipóteses a serem verificadas na presente pesquisa, são:

1- A ideologia meritocrática cumpre uma dupla função: mascarar a

hierarquia do trabalho e naturalizar o racismo institucional e:

2- O PIMESP, assim como outras políticas de inclusão propostas pelas três

universidades paulistas entre 2004 e 2014 tinha como objetivo garantir a hierarquização

do trabalho e silenciamento dos conflitos raciais.

A presente tese está divida em quatro capítulos. No capítulo 1 apresentamos o

percurso metodológico e o aporte teórico que guiou o olhar e a análise do material

gerado pelo trabalho de campo. Buscaremos justificar as escolhas feitas ao longo da tese

quanto ao recorte temporal e as delimitações do objeto de estudo. Além disso, definimos

os conceitos chaves que orientaram a análise- classe média e racismo institucional.

O Capítulo 2 busca compreender dois desdobramentos dos resultados da série de

pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, patrocinadas pela Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos anos 50. O primeiro

desdobramento é em relação ao enquadramento da situação do negro brasileiro feito

25

pelos pesquisadores envolvidos no Projeto e pela própria UNESCO nos anos 50 a partir

de concepções essencialistas de raça, racismo e como essas concepções simplificaram as

soluções para o “problema do negro”. E o segundo diz respeito a continuidade daqueles

conceitos e as implicações para o enfrentamento ao racismo nos dias atuais focando em

três âmbitos que consideramos cruciais para a análise: produção do pensamento social

brasileiro (com foco na produção da escola sociológica paulista), atuação do sistema

jurídico e as estratégias de luta do movimento negro por entre as frestas do direito

burguês.

O Capítulo 3 examinará o processo de avaliação do PIMESP, buscando explorar

como a defesa da inclusão com mérito e a da prioridade do perfil econômico em

detrimento do racial pelos docentes das três universidades estaduais do estado de São

Paulo, revela os mecanismos que visam à manutenção da hierarquia do trabalho e

silenciamento das desigualdades com base em raça conectados com a própria história (e

os interesses da fração da classe média branca e abastada) de fundação das

universidades estaduais de São Paulo. A fim de examinarmos de que forma a fundação

das universidades paulistas confunde-se com a própria consolidação da fração da classe

média alta e branca paulista, faremos primeiramente um breve incurso na história e nos

discursos que justificaram a criação e a missão das universidades estaduais públicas do

estado de São Paulo.

Buscaremos também examinar como as políticas inclusivas vigentes entre os

anos de 2004 e 2014 nas três universidades desvelam os objetivos dessas políticas:

controlar a ampliação do acesso às universidades para assegurar a distinção da classe

média branca e abastada. Nesse sentido buscaremos nesse capítulo traçar os pontos de

conexão que orientaram o PIMESP e os programas de inclusão nas universidades

estaduais de São Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão situar as

idéias que vem orientando a prática política dos docentes das três universidades no

controle sobre o processo de ampliação de acesso às universidades.

O capítulo 4 é uma tentativa de explorar, primeiramente, como as ideias centrais

que embasaram o PIMESP (e outras “políticas de inclusão” existentes nas universidades

paulistas) encontram suas raízes em uma concepção, com significativa longevidade

histórica, assentada na ideia de que há um tipo de educação pública que tem por missão

civilizar e está destinada aqueles que, na visão das elites, desde os primeiros anos da

República, carecem de serem instruídos e civilizados: negros e pobres. Buscaremos

situar de que forma os negros libertos no pós-abolição foram inseridos na educação

26

pública no contexto da nascente sociedade de classes. E em segundo lugar, buscaremos

a partir da compilação de dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad)

referente à taxa de ocupação entre brancos e negros com a mesma escolaridade,

evidenciar que a defesa da escolarização como condição indispensável para galgar

postos de trabalho dissimula os privilégios de origem racial na dinâmica de

hierarquização do trabalho no Brasil e põe em suspensão a idelogia meritocrática.

As discussões suscitadas entre os docentes das universidades estaduais públicas

paulistas entre os anos de 2012 e 2014 em relação à adoção do Programa de Inclusão

por Mérito no Ensino Superior público paulista (PIMESP) tornaram-se uma excelente

oportunidade para compreender o tema das ações afirmativas a partir do aporte teórico

marxista de classes.

Ainda que o conflito em torno das ações afirmativas não esteja diretamente

relacionado às relações de produção, os principais argumentos que embasaram as

decisões quanto à escolha por determinadas modalidades de ação afirmativa nas

universidades paulistas fornecem subsídios suficientes para compreendermos como a

fração da classe média alta e branca lançou mão de mecanismos visando garantir o

espaço de reprodução daquela classe. Além disso, o conflito ofereceu uma

possibilidade de entendermos mais de perto os contornos da operacionalização do

racismo institucional no contexto brasileiro. Tendo isso em consideração, o conflito

assumiu contornos marcadamente elitistas e racistas. Por esse motivo, serão

privilegiadas as perspectivas de classe e raça na presente tese.

27

CAPÍTULO 1 - INVENTARIANDO O REAL: ESCOLHAS

METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS

Dar visibilidade aos mecanismos que permitem a (re) produção da organização

racializada da sociedade brasileira implica na tarefa árdua de inventariar a materialidade

da raça. A sociedade moderna ainda que social, política e economicamente estruturada

com base na desumanização, exploração e dominação que opera a partir de

classificações raciais, estabelecendo uma linha entre quem possui “humanidade de

primeira” e “humanidade de segunda classe” (FANON, 1975[1952], p. 138), reproduz,

a um só tempo as condições que permitem a desumanização e os protocolos silenciosos

acerca da existência dos referidos mecanismos. Junto com Fanon (2008), entendemos

que “A humanidade” tem sido definida a partir do referencial do colonizador-branco,

homem, europeu, cristão- que por sua vez define, a partir de hierarquias de

superioridade versus inferioridade, quais pessoas, culturas e povos seriam dignos do

atributo de humanidade, contestando sistematicamente a humanidade de povos não-

brancos e não-europeus e agindo a partir de “um complexo de autoridade e de chefe”

(FANON, 2008, p.94) frente aqueles povos, estabelecendo os pressupostos do que seria

“o sujeito humano”.

Desvelar os contornos da linha de cor (Du Bois, 1999 [1903]), reproduzidas por

práticas cotidianas que se sustentam em um jogo de esconder e dissimular a engrenagem

desumanizadora da sociedade moderna, exige de qualquer pesquisador(a) uma atenção

extra às vírgulas, às adjetivações, as reticências presentes nos enunciados daqueles que

habitam a zona do ser (FANON, 1975). Zona do ser e zona do não-ser são conceitos

fanonianos que buscam tonar inteligíveis a existência da separação entre seres-brancos

(que habitam a zona do ser), que tem a humanidade como um atributo inerente, e seres

despojados da sua humanidade pelo fato de não serem brancos e que são subordinados

às necessidades, demandas e interesses dos que habitam a zona do ser.

Nesse sentido tivemos de fazer escolhas, do ponto de vista metodológico e

conceitual, que pudessem ir além das propriedades do texto ou da conversação do

material advindo do trabalho de campo, permitindo analisar os elementos contextuais

nos quais a enunciação foi produzida. Portanto, as escolhas metodológicas e conceituais

feitas no presente estudo foram orientadas a fim de integrar o texto e o contexto (VAN

DIJK, 2000; 2001).

28

Partimos do pressuposto de que os conceitos só têm validade em determinado

arcabouço teórico e histórico e por isso o exercício de aplicação daquele ou desse

instrumental teórico só adquiri plausibilidade em relação ao contexto histórico que se

pretende analisar (GUIMARÃES, A.S.A., 2003). Nesse sentido, entendemos que a

compreensão do cenário de desigualdades existentes no Brasil não pode prescindir do

exercício cuidadoso de articulação entre os conceitos de classe e raça, de modo que tais

conceitos permitam compreender a desigualdade brasileira sob o prisma que integre a

organização de classes assentada sobre um ordenamento social racializado que por sua

vez se conformam e hierarquizam as relações no Brasil.

O exercício de articular analiticamente os conceitos de classe e raça, para

entender o contexto de desigualdades no Brasil, exige do (a) pesquisador (a) certo

desprendimento de concepções e categorias essencializadoras ou desconectadas do

contexto histórico, para que se possa compreender de que forma o racismo pode ser

entendido como um dos elementos estruturantes do capitalismo brasileiro. Situaremos o

debate sobre as ações afirmativas a partir das contribuições da teoria marxista de classe

média e das contribuições da tradição radical negra, buscando apontar para a

convergência entre as desigualdades raciais e sociais (relação entre classe e raça) e

como esse tipo de análise pode ser estratégica para enriquecer estudos sobre a opressão

racial brasileira sob a perspectiva marxista de classe média.

Alguns dados relativos à situação da população negra podem oferecer um breve

panorama para entendermos como se operacionalizam as desigualdades raciais na

dinâmica social brasileira. A população negra ultrapassa a metade do total de residentes

no Brasil desde 2008, entretanto as desigualdades raciais persistem:

75% da população prisional brasileira é composta por negros19;

das 16,2 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza no País, 70,8%

delas são negras20. Em 1997, 57,7% dos negros brasileiros eram pobres. Dez anos

depois, eram 41,7%. Entre os brancos, o percentual caiu de 28,7% para 19,7% no

mesmo período21;

os salários médios dos negros no Brasil são 2,4 vezes mais baixos que o

dos brancos22;

19 Report of the Special Rapporteur on minority issues on her mission to Brazil. ONU. 2016. Disponível

em: http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/31/56/Add.1. Acesso em 20 mar 2016. 20 Idem 21 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2009. 22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2009.

29

80% dos analfabetos brasileiros são negros e 64% da população negra

não completa a educação básica23;

no Judiciário, apenas 15,7% dos juízes são negros24;

no Congresso, apenas 8,5% dos deputados são negros25;

no que tange aos números sobre violência: dos 56 mil homicídios no

Brasil por ano, 77% das vítimas eram jovens negros em 200926, entre 2009 e 2011 o

número de negros que morreram como resultados de operações policiais em São Paulo é

três vezes superior do que é registrado entre a população branca27 e em 2019 66% a

mais de mulheres negras brasileiras foram mortas em comparação com às mulheres

brancas28.

A articulação entre meritocracia e mito da democracia racial contribuiu para o

falso argumento de que a marginalização dos afro-brasileiros se daria apenas por conta

de classe social e não pela existência de uma estrutura social racista que (re) produz

(porque se beneficia) as desigualdades. Desse modo, sem dar a devida atenção à

desigualdade pautada pela questão da cor, qualquer análise que busque compreender o

funcionamento do capitalismo no Brasil e como aquele interage com o elemento racial

terá sua capacidade analítica limitada em nosso ponto de vista. Junto com Antônio

Sérgio Guimarães (2002), entendemos que raça “não [é] apenas uma categoria política

necessária para organizar a resistência ao racismo, mas também é categoria analítica

indispensável: a única que revela as discriminações e desigualdades que a noção de

‘cor’ enseja [e que] são efetivamente raciais e não apenas de ‘classe’” (Idem, p. 50).

Os dados sobre o ensino superior apontam para a “presença” do racial na

organização das relações de poder no contexto brasileiro. Segundo consta em Feres Jr.

et al (2013), em 1976, 5% dos brancos tinham ensino superior enquanto apenas 0,7% da

população negra tinha diploma universitário. Após 30 anos (dados do Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada referentes ao ano de 2006), a percentagem de brancos

com diploma tinha aumentado para 18% enquanto entre os negros esse percentual não

passou de 5%, isto é, o mesmo patamar que o dos brancos só que 30 anos antes.

23 Idem. 24 Idem. 25 Idem. 26 Idem. 27 Ver: Relatório Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo: Letalidade policial e prisões em

flagrante produzido pelos pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos, Jacqueline Sinhoretto,

Giane Silvestre e Maria Carolina Schlittler. Disponível em: http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_FINAL_01.04.2014.pdf. Acesso em 30 jan de 2018. 28 Atlas da Violência 2019.

30

As disparidades de acesso entre negros e brancos ao ensino superior colocam por

terra os argumentos que contribuem para a protelação de possíveis ações com vistas ao

enfrentamento do racismo, como as políticas afirmativas com reserva de vagas para

negros e indígenas. Os números referentes ao quantitativo de brancos e negros com

ensino superior entre 1988 e 2013 apontam para as barreiras enfrentadas pela população

negra:

Gráfico 1: Brancos e negros com Ensino Superior entre 1988 e 2013

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.

A partir dos dados, vemos que em 1988, entre os jovens com diploma de nível

superior, apenas 4% eram negros e 96% eram brancos. Uma década depois o número

de negros com ensino superior aumentou seis vezes, passando para 24% mas ainda

assim mantendo-se inferior à percentagem de brancos (76%).

A partir de 2007, políticas de expansão do ensino começam a ser instituídas pelo

Governo Federal (à época sob o comando do Partido dos Trabalhadores), como o

Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

(REUNI), que tinha como um dos principais objetivos estimular as universidades

contempladas pelo Programa a criarem “mecanismos de inclusão social a fim de

garantir igualdade de oportunidades de acesso e permanência na universidade pública a

todos os cidadãos” (FERES JR. et al 2013). Assim, ainda em 2008, 53 universidades

aderiram ao Programa e consequentemente às modalidades de Políticas de ação

afirmativa em seus vestibulares (Idem).

0%

20%

40%

60%

80%

100%

120%

19

88

19

89

19

90

19

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19

93

19

95

19

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19

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19

98

19

99

20

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20

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20

06

20

07

20

08

20

09

20

11

20

12

20

13

Brasileiro(a)s por cor/raça com Ensino Superior

População Branca População Negra

31

Em 2013, das 96 universidades públicas estaduais e federais no Brasil, 70

tinham adotado algum tipo de modalidade de política afirmativa, dentre essas 44% eram

estaduais. Mesmo diante desse cenário de ampla adesão às políticas afirmativas, do total

de vagas reservadas nas universidades estaduais, apenas 10% foram destinadas para

negros e indígenas (FERES JÚNIOR et al, 2013, p. 13).

As universidades estaduais de São Paulo estão entre as últimas universidades

públicas brasileiras a introduzirem nos seus processos seletivos, o sistema de reserva de

vagas étnico-raciais, passando-se mais de uma década entre a primeira universidade a

implementar o sistema e a adesão pelas estaduais de São Paulo. E por quê? Mesmo

diante de um quadro gritante de desigualdade racial de acesso à educação superior, por

que, ainda assim, as universidades estaduais de São Paulo negaram-se por tanto tempo a

aderir ao sistema de reserva de vagas?

O quadro atual de pesquisas realizadas sobre o tema das Políticas de ação

afirmativa, ainda que suscitem avaliações enriquecedoras para o debate acerca daquelas

políticas, parecem ainda não dar a devida atenção às disputas e conflitos que aquelas

políticas têm suscitado historicamente e principalmente de que forma o pertencimento

de classe e raça informam os posicionamentos nessa disputa.

A produção de estudos sobre a problemática do acesso ao ensino superior parece

ainda estar “aprisionada” na camisa de força binarista eurocêntrica, de forma a criar

perspectivas falsamente dicotômicas sobre o tema: de um lado, temos os estudos que

atrelam a exclusão do ensino superior exclusivamente à questão da pobreza -classe- e de

outro, estudos que veem que é o determinante racial que explica por si só a desigualdade

de acesso ao ensino superior. Válido explicar, ainda que brevemente, porque

consideramos que essa camisa de força é eurocêntrica. Defendemos na presente tese que

as ciências sociais de modo geral e em particular, os investigadores que tem se detido

sobre a problemática da desigualdade de acesso ao ensino superior, ainda orientam suas

análises sob uma perspectiva que desconsidera ou não problematiza o suficiente como

as percepções de Ocidente, modernidade, Europa. Como afirmam as investigadoras

Marta Araújo e Silvia Maeso (2013):

“[…] na contemporaneidade dos regimes políticos democráticos e defensores

dos direitos humanos, a eficaz reprodução de relações de poder com base na

“raça” resulta de um jogo de in/visibilização – ancorado no Eurocentrismo –

que, por um lado, ativa imaginários e práticas excludentes, e, por outro,

naturaliza as configurações de poder que as sustentam” (idem, p. 147).

32

Nesse sentido, as escolhas metodológicas e conceituais na presente tese foram

feitas a fim de evidenciar os contornos das narrativas eurocêntricas que por

desconsiderar a própria colonialidade do saber acabam por desconsiderar a relação entre

colonialismo, capitalismo e racismo, tornando-se incapazes de dimensionar

adequadamente, em nosso entendimento, a simbiose entre classe e raça que tem

direcionado os rumos da disputa por acesso à universidade pública. Longe de se

converter em um obstáculo epistemológico, a articulação entre essas duas matrizes de

opressão complexifica o entendimento dos conflitos sociais no Brasil.

O trabalho de campo

Tornar evidente o não-dito, o ocultado, o dissimulado não é tarefa das mais

fáceis. Analisar o debate gerado a partir da possibilidade de implementação de políticas

de inclusão com recorte étnico-racial nas universidades estaduais de São Paulo implicou

em trazer para o primeiro plano as relações de poder e estruturas socias desiguais que

atravessaram aquele debate, mas que são constantemente negadas, silenciadas,

dissimuladas em meio à repetição de argumentos autoproclamados “técnicos”,

“imparciais”, “neutros”. Nesse sentido encontrar meios de gerar informações sólidas

para a presente pesquisa colocou desafios metodológicos que acredito que valha o

esforço descrevê-los na presente seção para que possamos compreender as escolhas

metodológicas quanto ao tratamento do tema.

Primeiramente defrontei-me com o desafio de realizar o trabalho de campo

enquanto o processo de avaliação do PIMESP estava a decorrer, tendo em vista a

presente pesquisa ter sido iniciada em 2013, ano em que o PIMESP foi apresentado aos

docentes das três universidades e que abriu uma nova página, em nosso entendimento,

na história do debate sobre raça, racismo e ensino superior nas universidades paulistas.

Entre os anos de 2012 e 2014 ocorreu uma sucessão de acontecimentos políticos

no nível nacional e no estado de São Paulo, como a votação pela constitucionalidade das

cotas étnico-raciais no Superior Tribunal Federal (STF), a criação da Frente Pró-Cotas

Raciais do Estado de São Paulo, a apresentação do Programa de Inclusão com Mérito no

Ensino Superior público paulista (primeiro programa de democratização do acesso do

ensino superior das estaduais paulistas que tinha como público alvo, negros e indígenas)

e a recusa total do referido Programa pela USP e UNICAMP e aceitação parcial pela

UNESP, o rearranjo das políticas inclusivas vigentes nas três universidades, as eleições

33

de novos reitores e novos direcionamentos no debate estadual sobre as Políticas de ação

afirmativa.

Os fatos mencionados acima imprimiram uma dinâmica própria de produção de

informações que em dado momento foi difícil acompanhar, situar, criar linhas de

conexão entre os discursos, linhas essas necessárias a uma análise madura e

responsável. E diante desse dinamismo próprio, característico de qualquer estudo que

tenha por objetivo cartografar o tempo histórico vivido, deparei-me com a necessidade

em fazer a primeira escolha metodológica: o “objeto” da pesquisa.

O conflito gerado a partir do PIMESP envolveu vários sujeitos políticos, como o

movimento estudantil e o movimento negro, que exerceram um papel decisivo na

inclusão da discussão sobre cotas étnico-raciais na agenda política paulista.

Primeiramente em 2012, com a criação da Frente Pró-cotas raciais do estado de São

Paulo reunindo mais de 40 organizações populares (tendo mobilizado mais de 150

lideranças do movimento negro e unificando uma agenda reivindicativa de cotas no

ensino superior público estadual de São Paulo) que foi decisivo para que naquele

mesmo ano o Conselho de reitores das Universidades Estaduais de São Paulo

(CRUESP) e executivo estadual elaborassem o Programa de Inclusão com Mérito.

Mesmo reconhecendo a decisiva atuação do movimento negro e do movimento

estudantil, poder aproveitar a chance trazida com o debate sobre o PIMESP para pôr

uma lupa sobre o que os docentes estavam a pensar sobre aquele processo que

começava a descortinar-se, pareceu-nos uma valiosa oportunidade.

A escolha pelo foco exclusivo no debate entre os docentes é baseada no interesse

em evidenciar os contornos da natureza da participação política da fração da classe

média alta e branca, mais abastada e historicamente o segmento que tem na

universidade pública seu principal meio de reprodução da sua condição de classe. As

análises sobre esse tipo de conflito, onde geralmente os pesquisadores tendem a voltar

suas preocupações para os movimentos sociais envolvidos ou nos sujeitos que definem

uma posição mais explícita por esse ou por aquele lado, acabam por passar ao lado da

atuação daquela fração da classe média. Longe de uma superdimensionamento da

participação dessa fração da classe média e de conferir a ela, equivocadamente, toda a

responsabilidade na condução do processo de rejeição ao PIMESP, a escolha pelo foco é

uma tentativa de avançar na caracterização da situação de classe e raça dos docentes das

universidades estaduais paulistas. E, nesse sentido, centralizar a atenção apenas no

debate dos docentes, mesmo tendo consciência da importância política dos demais

34

sujeitos, nos pareceu necessário para o devido dimensionamento da ação política

daquela fração da classe média.

Escolhido o “objeto”, era preciso definir o método de aproximação junto a ele e

a segunda dificuldade metodológica surgiu. Defrontei-me em ter de escolher entre ser

Narradora-personagem ou Narradora-observadora, isto é, como seguir analisando o

conflito que estava a decorrer sem atuar diretamente na Frente Pró-cotas da

UNICAMP29. Dizemos dificuldade metodológica apenas de um ponto de vista de uma

concepção de ciência que estabelece uma cisão entre sujeito político e sujeito que

produz ciência. Assim, em alguns momentos deparei-me com esse “dilema” ao longo do

doutoramento.

E por que essa questão apresentou-se para mim como desafio metodológico?

Porque a minha condição de mulher negra empobrecida e, portanto diretamente

interessada, afetada e a favor das políticas de cotas étnico-raciais, gerou em diversos

momentos um desconforto e certa descrença no “necessário distanciamento” em relação

ao objeto, impelindo-me muitas vezes a considerar a possibilidade de assumir

inteiramente a posição de narradora-personagem, mas dadas as condições materiais

objetivas da minha vida (trabalhando em período integral na cidade do Rio de Janeiro),

percebi que isso não seria possível e que dentro do viável, seguir com a escrita da tese,

mantendo a posição de narradora-observadora seria a melhor contribuição que eu

poderia dar aos que me antecederam, aos homens negros e mulheres negras que lutaram

e seguem lutando pelo direito à educação.

Tomada a decisão (que sofreu diversos abalos ao longo do caminho, ora pelo

contexto político, ora pela descrença ou consciência dos limites estratégicos do fazer-

saber científico) de seguir com a escrita, tive de pensar então como construir uma

narrativa daquilo que via e dei-me conta que eu estava a inverter a “ordem das coisas”

ou em outras palavras: em minha pesquisa os outros pesquisados não são os negros, os

pobres (como por longas décadas foi o mais corrente na produção das ciências sociais).

Em minha pesquisa, eu, mulher negra, coloco-me na posição que sempre fora daqueles

outros, os grandes pensadores brancos que pesquisavam sobre mim, sobre negros, sobre

nós, “os outros”.

29 Frente que surgiu em 2012 e reuniu representantes do movimento estudantil, professores, estudantes

negros com o objetivo de articular uma ampla frente a favor da implementação das cotas na UNICAMP

(cf. INADA, A. K. Quando a UNICAMP falou sobre cotas trajetória de militância do Núcleo de

Consciência Negra e Frente Pró-Cotas da UNICAMP. 2018. Dissertação de Mestrado- Programa de Pós-

Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo).

35

O “desordenamento dos lugares” implicou na tarefa de repensar caminhos para a

pesquisa. A experiência de ser uma mulher-negra em um mundo racista é toda ela

marcada por experiências que estão relacionadas ao fato de eu não poder esconder

aquele atributo fenotípico carregado de certo imaginário que, à partida, já me coloca em

determinados lugares. E tendo em conta a possibilidade dessa “marca visível” gerar

algum tipo de obstáculo, no caso de realização de entrevistas face to face, optamos por

não realizar entrevistas diretamente com os docentes. Nesse sentido, ao mesmo tempo

em que essa escolha metodológica poderia afastar a possibilidade de gerar informações

mais apuradas ou ainda de não conseguir gerar material suficientemente sólido para

embasar minha tese, fui surpreendida- positivamente e negativamente, com o material

documental que fui coletando ao longo desses anos de pesquisa.

Quando digo que fui surpreendida negativamente refiro-me a deparar-me com

todo o vigor e naturalidade com que se (re) produz a desumanização da população negra

nesse país, no interior das universidades brasileiras mais renomadas, para mim,

enquanto mulher negra, nascida mais de 130 anos após a abolição da escravatura foi

desalentador encontrar discursos embrenhados de uma lógica racista e reproduzidos sem

nenhum pudor. Por outro lado, o material que fui coletando surpreendeu-me

positivamente. Enquanto pesquisadora, ávida por encontrar evidências que embasassem

nossas “desconfianças” iniciais, os documentos encontrados ao longo do caminho,

apesar de não falarem por si mesmos, carregam todas as contradições de classe e raça

que atravessam a fração da classe média abastada e branca, permitindo compreender os

contornos do imaginário-burguês-eurocêntrico, vigente nas universidades. Assim, o

banco de dados para a pesquisa foi gerado basicamente por análise documental: atas,

manifestações e ofícios emitidos pelas Congregações (departamentos, institutos) das

Universidades Estaduais Paulistas assim como entrevistas publicadas em periódicos de

circulação nacional, entrevistas disponíveis em redes de televisão e plataformas online e

ainda de entidades coletivas ligadas às universidades.

A geração de dados se deu: 1) pela recolha de documentos oficiais que foram

produzidos pelas universidades e pelos atores institucionais envolvidos direta ou

indiretamente no debate e; 2) pela recolha de notícias como pronunciamentos,

manifestações públicas e entrevistas disponíveis na mídia sobre o debate.

A análise documental permitiu que a pesquisa se aproximasse, por um lado, dos

elementos centrais que vigoraram nos documentos oficiais quando da realização da

consulta acerca do PIMESP nas três universidades em 2013, e por outro lado, permitiu

36

compreender a retroalimentação entre o debate no interior das universidades e o debate

público fomentado pelos meios de comunicação.

Podemos identificar três tipos de grupos que compuseram a pesquisa

documental, sendo os dois primeiros onde focamos nossa análise e o último tipo apenas

como fonte complementar para fazer alguns contrapontos aos discursos oficiais da

fração da classe média branca. A seguir os grupos:

a) Atores institucionais: Representantes políticos, altos funcionários da

burocracia educacional; representantes de associações de profissionais das

universidades; instâncias de representação docentes (sindicatos, conselhos,

congregações) e representantes do governo estadual paulista;

b) Indivíduos: acadêmicos, políticos; peritos legais e docentes e;

c) Movimentos sociais: representantes de organizações do movimento negro;

representantes de associações de estudantes do ensino superior.

Um ponto importante sobre os documentos consultados, diz respeito à condução

do processo na UNICAMP. Tanto na UNESP quanto na USP os docentes produziram

manifestações e encaminharam os seus posicionamentos aos Conselhos Universitários.

Entretanto, a UNICAMP seguiu outro percurso, que detalharemos a seguir.

Diferentemente da USP e da UNESP, onde as congregações discutiram de modo

ampliado o PIMESP e tiveram que emitir posicionamentos oficiais ainda no ano de

2013, a UNICAMP instituiu um Grupo de Trabalho (GT) para avaliar o PIMESP e

outras possibilidades de Políticas de ação afirmativa. O referido GT só viria a concluir

os trabalhos em maio de 2014. Com isso não houve um cronograma oficial para

discussão nas Congregações e unidades de ensino na UNICAMP em relação ao

PIMESP, impedindo a produção de documentos sobre o tema30.

Constatada a não produção de documentos com as manifestações formais dos

docentes quanto ao posicionamento em relação ao PIMESP, cogitei ter ocorrido algum

tipo de discussão mais informal nos departamentos, tendo em vista o fato de o PIMESP

ter gerado a realização de um debate histórico no estado de São Paulo, de extrema

importância para os rumos da democratização do acesso às universidades estaduais

paulistas, com grande visibilidade nacional.

30 Com exceção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) que se reuniu em março de 2013 para discutir sobre o assunto que foi registrado em ata (cf. UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ata da Congregação do IFCH, UNICAMP, Ata 191a, Campinas, São Paulo, 2013).

37

No ano de 2015 estive no Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da Unicamp a fim

de consultar o material produzido no âmbito das unidades de ensino, tal como fiz para

acessar os documentos da UNESP e da USP, mas para minha surpresa (e alguma

surpresa das funcionárias frente à minha surpresa) não existia nenhum documento sobre

os debates realizados pelos docentes, para além do documento produzido pelo Grupo de

Trabalho. Fui orientada então a realizar uma consulta direta às congregações e unidades

de ensino e assim o fiz na certeza de que encontraria algum material.

Em 2015 realizei uma consulta, via e-mail, às 24 Unidades de Ensino da

UNICAMP para verificar a existência de documentos produzidos a partir das discussões

realizadas pelos docentes. E novamente uma surpresa: nem documentos, nem discussão.

Dentre as Unidades consultadas, 12 retornaram o contato e dentre essas nenhuma tinha

se reunido para discutir e se posicionar oficialmente em relação ao PIMESP. Duas

unidades mencionaram ter discutido estratégias de melhoria do PAAIS, mas sem

posicionamento oficial, ou seja, sem produção de documentos oficiais sobre isso. Com

isso não queremos dizer que, de todo, não existiu discussão em uma ou outra

Congregação (como foi o caso da Congregação do Instituto de Filosofia e Ciência

Humanas) que tenha se debruçado sobre a proposta do PIMESP e mesmo tecido críticas

documentadas quanto ao processo de condução pela reitoria da UNICAMP. Entretanto,

essa foi a exceção para comprovar a regra e formalmente não se registrou nenhum

manifesto dos docentes na condução do processo pela Reitoria.

Assim, o corpus de análise para o debate na UNICAMP é o conjunto de

pronunciamentos dos docentes na mídia e o relatório produzido pelo Grupo de Trabalho

Inclusão que, depois de um ano reunido (2013-2014), chegou à conclusão (ou já partira

da premissa?) que dentre as possibilidades de ação afirmativa, a melhor era o sistema de

bonificação já existente na UNICAMP: o PAAIS. Sugeriram apenas ‘melhorias’ nesse

sistema como o aumento do bônus e bonificação nas duas fases do vestibular. Válido

dizer novamente que aquelas melhorias foram tomadas com base nas avaliações e

simulações feitas pela Comissão do vestibular (Comvest) da UNICAMP que “previu”,

em seus testes estatísticos, que seria possível cumprir as metas da inclusão com o

PAAIS, bastando apenas fazer as referidas adequações.

Intrigada com a forma de condução do processo de avaliação na UNICAMP,

resolvi ampliar o corpus de análise, o que acarretou o resgate de documentos sobre as

políticas de inclusão que vinham sendo implementadas naquela Universidade. O resgate

de documentos relativos às outras políticas de “inclusão” possibilitou compreender

38

(como veremos no capítulo 3) que essa condução “silenciosa” da consulta do PIMESP

na UNICAMP, parecia não ser uma “mera escolha técnica”, mas sim uma estratégia

política com vistas a gerar um resultado: manter os programas de “ações afirmativas” já

existentes na UNICAMP.

A UNICAMP, no ano de consulta do PIMESP, contava com a bonificação

(PAAIS) e o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (PROFIS), que inclusive

serviu de inspiração à proposta do Instituto Comunitário de Ensino Superior presente na

proposta do PIMESP. O programa, estabelecido em 2010, vigora até os dias de hoje,

mostrando uma aceitação por parte dos docentes desse tipo de política (o que talvez

justifique, em alguma medida, o “silêncio” dos docentes quando da realização da

consulta do PIMESP).

Mapear o “arquivo das políticas de inclusão” na UNICAMP sinalizou para a

necessidade de compreender o percurso histórico das políticas inclusivas nas outras

duas universidades estaduais e assim realizei o mesmo procedimento para UNESP e

USP.

A especificidade do processo na UNICAMP acabou por ter outra implicação: a

ampliação do recorte temporal. Apesar das idas e vindas em torno da definição de

“começo” e “fim”, cheguei à conclusão de que a construção de uma linha temporal

consistente com a tese defendida no presente trabalho teria de levar em conta tanto o

desdobramento do debate levantado com o PIMESP, que se estendeu até o ano de 2014

como também teríamos de voltar um pouco antes de 2012 se quisesse compreender se o

Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista foi um “ponto

fora da curva” ou se os pressupostos gerais que embasaram o desenho do referido

programa guardaria alguma conexão com outros “programas de inclusão” vigentes nas

universidades estaduais paulistas.

Nesse sentido, o material final com o qual trabalhamos na presente tese

compreende o período de 2004 a 2014. Em 2004 ocorreu a criação e instituição do

PAAIS, primeiro programa de ação afirmativa de uma universidade estadual no estado

São Paulo (e que acabou por influenciar a agenda política das outras duas universidades

em relação às políticas inclusivas). Os princípios que embasaram a sua criação estão

presentes nas justificativas que culminaram na rejeição do PIMESP entre 2013 e 2014.

Nesse sentido a ampliação do escopo temporal, mas sem perder de vista o foco no

debate gerado pelo PIMESP, mostrou-se uma estratégia muito potente para percebermos

a continuidade de certa narrativa que longe de encerrar-se ao contexto de avaliação do

39

Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista, estava inscrita

em uma produção ideológica com bagagem histórica, desvelando pontos vitais de

conexão entre a narrativa empregada pelos docentes nos anos de 2013 e 2014 e as ideias

que justificaram: a criação do PAAIS (2004), do INCLUSP (2006), do PROFIS (2010),

do PASUSP (2011) e a negação, por mais de uma década, no caso da UNESP, em

adotar qualquer programa afirmativo.

Acreditamos que a análise empreendida a partir do material gerado sinaliza que

o PIMESP e as linhas discursivas presentes no debate acerca daquele Programa não

pretende ser uma explicação para um momento isolado, mas uma interpretação que

busca inscrever a resistência da fração da classe média abastada e branca paulista em

um processo histórico de disputa por manutenção do seu espaço de reprodução e que

frente a pressão dos movimentos sociais entre os anos de 2004 e 2014, viu-se impelida a

assumir mais ativamente seu posicionamento de classe e raça frente aos avanços

inclusivos nas universidades públicas. Nesse sentido, acreditamos que a sistematização

do material de campo da presente pesquisa contribui para evidenciar as trincheiras da

luta antirracista nas universidades públicas atravessadas por relações de poder (baseadas

em classe e raça) que desembocam em (des) entendimentos sobre políticas de inclusão e

que longe de consolidadas, como nos mostrou o debate acerca do PIMESP, são objetos

de disputa que por sua vez desorganizam o ordenamento vigente das relações de classe e

raça no Brasil.

O conceito de classe média

De modo geral, a classe média agrupa todos os trabalhadores, assalariados ou

não que além de desempenharem algum trabalho indiretamente produtivo (isto é, não

gerador diretamente de mais-valia), se intitulam como trabalhadores não manuais, e

procuram distinguir-se, apresentando-se como superiores aos trabalhadores manuais na

estrutura de classes (SAES, 2005). Entretanto, no contexto da presente tese, é preciso

que estejamos atentos a complexidade de frações que compõem a classe média tendo

em conta que essa complexidade implicará em interesses e estratégias de disputas nem

sempre convergentes.

A análise das conexões entre a ideologia profissional e ideologia de classe no

debate em torno do PIMESP, nos permite considerar que certa fração da classe média,

40

branca, com renda mensal superior a 10 salários mínimos31 e que tem na universidade o

principal meio de reprodução da sua condição de classe, tem sido um dos principais

agentes políticos, exercendo um papel fundamental, no debate sobre a reserva de vagas

étnico-raciais nas universidades públicas paulistas.

Faz-se importante caracterizar essa fração da classe média porque reconhecemos

a existência de negros na classe média, compondo uma fração muito menos abastada e

historicamente minoritária no espaço da universidade pública e que se constituiu, em

nossa análise, como a principal força política opositora ao PIMESP e ao

conservadorismo da fração da classe média branca, foco do nosso estudo. E por que é

importante fazer essa distinção? Porque entendemos que a ideologia meritocrática será

mobilizada de modo diferenciado por aqueles dois grupos. Enquanto a classe média

branca tem correntemente mobilizado o conceito de meritocracia e enfatizado a questão

da pobreza em detrimento da discussão sobre desigualdades com base na raça, a classe

média negra ainda que não tenha rompido totalmente com a ideologia do mérito, tem

questionado a legitimidade desse valor em contextos onde o racismo e demais opressões

tem mantido disparidades brutais de representatividade, como é o caso do acesso às

universidades públicas.

As orientações e as práticas políticas dos setores médios brasileiros devem ser

entendidas como um fenômeno complexo, pautadas por um instrumental ideológico que

se articula a outros discursos. No conflito que envolve o processo de implementação das

Políticas de ação afirmativa nas universidades públicas do estado de São Paulo desde a

aprovação da lei federal de cotas, a fração da classe média branca abastada viu-se

impelida a fazer ajustes na defesa absoluta da ideologia meritocrática.

Primeiramente atrelando-a ao mito da democracia racial para contrapor-se a

qualquer tipo de política de discriminação positiva que pudesse desmascarar a falácia da

igualdade racial no Brasil. Em um segundo momento, frente as denúncias da existência

do racismo estrutural e a visibilidade da agenda do movimento negro no governo federal

no início dos anos 2000, as políticas de inclusão voltadas para egressos de escola

pública passaram a ser “consideradas” como as melhores ações possíveis por aquela

fração da classe média. “Ações de inclusão possíveis” muito menos pelo

31 Cálculo com base no salário de 2019 (R$998,00) e a média do salário inicial dos professores doutores

em início de carreira com regime de dedicação exclusiva nas três universidades estaduais paulistas. Fonte:

http://www.dgrh.unicamp.br/documentos/tabelas-de-vencimentos/magisterio-superior;

https://www.glassdoor.com.br/Pagamento-mensal/Universidade-Estadual-Paulista-UNESP-Professor-

Pagamento-mensal-E2482802_D_KO37,46.htm; http://www.usp.br/drh/wp-content/uploads/Tabela-

Vencimentos-Docentes-05-2019.pdf. Acesso em: 30 de janeiro de 2019.

41

reconhecimento de que sim, existem desigualdades sociais no Brasil que afetam o

acesso à universidade e muito mais como estratégia para impedir o avanço da

democratização do acesso para negros.

Os problemas relativos à definição mais precisa acerca dos sujeitos da minha

pesquisa levou-me por diversas vezes a confrontar-me com as tensões em torno do que

estou denominando fração de classe média alta e branca. Nesse sentido, essa seção

busca delimitar esse grupo e a categoria analítica de classe média, a fim de oferecer

elementos que possam qualificar e ao mesmo tempo justificar a minha escolha em

classificar os sujeitos da minha pesquisa como pertencentes à camada da classe média

branca abastada e que está ligada às universidades públicas. A fim de cumprir o objetivo

dessa seção, apresentarei uma breve incursão histórica sobre o conceito de classe média.

Os problemas em torno da definição precisa do que estamos chamando de classe

média adquiriram nos últimos tempos excepcional relevância e importância para o

marxismo, o que nos impulsiona a fazer uma tentativa de dar contornos mais precisos

em torno da definição dos sujeitos da presente tese, pois entendemos que, sem essa

tentativa, a proposta da presente investigação fica condicionada ao entendimento vago e

pouco preciso do que estamos chamando de classe média, podendo vir a comprometer a

base conceitual que sustenta a pesquisa. Nesse sentido, o presente tópico, longe de dar

por encerrado e resolvido os conflitos e disputas que atravessam a conceituação de

classe média, buscará apresentar as linhas gerais que acompanham o debate para que o

leitor possa compreender ao fim, os motivos que levaram a escolha pelo uso da

categoria classe média e no interior dela, fração de classe para analisar a resistência dos

docentes em torno das Políticas de ação afirmativa com recorte étnico-racial nas

universidades estaduais paulistas.

A teoria de classes e o conceito de classe média na perspectiva marxista

oferecem um grande contributo para pensar a organização social e econômica das

sociedades capitalistas. A partir das contribuições da perspectiva marxista, buscaremos

apresentar o conceito de classe média e fração de classe. Nesse sentido, é preciso que

façamos uma incursão bibliográfica para compreendermos os aspectos centrais à análise

dos setores, e médios e, principalmente, para que possamos situá-los no contexto do

conflito32 entre classes no Brasil.

32 Cabe assinalar a razão que motivou na presente pesquisa a utilização do termo conflito, em detrimento

do conceito de luta. Compactuando das hipóteses e achados de pesquisa de Boito Jr et al (2013),

entendemos que ocorre no Brasil um conflito de caráter distributivo, isto é, não existe no Brasil uma luta

42

O conceito de classe, no campo marxista, é derivado da compreensão de que no

modo de produção capitalista o poder advém do controle dos recursos materiais de

produção. Com isso, o conceito de classe assume uma estrutura pluridimensional na

perspectiva marxista, na medida em que a dimensão econômica (forças produtivas) e

política (relações de produção) se articulam na vinculação entre “mundo material e

política” (MIGUEL, 2012, p. 101).

Buscando fornecer ferramentas metodológicas e aportes teóricos válidos para

compreensão do desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção

capitalista, vários estudos no campo não marxista e marxista buscaram compreender a

complexificação e diversificação dos grupos sociais, principalmente os grupos médios.

Os estudos de Mills (1951) e Lockwood (1962) impulsionaram estudiosos

marxistas a desenvolverem novas perspectivas sobre a classe média e que não se

restringisse à caracterização daquela classe pela busca por status como principal

elemento que definisse sua atuação. Em Poder político e classes sociais (1970), Nicos

Poulantzas complexifica a análise não apenas sobre a nova classe média, mas no modo

de analisar classes sociais, posicionando-as a partir das relações de produção sob o

ponto de vista da superestrutura ideológica e com foco na prática social daquela classe.

No sistema conceitual de Poulantzas (1970), há uma relação de

complementaridade entre os conceitos de “conjuntura” e “força social”, situados no

nível das práticas sociais, e o conceito de classe social localizado no nível do modo de

produção. Assim, é possível articular a relação entre o conceito de classe social - sem

que ele implique mecanicamente as práticas econômicas, políticas e ideológica

homogêneas de classe– e a delimitação das classes em uma determinada formação

social. Poulantzas procura sistematizar outros conceitos, como os de “frações de classe”,

“categoria social” e “camada social”, que assumem um papel de “conceitos auxiliares”

mais próximos das práticas sociais, cuja função é a de construir uma ponte entre estas e

o conceito de classe (GUTIERREZ, 2007).

Localizamos a presente tese no entendimento conferido por Poulantzas à

importância em compreender as práticas sociais na medida em que essas permitem que

analisemos a história não como processo linear, fadado a estar absolutamente

condicionado a uma estrutura fixa. A análise das práticas sociais nos permite visualizar

polarizada em decorrência de projetos antagônicos de organização social -capitalismo versus socialismo,

por exemplo, mas sim uma disputa pela distribuição de riquezas produzidas.

43

a história a partir de “possibilidades estruturais” – marcadas pela indeterminação da

conjuntura (POULANTZAS, 1977, p. 94).

Analisar de que forma a classe composta por assalariados não-manuais

mobilizam os interesses ideológicos (individualismo pequeno-burguês, a ideologia da

ascensão social, a meritocracia e o mito do Estado protetor) pode fornecer pistas que

indiquem o quanto as práticas sociais da fração da classe média abastada e branca nas

universidades estaduais, são informadas por aqueles valores e de que forma os mobiliza

em uma estrutura social racializada em contextos de conflito pelo controle do sistema

educacional. Nesse sentido, as contribuições dos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e

Jean-Claude Passeron foram fundamentais para a produção marxista com a publicação

da obra A reprodução nos anos 70. A referida obra tornou-se fundamental para os

estudos marxistas no campo de análise dos processos educacionais no capitalismo por

apresentar teses consistentes sobre a ideologia docente.

Em síntese, Bourdieu & Passeron (1992) analisam como o sistema educacional,

dominado pelo que eles chamam de “fração intelectualizada da classe dominante” (e

que nós estamos entendendo que no caso brasileiro trata-se daquela fração da classe

média branca), orienta as práticas dentro do sistema educacional a partir de duas

funções: conduzir as classes dominadas a reconhecerem a cultura dominante como

única cultura legítima e ao mesmo tempo impedir que elas tenham acesso à referida

cultura. Os docentes participariam da dupla tarefa de desenvolver e legitimar a cultura

dominante e marginalizar culturalmente a classe pobre.

No Brasil, o conceito de classe média e a relação dessa classe com os processos

educacionais no sistema capitalista foram amplamente esmiuçados, e em nossa opinião,

complexificados, pelo estudioso Décio Saes (1975; 1985; 2005).

A partir das contribuições de Décio Saes (1977), estou a definir a classe média

como, antes de tudo, uma noção prática e que, portanto requer do (a) investigador (a) a

tarefa de evidenciar os contornos dessa classe a partir das suas práticas políticas. Além

disso, a classe média, diferentemente da pequena burguesia de camponeses e artesãos,

não pode ser caracterizada unicamente pelo nível econômico. Nesse sentido, é que

podemos afirmar que a classe média é antes de qualquer coisa uma noção “prática”:

“[...] Não se pode determinar, num plano puramente teórico, quem é a classe

média, e proceder desde logo a uma descrição exaustiva de todas as

categorias profissionais que a compõem, para depois se passar ao estudo da

prática política dessas categorias em diferentes sociedades capitalistas. Ao

contrário, é antes a análise das práticas políticas dos diferentes setores do

trabalho assalariado improdutivo numa sociedade capitalista determinada que

44

pode definir quais dentre eles se submetem à ideologia dominante na

“hierarquização do trabalho [...]” (idem, p. 99-100)

O pesquisador Décio Saes (1978), inspirado pelos trabalhos de Bourdieu e

Passeron (1970) sobre a ideologia meritocrática, refuta o conceito de nova pequena

burguesia, cunhado por Poulantzas (1974) para definir os trabalhadores não-manuais.

Diferentemente de Poulantzas, Saes entende que há uma unidade ideológica que é

própria dos assalariados não manuais e que os distanciaria da pequena burguesia, a

saber: a ideologia meritocrática. Essa impossibilidade, na concepção de Saes (idem), em

agrupar pequenos burgueses e assalariados não-manuais na mesma classe, provém para

o autor do fato de a classe média historicamente rejeitar o trabalho manual e isso

marcaria a sua singularidade ideológica diante da pequena burguesia tradicional.

Como salienta Saes (2005), sendo definida como a classe que desempenha

principalmente o trabalho não-manual (intelectual, mental), a classe média apenas

assume seus contornos enquanto classe por meio da partilha de entendimento da

atribuição que faz à educação escolar como condição fundamental da manutenção de

sua situação econômica e social (SAES, 2005).

A distinção entre trabalho manual e trabalho não-manual aparece para a classe

média como uma hierarquia baseada nos méritos pessoais. Nesse sentido, a ideologia da

meritocracia serve tanto para criar a falsa distinção entre trabalhadores manuais e não

manuais em relação à exploração da força de trabalho, como também para legitimar as

contradições no interior da sociedade capitalista, convergindo para a concepção liberal

de cidadania, onde as desigualdades sociais seriam resultantes de diferenças de

capacidades, talentos, dons, vontades, esforços dos indivíduos (SAES, 2005).

Analisando os desdobramentos da ideologia da classe média no contexto da

estrutura de classes no Brasil, Décio Saes entende que as práticas da classe média

brasileira são informadas pelo Mito da Escola Única (SAES, 2005). O referido Mito

consiste na defesa de que a existência de escolas públicas com qualidade no ensino

básico seria suficiente para resolver o problema da desigualdade, já que colocaria todos

nas mesmas condições para competir (inclusive por vagas nas universidades públicas).

Como aponta Saes (2005), é consenso em todas as classes a importância do acesso à

educação universal, no entanto tal consenso constitui-se como uma das maiores falácias

da sociedade capitalista e serve tão somente à reprodução da divisão de classes, onde a

classe média tem se servido das implicações desse mito e por isso, o reproduzido de

modo mais ativo.

45

O Mito da Escola Única é definido como mito na medida em que o cerne da sua

construção narrativa - reivindicação da escola pública – constrói uma narrativa

falseadora da realidade e a sua reprodução é sustentada pela classe média, pois

desemboca na valorização econômica e social dessa classe. Essa é a classe que se define

pelo desempenho no trabalho predominantemente não-manual ou intelectual e, portanto,

precisa difundir que o que determina o acesso desse grupo a postos de trabalho não-

manuais é unicamente a escolarização. Assim “[...] nessa perspectiva a classe média se

define como conjunto dos efeitos políticos reais produzidos sobre certos setores de

trabalho assalariado pela ideologia dominante, que apresenta a hierarquia do trabalho

de como expressão de uma pirâmide natural de dons e méritos [...]” (SAES, 1977, p.99).

Nesse sentido, é que entendemos que ao estarem no grupo historicamente

caracterizado por desempenhar atividades não-manuais e tendo na defesa da

meritocracia um dos principais norteadores da sua prática política, os docentes das

universidades estaduais públicas podem ser caracterizados como uma fração pertencente

à classe média.

Definido o que estamos chamando de classe média, é preciso circunscrever o

grupo ao qual analisaremos dentro daquela classe tendo em vista que é preciso

reconhecer a existência de grupos relativamente diversos e mesmo a existência de

divergências internas no interior da classe média branca (como por exemplo, grupos

mais identificados com o marxismo ou com a esquerda de modo geral). Nesse sentido,

nos limitaremos no presente estudo a analisar a prática política da fração da classe

média abastada e branca que tem na universidade seu espaço de reprodução e que

partilha com a classe média dois tipos de ideologias centrais (SAES, 2007, p. 109):

ideologia jurídica igualitária (princípio da cidadania) e a meritocracia (princípio da

competência).

Igualitarismo e meritocracia foram mobilizados pelos docentes das três

universidades não apenas para rejeitar o PIMESP (que previa pela primeira vez no

estado de São Paulo, a modalidade de reserva de vagas étnico-raciais ainda que de modo

abertamente racista), mas também para rejeitar a lei federal de cotas. Nesse ponto é

importante assinalar que assim como a meritocracia, o igualitarismo passa a ser

flexibilizado pela classe média branca para defender a manutenção dos programas

“inclusivos” (discriminando positivamente jovens advindos da escola pública) já

vigentes nas três universidades, evidenciando que a classe média ao mesmo tempo em

que mobilizava aqueles dois princípios para afastar a possibilidade de adoção de reserva

46

étnico-raciais, já vinha aceitando flexibilizá-los (frente a grande pressão dos

movimentos sociais) para contemplar jovens oriundos de escolas públicas em seus

programas “inclusivos”.

Ainda que julguemos adequado analisar o debate em torno do PIMESP a partir

da abordagem marxista de classe média, é preciso extrapolar essa chave analítica se

quisermos contemplar o antirracialismo (como negação da existência da racialização da

sociedade), que consideramos um desdobramento do igualitarismo e que ganha uma

dimensão inegável nos discursos dos docentes.

A fim de contextualizar a necessidade de ampliação do aparato marxista de

classe média, frente aos achados no material de campo acerca da negação da raça como

categoria que organiza as relações sociais no Brasil, vejamos o que disseram alguns

docentes na altura na qual o PIMESP foi apresentado:

“[o PIMESP] não reflete a experiência das ações afirmativas consolidadas nas

universidades federais [porém concluiu manifestando-se favoravelmente] ao

aprimoramento e extensão [do Inclusp e do Pasusp] ressaltando que os

critérios para ingresso no ensino superior devem ser embasados em mérito

acadêmico e não em qualquer critério que beneficie uma ou outra classe

étnica [sic]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).

“[...] Uma questão que deve ser vista é como será identificada a raça do

candidato. A autodefinição leva a situações, que já foi comprovado, não ser

uma alternativa justa. 2) Por outro lado, dois candidatos de mesma escola,

comunidade e situação socioeconômica, sendo um de raça preto ou pardo ou

indígena e outro de outra raça (branco, amarelo ou outra). Da forma como

esta apresentado a proposta de inclusão não faz sentido, pois se está

promovendo a preferência do primeiro candidato mas a situação de exclusão

é a mesma para os dois candidatos. Isso será um racismo institucionalizado e

legalizado. Dessa maneira pergunto: É isso que queremos? Veja que o curso

preparatório como apresentado pelo PIMESP é importante e válido para o

nivelamento mas independente de raça. 3) Nas demais questões, há um

avanço das universidades paulistas sobre o assunto, conforme descreve o

colunista Gilberto Dimenstein no texto intitulado; A cota paulista é a mais

inteligente [...]" (Campus Experimental- Dracena/UNESP. Cf. SÃO PAULO,

2013a).

“[…] Autores não favoráveis às cotas raciais afirmam que a sua adoção nas

universidades públicas seria uma maneira de privilegiar uma determinada

raça, havendo uma distinção entre pessoas em razão da sua cor, o que violaria

o artigo 5º da Constituição Federal, ao afirmar que "Todos são iguais perante

a lei, sem distinção de qualquer natureza [ ... ] ," (Brasil, 1988) Um outro

discurso que se coloca contra as cotas raciais é o de que essa política é uma

forma de privilégio, pois traria vantagens para um grupo em detrimento de

outro. Também afirmam que o sistema de cotas retira o mérito individual,

permitindo assim a inferiorização daqueles que dela se beneficiam pois

seriam tidos como menos capazes (RAISBERG & WATSON, 2010) […] A

questão da mestiçagem no Brasil, que impede uma definição exata de quem é

negro [sic] ou afrodescendente também é tomada como ponto de discussão

para os que são contrários às cotas. Por não existir um critério científico que

indique ou certifique quem é negro em nosso país, a cota poderia ser aplicada

a indivíduos que não se enquadrariam dentro dessa política. Nesse caso os

defensores das cotas raciais não consideram que essas situações seriam

47

suficientes para invalidar sua aplicação. Ainda, no Brasil, verifica-se que os

níveis de escolaridade se diferenciam entre os jovens que se autodeclararam

pertencentes à população branca ou não branca (ANDRADE, 2012) […]”

(UNICAMP, 2014)

Apesar de podermos reconhecer nos trechos acima a centralidade da ideologia

igualitarista e a meritocrática, a referência à raça não pode ser considerada como

residual na conformação da ideologia da classe média no contexto brasileiro. A

compreensão do funcionamento das sociedades capitalistas neoliberais, erigidas sobre a

ossatura social da escravidão negra, demanda análises que possam interconectar a

estrutura de classes e a estrutura racializada a fim de caracterizar a natureza das relações

entre essas estruturas. Gostaríamos de extrapolar a reflexão de Décio Saes (1975)

quanto à importância de atentarmos quanto às dinâmicas que influenciam as relações de

classe:

“[...] Se, nas sociedades modernas, uma situação de classe está sempre na

origem dos sistemas de estratificação social (no sentido de que a feição que

assume a hierarquia social numa sociedade determinada depende da maneira

pela qual aí nasceu e se desenvolveu um certo modo de produção,

necessariamente acompanhado de uma ossatura social específica), é

imperativo reconhecer que tais sistemas, uma vez criados, ganham

autonomia, deixando de ser meros epifenômenos; por um lado, adquirem

dinâmica própria com a criação de mecanismos de auto-sustentação e, por

outro, passam a influenciar as próprias relações entre as classes” (idem, p. 24)

Entendemos que nas sociedade modernas há uma situação de retroalimentação

entre a estrutura racial e a estrutura de classe em contextos onde a escravidão negra

existiu enquanto sistema de organização econômico e político. Se raça deixou de ser

definida em termos biológicos, a raça como classificação social ganhou novos contornos

no pós-holocausto e imprimiu uma dinâmica particular as relações de classe. Nesse

sentido, longe de serem residuais, há mecanismos que mantêm lógicas de

hierarquização informadas pela categoria política de raça funcionando de modo a

sustentar essa divisão no interior da dinâmica de classe.

Nesse sentido, retomando os discursos dos docentes anteriormente mencionados,

a tentativa de apagar a opressão com base em critérios de classificação racial, ao mesmo

tempo em que revela a vigência da lógica racial na estrutura de classes, também

informam como a fração da classe média branca abastada questiona a existência da raça

enquanto categoria política e como um problema das sociedades democráticas,

apagando as conexões entre racismo, liberalismo e colonialismo (HESSE, 2004;

SAYYID, 2003; ARAÚJO & MAESO, 2013). Mas essa postura antirracialista pautada

na ideia do racismo como excepcional, isto é, fora do horizonte político do mundo pós-

48

sistema colonial não é uma peculariadade da classe média brasileira, apesar de que

como veremos essa classe tem interesse e beneficia-se diretamente da reprodução desse

discurso. O antirracialismo é uma das ideias que funda o mundo moderno e a ideia de

modernidade, como nos explica Barnor Hesse (2004):

“[...] So how is the coloniality of racismo both continued and denied in

Western democracies? Firstly, following formal decolonisation, racial

relations of coloniality continued, though often signified in culturally

diferente ways and new political instances, and so thoroughly westernised as

to be considered unremarkable (e.g.: ideas os racial harmony or good and bad

race-relations, see Hesse, 2000). Secondly there was a socially develop

process f colonial displacement and denial (i.s.: colonialism is seen as

affecting the past not the present); marked unmistakably by ‘collective

amnesia about and systematic disavowal of empire (Hall, 2000), leaving the

culture of coloniality influential in social design (e.g.: immigation

regulations) but silenced in social representation. Thirdly [...] The European

nation became an imagined community with an ever presente nationalist

history and an ever distant colonial past” (idem, p. 144).

É preciso historicizar o racismo e situá-lo na emergência das sociedades

modernas e com elas a construção de uma narrativa eurocêntrica sobre o estado de

direito, os sistemas democráticos e sobre a própria imagem que o Ocidente criou sobre

si no período pós-independência das colônias nas Américas, no Caribe, nas Antilhas, na

Ásia e na África.

A presente tese dialoga também com os contributos dos estudos decoloniais33

que consideram que o fim do sistema colonial não implicou exatamente no fim de certa

lógica colonial que organiza ideologias, práticas e a estrutura da modernidade ocidental.

Modernidade construída a partir da colonização das Américas no século XV, entendida

como o projeto geo-político estruturado a partir da colonialidade de saber

(intelectualidade), poder (acesso a recursos) e ser (a constituição subjetiva) (QUIJANO,

1993), baseados nas concepções de raça e racismo como organizadores que estruturam

as relações de classe no mundo capitalista.

Refletir em torno do colonialismo, nessa perspectiva, é pensar para além de

“legados” de um passado distante, mas buscar compreender os mecanismos que

atualizam, no sistema capitalista, a inferiorização, a desumanização, a subalternização

de determinados grupos humanos. Desde início do século XX ‘inventariar’ esses

mecanismos tem sido objeto de reflexão de diversos pensadores sociais como W.E. B.

33 As publicações no Brasil acerca dos estudos pós coloniais ainda são tímidos mas para um panorama

geral e atualizado acerca desse assunto, sugerimos o livro Para alem do pos(-)colonial (2018), organizado

por Michel Cahen e Ruy Braga e que reúne uma série de textos acerca dos os dilemas dessa abordagem a

partir de uma perspectiva histórica ampla.

49

Du Bois (com o conceito de linha de cor) e Frantz Fanon (com o conceito de zona do ser

e zona do não ser), apenas para citar alguns autores fundacionais dessa abordagem que

articula colonialismo, capitalismo e racismo. Na esteira desses pensadores, seguem as

contribuições de Immanuel Wallerstein (sistema-mundo e a crítica à crença nas

unidades territoriais), de Rodolfo Kusch (filosofia do pensamento coletivo), de Enrique

Dussel (transmodernidade e pluriversalismo transmoderno), de Lyotar (pós-

modernidade), de Sylvia Wynter (ethnoclass), de Walter Mignolo (mundo

moderno/colonial), de Ramon Grosfoguel (diversalidade anticapitalista descolonial

universal radical), Nelson Maldonado-Torres (linha ontológica moderno-colonial),

Boaventura de Souza Santos (linha abissal) e Catherine Walsh (pedagogia decolonial),

para referir alguns.

Para aqueles autores a colonialidade é uma nova configuração constitutiva das

democracias liberais e que organiza as relações de poder-saber-ser, tendo na

classificação racial um dos elementos que hierarquizam o mundo moderno, entretanto,

diferentemente do período colonial, abertamente racialista e racista, o mundo pós-

colonial mantém a dominação econômica-política-ocidental tendo a Europa como

referência e o “esquecimento da colonialidade” (MALDONADO-TORRES, 2004)

como mecanismo que ao mesmo tempo em que abertamente nega a racialização do

mundo moderno, assegura a continuidade de mecanismos de opressão informado por

uma lógica de hierarquização com base em raça.

Reconhecemos os limites da abordagem34 mas entendemos que as reflexões

geradas a partir dela podem gerar insumos para refletirmos acerca da relação entre a

formação da ideologia meritocrática e o imaginário das relações raciais no Brasil.

A negação pelos docentes da existência de desigualdades a partir de categorias

raciais, portanto, deve ser entendida como recurso que funciona: a) de modo a definir

qual seria o ‘verdadeiro’ problema de acesso ao ensino superior público (que não passa

34 Na América Latina, a perspectiva decolonial tem sofrido algumas críticas como: as tendências

culturalistas, a falta de mais estudos de casos que permitam afirmar categoricamente que raça é

estruturante logo no aparecimento do capitalismo como sistema-mundo, foco excessivo na crítica

epistemológica deixando escapar a força de uma crítica mais concisa das relações de poder,

essencialização de alternativas frente ao sistema-mundo (Cahen & Braga, 2018). Algumas dessas

críticas, em nosso entendimento, são frutos do modo hegemônico de conceber o sistema capitalista,

Estado-nação e o próprio entendimento de raça e racismo, mas gostaríamos de destacar a crítica quanto à

falta de estudos suficientes que forneçam subsídios que embasem como raça foi e segue sendo

estruturante do capitalismo mesmo em países fora das Américas. Há uma série de estudos, inclusive fora

da América e do Caribe, que tem informado acerca de que como raça estruturou e estrutura as relações

como: Van Dijk 1993; Sayyid, 2004; Goldberg 2009; Vale de Almeida, 2006; Araújo, 2013; Araújo &

Maeso, 2016; Maeso 2016; 2018.

50

pelo racismo) e, b) como justificativa para definir os objetivos das políticas de inclusão

(incluir pobres e egressos de ensino público). Mas como os docentes dissimulam para si

e para os outros o racismo estrutural que condiciona suas práticas? Ou nas palavras de

Saes (2007): “[...] Que ideologia se desenvolve no seio da categoria docente em função

da necessidade objetiva de os professores ocultarem deles próprios e da sociedade a

verdadeira natureza de sua tarefa pedagógica- a saber, a de legitimar a cultura

dominante e marginalizar [desumanizar] as demais culturas” (idem, p. 109)? Deixemos

que os próprios docentes respondam:

“[Tadeu Jorge, à época vice-reitor e coordenador do Grupo de Trabalho

encarregado de elaborar a proposta do PAAIS comenta que] Desde o início,

porém, ficou claro que o sistema de cotas, baseado na simples reserva de

vagas por algum critério, não atendia a alguns princípios importantes da

Universidade e o que mais incomodava era a possibilidade de perder

qualidade na seleção dos alunos […]. A proposta apresentada [PAAIS], base

para a decisão do Consu, permite resultados concretos e significativos de

inclusão, preservando o valor acadêmico e demonstrando na prática, mais

uma vez, o exercício da autonomia universitária […]” (cf. LEVY, 2004).

“[…] A política de cotas proposta é discriminatória, segregatória e de forma

muito sutil produz um mecanismo indolente em seus receptores, com a

crença de que “eu mereço” [...]. Isso é histórico como estratégia política de

manobra de massas e o que é surpreendente é que a Universidade agora é o

palco da validação dessas estratégias, o que fere sua autonomia e potencial de

regulação política” (Cf. SÃO PAULO, 2013a).

Ainda que, como veremos no capítulo 3, a autonomia universitária tenha sido

um importante instrumento legal utilizado para questionar a legitimidade da proposta do

PIMESP e que resultou em sua rejeição, afastando a instituição de uma política que

fazia uso aberto da discriminação negativa, a autonomia universitária será um princípio

constantemente reivindicado no debate realizado nas estaduais paulistas em torno das

Políticas de ação afirmativa com a possibilidade de instituição da reserva de cotas

étnico-raciais que acabará por converter-se em um mecanismo- em nossa leitura,

tomado de modo autoritário- para regular o acesso às universidades públicas paulistas

pelos docentes.

Em nosso entendimento, além de converter-se em mecanismo que assegura a

manutenção do lugar da fração da classe média abastada e branca, permitindo sua

reprodução na hierarquia do trabalho, a reivindicação da autonomia para barrar políticas

de acesso aos negros e indígenas, evidencia como o funciona o racismo institucional.

Sendo assim, é preciso qualificar o discurso da autonomia universitária e complexificá-

lo frente à estrutura racializada para que consigamos captar os usos e os sentidos

51

atribuídos aquele mecanismo nos discursos dos docentes nas três universidades e a

relação da reivindicação da autonomia e a reprodução do racimo.

Compartilhando do entendimento de Poulantzas (1977) quanto à importância de

diferenciar estruturas de práticas, o emprego do termo racismo institucional longe de

referir à presença ou ausência do racismo em determinadas instituições, é antes um

conceito para evidenciar à estrutura colonial que suporta a expansão européia (TURE &

HAMILTON, 1992 [1967]) e a partir da qual o mundo moderno se erigiu. Nesse

sentido, o igualitarismo e a meritocracia, como elementos fundamentais da ideologia da

classe média são informados, em nossa leitura, pelas estruturas sedimentadas pelo

racismo institucional. Em face da necessidade de caracterizar melhor o que entendemos

na presente tese como racismo institucional para evitarmos qualquer confusão entre

instituições, estruturas ou classes sociais passemos a um resgaste35 das contribuições da

definição de racismo institucional definido por Kawme Ture [Stokely Carmichael]36 na

década de 60.

O conceito de Racismo Institucional a partir da contribuição do pensamento

negro

A presente subseção é uma tentativa de retomar os contributos dos pensadores

negros estadunidenses Kawme Ture e Charles Hamilton no entendimento das relações

raciais no capitalismo no que concerne a contribuição daqueles em trazer à tona a

impossibilidade real de desvinculação das relações de classes das relações raciais. Nesse

sentido, partilhamos com os referidos pensadores que a luta racial não pode ser

desvinculada da luta de classe, dado ser formas do mesmo processo social de

classificação e separação dos seres humanos na organização capitalista.

A presente seção buscará circunscrever as diferenças entre as concepções de

racismo individual e institucional e as implicações dessas abordagens no enfrentamento

do racismo. No que tange “as soluções para o problema do negro”, buscaremos também

definir de que forma a negação do racismo institucional pela fração da classe média alta

branca tem como uma de suas principais implicações a concepção de políticas

35 Agradeço as reflexões suscitadas pela investigadora Marta Araújo no Curso de Formação Avançada

Repensar a legislação e as políticas públicas através do (anti)racismo realizado pelo Centro de Estudos

Sociais em Lisboa no ano de 2018. Na ocasião, a referida investigadora chamava atenção para a

importância de resgatarmos as propostas originais de Kwame Ture & Charles Hamilton sobre o termo

racismo institucional. 36 Mudou-se definitivamente para Guiné em 1978 e trocou seu nome- Stokely, para Kwame Ture, em

homenagem aos líderes africanos Kwame Nkrumah e Touré.

52

integracionistas, como o PIMESP que acabam por esvaziar o conteúdo original

(reformador) das políticas afirmativas em prol de políticas que acabam por recolocar os

sujeitos beneficiários das referidas políticas como “pessoas-problema” (WEST, 1994, p.

18).

Válido ainda um adendo em relação ao que estamos chamando de “esvaziamento

do conteúdo reformador das políticas inclusivas”. Com isso queremos dizer que mesmo

situadas no âmbito de melhorias dos mecanismos de efetivação do direito burguês, as

políticas afirmativas oferecem a possibilidade de debatermos sobre práticas (como a

existência dos exames de seleção, a problematização dos currículos eurocentrados nas

universidades) e ideologias (como a flexibilização da meritocracia) que sustentam o

racismo institucional.

O racismo institucional como conceito analítico foi originalmente desenvolvido

no livro Black Power: the politics of liberation in America de autoria dos então ativistas

do Partido Panteras Negras Kawme Ture e Charles V. Hamilton, em 1967, apesar de ter

ganhado alguma notoriedade nos estudos sociológicos com a obra Internal Colonialism

and Ghetto Revolt37 (1969) de Robert Blauner.

O racismo institucional, segundo aquele entendimento, opera a partir de

mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização do negro sem

explicitação ou publicização, pelo contrário, o racismo institucional opera de modo

velado e se origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade (indo

no sentido contrário do entendimento hegemônico do racismo como aberração ou

residual) e, portanto, recebe muito menos condenação pública do que o racismo

individual:

“[...] Não existe “Dillema Americano” porque os negros deste país formam

uma colônia, e não é do interesse do poder colonial libertá-los. Os negros são

cidadãos legais dos Estados Unidos, com a maior parte dos direitos legais dos

outros cidadãos. No entanto, eles permanecem como sujeitos coloniais em

relação à sociedade branca. Assim, o racismo institucional tem outro nome:

colonialismo. Obviamente, a analogia não é perfeita. Normalmente associa-se

uma colônia com uma terra e pessoas submetidas e fisicamente separadas, a

37Sobre a influência do conceito de racismo institucional de Ture e Hamilton em suas sanálises, Blauner

escreve uma nota no referido artigo: “This is a revised version of a paper delivered at the University of

California Centennial Program, "Studies in Violence," Los Angeles, June 1, 1968. For criticisms and

ideas that have improved an earlier draft, I am indebted to Robert Wood, Lincoln Bergman, and Gary

Marx. As a good colonialist I have probably restated (read: stolen) more ideas from the writings of

Kenneth Clark, Stokely Carmichael, Frantz Fanon, and especially such contributors to the Black Panther

Party (Oakland) news- paper as Huey Newton, Bobby Seale, El- dridge Cleaver, and Kathleen Cleaver

than I have appropriately credited or generated myself. In self-defense I should state that I began working

somewhat independently on a colonial analysis of American race relations in the fall of 1965; see my

“White wash Over Watts”: The failure of the McCone Report”, Transáction, 3 (March-April, 1966), pp.

3-9, 54.” (BLAUNER, 1969, p. 393).

53

“pátria mãe”. Este não é sempre o caso, no entanto; na África do Sul e na

Rodésia, negros e brancos habitam a mesma terra - com negros subordinados

aos brancos, assim como nas colônias inglesas, francesas, italianas,

portuguesas e espanholas. É a relação objetiva que conta, não retórica (como

constituições que articulam direitos iguais) ou geografia38” (TURE &

HAMILTON, 1992, p. 5-6).

A referência ao “dilema americano” é uma alusão crítica à obra “An American

dilemma" (1944) de Gunnar Myrdal. A obra é considerada um marco porque

institucionalizou certa narrativa acerca do “problema do negro”. Produzido no entre-

guerras, no livro o autor coloca um ponto de inflexão no imaginário racial-feliz dos

brancos nos Estados Unidos que se viam aterrorizados com o crescente poder dos

movimentos antirracistas e anticoloniais. O autor define o racismo como um dilema

moral resultante das crenças residuais como a cristã, onde o negro é visto como

problema que precisa integrar-se. Essa obra é um divisor de águas na produção das

ciências sociais sobre a situação do negro porque insere uma narrativa histórico-política

nas Américas, que aparta raça e racismo do liberalismo e democracia e torna o racismo

algo esdrúxulo e desconectado com aquelas formas econômicas e políticas.

A obra “An American dilemma" (1944) contribuiu para a disseminação da

narrativa acerca do racismo conectado à idéias pseudociêntificas e como problema

moral e individual, isto é, como um problema de atitudes e crenças raciais de alguns

indivíduos, onde sua solução residiria na reforma moral de patologias dos “indivíduos

racistas”, omitindo os condicionantes sociais que o produzem (ARAÚJO & MAESO,

2016). Nossa preocupação reside em compreender as implicações da abordagem moral

do racismo na elaboração de políticas públicas, como no caso da educação e mais

específico das políticas de inclusão propostas pelas universidades estaduais paulistas

entre 2004 e 2014.

Ao focar em atitudes, e não como algo instituído nas práticas e no

funcionamento ordinário das instituições, a análise presente na obra “An American

dilemma" limitou-se a pensar em soluções para o racismo em torno da concepção de

38 Versão original: “There is no “American Dillema” because black people in this country form a colony,

and it is not in the interest of the colonial power to liberate them. Black people are legal citizens of the

United States with, for the most part, the same legal rights as other citizens. Yet they stand as colonial

subjects in relation to the White society. Thus institutional racism has another name: colonialismo.

Obviously, the analogy is not perfect. One normally associates a colony with a land and people subjected

to, and physically separated form, the “Mother Country”. This is not Always the case, however; in South

Africa and Rhodesia, black and White inhabit the same land- with blacks subordinated to whites just as in

the English, French, Italian, portuguese and Spanish colonies. It is the objective relationship which

counts, not rethoric (such as constituitions articulating equal rights) or geography” (p.5-6).

54

integração (leia-se assimilação) dos negros, reproduzindo idéias como despreparo,

adaptação, deficiência:

“[…] privilegia-se uma concepção do racismo […] como a derivação de

uma deficiente integração das comunidades imigrantes e das minorias

étnicas. O seu próprio âmbito de atuação pode ser visto como uma espécie

de movimento pendular entre a necessidade do conhecimento do “Outro” da

parte da sociedade maioritária e de favorecer uma ativa integração na

sociedade “autóctone”, principalmente na esfera económica e na cultural.

Neste quadro, uma abordagem antirracista não é considerada prioritária. É a

integração bem-sucedida (geralmente lida como assimilação) das

comunidades imigrantes e das minorias – consideradas mais vulneráveis

perante a discriminação racial– que é tida como o antídoto natural contra o

racismo […] Neste quadro, o racismo acaba por ser naturalizado como uma

reação à diferença […] e como uma consequência da ignorância de certos

grupos sociais” (ARAÚJO & MAESO, 2013, p. 152).

O racismo acaba por ser entendido como sendo um problema de correção ou

melhoramento de mecanismos para capacitar os inaptos, deslocada das relações de

poder que o instituíram historicamente e na qual se sustenta atualmente. E quais são as

implicações desse tipo de entendimento? São vários, mas gostaríamos de destacar dois

relativos ao espaço da universidade brasileira. Se o racismo não é concebido como

vigente, institucional e ordenador da hierarquização das classes no capitalismo ao invés

de repensarmos as formas de acesso ao ensino superior, por exemplo, oferecemos

formação técnica para os negros (mantendo-os fora da universidade), no lugar de

políticas de permanência para estudantes cotistas nas universidades, oferecemos uma

política rigorosa de avaliação de suas notas ao longo do curso. Como apontou

Hasenbalg (1996) "a legitimação e mesmo a cooptação (por parte do Estado) da cultura

negra e seus símbolos não é acompanhada de uma mudança significativa na posição

relativa dos segmentos negro e mestiço da população na estrutura social do Brasil"

(idem, p. 243).

O racismo institucional desconstrói a narrativa hegemônica da incompatibilidade

entre democracia e racismo e nesse sentido, empregar o referido conceito na presente

tese evidencia os contornos da democracia e do direito burguês inseridos em uma ordem

na qual raça continua informando sobre posições de poder, dominação e exploração. A

narrativa do racismo como aberração, impossível de existir no interior das instituições

cidadãs e fora das práticas republicano-democráticas, invisibiliza a conformação entre

raça e classe como força motriz que sustenta a organização social no sistema capitalista.

Racismo como prática cotidiana velada vigente nas instituições, nos permite

compreender a longevidade e as características estruturais do racismo moderno,

ocidental, capitalista e democrático. No tocante à “construção de um passado místico”

55

que aparta capitalismo, escravidão e racismo, Frank Füredi (1992) analisando os

discursos nos meios políticos e acadêmicos na Alemanha, Japão, EUA e Reino Unido

na primeira metade do século XX acerca das responsabilidades pelos crimes militares e

coloniais, conclui que aqueles países passavam por uma crise ideológica e política que

reorientaria os rumos da agenda racial no mundo moderno (idem, p. 22).

O resultado dessa reorientação é a criação da engrenagem que converteria o

antirracismo em antirracialismo (GOLDBERG, 2008; ARAÚJO & MAESO, 2013),

estabelecendo as bases de funcionamento do “Estado racial” (GOLDBERG, 2002) e

das novas lógicas implícitas do “colorblind” ou como nomeou o próprio historiador

David Theo Goldberg (2002; 2008), racismo sem raça (raceless racism):

“Expressly committed to race-blindness, that is, to a standard of justice

protective of individual rights and not group results, raceless racism

informally identifies racial groups so long as the recognition in question is no

longer state formulated or fashioned. The possibility of racelessness publicly,

and by extension of racial reference privately trades exactly on na implicit

and informal invocation of the sorts of massaged historical referents now

denied in the public sphere. This in turn makes possible the devaluation of

any individuals considered not white, or white-like, the trashing or trampling

of their rights and possibilities, for the sake of preserving the right to private

‘rational discrimination’ of whites” (2002, p. 228).

O “racismo sem raça” dá condições para a reprodução da “presença-ausência do

racial” (APPLE, 1999), construindo as lógicas, subjetividades e políticas na

modernidade. E o que exatamente significa essa nova forma de inscrever o racimo nas

sociedades modernas? Como chama atenção Michel Apple (1999):

“[…] Further, racial dynamics can operate in subtle and powerful ways even

when they are not overtly on the minds of the actors involved. We can make

a distinction between intentional and functional explanations here. Intentional

explanations are those self-conscious aims that guide our policies and

practices. Functional explanations, on the other hand, are concerned with the

latent effects of policies and practices […]In my mind, the latter are more

powerful than the former” (idem, p. 10).

Nesse sentido o conceito de racismo institucional definido por Kwame Ture e

Charles V. Hamilton confronta o discurso moderno da presença-ausência da raça e

racismo, assim como põe em evidência os efeitos desse entendimento na reprodução do

racismo cotidiano.

O racismo institucional atua social, politica e economicamente, reproduzindo a

estrutura de classes e opera por meio de mecanismos que garantem a manutenção da

divisão do poder, naturalizando ao mesmo tempo em que justifica a hierarquia racial,

impondo limites aos horizontes de democratização das instituições, que reproduzindo o

poder branco:

56

“[...] É por isso que a sociedade não faz nada de significativo sobre o racismo

institucional: porque a comunidade negra foi criada e dominada por uma

combinação de forças opressoras e interesses especiais na comunidade

branca. Os grupos que têm acesso aos recursos necessários e a capacidade de

efetuar mudanças beneficiam-se política e economicamente do status

subordinado continuado da comunidade negra39” (TURE & HAMILTON,

1992, p.22)

Kwame Ture e Charles V. Hamilton inauguram uma perspectiva radical acerca

do racismo, se quisermos compreender como o racismo faz parte do funcionamento

ordinário das instituições, das sociedades pós-coloniais, e conforma as relações entre

classes de modo a manter a dinâmica que reproduz práticas-silenciosas- que oferecem

aos negros o status de subcidadania. Nesse sentido, Black Power expôs um princípio

primordial do funcionamento e dos efeitos do racismo nas sociedades pós-coloniais, a

saber, a sua essência dissimulatória:

“[...] em face de tais realidades, torna-se absurdo condenar as pessoas ‘por

não mostrarem mais iniciativa’. Os negros não estão deprimidos por causa de

algum defeito em seu caráter. A estrutura de poder colonial prendeu uma bota

de opressão no pescoço dos negros e, ironicamente, disse "eles não estão

prontos para a liberdade". Deixados unicamente para a boa vontade do

opressor, os oprimidos nunca estariam prontos. A operação do colonialismo

político e econômico nesse país teve repercussões sociais que remontam à

escravidão, mas não terminaram com a Proclamação da Emancipação. Talvez

o resultado mais cruel do colonialismo - na África e neste país - tenha sido

que, intencionalmente, maliciosamente e com abandono imprudente, relegou

o homem negro a um status subordinado e inferior na sociedade40”(p. 23).

Os autores trazem para o centro do debate o paradoxo a ser enfrentado pelo

movimento negro no contexto da gramática de direitos humanos no sistema capitalista e

mais especificamente no que tange o direito à educação. Se de um lado, o fim da

escravidão e a instituição do regime democrático de direitos legitimam as demandas por

reformas no acesso aos serviços que de fato atendam à população negra, como é o caso

39 Na versão original: This is why the society does nothing meaningful about institutional racism:

because the black community has been the creation of, and dominated by, a combination of oppressive

forces and special interests in the White community. The groups which have access to the necessary

resources and the ability to effect change benefit politically and economically from the continued

subordinate status of the black community” (p. 22).

40Na versão original: “[...] in the face of such realities, it becomes ludicrous to condemn black people for

‘not showing more initiative’. Black people are not in a depressed condition because of some defect in

their character. The colonial power structure clamped a boot of oppression on the neck of the black

people and then, ironically, said ‘they are not ready for freedom’. Left solely to the good will of the

oppressor, the oppressed would never be ready. The operation of political and economic colonialism in

this country has had social repercussions which date back to slavery but did not by any means end with

the Emancipation Proclamation. Perhaps the most vicious result of colonialism- in Africa and this

country- was that it purposefully, maliciously and with reckless abandon relegated the black man to a

subordinated, inferior status in the society.” (p. 23)

57

da educação pública, por outro, essas demandas esbarram na resistência conservadora

das classes dominantes e médias brancas que se organizaram para frear a potencialidade

democratizante e contestatória daquelas reivindicações. Nesse contexto de embates e

disputas, temos visto consolidar-se, principalmente, a partir da metade do século XX,

uma agenda política internacional pautada em “soluções integracionistas” para o

“problema das minorias” (MAESO & CAVIA, 2014). E nesse sentido, gostaríamos de

explorar a gramática integracionista, expressa na disseminação do discurso da inclusão

da diversidade desejável, onde, em nossa leitura, situamos o PIMESP e as políticas de

inclusão existentes nas universidades paulistas entre 2004 e 2014.

A discussão sobre racismo tem sido incorporada como uma luta pela integração

das “minorias étnicas”, sendo essas tratadas como objetos que se há de intervir. Nesse

sentido, os esforços do Estado, legitimados pelos intelectuais “pensadores de políticas

públicas”, a partir dos anos de 1940 têm sido direcionados para: 1) o esforço de

apagamento da terminologia ligada à raça (FÜREDI, 1992; GOLDEBERG, 2009) e sua

substituição pela gramática da etnicidade e cultura, evadindo-se do debate sobre racismo

(ARAÚJO & MAESO, 2013); 2) a negação do racismo como lógica que continua a

orientar a organização das vantagens e desigualdades na sociedade de classes

(HASENBALG, 1977); 3) para a tentativa de erodir as conexões históricas entre

escravidão, colonialismo e capitalismo (GORENDER, 1990; MOURA, 1992, 1994;

WEST, 1994) e; 4) a construção de políticas que “incluam”, sem historicizar raça e

racismo e suas formas contemporâneas, silenciando o nexo entre colonialidade, racismo

e democracia e sem questionamento do poder branco (MAESO e CAVIA, 2014).

O escopo das políticas orientadas com objetivo da inclusão, fruto da reorientação

da agenda racial no século XX, ao mesmo tempo em que tem oferecido a possibilidade

real de democratização das instituições republicanas, tem também omitido o racismo

como atrelado a tecnologias de governança (HESSE, 2002). O processo de inclusão é

acompanhado pela institucionalização de tecnologias de fiscalização, vigilância e que

por isso mesmo a narrativa inclusiva, do ponto de vista da integração/assimilação é em

si reprodutora de distanciamentos entre uma suposta maioria- não marcada racialmente,

e uma minoria-racializada (MAESO e CAVIA, 2014).

O paradoxo enfrentado pelo movimento negro consiste justamente em lhe dar

com o paradigma da integração, reconhecendo a possibilidade de movimentá-lo para

exigir reformas (como é o caso das cotas étnico- raciais), mas ao mesmo tempo

reconhecendo que, em alguma medida, as políticas orientadas por esse paradigma

58

sedimentam o imaginário capitalista da “superação” do “problema do negro” via a

possibilidade de mobilidade social, negando qualquer hierarquia do trabalho com base

em classe e em raça ao mesmo em que disseminam o imaginário de sociedades

acolhedoras- baseadas em uma naturalização da ideia de sociedade branca

essencialmente democrática (HESSE, 2004).

A reordenação do debate acerca da (não) existência do racismo no século XX,

em nossa leitura, rechaça o negro-mercadoria, mas consolida o negro-problema, ou nas

palavras de Cornel West (1994), os negros são encarados como “pessoas-problema”:

“[…] Quase um século mais tarde, restringimos as discussões sobre a questão

racial nos Estados Unidos aos “problemas” que os negros representam para

os brancos, em vez de ponderar a respeito do que esse modo de ver os negros

revela sobre nós enquanto nação. Essa estrutura imobilizadora incentiva os

liberais a aliviar sua consciência culpada apoiando os fundos públicos

destinados aos “problemas”; porém, ao mesmo tempo, relutantes em dirigir

críticas fundamentadas aos negros, os liberais negam a eles a liberdade de

errar. Analogamente, os conservadores atribuem os “problemas” aos próprios

negros- e com isso tornam sua miséria social invisível ou indigna da atenção

pública. Em consequência, para os liberais, os negros devem ser “incluídos” e

“integrados” em “nossa” sociedade e cultura, ao passo que, para os

conservadores, eles devem ser “bem comportados” e “dignos de aceitação”

“por nosso” modo de vida. Em ambos os casos, não se percebe que a

presença e as dificuldades dos negros não são adições nem deserções na vida

norte-americana, e sim elementos constituintes dessa sociedade [grifo do

autor]” (idem, p. 18).

A partir dos anos de 1990, a narrativa da “inclusão das minorias” vem ganhando

força e relevância na agenda de diversos governos no Brasil 41, orientando diretivas,

legislações e políticas (incluindo as educacionais). Entretanto, como situar

analiticamente a emergência dessa narrativa, pretensamente democrática e horizontal

entre os povos, e a permanência do racismo institucional, evidente nas estatísticas sobre

as condições dos negros no Brasil?

Se por um lado, a demanda por inclusão é fruto da luta de diversos povos por

reconhecimento da sua humanidade e da sua cultura frente à colonialidade do poder, do

ser e do saber, por outro, a mudança (lenta, gradual e muitas vezes apenas retórica) de

postura de governos e frações da classe burguesa acerca da legitimidade daquela

demanda parece também estar relacionado aos:

“[…] desenhos globais de poder, capital e mercado [e nesse sentido há] usos

múltiplos da interculturalidade [nesse sentido é preciso] fazer a distinção

entre uma interculturalidade que é funcional ao sistema dominante, e [a

41 Em nosso entendimento o marco que sinaliza a inclusão desse tema na agenda dos governos foi à

assinatura do Decreto que cria o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra

em 20 de novembro de 1995, seguido da realização do Seminário Internacional "Multiculturalismo e

Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos" em julho de 1996.

59

interculturalidade] concebida como um projeto político, social, epistêmico e

ético de transformação e descolonialidade” (WALSH, 2012, p. 61).

Em nossa análise, e tentaremos explorar essa leitura no capítulo 3, a proposta do

PIMESP (e das políticas de inclusão implementadas até 2014 nas estaduais paulistas),

estão em estreito diálogo com a primeira concepção de interculturalidade que por sua

vez estaria, em nosso entendimento, em diálogo com uma concepção

integracionista/assimilacionista acerca das estratégias para o enfrentamento do racismo.

A ênfase no mercado (limitando a potencialidade reformista acerca do

significado de políticas inclusivas) parece ter informado, desde a sua institucionalização

na agenda do estado brasileiro, as bases que orientaram o debate sobre as políticas

“inclusivas” entre a alta classe média branca paulista ligada à universidade, desaguando

na oposição à reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior e na elaboração de

políticas “inclusivas” voltadas, ora para a “preparação para o mercado de trabalho”

(como veremos, o caso do PIMESP e do PROFIS), ora para a “seleção de talentos”

conforme os discursos que culminaram na aprovação das cotas em 2017, mas já

presentes no período analisado na presente tese. Entretanto, essas linhas discursivas já

vinham sendo disseminadas pelas elites e fica evidente no pronunciamento do então

presidente da República, Fernando Henrique Cardoso na criação do Grupo de Trabalho

Interministerial para Valorização da População Negra em 20 de novembro de 1995:

“[...] Também sabemos, todos, que o caminho para, efetivamente, alargar-se

o caudal democrático passa pela igualdade de oportunidades [...] É preciso

dar oportunidades mais igualitárias aos mais pobres. A verdade é que entre

os mais pobres sempre estão as populações negras. [...] Acredito que

devamos discutir as várias fórmulas existentes para assegurar igualdade de

oportunidades. Existem experiências nos Estados Unidos - algumas delas

estão sendo revistas - que devem ser analisadas aqui [...] Os brasileiros, lá

fora, muitas vezes, dizem, afirmativamente, que nós somos de várias raças e

que nós temos orgulho disso. Isso é uma riqueza. Essa diversidade cultural,

essa diversidade racial, é hoje um patrimônio do Brasil [...] Deve ser uma

preocupação constante também a questão das empresas, tanto pelo estímulo

àqueles empresários com maior consciência democrática e, portanto, que se

esmeram para que não haja discriminação - nem de sexo, nem de raça na

escala salarial e na própria escala de ascensão profissional -, como pela

fiscalização mais efetiva para aqueles que não tendo essa compreensão, às

vezes até por inconsciência, praticam, ou deixam que se constituam, situações

que cristalizam desigualdades [..]” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,

199842, p. 1-3).

42 O referido documento é composto por vários pronunciamentos oficiais de Fernando Henrique Cardoso

entre os anos de 1995 e 1998. Gostaríamos, a título de ilustrar as conexões profundas entre paternalismo,

racismo e intelectualidade brasileira, de transcrever um trecho extraído de uma entrevista do então

presidente feita por Roberto Pompeu de Toledo e que consta no documento e que viria a compor o livro O

Presidente segundo o sociólogo (Companhia das Letras, 1998). Vejamos o trecho: “Entrevistador: Nunca

houve apartheid [no Brasil], mas há o elevador de serviço. Resposta [Fernando Henrique Cardozo] – É,

até hoje. Que não é só para os negros, é para branco também, da classe chamada inferior [...] E o pessoal

acha que é normal. É um absurdo [...] Acho isso muito chato, muito constrangedor. Na minha casa, dos

60

As políticas interculturais são apropriadas pelo capitalismo em sua fase

neoliberal a fim de neutralizar conflitos e disputas, domesticando as potencialidades de

políticas reformistas (como é o caso das políticas afirmativas), ao mesmo tempo em que

mantêm sua base de exploração e dominação sustentada na essencialização e

hierarquização entre os povos:

“[...] a nova lógica multicultural do capitalismo global, uma lógica que

reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da

ordem nacional, neutralizando-a e esvaziando-o de seu significado efetivo, e

tornando-o funcional para este ordem e, ao mesmo tempo, a expansão do

neoliberalismo e os ditames do sistema-mundo. Nesse sentido, o

reconhecimento e respeito pela diversidade cultural tornam-se uma nova

estratégia de dominação, que visa não a criação sociedades mais eqüitativas e

igualitárias, mas ao controle de conflitos étnicos e a preservação da

estabilidade social, a fim de impulsionar os imperativos econômicos do

modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista, agora fazendo "incluir"

grupos historicamente excluídos dentro. [...] De fato, essa lógica tem suas

raízes no multiculturalismo (neoliberal) Americano como no [...]

"interculturalismo europeu". Enquanto o primeiro tem suas raízes na

democracia liberal e na liberdade de mercado - o que garante liberdade à

diferença - e aponta a tolerância da diferença mas também a sua

comercialização, o segundo aponta para um novo humanismo dos diversos:

humanizar o neoliberalismo e a globalização [...]”(WALSH, 2012, p. 64)

A perspectiva intercultural constituiu-se como agenda internacional no

capitalismo global e assume (com o papel decisivo de organismos internacionais como

UNESCO, FMI, CEPAL, BID) duas faces que dialogam entre si: de um lado, a

capitalização da “diversidade” e de outro, forja uma coesão social artificial a fim de

minimizar, quando não, silenciar os conflitos de classe e raça. E nesse contexto e

diferentemente da concepção moral do racismo (centrado nos indivíduos), a categoria

política de racismo institucional fornece possibilidades reais de compreender como

aquela agenda (e os conflitos e tensões que o perpassam) fomenta a reprodução do

racismo por meio de práticas e discursos. Assim, o racismo institucional transcende “o

meus avós e de meu pai, havia uma senhora, Alzira, filha de uma escrava de um bisavô meu, que era

muito próxima da família. Ela comia na mesa o que naquele tempo era absolutamente inaceitável. Hoje já

há muita gente que tem uma relação mais correta com as empregadas. Nossa relação é profundamente

hierárquica e, por isso informal – ‘Cada macaco no seu galho’. Quando os macacos saem do galho e

deixam de saber o seu lugar, as coisas complicam. É o que está acontecendo agora, o que é bom. Mas a

mentalidade da classe dominante no Brasil - e não só a tradicional, porque a nova incorpora esses valores

- não é democrática. É hipócrita. Até permite uma aparência de proximidade porque, na verdade, há uma

enorme distância” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1998, p. 14). Adocicar as relações escravocratas

não é algo que seja novo entre os intelectuais, que o diga Gilberto Freyre, mas impressiona a naturalidade

com que um intelectual (que já foi presidente de uma das nações mais negras no mundo diaspórico)

equipara a inconformação dos negros frente à condição que lhes foi relegada à “macacos que saem do

galho”.

61

âmbito da ação individual” e está intimamente relacionado às dinâmicas de poder que

mantêm a ordem social (ALMEIDA, S., 2019).

A análise de Kawme Ture e Charles V. Hamilton em Black Power contribui para

situarmos o racismo numa perspectiva que está para além de julgamentos morais sobre

comportamento ditos racistas e o inseri no funcionamento das instituições e das práticas

cotidianas (ARAÚJO, 2018). Nesse sentido, como aponta ALMEIDA, S. (2019):

“[…] A desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por

causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas

fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por

determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para

impor seus interesses políticos e econômicos” (idem, p. 40)

Nesse sentido é preciso inserir a ideologia meritocrática, a defesa do

igualitarismo (jurídico) e racismo que orienta prática da fração da classe média alta e

branca, docente nas estaduais de São Paulo, a partir do entendimento de que a estrutura

capitalista por meio de mecanismos que naturalizam as desigualdades e silenciam as

estruturas, mantém o racismo. Mas como se conforma essa estrutura a nível

internacional e quais seriam os desdobramentos para o contexto brasileiro? Qual a

relação entre o entendimento de raça e racismo que orienta a atuação dos estados, dos

organismos internacionais e a ideologia meritocrática no Brasil? Quais são as

implicações dessa conformação entre ideologia, práticas, classes e a formulação de

políticas públicas voltadas para enfrentamento da desigualdade racial no Brasil? No

próximo capítulo procuraremos situar essa discussão no contexto brasileiro.

62

CAPÍTULO 2: AS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS E POLÍTICAS DA

COMPREENSÃO EUROCÊNTRICA DE RAÇA E RACISMO NO

CONTEXTO BRASILEIRO

O presente capítulo busca explorar os desdobramentos dos resultados do

“projeto Unesco de relações raciais” (MAIO, 1999) realizado no Brasil nos anos 50. O

primeiro objetivo é compreender como as concepções de raça, racismo e as soluções

hoje para o “problema do negro”, defendidas pela fração da classe média branca alta

ligada à universidade, possui uma significativa longevidade histórica e que buscaremos

demonstrar que suas bases interpretativas acerca do negro na sociedade brasileira foram

construídas a partir do projeto financiado pela Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos anos 50. O segundo objetivo é

compreender a força e continuidade daqueles conceitos e quais são as implicações no

contexto de enfrentamento ao racismo em três âmbitos: produção do pensamento social

brasileiro a partir das contribuições de intelectuais ligados à “escola sociológica

paulista”, atuação do sistema jurídico.

No presente capítulo nos propomos a retomar os resultados do estudo da

UNESCO porque entendemos que essa retomada permitirá perceber que ao definir a

população negra enquanto minoria e como um problema que precisa da

autorização/gestão do grupo “majoritário” para ser incluído em determinados espaços

(GOLDBERG, 1993; HESSE, 2004; ARAÚJO & MAESO, 2013), a fração da classe

média branca alta está reproduzindo certa narrativa que tem uma bagagem histórica e

que encontra no projeto UNESCO suas origens.

O presente capítulo pretende tornar explícito como o debate gerado pelo projeto

Unesco teve e tem implicações que vão desde a construção do pensamento social (nesse

caso, circunscrito à produção da escola sociológica paulista) sobre raça e racismo,

passando pelo direito e chegando a influenciar os próprios termos da luta antirracista.

Partimos da hipótese de que o racismo, enquanto estrutura de dominação, encontra na

fração da classe média branca alta ligada à universidade, um dos principais agentes

colaboradores na construção de determinada gramática racista que: minimiza os efeitos

do racismo sobre as relações sociais (ao mesmo tempo em que invisibiliza a existência

de privilégios), domestica a luta antirracista no campo jurídico e reproduz o aparato

epistemológico (ocidental, capitalista, racista) necessário a continuidade do mundo

63

capitalista racializado. Assim, buscaremos evidenciar como o projeto UNESCO lança as

bases da narrativa da integração (reproduzida pelos docentes paulistas) com a

contribuição decisiva da fração da classe média branca alta ligada ao aparelho

educacional.

O projeto UNESCO e a escola sociológica paulista

Entendemos que não há como proceder a uma análise acerca do debate em torno

das políticas de ação afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior

estadual paulista sem situar historicamente os pressupostos nos quais a retórica política

para justificar a oposição à reserva de vagas está assentada por entendermos que as

justificativas que se encontram na base de argumentação dos opositores (pertencentes à

fração da classe média alta branca) às referidas políticas, possuem um acúmulo histórico

e que data desde os anos 50.

Interessa-nos compreender os desdobramentos de certa narrativa produzida pela

escola sociológica paulista acerca da presença do negro e do racismo no Brasil a partir

do Projeto UNESCO e a reprodução de ideias como despreparo, adaptação, deficiência

(paradigma integracionista) e a negação do racismo como elemento estruturante das

relações sociais no Brasil mesmo pós-abolição. Para tal, examinaremos nessa seção de

que forma a articulação ocorrida entre a UNESCO e a produção gerada pela escola

sociológica paulista a partir dos anos 50 não apenas consolidou a agenda das ciências

sociais no Brasil (MAIO, 1999; 2000), mas, em nossa concepção, as bases para o

entendimento das relações raciais e de soluções para o enfrentamento do racismo,

orientadas pelo paradigma da integração.

Antes de seguirmos com a análise a qual nos propomos, gostaríamos de

explicitar o que estamos chamando de escola sociológica paulista e o motivo dessa

escolha. A escolha pelo uso da nomenclatura “escola sociológica paulista” longe de

pretender abarcar toda a produção paulista da Escola Livre de Sociologia e Política

(fundada em 1933) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

(criada em 1934) sobre a modernização brasileira e seus dilemas, nosso intuito é uma

tentativa de delimitar o escopo da análise aos intelectuais que contribuíram para a

consolidação da sociologia paulista e que tiveram, ao mesmo tempo, papéis de destaque

na pesquisa UNESCO. A delimitação tem como objetivo evitarmos generalizações

acerca do pensamento social brasileiro daquela época.

64

Em segundo lugar, reconhecemos que em nossa análise estamos

desconsiderando os intelectuais vinculados à Escola Livre de Sociologia e Política que

produziram as primeiras análises acerca do processo de modernização no Brasil,

contribuindo de forma crucial para institucionalização das ciências sociais brasileiras

(LIMONGI, 1989; MICELI, 1989; JACKSON, 2004, 2007). Entretanto, nos interessa as

produções analíticas resultantes do projeto UNESCO, a saber, Wagley et al (1952),

Azevedo (1953), Costa Pinto (1953), Bastide & Fernandes (1959 [1955]), Nogueira

(1955) e Ribeiro (1956). Circunscrito nosso recorte analítico, retornemos ao contexto do

projeto UNESCO no Brasil.

As lutas de libertação em África e o holocausto judeu imprimaram uma mudança

de perspectiva crucial acerca do lugar da raça nas sociedades modernas. A raça como

elemento organizador das sociedades ocidentais passa a ser negada, assim como a

hierarquização das nações a partir de critérios raciais. No lugar da narrativa aberta

acerca da hierarquia entre povos a partir da raça, assistimos ao processo de redefinição

do lugar da diversidade de culturas/etnias que passam a ser celebradas e aceitas, fruto

da instabilidade mundial gerada pelas guerras anticoloniais (FÜREDI, 1993).

Os debates acadêmicos não ficaram à margem dessa mudança e a partir da

primeira metade do século XX, as pesquisas voltaram-se, em sua maioria, para

desacreditar da existência da raça (em termos científicos) e reduzir o racismo ao campo

da atitude individual anacrônica (HESSE, 2004; GOLDBERG, 2009) forjando uma

cisão entre “formação do capitalismo e dos estados-nação do colonialismo e da ideia de

“Europa” (ARAÚJO & MAESO, 2013, p. 151).

A dissimulação do racismo via propagação do entendimento de que seria algo da

esfera de atitudes individuais (o indivíduo é racista e não a sociedade), anacrônico (o

racismo é incompatível com as democracias modernas) e derivante da ineficácia de

políticas integracionistas (basta que sejam implementadas políticas de inclusão eficazes,

sem o questionamento da constituição histórica das relações de poder que atravessam a

sociedade e as instituições) encontra suas raízes no contexto das guerras de libertação

nos países africanos e no período entre guerras.

As duas grandes guerras mundiais e a expansão dos movimentos anticoloniais

estremeceram as bases onde estavam assentadas as justificativas para a dominação, a

saber, na hierarquização das raças (FUREDI, 1998), colocando em suspensão a

65

“capacidade do homem branco de manter sua supremacia e […] um temor à vingança

dos outros colonizados” (MAESO & CAVIA, 2014, p. 156, tradução nossa).

O momento pós-Segunda Guerra será marcado pela criação da engrenagem que

contribuirá para consolidação da construção da narrativa do racismo como algo

excepcional – incompatível com os regimes democráticos. Diversos organismos (ex.:

ONU), muitos pactos e diretrizes internacionais assim como financiamentos de projetos

de investigação são então criados para garantir a manutenção da paz e supostamente

afastar qualquer possibilidade de reedição de um novo holocausto. Entretanto, como

analisou Füredi (1998), o que está por trás da criação daquela “maquinaria da paz” nada

mais é do que o estabelecimento do “protocolo silencioso” das relações raciais.

Tomando o holocausto judeu como referência e pressionados com o avanço da

descolonização nos países africanos, os países saídos vitoriosos da Segunda Guerra

Mundial levam a cabo uma tentativa de domesticação das relações raciais, disseminando

a narrativa de que os regimes ditos “totalitários” vividos em países como União

Soviética e Alemanha Nazista seriam antidemocráticos e, portanto, necessariamente

racistas já que o antirracismo, enquanto razão pública estaria apenas nas bases dos

sistemas ditos democráticos (FÜREDI, 1993; GOLDBERG, 1993; HESSE, 2004;

ARAÚJO & MAESO, 2013).

O debate acerca do entendimento do que é racismo, é tomado por uma ampla

gama de discursos acadêmicos e instituições internacionais que redimensionam o

racismo como uma dimensão exclusiva dos regimes fascista e nazista, e portanto como

aberrações antidemocráticas e antiliberais (GOLDBERG, 2009). A construção desse

mito lança as bases para criação do imaginário que aparta a origem do racismo nas

sociedades modernas do processo colonial. Como afirmou Wallerstein (2000):

“Por que foi, então, que toda a gente se sentiu tão abalada pelo nazismo, pelo

menos depois de 1945? A resposta salta à vista: por causa da Endlösung. Se

bem que até 1945 quase toda a gente no mundo pan-europeu fosse aberta e

alegremente racista e antissemita, a verdade é que quase ninguém desejava

que isso redundasse na Endlösung. A solução final de Hitler traduzia, de

facto, uma total incompreensão da razão de ser do racismo no contexto da

economia-mundo capitalista. O objectivo do racismo não consiste em excluir

pessoas, e muito menos em exterminá-las. O objectivo do racismo consiste

em manter as pessoas dentro do sistema, mas com o estatuto de

Untermenschen, seres inferiores passíveis de ser explorados economicamente

e usados como bodes- expiatórios políticos. O que aconteceu com o nazismo

foi aquilo a que os Franceses chamam uma dérapage- quer dizer, uma

asneira, um deslize, um descontrolo. Ou talvez fosse o génio que saiu da

lâmpada. […] Mas no plano colectivo, o mundo pan-europeu ia ter também

que enfrentar o problema do gênio que fugira da lâmpada. E fê-lo através de

um processo que passou pelo banimento do uso público do racismo […]”

(idem, p. 13).

66

Os esforços empreendidos resultaram na construção de um novo imaginário

forjado no e pelo Ocidente a fim de expressar a superação do racismo no mundo

moderno: o antirracialismo. O Antirracialismo rege práticas, discursos e políticas

públicas nas sociedades pós-segunda guerra e consiste na crítica ao racismo científico e

na desmobilização política do conceito de raça enquanto categoria social. O problema

dessa nova ideologia é que ela nega a permanência dos mecanismos que atualizam a

configuração racista nas sociedades democráticas (mesmo sem a existência do racismo

científico) e resume o antirracismo ao antirracialismo (GOLDBERG, 2009).

A nova gramática para narrar as relações raciais, forjada no pós-segunda guerra,

por um lado nega o racismo enquanto elemento estruturante das relações nas

democracias liberais capitalistas atuais- persistindo enquanto forma de dominação- e por

outro lado passa a fomentar a ideologia da crença nas instituições democráticas e em

particular na educação como redentora de qualquer resíduo de crenças individuais na

inferioridade de “outras raças” - não brancas. Em outras palavras, o racismo passa a ser

entendido como um problema moral e individual que residiria na mente das pessoas

(GOLDBERG, 1993, 2002; HESSE, 2004).

Um dos principais desdobramentos da crença no racismo como um problema de

cunho moral e incompatível com regimes democráticos foi a criação de organismos

internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e

Cultura (UNESCO), criada em 1945 e cujo objetivo era “estabelecer a solidariedade

intelectual e moral da humanidade”, focada em, supostamente, combater por meio da

prevenção (leia-se educação) as razões que levaram o mundo a duas guerras mundiais.

No documento de sua criação, a Instituição assim circunscreve o objeto que será foco da

sua atuação:

“[…] desde que as guerras começam nas mentes dos homens, é nas mentes

dos homens que as defesas da paz devem ser construídas; que a ignorância

dos modos e vidas de cada um tem sido uma causa comum, ao longo da

história da humanidade, daquela desconfiança e desconfiança entre os povos

do mundo através dos quais suas diferenças muitas vezes entraram em

guerra” (Conferência para o estabelecimento da Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 43. Cf. UNESCO, 1945).

43Importante pontuar que o texto e as propostas contidas no documento de fundação da UNESCO foram

sugeridos pelo Governo francês que à época tinha sob seu domínio mais de 20 colônias em diversas

partes do mundo (África, América, Caribe), o que para nós corrobora a tese de Furedi (1993) acerca do

“medo da vingança racial” via “erosão das certezas raciais” que sustentavam a dominação colonial.

67

Partindo da falácia de que o racismo é um problema das mentes dos indivíduos

ignorantes e de sociedade não democráticas, a UNESCO assim viria a definir a solução

para esse “dilema”:

“[…] Considerando que a guerra mundial […] tornou-se possível pelo

abandono das ideias democráticas e pela promulgação de doutrinas que […]

proclamavam a desigualdade das raças, e que se tornou dever das Nações

Unidas assegurar o triunfo em todo o mundo dos princípios de liberdade,

igualdade e fraternidade […]; Considerando que as relações entre os povos

têm sido constantemente envenenadas pelo preconceito e pela falta de

compreensão; e considerando que é necessário, através de um amplo

intercâmbio de pessoas e através da livre circulação de ideias [...];

Considerando que a dignidade do homem está inseparavelmente ligada ao

desenvolvimento da cultura e é impossível criar as condições para o

verdadeiro progresso sem elevar a humanidade a um padrão moral e

intelectual mais elevado” (UNESCO, 1945, p. 5, tradução nossa).

Se o problema está nas mentes das pessoas, é preciso, portanto mudar essas

mentes por meio da circulação de ideias originais que elevem os padrões morais dos

indivíduos e é nesse contexto que surge no fim dos anos 40 a proposta44 da UNESCO de

financiar estudos sobre as relações raciais no Brasil e entender como funcionava a-

internacionalmente famosa “democracia racial” a fim de que essa pudesse inspirar as

relações raciais harmoniosas no mundo pós-guerra.

O estudo financiado pela UNESCO sobre as relações raciais no Brasil45 em

1951 e 1952 marcará profundamente a ciência social brasileira que naquela altura estava

à procura de consolidar-se como ciência e como referência nacional no campo de

análises propositivas acerca dos dilemas colocados pela rápida urbanização e

44 Sobre a escolha do Brasil como “laboratório de civilização”, ver Maio (1999; 2000), mas, em síntese,

além da imagem internacional de país harmonioso, a existência de contato prévio com a UNESCO e

com as lideranças daquela instituição pode explicar a escolha. Alguns intelectuais que já tinham

realizado estudos no Brasil como: Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Batisde e assistente de Alfred

Métraux, diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO e

coordenador dos estudos no Brasil; Charles Wagley, antropólogo norte-americano e colaborador na

UNESCO; Otto Klineberg, um dos fundadores do departamento de psicologia da USP, muito

influenciado pelo antropólogo Franz Boas (que também foi professor do Gilberto Freyre) e que esteve

envolvido na busca por soluções para os conflitos raciais nos Estados Unidos tendo colaborado na

pesquisa An American Dilemma de Gunnar Myrdal; o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, um dos

participantes do debate sobre conceito de raça na UNESCO em 1950, e Roger Bastide que já conhecia

Alfred Métraux com quem partilhava ideias e projetos de investigação. Essa rede de contatos também

aponta como a circularidade das novas idéias acerca de raça e racismo facilmente chegou ao meio

intelectual brasileiro. 45 Acerca do tema há extensa produção, mas gostaríamos de destacar o contributo do pesquisador Marcos

Chor Maio (1996; 1997; 1998; 1999; 2000). Apesar de discordamos dos pressupostos- pouca

problematização acerca do projeto universalista da UNESCO- e das suas conclusões, principalmente no

que tange a pouca ênfase dada à relação entre raça, conhecimento e poder e os conflitos daí resultantes

(não é mera coincidência que o referido intelectual esteve presente na lista dos intelectuais que assinaram

as duas manifestações contrárias ao “Projeto de Lei das Cotas” nos anos de 2006 e 2008), seus estudos

contêm detalhes preciosos acerca do processo de construção e desenvolvimento da pesquisa UNESCO no

Brasil.

68

industrialização do País. Nesse contexto, o estudo realizado em São Paulo (mais

especificamente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas com

significativa colaboração do curso de psicologia da USP) ganhou grande relevo não

apenas por ser liderado por intelectuais reconhecidos nacional e internacionalmente

como Roger Batisde e Florestan Fernandes, mas também porque São Paulo “era um

estado em rápido processo de industrialização e urbanização que estaria indicando sinais

claros de tensões raciais” (MAIO, 1999, p. 149).

O impacto do Projeto UNESCO para a institucionalização das ciências sociais

no Brasil é incontestável. Como afirmou o sociólogo Otavio Ianni, em 1966, sobre

estreita relação entre a consolidação do pensamento social brasileiro e os estudos

financiados pela UNESCO:

“[…] as iniciativas da UNESCO e outras instituições estrangeiras

colaboraram no desenvolvimento das investigações sobre o assunto. Note-se

que foram as preocupações humanitárias [grifo nosso] da Unesco que a

levaram a iniciar essas pesquisas, pois que se havia difundido também no

exterior que no Brasil reinava a ‘democracia biológica’. Recordemos,

entretanto, que, antes das iniciativas da Universidade de Chicago e da

UNESCO, já se realizavam no país investigações científicas a respeito das

relações raciais em geral, desde alguns aspectos da integração sócio-cultural

dos indígenas, ou as técnicas de infiltração social dos mulatos, até a análise

dos produtos marginais da assimilação dos alemães” (apud MAIO, 2000, p.

117)

É preciso ainda pontuar que falamos em consolidação e não fundação do

pensamento social brasileiro, pois como reconhece o próprio Ianni (idem), já existia

pesquisa no País focada em compreender as relações raciais, mas será a ênfase na

relação entre a condição do negro e o passado escravocrata e a preocupação em como

incluir “determinados segmentos sociais à modernidade” (MAIO, 1999, p. 142) que

distinguirá os achados do projeto UNESCO do que vinha sendo feito produzido pela

academia. E é no tocante a essa virada no modo de olhar para o “o problema do negro”

que gostaríamos de aprofundar dois pontos que consideramos cruciais para

compreensão da relação entre classe, raça, poder e conhecimento no Brasil.

O primeiro ponto diz respeito à grande influência do Projeto UNESCO na

concepção de raça e racismo na escola sociológica paulista, tenha sido para confirmar a

democracia racial (mesmo reconhecendo as desigualdades que assolavam o País) ou

para questionar a sua real existência, fato é que pela primeira vez se estava a realizar

pesquisas no Brasil tendo como foco a relação entre raça, modernidade e as dinâmicas

de poder no contexto brasileiro.

69

Em nosso entendimento, mesmo os estudos que viriam a ratificar a existência da

democracia racial, como Wagley et al (1952), Azevedo (1953) e Ribeiro (1956) com

base na evocação da idéia da miscigenação como valor intrínseco à sociedade brasileira

(e como possibilidade de ascensão dos negros) ou ainda da valorização da facilidade de

contato e mobilidade entre grupos raciais diversos, de modo geral os resultados dos

estudos revelaram as contradições, as ambiguadades e os conflitos da sociedade

brasileira em torno da sociedade multirracial de classes brasileira.46

Na linha de estudos que confirmavam a existência da democracia racial,

podemos situar as análises de Wagley et al no livro Race and classe in rural Brazil

(1952), para quem o “Brasil permaneceria como uma lição de democracia racial para o

resto do mundo” (Wagley et al, 1952, prefácio à segunda edição):

“[…] the highly personalized relations between people of different social

classes and different "social races" in north Brazil continue to be maintained,

while in the south life is more impersonal. But racial origin has not become a

serious point of conflict in Brazilian society. Brazilians can still call their

society a racial democracy [...] Brazil remains as a lesson in racial democracy

for the rest of the world […] Brazil indeed is a country of striking social

contrast […] Nor will Brazilian who are aware of the social in their country

that race prejudice is entirely lacking, or that a mild form of racial

discrimination exists and is growing in certain areas. There are well-known

stereotypes and attitudes, traditional in Brazil, which indicate dispraise of the

Negro and of mulatto […] Yet most Brazilians are proud of their tradition of

racial equality and of the racial heterogeneity of their people. They feel that

Brazil has a great advantage over most western nations in the essentially

peaceful relations which exist between the people of various racial groups in

their country. Industrial, technological and even educational backwardness

may be overcome more easily than in areas of the world where racial

cleavages divide the populations” (idem, p. 2-8).

Ao mesmo tempo em que reconhece que existem desigualdades raciais, o autor

recorre às “atitudes tradicionais” para explicar a existência do racismo, circunscrevendo

a situação de desigualdades no Brasil na abordagem do racismo individual que como já

discutimos não é suficiente para explicar a pertinência do racismo do ponto de vista

institucional. Além disso, a recorrência ao imaginário, quase ontológico, da sociedade

brasileira como necessariamente dada a coexistência pacífica de várias raças, evidencia

que os autores tomavam como referência o que seria racismo a partir das experiências

norte-americanas (NOGUEIRA, 1954) ao mesmo tempo em que evocavam o caráter

benéfico da miscigenação (GUIMARÃES, A.S.A., 1996) deixando escapar formas de

46 Terminologia empregada por Donald Pierson (1942) para evocar a harmonia das relações raciais no

Brasil.

70

racismo menos explícitas que aquelas observadas nos países de origem dos

investigadores (caso de Charles Wagley e Roger Batisde).

Em relação à segunda linha (questionamento da existência da democracia racial),

podemos situar as contribuições de Costa Pinto (1953), Bastide e Fernandes (1955) e

Nogueira (1955). As referidas análises viriam a constituir uma virada nas interpretações

sociológicas sobre a condição do negro no Brasil por evidenciar a existência do “estado

de conflito” racial e por denunciar a existência dos “obstáculos sociais” que mantinham

a degradação da população negra (BASTIDE & FERNANDES, 1959):

“Os resultados da interpretação desenvolvida nos animam a admitir que a

transição da ordem social senhoreal para a ordem social capitalista se

processou em São Paulo sem que se fizesse necessário introduzir inovações

na esfera de ajustamentos sociais entre brancos, negros e seus descendentes

mestiços. Diversas condições estruturais contribuíram para isso […] as

atividades e as ocupações em que a mão de obra negra encontrava aplicação

corrente, em parte devido à concorrência com os imigrantes europeus […]

essas condições, associadas à dissolução do antigo sistema de trabalho e com

os processos patológicos que afetaram a população negra da cidade,

contribuíram para dificultar a "classificação" dos negros e dos mulatos na

nova estrutura social em emergência […] de outro, porque os padrões de

decôro da incipiente classe média e da recente burguesia urbana restringiam o

contacto com indivíduos de nível social ‘baixo’, em especial com as ‘pessoas

de côr’” (idem, p 142).

Os resultados dos estudos da segunda linha de pesquisadores colocaram em

xeque a real existência da democracia racial, desapontando – apenas em parte, em nossa

opinião – as expectativas da UNESCO, pois se, por um lado, Roger Batisde47, Florestan

Fernandes e os demais investigadores do Projeto UNESCO48 puseram por terra o mito

da democracia racial (uma das principais razões pelas quais o Brasil tinha sido

escolhido para a realização do estudo), por outro, suas análises e conclusões acerca da

situação do negro no Brasil no período da grande expansão urbana e industrial, em

nossa análise, sofisticaram os mecanismos de ocultamento do racismo institucional no

Brasil moderno.

Dizemos que os resultados apenas frustram em parte a missão da UNESCO

porque se um dos objetivos do estudo era encontrar uma “espécie de anti-Alemanha

47 Sobre a obra do sociólogo francês, ver Pereira de Queiroz (1977; 1978; 1983), Nogueira (1978), Dauty

(1985), Peirano (1991), Peixoto (2000), Braga (1944; 2000). 48 Gostaríamos de destacar esses dois pesquisadores tanto porque tiveram maior visibilidade se

comparados com os demais estudiosos envolvidos no Projeto UNESCO. Dito isto, o projeto foi

desenvolvido na Bahia (que era o foco inicial por ser considerado por alguns pesquisadores o exemplo

da boa convivência entre diferentes povos), São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco (sob a tutela do

Instituto Joaquim Nabuco, órgão criado por Gilberto Freyre que se colocou disponível junto a UNESCO

para colaborar com o estudo). Os resultados do estudo em São Paulo destacaram-se e impactaram

profundamente as análises sobre relações raciais dentro e fora da Academia brasileira e que por isso

constituem objeto de análise central na presente seção.

71

nazista, localizada na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com reduzida taxa

de tensões étnico-raciais, com a perspectiva de tornar universal o que se acreditava ser

particular” (MAIO, 1999, p. 142), a crença no sistema capitalista como necessariamente

antirracista foi expressamente defendida nos resultados da Pesquisa:

“[…] Em semelhantes condições estruturais, a transferência de

representações sociais ou de expectativas e padrões de comportamento

aplicáveis às relações entre brancos e negros haveria de sofrer uma

orientação adversa a estes [sic] últimos. Ê [sic] verdade que na nova ordem

social em emergência, a cor deixara automaticamente [sic] de ter a antiga

significação. Os patrões, os empregados e os operários não se distinguiriam

como os senhores, os escravos e os libertos, mediante a combinação de

posição social à côr [sic] da pele ou à ascendência racial; ao inverso do que

sucedia no passado, em que "nenhum branco poderia ser escravo", agora

"qualquer branco pode ser empregado, operário ou patrão". Assim, na

ordem social capitalista, quebra-se a tendência ao desenvolvimento paralelo

da estrutura social e da estratificação racial. A incapacidade de ajustamento

econômico dos negros impediu [grifo nosso] que êles [sic] se localizassem

coletivamente nas posições sociais conspícuas, o que acarretou uma situação

muito parecida à que existia na ordem senhoreal [sic], nas relações entre os

negros e mestiços libertos com os brancos. Daí a seleção e a perpetuação

de representações sociais e de expectativas ou padrões de comportamento

cuja sobrevivência parece incompatível com a nova condição civil dos

indivíduos de côr [sic] e com a organização da sociedade de classes em

emergência [grifo nosso]” (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 142-143).

A crença nas instituições da nova ordem competitiva (capitalista) como

asseguradoras da igualdade terá uma implicação crucial para a compreensão do racismo

e da situação do negro pela escola sociológica paulista. Ora, se as instituições

capitalistas são necessariamente abertas a todos, a condição do negro no pós-abolição só

poderá ser um problema de “desajuste” daquele em relação à nova ordem. Assim, forja-

se o tal “problema do negro” e enquadra-se a solução do “dilema do negro” a partir da

perspectiva da integração na qual o negro é lido como objeto que se há que intervir a

fim de resolver o “problema da inaptabilidade”, o que acaba por ocultar qualquer

questionamento da ordem estabelecida e das relações de poder que a estruturam

(ARAÚJO, 2013; MAESO & ARAÚJO, 2014; MAESO & CAVIA, 2014).

As conclusões do estudo, apesar de terem contribuído definitivamente para

problematizar a democracia racial – problematizando o modo de interpretar as relações

raciais no Brasil a partir do prisma da boa convivência entre as raças –, seu alcance

ficou comprometido, em nossa análise por: limitar-se a refletir acerca da situação do

negro apenas de um ponto de vista de inserção daquele na nascente sociedade de classes

brasileira e pela abordagem focada nas “modalidades de manifestação do preconceito e

da discriminação com base na côr” (Bastide & Fernandes, 1959, p. 269).

72

Sobre a inserção na sociedade de classes, os autores Bastide & Fernandes

(1959), acreditam que a inserção via infiltração é a via da (desejada) ascensão dos

negros:

“Apenas nessas condições, a ascensão não pode tomar outra forma senão a de

uma infiltração. Uma gôta negra após outra a passar lentamente através do

filtro nas mãos do branco […] O nosso inquérito permitiu-nos ver, na

mobilidade profissional do negro, muitas vêzes um desejo de subir. Mas a

subida é fácil só até um certo degrau. Meninos que começaram como

engraxates ou porta-marmitas aprendem um ofício, tornam-se aprendizes de

marceneiro, de alfaiate ou de eletricista. Acabam profissionais. Depois disso,

a infiltração tornase mais difícil, é preciso ter uma certa instrução, diploma

[…] O nosso inquérito revelou também as variações dos ideais dos pretos, as

flutuações da sua busca profissional. É assim que, se dantes o seu sonho era

tornar-se funcionário público, sendo que os mais instruídos tiravam diploma

de contador, hoje perceberam que o funcionário. É mal pago e, quando é de

côr, tem problemas particulares, e viram que um contador dificilmente

arranja emprêgo, que é barrado em muitas organizações e que lhe é difícil

encaixar-se na sociedade branca (idem, p. 266-267)

Apesar de reconhecerem que “a infiltração” apresenta limites (no que diz

respeito a divisão social do trabalho), os pesquisadores concluem que o movimento de

infiltração foi capaz de formar “um proletariado de côr composto de operários semi-

especializados; acima dêles [sic], uma pequena classe média e, finalmente, uma elite

negra” (Ibidem). Entretanto, como observou Gorender (2000), apesar de não ser

indispensável ao capitalismo, a dominação e exploração baseada em aspectos raciais

foi apropriada pelo capitalismo como forma de “aumentar a exploração e as

possibilidades de exploração da força de trabalho” (Idem, p.70). Nesse sentido, nos

parece que os autores não estavam atentos à relação entre capitalismo e racismo e em

alguma medida estavam comprometidos em salvaguadar as possibilidades de melhoria

da condição do negro na ordem capitalista (ainda que limitadoras, como eles próprios

reconhecem).

A abordagem acerca do “problema do negro” com ênfase na sua inserção (na

condição de ser inadaptado) na sociedade de classes e nos efeitos das atitudes

preconceituosas forneceu as bases para a produção da escola sociológica paulista sobre

raça e racismo no Brasil moderno. Mesmo vozes dissonantes frente às conclusões do

projeto UNESCO como Guerreiro Ramos49, sociólogo e militante do Teatro

Experimental do Negro, pareceram também não dar a devida ênfase aos limites do

mobilidade racial na ordem capitalista.

49 Guerreiro Ramos tinha fortes críticas à produção desenvolvida por boa parte dos pesquisadores

envolvidos nos estudos da UNESCO por entender que aquelas análises viam o negro como objeto de

estudo e como problema.

73

Ao referir-se à UNESCO, Guerreiro Ramos afirmou que esta estava a cumprir

uma função de grande importância na “integração das minorias raciais nos vários países

onde elas se encontram mais ou menos discriminadas” (Cf. GUERREIRA RAMOS,

1982, p. 237, apud MAIO, 1999). Ainda que o referido pesquisador tenha reconhecido

que modernidade e racialização podem caminhar juntas e que o racismo não está restrito

ao passado escravocrata, a ênfase de sua análise e da sua militância política esteve

restrita à integração do negro na sociedade de classes, culminando na defesa da

transformação “da luta de classe num processo de cooperação, [...] num fator de

equilíbrio e de compreensão social [...]" (GUERREIRO RAMOS, 1950d, pp. 23-24,

apud MAIO, 1997).

Outra voz dissonante dos “achados UNESCO” foi o pesquisador Costa Pinto,

responsável pela pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, mas que também endossava o

enquadramento assimilacionista e moralizador do racismo (no espectro das “atitudes”).

Costa Pinto, chega mesmo a reduzir o racismo a uma questão de “preconceito” (isto

implica dizer, no campo de atitudes individuais) e a reação do povo negro à existência

do “preconceito” deveria se dar, segundo ele, pela organização coletiva por meio da

classe, esvaziando de sentido toda contestação baseada na racialização da sociedade:

“[…] o centro do interesse estava localizado na assimilação do africano ao

Novo Mundo, ou, mais particularmente, nos produtos desses processos sobre

diversos setores da vida brasileira: religião, língua, culinária, vestuário,

música. O negro brasileiro, ou melhor, o brasileiro negro e o processo de sua

integração nos quadros da sociedade brasileira- da condição de escravo à de

proletário e da condição de proletário à de negro de classe média, jamais

despertou o interesse sério dos estudiosos do negro no Brasil […]” E como o

preconceito não se apresenta numa frente única e unida, apoiado pela lei e

cristalizado numa doutrina, consistindo antes num sistema de atitudes e

estereótipos […], moralmente batido pela ciência e pela história, o negro-

massa encara-o sempre face a face […] pensando, sentindo e agindo menos

como raça, mais como massa, cada vez mais como classe” (COSTA PINTO,

1953, p 26; 337-338, apud MAIO, 2013).

Vale ainda chamar a atenção para o “lapso” cometido pelo autor ao corrigir

“negro brasileiro” para “brasileiro negro”. Nessa “correção” está implícita certa

perspectiva que minimiza as implicações de ser uma pessoa racializada no Brasil em

nome da evocação, essa sim importante, da imagem do “povo brasileiro” pertencente

acima de tudo a uma nação onde a cor é secundarizada em nome de um imaginário de

nação multirracial.

Importante ainda chamar atenção para a relação entre escravidão e capitalismo e

os impactos para a formação social brasileira como atenta Costa Pinto. Entretanto, longe

de tomar raça por classe e vice-versa, entendemos junto com IANNI (1988) que “as

74

contradições étnicas, raciais, culturais e regionais são muito importantes para

compreendermos o movimento da sociedade tanto na luta pela conquista da cidadania,

como na luta para transformar a sociedade, pela raiz, no sentido do socialismo” (IANNI,

idem, p. 189). Nesse sentido, entendemos que “a raça e a classe são constituídas

simultânea e reciprocamente na dinâmica das relações sociais, nos jogos das forças

sociais. Essa é a fábrica da dominação e alienação” (IANNI, 2004, p. 147).

O racismo, deslocado do capitalismo e da história da escravidão, passa a ser

entendido como um problema moral e individual que residiria na mente das pessoas

(GOLDBERG 1993, 2002; HESSE, 2004) e, portanto, para mudar essas mentes é

preciso fazer circular ideias, estimular o contato entre as diversas culturas que elevem os

padrões morais dos indivíduos. Isso implica dizer que o entendimento moral do racismo

ao focar nas atitudes e no caminho pela via da reeducação insiste em “flutuar sobre uma

fraseologia moralista inconsequente”, limitando-se a olhar o racismo a partir de

“aspectos comportamentais” (ALMEIDA, S. 2019, p. 37).

As contradições inerentes ao modo de produção capitalista, ao sistema

democrático e as continuidades dos mecanismos de hierarquização que persistem na

desumanização das pessoas negras quando não minimizadas, são silenciadas nas

narrativas produzidas a partir dos estudos da UNESCO que passam a reiterar a crença

no projeto de integração:

“[…] As investigações recentes, porém, indicam que existe um abismo entre

as ideologias e utopias raciais dominantes, construídas no passado por elites

brancas e escravistas, e a realidade social. A afirmação é verdadeira com

referência a todas as minorias nacionais, étnicas ou raciais, pelo menos

durante o período em que elas não conseguem responder às pressões

assimilacionistas da sociedade nacional e aos critérios de avaliação

socioeconômica dos círculos dominantes das classes altas” (FERNANDES,

2007, p. 65)

O “problema do negro” passa a ser lido como um problema de ideologias

residuais do passado e que só teimam em existir porque os negros ainda não

conseguiram assimilar-se, responsabilizando os negros como únicos agentes da

transformação da própria situação no qual se encontram:

“[…] Seria preciso mudar a estrutura da distribuição de renda, do prestígio

social e do poder [entretanto] a persistência ou eliminação gradual dessas

desigualdades passam a depender do modo pelo qual as demais categorias

sociais reagem, coletivamente, às deformações que assim se introduzem no

padrão de integração […] da ordem social competitiva […] é do próprio

negro que deveria partir a resposta inicial ao desafio imposto pelo dilema

racial brasileiro […] assim ele despertaria os brancos dos diferentes níveis

sociais […]” (FERNANDES, 2007, p. 129)

75

O “problema do negro” passa a ser lido como um problema passível de correção

via distribuição de renda (reduzindo a questão a um problema de classe), de reeducação

dos brancos e da responsabilização dos negros.

Apenas situando a produção da escola sociológica paulista e a sua relação

histórica com as narrativas produzidas no pós-segunda guerra é que podemos

compreender a razão do “problema do negro” permanecer sendo enquadrado como um

problema de integração/assimilação à sociedade de classes (como veremos no Capítulo

3). A “miopia” gera a negação do racismo nas democracias capitalistas e a disseminação

da crença de que as instituições democráticas civilizam os grupos racializados via

integração/assimilação, como fica explícito na análise de Florestan (1978):

“[…] Penetramos, aqui, na área de incentivos e motivações sociais. Ao se

reeducar para o sistema de trabalho livre, o “negro” repudia sua herança

cultural rústica e o ônus que ela envolvia. Vence hábitos, avaliações e

comprometimentos pré ou anticapitalistas. E descobre uma posição, que o

nivela, material e socialmente, ao “branco”. (FERNANDES, 1978, p.154).

O paradigma da integração descola a construção do Estado-Nação moderno da

bagagem colonialista que orienta suas ações, reificando valores da modernidade como

assimilação dos sujeitos racializados considerados pré-modernos, vulneráveis. Esse

projeto reproduz distanciamentos entre uma suposta maioria não marcada racialmente e

uma minoria racializada, objetificando pessoas negras (visto apenas como receptoras de

políticas públicas) e tem como consequência a produção de politicas na naturalização

dos lugares de dominação, opressão e desigualdades (MAESO & CAVIA, 2014;

ARAÚJO & MAESO, 2016).

O Projeto UNESCO é um marco histórico que nos ajuda a perceber a

consolidação de certa narrativa partilhada pelos “intérpretes do Brasil” nos anos 50 e

que em nosso entendimento lançou as bases acerca do enquadramento do “problema do

negro” assim como as suas soluções, desarticulando-o da organização capitalista.

Em nosso entendimento, mesmo com as contribuições cruciais de Jacob

Gorender (2011 [1970], Clóvis Moura (1959), Octavio Ianni (1960, 1962, 1978) acerca

da relação entre formações sociais escravistas e capitalismo, boa parte dos pensadores

marxistas no Brasil, entre os anos 40 e 70, também não se detiveram à situação do negro

na formação nacional, diluindo os negros apenas como “pobres, explorados e sem

usufruírem plenamente seus direitos, tal como todos os trabalhadores sob o capitalismo

imperialista” (GUIMARÃES, A.S.A., 2016, p. 172).

76

As análises que recorreram ao aparato teórico e metodológico marxista para

interpretar a formação do Brasil e a constituição do Estado nacional nas décadas

referidas estiveram preocupados: a) hora com a massificação cultural frente ao

desenvolvimento do capitalismo no Brasil (SODRÉ, 1970); b) com a questão indígena

frente à dinâmica do capital; (RIBEIRO, 1978); c) com a situação do campesinato e a

persistência do latifúndio (GUIMARÃES, AP, 1963); d) com a formação da classe

operária urbana (RODRIGUES, LM, 1966; RODRIGUES, JA, 1968; SIMÃO, 1966;

PINHEIRO, 1977) ou da classe média (SAES, 1975); e) com desenvolvimento da

burguesia nacional (PRADO Jr., 1942; SANTOS, 1962), f) ou ainda com o

desenvolvimento do capitalismo autônomo (MARINI, 1965).

Esse rápido e incompleto balanço geral sobre análises produzidas pelos

pesquisadores marxistas que buscaram refletir sobre o desenvolvimento do modo

capitalista de produção e e a formação nacional brasileira, longe de esgotar as reflexões

em torno da contribuição daqueles pensadores, visa apenas indicar que o pensamento

marxista também parece ter se consolidado no Brasil sob “modos de cognição de

sociabilidade, que requerem e reproduzem a exclusão negra” (VARGAS, 2017, p. 85).

Com isso queremos dizer que boa parte da produção marxista também não dimensionou

com a merecida importância a presença negra (e suas especificidades) na conformação

de classes no Brasil.

Com Vargas (2017), entendemos que a “incapacidade” de tornar legível a

condição do negro por boa parte da academia brasileira, é um reflexo do racismo

antinegro, pois:

“[…] ao passo que a exploração e a alienação são categorias legíveis pelo

estado-império […] Isso quer dizer que, ao contrário das relações de conflito

que existem entre trabalhadores e o estado-império, ou entre mulheres e o

estado – relações que podem ser mediadas, negociadas, relações legíveis cuja

gramática é entendida por diversos atores sociais, desde os poderosos até os

despossuídos – para as pessoas negras, trata-se de uma relação sem solução

[…] Analisar a antinegritude implica reconhecer a constituição antinegra de

nossa sociabilidade. Implica reconhecer que a degradação e morte negras não

são acidentais, mas estruturais. Implica reconhecer que, quando há a

aparência de um escândalo coletivo causado pelo sofrimento negro (quando

um adolescente é preso a um poste pelo pescoço; quando uma jovem negra é

morta em frente de sua casa), trata-se de fato passageiro, fato que não

demanda nem análise nem ação específicas. Fosse a morte negra de fato um

escândalo, não teríamos hoje um contexto no qual a taxa de homicídios para

pessoas negras tem aumentado, apesar de a taxa de homicídios no Brasil estar

diminuindo. A morte negra não causa escândalo. (Idem, p. 97-101)

A “incapacidade” em tornar legível ainda persiste em algumas análises atuais

sobre a condição do negro. Dentre elas, gostaríamos de abrir um grande parêntese para

77

refletir sobre uma obra recente que tem ganhado espaço na academia e principalmente

entre a esquerda brasileira, a saber, a obra A elite do atraso: da escravidão à lava jato

(2017) do sociólogo Jessé Souza e que parece evidenciar a persistência da

“incapacidade” da elite intelectual em analisar seriamente a complexidade da condição

do negro no Brasil. Vejamos a análise do autor quanto à condição do negro na sociedade

brasileira:

“[...] Em países como o nosso, não há como separar-a não ser analiticamente

para separar o joio do trigo e evitar as armadilhas das políticas identitárias

falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro- o

preconceito de classe e o preconceito de raça. É que as classes excluídas em

países como o nosso [...] são uma forma de continuar a escravidão e seus

padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e

superexploradas [...] como houve continuidade sem quebra temporal entre

escravidão, que destrói a alma por dentro e humilha e rebaixa o sujeito,

tornando-o cúmplice da própria dominação, e a produção de uma ralé de

inadaptados [grifo nosso] ao mundo moderno, nossos excluídos herdaram,

sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais

frágeis e com menos capacidade de se defender [grifo nosso]” (idem, p. 82-

83).

A abordagem acima apresenta uma série de problemas, em nossa leitura.

Primeiro quanto ao que o autor denomina de “políticas identitárias” e seu suposto

conteúdo emancipatório. Se por um lado, é verdade que as políticas ditas identitárias

não são em si emancipatórias, de outro, o movimento negro no Brasil tem defendido

esse tipo de política pelos instrumentais que oferece para os caminhos à emancipação.

Nesse sentido, as políticas afirmativas no ensino superior, por exemplo, são medidas

tangenciais mas nem por isso menos importantes em termos de estratégia para a luta

negra e da própria urgência em reverter o escandaloso abismo educacional entre negros

e não-negros que assola esse país.

Ainda sobre políticas ditas identitárias, também gostaríamos de problematizar as

soluções universalistas abstratas que orientam algumas análises sobre a condição do

negro. As políticas afirmativas têm sido alvo de críticas por “fragmentar a luta” ou

ainda por seu cunho “reformista”, entretanto gostaríamos de nos perguntar em que

medida reivindicações por melhores salários, melhores condições de trabalho, condições

dignas de aposentadoria não podem ser também circunscritas em políticas reformistas

ou mesmo não-universalistas já que estamos a falar de reivindicações de um segmento

populacional que não inclui a grande mão de obra precarizada que não está integrada

formalmente ao mercado de trabalho, como é o caso da população negra? Ainda assim,

essas reivindicações (que não são emancipatórias, são limitadas e correspondem aos

78

anseios de apenas uma parte da população), em nossa análise, não têm sido alvo de

críticas tão ferranhas quanto às políticas ditas identitárias como são as cotas.

O outro ponto em relação à análise de Jessé Souza é no que diz respeito à

equiparação do “preconceito de classe” ao “preconceito de raça”, ignorando toda a

produção bibliográfica acerca da condição do negro na história moderna, do racismo

institucional que não se resume ao preconceito, esse sim, um termo liberal que visa

atenuar as condições desumanizadoras sob as quais vive a população negra no mundo

moderno.

Outro aspecto a ser destacado da análise de Jessé Souza é a violência que reside

nos termos desumanizadores empregados pelo autor para referir-se à população negra

(como “inadaptada”, “indefesa”, “menos capaz”), interpretando essa população como

desprovida de agência política, ignorando toda a luta e mobilização política dos negros

desde a Colônia. Se não em uma sociedade anti-negra, em qual outra configuração seria

possível que um cientista social em pleno século XXI, se sentiria autorizado a nomear

pessoas de um modo quase animalesco, patologizante e ainda assim seu livro estaria

entre os mais vendidos, vindo a ser referência em diversos cursos em universidades de

referência nacional?

Com Fanon (2015 [1961]), gostaríamos de chamar atenção para a lógica

desumanizadora que orienta ainda nos dias de hoje o olhar sobre o negro onde:

“[…] O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono

delimitar fisicamente, isto é, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados,

o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da

exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quinta-

essência do mal. […] Por vezes, esse maniqueísmo chega ao extremo da sua

lógica e desumaniza o colonizado. Para falar claramente, animaliza-o. E, de

facto, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem

zoológica. Faz-se alusão aos movimentos de reptação do amarelo, às

emanações da cidade indígena, às hordas, ao fedor, à pululação e às

gesticulações […] refere-se constantemente ao bestiário […]. Essa

demografia galopante, essas massas histéricas, esses rostos de onde

desapareceu toda a humanidade, esses corpos obesos que já não se

assemelham a nada, essa coorte sem cabeça nem cauda, essas crianças que

parecem não pertencer a ninguém, essa preguiça exposta ao sol, esse ritmo

vegetal, tudo isso faz parte do vocabulário colonial” (idem, p. 45-47).

A interpretação da condição do negro por Jessé Souza escancara o tom de

tutelagem e paternalismo e evidencia a continuidade da perspectiva integracionista que

transfere para o negro a responsabilidade (decorrente de sua inadaptabilidade) pela

condição na qual se encontra. E mais que isso: em nossa leitura, a fração da classe

média abastada e branca que está na universidade produzindo conhecimento tem um

79

papel importante na reordenação do imaginário e das narrativas acerca das relações

raciais, contribuindo na (re) produção dos discursos e imaginários sobre raça e racismo

empregnados de visões essencializadoras e desumanizadoras.

Retornando a perspectiva marxista acerca da formação de classes no Brasil e a

condição negra, mencionamos anteriormente que há produção analítica (ainda que não

seja majoritária) na qual as condições materiais da inserção do negro na sociedade de

classes e o protesto negro empreendido ao longo da formação do Estado-nação

brasileiro foram esmiuçados com o devido rigor por autores como Octávio Ianni (1962,

1978); Jacob Gorender (1978), Clóvis Moura (1959), Florestan Fernandes (2017

[1989]).

Gostaríamos de destacar a contribuição singular das últimas análises, pós-

UNESCO, de Florestan Fernandes no que tange a sua tentativa de trazer o negro para o

centro da análise nas suas últimas obras. Importante dizer que as últimas análises

sociológicas50 de Florestan Fernandes acerca do “problema do negro” divergem (em

alguma medida) dos achados do projeto UNESCO principalmente pela incorporação da

dialética marxista, evidenciando os limites do direito burguês.

Florestan Fernandes foi capaz de avançar, diferentemente de boa parte dos

intelectuais da sua geração, no sentido de denunciar os limites da crença na capacidade

do capitalismo em eliminar o racismo, realizando uma crítica mais substancial ao direito

burguês, à estrutura partidária e às representações políticas de modo geral

(FERNANDES, [1989] 2017). Entretanto, em nossa leitura, mesmo em suas últimas

análises, o autor parece não ter conseguido superar dois pontos cruciais.

O primeiro ponto em relação a análise que deposita no passado toda a

responsabilidade pela situação do negro nas sociedades capitalistas:

“[…] A nossa situação racial foi elaborada ao longo do desenvolvimento do

modo de produção escravista e da sociedade senhorial. Atentei logo o quanto

o passado moldara o presente […] escrevi um ensaio sobre o peso do

passado. É preciso extipar esse passado para que nos livremos dele […]”

(FERNANDES, [1989] 2017 p. 25)

A evocação do passado, em nossa concepção, ao mesmo tempo em que

estabelece o nexo histórico necessário para compreendermos a longevidade e

complexidade do racismo, a evocação de que é preciso “extipar esse passado” parece

minimizar como o capitalismo mantém atualmente a reprodução do racismo antinegro.

Como chamou atenção Ianni (1988):

50 Como o livro Significado do Protesto Negro de 1989.

80

“[...] é evidente que algumas situações cruciais passadas influíram de forma

decisiva na maneira de organização sócio-cultural das relações e ideologias

raciais. Mas todas as condições históricoculturais mais significativas

reaparecem nas situações concretas presentes. Podem ser reencontradas nos

riots, na atuação de partidos políticos de base racial, na violência guerrilheira.

São as relações político-econômicas, no entanto que, em última instância,

podem explicar a persistência e as transformações das situações de

antagonismo e conflito que se repetem em um e muitos países” (idem, p.

166).

A ênfase no passado pode acaba por desresponsabilizar a classe burguesa (e a

classe média) pela situação atual na qual se encontram os negros, pois:

“[…] No limite, a questão racial, em todas as suas implicações sociais,

políticas, econômicas, culturais e ideológicas, pode ser vista como uma

expressão e desenvolvimento fundamentais do que tem sido a dialética

escravo e senhor no curso da história do mundo moderno. Constitui um

ângulo particularmente crucial e fecundo do que têm sido os diferentes

desenvolvimentos da sociedade moderna, burguesa, capitalista; visto o

capitalismo como um modo de produção e processo civilizatório […]”

(IANNI, 2004, p. 26).

E o segundo ponto problemático diz respeito a não formulação por parte de

Florestan Fernandes de uma crítica radical à própria forma como o negro é concebido

por boa parte do pensamento social brasileiro, ora como “menos capaz”, ora como único

“redentor” dos males no qual se encontra, estando essa última abordagem presente nos

últimos escritos de Florestan.

Gostaríamos de problematizar um pouco sobre essa ênfase (na expectativa) do

protagonismo negro e como ela pode ser lida também como uma abordagem que beira a

certo tipo de paternalismo em relação ao negro e de certa essencialização daquele

enquanto único responsável por pautar o debate político sobre racismo na esfera

pública. Vejamos um trecho do livro O significado do protesto negro (2017 [1989]):

“[...] A raça se configura como pólvora no paiol [...] os intelectuais e os

militantes negros mais radicais já possuem a intuição desse fato provável. Por

isso, não retomaram os objetivos e os valores dos antigos movimentos negros

[...] na verdade, o chamado problema do negro [grifo do autor] vem a ser o

problema da viabilidade do Brasil como Nação [...] e, por isso, somente o

negro compreende a natureza do problema e tem condições psicológicas

para enfrentá-lo sem mistificações e de lutar por sua solução integral [grifo

nosso]. Penso que no momento, o que se configura com tarefa política central

do movimento negro diz respeito ao combate à ditadura e, por consequência,

ao caminho que esta escolheu para perpertuar-se indefinidamente, a

“abertura” que se autoproclama democrática mas fecha todos os espaços para

as igualdades elementares e para os direitos fundamentais dos cidadãos [...]

Goste ou não, queira ou não, o negro constitui uma das forças vitais da

revolução democrática e nacional. Ele está envolvido no processo universal

de combate a essa ditadura, á contrarrevolução que a levou ao poder e a

mantém nele; é preciso que se veja de modo claro no centro mesmo da

vanguarda que deve transformar o Brasil numa sociedade democrática. Se se

avança até essa posição [...] a nova temática do protesto negro se delineia

com firmeza. […] O que quer dizer que, por aí, várias tarefas políticas

81

fundamentais convergem para a capacidade de autoafirmação coletiva do

negro e do mulato. Se esta capacidade não se converte em dinamismo real a

sociedade brasileira se manterá bloqueada às transformações mais

profundas, construtivas e promissoras! [grifo nosso] Em seus flancos

aparecem outras duas questões candentes, que dizem respeito à herança

cultural e ao uso flexível da imaginação criadora” (p. 63-67).

O protagonismo como expectativa acerca do “outro” vira um fardo para o

homem negro. Como disse Fanon (1975 [1952]), não há “problema do negro” e se

existe, os brancos nele estão implicados (p. 43). Existe uma estrutura racializada no

mundo moderno que não foi inventada pelos negros e que é mantida para subalternizá-

lo com a legitimação de toda a sociedade. Em outras palavras, projetar a transformação

das forças materiais sobre única e exclusivamente responsabilidade dos negros, em

primeiro lugar, parece desresponsabilizar a branquidade sobre a condição subalternizada

sob a qual o negro se encontra (e é sobre esse aspecto que essa tese trata) e em segundo

lugar parece não dimensionar adequadamente o peso da estrutura capitalista.

A postura de grande parcela dos intelectuais que se propõe a pensar as relações

sociais, mesmo os mais progressistas, parece ainda fortemente atravessada por um tipo

de tutelagem dos movimentos negros onde, como afirmou a advogada e ativista negra,

Ana Flauzina “[...] cada passo dado na realidade por aqueles que buscam alternativas é

caricaturado como equivoco ingênuo ou irresponsável, nunca como o produto falho e

limitado de quem se dispõe ao enfrentamento” (cf. FREITAS, 2018, n.p.).

A produção da escola sociológica paulista acerca das relações sociais nos anos

50 produziu, em nossa análise, mais que uma virada na interpretação das relações

raciais no Brasil (MAIO, 1999; IANNI, 1966), lançou também as bases para a agenda

de pesquisas acerca do “problema do negro”. Nesse sentido, interessa-nos compreender

se há continuidades entre as ideias que circularam na década de 50 e as narrativas atuais

acerca da condição do negro. Por exemplo, ainda é possível encontrar a disseminação da

crença na democracia racial, na interpretação do negro como “problema” e na solução

pela via da assimilação? Há desdobramentos da narrativa da integração, no meio da

fração da classe média alta e branca brasileira? É possível encontrar evidências de que

aquelas ideias acomodaram-se no interior do pensamento social atual? Em processos

políticos como a adoção de cotas étnico- raciais, que tipo de imaginários, narrativas e

ideologias são acionados para defender ou opor-se aquele tipo de política? Nesse

sentido gostaríamos de fazer um primeiro exercício de análise das três primeiras

manifestações coletivas formais contrárias às políticas de ação afirmativa para com

reserva de vagas étnico-raciais nos anos de 2006, 2008 e 2012 para percebemos

82

continuidades (ou não) da narrativa nos anos 50 e os discursos da fração da classe média

abastada e branca acerca do negro.

Entre 2006 e 2012 foram apresentadas formalmente cinco Manifestações

dirigidas ao Congresso Nacional e ao STF referente às Políticas de ação afirmativa:

quatro referentes ao Estatuto da Igualdade Racial51 que faziam menção ao Projeto de

Lei PLC 180/2008 que dispunha sobre a reserva de 50% das vagas para estudantes da

rede pública de ensino no ingresso às Universidades Federais e nas Instituições Federais

de Ensino Técnico de nível médio e que incluía dentro dessa porcentagem, vagas

destinadas aos negros e indígenas e uma manifestação de 201252 especificamente sobre

a votação que ocorreria naquele ano quanto à inconstitucionalidade das cotas no STF.

Dentre essas cinco, três manifestações contrárias às políticas de ação afirmativa

com reserva de vagas étnico-raciais foram dirigidas ao Congresso e ao STF, antes das

decisões que: aprovaram o Estatuto da Igualdade Racial (2010), consideraram

constitucional em 2012 o Programa Universidade para Todos (PROUNI) assim como as

cotas étnico-raciais no ensino superior.

Os motivos apresentados pelos manifestantes e que os teria levado a elaboração

das três manifestações nos leva a uma primeira inquietação. Apesar de afirmarem nos

manifestos de 2006 e 2008 que aquelas cartas eram posicionamentos contrários “às leis

raciais” que incluiria, portanto, não apenas a Lei de Cotas, mas também ao Estatuto da

Igualdade Racial, ambas não chegam a discutir profundamente sobre os artigos do

Estatuto como, por exemplo, a obrigação das escolas de ensino fundamental e médio,

(públicas e privadas) a ensinar história geral da África e da população negra no Brasil

51 Aprovado em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial tem 65 artigos que abrangem medidas para

combater a desigualdade racial em diversas áreas como cultura, esporte, saúde, acesso a moradia,

liberdade religiosa e educação. O Estatuto conferiu legitimidade a Secretaria de Políticas de Promoção

da Igualdade Racial (SEPPIR) e institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir),

que permitiu organizar e articular ações de combate ao preconceito, racismo e discriminação em

conjunto com os estados e municípios. 52 Proposta em 21 de outubro de 2004 pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino–

(CONFENEN), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), tinha “por objeto a Medida Provisória nº

213, de 10 de setembro de 2004, que instituiu o Programa Universidade para Todos –PROUNI, programa

do governo federal que concede bolsas de estudos em universidades privadas a alunos egressos do ensino

médio da rede pública ou como bolsistas de escolas particulares”. A CONFENEN afirmava que a Medida

Provisória estabelecia discriminação entre os cidadãos brasileiros, violava a Constituição Federal mas o

ponto principal questionado era a isenção de impostos como contrapartida às instituições de ensino que

aderissem ao Programa, pois segundo a Confederação, o PROUNI “[...] compromete, também, a livre

iniciativa no âmbito das atividades de ensino, assegurada no art. 209 da CF [Constituição Federal] e, na

medida em que dá prioridade na distribuição dos recursos disponíveis do Financiamento ao Estudante do

Ensino Superior- FIES, às instituições que aderirem ao PROUNI, dispensa tratamento desigual a

instituições e alunos de quem retira o direito de obter financiamento oficial se pretender ingressar em

entidade que não tiver aderido ao Programa” (ADI nº 3330/DF, STF, 2005).

83

ou ainda sobre o estabelecimento de que os remanescentes de quilombolas teriam

direito ao reconhecimento de posse de terras. As duas manifestações detêm-se, na

maior parte dos documentos, a questionar a legitimidade das cotas étnico-raciais no

ensino superior e em menor medida as cotas nas políticas de acesso a cargos de

trabalho. Avancemos com a avaliação dos documentos.

O primeiro manifesto intitulava-se “Todos têm direitos iguais na República

Democrática” de 2006, já o segundo intitulava-se “Manifesto: Cento e treze cidadãos

anti-racistas contra as leis raciais” em 2008 e o terceiro “Manifestação conjunta ABC

[Academia Brasileira de Ciência] e SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência] sobre o PLC 180/2008 que obriga a adoção de quotas para ingresso em

universidades públicas e proíbe a realização de exames vestibulares” de 2012.

Nos três manifestos encontraremos o mesmo perfil dos manifestantes:

intelectuais e trabalhadores não-manuais, principalmente professores das universidades

públicas. O Manifesto “Todos têm direitos iguais na República Democrática”53 foi

entregue ao Congresso Nacional em junho de 2006. Contava com 114 pessoas

assinantes, dentre as quais, 97 eram trabalhadores não-manuais (jornalistas, poetas,

consultores de fundações de pesquisa e professores). Dentre os professores, 31 eram de

universidades federais, 25 de universidades estaduais e dentre esses, 12 eram

professores das universidades estaduais paulistas. Em relação à área de formação, das

pessoas manifestantes, 71 tinham concluído o ensino superior nas áreas de ciências

humanas como antropologia, ciências sociais, história e ciências sociais aplicadas como

economia54.

O “Manifesto: Cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais”, foi

elaborado e apresentado em 2008 ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, à época

Ministro Gilmar Mendes. No segundo parágrafo do Manifesto, encontramos a seguinte

afirmação:

“[...] Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas

dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimo-nos

respeitosamente aos Juízes da corte mais alta, que recebeu do povo

constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer

argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica

53 Vale dizer que o Manifesto também esteve (e está) disponível em alguns sites auto proclamados de

esquerda, como no site da Esquerda marxista- Corrente Marxista Internacional

(https://www.marxismo.org.br/content/todos-tem-direitos-iguais-na-republica-democratica/). 54 Para efeitos de classificação, optamos por seguir a classificação da Tabela das Áreas de Conhecimento

da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superio (CAPES). Disponível em:

http://fisio.icb.usp.br:4882/posgraduacao/bolsas/capesproex_bolsas/tabela_areas.html. Acesso em 16 de

novembro de 2018.

84

da República [...]” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as

leis raciais, Brasília, 30 de abril de 2008)

Apesar da referência aos “empresários e ativistas dos movimentos negros e

outros movimentos sociais”, tal como no Manifesto de 2006, o perfil majoritário do

Manifesto de 2008 é o mesmo: dos 113 assinantes da Carta, 81 eram professores e

pesquisadores e dentre os professores, 37 pertenciam ao quadro docente de

universidades federais e 18 às estaduais, sendo 16 professores das estaduais de São

Paulo. Dentre os professores, 41 pertenciam à área de ciências humanas como

antropologia, sociologia e história.

A Academia Brasileira de Ciência em 2012 contava com representantes de todas

as regiões55 do Brasil, totalizando 25 membros afiliados eleitos56. Já a Sociedade

Brasileira para o Progresso da Ciência está organizada em 31 órgãos57 oficiais em

âmbito nacional, totalizando 58 representantes de várias regiões do Brasil distribuídos

entre esses órgãos representativos.

O olhar atento ao perfil profissional do grupo (trabalhadores não-manuais) que

organiza os três manifestos contrários à reserva de vagas étnico-raciais oferece a

primeira oportunidade para começarmos a perceber à inserção desse grupo na divisão

capitalista do trabalho e os motivos pelos quais levaram a produção de três manifestos

contrários às cotas étnico-raciais. Mas por quais razões a fração da classe média

55 Segundo a classificação da própria ABC as regiões estão divididas em: Região Norte, Região Nordeste

& Espírito Santo, Região Minas Gerais & Centro-Oeste, Região Rio de Janeiro, Região São Paulo e

Região Sul. 56 Os membros dividem-se em: Membros Titulares (categorias vitalícias para cientistas radicados no

Brasil com destacada atuação científica), Membros Correspondentes (cientistas, de reconhecido mérito

científico, radicados no exterior há mais de 10 (dez) anos e que tenham prestado relevante colaboração ao

desenvolvimento da ciência no Brasil), Membros Afiliados (jovens pesquisadores de excelência, com

menos de 40 anos, que fazem parte dos quadros da ABC por um período de 5 anos, não renováveis e que

elegem até 5 Membros Afiliados para cada uma das regionais da ABC), Membros Colaboradores

(personalidades que tenham prestado relevantes serviços à ABC ou ao desenvolvimento científico

nacional) e Membros Institucionais (organizações interessadas no desenvolvimento da ciência e da

tecnologia, que se disponham a contribuir financeiramente). 57 Os órgãos são: Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, Comissão Nacional de

Biodiversidade, Comissão Nacional do Programa Cerrado Sustentável, Comitê Assessor da Política

Nacional de Educação Ambiental, Comitê Científico do Programa Amazon, Comitê de Popularização da

Ciência e Tecnologia, Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, Comitê Nacional de Zonas

úmidas, Comitê Orientador do Fundo Amazônia, Conselho Consultivo da Financiadora de Estudos e

Projetos, Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Conselho de

Administração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, Conselho de Administração do

Museu da Amazônia, Conselho de Gestão de Florestas Públicas, Conselho de Gestão do Patrimônio

Genético, Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Meio Ambiente, Conselho Diretor da Rede

Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais, Conselho Nacional de Controle de

Experimentação Animal, Conselho Nacional de Imigração, Conselho Nacional do Meio Ambiente,

Conselho Nacional de Política Cultural, Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas e Conselho

Nacional de Saúde.

85

abastada e intelectualizada estaria tão envolvida no debate nacional em torno das

políticas de ação afirmativa que começava a ganhar contornos já no início dos anos

2000?

Além do perfil dos assinantes, os três manifestos já apontavam para os principais

elementos discursivos que viriam mais tarde a serem insistentemente defendidos pelo

corpo docente das estaduais de São Paulo e que fornecem as primeiras evidências da

unidade ideológica que caracterizaria a atuação política da fração da classe média alta e

branca no debate sobre o PIMESP.

Agrupamos em três os argumentos principais presentes nos três manifestos: 1)

priorização de políticas universalistas, mas com foco no recorte de renda nas políticas

de democratização do acesso ao ensino superior com base no argumento de que não

existiriam desigualdades com base em raça (crença na democracia racial); 2) “receio” da

racialização das relações sociais (postura antirracialista) e; 3) crítica ao caráter

autoritário do processo que levou a elaboração da lei (defesa da autonomia

universitária).

O primeiro argumento diz respeito à crença na democracia racial expressa na

defesa de políticas ditas universalistas. Os três manifestos reconhecem que há

desigualdades sociais, mas no Manifesto de 2006 encontramos o reconhecimento de que

existem:

“privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da

igualdade política e jurídica”, entretanto o caminho para alcançar a igualdade

de fato é a continuidade das políticas universalistas, pois “[...] a verdade

amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à

exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade

nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de

empregos [...]” (Manifesto “Todos têm direitos iguais na República

Democrática, Brasília, 29/6/2006).

A “verdade” defendida pelos manifestantes de que o principal caminho para

resolver a exclusão dos negros da universidade (porque é disso que se tratava a PL em

tramitação) seria a “construção de serviços públicos universais” parece simplesmente

ignorar uma série de indicadores sociais e pesquisas que atestam a condição subalterna

dos negros, evidenciando como os mecanismos e políticas universais não tem

respondido a essa questão ao longo da história do Brasil. Tomemos como exemplo os

indicadores de trabalho e mais especificamente aqueles relativos às diferenças salariais

para o período no qual o Manifesto foi produzido e que apontam para a existência de

uma linha de cor entre o valor da hora-trabalho dos empregados.

86

Os dados sobre trabalho em 2005, por exemplo, indicam que mesmo com a

mesma quantidade de anos de estudos que os brancos, o rendimento-hora da população

negra ocupada era menor em todas as faixas de escolaridade, chegando a maior

diferença na faixa da população com ensino superior: enquanto brancos com ensino

superior tinha um rendimento-hora no valor de R$13, 70, o rendimento-hora dos negros

ocupados, com os mesmos anos de estudos era de R$10,30 (Síntese dos Indicadores

Sociais, PNAD, 2005).

A defesa das “supostas” políticas universalistas mantém-se no Manifesto de

2008, reafirmando que a “[...] pobreza no Brasil tem todas as cores [...], são diferenças

de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao

ensino superior [...]” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis

raciais, 2008). Entretanto, ao propor soluções para o problema da pobreza (que não teria

cor), os manifestantes apontam para necessidade de melhorar o ensino público,

principalmente nas periferias e favelas, pois “[...] o direcionamento prioritário de novos

recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os

tons de pele - e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram ‘pardos’ e

‘pretos’” (Idem).

A negação do racismo como estruturante das desigualdades e a recorrência a

melhorias universais para capacitar os “jovens de baixa renda” parece remeter às

soluções assimilacionistas que ocultam como a própria estrutura capitalista hierarquiza

o acesso à bens e riquezas informado pela lógica racial.

Curioso também notar que a própria concepção de política universalista presente

nos manifestos (principalmente o que foi entregue em 2008), relaciona a ideia de

universal à pobreza como se conceber políticas destinadas aos pobres ou com recorte de

renda não fosse em si uma medida que elege determinados beneficiários em detrimento

de outros que, por sua vez, não se enquadrariam no perfil dos destinatários eleitos pela

política como público-alvo.

Em relação ao argumento da “pobreza que não teria cor”, novamente os

indicadores sociais para aquele ano alertavam na direção contrária à dos assinantes do

Manifesto. Os dados da Pnad de 2008 contradizem a crença reivindicada como dado da

realidade pelos manifestantes, apontando para um processo que culmina no que

chamamos de “depuração racial” da frequência escolar que resultam na “[...]

desigualdade no acesso ao ensino superior entre brancos e negros: 20,5% dos jovens

87

brancos estão na universidade, enquanto a taxa para a população negra é de 7,7% [...]”

(IPEA, 2009, p. 18).

Estamos a chamar de “depuração racial” o processo que culmina na eliminação

da possibilidade real de acesso de negros ao ensino médio e superior onde:

“[…] 61,0% dos adolescentes brancos frequentam escola, taxa que na

população negra é de 42,2% [e quando se analisa renda e raça na

oportunidade de acesso ao ensino médio] dos jovens de cor negra, sejam do

1º quinto58 ou do 5º quinto, [eles] estão em desvantagem em relação aos

brancos” (ibidem).

Em outras palavras, mesmo entre os pobres, os negros, segundo os dados oficiais

das instituições de produção de dados sóciodemográficos do Estado, são mais afetados

pelos entraves no fluxo escolar do ensino fundamental e médio, resultando em altas

taxas de evasão e baixas taxas esperadas de conclusão, impedindo-os de acessar o

ensino superior.

A reinvindicação de que o foco das políticas de acesso aos serviços

principalmente ao ensino superior público deveria ser universalista esteve atrelada ao

enfoque na priorização de investimentos na melhoria do ensino básico, pois:

“[...] as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de

estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto

falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um

programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige

políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão

geral do ensino [...] A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um

ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à

universidade” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis

raciais, Brasília, 30/4/2008, p. 4).

Recorrer à melhoria do ensino básico como justificativa para negar ou colocar

como não prioridade a adoção de políticas de ação afirmativa com reserva de vagas

mascara a real função da escola pública no capitalismo. O ideal da escola única como

ideal propagado no fim do século XIX serviu na realidade para estabilizar as relações na

sociedade capitalista. O mito de uma Escola que fornecesse educação igual e de boa

qualidade para todas as classes sociais é mito porque ao criar a Escola Pública:

“[…] o Estado capitalista [...] tem de zelar para que o seu funcionamento

preencha as tarefas necessárias à reprodução da divisão capitalista do

trabalho: a) encaminhar uma minoria de alunos para os postos dirigentes

dentro dessa divisão [...]; b) encaminhar a maioria dos alunos para os postos

subalternos dentro dessa divisão [...]” (SAES, 2008, p. 169).

58 Os quintos correspondem ao rendimento mensal familiar per capita. O processo corresponde a “[...]

perfilar a população na faixa etária em foco, do mais pobre para o mais rico, de forma crescente, de

acordo com renda. Em seguida, reparte‐se a população em pedaços iguais – usualmente, utiliza‐se a

divisão em cinco partes que podem ser comparadas. O primeiro quinto é o mais pobre e o último quinto o

mais rico [...]” (Cf. IPEA, 2009, p.4).

88

Os manifestantes, a partir da caracterização do perfil que fizemos anteriormente,

fazem parte de uma minoria que na divisão capitalista do trabalho, desempenham

funções não-manuais e que, portanto como aponta Saes (2008) é essa classe que tinha

interesse:

“[na] construção de uma instituição educacional que articulasse

eficientemente ação diferenciadora e ideologia igualitária – niveladora como

um meio de melhorar a sua posição relativa dentro da estrutura social

capitalista [a classe média] Tal grupo social não poderia, porém, apostar que

a sua valorização econômica e social ocorreria de modo automático, pelo

simples fato de o trabalho no aparelho de serviços estar aparentemente mais

próximo do trabalho intelectual que do trabalho braçal. Foi por isso que ele se

envolveu concretamente na construção de uma instituição educacional que

deveria preencher simultaneamente duas funções. A primeira função seria a

de recompensar, em todos os níveis da atividade pedagógica, a superioridade

cultural dos alunos de classe média diante dos alunos proletários. A segunda

função seria a de apresentar o desempenho escolar superior dos alunos de

classe média, não como decorrência de sua superioridade cultural

(relacionada, em última instância, com a sua superioridade econômica), e sim

como a pura expressão do seu mérito pessoal. Não foi, portanto, a burguesia,

supostamente movida por um hipotético interesse em qualificar minimamente

o trabalhador manual, que moldou a Escola Pública. A montagem da Escola

Pública como uma instituição educacional articuladora de uma ação

diferenciadora e de uma ideologia igualitária-niveladora foi dirigida pelos

agentes ideológicos e políticos da classe média, como a burocracia estatal e

os partidos de orientação reformista” (SAES, 2008, p. 170).

Nesse sentido, a reivindicação dos manifestantes reforça a essência do Estado

capitalista como representante dos interesses de todas as classes e no caso da política

educacional, os manifestantes reforçam a narrativa do ensino público como garantia da

igualdade de oportunidades a todos, independente de classe e raça. Assim, o apego dos

manifestantes à defesa da escola pública de qualidade está interligado ao fato de a

escola pública ser “uma das únicas instituições da sociedade capitalista que pode ser

apresentada de modo convincente às classes populares como instrumento privilegiado

da construção da ‘sociedade aberta’, onde todos terão chances de chegar ao topo, desde

que se mostrem capazes” (SAES, 2008, p.170), beneficiando a manutenção do lugar da

classe média na divisão social do trabalho.

O segundo argumento diz respeito à defesa do apagamento de qualquer

referencial da terminologia de raça e racismo, reduzindo o antirracismo ao

antirracialismo expressa no “receio” dos manifestantes de que as cotas iriam dar vazão à

“[...] fabricação de ‘raças oficiais’ e a distribuição seletiva de privilégios segundo

rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com

89

seu cortejo de rancores e ódios” (Manifesto: Cento e treze cidadãos antirracistas contra

as leis raciais, Brasília, 30/4/2008).

A justificativa de que as políticas de ação afirmativa com reserva de vagas para

negros e indígenas viriam a criar cisões na “harmônica sociedade brasileira” esteve nas

justificativas que embasaram as manifestações de 2006 e 2008:

“[...] O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação

racial oficial dos cidadãos brasileiros [...] Se forem aprovados, a nação

brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da

sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas tentativas

[...] cotas raciais [...] Transformam classificações estatísticas gerais (como as

do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade

de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e

regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em

nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir

o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o

acirramento do conflito e da intolerância [...] A invenção de raças oficiais tem

tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos

históricos e contemporâneos” (Manifesto “Todos têm direitos iguais na

República Democrática”, Brasília, 29/6/2006).

“[...] As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de

escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do

Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas

de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma

desigualdade “natural” num meio caracterizado pela igualdade social [...] As

leis de cotas raciais [...] apenas selecionam “vencedores” e “perdedores”,

com base num critério altamente subjetivo e intrinsecamente injusto, abrindo

cicatrizes profundas na personalidade dos jovens [...] O que nos mobiliza [é]

a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no

país [...] a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um

empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo

que nos explicam os cientistas. Raças humanas não existem (Manifesto:

Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais, Brasília, 30/4/2008,

p.2).

Abdias do Nascimento (2017 [1978]), ao analisar o pensamento social brasileiro

da década de 70 e o papel dos centros de estudos africanos e intelectuais brasileiros na

disseminação do mito da democracia racial, já apontava para a postura antirracialista da

intelectualidade brasileira e o seu “jogo artificial de palavras”:

“Contudo, Mourão59 omite, na sua alegação sobre “integração plural”, a

realidade histórica de onde as culturas africanas se “impuseram” foi na

conquista do lugar, dentro do contexto brasileiro, de cultura perseguida de

um povo marginalizado. Além desse preconceito inicial, a mais evidente

característica do trabalho de Mourão é sua consistente a angustiosa fuga da

questão racial. Tenta confirmar a persistência no Brasil de traços culturais

pertencentes à África, os quais “vieram a se destacar aparte de qualquer

característica racial” (p. 14). Noutras palavras, esta cultura foi trazida para o

Brasil não pelos negros africanos, mas por um ser abstrato, talvez aquele

59 Fernando A. A. Mourão, vice-diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo na

década de 70. A crítica de Abdias do Nascimento é referente ao artigo “The cultural Presence of Africa

and the Dinamics of the sociocultural Process in Brazil” publicado por Mourão e apresentado no

Colóquio do Festac 77.

90

desraçado da metarraça inventada por Gilberto Freyre [...] no intuito de

evitar mencionar a raça ou “linha de cor”, todo o processo é levado a um

nível tão abstrato e intangível a ponto de perder qualquer relação com a vida

real dos afro-brasileiros [...] situa-se nessa persistente evasão, como se raça

fosse um tabu, da questão das relações humanas entre pretos e brancos, entre

africanos e europeus, o aparente objetivo de tais centros impropriamente

chamados de estudos africanos. A construção intelectual elaborada tanto no

centro da Bahia quanto no de São Paulo [...] não passa de autoglorificadas

evasões dos problemas reais e imediatos de cerca de sessenta milhões de

afro-brasileiros. Enquanto tais centros não oferecem justificação objetiva para

qualquer alegação de que as relações de raça no Brasil são as ideais [...], eles

estão apenas mantendo um jogo artificial de raciocínio e de palavras na

tentativa frustrada de obnubilar o dilema racial do país, dirigindo a atenção de

estudantes e estudiosos para outras questões mais esotéricas e menos

controversas (idem, p. 120-121)

A ideologia da classe média é marcada profundamente pelo entendimento do

antirracialismo como substituto da luta antirracista e o conflito em torno das políticas de

ação afirmativa evidenciou esse entendimento. O Manifesto de 2008 demora-se

longamente com o artigo “Receita para uma humanidade desracializada” (Ciência Hoje

Online, setembro de 2006) do geneticista Sérgio Pena (um dos intelectuais que também

assinou a Carta de 2008) enfatizando a falácia em torno da raça em termos biológicos. A

ênfase na perspectiva biológica dissimula a existência da estrutura social racista. No

Manifesto há uma longa incursão quanto à relação entre raça e racismo, mas para no fim

concluir que apenas outros países como “África do Sul, Quênia, Ruanda, Estados

Unidos” de fato implantaram uma organização social e jurídica com base na ideia de

raça:

“[...] O “racismo científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial

européia na África e na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação

da ideologia da “missão civilizatória” dos europeus, que foi expressa

celebremente como o “fardo do homem branco”. Os poderes coloniais, para

separar na lei os colonizadores dos nativos, distinguiram também os nativos

entre si e inscreveram essas distinções nos censos. A distribuição de

privilégios segundo critérios etno-raciais inculcou a raça nas consciências e

na vida política, semeando tensões e gestando conflitos que ainda perduram.

Na África do Sul, o sistema do apartheid separou os brancos dos demais e foi

adiante, na sua lógica implacável, fragmentando todos os “não-brancos” em

grupos étnicos cuidadosamente delimitados. Em Ruanda, no Quênia e em

tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a meticulosas

classificações étnicas, que determinaram acessos diferenciados aos serviços e

empregos públicos. A produção política da raça é um ato político que não

demanda diferenças de cor da pele. O racismo contamina profundamente as

sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado

grupo racial - e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência

de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas

raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais

baseadas na regra da “gota de sangue única”. Essa regra, que é a negação da

mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos

legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são,

irrevogavelmente, “brancas” ou “negras”. Eis aí a inspiração das leis de cotas

91

raciais no Brasil” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as

leis raciais, Brasília, 30/4/2008, p.2-3)

O discurso oficial que atravessa todas as manifestações está perpassado por um

imaginário civilizatório eurocêntrico pautado em uma crença de que a consciência

moderna ocidental é liberal, antidogmática e afeita ao pluralismo religioso como faz

alusão o Manifesto de 2008 ao defender que “[...] Queremos um Brasil onde seus

cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma

cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar

uma única ancestralidade em detrimento das outras” (idem, p.2).

O Brasil essencialmente harmonioso e aberto a todos os credos vem sendo

denunciado como falacioso no meio acadêmico pelo menos desde a década de 70,

quando no livro O genocídio do negro brasileiro de 1978, Abdias do Nascimento

analisava acerca da “perseguida persistência da cultura africana no Brasil” que “[...] tem

sido perigosamente manipulada por estudiosos para servir como ‘demonstração’ da

essência não racista e ‘harmoniosa da civilização brasileira [...]” quando na realidade,

não fosse a capacidade de ‘infiltrar-se’, de continuar existindo na marginalidade e

resistindo mesmo sob o controle da polícia (no caso dos terreiros de candomblé que até

os anos 70 tinham de ser registrados na polícia) e das autoridades locais (os terreiros

tinham de pagar taxas de licença para o funcionamento), as manifestações de matriz

africana não teriam conseguido sobreviver (NASCIMENTO, 2016, p. 129), o que para

nós deixa evidente que:

[...] O conceito da benevolente cultura branco-europeia ‘aceitando sem

distinção’ as ‘infiltrações’ africanas está historicamente falando de uma

construção extremamente artificial. A sociedade dominante no Brasil

praticamente destruiu as populações indígenas […] essa mesma sociedade

está às vésperas de completar o esmagamento dos descendentes de africanos.

As técnicas usadas têm sido diversas, conforme as circunstâncias, variando

desde o mero uso das armas, às manipulações indiretas e sutis que uma hora

se chama assimilação, outra hora aculturação ou miscigenação; outras vezes é

o apelo à unidade nacional, à ação civilizadora, e assim por diante […]. Com

todo esse cortejo genocida aos olhos de quem quiser ver, ainda há quem se

intitule de cientista social e passe à sociedade brasileira atestados de

‘tolerância’, ‘benevolência’, ‘democracia racial’ […]”(idem, p. 131).

É desalentador constatar a atualidade de um livro, escrito nos anos 70, que

analisava a relação entre a condição do negro e a narrativa (silenciadora frente aquela

condição) dos intelectuais brasileiros e defrontar-se com sua atualidade dada a presença

e a força da ideia de uma nação “porosa a todas as influências”, isto é, não-racista que

continua vigorosa entre uma fração da classe média abastada e intelectualizada. A

92

persistência dessa postura negacionista em relação a existência do racimo contra o negro

deve ser entendida como condizente com a consciência da Modernidade ocidental pós-

holocausto (refletida na missão de diversos organismos criados no período entre guerras

como vimos no caso da UNESCO) concebendo-se a si mesma como naturalmente

secular, racional e tolerante frente à diversidade (principalmente a religiosa) onde a

razão e liberdade de pensamento imperariam segundo a própria imagem que criaram

sobre si (MALDONADO-TORRES, 2016).

O receio, ainda que não explicitamente nomeado do “perigo da degeneração” da

universidade trazido com a possibilidade de ingressos de negros e indígenas também

esteve presente no Manifesto de 2012. Para a ABC e a SBPC o “acesso dos brasileiros à

educação superior é tão importante quanto o grau de excelência desta educação” (Cf.,

ABC e SBPC, 2012).

A preocupação dos manifestantes residia da proposta da lei inicial prever que os

cotistas seriam selecionados “tendo como base o Coeficiente de Rendimento (CR),

obtido por meio de média aritmética das notas ou menções obtidas no período,

considerando-se o currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação”

(BRASIL, 2012). Apesar da PL fazer menção à manutenção da meritocracia, vide a

existência de um critério seletivo, baseado no CR dos cotistas, os manifestantes viram-

se pertubados com a possibilidade do “consagrado vestibular” deixar de ser o único

mecanismo de seleção para a entrada na universidade. Em nossa leitura essa

“pertubação” confirma não apenas a defesa da meritocracia, mas a imaculação de

determinados métodos de seleção pela classe média, métodos que devem ser

controlados diretamente pela fração de classe média ligada às universidades.

O terceiro argumento, o relativo à autonomia universitária, ganha grande

destaque nesse último Manifesto:

“[…] Consideramos que ao mesmo tempo em que o Brasil precisa criar

condições mais inclusivas para o acesso à universidade, o País também

precisa aumentar a qualidade dos cursos de ensino superior oferecidos em

instituições públicas e privadas […] Um dos mais importantes instrumentos

para se atingir estes objetivos no ensino superior é a ‘autonomia didático-

científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial universitária’,

garantida pelo Artigo 207 da Carta Magna brasileira […] A atitude das

instituições de ensino superior públicas brasileiras quanto às ações

afirmativas tem demonstrado o enorme interesse e a criatividade destas

organizações no tratamento do importante desafio da inclusão. Diferentes

propostas de ações afirmativas, adequadas a cada cultura institucional e

regional têm sido adotadas e é nosso entender que não se deve ceifar este

movimento com uma obrigação uniforme e atentatória à autonomia

universitária” (ABC e SBPC, 2012).

93

Dado a grande polêmica gerada pela Manifestação de 2012, em 27 de julho a

SBPC- dessa vez, desacompanhada da ABC, lança uma nota intitulada “Nota de

Esclarecimento – SBPC” onde reitera sua posição de que as ações afirmativas não

devem estar acima da autonomia das universidades e de que o motivo da Manifestação

diz respeito apenas a preocupação com a qualidade da educação e o respeito à

autonomia universitária:

“A SBPC sempre foi favorável a programas de ação afirmativa, e lembra que

as instituições públicas de ensino superior do país já vêm adotando essas

ações por meio de diferentes modelos adequados à realidade de cada uma

delas. Não procede, portanto, a afirmação de que a SBPC é contra as cotas

nas universidades públicas. O que nos preocupa é o Projeto de Lei nº

180/2008, que está para ser votado no Senado Federal, e que fere autonomia

universitária. O referido PL determina a reserva de metade das vagas nas

instituições de ensino superior públicas para estudantes oriundos do ensino

médio em escolas públicas. Além disso, em seu artigo 2º, proíbe a realização

de exames vestibulares ou o uso do Enem, obrigando que o processo seletivo

adote exclusivamente a média das notas obtidas pelos candidatos nas

disciplinas cursadas no ensino médio. Dessa maneira, o ingresso no ensino

superior deixa de ser responsabilidade da universidade e passa a ser

subordinado aos critérios de cada escola, o que pode levar à queda na

qualidade da educação superior no Brasil. A universidade deixa de opinar

sobre o perfil do seu estudante [...]” (SBPC, 2012).

Além de ignoraram o trecho do projeto que afirmava que “considerando-se o

currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação” (BRASIL, 2012),

onde as referidas instituições poderiam aportar considerações acerca do referido

currículo, convertendo-se numa excelente oportunidade para as instituições, intervirem

na educação básica pública, propondo, por exemplo, um currículo mais adequado,

segundo os critérios que lhes parecessem mais apropriados, fato é que na primeira

Manifestação a menção ao artigo 2º (que trata da forma de ingresso) do Projeto de Lei

(PL) é acompanhado da menção ao Artigo 3º da PL que dizia respeito à determinação de

que:

“[...] essas vagas, em cada curso e turno, sejam destinadas a candidatos

autodeclarados pretos, pardos e indígenas, no mínimo igual à proporção de

pretos, pardos e indígenas, na população da Unidade da Federação onde está

instalada a instituição [...]” (ABC e SBPC, 2012).

Em nosso entendimento o fato dos dois artigos terem aparecidos juntos na

Manifestação e terem sido alvos de crítica em conjunto, significava que os

manifestantes estavam a opor-se também à reserva de vagas étnico-raciais. Importante

dizer que em agosto de 2012 o Governo Federal recuou e vetou o artigo 2º.

O recuo do governo quanto à tentativa de repensar outras formas de entrada dos

estudantes nas universidades públicas, sinaliza o papel ativo da fração da classe média

94

branca e abastada no conflito em torno das cotas e a força da narrativa meritocrática

nesse conflito. Entretanto, válido dizer que, ainda que o Governo Federal tenha optado

por não fazer o enfrentamento nesse ponto, outras ações do governo buscaram fomentar

a adoção da política de cotas por meio de incentivos institucionais, como bolsas de

pesquisa e auxílio financeiro, recursos extras para as universidades implementadoras da

Política de cotas assim como apoio a projetos de lei que regulamentassem a Lei de

Cotas nos estados (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2011; LIMA, 2010).

A rapidez no processo da adoção da modalidade das cotas pelas universidades

federais brasileiras revela, por um lado, a existência de alguma heterogeneidade de

posicionamentos no interior da classe média (o que não significa rompimento total com

a ideologia que confere unidade a essa classe) quanto às Políticas de ação afirmativa, e

por outro lado o peso dos estímulos institucionais nos processos de implementação de

políticas públicas. Isso porque diferentemente do que ocorreu nas universidades

estaduais, as universidades federais tiveram que aderir às cotas étnico-raciais, por

determinação da Lei Federal nº 12.711/2012, porém mais que isso: o Governo Federal

(à época comandado pelo Partido dos Trabalhadores), condicionou a destinação de

recursos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais (Reuni) para as instituições federais à adesão daquelas às ações

afirmativas (FERES JÚNIOR et al, 2013).

Os estímulos do Governo Federal podem explicar porque mesmo diante da

presença significativa de professores de universidades federais nos três Manifestos,

ocorreu certa rapidez na implementação da modalidade de reserva de vagas nos

vestibulares das universidades federais mesmo quando a Lei de Cotas determinava que

as universidades federais tivessem até quatro anos para atingir os 50% do total de vagas.

Na esteira da argumentação contrária às cotas étnico-raciais e ao vestibular,

avancemos para o argumento central levantado pela ABC e pela SBPC que ao se

posicionarem contra a Lei de Cotas federal, referiam que aquela atentava contra a

autonomia universitária:

“[...] Um dos mais importantes instrumentos para se atingir estes objetivos no

ensino superior é a “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão

financeira e patrimonial universitária [...] Faz parte da autonomia didático-

científica a definição pela universidade da sistemática para a seleção dos

estudantes ingressantes [...] A atitude das instituições de ensino superior

públicas brasileiras quanto às ações afirmativas tem demonstrado o enorme

interesse e a criatividade destas organizações no tratamento do importante

desafio da inclusão. Diferentes propostas de ações afirmativas, adequadas a

cada cultura institucional e regional têm sido adotadas e é nosso entender que

95

não se deve ceifar este movimento com uma obrigação uniforme e atentatória

à autonomia universitária” (ABC e SBPC, 2012).

Diferentemente dos outros dois primeiros manifestos, onde a autonomia

universitária não foi referida, nesse último a reivindicação pela autonomia confunde-se

com certo interesse pela gestão e controle da diversidade- negra e indígena- que irá

adentrar nas universidades com o estabelecimento da Lei de Cotas. Ou seja, a posição

dos docentes parece sair do rechaço total das políticas afirmativas a uma adesão

condicionada ao controle dos docentes no desenho da política. Podemos especular que

essa mudança na linha discursiva foi resultado da constatação da fração da classe média

branca de que não se poderia mais conter a grande mobilização do movimento negro

que pressionava gestores das universidades e câmaras estaduais a adotarem políticas de

ação afirmativa (FERES Jr. et al 2013a; GUIMARÃES A.S.A., 2007; PAIVA &

ALMEIDA, 2010) e talvez por essa razão tenha resolvido recorrer a justificativa da

autonomia universitária como modo de fazer valer seus interesses.

Nesse contexto a autonomia universitária, em nosso entendimento, acabou por

ser mobilizada pela fração da classe média branca de forma autoritária ao longo do

conflito, vindo a tornar evidente como funciona o racismo institucional onde:

“[…] decisions are handed down directly or through a process of “indirect

rule.” Politically, decisions which affect black lives have always been made

by white people—the “white power structure.” […] When faced with

demands from black people, the multi-faction whites unite and present a

common front […] Again, the white groups tend to view their interests in a

particularly united, solidified way when confronted with blacks making

demands which are seen as threatening to vested interests. The whites react

in a united group to protect interests they perceive to be theirs—interests

possessed to the exclusion of those who, for varying reasons, are outside the

group. […] In much the same way, present-day vested political, economic

and social privileges and rights tend to be rationalized and defended by

persons and groups who hold such prerogatives” (TURE & HAMILTON,

1992, [1967], p. 21-22).

Frente às desmistificações que o movimento negro realizou ao longo do processo

na articulação com assembleias legislativas junto com a colaboração de pesquisadores

na área de políticas de ação afirmativa, apresentando dados da realidade tanto em

relação às experiências de programas de ação afirmativa como em relação aos dados das

desigualdades no Brasil, recorrer a autonomia pareceu ser a última estratégia,

empregada no contexto em que já não existia mais argumentos para se opor à

necessidade da adoção da modalidade de ação afirmativa com reserva de vagas,

restando apenas apelar à afirmação de que a Lei de Cotas “não olha os princípios da

autonomia universitária de decidir, individualmente, seu próprio modelo de cotas. Os

96

estados brasileiros são diversos, há especificidades que não são contempladas no

projeto”, segundo o ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes de

Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Carlos Maneschy (cf. CAZES, L. &

AVELLAR, S., 2012).

Na mesma entrevista o ex-presidente da Andifes não cita quais seriam

exatamente as especificidades, mas os dados relativos à proporção entre o perfil racial

das pessoas com nível superior em 2012 e os segmentos populacionais em cada estado

apontavam para a subrepresentação de negros e indígenas, inclusive na Universidade

Federal do Pará (UFPA), onde o ex-presidente era reitor. As cotas com reserva de vagas

para indígenas na UFPA foram implementadas como fruto da luta que os povos

indígenas vinham travando com a burocracia educacional da referida na universidade

desde 2008, tendo conseguido implementá-las apenas em 2010 (BRITO FILHO &

MAUÉS, 2013).

O fim que justifica a “preocupação” com princípio da autonomia universitária

nesse contexto de conflito, isto é, a “preocupação” com a garantia da excelência que por

sua vez, é colocada apenas como possível a partir da existência do vestibular, dissimula,

em primeiro lugar a proteção dos privilégios pela naturalização dos processos de seleção

correntes nas universidades e em segundo lugar nega ou pelo menos questiona as

potencialidades e capacidades dos beneficiários das políticas de ação afirmativa.

Para além da descolonização do saber, isto é, de uma “disputa acadêmica em

torno do entendimento de ciência e de política” (GOSS, 2009, p. 114) e do “[…]

controle da produção de conhecimento sobre os negros ou da questão racial no Brasil

[com vistas à] descolonização intelectual” (SALES, 2008, p.497), a análise dos três

manifestos com assinantes de todo o Brasil que partilham de um perfil e, portanto,

permite agrupá-los como pertencentes a uma fração da classe média intelectualizada,

possibilita vislumbrar que os motivos pelos quais a classe média no estado de São Paulo

viria mais tarde a debater-se em torno da possibilidade de adoção das cotas não seria um

posicionamento isolado, mas um posicionamento circunscrito na ação política da fração

da classe média abastada e branca brasileira.

As três manifestações apresentadas formalmente às instâncias jurídicas

representantivas do País só pode ser entendida como uma ação política da classe média

na medida em que frente à iminência da instituição das Políticas de ação afirmativa, a

classe média avistou a possibilidade de que aquelas políticas causariam fissuras na base

97

de sustentação ideológica- igualitarismo abstrato e da meritocracia, que naturaliza ao

mesmo tempo em que garante a reprodução daquela fração da classe média.

O Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas foram finalmente aprovados entre

2010 e 2012 mesmo em meio às manifestações contrárias. Entretanto, a aprovação do

texto final de ambos, além de escancarar os dilemas enfrentados pelo movimento negro

acerca dos limites do alinhamento com determinados organismos de cooperação (como

a UNESCO) e dos limites dos avanços da luta antirracista no sistema capitalista, revela

os contornos da persistência do entendimento do racismo circunscrito em certa

narrativa que toma o holocausto e o regime nazista como marco referencial do que

seria de fato racismo, limitando a gramática antirracista e as próprias soluções para o

enfrentamento ao mundo anti-negro. Com mundo anti-negro, estamos nos referindo à

díade negro/não-negro que é a base na qual entendemos que o mundo moderno está

assentada e:

[…] que fundamenta o conceito da antinegritude, [e que] é mais precisa que

a díade tradicional branco/não branco. De acordo com a díade branco/não-

branco, ser branco (e ocidental, cisnormativo homem, heteropatriarcal e de

posse) é a encarnação paradigmática da Humanidade. Essa díade condensa

os princípios da supremacia branca – a hierarquização da espécie humana na

qual o ser branco (e homem) é a referência máxima de poder, inteligência,

moralidade, e estética. Nessa hierarquia, o ser negro é o ser menor”

(VARGAS , 2017, p. 85).

A forma como foi aprovada a Lei de cotas e do Estatuto foi alvo de intensas

críticas por parcela do Movimento Negro que viram no texto final aprovado o

esvaziamento da radicalidade presente na proposta original. Em relação ao Estatuto,

diversas modificações foram feitas como a retirada dos termos “reparação” e

“compensação” (apesar do verbo ‘reparar’ ter se mantido), a ênfase no uso da

“inclusão” e a retirada do termo “valorização da diversidade racial” para inclusão do

termo “valorização da igualdade étnica”:

“[...] Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a

garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a

defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à

discriminação e às demais formas de intolerância étnica [...] V - eliminação

dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a

representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada [...] VII -

implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento

das desigualdades étnicas [...] Parágrafo único. Os programas de ação

afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as

distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias

adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação

social do País [...]CAPÍTULO V: DO TRABALHO [...] Art. 42. O Poder

Executivo federal poderá implementar critérios para provimento de cargos

em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação de

98

negros, buscando reproduzir a estrutura da distribuição étnica nacional ou,

quando for o caso, estadual, observados os dados demográficos oficiais [...]

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial

(Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à

implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as

desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público

federal” (cf. BRASIL, 2012b).

A substituição de termos como “raça” pelo termo “etnia”, e “diferenças raciais”

por “diferenças étnicas” no artigo que tratava de educação em alguns pontos do

documento revelam como o recurso à terminologia étnico, por exemplo, além de evadir-

se do debate sobre raça, também acaba por retomar uma categorização de indivíduos

que são divididos entre os nacionais que estão acima da etnicidade e os não-nacionais

(incluídos na categoria étnico), relegando a esses últimos uma condição na qual sua

existência nacional ou sua existência na ordem moderno-ocidental é constantemente

questionada, marcada, sinalizada (MALDONADO-TORRES, 2016).

A retirada do termo “desigualdades raciais” para a inclusão em seu lugar do

termo “desigualdades sociais” nos informa acerca da reprodução das narrativas oficiais

que não reconhecem a existência da estrutura racista que organiza as relações de poder

(OLIVEIRA S.P., 2013). A reprodução da narrativa da negação da existência do

racismo nos revela ainda a relação entre a compreensão do Estado brasileiro e a

concepção eurocêntrica de racismo, como analisa Hesse (2004):

“[...] In relation to the idea of human rights racism has long been defined

primarily in Eurocentric terms. This is so not only where colonialism and

liberalism are seen as no longer central to shaping the experience of racism in

the West, but also because whatever passes for racism has been traditionally

depicted as a codified ideology rather than a routine social practice. The

Eurocentric concept of racism universalizes the particularity of a distinctive

western liberal concern with racialized fascism and obscures the cultural

relation between liberalism, colonialism and racism. Its Eurocentrism, in

forming the basis of hegemonic template [...] has led in the direction of

combating and researching racism in terms of ideology and exceptionalism

[...] The later variously includes the pseudo-scientific ideas of race, racial

discrimination, racial segregation, extremist nationalist ideology and racial

state, all of which are generally associated with illiberalism, especially

fascism [...] that is to say, outside the legitimacy of western hegemony” (p.

138).

A troca dos termos, longe de uma mera negociação linguística, é antes de

qualquer coisa uma estratégia para afastar da legislação e das políticas públicas o

fantasma da raça e do racismo- apenas possíveis em regimes excepcionais, ao mesmo

tempo em que reduz a luta antirracista ao antirracialismo (GOLDBERG, 2004, p. 211).

É como se o apagamento da palavra raça das legislações e políticas fosse em si capaz de

dar cabo do racismo.

99

O foco no “combate à intolerância” dá o tom geral do documento e parece

evidenciar o entendimento de antirracismo que perpassa o Estatuto- e o Estado

brasileiro. O enfrentamento ao racismo fundamentado na ideia de tolerância é

contraditório na medida em que o próprio significado de tolerância60 e a apropriação

política do termo sinalizam a interelação entre a posição do Estado e a legitimação

institucional do silenciamento acerca do racismo e da narrativa da preocupação com a

unidade mesmo com a presença dos toleráveis na nação brasileira.

O uso do conceito de tolerância como discurso oficial revela a reprodução da

manutenção dos lugares de poder na medida em que contribui para manter a narrativa da

hierarquia entre as ditas “maiorias” e “minorias”, criando e regulando a hierarquia em

torno de quem tolera e quem é passível de ser tolerado a partir da concepção ocidental

de universalidade (BROWN, 2014). Nesse sentido, a tolerância é um instrumento dos

governos ocidentais e um discurso de poder que legitima a supremacia branca ocidental

e a violência do Estado, já que a contínua reprodução do antirracismo como um

“problema de tolerância” repoduz a naturalização da divisão social entre dominantes (os

que toleram) e dominados (os que são tolerados).

O texto final do Estatuto da Igualdade Racial, além de nos informar sobre os

processos de dispustas pela enunciação do “problema do negro” e sua solução,

evidenciam com todo o processo de substituição de termos e inclusão de termos

genéricos, os entraves da luta antirracista na arena estatal. E nesse ponto nos

defrontamos novamente com o embate entre movimento negro e Estado: de um lado a

denúncia da existência do racismo enquanto estruturante das relações e de outro a

obstinação pela “desracialização” que chega ao limite de uma esquizofrenia fomentada

no e pelo Estado brasileiro, mesmo quando tivemos governos mais “sensíveis” às

demandas do movimento negro, como foi o período no qual o Estatuto foi aprovado.

Em relação à Lei de Cotas, o texto aprovado regulamentou que as cotas étnico-

raciais estariam dentro das vagas das cotas para estudantes de escola pública e a

porcentagem a ser reservada dependeria da proporção de autodeclarados pretos, pardos

e indígenas na proporção da unidade da federação onde está instalada a instituição (Lei

60 Segundo o dicionário Aurélio (2014), tolerência é qualidade do que é tolerante. Ato ou efeito de tolerar.

Tolerante adj. Que tolera. Dotado de tolerância. Indulgente. Que desculpa certas faltas ou erros. Que

admitte ou respeita opiniões contrárias a sua. (Lat. tolerans) tolerantismo. Opinião dos que defendem a

tolerância religiosa. Sistema dos que entendem que se devem tolerar num Estado todas as espécies de

religiões. (De tolerante) tolerar v. t. Ser indulgente para com. Consentir tacitamente. Supportar. (Lat.

tolerare) tolerável adj. Que se pode tolerar; sofrível. Que não tem grandes defeitos. Merecedor de

indulgência. (Do lat. tolerabilis).

100

12. 711 de 2012). Embora a proposta final da Lei tenha ido ao sentido contrário do que

estava a ocorrer nas universidades federais e estaduais (em 2011, eram 39 universidades

públicas com sistema de cotas raciais, isto é, sem dependência entre autodeclarados

pretos e pardos e egressos de escola pública), o condicionamento entre escola pública

(classe) e autodeclarados pretos e pardos (raça) pode indicar que o Estado estava atento

à potencialidade da articulação entre classe e raça em relação a alcance da política.

O debate até aqui buscou situar as justificativas empregadas nos manifestos

contrários à implementação das políticas de ação afirmativa, em estreito diálogo com

uma extensa produção, principalmente advinda das ciências sociais dos anos 50 e em

estreita articulação com o projeto UNESCO. Nesse sentido, interessa-nos analisar, de

modo um pouco mais ampliado, a produção analítica sobre as políticas de ação

afirmativa e de que forma a disputa política que alavancava o debate no início dos anos

2000 esteve (ou não) contemplada naquelas análises.

As políticas afirmativas sob o olhar do pensamento social brasileiro

De modo geral as análises sobre as políticas de ação afirmativa no contexto

nacional ainda permanecem muito pautadas por certa crença no aparato jurídico-

burguês, por certa ausência de crítica mais consolidada sobre a própria concepção de

ação afirmativa no contexto capitalista, mas principalmente no inadequado

dimensionamento da relação entre classe e raça e as disputas resultantes desse encontro.

Dito isto, para fins de visão geral, resolvemos agrupar as obras de referência no assunto

por afinidades argumentativas e referenciais teóricos compartilhados. Situar a discussão

em torno do tema das ações afirmativas é fundamental para entendermos a produção das

ciências sociais acerca desse debate que, como veremos, de modo geral, ainda não

reconhece a potencialidade analítica da articulação entre classe e raça para compreender

a dinâmica que reitera a desigualdade racial no Brasil.

A despeito das divergências entre as explicações e das nuances argumentativas

das obras analisadas no presente tópico, acreditamos que elas não impedem que

façamos um exercício analítico de categorizá-las em eixos principais. Assim,

entendemos que atualmente as linhas argumentativas do debate sobre cotas étnico-

raciais podem ser agrupadas em três tendências analíticas principais: natureza e a

evolução da cidadania no capitalismo; multiculturalismo e comunitarismo; e, por fim, o

enfoque de classe debatido no interior do pensamento marxista.

101

Reconhecemos que a sistematização proposta no presente estudo é, obviamente,

reducionista (e em alguma medida arbitrária) considerando que alguns aspectos teóricos

são partilhados por autores que por ora classificamos em eixos distintos. Acreditamos,

no entanto, que a categorização poderá contribuir para situar a produção bibliográfica,

fornecendo elementos que apontam para a necessidade de ampliação do debate. Além

disso, o agrupamento que sugerimos nos pareceu válido por se distanciar das

classificações bastante recorrentes em pesquisas sobre Políticas de ação afirmativa, a

saber, o agrupamento dos estudos a partir do eixo a favor ou contra as ações

afirmativas.

É válido ressalvar que a preocupação central na presente seção é compreender,

para além dos posicionamentos favoráveis ou contrários às ações afirmativas, quais são

os argumentos, justificações morais e fundamentações teóricas movimentadas para

defender essa ou aquela posição61 sobre políticas de ação afirmativa.

Levando em conta esses aspectos, apresentaremos brevemente o conjunto das

matrizes teóricas supracitadas, buscando, por um lado, compreender os fundamentos

teóricos que sustentam essas teorias e, por outro, problematizar de que forma a maioria

dessas fundamentações apresentam, além de incoerências internas, lacunas que

evidenciam a indiferença do pensamento social brasileiro a importantes aspectos

presentes no conflito em torno das cotas étnico-raciais no ensino superior,

principalmente no que tange à ausência de uma abordagem dialética para compreender

que ambas as relações – pautadas por classe e por raça - além de estarem vinculadas

são, permanentemente, renovadas e reorganizadas pelo capitalismo e atravessam o

referido conflito.

O primeiro conjunto de argumentações engloba os estudos que tratam das

percepções e expectativas em torno da análise do direito no capitalismo. Nesse

agrupamento reunimos os referenciais bibliográficos que têm tratado dos problemas em

torno da implementação das ações afirmativas a partir da perspectiva do igualitarismo

jurídico e de concepções liberais capitalistas em torno do direito e da democracia.

A maioria dos estudos que buscam compreender as políticas de ação afirmativa à

luz da evolução do direito no capitalismo tem focado em aspectos jurídico-normativos

que, por sua vez, possibilitariam ou atravancariam a adoção de tais políticas. A

61 E, por essa razão, alguns estudos que tinham como objetivo principal (e por vezes, único) realizar um

levantamento do referencial bibliográfico acerca das políticas afirmativas ( tais como MOEHLECKE,

2002; GUARNIERI et al, 2007) não estão contemplados nessa seção.

102

produção de análises preocupadas com os princípios da justiça distributiva (FERES JR.,

2005; PENA, 2009; PINHEIRO, R. G. 2013), da controvérsia acerca dos princípios

meritocráticos, da autonomia universitária frente à adoção de Políticas de ação

afirmativa (GOMES, 2001; RIOS, R. R. 2008; OLIVEIRA JR, 2008; HAAS &

LINHARES, 2012; SILVA, 2014) ou ainda da relação entre políticas de ação afirmativa

e transformações nos modelos de desenvolvimento sócioeconômico (TOMEI, 2004;

SANT’ANNA, 2006; JACCOUD, 2009) têm sido alvo recorrente nesse eixo de

análises.

Estudos como os de Clève (2003), Feres Jr. (2005), Moehlecke (2004),

Piovesan, (2008) e Pinheiro (2013) pautam as análises em defesa das ações afirmativas

a partir do pressuposto de que para alcançar a igualdade democrática é necessário

admitir que direitos e recursos sejam e (serão) escassos e custosos e a partir disso

operacionalizar os princípios da igualdade de oportunidades. Em linhas gerais, os

estudos supracitados tendem a conceber as políticas de ação afirmativa como políticas

que facilitariam o acesso a determinados bens fundamentais e escassos, no caso a

educação, para a concretização da igualdade de oportunidades, sendo, por isso,

classificadas como políticas distributivas.

Além disso, as análises que justificam as políticas de ação afirmativa pela via da

justiça distributiva, ao embasar a argumentação em torno da importância da igualdade

de oportunidades, constrói uma base sólida de legitimação para a implementação das

referidas políticas, diferenciando-se das justificativas para ações afirmativas baseadas na

concepção de reparação ou ainda de promoção da diversidade, envoltas em

controvérsias que as enfraquecem enquanto recurso teórico-analítico capaz de,

isoladamente, justificar as Políticas de ação afirmativa (FERES JR., 2005). Como

sinalizou João Feres Jr. (idem) acerca das mudanças pelos quais vem passando as

justificativas utilizadas para a instituição de programas de ação afirmativa, o problema

da justificativa pelas vias da reparação e da diversidade é que:

“[...] Enquanto que a reparação olha mormente para o passado e a justiça

social foca a desigualdade presente, a diversidade tem um registro temporal

incerto, às vezes sugerindo a produção de um tempo futuro onde as

diferenças possam se expressar em todas instâncias da sociedade. A

diversidade também trabalha, em parte, contra o argumento de justiça social,

pois a questão da desigualdade e da discriminação presente se dilui em uma

valorização geral da diferença, que por seu turno é definida em termos de

cultura e etnia – conceitos mais vagos que “desigualdade”, e, portanto de

operacionalização mais difícil” (Idem, p. 10).

103

Entretanto, as análises supracitadas contêm em seus pressupostos limitações que

ofuscam outras questões presentes no debate acerca das politicas afirmativas.

O primeiro ponto crítico é em relação à própria base na qual está fundamentada

a concepção de justiça daquelas análises: as Teorias da Escolha Racional62. A partir das

contribuições de algumas leituras feministas (FRASER, 2003; ZERILLI, 2009),

podemos fazer pelo menos três problematizações sobre aquela formulação de justiça:

a) recorrendo ao indivíduo como unidade social básica, os autores eliminam a

possibilidade de conceber os sujeitos como pertencentes a grupos oprimidos (mulheres,

negros, lésbicas, gays, por exemplo);

b) o componente histórico torna-se mera construção abstrata para ordenar jogos

de barganha e;

c) o excesso de abstração presente na concepção de Teoria de Justiça para

aqueles autores resulta na formulação de princípios da justiça apartados dos problemas

concretos que afetam grupos historicamente excluídos de acesso aos bens primários.

Outro ponto crítico diz respeito ao seu caráter reformista em relação às

instituições políticas, econômicas e sociais63. Ao mesmo tempo em que rejeita a crença

defendida pelos neoliberais de que o mercado é capaz de autorregular-se e de

autoestabilizar-se e, consequentemente, de estabilizar a sociedade (DANNER, 2011,

p.145), tais análises evocam a crença na igualdade de oportunidades e enfatizam a

ascensão individual, garantidos pelo direito burguês, minimizando as relações de

produção no modo capitalista e a monopolização dos meios de produção (NAVES,

2009).

Os princípios de justiça equitativa em alguma medida reforçam a crença que o

fim último das lutas emancipatórias é a reforma das instituições democráticas,

subdimensionando a força do mercado e da propriedade privada, desconsiderando os

conflitos de classes e de que forma esses conflitos ocorrem na disputa pela alocação de

bens e recursos, impactando, inclusive, na adoção de políticas distributivas.

Ao centrar o foco da análise nos ajustes necessários que as instituições sociais

têm de fazer para contrabalancear os efeitos perversos do modo capitalista de produção,

62 A Teoria da Escolha Racional oferece um arcabouço teórico-metodológico que assume que o comportamento

humano deve ser entendido a partir do pressuposto da racionalidade e que em situações de múltipla escolha, os

indivíduos optam por estratégias que maximizam os resultados a favor de seus interesses. A partir da segunda metade

do século XX, essa perspectiva teórica passou a ser utilizada em estudos da ciência política nos países anglo-saxões

(até então era utilizada apenas nas ciências econômicas). Uma das primeiras análises nas ciências políticas utilizando

essa perspectiva foi a obra de Anthony Downs Uma teoria econômica da Democracia, publicado em 1957

(MEIRELES, 2012). 63 Compõem o que Rawls denomina de estrutura básica da sociedade que por sua vez influem na formação da

personalidade e na sociabilidade, sendo por isso o objeto da justiça política (DANNER, 2011).

104

as análises supracitadas estão apenas a reiterar os pilares que ordenam a democracia

capitalista na medida em que as suas análises não refletem de modo crítico sobre

questões centrais que fundamentam as desigualdades raciais, como a produção de mais

valia, a monopolização dos meios de produção ou ainda a economia de

mercado (WOLFF, 1977).

A linha de abordagem sobre políticas de ação afirmativa no eixo direito e

capitalismo abarca os estudos que têm como foco a busca da legalidade daquelas

políticas frente a alguns princípios do ordenamento jurídico capitalista. Por um lado, as

análises com esse viés buscam encontrar respaldos jurídicos para a implementação das

políticas de ação afirmativa e, por outro, defender a posição de que aquelas políticas

podem ser adotadas desde que respeitando alguns valores como a meritocracia e a

autonomia universitária (GOMES, 2001; RIOS, R. R. 2008; OLIVEIRA JR, 2008; C. A.

SILVA 2009; HAAS & LINHARES, 2012; SILVA, 2014).

Os estudos supracitados buscam demonstrar a constitucionalidade das ações

afirmativas, com base na Constituição de 1988, com enfoque especial nos princípios da

liberdade e igualdade. Se por um lado, é consenso entre os referidos autores alguma

flexibilização dos princípios de liberdade e igualdade, concebendo as políticas de ação

afirmativa como instrumentos para que alguns grupos possam alcançar a igualdade de

oportunidades, por outro lado há divergências entre eles quanto aos desdobramentos da

adoção daquelas políticas frente a valores consagrados pela ordem liberal: a

meritocracia e a autonomia universitária (OLIVEIRA JR., 2008; SILVA, 2009; HAAS

& LINHARES, 2012).

A abordagem sobre adoção de Políticas de ação afirmativa na perspectiva

supracitada apresenta uma contradição no interior do seu argumento: na medida em que

apoia a adoção de Políticas de ação afirmativa recorrendo aos princípios jurídicos

presentes na Constituição de 198864, alguns estudos nessa abordagem defendem a

subordinação da busca pela igualdade de oportunidades em defesa de valores que

contribuem para a manutenção das desigualdades como a defesa da autonomia

universitária.

64 A Constituição de 1988 faz uma distinção entre igualdade formal e igualdade material, instituindo a

possibilidade de ações estatais para a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais. Reconhece que

dada as condições de desigualdade faz- se urgente uma medida mais efetiva e rápida, o que legitimaria

as ações afirmativas (Cf. OLIVEIRA JR., 2008).

105

A defesa do princípio da autonomia universitária encontra grande respaldo no

meio acadêmico65, principalmente quanto à discussão sobre a modalidade de ação

afirmativa com reserva de vagas raciais, como fica evidente na linha argumentativa

adotada por Haas & Linhares (2012) ao analisarem a implementação de ações

afirmativas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília:

“[…] A postura do governo do Estado do Rio de Janeiro de não ouvir as

sugestões das próprias instituições envolvidas, acarretando violação à

autonomia das universidades, levou centenas de alunos e as próprias

entidades sindicais que representam as escolas particulares do Rio de Janeiro

a questionarem a legalidade da implantação do sistema de cotas, mediante

ações junto ao Poder Judiciário. A universidade, por sua autonomia,

configura-se no espaço privilegiado de interlocução para proposições de

reformas educacionais que possam proporcionar desde o início da educação

básica, indistintamente, a igualdade de acesso à cultura e ao conhecimento

[...] Dentro dos limites dessa autonomia, a universidade tem o poder de

agrupar educadores, profissionais da educação e políticos visando à criação

daquilo que poderia ser chamado um pacto pela melhoria da educação

brasileira, isto porque iniciativas colocadas de maneira isolada, embora

legítimas, podem prejudicar o debate sobre a efetividade dessas medidas de

ações afirmativas” (idem, p. 851).

O argumento da ‘imposição’ das políticas de ação afirmativa está atrelado a

uma suposta preocupação advinda principalmente dos docentes das universidades para

quem as ações afirmativas, quando não planejadas e amplamente discutidas no meio

acadêmico, ameaçariam a qualidade das Instituições de Ensino Superior (IES). A

qualidade estaria ameaçada pela falta de planejamento com foco no suporte necessário

para a permanência dos cotistas na universidade. Sobre essa perspectiva, os autores

afirmam que quando ocorre a implementação das políticas sem o devido planejamento

pelo próprio corpo docente da IES, “[...] teria a universidade que admitir o

considerável risco de evasão desse grupo de beneficiados por falta de condições

sociais, econômicas e intelectuais” (idem, p. 853).

Consideramos que a defesa da autonomia universitária tem sido um mecanismo

eficaz na manutenção da fração da classe média alta e branca e na (re) produção do

racismo institucional. A defesa da autonomia tem dificultando “as mudanças nas regras

do jogo” e mantida intactas as estruturas de poder que asseguram a distinção da classe

média das outras classes. A autonomia universitária converteu-se em mecanismo de

reprodução da ordem ao longo do processo de adoção de políticas de ação afirmativa

65 Basta observar algumas matérias com pronunciamento de docentes utilizando tal argumento: “Reitores

e SBPC criticam lei de cotas por ferir autonomia de universidades federais” (O Globo, 2012), Críticas à

lei de cotas por ferir autonomia de universidades federais (Jornal da Ciência, 2012), Cotas para alunos

de escolas públicas dividem comunidade universitária brasileira (DW, 2012), Cotas para alunos de

escolas públicas divide comunidade universitária (O povo, 2012), Contradições e polêmicas das cotas nas

universidades públicas (IG, 2012).

106

com reserva de vagas, sendo utilizado como recurso estratégico da fração da classe

média abastada e branca no conflito deflagrado contra as cotas étnico-raciais no ensino

superior.

A argumentação em torno da manutenção do princípio meritocrático é outro

ponto controverso dentro da perspectiva daqueles estudos. Basicamente o foco da

análise se dá na argumentação da suposta ameaça à qualidade do ensino, caso

mecanismos supostamente meritocráticos de seleção, como é o caso do vestibular,

fossem totalmente rechaçados ou flexibilizados.

A preocupação com a manutenção da meritocracia tem sido recorrente no

posicionamento contrário à adoção de Políticas de ação afirmativa com reserva de vagas

raciais, principalmente nas universidades estaduais públicas paulistas e o seu emprego,

como veremos nos capítulos a seguir, se constituiu como um recurso ideológico

fundamental da fração superior da classe média.

O isolamento entre trabalho manual, de um lado, e trabalho não-manual, de

outro, é concebido e ao mesmo tempo reproduzido pela classe média como resultado da

hierarquia decorrente dos méritos individuais. Assim, a vaga em uma universidade

pública, disputada no vestibular, seria resultado apenas do esforço e da dedicação

pessoal, logo, a vaga é concedida a quem merece, a quem se esforçou para alcançá-la.

É possível afirmar que um vestibulando que trabalha 40 horas por semana para

contribuir para a renda familiar está concorrendo nas mesmas condições que um

vestibulando que não trabalha e que se dedica integralmente a estudar para a prova do

vestibular? A argumentação do merecimento simplesmente ignora o funcionamento do

sistema capitalista: a exploração de determinadas classes para produção de mais-valia

que implica na subordinação dos despossuídos dos meios de produção e na dominação

daqueles pelos donos dos meios de produção. É nesse sentido que recorrer ao discurso

do mérito serve para reproduzir a falácia defendida pelo direito no modo capitalista de

produção: cidadãos com direitos individuais e iguais perante a lei (apenas

abstratamente).

O argumento em favor da meritocracia, no contexto da adoção de ações

afirmativas, tem sido empregado para justificar, por meio do suposto esforço ou

qualidades individuais, a manutenção da fração de classe média abastada e branca no

seu nicho de reprodução material e diferenciação em relação aos trabalhadores manuais:

a universidade.

107

Outro agrupamento de pesquisas sobre cotas têm dado enfoque às ações

afirmativas e aos modelos de desenvolvimento político econômico, enfatizando os

impactos de tais políticas para o mercado de trabalho (TOMEI, 2004; SANT’ANNA,

2006) e para a relação entre a implementação e/ou ampliação de políticas sociais no

processo de transformações no modelo de desenvolvimento vigente na fase atual do

capitalismo (JACCOUD, 2009).

Os estudos de Tomei (2004), Sant’anna (2006) e Jaccoud (2009) têm como

preocupação central compreender os impactos políticos, econômicos, sociais e

educacionais das transformações decorrentes da adoção de Políticas de ação afirmativa,

com especial atenção ao caso brasileiro. O Estado-Nação é o referencial analítico

central para aqueles estudos que acreditam que é no âmbito nacional, por meio de

políticas nacionais, que o Estado poderá amortecer o impacto das contradições do

sistema capitalista adotando políticas que busquem ‘harmonizar’ mercado e direito.

Como afirma Tomei (2004):

“[...] A globalização e as democracias baseadas no livre mercado colocaram

sérios desafios para as sociedades multiétnicas dominadas por certos grupos,

em geral de origem estrangeira. A privatização e a abertura econômica

aumentaram a riqueza desses grupos étnicos dominantes e alargaram as

distâncias que os separam dos grupos relegados da população. Ao mesmo

tempo, a democracia abriu novos canais para que os grupos despossuídos

expressassem sua insatisfação. O efeito combinado dessas duas tendências

tem, às vezes, levado a violentas revoltas e turbulências sociais, revelando a

necessidade de paradigmas de desenvolvimento mais inclusivos em termos

raciais” (idem, p.6).

Os referidos estudos têm contribuído principalmente para entendermos o

processo de renovação do ordenamento jurídico para a produção do direito no modo de

produção capitalista. No entanto, ao privilegiar ou dar maior ênfase às mudanças no

âmbito do Estado-Nação que possibilitariam a adoção de políticas de ação afirmativa,

relegam para o segundo plano as mudanças a nível internacional que também

influenciam o cenário nacional, interferindo no encaminhamento das resoluções das

desigualdades raciais. A centralidade conferida ao papel do Estado e dos conflitos

internos acaba por minimizar os impactos das contradições do sistema capitalista a nível

global:

“[...] Este debate [das Políticas de ação afirmativa] foi apresentado à

sociedade brasileira pelo movimento negro [...] Tais demandas provocaram a

ampliação do reconhecimento da relevância do tema do racismo e da

discriminação racial como fenômenos sociais ativos na sociedade brasileira,

diante do qual, entretanto, levantaram-se resistências e oposições. Este novo

contexto foi marcado por progressiva afirmação do objetivo da promoção da

igualdade racial como meta política e tema organizador de políticas públicas

[...]” (JACCOUD, 2009, p. 11).

108

Gostaríamos de chamar atenção que estamos em absoluta concordância com os

supracitados autores quanto à importância do movimento negro na luta pela

reivindicação das políticas afirmativas, entretanto gostaríamos de chamar a atenção

para: 1) o perigo do super dimensionamento desse papel e; 2) a minimização dos limites

impostos pelo capitalismo a nível internacional. Para citarmos um acontecimento a nível

internacional que foi um divisor de águas nas ações voltadas ao combate ao racismo no

Brasil. basta lembrarmos as consequências para o Estado brasileiro da III Conferência

Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância

Correlata, de 2001, em Durban, na África do Sul, que desembocou na criação (dentre

outros fatores, também graças a atuação do movimento negro brasileiro) de um decreto

presidencial em que o governo brasileiro lançou o Programa Nacional de Ações

Afirmativas sob a coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do

Ministério da Justiça em 2002. A partir desse programa foram aprovadas políticas de

ação afirmativa para a população negra a nível federal. Um feito inédito na história de

combate às desigualdades raciais.

Válido frisar que a relação entre o âmbito nacional e internacional não ocorre de

maneira mecânica, de ação e reação, e por isso as análises sobre aquela relação

necessitam que problematizemos de que forma a complexa dinâmica do poder global do

sistema capitalista atrelada às relações econômicas e políticas entre os Estados incide

sobre as estratégias de luta dos movimentos sociais e nas próprias ações dos Estados no

âmbito nacional. As perguntas centrais que os referidos estudos não fazem são: em que

medida a dinâmica do sistema capitalista mundial, em seus diferentes momentos de

acumulação, aprofunda ou ameniza as desigualdades raciais? E ainda, de que forma

aquela dinâmica se relaciona com a esfera nacional? E como os movimentos sociais se

situam nessas conjunturas?

À medida que não realizam críticas contundentes ao problema da concentração

dos meios de produção e da riqueza, a defesa de ações afirmativas como mecanismos

importantes para políticas de desenvolvimento do Estado se constitui como outro ponto

problemático dessa linha argumentativa. Ao não problematizar a frágil conciliação entre

desenvolvimento econômico e inclusão social, os estudiosos dessa abordagem ignoram

que os grupos economicamente hegemônicos existem em decorrência do modo como

está organizado o sistema capitalista (DANNER, 2011). Portanto, as ações de inclusão

dentro do modo capitalista de produção são limitadas e mantidas apenas quando não

109

confrontam a estrutura de classes. Reconhecemos, obviamente, o poder desorganizador

desse tipo de política, mas é preciso que as análises deem conta também de outro

processo que ocorre sempre que há a possibilidade de fissura da ordem capitalista

orientada pela “lógica do equilíbrio” (FANON, 2015, p. 325). Ou seja, é preciso estar

atento à dinâmica própria do capitalismo que rapidamente transforma o que era

movimento dialético em equilíbrio para manter a ordem estabelecida.

O segundo conjunto de argumentações abrange os estudos que analisam as ações

afirmativas a partir de uma perspectiva multicultaralista e/ou comunitarista. Essas

perspectivas têm inspirado boa parte da produção bibliográfica sobre ações afirmativas

no Brasil. Nessa abordagem, a maioria dos estudos tem como premissa a ideia de que a

ação afirmativa está fundada em ideais de reconhecimento e valorização das diferenças

culturais de alguns grupos, no caso das ações afirmativas no ensino superior brasileiro,

os negros e indígenas (CAMPOS et al, 2014).

A preocupação que orienta as análises nessa abordagem é verificar as

possibilidades das ações afirmativas instituirem direitos grupais acarretando com isso a

normatização de identidades baseadas em diferenças culturais.

De um lado da controvérsia presente na abordagem multiculturalista estão os

críticos que acreditam que as ações afirmativas gerariam diferenciações raciais e,

portanto, racializariam a sociedade brasileira, estimulando o racismo com a consequente

divisão do povo brasileiro e destruição da identidade nacional. Exemplos desse tipo de

interpretação podem ser encontrados em Souza J. (1997), Grin (2004), Maggie & Fry

(2004), Kaufmann (2007) e Magnoli (2009). E, do outro lado, há os que defendem tais

ações porque elas encorajariam o reconhecimento de identidades pautadas por

concepções étnicas e culturais de grupos não brancos oprimidos por uma supremacia

branca. A cerca dessa interpretação podemos situar as análises de Bernardino (2002),

Queiroz & Santos (2007), Macedo (2006) e Medeiros (2007).

Evidenciadas por Campos & Feres Jr. (2014), as confusões de cunho teórico e

histórico no interior da abordagem dos autores supracitados se deve principalmente à

ligação necessária que esses críticos fazem entre ação afirmativa racial e direito à

diferença cultural. Campos & Feres Jr. (Idem) argumentam que ainda que as Políticas de

ação afirmativa façam uso da discriminação positiva de determinados grupos, tais

políticas não têm como objetivo principal fomentar a normatização de identidades, mas

apenas equalizar “oportunidades sociais e a consequente assimilação de grupos

subalternos aos estratos superiores da sociedade” (Idem, p.116).

110

A hipótese sugerida por Campos & Feres Jr. (2014) para a confusão feita pelos

autores que concebem as politicas afirmativas como políticas de fomento à formação de

identidades culturais estariam relacionadas ao fato do multiculturalismo, como ideal

normativo de convivência entre diferentes grupos culturais, e as ações afirmativas,

terem emergido quase simultaneamente na década de 70 (o primeiro na Inglaterra e o

segundo nos Estados Unidos). Tal fato implicou em um movimento de certa forma

articulado entre a produção acadêmica inglesa sobre o multiculturalismo e a produção

de análises estadunidenses sobre Políticas de ação afirmativa (Idem).

A pergunta que os estudiosos da corrente multiculturalista parecem não querer

fazer e que é essencial para o entendimento da questão das ações afirmativas é a

seguinte: tendo as políticas de ação afirmativa uma dimensão redistributiva de

oportunização de acesso aos negros ao ensino superior público, quais seriam as

implicações geradas pelas políticas de ação afirmativa para o processo de manutenção e

reprodução de poder das classes? Como a classe média alta e branca se posiciona frente

aos efeitos gerados pelas Políticas de ação afirmativa nas universidades públicas?

A análise das primeiras manifestações contrárias às cotas étnico-raciais não

deixam restar dúvidas quanto à necessidade de olharmos mais profundamente sobre os

contornos que assume o conflito gerado pelas cotas. Ainda assim, grande parte das

análises sobre as políticas de ação afirmativa parecem permanecer indiferentes à

potencialidade da articulação analítica entre raça e classe. Como desdobramento, há

certa reprodução de um lugar comum em boa parte da literatura sobre políticas

afirmativas, desafiando pouco ou timidamente o entendimento burguês de direito, o que

acaba por ocultar do debate a dimensão do conflito político informado por classe e raça.

Por fim agrupamos alguns estudos que têm analisado o debate sobre cotas

étnico-raciais sob o aparato do referencial teórico marxista com ênfase na classe. A

discussão sobre a relação entre classes, frações de classe, raça e políticas de ação

afirmativa, em nosso entendimento, ainda carece de articulação orgânica entre essas

categorias e a proposição de um arcabouço que inclua as especificidades que a luta de

classes vem assumindo no Brasil. Isso porque o debate atual que tem sido feito por

alguns autores marxistas ainda se encontra limitado a apenas polarizar entre

desigualdade social e desigualdade racial.

Alguns pesquisadores marxistas como Domingues (2005), Silva J. B. (2010,

2013a, 2013b), Arcary (2007), Buonicore (2005), Marcom (2012), têm tentando

enfrentar a difícil equação entre raça e classe diante do debate sobre ações afirmativas.

111

A perspectiva daqueles autores é a de que é fundamental, no contexto de formação do

capitalismo no Brasil, articular opressão racial e questões de classe para compreender

como a ideia de raça produziu a distribuição racista do trabalho no capitalismo.

Para os referidos autores, a formação da classe trabalhadora brasileira tem fortes

traços das ideias racistas que privilegiaram, no pós-abolição, a força de trabalho

imigrante em detrimento da força de trabalho dos negros livres nos núcleos urbanos em

processo de industrialização. Nesse sentido, as marcas raciais, além de servirem como

classificação básica da população, compõem os aspectos sociais que culminam na

distribuição dos postos de trabalho.

Outros pensadores marxistas que têm tratado sobre o tema, o têm feito de modo

a insistir na centralidade da classe. Pensadores como Siss (2003), Lessa (2007), Maestri

(2007) e Penna (2014) são enfáticos em tratar o racismo como menos importante ou até

mesmo como inexistente frente às desigualdades causadas pela posição de classe, pois

admitir as desigualdades raciais seria incorrer no perigo de “desarme ideológico das

forças revolucionárias” (LESSA, 2007, p. 104), criando cisões entre os trabalhadores e,

consequentemente, fissuras na unidade necessária para a luta revolucionária.

Se os referidos pensadores assumem que raça não é um fator que estrutura as

desigualdades no Brasil, é de supor que eles pactuam com o mito da democracia racial.

Nesse sentido, o tratamento dispensado pelos pensadores marxistas ao referido mito

parece indicar certa proximidade com a produção não marxista no sentido de tomarem

tal mito como uma descrição fidedigna da realidade brasileira para validar a

homogeneidade existente na classe trabalhadora brasileira (PAIXÃO, 2013). A

apropriação acrítica do mito da democracia racial pelos pensadores marxistas tem

levado essa corrente a defender cegamente a absoluta priorização da luta dos

trabalhadores, tratando de maneira apriorística as lutas do movimento negro como lutas

residuais ou como identitárias e, portanto, restritas.

Importante assinalar que reconhecemos que as políticas de ação afirmativa se

inserem num campo de avanços relacionados à ampliação do alcance nos limites do

direito burguês, entretanto, tal constatação não implica na afirmação de que a população

negra, diferentemente da população branca, deva esperar por condições históricas outras

para que tenham acesso a condições de vida mais dignas. Negar a urgência da

necessidade de avançarmos no enfrentamento ao racismo é ser leniente com as

atrocidades que o racismo-enquanto mecanismo de opressão do capitalismo- tem

causado a 53% da população brasileira.

112

Além disso, os avanços da luta negra em relação ao direito a acessar espaços

(universidades, ocupações não-manuais) não destinados aos negros tem implicado no

questionamento dos pilares que sustentam a estrutura capitalista, pilares que por sua vez

alimentam o processo de acumulação do capital. Com isso, o que queremos dizer é que

as políticas de ação afirmativa apesar de carregarem nos seus pressupostos fundantes a

gramática burguesa do direito, os processos de tensionamento que elas têm gerado no

Mundo Moderno não podem ser menosprezados.

Em outras palavras, as políticas de discriminação positiva, como é o caso das

Políticas de ação afirmativa, estão embasadas e amparadas no direito burguês,

entretanto o processo de luta (disputas e tensionamentos) que acompanha historicamente

a implementação dessas políticas tem mostrado que o campo do direito é um campo em

disputa e que o movimento negro tem utilizado das “frestas”, das fissuras para explorar

as contradições inerentes ao direito burguês. Nesse sentido gostaríamos de explorar o

insejo da crítica marxista aos limites do aparato legal dos direitos humanos mas

distendendo aquela abordagem tomando como exemplo as disputas travadas pelo

movimento negro no âmbito do direito, incluindo as cotas no ensino superior público e

como esse terreno, longe de ser dado como um campo fechado e coeso, tem sido lugar

de disputa de significados reivindicados pelo movimento negro66.

As lutas do movimento negro e as encruzilhadas do direito no sistema

capitalista

A aprovação das cotas no contexto brasileiro foi um raro momento, equiparável

em nossa análise apenas à Assembleia Nacional Constituinte e ao Centenário da

66 Válido dizer que, ainda que estejamos a chamar de “Movimento Negro”, no singular, não estamos a

negar ou mesmo ignorar a multiplicidade de organizações que compõem a luta negra no Brasil, mas

chamando atenção para o fato de que mesmo essa multiplicidade partilha entre si uma agenda comum de

reivindicações como foi o caso da II Marcha contra o Racismo, Pela Igualdade e a Vida, realizada em

Brasília no dia 22 de novembro de 2005 que, em seu Manifesto assinado por 13 organizações nacionais e

representantes de 21 estados de todo o Brasil apresentava-se como “[...] Uma marcha que além de fazer

um balanço das conquistas e avanço obtidos ao longo desses dez anos, tem como objetivos exigir do

Estado Brasileiro o reconhecimento do conceito de reparação como eixo principal para implementação de

políticas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial, acompanhamento as orientações da

Declaração e do Programa de Ação da III Conferencia Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,

Xenofobia e Intolerância Correlatas. Uma marcha que vai exigir do Governo Lula e do Congresso

Nacional, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de Cotas nas Universidades,

agilização da titulação e regularização das terras quilombolas.” (Manifesto da Marcha Zumbi +10,

Brasília, 22/11/2005). Disponível em: https://democraciasocialista.org.br/ii-marcha-contra-o-racismo-

pela-igualdade-e-a-vida/. Acesso em: 30 mar. 2016.

113

Abolição. O enfrentamento feito desde dentro das instituições representativas, pelo

movimento negro frente à mobilização pela aprovação das políticas de ação afirmativa

com reserva de vagas étnico-raciais conseguiu, dentre outros feitos: 1) problematizar a

persistência da crença do mito da democracia racial na sociedade brasileira e nas

instituições do Estado, como é o caso das universidades públicas e; 2) secundarizar a

ideologia meritocrática.

Os desafios enfrentados pelo movimento negro no processo de mobilização

jurisprudencial encontram-se principalmente na tarefa de “explorar os limites e

possibilidades do discurso dos direitos humanos” (PIRES, 2018) frente ao peso da

narrativa, que orienta também a atuação do judiciário, quanto à “herança de um

passado escravocrata” como chave explicativa para situação dos negros no pós-

abolição e a crença absoluta no alcance do arcabouço normativo dos direitos humanos

desarticulada das formas de atualização da estrutura racista no estado democrático.

Peguemos como exemplo ilustrativo o voto de dois dos ministros do STF quando da

votação pela constitucionalidade das cotas étnico-raciais no ensino superior em 2012:

“[…] A construção de uma sociedade justa e solidária impõe a toda coletividade a

reparação de danos pretéritos perpetrados por nossos antepassados adimplindo

obrigações jurídicas […]” (Voto do ministro Luiz Fux. Cf. BRASIL, 2012a).

“[…] Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser

usada para desconstruí-las" […] O que não se admite é a desigualdade no

ponto de partida. O modelo constitucional brasileiro contempla a justiça

compensatória […] Não basta não discriminar. É preciso viabilizar. A

neutralidade estatal ao longo dos anos mostrou-se um fracasso […]” (Voto

do ministro e relator Ricardo Lewandowski, Cf. BRASIL, 2012a).

A jurisprudência brasileira, a depender do campo sob o qual atua, condiciona

legitimidade reivindicativa às demandas advindas do movimento negro a partir da

narrativa do legado do passado escravocrata, o que de um lado é estratégico por reforçar

o legado do passado no presente, mas por outro lado, ao apelar para o argumento da

neutralidade, dar a entender nas entrelinhas que há um entendimento compartilhado

entre os operadores de justiça de que a jurisprudência no estado de direito não é

compatível com a existência de uma estrutura racista que segue vigorosa nos estados

modernos e democráticos.

Ao afirmar no seu voto pela constitucionalidade das cotas que “[…] a

neutralidade estatal ao longo dos anos mostrou-se um fracasso”, o então ministro e

relator do caso quanto a constitucionalidade das cotas no ensino superior, Ricardo

114

Lewandowski, parece ter um entendimento de racismo institucional como empregado

pelo juiz britânico William Macpherson:

“[…] the collective failure [grifo nosso] of an organization to provide an

appropriate and professional service to people because of their color, culture

or ethnic origin”. It is seen in “processes, attitudes and behavior which

amount to discrimination through unwitting prejudice, ignorance,

thoughtlessness and racist stereotyping which disadvantages minority ethnic

people” (MACPHERSON, 1999, para 6:34).

Como vem chamando atenção Araújo (2018), a definição de racismo

institucional, que ficou internacionalmente conhecida, exposta no relatório do juiz

Macpherson a partir do caso assassinato do adolescente negro Stephen Lawrence pela

polícia britânica em 1999, contribui para o esvaziamento histórico e desvinculação da

própria concepção original do termo, cunhado por Kwame Ture e Charles Hamilton em

1967, que não deixam restar dúvidas quanto ao entendimento do caráter ordinário do

racismo e da relação entre racismo a violência institucionalizada nas mãos do Estado–

ou seja, do estado de direito.

O voto do então ministro e relator Ricardo Lewandowski sintetiza o

entendimento do poder judiciário sobre a possibilidade da existência do racismo

praticado pelo aparato estatal: a de que a “neutralidade” do estado de direito é apenas

“uma falha” (por ser considerada uma não tomada de posição) e que nesse sentido não é

entendida como inserida numa série de práticas (institucionalizadas, no sentido que

Kwame Ture e Charles Hamilton cunharam) legitimadas pelo Estado que culminam na

negação sumária de direitos aos negros.

O argumento dado pelo então ministro sobre a “neutralidade” do Estado frente à

situação dos negros no Brasil, é debitado na conta de um passado (escravocrata) no qual

ali, sim, a “raça foi utilizada para construir hierarquias”, reiterando o imaginário que

incompatibiliza estado de direito burguês e racismo.

O argumento da “neutralidade” inclusive é recorrente nas instâncias jurídicas e

condizente com o modo de funcionamento da sociedade brasileira na medida em que a

neutralidade produz e reproduz os mecanismos racistas, ao mesmo tempo, abertos e

velados (TURE & HAMILTON, 1992) que colocam entraves para o desmascaramento

do racismo como estruturante das relações sociais. Assim, tanto o juiz William

Macpherson como o ministro Ricardo Lewandowski, convergem para a ideia de racismo

como aberração e dos estados modernos democráticos em oposição ao fascismo- esse

sim, um sistema que é compatível com racismo. Nesse sentido, como aponta Hesse

(2004) “[…] the failure to examine their conceptual and social implications [of the

115

racism] conceals the governmental dimensions and colonial inheritances of western

racism” (Idem, p. 132).

Voltemos para a votação em 2012. A percepção dos ministros quanto à

justificativa para votar pela constitucionalidade das cotas não foi uníssona e a

justificativa com base na justiça distributiva foi também invocada na votação:

“[…] Se os negros não chegam à universidade, por óbvio não compartilham

com igualdade das mesmas chances dos brancos”, afirmou. “Não parece

razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico […] ”

(Voto da ministra Rosa Weber. Cf. BRASILa, 2012).

“[…] A discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as

pessoas nem percebem. Ela se torna normal [é natural que as cotas] atraiam

resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da

discriminação de que são vítimas os grupos minoritários […]” (Voto do

ministro Joaquim Barbosa, Cf. BRASILa, 2012).

“[…] O mérito é um critério justo apenas entre candidatos que tiveram

oportunidades idênticas ou assemelhadas[…]” (Voto do ministro Cezar

Peluso, Cf. BRASILa, 2012).

O reconhecimento dos limites da igualdade abstrata e reconhecimento da

legitimidade constitucional das cotas pode ser considerado, em nossa análise, um

segundo grande momento histórico para o movimento negro no período pós-

redemocratização. O primeiro, como apontou Rios F. (2014), ocorreu com “a

mobilização durante a redemocratização que culminou na Assembleia Nacional

Constituinte e no Centenário da Abolição, que foram momomento cruciais de

legitimação da agenda de reivindicações do movimento negro na esfera pública. Mais

do que isso: o tema da injustiça racial inseriu-se na agenda nacional” (Idem, p.168),

reconhecendo os negros como sujeitos de direitos.

O segundo momento, para nós, advindo com a aprovação das cotas, confirma

que a agenda reivindicativa desses sujeitos de direitos ganhou legitimidade frente ao

Estado brasileiro. Em outras palavras, a constitucionalidade das cotas fortaleceu a

agenda antirracista reivindicada pelo movimento negro, aumentando o espaço para as

reivindicações do movimento e a problematização no debate público sobre os limites

das políticas universalistas com foco na pobreza (dinâmica que até então não tinha sido

questionada pela jurisprudência).

Entretanto se de um lado, há o reconhecimento dos limites da igualdade abstrata,

por outro a crença na neutralidade estatal (e jurídica) frente ao racismo e no mito da

democracia racial ainda orienta a prática jurídica de modo geral.

116

Ao nos depararmos com o fato de que a lei que criminaliza o racismo no Brasil

existe desde 1989, mas há apenas um67 único julgamento que resultou na acusação de

racismo pelo Superior Tribunal Federal nos defrontamos com os limites do Sistema de

Justiça e da produção normativa do Estado de direito num mundo anti-negro. Nesse

sentido gostaríamos de refletir sobre alguns entraves e potencialidades da gramática dos

direitos humanos frente às reivindicações do movimento negro.

As encruzilhadas do direito no sistema capitalista colocam-se como desafio ao

movimento negro que tem no aparato jurídico a possibilidade de agir nas brechas da

gramática dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que esse mesmo aparato também

tem sido um de seus algozes. Se por um lado, a estratégia do movimento negro em

aproveitar as brechas do direito capitalista para reivindicar a efetivação do acesso à

educação superior previstos na lei culminou na aprovação das cotas pelo STF, por outro

lado os limites do aparato legal têm frustrado as tentativas de mobilização do

movimento negro na ampliação da gramática jurídica antirracista quanto ao

enquadramento do crime de racismo68 (e mais recentemente injúria racial), do racismo

institucional e do genocídio negro.

67 O Caso foi a julgamento no STF em 2003 e envolvia acusações de racismo e anti-semitismo. Siegfried

Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) em 1991 pelo

cometimento de crime de racismo com a publicação e venda de livros de temática anti-semita. Mas há,

ainda que pouquíssimos casos julgados em outras instâncias. O primeiro caso de racismo julgado de

acordo com a Lei Afonso Arinos aconteceu no Rio de Janeiro em 1955, onde um aluno negro foi expulso

de uma escola de elite carioca frente à pressão dos pais “incomodados” com a presença da única criança

negra na mais recente escola da elite carioca onde estudavam filhos da elite ‘dos bacharéis’ como Van

Lammeren, Malcon Morris, Von Bertrand. Os diretores foram condenados a pagar multa. E alguns

raríssimos casos julgados como tal nas instâncias estaduais de justiça, como foi o caso do procurador

federal condenado por racismo no Distrito Federal em sob a acusação de ter feito ofensas primeiramente

contra judeus que depois se estenderam a negros e nordestinos. As ofensas ocorreram em 2007, mas o réu

foi apenas condenado em 2014 pela 3ª Vara Criminal de Brasília (Cf. RODRIGUES M., 2014). 68 Após uma bailarina negra norte-americana, Katherine Dunhan, ter sido impedida de se hospedar num

hotel luxuoso paulistano por ser negra em 1951, maculando a imagem da democracia brasileira no cenário

internacional, o jurista e deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco propôs a primeira lei contra a

discriminação racial no Brasil, sendo aprovada em 1951. A lei não considerava o racismo como crime,

caracterizando-o apenas como contravenção penal, ficando o infrator sujeito a penas muito brandas, como

o pagamento de multas. Mas não previa prisão. O “tom cosmético” da lei foi problematizado por certa

parte do movimento negro a partir dos anos 70 e 80, e em 1989, o racismo passou a ser crime inafiançável

e diz respeito a toda conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade. Interessante

ainda analisar o posicionameto da impressa brasileira frente ao caso da bailarina negra nos anos 50 e que

contribuiu para a aprovação da Lei. Em uma análise bastante instigadora acerca da “Discriminação racial

e imprensa no início dos anos 1950: um retrato da Lei Afonso Arinos em sua concepção e nascimento”,

Walter de Oliveira Campos (2015) assim relata o posicionamento dos jornais de grande circulação à

época“[…] Os discursos e comentários sobre o projeto de lei, na época de sua apresentação, ainda sob o

calor do constrangimento causado pelo episódio Katherine Dunham, são favoráveis à medida legislativa,

a qual era considerada necessária à prevenção contra algumas práticas discriminatórias isoladas, na visão

de uns, e contra um racismo incipiente que ameaçava instalar-se no país, na visão de outros.” ( Idem, p.

292).

117

O foco da jurisprudência no Brasil quanto ao racismo tem sido o combate ao

racismo moral, e ainda assim mesmo nesse enquadramento plenamente amparado na

legislação nacional, a discriminação racial continua sendo tratada como crime menor

pelos operadores de direito no Brasil e a própria lei tem criado uma série de obstáculos

para que as denúncias cheguem às instâncias de justiça69.

Sobre os crimes de injúria racial, o primeiro problema é a exigência da Lei em

comprovar a intencionalidade do acusado, dificultando a produção de provas. Em

segundo lugar, a inclusão da mudança na Lei, realizada em 2009, que determina que a

denúncia de crime de injúria racial só avançe mediante a representação do Ministério

Público (MP) implica que o “dono” da ação é o MP, que detém a decisão final de

prosseguir ou não com a denúncia, retirando da vítima qualquer autonomia frente às

instituições de justiça e servindo como desestímulo às denúncias.

A própria adoção do termo injúria racial esvazia o contexto histórico e sócio-

econômico que caracteriza a motivação racista em crimes desse tipo e evidencia os

paradoxos da luta do movimento negro frente ao direito burguês, pois ao mesmo tempo

em que a institucionalização dos direitos humanos oferece a possibilidade de

democratização de fato das instituições burguesas, por outro o enquadramento do direito

burguês ao racismo, evidencia os limites das reivindicações por reformas. Nesse

contexto, definido como crime que ocorre quando há ofensa contra honra de alguém se

valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, a definição de

injúria acaba por desvincular o racismo do contexto social no qual é produzido,

restringindo a ofensa unicamente ao indivíduo e não ao grupo ao qual pertence

desembocando no apagamento da função de um crime racista: reproduzir um status de

superioridade contra o ofendido com base no contexto de relações sociais construídas

historicamente. Em outras palavras, o enquadramento como injúria está relacionado à

intenção de querer causar mácula ou mágoa em alguém por meio de expressões, o que

acaba por esvaziar o conteúdo histórico no qual está assentado esse tipo de crime e

individualizar o racismo.

A discussão sobre a possibilidade de existência do racismo institucional como

mecanismo presente nas instituições do Estado, nas sociedades ditas democráticas não

encontra interlocutores na instância máxima do sistema de justiça brasileiro. O Estado, e

69 Dados de 2017 do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, revelam que em 30 anos de existência da Lei,

apenas 244 casos de racismo e injúria racial foram concluídos e 40% desses foram considerados

improcedentes pela justiça na área cível (Cf. GLOBO NEWS, 2017).

118

consequentemente a jurisprudência brasileira, pauta-se em um entendimento de racismo

tomando o holocausto como referência e a concepção de direitos humanos “[…] como

capazes de responder aos anseios de dignidade e pleno desenvolvimento da autonomia

em qualquer tempo/espaço e para qualquer pessoa […]” (PIRES, 2017, p. 2).

A jurisprudência parece ainda orientar suas ações pautadas no conceito de

racismo como aberração, gestado e reproduzido exclusivamente na mente de pessoas

antidemocráticas e apenas em contextos em que as instituições democráticas não estão

funcionando plenamente, conduzindo a um entendimento jurídico de que é incompatível

com o Estado brasileiro, a existência de práticas institucionais que impliquem na

negação de direitos ou na negligência de prestação de serviços públicos a determinados

grupos unicamente por causa da cor70.

O conceito de genocídio também tem sido campo de disputas na construção de

uma nova gramática contra-hegemônica do enquadramento jurídico do genocídio e o

movimento negro, desde os anos 50 nos Estados Unidos e a partir dos anos 60 e 70 no

Brasil, vêm disputando o conteúdo desse termo. Em ambos os contextos, o termo

começou a ser mobilizado pelos movimentos negros para denunciar a esterelização

compulsória de mulheres negras e indígenas.

O termo genocídio foi cunhado pelo jurista polonês Raphaël Lemkin, na sua

obra “O Domínio do Eixo na Europa Ocupada”, publicada nos Estados Unidos em 1944

e vem da união dos termos gregos “geno” (tribo, raça) e “cide” (caedere, matar). O

termo foi cunhado originalmente para designar qualquer tipo de ataque que ameaçasse a

destruição social, econômica, cultural e política de grupos:

“[…] Generally speaking, genocide does not necessarily mean the immediate

destruction of a nation, except when accomplished by mass killing of all the

members of a nation. It is intended rather to signify a coordinated plan of

different actions aiming at the destruction of essential foundations of the life

of national groups (...) The objectives of such a plan would be the

disintegration of the political and social institutions of culture, language,

national feelings, religion, [and] economic existence of national groups, and

the destruction of the personal security, liberty, health, dignity, and even the

lives of the individuals belonging to such groups […]” (LEMKIN, 1944, p.

79)

70 Válido pontuar que o Brasil foi condenado em 2006 pela Organização dos Estados Americanos (OEA)

por ter violado a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Racial ao permitir que um

caso de racismo fosse arquivado sem a abertura sequer de uma ação penal. O caso (ocorrido em 1997)

tratava-se de uma denúncia de uma empregada doméstica que foi barrada em uma vaga de emprego por

ser negra na cidade de São Paulo mas que teve sua acusação arquivado pelas instâncias de justiça. O

inquérito conduzido pelo sistema de justiça de São Paulo e que foi concluído em duas semanas, sem

responsabilizar ninguém. Na época, o Ministério Publico recomendou o arquivamento do caso por não

haver "qualquer ato de racismo" ou "base para oferecimento de denúncia" e o juiz acatou a

recomendação, arquivando o caso antes mesmo do mesmo virar ação penal (Cf. PENTEADO, 2006).

119

O conceito de genocídio (tal como todo o arcabouço linguístico relativo à

categoria de raça) tem sido campo de disputa intensa entre Estados e movimentos

sociais no contexto do pós-holocausto. Apesar de Lemkin ter concebido o termo de

forma menos restritiva, como consta em um artigo dele próprio no American Journal

of International Law em 1947, no qual define o crime de genocídio como uma ampla

gama de ações “including not only the deprivation of life but also the prevention of life

(abortions, sterilizations) and also devices considerably endangering life and health

(artificial infections, working to death in special camps, deliberate separation of

families for depopulation purposes)” (Idem, p. 9), o entendimento que ganhou força e

que se faz presente nas narrativas atuais no campo do direito, é o crime de genocídio

tendo como referência a “experiência paradigmática do Holocausto”.

Ao longo do processo de deliberações que criaria a Convenção para a

Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), as “controvérsias” em relação à

caracterização do crime, os grupos a serem protegidos sob a Convenção, a questão da

prova de intencionalidade, a inclusão do genocídio cultural, os critérios para aplicação

e punição, o grau de destruição para que fosse considerado genocídio estiveram

presentes no debate (KUPER, 1981, p. 24) e o que temos hoje na Convenção é

resultado dessas disputas. Assim encontra-se hoje definido o crime de genocídio como:

Artigo II: [...] um dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir,

ou no todo ou em parte, um grupo nacional, étnica, racial ou religiosa, como

tal: (a) Assassinato de membros do grupo; b) Prejuízo grave para a

integridade física ou mental dos membros do grupo; c) Submissão

intencional do grupo a condições de existência que devem resultar em

destruição física total ou parcial; d) Medidas para impedir partos dentro do

grupo; e) transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo"

(Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Cf. ONU,

1948).

A inclusão da intencionalidade, uma das armadilhas mais permissivas do direito

moderno no que tange a crimes de genocídio, é fruto da pressão, advinda principalmente

dos Estados Unidos da América (EUA) e Inglaterra, que junto a outros países vitoriosos

da Segunda Guerra Mundial pressionavam para que o enquadramento do termo fosse

mais restritivo e por isso os referidos países não estavam de acordo com a concepção

inicial, mediante a possibilidade de o termo vir a ser usado pelas populações subjugadas

naqueles países, o quê de fato ocorreu.

Em 1948 o Comitê de Coordenação Estudantil Não Violento (que mais tarde

fundaria, o que ficou conhecido como o Partido dos Panteras Negras) publicou

"Genocídio no Mississippi", uma carta na qual denunciava e protestava contra as

120

esterilizações involuntárias (fala-se entre 60 mil e 80 mil mulheres, na maioria negras,

esterelizadas) naquele estado e utilizou-se da noção de genocídio de Raphael Lemkin.

Em 1951, o Comitê elaborou a petição “Nós cobramos o genocídio: o crime do

governo contra o povo negro” que foi dirigida à Assembleia das Nações Unidas em

Paris em 1951 com base nos critérios estabelecidos pela Convenção sobre a Prevenção

e Punição do Crime de Genocídio (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas

em 1948, mas que entrou em vigor em 1951). O documento de 237 páginas acusava o

governo dos Estados Unidos de violência e maus tratos aos afroamericanos.

O documento citava as muitas ocorrências de assassinatos (e linchamentos) de

afro-americanos, bem como espancamentos e execuções ilícitas cometidas por

funcionários públicos. A petição também colocou em questão a discriminação (legal e

política) e a coerção que estava sendo conduzida em todos os níveis do governo federal

e estadual contra os afroamericanos, incluindo a negação do direito ao voto. Tentativas

foram feitas para entregar as cópias da petição à delegação das Nações Unidas em Nova

York e Paris, mas sem sucesso, diante da forte pressão do governo dos EUA

(LANGLEY, 2014).

Interessante ainda pontuar o posicionamento de Raphaël Lemkin que

argumentou que as disposições da Convenção do Genocídio não tinham qualquer

relação com o tratamento dispensado pelo governo dos EUA em relação aos cidadãos

negros. Quando o jornal The New York Times (em 18 de dezembro de 1951) perguntou

a Lemkin o que ele achava da petição elaborada pelo Movimento Negro, ele respondeu

que era uma manobra para desviar a atenção dos crimes de genocídio cometidos contra

estonianos, letões, lituanos, poloneses e outros povos soviéticos subjugados

(LANGLEY, 2014).

A simplificação do conceito de genocídio foi também alimentada pela “ameaça

do perigo vermelho” e que também esteve na argumentação de Lemkim, para quem os

ativistas negros responsáveis pela elaboração da Petição, eram elementos "não

americanos", servindo a uma potência estrangeira. Em 1953, Lemkin escreveu um

artigo para o editorial do jornal The New York Times no qual ele declarava que embora

pudessem experimentar discriminação, os afro-americanos desfrutavam de condições de

crescente prosperidade e progresso nos Estados Unidos e que eles não estavam a ser

ameaçados de "destruição, morte, aniquilação com grande magnitude" – elementos que

caracterizariam o crime de genocídio (Cf. LEMKIN. 1953).

121

Em resposta ao editorial, Oakley Johnson, um dos autores da Petição, enfatizou

que se “aniquilação com grande magnitude” implicar na aniquilição total dos grupos

vítimas do crime de genocídio, então a Alemanha nazista também não poderia ser

acusada de genocídio, pois existiriam milhares de judeus vivendo pós-holocausto

(SCHALLER & ZIMMERER, 2009).

Nesse sentido longe de uma posição antissemita, a argumentação de Oakley

Johnson desafia os limites impostos pela gramática eurocêntrica pós-holocausto que

nega as continuidades de práticas colonialistas nas democracias liberais e estabelece um

“protocolo silencioso” (HESSE, 2004) sobre o racismo anti-negro. O “Protocolo

silencioso” que organiza as relações raciais, por um lado, condena as manifestações

abertamente racistas a partir de um ponto de vista moral (ou seja, enquanto atitude

individual mais ou menos inapropriada ao contexto) e por outro nega a possibilidade da

existência do racismo enquanto estruturante das relações de poder existentes no mundo

Ocidental (HESSE, 2004; FUREDI, 1998).

Apesar da intensa disputa no contexto internacional, até hoje temos apenas dois

casos reconhecidos como crimes de genocídio: Ruanda (assassinatos em massa do

grupo étnico dos tutsis) e a antiga Iugoslávia (assassinatos em massa de meninos

muçulmanos em Srebrenica). Gostaríamos ainda de chamar atenção para dois pontos

quanto a essas condenações. O primeiro é quanto aos países nos quais o genocídio foi

considerado crime pela Organização das Nações Unidas: o primeiro em África e o

segundo no leste Europeu. Em ambos os casos são regiões cujas narrativas

predominantes são de que elas seriam regiões antidemocráticas, incivilizadas, incultas,

em outras palavras, tudo que a Europa Ocidental (diz que) não é. E em segundo lugar,

chama atenção que os envolvidos no Holocausto da Alemanha nazista não foram

acusados de genocídio mas de crimes contra a humanidade.

No contexto brasileiro, a disputa em torno da definição do crime de genocídio

vem ocorrendo desde a década de 70, com o uso do termo pelo Movimento Negro e que

adentrou no meio acadêmico brasileiro com a publicação do livro “O Genocídio do

negro brasileiro: processo de um racismo mascarado” de Abdias do Nascimento

publicado em 1978 e que assim definiu o que seria genocídio negro:

“[…] Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao

enaltecimeto das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação

da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição

legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão

censitária […] a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo

genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa

122

máquina ironicamente designada ‘democracia racial […]. O fato concreto,

nenhuma retórica acadêmica pode apagar: o negro no Brasil está sendo

rapidamente liquidado nas malhas difusas, dissimuladas, sutis e paternalistas

do genocídio mais cruel dos nossos tempos. Uma técnica genocida de fazer

inveja a Salazar, Vorster e Smith […]” (NASCIMENTO, 2017 [1978] ,p.

111- 115).

A “multiplicidade de processos genocidas antinegros” (VARGAS, 2010, p. 31)

já apontados por Abdias do Nascimento na década de 70, nos obriga a reenquadrar, a

partir do entendimento de genocídio como uma prática sistemática e institucional dos

estados modernos, processos como o encarceramento em massa da população negra, o

extermínio da juventude negra e pobre, a exploração sexual da mulher negra que

resultou em uma Nação miscigenada e o próprio processo de branqueamento

“sutilmente” presente em diversas políticas (como as políticas de migração) do século

XIX no contexto brasileiro.

No ano de 1988, o I Encontro de Mulheres Negras viria denunciar

nacionalmente, por meio da mídia, o extermínio de crianças e adolescentes negros e a

esterilização de mulheres. Em 1992, fruto das mobilizações feitas pelo movimento de

mulheres negras a partir da divulgação do Relatório Kissinger71, foi instaurada a

Comissão Parlamentar Mista de Inquérito na Câmara dos Deputados, presidida pela

pesquisadora e ativista negra Jurema Werneck.

A comissão confirmou as denúncias de esterilização em massa das mulheres que

atingiu 45% das mulheres brasileiras durante os anos da ditadura militar de 1964. E

conclui que era “[…] evidente que a ligadura de trompas nas brasileiras servia a

interesses econômicos e à defesa da ideologia de branqueamento proposta por aquele

país” (SANTOS, A.C.C. 2016, p. 22), referindo-se às políticas de controle de natalidade

propostas pelo governo de Nixon no início dos anos 60-70 e levadas a cabo pelos

governos militares brasileiros com a colaboração ativa de uma gama de organizações

governamentais e não governamentais financiadas estrategicamente pelo governo norte-

71 A Administração Nixon (1969-1974) elaborou um estudo intitulado “Os efeitos do crescimento da

população mundial para a segurança dos Estados Unidos e outros interesses” e que considerava o

crescimento da população mundial como um assunto prioritário na agenda das ações do governo norte-

americano porque esse crescimento nos países “em vias de desenvolvimento” punha em perigo

designadamente o acesso aos minerais e a outras matérias primas indispensáveis, constituindo como

ameaça à segurança econômica e política e para tal era necessário o controle da população. Esse estudo

deu origem a um famoso memorando de Kissinger, executivo da Administração americana. O estudo

sugeria que a estratégia usada a fim de conter o crescimento populacional poderia ser o financiamento de

organizações de “cooperação” norte-americana mas também instituições nacionais (conferindo um

caráter protagonista na medida em que assegurava-lhes o acesso às tecnologias da contracepção).

123

americano com vistas ao controle de natalidade72. Diante das conclusões da CPI e da

pressão do movimento de mulheres negras, em 1996 foi instituída a lei do planejamento

familiar, ficando proibido qualquer programa ou política com fins de controle

demográfico, regulamentando a esterilização.

A reivindicação do crime de genocídio negro voltou à agenda de debate no

parlamento brasileiro em 2015, quando foi instaurada a Comissão Parlamentar de

Inquérito (CPI) de Violência contra Jovens Negros e Pobres (fruto da pressão

principalmente de mulheres negras) e a conclusão foi a de que “o Estado brasileiro,

direta ou indiretamente, provoca o genocídio da população jovem e negra”. O Fórum

Permanente de Igualdade Racial (FOPIR) apresentou uma denúncia contra o Estado

brasileiro junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e com base no relatório da

CPI elaborou o Plano Nacional de Redução de Homicídios exigindo, dentre outras

pautas, o fim dos “autos de resistência” 73 e a desmilitarização da polícia.

A disputa em torno do significado do crime de genocídio, apesar de tensionar o

enquadramento da norma jurídica moderna, ainda não resultou concretamente em uma

mudança de perspectiva do judiciário brasileiro, já que até hoje temos registrado apenas

um crime de genocídio74 julgado pelo STF.

Olhar, isoladamente, para os poucos casos de racismo (envolvendo anti-

semitismo) e genocídio (envolvendo indígenas) julgados como tal pelo judiciário

brasileiro nos faz pensar então que, aos olhos do Sistema de Justiça, vivemos em uma

72 Para mais detalhes acerca desse processo consultar: “Ou belo ou o puro? Racismo, eugenia e novas

(bio)tecnologias de Jurema Werneck. Disponível em:

http://www.criola.org.br/artigos/artigo_ou_o_belo_ou_o_puro.pdf. Acesso em 10 de maio de 2018. 73 Foi criado em 1969, após o Ato Institucional nº5 (dezembro de 1968), como medida interna da própria

polícia, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. A partir da

CPI de 2015, ocorreu uma alteração do uso dos termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de

morte” para “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de

oposição à ação policial”. Entretanto a mudança de termo não implicou em mudança nas práticas

policiais: nos primeiros meses de 2019, o Brasil teve 6.160 mortes cometidas por policiais na ativa em

2018, contra 5.225 em 2017 (entretanto em relação ao número de policiais mortos, a queda foi de 18%).

Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/19/numero-de-pessoas-

mortas-pela-policia-no-brasil-cresce-em-2018-assassinatos-de-policiais-caem.ghtml. Acesso em

16/4/2019. Além do aumento no número de assassinatos cometidos pelo Estado, o alvo continua a ser o

negro: 75% das vítimas de homicídio são negros e essa é a maior proporção da década (ATLAS DA

VIOLÊNCIA, IPEA, 2019). 74 O Massacre de Haximu, região onde aconteceu o assassinato de 16 indígenas Yanomami por 6

garimpeiros de ouro em 2006, e apesar de ter sido julgado pela Corte brasileira, esse crime genocídio

ocorreu entre as fronteiras do Brasil e Venezuela e foi considerado genocídio pois constatou-se “[…]

a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (ALBERT,

Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Escrito em 27/09/1993. Folha de São Paulo, 03 de out.

1993. Disponível em:< pib.socioambiental.org/files/file/.../yanomami/massacre_haximu.pdf> Acesso

em: 26 nov. 2012.

124

paraíso racial, onde o tratamento violento, cotidiano e institucional, destinado à

população negra “[…] constitui a normalidade social brasileira, contra a qual se

frustram quaisquer potencialidades constitucionais de transformação do real”

(CASSERES & PIRES 2017, p. 1459).

O movimento negro vem denunciando o enquadramento limitado do sistema

jurídico acerca das relações raciais no Brasil e os processos decorrentes desse

entendimento que ao mesmo tempo em que conferem legitimidade a zona do ser:

“[…] estruturam e condicionam a própria percepção sobre o que pode ser

entendido como violência […] que para os que estão na zona do não ser “[a

normalização violência] é o modelo […] de resolução de conflitos [nessa

zona e que] é subdimensionada em categorias como inefetividade ou violação

de direitos, que reproduzem a proteção ilusória que o colonialismo jurídico

oferece a corpos e experiências não-brancas” (PIRES, 2018, p. 66).

Em outras palavras, a “filtragem racial” do sistema de justiça revela como a

reprodução do racismo afeta diretamente a aplicabilidade da concepção legal de

genocídio (FLAUZINA, 2014) que impede que esse tipo de acusação, seja objeto de

análise do STF. A partir dessas constatações percebemos como têm sido gerenciadas

pelo sistema de justiça as distorções criadas pela gramática eurocêntrica e burguesa de

racismo na invisibilização da estrutura que mantém o racismo, pautando a atuação

antirracista(?) dos tribunais.

A (re)produção de “mundos de mortes” só é possível graças a existência de uma

estrutura que, burocraticamente, regula a distribuição da morte e torna possível as

funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2016). Nesse sentido, refletir sobre os limites

da gramática do aparato de justiça, dos direitos humanos e as possibilidades de

radicalizar suas brechas são tarefas urgentes, pois se “[…] a América branca [e o mundo

ocidental moderno] é uma corporação concebida para proteger o seu direito exclusivo

de dominar e controlar os nossos corpos [negros] seja pelo exercício do “poder direto

(linchamentos) ou insidioso (pelo relining75) […] qualquer que seja sua aparência”

(COATES, 2016, p. 50), a confrontação dos limites do direito frente ao mundo anti-

negro, por entre as brechas do aparato jurídico-legal estatal, tem se configurado como

um campo potente de disputa e contestação.

A existência de um único caso julgado e condenado como crime de racismo

contra judeus e de genocídio contra indígenas nos informa acerca da força e da presença

75 Prática discriminatória de bancos e companhias de seguros nos Estados Unidos da América que

consiste em recusar no todo ou em parte a prestação de serviços com base nos bairros de residência dos

requerentes.

125

no sistema de justiça da ideia de que o racismo anti-negro é em primeiro lugar

inexistente e que quando se constata é lido como algo da ordem das relações

interpessoais (e isso, como vimos, tem implicações no que tange, por exemplo, a

comprovação da intenção para o crime de racismo). Além disso, o racismo entendidas

como atitude da mente de pessoas ignorantes ou pouco afeitas aos valores democráticos

oferece entraves reais a possibilidade de consideração por parte do judiciário da

existência do racismo institucional ou ainda do genocídio contra a população negra

cometida por agentes das forças de segurança do Estado, como vimos anteriormente.

O cerne da atuação jurídica (quando se manifesta) é no combate ao racismo

moral, com foco nos crimes de injúria racial, discriminação e preconceito impedindo a

discussão sobre as múltiplas facetas assumidas pelo racismo enquanto estruturante da

sociedade. Vemos novamente por um lado a negação da existência do racismo anti-

negro como elemento que organiza as relações sociais no Brasil e por outro como a

experiência do Holocausto mobiliza ideias, grupos, políticas e leis em torno da

construção de um sistema jurídico burguês forjado na ideia de incompatibilidade entre

democracia capitalista e opressão contra negros.

Entretanto, se por um lado, encontramos no meio jurídico o entendimento do

racismo como “fenômeno excepcional” e que não encontra lugar no Estado democrático

e de que toda a mazela na qual se encontra a maioria da população negra no Brasil é

apenas efeito de um passado distante, fora do estado de direito moderno e democrático,

por outro lado, as (limitadoras) possibilidades de mobilização do direito têm sido

oportunamente reivindicadas pelo Movimento Negro desde o século passado.

A luta antirracista no campo do direito tem desafiado os limites impostos pela

gramática eurocêntrica pós-holocausto. Entretanto, como aponta Pires (2016), nos

perguntamos quais são os desafios que se apresentam quando usamos “o direito contra o

direito”? Isto é, “partindo da premissa de que a construção normativa (tanto teórico

quanto jurisprudencial) se produz a partir da experiência da zona do ser” (PIRES, 2018

p.66), quais estratégias podem ser empregues na mobilização do aparato dos direitos

humanos contra o racismo sem, no entanto, nos tornarmos reprodutores da narrativa da

neutralidade, universalidade (e por isso eficiência) do direito criado pelo e para o seres

que habitam a “zona do ser” (FANON, 1975)?

A instituição das políticas de ação afirmativa permite vislumbrar a possibilidade

de disputas que visem à radicalização do direito, tendo em vista que a partir daquelas

políticas, a concepção de igualdade em termos puramente jurídicos é amplamente

126

problematizada, passando a ser duramente criticado por seu caráter essencialmente

abstrato e limitado pela ideologia meritocrática, abrindo novos caminhos ou se

quisermos, problematizando velhas estratégias para a efetivação de direitos a grupos

historicamente oprimidos e explorados.

O quadro atual de pesquisas realizadas sobre o tema das políticas de ação

afirmativa, ainda que suscitem avaliações enriquecedoras para o debate, não

contemplam um ângulo crucial, em nosso ponto de vista: como interesses de classe e

raça atravessam esse debate? Tanto no campo da produção científica quanto na

produção das normas jurídicas, isto é, do direito, o que vemos é que em ambos os

campos parecem movimentar-se sempre no sentido de forjar certo isolamento das

motivações históricas da adoção desse tipo de política e os conflitos políticos que ela

suscita, examinando o problema a partir de “pressupostos dados como verdades” 76.

Compreender quais são os aspectos centrais presentes no processo de

implementação das Políticas de ação afirmativa no ensino superior requer que

analisemos de forma articulada os interesses de classe e raça, evidenciando quais são as

lógicas e ideologias que orientam determinados posicionamentos políticos. Com isso

estamos situando nosso campo teórico, a saber, o da luta de classes e frações de classe, e

afirmando que a discussão sobre a implementação de políticas públicas (o embate entre

os que seriam a favor ou contra essa política), deve ser remetida ao conflito pela

apropriação da riqueza produzida em determinados contextos a partir das condições

históricas dadas pelo modelo capitalista neoliberal (BOITO JR. et al, 2013).

O debate apresentado no presente capítulo buscou apresentar as tensões, dilemas

e contradições vividas em três campos essenciais, em nossa análise, ao entendimento

das disputas de classe e raça que se configuram no Brasil: o pensamento social, a

produção da jurisprudência e as estratégias de luta do movimento negro.

Buscamos evidenciar de que forma a produção de conhecimento está em estreita

colaboração com a produção do direito, mas que ambos os campos também são lugares

disputados pelo movimento negro que por sua vez também interage de modo dinâmico

com aqueles dois. Nesse sentido, no que diz respeito ao interesse da presente tese,

76 Como exemplo de lugar-comum ou naturalizado por alguns acadêmicos, podemos citar os estudos

focados na análise de medição de desempenho dos alunos cotistas com vistas a justificar (ou não) a

continuidade do sistema de cotas étnico-raciais nas universidades públicas. Ainda que compreendamos

que algumas negociações são necessárias ao avanço da luta, nos surpreende que não encontremos, em boa

parte dos estudos sobre políticas afirmativas, o questionamento/problematização das justificativas para a

avaliação dos cotistas ao longo dos cursos. Em sua maioria, os estudos já partem do pressuposto de que o

cerne do debate deve ser a medição do desempenho dos ‘cotistas’, sem problematizar tal argumento e,

pior ainda, sem questionar de onde ele tem vindo e a quem interessa que ele seja reproduzido.

127

impõe-se como desafio que proponhamos uma análise sobre a disputa presente na

adoção das ações afirmativas nas universidades públicas do estado de São Paulo que

leve em conta o dinamismo e as contradições inerentes às condições de raça e classe que

atravessam os sujeitos nela envolvidos.

Entendemos que para compreender a problemática de classe e raça e como essas

desigualdades estão articuladas na polarização do debate sobre ações afirmativas no

ensino superior, é fundamental a articulação e mobilização de quatro conceitos

importantes: classe média, raça, racismo institucional e democracia racial.

A partir da mobilização instrumental desses conceitos é que poderemos gerar

insumos necessários para problematizar alguns ‘lugares comuns’ relativos às análises

sobre políticas de ação afirmativa no Brasil, e em específico nas estaduais de São Paulo,

evidenciando como o debate sobre as cotas nas universidades explicitam como não

podemos desvincular o racismo da lógica que organizam as classes e compreender de

que modo é possível (e necessário) superar a dicotomia analítica que aparta raça e classe

no que tange ao entendimento dos conflitos no contexto brasileiro.

128

CAPÍTULO 3: O PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO

ENSINO SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA (PIMESP)

“[…] Uma coisa que se pode se pode dizer a respeito do branco do Sul: ele é

honesto. Mostra os dentes para o homem preto. Diz ao homem preto, na cara,

que os brancos do Sul jamais aceitarão a falsa ‘integração’. […] A vantagem

disso é que o homem preto do Sul jamais teve quaisquer ilusões sobre a

oposição que tem de enfrentar. Pode-se dizer a favor dos brancos do Sul que,

individualmente têm ajudado de uma maneira paternalista muitos negros

individualmente. Mas o homem branco do Norte sorri com os dentes e

apresenta a boca sempre cheia de truques e mentiras de “igualdade” e

“integração”. Um dia, por toda a América, uma mão preta vai tocar no ombro

do branco; e ele vai se irar e deparar com um negro a lhe dizer.

-Eu também…O liberal do Norte tem pavor desse homem preto, pois se sente

tão culpado quanto qualquer homem branco do Sul. Na verdade, o homem

preto mais perigoso e ameaçador da América é o que vêm sendo mantido

pelo homem branco do Norte nos guetos pretos. A estrutura de poder branco

do Norte vive falando em democracia, enquanto mantém o homem preto fora

de vista, em algum buraco, do outro lado da esquina” (X, MALCOM, 1992,

pg. 260).

O objetivo do presente capítulo é examinar como a mobilização da ideologia

meritocrática, do mito da democracia racial e da autonomia universitária pelos docentes

das universidades estaduais paulistas frente à proposta do PIMESP, deixa evidente

como classe e raça são indissociáveis na organização capitalista no Brasil. Buscaremos

explorar como a defesa em torno da inclusão com mérito e a defesa da prioridade do

perfil econômico (focado na escola pública) em detrimento do racial para o

estabelecimento das políticas inclusivas, além de estratégia para a manutenção da

hierarquia do trabalho, também buscou minimizar (quando não silenciar) as

desigualdades com base em raça, reproduzindo o racismo institucional.

Nesse sentido, buscaremos nesse capítulo traçar os pontos de conexão que

orientaram as diretrizes contidas no PIMESP e os programas de inclusão nas

universidades estaduais de São Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão

situar as idéias que orientaram a atuação dos docentes das três universidades no

processo de avaliação do PIMESP. Entretanto, antes de adentrarmos na análise do

processo que culminou na rejeição ao Programa de Inclusão com Mérito no Ensino

Superior público paulista, entendemos que se faz pertinente examinarmos de que forma

a própria fundação das universidades paulistas confunde-se com a consolidação da

fração da classe média abastada e branca no estado de São Paulo, principal fração

opositora ao PIMESP e às cotas étnico-raciais.

Faremos, primeiramente, um breve incurso na história e nos discursos que

justificaram a criação e a missão das universidades estaduais públicas do estado de São

129

Paulo. Longe de uma genealogia acerca dos processos que culminaram na criação das

três universidades, nosso objetivo se limita apenas a tentativa de evidenciar que as

universidades paulistas (mas não apenas elas), nascem comprometidas com interesses

muito bem delimitados pela classe média alta, branca e intelectualizada no contexto de

consolidação da divisão social do trabalho no Brasil.

Buscaremos evidenciar em que medida as três universidades estaduais paulistas

nascem do alinhamento entre o anseio de uma classe média em garantir sua posição

frente às mudanças impostas pelo capital e o respaldo da classe dominante. Guardadas

as especificidadades dos contextos políticos e econômicos sob os quais emergem as três

universidades nascem em torno de um projeto político pautado na adaptação do modelo

escolar europeu para a realidade brasileira com vistas ao controle da hierarquia de

trabalho. Nesse sentido, iremos a seguir contextualizar a expansão do ensino superior

público no estado de São Paulo, procurando inserir aquele processo em um quadro mais

geral de expansão da educação gratuita para dois públicos diferenciados e com dupla

função: civilizar as massas e fomentar o surgimento de uma elite pensante.

“A elite intelectual capaz de orientar todas as classes sociais” 77: a criação

das universidades estaduais de São Paulo

A presente seção tem como objetivo situar historicamente a construção das

universidades estaduais públicas paulistas como espaço agregador dos interesses da

fração da classe média alta e branca e que se constituiu como projeto, pretensamente,

universalizante, compatibilizando os interesses da classe média a uma função

fundamental para a manutenção da hierarquização do trabalho: conceder à estrutura

capitalista uma aparente igualdade de oportunidades e ao mesmo tempo mascarar a

manutenção da exclusão intrínseca ao sistema capitalista.

Estamos interessados em situar a expansão das universidades paulistas a partir

das disputas entre a classe dominante e a classe média, a fim de evidenciar que a

implementação da educação pública tem uma função ideológica fundamental para a

77 O título da presente seção é uma alusão às palavras de Júlio de Mesquita quando da criação da UPS.

Nas palavras de Júlio de Mesquita Filho, uma das principais lideranças no processo que levou a criação

da USP. Júlio de Mesquita Filho, advindo da família que é proprietária do jornal O Estado de S. Paulo.

In:FILHO, Júlio de Mesquita. A Crise Nacional. São Paulo: Seção de Obras de “O Estado de S. Paulo”,

1925, p. 3. Cf. BARROS, Roque S. M. de. Júlio de Mesquita Filho e o pensamento liberal. In: BARROS,

Roque S. M. de. Estudos Liberais. Londrina: Editora da UEL, 1997, pp. 117, 131.

130

reprodução das classes (mas principalmente a classe média), a saber, de disseminar a

todas as classes que as instituições burguesas são abertas a todos e que existe igualdade

de condições de acesso e mobilidade social, definida exclusivamente pelos dons e

méritos dos indivíduos. Assim, apresentaremos de que modo o processo de expansão do

ensino superior paulista entre os anos de 1930 e 1960 cimentou, a partir dos princípios

de cidadania e competência, o alinhamento entre a classe dominante e classe média

(BARROS, C. M. 2011) que culminou na criação das três universidades estaduais

paulistas.

A criação da USP, da UNICAMP e da UNESP se insere na complexa

configuração brasileira da divisão social do trabalho marcado pela dinâmica de classes e

raça. O contexto de criação das três universidades foi marcado por grandes mudanças

acerca do papel da educação para o “desenvolvimento e progresso da nação”, onde a

classe média teve um papel fundamental. Com exceção da USP, a UNICAMP e a

UNESP foram criadas a partir do movimento de expansão do ensino superior na década

de 1960, fruto da reivindicação estudantil mas que acabou por ser orquestrado pela

ideologia empresarial no que tange a liderança da expansão: empresas privadas de

ensino (BARROS, C. M. 2011). Entretanto sobre esse ponto falaremos mais adiante.

A USP foi estabelecida em meio a uma conjuntura política marcada por disputas

entre as elites paulistas e o governo federal. Na busca pela consolidação da sua base

social e na tentativa de aproximação com os setores médios, o Governo Federal tinha

pretensões de abrir uma universidade no Rio de Janeiro com a colaboração da Igreja

Católica, o que intensificou os conflitos com as elites paulistas, como avaliou Júlio de

Mesquita em 1937:

“[...] Derrotados pelas forças das armas, sabíamos perfeitamente bem que só

pela ciência, e com um esforço contínuo, poderíamos recuperar a hegemonia

gozada na federação por várias décadas. Paulistas até os ossos, [sic] tínhamos

herdado dos nossos antepassados bandeirantes o gosto pelos projetos

ambiciosos e a paciência necessária para as grandes realizações. Que

monumento maior do que uma universidade poderíamos erigir àqueles que

tinham aceito o sacrifício supremo para defender-nos do vandalismo que

conspurcara a obra dos nossos maiores, desde as bandeiras até a

independência, da Regência até a República? […] Saímos da revolução de

1932 com o sentimento de que o destino tinha colocado São Paulo na mesma

situação da Alemanha depois de Jena, do Japão depois do bombardeio pela

marinha norte-americana, ou da França depois de Sedan. A história desses

países sugeria os remédios para os nossos males. Tínhamos vivido as terríveis

aventuras provocadas, de um lado, pela ignorância e incompetência daqueles

que antes de 1930 tinham decidido sobre o destino do nosso estado e da nossa

nação; de outro, pela vacuidade e a pretensão da revolução de outubro[de

1930]. Quatro anos de contatos estreitos com os líderes das duas facções nos

convenceram de que o problema do Brasil era acima de tudo uma questão de

131

cultura. Daí a fundação da nossa universidade, e mais tarde da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras” (Cf. SCHWARTZMAN, 2006, p. 164).

O conflito instaurado com a possibilidade de criação da universidade no Rio de

Janeiro evidenciava o descompasso entre uma classe média em expansão, ávida pela

liderança da reforma do aparelho educacional 78 e que exigia a instauração de um

sistema de educação republicano. Quanto ao papel da classe média paulista no

estabelecimento do ensino público, Saes (2005), afirma que:

“[…] No Brasil do século XX, o desenvolvimento da classe média – um dos

aspectos centrais da primeira fase do processo brasileiro de transição para o

capitalismo – desaguará na eclosão da Revolução de 1930 (que foi, em parte,

uma revolução de classe média) e, a seguir, na deflagração da luta dos seus

representantes ideológicos (escolanovistas, nacionalistas, progressistas, etc) a

favor da escola pública, atacada de modo mais ou menos aberto pelos

representantes - clericais ou meramente privatistas – das classes dominantes”

(idem, p. 102).

A classe média é a principal interessada na implantação do ensino público,

obrigatório e gratuito na ordem capitalista, pois, esse é o grupo que considera que a

manutenção de sua posição na hierarquia social do trabalho só pode ser assegurada pela

existência da formação escolar pública.

Além da ideologia da classe média, é preciso situar a narrativa de Júlio de

Mesquita e do grupo que liderou a criação da USP no contexto das relações raciais no

Brasil. Em nossa análise, as aspirações da classe média branca paulista não podem ser

circunscritas apenas em termos de classe. A afirmação de que como “[…] herdeiros dos

bandeirantes e por isso com gosto pelos projetos ambiciosos (SCHWARTZMAN, 2006,

p. 164)” e cujo objetivo seria criar uma universidade cuja missão é “trazer civilização” e

formar a nova “intelligentsia cosmopolita” (Idem) não nos parecem que são mobilizados

como meros gracejos linguísticos mas são conclamados para enunciar a idéia central na

criação da universidade: a idéia de modernidade como equivalente à missão

civilizatória. E essa idéia acarreta implicações para o acesso da população negra ao

espaço da universidade.

A narrativa eurocêntrica sobre a fundação da universidade exprime “as relações

entre o discurso e sociedade, em geral, e reprodução do poder social e da desigualdade

78 Utilizamos aparelho em diálogo com o conceito de aparelhos ideológicos de Estado de Louis

Althusser (1996) para quem “[…] toda formação social, ao mesmo tempo que produz […] tem que se

reproduzir as condições de sua produção. Portanto, tem que reproduzir: 1. As forças produtivas; as

relações sociais de produção existentes” (idem, p. 105), sendo essas reproduzidas “[…] essencialmente

fora da empresa […]” (idem, p. 107), sendo forjados desse modo os aparelhos ideológicos de Estado

como o aparelho ideológico escolar e o sistema representativo (Cf. ALTHUSSER, 1996).

132

[...]” (VAN DIJK, 1999, p. 24), além de evidenciar quais são os elementos ideológicos

que informam os recursos discursivos empregados pelos grupos dominantes para

estabelecer, manter e legitimar seu poder (Ibid).

A reivindicação da classe média brasileira por universidades públicas está

relacionada ao fato de que a universidade oferecia, naquele período de expansão de

vagas e postos de trabalho não-manuais, o meio pelo qual a classe média poderia

justificar e garantir a permanência naqueles postos que não dependesse unicamente da

indicação da classe dominante (oligarcas, coronéis), prática predominante no período de

transição entre o sistema escravista e a República, como aponta Saes (1975). Nesse

sentido, as reivindicações da classe média nos anos 30 são coerentes com:

“[…] o desenvolvimento das forças produtivas e o tipo de unidade

historicamente constitutiva das forças produtivas, num dado momento, geram

o resultado de que a força de trabalho tem que ser (variadamente) qualificada

e, portanto, reproduzida como tal. Dito de outra forma: de acordo com os

requisitos da divisão técnica e social do trabalho, com seus diferentes

‘cargos’ e ‘postos’. Como se assegura a reprodução da qualificação

(diversificada) da força de trabalho num regime capitalista? Neste, ao

contrário das formações sociais caracterizadas pela escravidão ou pela

servidão, a reprodução da qualificação da força de trabalho […] tende […]

cada vez menos a ser fornecida in loco ( o aprendizado dentro da própria

produção), sendo mais e mais obtida fora dela: através do sistema

educacional capitalista e de outras instâncias e instituições” (ALTHUSSER,

1996, p. 108).

Se na Primeira República, como analisou Saes (1975), as camadas médias não

lograram se converter como agentes de sustentação de um projeto político que fosse

particular e universalizante, articulando “[…] a defesa de seus verdadeiros interesses

(isto é, interesses coletivos, de longo prazo, e não interesses meramente individuais e

imediatos) com a promoção dos interesses dos grupos ascendentes na comunidade

brasileira […]” (idem, p. 59), a partir dos anos 20, dado o contexto propício (crise de

1929 e o colapso da economia cafeeira que afetaria o mito da “vocação agrícola” do

Brasil), as camadas médias buscam liderar reformas modernizadoras no nicho que lhes

seria possível: as políticas educacionais.

A mudança de comportamento político (agindo cada vez mais como classe

média) culminará, primeiramente, no lançamento do manifesto A reconstrução

educacional no Brasil: ao povo e ao governo – manifesto dos pioneiros da educação

nova79 de 1932, seguido da criação da Universidade de São Paulo em 1934.

79 Assinaram o Manifesto: Fernando de Azevedo, Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria, Anisio Spinola

Teixeira, M. Bergstrom Lourenço Filho, Roquette Pinto, J. G. Frota Pessôa, Julio de Mesquita Filho, Raul

Briquet, Mario Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Jr., J. P. Fontenelle, Roldão

133

A organização dos agentes das altas camadas médias em torno da instalação da

educação obrigatória e pública configurou-se, a nosso ver, como o primeiro projeto

político da classe média branca brasileira na República. O manifesto e a criação da

Universidade de São Paulo evidenciam, em nossa leitura, a emergência de uma

consciência unificada e sofisticada das camadas médias acerca da educação e da

atividade intelectual e que resultou na reforma do aparelho educacional80 no âmbito

nacional liderada por aquelas camadas.

Em nossa leitura, o lançamento do Manifesto marca a atuação dos intelectuais e

sinaliza a existência do primeiro grande conflito81 em torno da definição dos rumos do

sistema educacional na República. Dizemos conflito (e não luta), pois, apesar da

tentativa de forjar que existiria de fato uma oposição de projetos para a educação

pública brasileira (entre os que assinavam o Manifesto e as elites dominantes), os

intelectuais buscavam primeiramente, dentro da ordem capitalista estabelecida, garantir

o lugar da recente classe média no novo ordenamento econômico e político.

O redimensionamento do papel da educação pela classe média branca convergiu

para frear as possibilidades de mobilidade econômica do único grupo que, assim como

Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira Lima, Attilio Vivacqua, Francisco Venancio Filho, Paulo

Maranhão, Cecilia Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Alvaro Alberto, Garcia de

Rezende, Nobrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes. 80 Podemos citar alguns exemplos de reformas educacionais liderados por representantes daquelas

camadas médias envolvidas no Manifesto. Em São Paulo, em 1920 ocorreu a primeira reforma no sistema

educacional com Sampaio Dória e no ano de 1933, Fernando de Azevedo deu continuidade e seguiu

consolidando as reformas no sistema educacional básico e no código de educação paulistas. Na Bahia, em

1929, Anísio Teixeira empreende uma ampla reforma no sistema educacional. Júlio de Mesquita Filho

junto com um grupo de 12 professores, do qual também participavam Raul Briquet, A. Ferreira de

Almeida Jr., Roldão Lopes de Barros, dentre outros, elaboraram o pré projeto de 25 de janeiro de 1934

que viria a instituir a USP. Em Brasília, no ano de 1934, Anísio Teixeira e Julio Afranio Peixoto

lideraram uma ampla reforma no sistema primário. No Ceará (no ano de 1922), M. Bergstrom Lourenço

Filho lidera uma reforma educacional. José Getúlio da Frota Pessoa juntamente com Paschoal Lemme

lideram no Rio de Janeiro uma ampla reforma educacional que vai dos anos de 1920 a 1940. Em Minas

Gerais, Mario Casassanta realizou importantes reformas na educação pública mineira em 1927. José

Paranhos Fontenelle esteve no Instituto de Educação do Rio de Janeiro onde produziu vários trabalhos

para formação de professores da escola primária no Rio de Janeiro entre os anos de 1917 e 1950. Roldão

Lopes de Barros foi um dos fundadores da Escola Normal Padre Anchieta que viria a torna-se Instituto

Pedagógico para formação de professores no estado de São Paulo entre os anos de 1912 e 1933, quando

viria a ser incorporado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Noemy M. da Silveira Lima foi diretora do Serviço de Psicologia Aplicada de São Paulo nos anos de

1930. No Espírito Santo, Attilio Vivacqua promoveu uma ampla reforma educacional quando esteve

como secretário da Instrução Pública entre 1928 e 1930. No Paraná, Raul Gomes foi um dos principais

entusiastas da reforma no ensino primário, publicando matériais de jornais e livros acerca das diretrizes

que deveriam tomar o ensino e a formação de professores entre os anos de 1910 e 1960. Francisco

Venancio Filho, junto com Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Alvaro Alberto foram fundadores da

Associação Brasileira de Educação (1924), importante instituição para circulação das novas idéias acerca

da expansão do sistema educacional. 81 A própria escolha do termo “Manifesto” e a nomeação de quem seria o alvo da crítica contida no

Documento, a saber a burguesia, evidencia a intenção do grupo em demarcar que trata-se de um conflito

político, como aponta Cunha (2002).

134

as camadas médias, apenas possuíam a sua força de trabalho e que poderiam vir-se a

beneficiar da instrução pública na novíssima sociedade industrial: os negros libertos.

Sobre o estabelecimento da educação pública no Brasil e o seu papel na naturalização

do racismo na desumanização da população negra voltaremos a tratar no capítulo 4.

O ponto chave do Manifesto e que interessa para o debate no contexto do

presente capítulo diz respeito ao projeto de universidade defendido pelos manifestantes.

Vejamos:

“[…] A educação superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente a

serviço das profissões "liberais" (engenharia, medicina e direito), não pode

evidentemente erigir-se à altura de uma educação universitária, sem alargar

para horizontes científicos e culturais a sua finalidade estritamente

profissional […] impõe-se a criação […] de faculdades de ciências sociais e

econômicas; de ciências matemáticas, físicas e naturais, e de filosofia e

letras que, atendendo à variedade de tipos mentais e das necessidades

sociais [grifo nosso], deverão abrir às universidades que se criarem ou se

reorganizarem, um campo cada vez mais vasto de investigações científicas

[…] Nessas instituições [da instrução pública tradicional], organizadas antes

para uma função docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte ou à

técnica da profissão [é] incapaz de habilitar os espíritos a formar juízos e

incapaz de lhes inspirar atos" […] A organização de Universidades é, pois,

tanto mais necessária e urgente quanto mais pensarmos que só com essas

instituições, a que cabe criar e difundir ideais políticos, sociais, morais e

estéticos, é que podemos obter esse intensivo espírito comum […] que possa

estabelecer entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos

problemas brasileiros. É a universidade, no conjunto de suas instituições de

alta cultura, prepostas ao estudo científico dos grandes problemas nacionais,

que nos dará os meios de combater a facilidade de tudo admitir […] (Cf.

AZEVEDO, F.E.A. 2006, p.198-200)

Como aponta Carvalho M. M. C. (1998), os intelectuais reproduziam a divisão

entre a educação para o povo e a educação para a elite. Acompanhando as discussões

realizadas pela Associação Brasileira da Educação (da qual fazia parte grande parte dos

intelectuais do movimento pela reforma educacional e daqueles entusiastas pela criação

da USP) e as Conferências Nacionais de Educação realizadas entre 1924 e 1931, a

autora concluiu que enquanto para o povo, as diretrizes da instrução pública estavam

muito bem definidas e concensuadas em tornar a educação como dever (transformando

uma escolha em uma exigência) com vistas a civilizar (sanear, moralizar) e instruir para

o mundo operário, para as elites, o tom autoritário do dever de educar-se dava lugar a

discussões que, apesar de divergirem em alguns posicionamentos (como o papel do

estado na educação, laicização versus ensino religioso ou ainda regionalização versus

uniformização), os intelectuais convergiam para o mesmo entendimento em torno do

fim da universidade. Retomemos o Manifesto:

135

“[…] A educação superior ou universitária, a partir dos 18 anos, inteiramente

gratuita como as demais, deve tender, de fato, não somente à formação

profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de

pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ela deve ser

organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe

de elaboradora ou criadora de ciência (investigação), docente ou transmissora

de conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas

instituições de extensão universitária, das ciências e das artes […] De fato, a

Universidade, que se encontra no ápice de todas as instituições educativas,

está destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez

mais importante na formação das elites de pensadores, sábios, cientistas,

técnicos, e educadores, de que elas precisam para o estudo e solução de suas

questões científicas, morais, intelectuais, políticas e econômicas. Se o

problema fundamental das democracias é a educação das massas populares,

os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma

pirâmide de base imensa [grifo nosso]. Certamente, o novo conceito de

educação repele as elites formadas artificialmente "por diferenciação

econômica" ou sob o critério da independência econômica, que não é nem

pode ser hoje elemento necessário para fazer parte delas” (Idem, p. 199-200).

Retornando à análise da classe média na Primeira República realizada por Décio

Saes (1975), o referido autor parece sugerir que a “verdadeira” integração das camadas

médias na arena política viria por meio da organização desses grupos em partidos

incorporados ao jogo político82 e que tivessem como bandeira principal a

industrialização do país (idem, p. 64). Em nossa análise, a visão de Saes (1975) acaba

por limitar as possibilidades de integração da classe média, restringindo-a ao Aparelho

Ideológico Político, isto é, situando-o no âmbito do sufrágio universal e da participação

da política partidária. Entretanto, como aponta Althusser (1996):

“[…] o Aparelho Ideológico de Estado [AIE] que se instalou na posição

dominante nas formações sociais capitalistas maduras, em decorrência de

uma violenta luta política e ideológica de classes contra o antigo Aparelho

Ideológico de Estado dominante, foi o Aparelho Ideológico escolar [apesar

de] na representação ideológica que a burguesia tentou dar a si mesma e às

classes que ela explora, o AIE dominante nas formações sociais capitalistas

realmente não parece ser a escola, mas o AIE político, ou sejam o regime da

democracia parlamentar que combina sufrágio universal e a luta partidária

[…] todos os aparelhos ideológicos de Estado, seja quais forem, contribuem

para um mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é,

das relações capitalistas de produção […] não obstante, nesse concerto, um

Aparelho Ideológico de Estado certamente detém o papel dominante,

embora quase ninguém dê ouvidos à sua música- ele é tão silencioso! Trata-

se da escola…[…] nenhum outro Aparelho Ideológico de Estado tem a

audiência obrigatória (e gratuita) da totalidade das crianças na formação

social capitalista, oito horas por dia, durante cinco ou seis dias por semana”

(idem, p.120-122).

82 Tal como aconteceu com no fim do século XIX na Argentina, com a criação pelos setores médios

urbanos da União civil Radical que levou a presidência Yrigoyen em 1916 e no Chile com a criação da

Aliança Liberal que também conseguiu eleger o candidato que estavam a apoiar nas eleições de 1920 (Cf,

Saes, 1975).

136

Ao reinvidicar o estabelecimento do ensino público e obrigatório, defendendo a

concretização de um projeto em longo prazo, as camadas médias urbanas, em nossa

leitura, aproveitaram o contexto de instabilidade política entre as classes dominantes na

Primeira República e orientou a ação política a procura de novas estratégias que

garantissem seu lugar na estrutura de classes. Situado o contexto de emergência das

reivindicações pelo reenquadramento do papel da educação pública no ordenamento das

classes, avancemos para contextualizar a criação da USP em meio àquela configuração.

Chamada pelos seus entusiastas de “A primeira semente do Brasil novo”, a USP

foi criada em 1934 e representava um projeto das camadas médias urbanas com o apoio

da oligarquia paulista, frustrada com a derrota na Revolução Constitucionalista, e que

nas palavras de Júlio de Mesquita “acreditava que, para São Paulo recuperar e manter

sua preeminência no país era necessário criar uma nova elite, instruída não só nas

ciências modernas, mas também nas mais avançadas práticas gerenciais e de negócios.”

(Cf. SCHWARTZMAN, 2006, p. 164).

Criar uma nova elite “também nas mais avançadas práticas gerenciais e de

negócios” (Idem) parece sinalizar que a criação da USP converteu-se na oportunidade

para as camadas médias urbanas tornarem-se agentes de sustentação desse projeto

político, agregando os interesses da elite aos seus verdadeiros interesses. Válido dizer

que a nova universidade congregou instituições que já existiam no estado como as

antigas Faculdades de Direito, Medicina e Engenharia e a Escola Superior de

Agricultura Luiz de Queiroz, portanto, instituições que já eram ocupadas pela camada

média abastada intelectualizada, acompanhado da contratação em massa de professores

estrangeiros.

A seleção dos professores evidencia como as altas camadas médias brancas

controlaram o processo de fundação da USP assim como denuncia os contornos do

pretenso universalismo ocidental liberal sob o qual a “primeira semente do Brasil novo”

estaria sendo fundada. Em relação à seleção dos professores, Júlio de Mesquita afirma:

“[...] Éramos irredutivelmente liberais. Tão liberais, que nos julgávamos na

obrigação de tudo fazer para que o espírito em que se inspirasse a

organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente’. E, fiel a essa

idéia (e com muito tato), para as cadeiras de que dependia diretamente a

formação espiritual dos estudantes, isto é, para aqueles estudos que nunca

são inteiramente ‘neutros’, preferiram-se mestres franceses, afinados com a

tradição ocidental e que repudiavam os credos fascista e nazista” (Cf.

BARROS, S.1997, p. 121).

137

Importante notar que a defesa “irredutível” do liberalismo, atrelada à bandeira da

laicidade, como pilares basilares da universidade evidenciam o pertencimento à classe

média do grupo que liderou a fundação da USP na medida em que assumem um papel

de agentes da modernização e da modernidade no ensino superior. Modernização

enquanto processo movido pela consciência moderna ocidental. Modernidade como

lógica que se apresenta como eminentemente secular, racional e tolerante frente à

diversidade religiosa, isto é, razão e liberdade de pensamento como essencialmente

constitutivos de sociedade moderna (MALDONADO-TORRES, 2016).

O projeto recebeu o apoio do governador do estado e culminou na criação de

duas instituições: a nova universidade e uma escola independente de sociologia e

ciência política. Criada a Universidade, para quem se destinou? Vejamos o que diz o

sociólogo Simon Schwartzman no artigo A universidade primeira do Brasil: entre

intelligentsia, padrão internacional e inclusão social (2006):

“[...] Desde o início, pois, a Universidade de São Paulo foi uma instituição

voltada para o mundo, com um corpo docente formado de professores da

Europa, freqüentada em grande parte por filhos dos imigrantes europeus que

constituíam uma parcela considerável da população do estado. Naqueles

anos, a ambição da nova universidade foi não apenas desenvolver

competência profissional e conhecimento aplicado para fazer crescer a

economia, o que de fato ocorreu, mas também trazer civilização ao Brasil por

meio da “ciência pura” e do “pensamento puro”. A adoção do modelo francês

(tanto Mesquita Filho como Duarte tinham estudado em Paris) implicou que

os professores estrangeiros eram vistos não apenas como cientistas e

especialistas, mas como intelectuais, fundadores de uma nova intelligentsia

cosmopolita” (idem, p. 165-166).

A narrativa que se orgulha de, já no “nascimento”, a USP ter desenvolvido uma

“ciência pura” feita por “imigrantes” “para trazer civilização ao Brasil”, desde a sua

fundação é a mais pura evidência do confinamento racial no qual está fundada essa

Universidade e que em um só golpe, reflete o estado da relação que o Brasil e os

produtores de conhecimento estabeleceram com a massa negra liberta na nascente

República. Nesse sentido, percebemos os delineamentos dos primeiros mecanismos que

começaram a ser institucionalizados para naturalizar a hierarquização racial no contexto

do ensino superior público do estado de São Paulo.

Sobre o confinamento racial que acomete a USP desde a sua fundação e a

indiferença da classe média branca e abastada frente a isso, o professor José Jorge de

Carvalho (2006) faz uma análise bastante pertinente:

“[...] Meditemos na famosa passagem de Roger Bastide em que fala da

experiência de democracia racial em um bonde noturno do subúrbio do

Recife cheio de trabalhadores cansados, onde um negro dormia apoiando sua

cabeça no ombro de um empregado de escritório. O curioso aqui é que

138

Bastide não conseguiu estabelecer uma conexão entre o que viu naquele

bonde carregando gente humilde e o seu mundo cotidiano na USP,

inteiramente segregado e excludente racialmente. Se ainda é segregado hoje,

como não seria há 50 anos atrás quando Bastide decidiu empregar a

expressão “democracia racial” para falar do que vira entre as classes

populares do Recife quando visitou Gilberto Freyre. Um relance do que era a

realidade racial da USP na época desse texto de Bastide pode ser capturado

por uma olhada atenta às fotos do livro História da Universidade de São

Paulo, de Ernesto de Souza Campos, publicado em 1954. Em uma centena de

pessoas registradas em mais de 30 fotografias sobre as mais diversas áreas de

ensino e pesquisa conduzidas na universidade, não encontramos nem um

único rosto que pudéssemos identificar como de uma pessoa negra, ou

mesmo mulata, nem sequer entre os funcionários. Bastide celebrava a

“democracia racial” que encontrara nos bondes de subúrbio do Recife sem

conectá-lo com o apartheid acadêmico em que vivia no interior da

Universidade de São Paulo [...]” (idem, p.7).

Apesar de estarmos falando da formação da USP, que data do século XX,

parece-nos que a missão civilizatória permanece até os dias atuais na narrativa dos

docentes, ainda dissimulado sob o manto do pretenso universalismo abstrato liberal e da

valorização das competências. A fala do ex-reitor da USP em 2013, João Grandino

Rodas, à época reitor da Usp, acerca do debate sobre políticas de ação afirmativa e a

possibilidade de cotas para negros e indígenas nas universidades estaduais revela as

continuidades entre a “USP do século passado” - criada pelos herdeiros dos

bandeirantes e destinada a formar a intelligentsia nacional e a “USP atual” - que aceita

a representação da “população com todos os seus aspectos”:

“[...] Nós temos um certo [sic] prazo [para analisar o PIMESP] entretanto o

importante é verificar em primeiro lugar que é imprencidível que as três

universidades paulistas mantenham o mérito porque é justamente do mérito

é que nós vamos retirar a grandeza da excelência que essas universidades

tem tanto no Brasil quanto no mundo então isso é indispensável que

aconteça. Daí porque a preocupação no âmbito do conselho de reitores de

estudar algo que fosse de justiça porque é óbvio: é de justiça que

universidades públicas aceite uma parcela da população representada em

todos os seus aspectos mas por outro lado não adianta abrir essa

possibilidade como um simulacro. Entram e se veem perdidos no dia

seguinte. Ou que se abra a universidade de tal forma que ela possa vir perder

o mérito. (Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

Refletir sobre o projeto político que funda as universidades na sociedade

capitalista racializada contribui para evidenciar os contornos da dominação de classe e

raça. Nesse sentido a constituição da USP é forjada como projeto político que articula

competência e cidadania, elementos ideológicos fundamentais para naturalizar e

justificar o “destino” do negro e o lugar da fração da classe média branca abastada na

organização de classes brasileira. O projeto político que orienta a existência da USP,

para além de alinhado com os interesses da classe dominante, funda-se na produção de

mecanismos velados de inferiorização da população não-branca brasileira.

139

A fundação da UNICAMP e da UNESP está inserida no contexto de

intensificação da expansão do ensino superior no Brasil, relacionados por sua vez a

momentos de reestrututação das forças produtivas e nesse sentido podemos situar dois

momentos importantes: o primeiro na década de 60 e o segundo entre os anos 90 e 2000

(BARROS, C. M. 2011).

Nos anos 60, o aumento da presença das empresas estrangeiras, o crescimento

do desemprego com o fechamento de empresas nacionais e da desigualdade de renda

foram acompanhadas por mudanças nas formas usuais de ascensão ou manutenção

social dos setores médios nos cargos estatais e de gestão. Nesse contexto, o trabalho

dito “qualificado” tomou proporções importantes, cumprindo o papel técnico e

coercitivo já que o trabalho massificado exigiria maior controle, direcionamento e

organização que deve ser exercido por um grupo especializado. Será no contexto

marcado pelas mudanças na dinâmica capitalista no Brasil dos anos 60 (intensa

industrialização, aumento do capital estrangeiro no país, expansão do capital privado

nacional e as reivindicações da classe média frente aos impactos daquelas mudanças)

que a UNICAMP e a UNESP foram criadas.

A mobilização estudantil pela expansão do ensino superior dos anos 60

contribuiu, articulada a outros fatores, para a criação da UNICAMP e da UNESP. Desse

modo a fundação de ambas as universidades foi impulsionada por certa preocupação da

classe média com a dinâmica na hierarquização de trabalho dada pelo aumento das

exigências por formação técnica e especialização como pré-requisitos para acessar

determinados cargos. Assim, dado que a ‘valorizada’ diplomação é conferida pelo

sistema educacional, a pauta reivindicativa da classe média era pela expansão do ensino.

Como afirma Cunha L.A. (2007):

“[...] A rebelião dos jovens das camadas médias contra a ordem social vigente

resultou da impossibilidade de elas atingirem os alvos da ascensão social

propostos por essa mesma ordem. Na raiz da rebelião está a intensificação do

processo de monopolização da economia, o qual determinou o deslocamento

dos canais de ascensão possíveis para essas camadas fazendo com que elas

dependessem cada vez mais da obtenção dos graus escolares,

progressivamente mais elevados, exigidos pela expansão das burocracias do

aparelho governamental e das empresas” (idem, p. 71).

Diante da pressão do movimento estudantil, em 1968 ocorre a Reforma

Universitária que se por um lado, cedeu a pressão do movimento estudantil na criação

de vagas no ensino superior, por outro, esteve focada na criação de “estabelecimentos

isolados de ensino no setor privado, contrariando a própria lei da Reforma Universitária

(5.540/68)” (BARROS, C. M. 2011, p 138).

140

A criação da UNICAMP, em 1962, emergiu em um contexto de forte pressão

das camadas médias pela interiorização do ensino superior que contemplasse a demanda

da expansão do capital no interior paulista. Nesse sentido, é preciso ter em conta a

dinâmica das forças produtivas e os conflitos entre as classes nesse contexto de

transformação que irá instituir o tripé sob o qual a Universidade de Campinas viria a ser

instituída: pragmatismo econômico, burocracia e meritocracia (LIMA, 1989).

A UNICAMP nasce como universidade operacional para cumprir com os fins,

supostamente, desenvolvimentistas da ditatura militar iniciada em 1964 e, portanto em

total conexão com a ideologia empresarial voltada para os interesses do capital

monopolista. A idéia-chave que atravessou todo o processo de concepção e fundação da

UNICAMP foi a da universidade-empresa, fundamentada na defesa de que o objetivo

do ensino superior seria formar técnicos para o desenvolvimento, conforme palavras do

primeiro reitor, Zeferino Vaz:

“[...] a universidade tem que dar auxílio a pequena e média empresa [...]

assessoria administrativa e assessoria técnica [...] o que não pode é a

universidade dissociar-se da empresa com um falso pudor de

comercialização mas esse contato da universidade com as empresas é

fundamental para o desenvolvimento da nação brasileira” (VAZ, Zeferino,

2011).

A UNICAMP surge em meio às mudanças na dinâmica do capital financeiro

internacional com grande demanda pelo aparelhamento dos serviços e atividades com

vistas a apoiar o setor produtivo industrial e o setor educacional, assim como os setores

voltados para o desenvolvimento científico-tecnológico que não ficaram de fora dessa

dinâmica. Assim, fundada sob um projeto político carregado de algum paradoxo já que

nasce conectada- assumidamente, aos interesses do capital, a UNICAMP é criada em

articulação com o processo de renovação das funções do Estado capitalista brasileiro e

se insere no processo de instrumentalização da universidade para o desenvolvimento do

capital com vistas a atender à fração da burguesia interessada em apropriar-se do

conhecimento produzido nas universidades para dinamizar a produção industrial, sob a

concepção da “educação-mercadoria” (RODRIGUES J., 2007).

A UNICAMP nasce em diálogo com a concepção de Educação-mercadoria

porque diferentemente da concepção de mercadoria-educação, na primeira teríamos uma

burguesia industrial, supostamente interessada em um projeto de educação e

desenvolvimento econômico enquanto na visão mercadoria-educação, liderada por uma

fração da nova burguesia de serviços interessada apenas em vender sua mercadoria, a

141

educação é concebida sem nenhum projeto ligado ao desenvolvimento científico-

tecnológico (RODRIGUES J., 2007).

A criação da UNICAMP é fruto de uma conformação de interesses e forças: de

um lado a classe média de Campinas que, ao longo dos anos 60, se mobilizou

fortemente por meio do conselho de entidades de Campinas junto ao governo do Estado

para criar, em primeiro momento uma faculdade de medicina que viria a ser fundada em

196283 e de outro a burguesia industrial em expansão. Dentre os argumentos alegados

para criação da faculdade em Campinas, o grupo referiu que um dos motivos seria o

“alto grau de cultura da classe média de Campinas e as tradições culturais de Campinas”

(Cf. VAZ, 2011).

Do outro lado, o governo militar, interessado em responder as demandas do

capital estrangeiro ao mesmo tempo em que estimulado pela corrida tecnológica

alimentada pela Guerra Fria pela crença na necessidade de dominar tecnologias

estratégicas principalmente na área de comunicações, contribuiu para contratação de

“[...] pesquisadores para inventar coisas, construir laser para derrubar um aviãozinho lá

em cima, precisava ter gente com intelecto” 84. Isso explica porque os primeiros cursos

montados foram os de engenharia com o apoio inclusive da Fundação da Indústria do

Estado de São Paulo que à época contribuiu de forma decisiva na elaboração dos

currículos dos cursos de engenharia.

A UNICAMP nasce para responder as necessidades da dinâmica do capital nos

anos 60. Zeferino Vaz, reitor por mais de uma década não escondeu sua preocupação

em responder às demandas advindas da indústria, expressas na adequação das pesquisas

desenvolvidas, nos currículos dos cursos e na própria lógica que orientava o

planejamento da aplicação dos recursos, pois “[...] a Universidade Estadual de Campinas

está a ser implantada como Empresa de produção cultural [e] a sua elaboração há de

obedecer estritamente os princípios empresariais que regem a empresa privada” (VAZ,

1969, apud LIMA, 1989, p.92).

O processo de criação da UNICAMP coloca em suspensão o discurso (muito

evocado pelos docentes ao longo do processo do PIMESP) que situa a universidade

pública brasileira como ontologicamente democrática e neutra em relação aos interesses

83 Quanto ao ano de fundação existe alguma controvérsia já que o lançamento da pedra fundamental como

marco de instalação da UNICAMP ocorreu em 1966. 84 Professor Rogério César de Cerqueira Leite, um dos primeiros professores convidados por Zeferino

Vaz. Foi professor do Instituto de Física de 1970 a 1987. Entrevista concedida para o documentário A

História da UNICAMP, Fundação Padre Anchieta em 13 de dezembro de 2011. Cf. VAZ, Zeferino, 2011.

142

do capital. Nesse sentido, talvez pela justificativa que orientou sua criação,

estabelecendo por isso uma relação menos dissimulada com a lógica empresarial, a

UNICAMP tenha elaborado o modelo de política de inclusão que viria a inspirar o

PIMESP e que até hoje se encontra em vigência na Universidade- o Programa de

Formação Interdisciplinar Superior (Profis), que tem como foco a formação de jovens

de escolas públicas voltada para atender as demandas do mercado. Mas sobre esse ponto

falaremos mais adiante.

Além desses elementos, percebemos que o próprio princípio da autonomia

universitária, longe de absoluto, é em si mesmo contingencial, apesar de ter sido

amplamente e exaustivamente utilizado pelos docentes das três universidades paulistas

para contrapor-se à adoção de cotas étnico-raciais nos anos 2000 como no trecho a

seguir:

“[...] a autonomia acadêmica foi e vinha sendo respeitada até recentemente,

sendo a forma de recrutar seus alunos um dos aspectos relevantes desta

autonomia, explicitada, como vimos acima, na LDB [...] A recente decisão do

governo federal, assim como a de alguns legislativos estaduais, de determinar

cotas para certos grupos nas universidades públicas, fere frontalmente esse

princípio [...] Finalizando, o projeto de lei, como divulgado, vai muito além

de indicar metas e prazos, no caso em questão. Mas ainda há tempo para que

seja repensado, de maneira a garantir que o instituto constitucional da

autonomia universitária, pelo menos em um de seus aspectos essencialmente

acadêmicos, o de formar o corpo discente das universidades, seja preservado

[...]” (PEDROSA, R. H. L.,2004).

Ao olharmos para o processo de criação da UNICAMP e ao nos defrontarmos

com a reivindicação da autonomia universitária como mecanismo que ‘protegeria’ a

universidade de interesses externos, tão presente no discurso dos docentes paulistas

contrários às cotas, nos parece que a autonomia tem sido mobilizada mais como um

mecanismo que assegura a regulamentação da relação da universidade a partir dos

interesses da fração da classe média abastada do que como valor ontológico ancorado

em ideais democráticos e independentes das demandas das classes dominantes.

O processo de criação da UNESP desvela, em nossa análise, as primeiras

disputas das frações da classe média paulista sobre o controle da “sobrecertificação”

(BOURDIEU, 1982) e nesse sentido os trabalhos de César Barros (2007; 2011) quanto à

relação entre expansão do ensino (acarretando um grande contingente de pessoas

diplomadas) e os efeitos desse processo para a manutenção da hierarquia do trabalho

parece ser um bom ponto de partida para compreender as disputas no interior da classe

média paulista pela gestão da ampliação do ensino superior e do conflito entre a classe

média e a classe dominante quanto ao controle pelo aparelho educacional.

143

A UNESP surge a partir da junção dos Institutos Isolados de Ensino Superior do

Estado de São Paulo que já existiam desde os anos 40 em decorrência das demandas da

classe média paulista interiorina que crescia decorrente do processo de desenvolvimento

urbano, agrícola e industrial. A demanda era por uma formação superior dos jovens da

classe média que não tinham possibilidade de se manterem na capital ou em outras

universidades fora do estado. A junção de institutos, fundações, escolas para formação

de universidades era corrente, como aconteceu com a própria USP, mas mesmo assim, a

UNESP só viria a ser instituída como universidade em 1976. Ou seja, entre a criação da

USP nos anos 30, da UNICAMP nos anos 60, por quais razões a UNESP só viria a ser

criada quase no início dos anos 80 mesmo diante da demanda das classes médias

interiorinas e com o apoio das elites locais desde os anos 60? O Conselho Universitário

da USP teve um papel muito importante sobre esse processo (LEITE, 1997;

CASTILHO, 2009).

Até os anos 50, o Conselho da USP exercia um papel importante na política

educacional e era consultado pela Assembléia Legislativa quanto à criação dos

Institutos isolados de educação. Mesmo não aprovando a existência da maioria dos

Institutos, a USP acompanhava o processo de criação e funcionamento muito de perto,

pois, supostamente, precisava assegurar que “os interesses políticos [...] “não

prejudicassem o alto nível do Ensino e da cultura no país” (LEITE, 1997, p. 273).

A USP, por meio do supervisionamento da criação de novas Faculdades e

demais Institutos Isolados no estado de São Paulo (que viriam depois a constituir a Rede

dos Institutos Isolados do interior), retardou o surgimento de universidades no interior

paulista. A análise de um trecho do relatório do primeiro diretor da Faculdade de

Marília, Prof. Querino Ribeiro, nomeado pelo governador do Estado, evidencia a

resistência da USP:

“[...] A história das solicitações da cidade de Marília para obter um instituto

de ensino superior vem de muito longe. O Processo número 4557/52 apesar

de avolumado pela pertinácia edificante dos marilienses encerra, todavia,

uma quase dezena de pareceres de professores isolados ou em comissão, da

Faculdade de Filosofia ou de outros institutos da Universidade e do próprio

Conselho Universitário, todos, invariavelmente, contrários à pretensão, com

ponderáveis fundamentações que vão desde os fatos concretos e elementares

das dificuldades materiais, até a idéia superior da necessidade preliminar de

um planejamento geral para a distribuição dos institutos de ensino superior

(isolados ou participantes da Universidade) pelos grandes centros do interior

do nosso Estado” (ANAIS, 1969, p. 10 apud CASTILHO, 2009, p. 86).

Segundo Castilho (Idem), em torno de 60 pedidos vindos do interior paulista

para criação de institutos, cursos, fundações foram negados pelo Conselho da USP sob a

144

justificativa de que essas instituições não teriam condições de assegurar o “alto nível do

Ensino e de Cultura do país, exigido das Instituições Superiores” (Idem). A preocupação

com rigor e qualidade parecia dissimular: 1) o impacto no volume de recursos advindos

do governo estadual para a USP, caso outras universidades viessem a surgir e 2) o

controle da “sobrecertificação”.

O funcionamento na forma de Institutos levou ao crescimento, cada vez maior,

da mobilização da classe média interiorana pela criação de uma universidade. A Rede

de Institutos não dispunha de orçamento próprio (tendo que negociar mês a mês os

recursos diretamente com a Secretaria de Educação). Além disso, um segundo elemento

era o fato dos institutos não constituírem uma mesma instituição, em termos jurídicos, o

que acabava por enfranquecê-los politicamente. E um terceiro fator, era o próprio

controle feito pela USP que ainda exercia influência no funcionamento dos Institutos

(nos currículos e quadro docente). Então finalmente em 1976, frente a grande pressão

dos institutos, a UNESP é instituída como universidade com o apoio da já criada

UNICAMP, mas ainda assim sofrendo fortes críticas advindas do grupo fundador da

USP. Mas como entender a resistência da USP mesmo diante da incapacidade, em

termos de infraestrutura, daquela Universidade em dar conta da demanda e diante da

forte pressão das classes médias do interior do Estado com o apoio de representantes

políticos para a criação da UNESP?

Além da divisão dos recursos, a resistência pode estar atrelada a tentativa de

elitização do ensino superior articulada à busca pela limitação à “certificação”. Ainda

que complementares, entendemos que esses dois elementos têm características que os

particularizam e que estão relacionados ao modo como a opressão de classe e raça se

himbricam (mas não podem ser tomados um pelo outro) na disputa pelo controle do

sistema universitário público.

Quanto ao primeiro elemento, entendemos que a razão pela qual existia

resistência no grupo ligado aos fundadores da USP, estava relacionada a certa postura

elitista de matriz eurocêntrica, que discutimos anteriormente acerca do contexto de

criação da USP e do movimento de reforma educacional que dissimulava os interesses

políticos pelo controle da universidade disseminando o discurso de que o ensino

universitário deveria ultrapassar:

“[…] os limites e as ambições de formação profissional, a que se propõem as

escolas de engenharia, de medicina e direito. Nessas instituições, organizadas

antes para uma função docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte

ou à técnica da profissão a que servem, com o cuidado da aplicação imediata

145

e próxima, de uma direção utilitária em vista de uma função pública ou de

uma carreira privada […]” (Cf. AZEVEDO F.E.A., 2006, p.199).

A resistência da USP à criação da UNESP parece inserir-se nesse contexto de: 1)

rechaço da intelectualidade uspiana a qualquer movimento de ampliação do ensino

superior e; 2) preocupação em barrar qualquer proximidade com uma formação mais

“profissionalizante” ou “técnica”, como era o caso de alguns institutos que viriam a

compor a UNESP.

Em relação ao segundo elemento, entendemos que o foco da preocupação estaria

mais em garantir que se mantivesse a idéia de “que não seria necessário criar mais

escolas de qualidade, pois não havia a necessidade de formar mais elites. Bastava a

Universidade de São Paulo garantir essa formação e renovação” (CASTILHO, 2009, p.

95). Nesse sentido, mediante a expansão do ensino, a USP mobilizou-se para bloquear a

criação de mais instituições, mantendo sua distinção, limitando as vagas no ensino

superior público e assim evitando a desvalorização dos diplomas, isto é, controlando a

sobrecertificação.

Retomar os projetos políticos e as idéias que atravessam a criação das

universidades estaduais paulistas nos parece oportuno para compreender de um modo

mais ampliado a grande resistência da classe média branca abastada paulista à adoção

das cotas étnico-raciais.

Em nosso entendimento a resistência dos docentes da USP, é em parte explicada,

pelo medo da sobrecertificação que implica na possibilidade de juntar-se à grande massa

de trabalhadores manuais e esse medo, como vimos, acompanha a própria fundação da

universidade. Entretanto, como tentaremos evidenciar na seção seguinte, para além da

condição de classe, a resistência dos docentes expõe de que forma, historicamente, a

fração da classe média abastada e branca tem reproduzido a naturalização do racismo.

Longe (ou não tão longe assim) do contexto eugenista do século XX no qual

justificara a sua posição no ordenamento social pela “hierarquia das capacidades” para

formar a “hierarquia democrática” (AZEVEDO F.E.A., 2006, p. 191), a fração da classe

média branca e alta paulista no século XXI, buscará, em nossa leitura, justificar sua

posição na divisão social do trabalho por meio da defesa da meritocracia aliada à crença

na democracia racial, recorrendo à prerrogativa constitucional da autonomia

universitária para assegurar o controle sobre a democratização do acesso ao ensino

superior público.

146

O PIMESP

Confrontados a decidir sobre políticas que pudessem vir a ampliar as chances de

acesso para as populações negras e indígenas ao ensino superior, os docentes das

estaduais de São Paulo são levados a enunciar idéias e percepções a partir das quais

entendem: 1) os motivos da ausência de estudantes negros e indígenas no espaço da

universidade pública e 2) as soluções adequadas para esse problema. Nesse sentido, o

objetivo da presente seção é examinar como o conceito eurocêntrico de raça e racismo e

o pertencimento à fração da classe média abastada e branca orienta o posicionamento

político dos docentes das universidades estaduais paulistas frente ao PIMESP e às cotas.

Buscaremos explorar como a defesa em torno da inclusão com mérito e a defesa

da prioridade do perfil econômico em detrimento do racial para o estabelecimento das

políticas inclusivas consiste na manutenção da hierarquia do trabalho e silenciamento

das desigualdades com base em raça viabilizado por meio de uma atualização de

políticas de cunho integracionistas chamadas por seus elaboradores de políticas

inclusivas.

Buscaremos traçar, ao longo da presente seção, os pontos de conexão que

orientaram o PIMESP e os programas de inclusão nas universidades estaduais de São

Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão situar as idéias que vem

orientando a atuação dos docentes das três universidades no processo de ampliação de

acesso à universidade.

Negros e indígenas correspondem a 37,5% da população total do estado de São

Paulo (IBGE, 2010), entretanto a presença desses grupos nas três universidades, mesmo

com as “políticas de inclusão” adotadas pelas universidades estaduais paulistas desde

2004 – como o sistema de bonificação que atribui pontos aos inscritos no vestibular

egressos de escola pública, esteve sempre abaixo do percentual da população negra e

indígena. Por exemplo, em 2012, ano da criação da lei federal de cotas, a presença de

negros e indígenas na UNESP e UNICAMP no corpo discente não passava dos 16% e

na USP dos 14% (VOGT, 2013), subrepresentatividade que encontraremos também no

perfil do corpo docente.

Os dados85 disponibilizados pela USP, UNESP e UNICAMP desnudam a

composição étnica-racial do corpo docente das estaduais paulistas. Em 2019, dos 3.372

85 Sobre as informações acerca do perfil racial, no caso da USP os dados estão disponíveis na página da

Universidade (https://uspdigital.usp.br/portaltransparencia/informacaoServidorRacaCor), mas no caso da

147

docentes na UNESP, apenas 7% são negros (218 autodeclarados pretos e pardos) e

indígenas (4). Já na UNICAMP, do total de 2.087 docentes, 89% autodeclararam-se

brancos (1.857) e 4% negros e indígenas (87 negros e cinco indígenas).

A USP é, dentre as universidades, a que menos tem em seu quadro docente a

presença de negros e indígenas. Dos 5.763 docentes na ativa, 91% (5.246)

autodeclararam-se brancos e apenas 126 eram negros e um indígena (2% do total). Vale

enfatizar que a porcentagem de autodeclarados brancos no estado de São Paulo é de

63,9%, o que aponta para uma subrepresentação de negros e sobrerepresentação de

brancos nos cargos de docência.

Com a apresentação dos dados acerca da composição étnica-racial do corpo

docentes das universidades, gostaríamos de pontuar que a própria inexistência de um

censo estadual acerca da composição étnico-racial dos docentes nas universidades

públicas de São Paulo, como aponta Carvalho, J.J. (2006), já é um forte indício da

negação da academia de defrontar-se com sua condição racial privilegiada.

A categoria cor/raça está presente no censo demográfico brasileiro desde 1872, e

tem sido instrumento fundamental na elaboração de políticas públicas focadas no

enfrentamento às disparidades raciais. Entretanto, estamos nos anos 2000 e a

disseminação e problematização acerca dos dados da composição étnico-racial dos

docentes das universidades estaduais paulistas parecem ainda não estar no horizonte

político dessas instituições. As universidades de São Paulo endossam essa

invisibilização da composição racial dos seus quadros na medida em que ainda não há

uma sistematização, a nível estadual, desses dados, o que é, por si, um recurso

estratégico que torna invisível os lugares de privilégio na estrutura de dominação

racializada.

A negação das categorias raça e racismo e a ocultação da posição de classe são

centrais para compreender as estratégias de naturalização de não acesso de

determinados grupos à universidade. A própria nomeação dos programas de ampliação

de acesso nas universidades estaduais paulistas não carrega nenhuma referência à

afirmação de raça, etnia como reivindicado pelo movimento negro e utilizado para

nomear a política em diversos contextos no Brasil e em outros países. Todos os

programas, até 2014, carregavam no título o termo inclusão complementados pelo

UNICAMP e UNESP é necessário fazer uma solicitação, por meio da Lei de Acesso livre à informação, e

a resposta ao pedido leva entre 20 e 30 dias úteis.

148

termo social, o que para nós evidencia a “presença-ausência” da raça e ocultamento do

pertencimento à classe.

A UNICAMP era a única dentre as três universidades, que fazia referência em

seu “Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social”, mas ainda assim permanece a

sinalização da inclusão social. Longe de mero preciosismo linguístico, a referência à

inclusão social para complementar a ação afirmativa é, em primeiro lugar, um

marcador que diferencia aquela política das políticas afirmativas implementadas pela

Lei de Cotas. E em segundo lugar, a adição do social, expressa a primeira negação do

racismo, da recusa em nomear raça (ou mesmo etnia) como se essa postura em si mesma

(antirracialista) fosse suficiente para banir o racismo. O antirracialismo estará

fortemente presente nos discursos dos docentes frente ao PIMESP.

A invisibilização do elemento cor/raça por meio do artifício da ênfase em

egressos da escola pública, numa explícita redução do problema do acesso às

universidades a uma questão de renda, deve ser encarada como um dispositivo de

racialidade (CARNEIRO, S. 2005) sob os quais o racismo institucional operacionaliza

práticas que asseguram a reprodução dos lugares de poder, como é o caso das

universidades.

Partimos da hipótese que o “problema do negro” é encarado pelos docentes

como uma questão apenas de pobreza (leia-se escola pública) e que a solução seria a

“integração/assimilação”, sendo preciso o gerenciamento da fração da classe média

branca nesse processo. Esse enquadramento, como nós buscaremos evidenciar, além de

reificar uma narrativa do perigo da degeneração advinda da entrada dos negros e

indígenas nas universidades, revela como aquele tipo de enquadramento compromete os

própositos de uma política educacional que se pretende afirmativa.

As implicações do enquadramento da integração resultam na reprodução da

narrativa na qual os sujeitos a serem “incluídos” são concebidos como culturalmente

deficientes e inaptos. A narrativa que circunscreve a integração como solução para os

problemas gerados pela hierarquização do trabalho só é viável pela presença-ausência

do racial (APPLE, 1999; ARAÚJO & MAESO, 2013). Raça e racismo são negados na

produção da narrativa da integração apenas de um modo aparente, pois o conteúdo

substancial do imaginário racial sustenta a lógica daquele enquadramento.

O processo de consulta que resultou na rejeição (total ou parcial) ao PIMESP

pelos docentes das três universidades nos informa sobre a complexidade dos processos

de disputa entre as classes na sociedade brasileira que, por sua vez, continuam sendo

149

organizados pelo imaginário racializado, mesmo após o fim do sistema escravocrata.

Em outras palavras, em um só tempo o debate em torno do PIMESP nos diz como raça

informa classe, pois se de um lado temos a possibilidade de compreender a

operacionalização dos dispostivos racistas que operam nas instituições, do outro lado

nos confrontamos com a fração da classe média abastada e branca buscando reafirmar

sua superioridade e rejeitando, à todo custo, “a igualização sócio-econômica do trabalho

manual e do não-manual” (SAES, 1977, p. 100).

A avaliação da proposta do PIMESP foi concluída entre 2013 (USP e UNESP) e

2014 (UNICAMP) e, em nosso entendimento, a análise de todo o processo pode ser

oportuno para entendermos como ocorrem as dispustas entre as classes, as articulações,

as negociações, em síntese as disputas pela manutenção da distinção da fração da classe

média abastada frente as outras classes. Nesse sentido, partimos do entendimento de que

o PIMESP resulta de uma tentativa de administrar um período no qual as formas de

reprodução da classe média branca, as relações e representações políticas estavam em

dispusta. Nesse sentido entendemos que o contexto politico no qual o PIMESP emergiu,

era um contexto de questionamento da reprodução das relações de classe e raça que

afetou principalmente a fração da classe média abastada e branca. Levada a entrar em

conflito aberto pela garantia do seu lugar de reprodução, a atuação política da fração da

classe média abastada revelou também as contradições e os limites das bases nas quais a

classe média liga-se às classes dominantes.

Dito isto, a proposta do PIMESP, portanto é resultado de uma articulação entre:

os reitores, à época a frente das três universidades públicas estaduais (Unesp, Unicamp

e USP), juntamente com o executivo estadual - à época comandado pelo então

governador Geraldo Alckmin do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o

diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(FAPESP), representantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP)

e do Centro Paula Souza.

Antes de adentrarmos na proposta em si chama atenção a composição da equipe

elaboradora da Proposta: por qual motivo em um processo que interessava

prioritariamente à comunidade acadêmica, o executivo e outros dois órgãos- UNIVESP

e do Centro Paula Souza foram convidados em detrimento de outros setores interessados

(como por exemplo, associações, sindicatos, movimento negro, indígena)? Para

responder a essa questão é preciso situar tanto a criação da UNIVESP como do Centro

Paula Souza dentro das propostas políticas para a educação do governo do PSDB,

150

alinhadas com uma proposta de ensino técnico, próximas às demandas do mercado e

que ao longo das gestões do PSDB no estado de São Paulo foi pautada por inúmeros

conflitos entre o executivo e os profissionais ligados ao aparelho educacional, revelando

os limites ideológicos da aliança entre a classe dominante e classe média.

Ao analisar a política educacional do Estado de São Paulo ao longo dos

governos do PSDB durante os mandatos de Mário Covas, Geraldo Alckmin, Cláudio

Lembo e José Serra, Sanfelice (2010) chega à conclusão que a perspectiva ideológica

que dominou a política educacional durante estes governos do PSDB foi o

neoliberalismo, com predominância da lógica do mercado.

A UNIVESP foi criada em 2008 como um programa vinculado às universidades

estaduais visando suprir a demanda por mais vagas nas universidades estaduais paulistas

com formação superior à distância. Em 2012, a Universidade ganhou indepedência em

relação às demais universidades por um decreto de lei (Cf. SÃO PAULO, 2012)

proposto pelo então governador Geraldo Alckmin. A Universidade contava com seis

cursos de graduação (Engenharia de Computação e Engenharia de Produção,

licenciaturas em Matemática, Física, Química e Biologia) assim como a oferta de

especialização para a formação docente.

Os cursos oferecidos pela entidade seriam 50% presenciais e 50%

virtuais. Nessa segunda parte os alunos aprovados no processo seletivo receberiam o

conteúdo virtual por meio da internet e de um canal de TV (TV Univesp). Já as aulas

presenciais seriam possíveis por meio de parcerias com as outras três universidades

públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp). Os estudantes receberiam aulas presenciais

nos espaços e laboratórios dos campi das três universidades, em geral, duas vezes por

semana e no período da noite. À época da sua instituição como fundação, a Univesp

tinha planos de formar 24 mil alunos, mas contava com apenas 40 professores

permanentes e 95 funcionários técnico-administrativos.

A UNIVESP recebeu, desde a sua criação, inúmeras críticas, como a qualidade

duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, o

beneficiamento da iniciativa privada. O professor Antonio Luis de Andrade86, à época

presidente da Associação dos Docentes da UNESP sobre a UNIVESP afirmou que “E

então [com a criação da UNIVESP] passará a existir universidades de primeira e de

86 Entrevista à Rede Brasil Atual em 31 de agosto de 2013 (Cf. OLIVEIRA C., 2013).

151

segunda classe”. A partir dessa afirmação gostaríamos de aprofundar a relação entre

expansão de vagas e a manutenção da distinção da classe média.

No artigo “Universidades vs terciarização do ensino superior: a lógica da

expansão do acesso com manutenção da desigualdade: o caso brasileiro”, o pesquisador

Antônio Augusto Pereira Prates (2007) faz um apanhado acerca da expansão mundial do

ensino superior, nos anos 70, para evidenciar de que forma a expansão ocorrida “é

resultado da incorporação da lógica mercantil no sistema de gestão pública do ensino

superior [e que ] tem, entretanto, permitido o insulamento das universidades de prestígio

acadêmico, mantendo-as como nichos exclusivos dos membros das elites sociais destas

sociedades” (idem, p. 351). A UNIVESP insere-se nesse contexto de expansão do

ensino superior, a partir das contradições frutos das demandas do sistema capitalista e

que atravessam o processo de aumento de vagas, não apenas no Brasil, mas no mundo

capitalista.

Retomando à UNIVESP, ela simboliza, portanto um modelo de expansão de

vagas que tem na base que a cria a diferenciação institucional, resultado da conciliação

de múltiplos interesses da classe dominante e da fração da classe média alta e branca

ligada ao aparelho educacional universitário na medida em que o tal arranjo contemplou

a agenda de interesses daquelas classes. A um só tempo, a proposta da UNIVESP

representou o sucateamento do ensino público, o corte nos investimentos em educação e

redução de custos, enxugamento dos conteúdos e reorientação curricular, precarização

das condições de funcionamento do ensino ao mesmo tempo em que manteve intocadas

as formas de seleção e, portanto de acesso às três universidades paulistas. A

implantação desse modelo contribuiu para o esvaziamento do debate acerca da

ampliação e democratização do acesso ao ensino superior público.

O Centro de Tecnologia Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de

São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia

e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219 Escolas Técnicas Estaduais (Etecs)

e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs).

A educação profissional na agenda de políticas públicas de educação no Estado

de São Paulo está em estrita relação com a expansão do Centro Estadual de Educação

Tecnológica Paula Souza.

O Centro Paula Souza foi criado à época da ditadura militar de 1964 e insere-se

na esteira do refinamento do diálogo entre a proposta do regime militar para a educação

152

e as demandas do sistema capitalista de produção. O então Governador de São Paulo,

Abreu Sodré, ao empossar o Grupo de Trabalho (GT) que faria avaliação da situação do

ensino superior paulista e da possibilidade da instituição dos Collegs of Advanced

Technology, fez um pronunciamento que chama atenção pela presença explícita da

tensão existente entre trabalho manual e trabalho não-manual, afirmando que foi

combativo no:

“[…] encaminhamento da juventude para cursos do tipo acadêmico

tradicional ou de mero prestígio […] a escola “deve enaltecer a excelência e

ensinar os estudantes a amá-la e a alcançá-la em todo e qualquer tipo de

trabalho útil à sociedade […] selecionando e instruindo os moços segundo a

sua capacidade e a sua dedicação […] cabe à escola eliminar “o mito da

inferioridade do trabalho técnico e a importância [...] Sem considerar origem

social ou nível financeiro” dos seus alunos, cabe à escola eliminar “o mito

da inferioridade do trabalho técnico e a importância [...] do estímulo ao

desenvolvimento do ensino da tecnologia em suas variadas manifestações

[…]” (Parecer CEE/CES 384/1969e, in SÃO PAULO, 1969e, p. 2, apud

SACILLOTO, 2016, p. 202).

O relatório do GT ainda afirma que no que diz respeito ao setor do ensino

universitário, o Governador, apreensivo com a “ameaça de adulteração [da qualidade do

ensino universitário com o movimento de expansão do ensino], adotou posição firme de

contenção da expansão indiscriminada [e] estímulo à ampliação ordenada” (Parecer

CEE/CES 384/1969e, in SÃO PAULO, 1969e, p. 3, apud SACILLOTO, 2016, p. 202).

O embate entre classe dominante e classe média acerca dos rumos da expansão

do ensino superior paulista, presente também no debate sobre o PIMESP, vem de um

acúmulo histórico e revela os conflitos e os limites da aliança entre essas classes

burguesa e média.

Retornemos ao PIMESP. A proposta do Programa de Inclusão com Mérito no

Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) foi apresentada em cerimônia com todos os

elaboradores do Programa no fim do ano de 2012 inserido dentro do Programa Paulista

de Inclusão Social no Ensino Superior, trazendo pela primeira vez a discussão sobre

cotas étnico-raciais como forma de acesso no âmbito das universidades paulistas na

agenda oficial do governo e que em nossa leitura foi a resposta do executivo (em

parceria com a burocracia educacional) ao cenário nacional (constitucionalidade das

cotas no STF, mobilização do movimento negro). Segundo o governador Geraldo

Alckmin, o PIMESP era a ampliação dos programas de inclusão, pois “as universidades

já têm um programa de inclusão com várias ações afirmativas, mas nós queremos ter um

programa mais abrangente e de Estado, ou seja, para todos” (Cf. SALA DE

IMPRENSA, 2012).

153

De fato, já existiam programas de bonificação na Unicamp e na USP, assim

como a isenção na taxa do vestibular da UNESP, entretanto esses programas já estavam

a enfrentar diversas críticas, fosse pelos resultados inexpressivos em termos de aumento

de matrícula de alunos oriundos das escolas públicas (principal foco das ações

afirmativas nas três universidades naqueles anos), fosse pelo próprio modelo da ação

afirmativa que dava primazia ao recorte de renda (leia-se escola pública) em detrimento

do recorte étnico-racial.

Dados das comissões dos vestibulares das três universidades do ano em que foi

proposto PIMESP mostram o quão pequeno vinham sendo os avanços alcançados pelas

“políticas inclusivas” das universidades paulistas (CRUESP, 2012):

Tabela 1: Matriculados 2012 na Usp, Unesp e Unicamp

VAGAS PRETOS,

PARDOS E

INDÍGENAS-

PPI (%)

ORIUNDOS

DE

ESCOLA

PÚBLICA-

EP (%)

PPI + EP

(%)

USP 10.733 1.511

(14%)

3.048

(28%)

793

(7%)

UNESP 7.094 1.137

(16%)

2. 843

(40%)

697

(10%)

UNICAMP 3.554 529

(16%)

1.088

(32%)

305

(9%)

Fonte: Vogt, 2013.

Os dados apresentados foram produzidos por Carlos Vogt, um dos elaboradores

do PIMESP e então presidente da Fundação Univesp, instituição que dentro da proposta

do PIMESP, iria criar a estrutura dos ditos cursos superiores sequenciais, que os

articuladores da proposta chamaram “colleges” e sobre o qual falaremos mais a frente.

O que interessa atentarmos sobre os dados acima é que apesar desse conflito de

interesses advindo do fato de serem os mesmos agentes que produzem dados avaliativos

das políticas de inclusão, assim como também elaboram propostas de políticas públicas,

ainda assim os dados na Tabela 1 revelam a gritante desigualdade em relação a presença

de brancos e negros matriculados nas universidades estaduais de São Paulo mesmo com

os programas de inclusão vigentes: em 2013 pretos, pardos e indígenas oriundos de

154

escolas públicas somavam apenas 10% do total de estudantes matriculados na UNESP e

nos casos da UNICAMP e USP esses grupos referidos não chegavam a somar sequer

10% do total de ingressantes.

Além dos resultados ínfimos dos programas de inclusão vigentes nas três

universidades, tinha-se no contexto nacional, na primeira década dos anos 2000, a

crescente adoção por parte das universidades federais e estaduais de programas

afirmativos com reserva de vagas em todo o Brasil, o que concorreu para aumentar a

pressão dos grupos interessados sobre as universidades públicas paulistas.

Válido ainda dois adendos importantes quanto ao contexto de surgimento da

proposta do PIMESP, antes de avançarmos para a análise da proposta em si: a decisão

pela constitucionalidade de programas das cotas étnicas/sistema de reserva de vagas

pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012 e o fato de estarem previstas eleições

para o ano de 2014.

Em abril de 2012, a argumentação sustentada por muitos pesquisadores,

investigadores, representantes políticos de que as cotas feririam a dignidade e os

princípios universais dos direitos humanos, afetando o próprio combate à discriminação

e ao preconceito, criando as tais divisões raciais no Brasil, não encontrou respaldo legal

frente ao entendimento unânime da Suprema Corte de que sim, a modalidade de reserva

de vagas étnico-racial não feriria os princípios constitucionais e ainda de que seriam

necessárias, tendo em vista as desigualdades históricas que afetariam o acesso de negros

e indígenas ao ensino superior. Vejamos os votos dos ministros:

“[…] Se somos capazes de produzir estatísticas sobre a posição do negro na

sociedade e se é evidente a situação do negro no mercado de trabalho, e

não podemos negar isso, parece possível indicar aqueles que devem ser

favorecidos pela política inclusiva […]” (Voto do ministro Marco Aurélio,

Cf. BRASIL, 2012a).

“[…] Os deveres que emanam desses instrumentos impõem a execução

responsável e consequente dos compromissos assumidos em relação a todas

as pessoas, mas principalmente aos grupos vulneráveis, que sofrem a

perversidade da discriminação em razão de sua origem étnica ou racial

[…]” (Voto do ministro Celso de Mello, Cf. BRASIL, 2012a).

O reconhecimento de que existem desigualdades que afetam historicamente um

grupo e que estas não podem continuar a perpetuar-se no contexto de Estado de direito,

a nosso ver, constitui-se em um dos raros momentos, nos quais o sistema jurídico, no

que toca a reivindicação do movimento negro, decidiu colocar em suspenso o

155

igualitarismo abstrato e enfrentar, dentro dos limites do direito burguês, o racismo no

Brasil.

Retomemos os impactos da decisão do STF no contexto paulista. A votação pela

constitucionalidade das cotas étnico-raciais no STF em 2012 contribuiu para pressionar

não apenas os dirigentes das universidades paulistas, mas o governador à época que

tinha pretensões eleitorais. Diante do cenário inevitável, o então governador, viu-se

pressionado a dar uma resposta frente a esse cenário ao mesmo tempo em que poderia

aproveitar a oportunidade para elaborar uma “proposta-vitrine” para a área de educação

como candidato à reeleição.

Tendo em conta esse contexto de ano eleitoral podemos conferir significado à

condução da apresentação da proposta como: a apresentação da proposta do PIMESP

em uma grande cerimônia pública com grande apelo midiático e com um cronograma87

para avaliação relativamente curto.

A “coincidência” - entre o lançamento da proposta do PIMESP e a proximidade

com ano eleitoral - não passou despercebida pelos docentes nem tampouco pelos

movimentos sociais, principalmente o movimento negro, que atuou decisivamente

denunciando os fins eleitoreiros da proposta e o cunho extremamente elitista e racista do

PIMESP.

Apresentado os agentes e o contexto de elaboração da proposta do PIMESP,

avancemos agora para análise das propostas contidas no documento apresentado às

congregações. O documento apresentado continha 10 páginas ao total, divididas nos

seguintes tópicos88:

1) Alguns dados;

2) Proposta do CRUESP

2.1 Metas para matriculados oriundos da escola pública e, dentre estes, pretos,

pardos e indígenas.

2.2 Os meios para se atingirem as metas

2.2.1 Instituto Comunitário de Ensino Superior – ICES

2.2.2 Plano Institucional de Recrutamento de estudantes capacitados e

participantes dos grupos sociais no regime de metas

2.2.3 Fundo Especial para Apoio à Inclusão Social

87 O CRUESP apresentou o projeto oficialmente às Universidades em 28/01/2013, quando foi

reencaminhado aos diretores das unidades, conferindo-lhes 60 dias para que levassem uma resposta ao

Conselho Universitário. 88 Literalmente reproduzidos na presente tese.

156

A.1 Instituto Comunitário de Ensino Superior – ICES Detalhamento

A.1.1 Promoção do aumento da inclusão social no acesso ao Ensino Superior

Público Paulista

A.1.2 Promoção da permanência dos alunos no Ensino Superior

A.1.3 Disciplinas oferecidas para formação humanista e científica

A.1.4 Estimativa de custos para o ICES

A.1.5 Avaliação

De modo geral iremos nos debruçar sobre esse documento a partir de três

elementos que consideramos cruciais para nossa análise: justificativa para a construção

do modelo do PIMESP, o Instituto Comunitário de Ensino Superior e o currículo

proposto.

O primeiro ponto que gostaríamos de chamar atenção é a ausência no documento

de uma discussão sobre a situação das políticas de inclusão e os resultados ínfimos

atingidos pelos programas vigentes nas três universidades. Não há uma linha no

documento quanto a esse facto e como aquela realidade foi uma das razões para a

elaboração da proposta do PIMESP. Esse ocultamento, como nós analisaremos nos

próximos tópicos, terá implicações para a discussão nas congregações, pois como

veremos algumas defenderão a manutenção do sistema de bonificação, alegando o

sucesso daqueles programas.

Obviamente que suspeitamos que os docentes tivessem informações da

“ineficácia” dos programas vigentes, pois, era uma situação relativamente sabida nas

três universidades, mas manter-se ignorante nesse contexto também seria coveniente.

Entretanto, o fato é que um documento que se propunha a conquistar legitimidade para

uma nova proposta de inclusão teria por obrigação contextualizar a justificativa para a

mudança nas políticas desenvolvidas até aquela altura, o que não foi feito.

O Programa de Inclusão com Mérito está baseado em velhos modelos de

políticas universalistas a começar pela apresentação dos dados. Os números trazidos na

primeira página do documento não podem ser lidos ingenuinamente, pois cumprem a

função de legitimar a proposta que se auto intitula inclusiva, mas que como veremos,

pelo arranjo proposto, essa “inclusão” se mostraria veladamente racista e elitista ao

mesmo tempo em que tentava articular algumas justificativas controversas para adoção

do PIMESP. Nesse sentido, faz-se pertinente definirmos as justificativas que tem

157

orientado a implementação de políticas afirmativas ao longo da história de criação desse

tipo de medida.

Com Feres Jr et al (2011), concordamos que há três argumentos básicos de

justificação das políticas de ação afirmativa: reparação, justiça distributiva e

diversidade. A justificativa com base na reparação busca a correção por meio de

medidas específicas de discriminações históricas (escravidão negra, por exemplo),

diferentemente das justificações baseadas em justiça distributiva e diversidade. Na

primeira, o que sustentaria uma ação afirmativa é a constação da desigualdade no

presente (onde o peso do acúmulo de injustiças do passado não importa) assim como

para a justificativa da diversidade. Entretanto, dentre as três, essa última seria a mais

problemática em relação à luta antirracista, pois a um só tempo dilui o peso da

narrativa histórica da escravidão ao mesmo tempo em que esvazia a centralidade da

categoria raça por “considerar [que] raça e etnia não devem ser os únicos critérios

usados para se produzir diversidade” pois seria necessário considerar outros como

“origem social, geográfica, aptidões, orientação sexual” (FERES JR et al., 2011).

Mas avancemos com análise dos dados para podermos mais a frente situar a

justificação do desenho do PIMESP. Os dados apresentados no documento são

relativos à proporção entre a quantidade de estudantes que conseguem concluir o

ensino fundamental e médio e a porcentagem de concluintes do ensino médio que

chegam até a universidade. O motivo para a escolha desse tipo de informação pode

melhor ser percebido nas palavras do ex-reitor da UNICAMP e um dos elaboradores

da proposta, Fernando Costa:

“Quando nós olhamos o universo completo dos jovens de 18 a 24 anos, o

número desses jovens que estão no ensino superior no estado de São Paulo

ou no Brasil é inferior a 15% […] é muito menor do qualquer país

desenvolvido […] então existe a necessidade desses programas que estamos

falando [programas de inclusão] mas a gente não deve perder de vista que

nós precisamos aumentar também o número de jovens no ensino superior

mesmo” (Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

Nas entrelinhas da proposta estaria a suposta preocupação em aumentar a

inclusão de qualquer jovem (independente de cor, classe, etnia) na universidade.

Aceitemos, provisoriamente, que seja cabível, tendo em vista a discrepância de jovens

que não chegam ao ensino superior, que o Programa focasse então nesse público.

Entretanto, mesmo partindo desse recorte (inclusão de jovens no ensino superior), os

elaboradores ocultam os dados que confirmam a disparadidade racial nessa faixa etária

quanto ao acesso ao ensino superior.

158

A proporção dos estudantes negros com idade entre 18 a 24 anos que cursavam o

ensino superior em 2012 era de 37,4%, frente 66,6% dos estudantes brancos89. Na

região Sudeste, em 2010, os números de universitários negros e brancos eram 28,1% e

70,2% respectivamente. Se analisarmos as instituições públicas em 2010, por exemplo,

a presença de estudantes negros com idade entre 18 e 24 anos no ensino superior

público correspondia a 38,5% dos matriculados, enquanto a de estudantes brancos

correspondia a 59,4% do total, sendo a região a Sudeste em 2010, a região com maior

disparidade entre o tamanho da população negra (34,6%) e a presença desse grupo

(28,1%) no ensino superior (cf. ARTES & RICOLDI, 2015).

Faremos um esforço para situar a justificativa de criação do PIMESP pelos seus

elaboradores, a partir da categorização proposta por Feres Jr et al (2011). Dizemos

esforço, pois, em nosso entendimento, o PIMESP foi primeiramente uma tentativa de

adequação dos interesses da fração da classe média abastada e branca aos interesses da

classe dominante que apenas empregou (de modo distorcido) alguns elementos da

gramática das ações afirmativas para manter-se no controle do acesso à universidade.

A ênfase, dada pelo Programa, aos egressos das escolas públicas pode ser

considerada uma justificativa da ordem da justiça distributiva. Mas de fato, como

veremos, o PIMESP se propunha a ser uma nova modalidade de ensino e a ênfase no

ICES dá o tom da proposta. Ainda sobre o argumento da diversidade, vejamos a análise

de Feres Jr. (2011) quanto ao emprego da justificativa da diversidade em programas e

políticas nos Estados Unidos90:

“[...] A ascensão do argumento da diversidade não se deu só na Corte [norte-

americana]. O termo adquiriu grande popularidade no cenário político e

institucional norte-americano nas últimas décadas, tornando-se central em

discursos multiculturalistas e para a justificação das políticas da identidade.

Isso não foi sem conseqüências. O argumento da diversidade dilui a idéia de

reparação. A discriminação racial do passado torna-se somente um elemento

entre os muitos que devem ser utilizados na seleção de candidatos [...] A

89 Cf. IBGE (2013). 90 Não podíamos deixar de considerar a observação pertinente que João feres Júnior (2011) acerca

relação entre o argumento da diversidade e o interesse estatal militar na manutenção das políticas de ação

afirmativas nos Estados Unidos Vejamos: “[...] Mas os casos da University of Michigan revelaram

também uma versão um pouco mais crua do argumento da diversidade, aquela usada pelos vários amici

curiae que acompanharam o caso com o interesse explícito na preservação das políticas de ação

afirmativa. Entre eles temos empresas gigantes como Microsoft, Boeing, General Motors, Merck, e outros

60 nomes da lista da revista Fortune, as universidades mais afamadas do país e o estabelecimento militar

em peso – isso em um contexto em que o presidente George W. Bush se declarou publicamente contra a

manutenção da ação afirmativa. Principalmente no caso dos militares, a diversidade aparece como uma

necessidade de se garantir o fluxo de recrutas, uma vez que para os brancos americanos a carreira militar

tornou-se pouco interessante. Algo similar acontece com as empresas privadas, cada vez mais

dependentes da mão-de-obra das minorias. Ou seja, nesses casos, não se trata propriamente de um

interesse nacional imperativo, mas de um interesse corporativo de auto-preservação” (p.9)

159

palavra diversidade pertence ao vocabulário da doutrina do

multiculturalismo, não raro associada à idéia do relativismo cultural, ou seja,

de que todas as culturas e formas de vida tem um valor equivalente nação.

Ora, se todas as culturas são equivalentes, então a contribuição histórica de

grupos humanos e comunidades para a consolidação nacional perde

relevância. Ou seja, em sua versão abertamente multiculturalista e relativista,

o argumento da diversidade preserva seu caráter avesso à valorização da

história e do passado” (idem, p. 10).

O PIMESP parece utilizar da justificativa da justiça distributiva e da diversidade.

Ainda que os grupos historicamente discriminados-negros e indígenas sejam

mencionados na proposta, entendemos que a referência ao grupo está relacionada ao

entendimento dos elaboradores sobre a exclusão do acesso (justiça distributiva) daquele

grupo à educação evidenciada nos dados que a proposta apresenta e não ao

reconhecimento de como o contexto histórico (passado escravocrata) contribuiu para

aquela situação (reparação). Vejamos o que diz Carlos Vogt:

“Tem crescido cada vez mais a percepção social das cotas no ensino superior.

O Pimesp pretende se concretizar como política de estado com propósito de

promover o equilíbrio socioétnico nas matrículas das universidades paulistas

e do Centro Paula Souza a partir do cumprimento de metas, sem implicar

necessariamente na reserva de vagas” (Cf. ESALQ Notícias, 2013).

A escolha dos dados confirma o foco da Proposta: recrutar jovens para cursos

pautados por uma lógica empresarial (cursos de curta duração, focados na

profissionalização para o setor de serviços) dissimulada entre o apelo a justiça

distributiva e a diversidade.

Ainda sobre os dados, no item quatro da Proposta consta a afirmação “no Brasil,

a renda familiar é fator mais determinante que a cor para o acesso ao ensino superiror”

(CRUESP, 2012, p. 1). Essa informação é colocada desacompanhada de qualquer

análise estatística que pudesse embasar a afirmação, sem nenhuma menção à algum

especialista ou estudioso que tenha chegado a essa conclusão acerca da realidade

brasileira.

A negação da existência da raça como categoria que baliza as relações sociais é

tão evidente na Proposta que mesmo a terminologia “étnico-racial” empregada na

proposta do governo federal para designar pretos, pardos e indígenas é excluída e em

seu lugar surgem “categorias sócio-étnicas”. A negação do “racial” (VANDIJK, 2008;

DEMBOUR, 2009; ARAÚJO, M. 2016; HESSE & SAYYID, 2006; FÜREDI, 1998;

AMAR, 2009; VARGAS, 2010) evidencia o entendimento dos elaboradores da

Proposta acerca da categoria raça e racismo decorrente do entedimento eurocêntrico do

160

racismo que logrou a categoria “raça” ao ostracismo, como se referir a raça conferisse a

racialização das relações quando na realidade essas estão dadas e orientam as

governamentalidades raciais no mundo moderno (GOLDBERG, 2009; HESSE, 2004).

Hesse e Sayyid (2006) usam a categoria “racismo pós-colonial” para descrever

este contexto de negação e apagamento da raça e do racismo e que estaria intimamente

relacionado com a gramática racial pós-holocausto com vistas ao apagamento da

continuidade do racismo. Como explica Hesse (2007):

“Here we have yet another analytical domain in which the western

hegemonic modernity discourse in forgetting its own entangled and contested

onto-colonial ‘origins’ can no longer be relied upon to furnish its privileged,

provincial categories for the genealogy of ‘race’”(idem, p. 659)

A nova gramática contribui para a confusão entre a descrença da noção de raça

como conceito científico e deslegitimação de quaisquer políticas antirracistas que

passam a ser rechaçadas pelos estados modernos frente à possibilidade de “racialização”

das sociedades (como se já não as fosse). Como consequência, o antirracialismo como

um “suposto antirracismo que se afirma através da negação do racismo existente” (Cf.

GOMES, J. 2011) se converte na ideologia hegemônica que orienta as narrativas frente

ao racismo e balisa a formulação de políticas integracionistas, como é o caso do

PIMESP.

A escolha dos elaboradores em simplesmente ignorar ou dar pouca relevância as

disparidades do acesso à educação superior que afetam desproporcionalmente a

população negra, já nos deixa chocados com o não seguimento das normas básicas

acadêmicas (tão valorizadas pelos senhores elaboradores da referente proposta) ou ainda

com o não cumprimento mesmo das normas que balizam a justificação de qualquer

programa ou política pública (no que tange a importância do embasamento analítico

sério que considere o contexto social de maneira geral para aferir conclusões nesse tipo

de documento). Porém, mais do que essas “falhas de formato”, a escolha em ignorar os

dados raciais contraria toda a produção de pesquisas que tem afirmado categoricamente

desde os anos 70 que sim, mesmo entre os pobres, negros e indígenas têm menos

chances de acessar às instituições de ensino superior que os brancos pobres (SILVA N.

do V., 1978; HANSENBALG, 1979; PASTORE & SILVA, 2000; HENRIQUES,

2001), sendo impossível afirmar que não há uma linha de cor no perfil de quem acessa

os cursos de instituições de ensino superior no Brasil.

161

A ocultação desse dado da realidade é a produção consciente de indução ao erro

dos leitores, no caso os docentes, que farão a apreciação do documento com base

também nas informações que ali constam. Fica evidente a indução ao erro, como

veremos nos tópicos, onde algumas congregações fazem uso daquela (des) informação

para justificar a defesa do perfil do ingressante por cotas a partir do critério

sócioeconômico, em detrimento do critério étnico-racial.

Segundo dados do Pnad, em 1988 a porcentagem de negros com diploma de

nível superior era de 4%, enquanto entre os brancos era de 96%. Em 2013, a

porcentagem de pessoas negras com ensino superior aumentou para 29% mas ainda

assim permanecia inferior à porcentegem dos brasileiros brancos (76%), ainda que a

população negra representasse, em 2013, 50,7% do total da população brasileira.

Ainda quanto aos dados presentes na Proposta, nos chama ainda atenção a

informação de que “apenas 11% dos concluintes” do Ensino Médio teria proficiência

em Matemática, não constando no documento menção a nenhuma outra área de

conhecimento, apenas a essa área. Nesse sentido à referência à matemática parece

justificar a presença de uma quantidade significativa de disciplinas ligadas às ciências

ditas exatas, que constam no currículo proposto pelo ICES e que somavam 600 horas do

total de 1600 horas de disciplinas que os “cotistas” teriam que cumprir no ICES.

Causa ainda alguma inquietação no item sobre dados na Proposta, o fato de não

existir nenhuma menção aos resultados de avaliações das políticas de ação afirmativa

em outras universidades ou mesmo sobre o grande debate acerca das políticas de ação

afirmativa no mundo como na Índia ou nos Estados Unidos. O documento simplesmente

passa ao largo desse debate mesmo tendo em vista que a discussão central girava em

torno daquele tipo de política e que existia, aquela altura, uma produção acadêmica

extensa acerca delas, porém em 10 páginas, não há uma linha sequer sobre a situação

das políticas afirmartivas em outras universidades e por quê?

Em nosso entendimento o “lapso” cometido pelos elaboradores serve para

esvaziar o debate acerca da relação entre raça e desigualdades no acesso à educação

superior, pois ignorar essa realidade é ocultar que existem desvantagens de toda ordem

(material, simbólica e subjetiva) as quais negros e negras são submetidos e que somente

podem ser desmanteladas por políticas no campo das ações afirmativas (BRANDÃO &

MARINS, 2006).

A proposta do PIMESP não apenas nega a existência do racismo, como se

desvirtua totalmente da discussão sobre os motivos históricos que justificam a

162

necessidade das políticas de ação afirmativa, como podemos ver nas palavras dos

elaboradores quanto aos motivos de elaboração da Proposta:

“[o PIMESP] Um programa de inclusão que ao invés de trabalhar com o

conceito de cotas, que implica em reserva, ele trabalha com o conceito de

metas, considerando a situação atual das nossas instituições públicas do

sistema paulista, considerando, portanto qual é o número de estudantes que

hoje ingressam nas nossas instituições e que vem do ensino público e que

são pretos pardos e indígenas […] e estabelece essas metas” (Carlos Vogt,

Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

“E também uma importância fundamental é preservar a autonomia das

universidades [...] o facto é que cada universidade poderá dentro desse

molde maior escolher, por exemplo, como eles vão buscar os alunos para

compor o seu alunado dentro dessas minorias [...] todas as unidades

receberam o programa como sugestão e deverá ser estudada por todos [...]

porque é muito provável que se deseje é que tenhamos um programa com

linhas gerais mas nas linhas específicas cada um de nós, Centro Paula Souza

e as três universidades poderão ter linhas específicas próprias que mais

digam respeito a sua tradição [...] faz com que eles não só entrem mas que

eles permaneçam e possam sair e por outro lado faz com que nós mesmos

em cada universidade decidamos o que desejamos [...] (João Grandino

Rodas, Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

Gostaríamos de destacar três aspectos dos trechos supracitados. O primeiro é a

manobra de “substituição dos conceitos”. O grande debate histórico transnacional e a

luta dos movimentos negros nas Américas (e em outros contextos como os Dalits na

Índia ou ainda dos aborígenes na Austrália) pela adoção de políticas de ação afirmativa

com reserva de vagas no mundo são reduzidos, nas palavras de um dos elaboradores do

PIMESP, a um “conceito” que na percepção desse sujeito- e por prolongamento dos

demais elaboradores da Proposta- podem ser substituídos por outro conceito.

O segundo aspecto é relativo à justificativa para a escolha do modelo de política

afirmativa concretizada na proposta do PIMESP que aparece na fala do ex-reitor da

USP: a manutenção da autonomia das três universidades para ir “buscar os alunos para

compor o seu alunado dentro dessas minorias”. Nesse ponto reside um aspecto

fundamental da nossa hipótese de pesquisa, a saber, a de que é na “defesa da

autonomia” para definição de regras de acesso às estaduais paulistas que o racismo

institucional encontra um arcabouço legal para sua (re) produção.

A defesa da autonomia, nesse contexto, converte-se numa brecha legal para a

construção de normas que tem como fim impedir a emancipação do acesso à

universidade que permita que negros e indígenas possam adentrar e a esse mecanismo

estamos nomeando como racismo institucional.

Alguns analistas podem até conceber que se trata apenas de um “efeito colateral”

desse tipo de norma, mas quando analisamos profundamente as estruturas discursivas

163

que orientam as justificativas das políticas de inclusão no estado de São Paulo entre os

anos de 2004 e 2014 o que de fato vemos é um processo de estabelecimento de normas

“ditas inclusivas” onde negros e indígenas quando são “eleitos” beneficiários daquelas

políticas são introduzidos como subcidadãos, menos competentes, com necessidade de

capacitação, o que justificaria, por exemplo o ICES ou o Profis.

A recorrência a defesa do mérito como bastião do igualitarismo ou ainda de um

universalismo vazio é pautado numa abstração que favorece a manutenção da

reprodução dos lugares de privilégio. Ignorar a condição subalternizada, desumanizada

e explorada da população negra, em nome de um projeto puramente abstrato de

igualdade é uma estratégia de fugir ao enfrentamento das condições que permitem a

reprodução do racismo.

O terceiro ponto diz respeito à relação entre recrutamento de talentos,

diversidade e racismo. Vejamos as falas dos elaboradores da proposta sobre ir “buscar

os alunos para compor o seu alunado dentro dessas minorias”:

“[…] a experiência da Unicamp é importante porque ela mostra nesses dois

anos que a busca ativa em cada escola pública de ensino secundário dos

melhores alunos ela tem uma vasta gama de consequências. A primeira é

que 70% desses alunos, bons alunos, porque são os primeiros naquelas

escolas, eles não prestariam o vestibular. Portanto, nós estamos pegando

aluno com mérito que não prestaria o vestibular. Segundo ele faz uma

inclusão social efetiva. Quase 60 ou 70% desses alunos representam o

primeiro membro daquela família que faz o ensino superior que mostra que

nós estamos pegando pessoas com mérito que nunca procurariam o ensino

superior […] e quando você olha a distribuição do que você quiser, renda

familiar quase 40% é de renda familiar de 1 a 4 salários mínimos […]”

(Fernando Costa, à época reitor da UNICAMP e um dos elaboradores da

proposta. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)

“[…] nos dois primeiros anos em que nós não teremos alunos formados no

curso proposto, as universidades vão buscar esses alunos por diferentes

meios […] o importante é que as universidades nesses dois primeiros anos e

depois […] essa busca desses bons alunos, ela vai ser feita de acordo com o

critério que cada uma com autonomia decidir […]” (Júlio Durigan, à época

reitor da UNESP. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)

“[o ICES] é mais uma estratégia de busca exatamente dos alunos que nós

queremos ver dentro das universidades porque a diversidade social e étnica

dentro das universidades faz bem a sociedade mas faz muito bem às nossas

instituições […]” (Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

“A universidade não pode ser só universal em seu conhecimento, mas também

em sua abrangência social” (Geraldo Alckmin, à época governador do estado de

São Paulo e um dos idealizadores do PIMESP. Cf.. MAGGI, 2012).

Gostaríamos de explorar nas manifestações supracitadas, como a defesa da

diversidade e a “busca por melhores” pela fração da classe média alta e branca têm uma

164

função ideológica na criação de uma ideia de instituição que permite que o racismo e as

desigualdades sejam negligenciados (CICONELLO, 2008). Nas falas acima referidas,

não há nenhuma menção à raça e racismo, mas fala-se em diversidade de modo genérico

e o foco é apenas na busca pelos “melhores alunos” para alcançar a diversidade

desejada pelos elaboradores do PIMESP. Nesse sentido, a diversidade idealizada está

condicionada ao mérito. Além disso, o apelo à diversidade, deslocada do contexto da

colonialidade, sufoca os conflitos e mascara o racismo no esvaziamento da discussão

sobre raça enquanto categorização social ainda vigente.

Cabe analisarmos o que não está explícito na defesa dessa tal “diversidade”

como justificativa para implementação de políticas de ação afirmativa no contexto

analisado. A defesa da diversidade, quando esvaziada de sujeitos reais e de relações

históricas entre capitalismo, colonialismo e racismo acabam por ser reapropriada por

alguns setores (como é o caso da alta fração da classe média branca) apenas como mais

um recurso, uma “estratégia para fazer avançar” os propósitos das classes dominantes,

não desafiando os pressupostos que reificam os grupos racializados, mantendo intacta a

estrutura de classes e a exploração da população negra.

A diversidade, portanto, só é desejável na medida em que está dentro dos

critérios definidos pela fração da classe média alta e branca ou nas palavras do reitor da

USP, Vahan Agopyan, “as cotas não são favor, mas uma forma da universidade recrutar

ótimos alunos e avançar” (Cf. WEINBERG & VASSALLO, 2018). O discurso da

diversidade parece dar novos contornos à lógica integracionista, ao mesmo tempo em

que busca controlar a emancipação do acesso ao espaço da universidade.

A defesa da diversidade está condicionada à garantia da “qualidade dos

cotistas”. A desconfiança do “nível” dos ingressantes via sistema de cotas encontrou sua

expressão- permitida- na defesa do mérito ou nas palavras dos elaboradores do

PIMESP:

“Queremos que os cotistas tenham o mesmo nível dos alunos que entram pelo

vestibular. A política federal não prevê isso. Vamos ter um aluno na medicina

que é de altíssimo nível e outro que é baixíssimo nível. Os dois vão estar na

mesma sala, fazendo o mesmo curso. Se não dermos condições para que eles se

aproximem, vamos ter problemas na sala de aula, não adianta dizer que não. O

governo estadual e o CRUESP [Conselho de Reitores das Universidades

Estaduais de São Paulo] pensaram nisso: vamos melhorar o nível dos cotistas."

(Júlio Durigan, à época reitor UNESP. Cf. FAJARDO, 2013)

“[...] E justamente nesse ponto [da tradição das universidades] que o

programa é insuperável porque ele dá abertura social justamente para

aqueles que pagam os impostos e mantêm a universidade nesse grau

importante que ela está e ao mesmo tempo preserva o mérito [...]” (João

165

Grandino Rodas, à época reitor da Usp. Cf. ENSINO Superior Especial,

2013).

Quanto à defesa “da qualidade” dos cotistas, mais que gastar linhas para dizer o

que à época exaustivamente foi dito pelos movimentos a favor das cotas, isto é, de que

os cotistas também teriam que passar pelo vestibular, ou seja, eles não estariam isentos

de passar pela suposta comprovação dos conhecimentos necessários para entrar na

universidade, gostaríamos de nos debruçar sobre como os elaboradores do PIMESP

assumem a função de “agentes da marginalização cultural das classes baixas”

(BORDIEU & PASSERON, 1975 [1970]; SAES, 2007).

A desconfiança da “qualidade” dos ingressantes pelos elaboradores do PIMESP

nada mais é do que a evocação por parte das classes altas da necessidade de

demonstração da capacidade de dominar o código linguístico da elite, o que implica na

inferiorização de outros códigos linguísticos como, por exemplo, a tradição dos Mestres

e Griôs das culturas afro e indígena que tem na oralidade o meio pelo qual transmitem

cosmovisões, cosmologias. Esse tipo de conhecimento não é só deslegitimado, como

apontam Bordieu & Passeron (1975) e Saes, (2007) como também lhes é retirado a

humanidade daqueles tipos de conhecimento e nesse sentido, estamos indo além dos

referidos autores quando afirmamos que não há apenas marginalização, mas

desumanização pelas camadas médias dos sujeitos que não dominam o código

linguístico da elite, leia-se branca.

É no processo de conversão, isto é, “dos recursos culturais de natureza pré-

escolar e extraescolar, acumulados pelos alunos da classe dominante, em recursos

propriamente escolares” (SAES, 2007, p. 108) que em nossa análise reside a chave para

compreender o papel da fração da classe média alta e branca na desumanização da

população negra, evidenciado mais fortemente em momentos de conflito, como ocorreu

com o PIMESP. Vejamos o que dizem os elaboradores do PIMESP sobre o modelo de

reservas de vagas étnico-raciais:

“[…] Chegou-se à conclusão que deveria se pensar rapidamente em um sistema

que trouxesse algumas correções dos problemas que vimos na proposta federal

[…] Nossa ideia é dar condições para que esse aluno venha melhor formado para

entrar na universidade. De que jeito? Fazendo algo que seja interessante para a

vida dele, um curso de formação, com certificação, de forma que, se não quiser

para universidade após este curso, ele pode ir para o mercado de trabalho […]

Queremos que os cotistas tenham o mesmo nível dos alunos que entram pelo

vestibular. A política federal não prevê isso. […] O governo estadual e o Cruesp

[Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo] pensaram

nisso: vamos melhorar o nível dos cotistas […] A gente quer fazer a inclusão

social de forma que os cotistas tenham condições de acompanhar o curso

oferecido e se forme em igualdade de condições. O que vai ser muito difícil de

166

ser feito no federal [Lei de cotas] (Júlio Durigan, à época reitor UNESP. Cf.

FAJARDO, 2013)

“[...] A questão não é só por para dentro da universidade. A questão colocar

na Universidade, por critérios de seleção adequados, fazer com que eles

tenham condição de permanecer na Universidade do ponto de vista

econômico, do ponto de vista acadêmico, isto é, com capacidade de

acompanhar os cursos e formar competências para o exercício adequado das

profissões que eles se formarem [...]” (Carlos Vogt, Cf. ENSINO Superior

Especial, 2013).

Ao exigir o domínio do código linguístico da elite, o CRUESP e executivo

estadual de São Paulo estavam reproduzindo o favorecimento dos alunos da classe

dominante na competição escolar já que é esse grupo que detem o referido código

(SAES, 2007, p. 108). Entretanto, longe de ser uma posição apenas assumida pela

burocracia educacional, a partir da análise dos discursos na avaliação do PIMESP como

veremos, os docentes também assumem o papel de agentes de marginalização e

desumanização cultural, na medida em que baseados no mesmo argumento- domínio do

código linguístico- os docentes rechaçaram o referido Programa por também desconfiar

da “qualidade dos cotistas”, ainda que os beneficiários tivessem que passar pelo

vestibular e pelo curso sequencial (ICES) por 2 anos.

Outro elemento presente no discurso dos elaboradores do PIMESP é

naturalização da existência do vestibular como ferramenta capaz de mensurar sujeitos

com e sem méritos, sem qualquer tipo de questionamento desse instrumento:

"[…] Existe a possiblidade de um dia substituir o vestibular. Mas esse ‘um dia’

talvez não esteja muito próximo. Por quê? Temos uma estrutura de vestibular

consagrada, conceituada, com qualidade de seleção muito boa, compatível com

que queremos nos nossos cursos. Nosso vestibular há anos vem sendo feito com

uma qualidade muito boa, posso falar pela Unicamp e USP também" (Júlio

Durigan, à época reitor UNESP. Cf. FAJARDO, 2013).

A naturalização da existência do vestibular está em íntima relação com o

processo de ocultamento da dinâmica real da hierarquização do trabalho e exclusão dos

pobres do ensino universitário. O vestibular é em si um mecanismo que assegura a

monopolização do espaço da universidade, pois:

“[...] reduzindo a parte da auto-eliminação ao fim dos estudos primários em

proveito da eliminação prorrogada ou da eliminação só pelo exame, o sistema de

ensino não faz mais do que preencher melhor sua função conservadora, se é

verdadeiro que, para dela desempenhar-se, ele deve mascarar oportunidades de

acesso em oportunidades de êxito: os que invocam o ‘interesse da sociedade’ para

deplorar o desperdício econômico que representa o ‘resíduo escolar’ deixam

contraditoriamente de levar em conta aquilo de que este desperdício é o preço, a

saber o proveito que a ordem social encontra em dissimular, prorrogando-a no

tempo, a eliminação das classes populares” (BOURDIEU, 1982, p.168).

167

O Vestibular serve como mecanismo de filtragem no sistema educacional,

constituindo-se no mascaramento da reprodução do poder na medida em que “ele

conduz aquele que é eliminado a se identificar com aqueles que malogram, permitindo

aos que são eleitos entre um pequeno número de elegíveis ver em sua eleição a

comprovação de um mérito ou de um ‘dom’ que em qualquer hipótese levaria a que eles

fossem preferidos a todos os outros” (BOURDIEU, 1982, p.171).

Importante registrar ainda que a “flexibilização” da defesa absoluta do vestibular

já vinha ocorrendo nas três universidades se entendermos que os programas de inclusão

até então vigentes (como a bonificação) eram, em si, o reconhecimento por parte dos

docentes de que há disparidades sociais que impedem a competição igualitária e que não

é possível estabelecer os mesmos critérios de seleção quando a sociedade tem

desigualdades absurdas.

Apresentado as justificativas para criação do PIMESP, avancemos para os meios

estabelecidos pelos elaboradores para alcançar “as metas” objetividas pelo Programa. O

PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos de escolas públicas

e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de PPIs, no entanto, ao

serem selecionados pelo ENEM ou por outra forma a ser definida pelas universidades

(como aumento do bônus no vestibular), os estudantes aprovados teriam que fazer um

curso semi-presencial a ser realizado no Instituto Comunitário de Ensino Superior

(ICES) com duração de dois anos e com grade curricular que incluia disciplinas como:

serviços e administração do tempo, gerenciamento de projetos, profissionalização,

inovação e empreendedorismo.

O Instituto Comunitário de Ensino Superior obrigaria o vestibulando, mesmo

tendo sido aprovado, a receber uma formação que o deixaria ‘apto’ a adentrar na

universidade pública. Só depois dessa ‘formação’ ele poderia iniciar os estudos na

Universidade:

“[...] O curso o que faz é oferecer uma nova modalidade de ingresso,

oferecendo também condições de permanência do estudante do estudante

nos cursos um curso de dois anos [...] oferecendo uma nova modalidade de

ensino superior no estado e ao mesmo tempo aumentando, portanto a nossa

capacidade de atendimento dessa demanda social que é crescente

[...]”(Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

“[...] Esse [sobre o ICES] é um aspecto inovador do programa, dessa proposta

porque ela permite que as universidades de uma maneira autônoma discutam

meios de aumentar esses alunos de escola pública, de minorias de acordo com

as suas características e com suas experiências [...]”(Fernando Costa, Cf.

ENSINO Superior Especial, 2013)

168

Para além da confusão entre a finalidade de uma política afirmativa, a criação de

novas formas de ingresso, gostaríamos de refletir sobre o pressuposto da defasagem dos

cotistas em relação aos não cotistas. O PIMESP parte desse pressuposto e estabelece

que o cotista teria de estudar dois anos a mais, além dos anos previstos do curso

superior. Os dois anos justificam-se, segundo os elaboradores, não apenas pela

necessidade de garantir de fato a formação “cidadã” para esses sujeitos mas

principalmente para oferecer um outro tipo de formação que não o superior:

“[…] mas a capacitação é o principal objetivo do ICES, podendo ser

comparado aos “colleges” americanos. Trata-se de cursos sequenciais de

capacitação e formação superior de dois anos com diploma que habilita o

aluno a atuar em áreas que não exigem formação técnica específica, como por

exemplo, alguns cargos em setores de prestação de serviços e alguns cargos

públicos” (Cf. GRILO, 2013).

O ICES, em nossa leitura, foi uma tentativa de unir em um só projeto os

interesses da classe dominante-formação de trabalhadores não especializados à

disposição do mercado, e da alta fração classe média branca-controle do processo de

“sobrecertitificação” mas que não resistiu, em nossa análise, a desconfiança dos

docentes em relação à capacidade do ICES conseguir manter a distinção do espaço da

universidade como espaço por excelência do trabalho não-manual.

Para aprofundar nossa análise consideramos que vale investirmos alguma

reflexão em torno da expansão do ensino superior nas décadas de 60 e 70 e a realizada

nos anos 2000-tendo essa última como um dos seus desdobramentos, a discussão sobre

políticas afirmativas no Brasil. Quais foram os motivos que levaram a expansão e como

ela foi feita nos dois períodos? O processo ocorrido nos anos 60 teria pontos de conexão

com os anos 2000? Quais foram seus desdobramentos para a manutenção da fração da

classe média alta e branca ligada à Universidade? E quais tipos de narrativas são

mobilizadas nesse contexto de disputas? Nesse sentido, interessa-nos perceber possíveis

rupturas e continuidades referentes às dinâmicas de expansão do ensino entre aqueles

dois períodos e quais seriam seus impactos para a dinâmica de reprodução das classes e

para a hierarquização racial.

Tanto nos anos 60-70 como nos anos 2000, a reivindicação por expansão foi

respondida pelo governo federal com o aumento de investimento no setor privado, mas

no segundo momento, como constatou César Barros (2011):

“[…] as matrículas nas instituições privadas pela primeira vez superaram as

feitas nas instituições públicas, fato que não mais se reverteu durante todo o

período posterior. Em 2006, as instituições privadas detinham 71.7% das

vagas em todo o país. Dados de 2003 demonstram que as instituições

169

públicas tinham 5.662 cursos de graduação presencial, enquanto que as

[universidades] particulares tinham 10.791” (idem, p. 136-137).

Em relação às políticas de expansão em ambos os períodos, a subordinação

desse tipo de política às políticas científico-tecnológicas e de inovação, esteve na

essência daqueles processos, consolidando:

“[...] o processo de institucionalização da política de ciência e tecnologia, na

década de 1960, até os dias de hoje, as bases conceituais, a estrutura

organizacional, os meios de financiamento e as formas de avaliação são

comuns no que diz respeito à implementação de políticas para estimular a

produção e instrumentalização do conhecimento científico e tecnológico [...]

a política educativa vem, historicamente, respondendo aos objetivos

imediatos da política científica tecnológica dos Estados brasileiro e português

[...]” (SILVEIRA, 2011, p.161).

Se a expansão do ensino superior nos anos 2000, com os governos dos Partidos

dos Trabalhadores, caminhou lado a lado com a privatização e mercantilização do

ensino (SILVEIRA, 2011), dinâmica presente desde os anos 60-70, dois elementos

novos dinamizarão a expansão do ensino superior nos anos 2000, reverberando na

relação entre as classes e na hierarquia racial: o primeiro a nível mundial relativo ao

processo de mercantilização da diversidade e o segundo em nível nacional no que diz

respeito à base social do Partido dos Trabalhadores.

A marca distintiva da fase do capitalismo neoliberal que “diferentemente de

outras estratégias de representação ocidentalistas que ressaltam a diferença entre o

Ocidente e seus outros, a globalização neoliberal evoca a igualdade potencial e a

uniformidade de todas as pessoas e culturas, como uma modalidade, particularmente,

perniciosa de dominação imperial” (CORONIL, 2005, p. 127), o que está refletido na

defesa da “valorização da diversidade”, da “promoção da interculturalidade”

disseminada por diversos organismos internacionais91, empresas e governos desde os

anos 90, mas que em nossa leitura se intensificou ao longo dos anos 2000.

Podemos citar como evidências de que a “diversidade funcional” começava a se

inserir nas agendas dos governos neoliberais dos anos 90 no Brasil92, a realização de

algumas ações, ainda que tangenciais, nos governos de Fernando Henrique Cardoso

(1995-2003) como a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da

População Negra em 1995 e a realização do Seminário Internacional "Multiculturalismo

e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos".

91 A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001 pode ser um bom exemplo da

disseminação da narrativa da “diversidade funcional”, como chama atenção Walsh (2012). 92 Não podíamos deixar de assinalar que a inserção das demandas por inclusão racial na agenda dos

governos nos anos 90 é também fruto da pressão do movimento negro.

170

Entretanto se o estímulo à “diversidade funcional” estava na agenda neoliberal a nível

internacional e nacional, quais as razões pelas quais o então presidente Fernando

Henrique não avançou com a implementação de políticas de ação afirmativa para as

populações negras e indígenas no ensino superior? Segundo ele, em entrevista a Folha

de São Paulo, porque “não devemos simplesmente imitar. Nós temos que ter

criatividade" (Cf. PINTO, P.S.1996), numa alusão aos programas de ação afirmativas

nos Estados Unidos e crítica ao movimento negro brasileiro que desde os anos 80

reivindicava o modelo de reservas de vagas no ensino superior adotado nos Estados

Unidos da América.

Analisando o documento “Construindo a democracia Racial” (BRASIL, 1998)

que reúne todas as falas de Fernando Henrique Cardoso acerca do tema enquanto foi

presidente, podemos extrair que a resistência às cotas parece não se tratar exatamente de

um problema relacionado à “importação de uma política”:

“[...]Entrevistador - O senhor disse que os brasileiros não gostam do sistema

[de cotas]. Por quê? Ele não poderia ser utilizado, por exemplo, para facilitar

o acesso dos negros à educação? Presidente [Fernando Henrique Cardoso]

- Há uma reação muito grande à idéia, porque ela implica deixar de lado a

avaliação de mérito. Portanto, seria uma discriminação. A oposição à cota é

muito grande, mesmo dentro do Ministério da Educação. Entrevistador -

Mas os movimentos negros são a favor Presidente [Fernando Henrique

Cardoso] - Sim, são a favor. À medida que você amplia a educação,

universaliza mesmo, a probabilidade de ascensão dos negros vai ser maior.

Leva mais tempo, mas tem resultados. Não quero entrar na discussão do

sistema de cotas, pela resistência que vai provocar, mas não sou contrário.

Havendo duas pessoas em condições iguais a nomear para determinado

cargo, sendo uma negra, eu nomearia a negra [...] Entrevistador - A política

oficial brasileira é de que não aceitamos o racismo. Presidente [Fernando

Henrique Cardoso] - Se fosse diferente, seria mais fácil lutar contra.

Entrevistador - Por isso mesmo, porque não há uma política oficial negativa

contra a qual lutar, é que, talvez, uma ação afirmativa, como o sistema de

cotas, seja necessária. Não lhe parece? Presidente [Fernando Henrique

Cardoso] - Na questão da universidade - que é onde, basicamente se

aplicaria a cota - é complicado. Agora, acho importante haver um esforço

grande no emprego. No Estado brasileiro, a discriminação caiu muito[...]”

(idem, p. 13).

A fala do ex-presidente reflete a dinâmica de classes e como essa interage com a

hierarquia racial e como o mérito desempenha um papel central na discussão sobre

políticas afirmativas no ensino superior brasileiro. O presidente apesar de reconhecer

que existe racismo e que são necessárias medidas de combate (e que inclusive, contava

171

com algum respaldo internacional para fazê-lo), em sua opinião, as medidas deveriam

ser focadas no acesso deveria ser no emprego93 e não na Universidade e por quê?

Em nossa análise, esse discurso refleteo confinamento racial da universidade

pública brasileira, na medida em que a negação da possibilidade de criação de cotas

étnico-raciais no ensino superior se converte em estratégia de “imobilismo social contra

o negro”, diminuindo as chances reais de mobilidade da população negra (MOURA,

1988). Apesar de fazer referência às cotas na distribuição de cargos, o então presidente

parecia não ter pretensão de levar a discussão para o ensino superior. Fato é que ele não

foi capaz de estabelecer uma ação organizada em nível nacional para levar adiante esse

tipo de política. Não é necessário dizer que o ex-presidente faz parte da elite intelectual

dos pensadores do Brasil e que compartilha, em nossa leitura, com esse grupo seleto o

imaginário hegemômico acerca da condição do negro no Brasil.

O segundo ponto em relação ao processo de expansão do ensino superior público

nos anos 2000 e a instituição das políticas afirmativas é a relação do Partido dos

Trabalhadores com o movimento negro (uma das suas principais bases sociais do

Partido).

Se nos anos 60-70, o movimento estudantil pertencente à classe média branca foi

o principal agente de reivindicação por aumento de vagas no ensino superior, nos anos

2000 foram os ativistas do movimento negro (militantes desde o processo de

redemocratização, ligados aos movimentos sociais e aos partidos) os principais

responsáveis pela reivindicação de acesso não apenas à universidade, mas a outros

serviços básicos por séculos negados. A proximidade com o Partido no governo (desde

os anos de sua fundação94) possibilitou a abertura de um diálogo e uma pressão mais

intragoverno que resultou, dentre outros avanços na Lei de Cotas e no Estatuto da

Igualdade Racial em 2012.

A estreita relação com o governo permitiu que o movimento negro fissurasse as

brechas da “diversidade funcional” e vislumbrasse ocupar um espaço que por tantos

anos fora-lhe negado: a universidade pública. A mobilização deu-se no âmbito nacional,

principalmente a partir da votação no STF em 2012, quando o movimento negro passou

a ganhar mais força na mobilização nos estados, fazendo frente às universidades e

câmaras estaduais (FERES Jr. et al 2013a, GUIMARÃES, A.S.A. 2007; PAIVA &

93 Nos governos de Fernando Henrique Cardoso foram criadas cotas em alguns Ministérios, no Exército Brasileiro mas como dissemos ações muito tangenciais e em setores muito específicos. 94 Ver Rios (2009; 2014 e 2015).

172

ALMEIDA, 2010), inclusive em São Paulo denunciando o caráter racista do PIMESP e

exigindo a adoção das cotas. Nesse sentido, o movimento negro teve um papel

importante no processo que resultou na rejeição ao Programa de Inclusão com Mérito,

principalmente na denúncia da desvirtuação dos objetivos dos programas de ação

afirmativas, que vinham sendo implantados no contexto nacional, e a proposta (de

caráter racista e elitista) do ICES. Sobre o caráter racista e elitista do ICES, os trechos a

seguir apontam para as evidências dos reais objetivos dos “colleges”:

“[…] formação em funções profissionais que, embora regulamentadas no

mercado de trabalho, nem sempre são contempladas pelos cursos

tradicionais de graduação […] o objetivo é ampliar a formação cultural dos

estudantes, possibilitando, além da sua capacitação, a plena inserção na

sociedade contemporânea […]95” (CRUESP, 2012).

“A UNIVESP, em parceria com as universidades e o Centro Paula Souza,

oferece, no Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), Curso Superior

Sequencial (similar a College) com propósito de: a) Aumento de horizonte

intelectual nos campos das humanidades e ciências promovendo a preparação

para o mundo do trabalho; b) Formação sociocultural superior para exercício

da cidadania na sociedade moderna; c) Aumentar o grau de competitividade

de alunos provenientes do ensino médio público quanto aos processos

seletivos das universidades paulistas; d) Aumentar a participação de

categorias sócio-étnicas” (CRUESP, 2012).

O “aumento de horizonte intelectual [...] promovendo a preparação para o

mundo do trabalho”, “a formação sociocultural superior para exercício da cidadania na

sociedade moderna” e o aumento do “grau de competitividade” revelam a um só tempo

o arcabouço colonialista (civilizar) e capitalista (manter a hieraquia do trabalho) da

proposta do ICES. Nesse sentido, o ICES a um só tempo propunha-se a ser um misto de

missão civilizatória (evidenciando como o imaginário racial orienta a prática política

das classes) e formação de trabalhadores técnicos.

Os destinatários do PIMESP são concebidos pela fração da classe média alta

como deficientes, despreparados e, portanto, com dificuldades de adaptação ao ensino

superior público- sendo esse, segundo os elaboradores da proposta, o verdadeiro motivo

da ausência dos grupos beneficiários dos espaços da universidade. Portanto, a presença

de negros e indígenas é vista como um gesto de benevolência- e por isso

assistencialista- por parte da fração da classe média alta, que os enquadra como um

grupo desprovido de capacidades e competências e que portanto precisariam de passar

por um curso que os nivelassem em relação aos não-cotistas:

“[…] Uma formação geral que o capacite de um lado para permanecer na

universidade e fazer os cursos que ele possa vir a escolher a depender do seu

95 Citação extraída de uma versão resumida do Programa, produzida por Carlos Vogt. Disponível em:

http://www.iri.usp.br/documentos/acoes_afirmativas_pimesp.pdf. Acesso em 10 set 2014.

173

desempenho […] então são cursos que vem suprir necessidades […], mas

eles têm uma finalidade em si próprio que é a finalidade de profissionais

para o mercado. Há uma quantidade enorme de profissões que são

regulamentadas, mas que não tem cursos específicos para sua formação

então é um amplo espectro de atividades que vão desde as atividades de

serviço púbico a atividades do mercado que exigem conhecimento,

formação, línguas, capacidade de articulação, de expressão, de realização de

operações matemáticas, etc e que vai, portanto, colocar este cidadão em

condições de exercer de fato os seus direitos de cidadania [ entrevistador:

Deixei eu colocar uma palha um pouquinho. Um curso desse tipo que

pretende formar alguém para cidadania. Isso não deveria já ser o ensino

médio, professor?] Não. O ensino médio não diploma no sentido de dar a

eles uma formação profissional. Quem faz isso é o ensino superior […]”

(Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)

“[...] E esse curso ele desenvolve competências exigidas pelo mundo

moderno e eu acho que isso é fundamental. Então um aluno depois desses

dois anos de curso no ICES, ele se sente muito mais preparado, muito mais

seguro e eu digo isso porque o Centro Paula Souza é uma instituição que

prepara para o mundo do trabalho, a formação específica é importante mas a

geral é fundamental. Hoje se você perguntar para um empresário o que o

profissional tem que ter para exercer bem as suas atividades ele vai dizer

exatamente liderança, capacidade de resolução de problemas, o trabalho em

equipe então essas são competências que esse curso certamente vai

desenvolver [...]” (Laura Laganá, diretora superintendente do Centro Paula

Souza. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)

“[...] Um dado importante […] é que [o ICES] Ele próprio é um curso

extremamente abrangente que permite que o aluno, porque ele é um curso

moderno, ele tem uma formação geral, permite que o aluno tenha aula

optativa em alguma área específica […] esse tipo de formação é muito

importante para algumas áreas de conhecimento […] alguns cursos do ensino

superior [...] maior parte daqueles que se formam não trabalham nas áres que

se formam, trabalham em áreas completamente distintas. Esse curso formará

pessoas que poderão atuar em áreas que exigem formação geral […] é assim

que acontece nos Estados Unidos, é assim que a Europa está se

movimentando, a Ásia. Então acho que vai mostrar [os resultados atingidos

pelo ICES] uma possibilidade de ampliar o ensino superior sem

necessariamente ser um curso tradicional nas nossas universidades […]”

(Fernando Costa. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)

Ainda que façamos o exercício de ignorar o imaginário social dos elaboradores

do PIMESP acerca da população beneficiária e a forma para integrá-los à universidade,

ainda assim o “problema e a solução” por eles definidos ficam diluídos na proposta que

longe de um programa de fato afirmativo onde o objetivo primordial é combater

discriminações, aumentando a participação de grupos historicamente desfavorecidos em

espaços também historicamente excludentes, o PIMESP é um misto de reafirmação da

ideologia meritocrática dissimulado em certo assistencialista que concebe os

beneficiários do Programa como sujeitos incompletos e que precisam de intervenções

para os tornar sujeitos plenos, cidadãos:

“Nós temos um certo [sic] prazo [para aprovar o PIMESP] entretanto o

importante é verificar em primeiro lugar que é imprencidível que as três

universidades paulistas mantenham o mérito porque é justamente do mérito

174

é que nós vamos retirar a grandeza da excelência que essas universidades

têm tanto no Brasil quanto no mundo então isso é indispensável que

aconteça [...] não adianta abrir essa possibilidade como um simulacro.

Entram e se veem perdidos no dia seguinte. Ou que se abra a universidade

de tal forma que ela possa vir perder o mérito. Então a preocupação nossa é

de procurar um estado de equilíbrio [...] e dessa forma nós temos certeza

que as nossas três universidades elas continuarão sem dúvida nenhuma a

estarem nos rankings nacionais e internacionais como estamos hoje e até

melhorando porque em última análise esse pessoal todo que será trazido,

além de, como disse o professor [Vogt], não piorarem nada, eles trarão um

sangue novo, trarão um ânimo que certamente fará com que a universidade

se renove.” (João Grandino Rodas. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

“[…] Esse aluno vai estar muito mais preparado para a permanência que é

um problema que as universidades têm e Centro Paula Souza também. Às

vezes o aluno ingressa e depois ele não tem condições de permanência,

encontrando as primeiras dificuldades de acompanhamento, esse aluno

muitas vezes abandona o curso. Esse aluno vai estar muito mais preparado

[...], além disso, ele vai estar muito mais preparado para o mercado de

trabalho” (Laura Laganá. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

A abordagem integracionista como solução para ampliar o acesso ao ensino

superior, a partir da abordagem do PIMESP, legitima práticas excludentes, recorrendo a

imaginários que reificam a população beneficiária do sistema de reserva de vagas. Mas

até aqui não há nada de muito novo, como apontou Abdias do Nascimento (2017

[1978]):

“[...] Monstruosa máquina ironicamente designada de democracia racial que

só concede aos negros um único privilégio: aquele de se tornarem brancos,

por dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura e do

capitalismo que lhe é inerente, responde a apilados bastardos como

assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da

superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano

e seus descendentes (idem, p. 111).

Abdias do Nascimento foi um dos ativistas negros que criticou fortemente

durante os anos 60 e 70 o caráter integracionista das políticas públicas (como a

supressão das pergunta sobre cor/raça nos censo demográfico durante a ditadura de

1964). Porém, diferentemente dos anos 60 e 70, entendemos que nos anos 2000, o

movimento negro no Brasil reivindica adentrar nos espaços de reprodução da fração da

classe média alta e branca, desencadeando um processo de complexificação das

estratégias empregadas por aquela classe para garantir sua reprodução. Nesse sentido,

nos anos 2000 ocorre uma reordenação de gramáticas tanto as empregadas pelo

movimento negro quanto pela classe média branca, ambas inéditas em nossa leitura. De

um lado o movimento negro buscava articular a perspectiva integracionista aliada à

gramática da diversidade para reivindicar cotas e como resposta, a classe média branca

175

atrela integração, diversidade mas com a exacerbação da defesa da meritocracia como

tentativa de controlar o processo de sobrecertificação.

O conceito de sobrecertificação diz respeito “a grande quantidade de pessoas

diplomadas, em áreas diversas” (BARROS, C., 2011, p.141). Nesse sentido,

acompanhando as reflexões de Bourdieu e Passeron (1975), interessa-nos compreender

se o PIMESP evidencia os novos mecanismos ideológicos articulados pela fração da

classe média alta e branca para manter a exclusão de negros e indígenas da universidade

no processo de expansão de acesso à universidade.

César Barros (2007; 2011) analisando a expansão do ensino universitário e as

implicações para a estrutura de classes entre os anos 60-70 e 2000, identificou que

aliado à expansão de vagas nos dois períodos mencionados, ocorreu um aumento

significativo de instituições privadas de ensino, mantendo os espaços nas universidades

públicas quase intocados. Entendemos que a lógica que orientou a elaboração do

PIMESP (e de outros programas inclusivos nas universidades estaduais paulistas),

evidencia um processo de contenção da diplomação de grupos historicamente oprimidos

como resposta da fração da classe média alta e branca ao processo da expansão do

ensino superior. E com base em quais evidências podemos afirmar isso?

Primeriamente pelo formato (de curso sequencial) do ICES. O tempo no qual o

estudante teria de ficar no ICES acarretaria a desistência de centenas de estudantes antes

mesmo de adentrar no curso superior. Segundo o PIMESP, os créditos adquiridos no

curso preparatório e de formação profissional poderiam não valer para a universidade.

Isto é, seriam dois anos em que o cotista despenderia tempo sem ter a certeza se entraria

em um dos cursos de graduação. Esse arranjo evidencia que a intenção real da Proposta

era a formação técnica para atender as demandas do mercado:

“[apresentador pergunta: Que tipo de área contrata um profissional desse tipo?]

Qualquer concurso público. Ele vai estar habilitado a fazer qualquer função

administrativa, qualquer função de gestão, gerenciamento seja de lojas,

magazines, comércio, de serviços, serviços bancários [...]” (Carlos Vogt. Cf.

ENSINO Superior Especial, 2013).

Em segundo lugar, a presença de disciplinas como “empreendedorismo” e

“gestão do tempo”, mais próximas a uma formação de tecnólogo, ao mesmo tempo em

que agrada à classe dominante com a formação para o mercado, por outro lado controla

a emissão de diplomas universitários, já que dado o perfil dos ingressantes (pobres e

com necessidade de colocação rápida no mercado de trabalho) a probabilidade de

muitos, dentre eles e elas, contentarem-se com um curso profissionalizante seria muito

176

provável ou ainda a desistência de muitos dentre eles e elas no meio do curso (e que

como veremos mais adiante, aconteceu nos primeiros anos do PROFIS).

O PIMESP propunha, atrelado à criação do ICES, um plano de recrutamento. O

“Plano Institucional de Recrutamento de Estudantes” deixa evidente o pouco

comprometimento da Proposta com a inclusão já que esse Plano de recrutamento

deveria atender aos 60% restantes de alunos contidos nas metas de “inclusão” não

abarcados pelo PIMESP (que abarcaria 40%). Entretanto, na proposta do PIMESP não

se apresenta nenhuma ação objetiva de implementação, deixando o “recrutamento”

apenas sugerido genericamente e à cargo das universidades.

A proposta do Programa é atravessada por uma lógica perversa da

desumanização do público beneficiário do PIMESP. Aos negros e indígenas cabe à

formação em cursos técnicos e tecnológicos com o ingresso mais rápido no mercado de

trabalho, enquanto aos mais abastados caberia ambicionar a formação superior em

carreiras de maior prestígio e remuneração.

O projeto foi encaminhado em 2013 para discussão nas instâncias

representativas das três universidades e Faculdades de Tecnologia (Fatecs), e somente

entraria em vigor se tivesse sido aprovado nos respectivos conselhos. Válido ainda dizer

que o executivo e os reitores (responsáveis pela elaboração do PIMESP) apontavam nas

solicitações enviadas às congregações que gostariam que fosse aprovada a Proposta

ainda em 2013 para que em 2014 (ano eleitoral) já começasse a vigorar o Programa.

Em 2014 houve um recuo do conselho de reitores diante das fortes críticas ao

PIMESP advindas das três universidades por meio dos seus conselhos universitários e

da própria atuação do movimento negro. As críticas resultaram no arquivamento da

proposta, mas implicou em alguns reajustes nos programas já correntes de bonificação

no caso da USP e Unicamp e adoção de políticas de ação afirmativa com reserva de

vagas no caso da Unesp.

A grande discussão gerada a partir do PIMESP no meio docente nas três

universidades oferece uma excelente oportunidade para observarmos a dinâmica de

articulação e mobilização daquela fração da classe média quanto à defesa de seus

interesses e privilégios. Os argumentos movimentados pelos docentes que se opuseram

ao PIMESP, fornecem, em nossa interpretação, elementos indicativos da posição de

classe e raça daqueles sujeitos. Em outras palavras: o processo que envolveu a análise

sobre adoção do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público

Paulista revela como opera em conjunto a ideologia meritocrática e o mito da

177

democracia racial no conflito sobre a adoção de cotas étnico- raciais no ensino superior

público.

À época da apresentação do PIMESP às três universidades, Carlos Vogt,

presidente da Univesp e um dos co-autores da proposta do PIMESP ao referir-se ao

Programa, assim o definiu:

“Entre os que querem mais e os que querem menos está o PIMESP, isto é, na

confluência da tensão de desejos opostos e forças contrárias, que produzem

como resultado a mesma negação. Os que querem menos tendem a defender a

manutenção do status quo, recusando considerar qualquer tipo de proposta que

objetive programas de inclusão social, mesmo com características fortes de

defesa do mérito e da qualidade do ensino, como é o caso do que propõe o

PIMESP. Os que querem mais almejam um programa que reserva vagas nas

universidades e ponto final” (VOGT, 2013, p. 7).

A definição supracitada do presidente da Univesp já aponta para alguns dos

principais elementos que comporão os discursos dos docentes nas três universidades e,

dentre eles, nos interessa destacar a refutação da reserva de vagas para negros, tal como

vinha acontecendo nas demais universidades federais. Isso fica evidente quando Carlos

Vogt afirma que o PIMESP conseguiria ser uma saída “entre os que querem mais e os

que querem menos [...], isto é, na confluência da tensão de desejos opostos e forças

contrárias, que produzem como resultado a mesma negação” (Ibidem).

A “negação” diz respeito à rejeição ao desenho da política afirmativa do governo

federal para as universidades que propôs reserva de vagas (sem curso preparatório) e

para oriundos de escola pública e dentre aqueles estudantes pretos, pardos e indígenas.

Veremos aquela “negação”, afirmada por Vogt, aparecer repetidas vezes na ampla

maioria dos documentos produzidos pelos docentes das três universidades acerca do

PIMESP.

Como veremos, entretanto, a proposta do PIMESP não conseguira se impôr

como segunda via ao programa de política afirmativa do governo federal: tenha sido

porque seus meios foram considerados pouco evidentes (com a proposta do ICES), ou

porque tenha sido considerado uma proposta equivocada que desvirtuava os objetivos

das políticas afirmativas. Cabe ressaltar que mesmo entre esses últimos que

consideraram o PIMESP uma aberração, por desvirtuar-se da finalidade primeira de

uma política afirmativa não apontaram como saída a adoção do programa afirmativo

para o acesso ao ensino superior proposto pelo governo federal tampouco consideraram

o projeto de Lei 530 de 2004 que tramitava na Assembléia Paulista a alguns anos e era

apoiado pela Frente Pró-cotas do estado de São Paulo. O referido projeto propunha que

178

50% das vagas fossem reservadas para estudantes da rede pública, sendo 30% destinada

a negros.

No geral, o de posicionamento dos docentes das três universidades, ficou

centrado na necessidade de estudos de impacto, na manutenção dos programas já

existentes e/ou na elaboração de uma política ‘adequada’ ao contexto das universidades

paulistas. Ou seja, tanto os docentes que consideraram o PIMESP uma proposta

“confusa” como os docentes que o consideraram equivocada, no fim negavam a mesma

coisa: a inclusão imediata de negros nas universidades estaduais paulistas. Tais

argumentos, ao final, contribuíram para a mesma finalidade: a protelação da adoção de

qualquer medida de inclusão racial imediata. Nesse sentido João Feres Jr et al (2011a)

chamaram atenção para um ponto muito pertinente quanto à resistência das

universidades estaduais paulistas em relação à adoção de cotas raciais.

Os referidos autores fizeram um cruzamento de dados entre as universidades que

adotaram a modalidade de reserva de vagas e a posição ocupada por aquelas

universidades no ranking realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (INEP) para aferir colocações a partir dos resultados da

medição da qualidade do ensino superior, mensurado pelo Índice Geral dos Cursos da

instituição (IGC).

Os dados utilizados por João Feres Jr et al (2011a) foram baseados no Índice

Geral de Cursos da Instituição de 2008 (IGC). O referido índice é calculado

considerando o ranking feito pelo INEP a partir do resultado do Exame Nacional de

Desempenho de Estudantes (ENADE), professores e estrutura didática logística das

instituições de ensino superior.

O resultado final é expresso a partir de valores contínuos de 0 a 500 e em faixas

que vão do mínimo 1 (pior avaliada) ao máximo 5 (melhor avaliada). USP e Unicamp,

por discordarem da metodologia empregada na referida avaliação, não participam, mas

os autores do referido estudo equipararam as notas do IGC às notas adquiridas pelas

referidas instituições em outra avaliação ao nível de América Latina: o Webometrics

Ranking Web of World Universities. A USP obteve a 1ª posição e Unicamp a 4ª. Com

exceção de uma universidade do ranking feito pelo IGC, as notas da USP e da Unicamp

superaram todas as demais universidades que obtiveram conceito cinco no IGC. Dessa

forma, os autores atribuíram às duas instituições o valor máximo na avaliação do IGC

(ou seja, 5). O quadro a seguir mostra os resultados do cruzamento entre conceituação

das universidades e existência de cotas étnico-raciais em suas formas de acesso:

179

Tabela 2: AVALIAÇÃO INEP X POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

AVALIAÇÃO

DO INEP

TOTAL

DE

VAGAS

VAGAS

RESERVADAS

PERCENTUAL

DE VAGAS

RESERVADAS

COTAS

RACIAIS

PERCENTUAL

DE COTAS

RACIAIS

Conceito 1 Não

avaliado

Não avaliado Não avaliado Não

avaliado

Não avaliado

Conceito 2 13. 958 4. 249 30, 4% 1.833,6 13,1%

Conceito 3 89. 745 21. 503, 3 24% 11.161,4 12,4%

Conceito 4 101. 421 22. 352, 5 22% 7.966 7,9%

Conceito 5 25. 586 1, 413, 9 5, 5% 767,1 3%

Fonte para elaboração: FERES JR et al (2011a)

A partir do cruzamento da informação “universidades melhores avaliadas” e

“universidades com sistema de cotas” é possível perceber que há uma relação

inversamente proporcional: o percentual de vagas reservadas para a ação afirmativa

decresce à medida que o conceito de excelência96 da universidade sobe (FERES Jr.,

2011a). A hipótese levantada pelos autores é a de que sendo a USP e Unicamp,

universidades muito bem avaliadas internacionalmente, ambas não teriam interesse em

destinar um elevado número de vagas para ações afirmativas tampouco para cotas

raciais face à suposta possibilidade da perda de qualidade.

A resistência das universidades estaduais paulistas à reserva de vagas étnico-

raciais pode ser entendida, por um lado, como uma ação política típica da fração da

classe média alta e branca vinculada às universidades públicas com vistas a garantir a

“impermeabilidade” da universidade (espaço de reprodução daquela fração da classe

média). Por outro lado, a interpretação a partir do ponto de vista das classes, em nossa

análise, parece não dar conta de outro fato: tanto USP como UNICAMP, tinham desde

2004 e 2006 respectivamente programas de bonificação para egressos de escola pública

nos seus vestibulares. Isso implica dizer que a fração da classe média alta e branca já

vinha, há alguns anos, flexibilizando o ideal meritocrático e, em alguma medida, o

compromisso strictu sensu com esse valor. Então como explicar a resistência à reserva

de vagas étnico-raciais?

96 E dentre as mais bem avaliadas, estão às universidades estaduais paulistas (dentre essas, as federais

mais bem avaliadas como UFRJ, UFMG, UFF e que também estiveram na resistência às cotas étnico-

raciais).

180

As reflexões levantadas por M. W Apple (1999) acerca da formação das

ideologias racistas no campo da educação formal com foco nos currículos, sugerem a

existência de um discurso hegemônico que estabelece pólos em oposição, onde de um

lado teríamos a “qualidade”, a excelência na educação e de outro corpos que

representariam uma ameaça aquela qualidade:

“[…] The sense of economic and educational decline, the belief that private is

good and public is bad, and so on is coupled with an often unarticulated sense

of loss, a feeling that things are out of control, an anomic feeling that is

connected to a sense of loss of one's 'rightful place' in the world (an 'empire'

now in decline), and a fear of the culture and body of 'the other'. The 'private'

is the sphere of smooth running and efficient organizations, of autonomy and

individual choice. The 'public' is out of control, messy, heterogeneous. 'We'

must protect 'our' individual choice from those who are the controllers or the

'polluters' (whose cultures and very bodies are either exoticized or

dangerous)” (idem, p. 12).

Em 2013 o PIMESP foi rejeitado pela UNICAMP e pela USP e aceito

parcialmente pela UNESP. Entretanto, a discussão em torno da Proposta reabriu o

caminho para que as políticas de ação afirmativa com a modalidade de reserva de vagas

étnico- raciais pudessem estar na pauta de debates no meio universitário público

paulista. Dali em diante, as discussões seguiriam caminhos controversos que se por um

lado, viriam a revelar a continuidade da defesa da meritocracia e da narrativa

desumanizadora sobre as populações beneficiárias das políticas de cotas no meio

docente, por outro, tornariam evidentes a insustentabilidade da resistência da fração da

classe média branca frente ao movimento nacional de reconhecimento da existência de

entraves ao acesso ao ensino superior público que afetavam, principalmente e de

maneira inegável, a população negra brasileira.

Sobre o processo que culminou na rejeição total do PIMESP pela USP e pela

UNICAMP e na adoção parcial do Programa pela UNESP, trataremos nas seções a

seguir a partir do debate realizado em cada uma das três universidades.

A UNESP e a aprovação parcial do PIMESP

As discussões em torno do PIMESP também impactaram as ações afirmativas na

Unesp, sendo essa a primeira entre três as universidades estaduais paulistas a adotar a

reserva de vagas étnico- raciais. Em 2013, a UNESP aprovou o PIMESP mas não de

todo, rechaçando a proposta do ICES mas aceitando as metas de inclusão. Assim em

181

2014, a UNESP cria o Sistema de Reserva de Vagas para a Educação Básica Pública

mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI). A rejeição ao ICES pelos docentes da

UNESP nos informa sobre as disputas travadas entre a fração da classe média alta e

branca e a classe dominante sobre o domínio do aparelho educacional. Procuraremos

evidenciar que a explicação para a rejeição dos docentes da UNESP ao PIMESP está

muito mais relacionada ao controle da expansão do acesso ao ensino do que com o teor

racista daquela proposta.

A UNESP, até 2013, não tinha nenhuma política afirmativa propriamente dita

para o ingresso de estudantes negros e indígenas. Entretanto, ainda em 2005, a

Universidade já tinha tentado iniciar o debate, mas a discussão ficou engavetada, só

voltando a estar na pauta de debates da Instituição em 2013.

Em 2005, a UNESP (muito provavelmente influenciada pelo contexto político

estudual e nacional), iniciou o processo de discussão da adoção de programas inclusivos

no formato de bonificação. Entretanto, ao final das discussões em 2006, só foi aprovada

a isenção na taxa de inscrição para estudantes oriundos de escolas públicas. Na ocasião,

o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão Universitária (CEPE) - responsável pela

indicação de uma comissão que elaboraria uma proposta de ação afirmativa - foi

contrário à proposta de adoção de bonificação, ainda que fosse com a ampliação da

oferta de vagas.

O documento produzido pela comissão indicada pelo CEPE sobre ações

afirmativas denominado “Reflexões sobre a Inclusão Social na Unesp”, e que foi

apreciado pelo Conselho Universitário, indicava a não adoção de cotas “mas a adoção

de medidas visando a ampliação da contribuição da Universidade para a inclusão, por

meio de ações para a melhoria do ensino básico público” (SÃO PAULO, 2013a, p.5). O

CEPE indicou que a estratégia eficaz de inclusão de pobres, negros e indígena seria a

isenção na taxa de inscrição. Tal proposta foi aprovada ainda naquele ano.

Em 2007, impulsionada pela Comissão da Pró-reitora de Graduação

(PROGRAD), a proposta de bonificação voltou à pauta, mas foi rechaçada novamente,

agora não mais pelo CEPE, mas por ampla maioria das unidades de ensino e campus

experimentais. Os docentes alegaram que tal sistema feriria o princípio do mérito e que

faltava infraestrutura para absorver os ingressantes do sistema de bonificação, ainda que

na proposta feita pela PROGRAD estivesse expresso que se criaria mais vagas tendo

como condição a ampliação dos recursos advindos das receitas do governo estadual

182

(SÃO PAULO, 2013a,). Diante do rechaço generalizado, foi aprovado apenas o

reajuste na ampliação das isenções das taxas de inscrição.

Em 2008, o Conselho Universitário retirou da pauta o assunto e reencaminhou à

Câmara Central de Graduação e ao CEPE, que deveriam aprofundar os estudos.

Enquanto isso, a medida de inclusão da UNESP continuava sendo a isenção da taxa de

inscrição.

Contrariando as (ingênuas?) expectativas dos docentes, a ampliação na oferta de

isenções de taxas de inscrição não resultou no aumento significativo de alunos de

escolas públicas presentes no vestibular da UNESP, nem de aprovados ao longo dos

quase 10 anos de existência da isenção da taxa de inscrição do vestibular (SÃO

PAULO, 2013a, p.5).

Os dados sinalizaram a urgente necessidade de se repensar as estratégias de

inclusão adotadas até então. Com a apresentação da proposta do PIMESP, a UNESP

voltou a discutir as ações afirmativas em 2013 aprovando para o vestibular de 2015 a

reserva de vagas raciais e sociais escalonada, ou seja, comprometia-se a atingir 50% das

matrículas de alunos de escola pública e 35% de PPI’s até 2018 e não em 2016, tal qual

estava na proposta do governo federal.

O processo que culminou na criação do o Sistema de Reserva de Vagas para a

Educação Básica Pública mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI) em 2013 levou

em conta: o estudo feito pela Comissão, as manifestações de 21 unidades de ensino, as

manifestações do CEPE e da Câmara Central de Graduação (CCG). A proposta

aprovada disponibilizava um total de 25% das vagas para estudantes oriundos da escola

pública. Desse percentual, 35% seriam destinados aos estudantes que se

autodeclarassem pretos, pardos ou indígenas. Válido mencionar que o ICES foi

rechaçado.

Mesmo despontando em relação às outras duas universidades estaduais públicas

paulistas ao adotar a reserva de vagas, o SRVEBP+PPI, o percentual de 50% de alunos

cotistas ao longo de cinco anos a contar a partir de 2014. Com isso a meta de alcançar

50% dos estudantes de escola pública e dentre esses 35% de negros e indígenas foi

protelada para 2018, postergando mais ainda o acesso de negros e indígenas à

Instituição.

Interessante notar que entre a primeira tentativa de discussão até ao primeiro

vestibular com politica afirmativa, a Unesp levou dez anos (2005 a 2015) para concluir

183

pela adoção de algum tipo de política. O que nos chama a atenção é que mesmo tendo

passado uma década, supostamente discutindo o desenho da inclusão, os docentes

optaram por levar ainda mais cinco anos para alcançar as metas estabelecidas a nível

federal. Resta-nos entender quais foram os argumentos que embasaram a posição dos

docentes. Por quais motivos os docentes rechaçaram o ICES? E por quais razões a

política de ação afirmativa do governo federal não foi analisada pelos docentes tal como

o PIMESP, já que existiam questionamentos acerca do Programa de Inclusão com

Mérito?

Em seguida apresentaremos um panorama dos posicionamentos dos docentes,

destacando as contradições nos argumentos e de que forma alguns recursos, como a

suposta preocupação com a qualidade da produção intelectual universitária e o mérito

foram acionados para camuflar, por um lado, os interesses da fração da classe média

abastada e por outro, o conflito de classe e raça.

As políticas de cotas étnico-raciais voltam à pauta na UNESP: a

‘ameaça’ aos privilégios da fração da classe média alta e branca

Em 2013, as congregações da Unesp foram solicitadas a se manifestarem sobre o

PIMESP. Ao todo, tivemos acesso às manifestações de 21 unidades de ensino, assim

como as manifestações do CEPE e da Câmara Central de Graduação (CCG), somando

ao total 34 documentos consultados entre posicionamentos de faculdades, institutos,

departamentos, núcleos e disciplinas, campus experimentais. Das 34 manifestações, 6

posicionaram-se a favor do Pimesp, 26 contra e 2 sem posição. Entretanto, o PIMESP

foi aprovado pelo Conselho Universitário em abril de 2013, mas com ressalvas: aprovou

as “metas” de inclusão e pediu mais informações acerca do ICES, vindo mais tarde a

desistir da adoção do referido Instituto.

Dentre as manifestações contrárias ao Programa de Inclusão com Mérito, as

principais justificativas que encontramos para a rejeição foram: condução

“antidemocrática” de avaliação do PIMESP (tempo), identificação da má qualidade da

escola pública como o problema real a se investir recursos, preocupação com o garantia

do mérito, recusa às cotas étnico-raciais, defesa de programas voltados para estudantes

de escola pública e crítica ao ICES. Importante dizer que os discursos não seguem

apenas uma ou outra linha argumentativa de forma excludente. Na maioria dos

184

documentos produzidos pelos docentes, as linhas discursivas mesclam-se, mas no geral

os principais argumentos são aqueles que fizemos referência. E por fim, válido dizer

que os docentes, em sua maioria, reconheceram que há injustiças que afetam o acesso à

Universidades mas segundo os documentos consultados: 1) as injustiças são

identificadas por conta da defasagem da escola pública; 2) e a resposta para essa

situação seria o melhoramento da escola pública. Consideramos importante destacar que

que o termo racismo aparece apenas em uma das 34 atas consultadas. Vejamos agora

como cada um desses argumentos foram abordados pelos docentes.

Primeiramente vejamos a argumentação dos docentes em relação à condução do

processo e o cronograma para avaliação da Proposta. Os docentes manifestaram a

insatisfação em relação a esse suposto caráter consultivo de análise do PIMESP e crítica

19 manifestações fizeram menção a esse ponto. O fato de a proposta ter chegado aos

docentes como um “pacote fechado” teria dado um contorno apenas consultivo e não

construtivo ao processo de implementação de Políticas de ação afirmativa na percepção

dos docentes da UNESP.:

“Um programa de inclusão social para as universidades estaduais deveria ser

refletido e elaborado pelo governo estadual em total parceria com as

próprias universidades, em todos os âmbitos e, não somente na forma de

consulta com relação aos critérios de seleção dos ingressantes nas

Universidades, pois um regime político que se diz democrático precisa antes

de qualquer coisa acolher as idéias e ponderar sua validade na

transformação da realidade, em imposições e imediatismo” (Faculdade de

Odontologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“A forma como esse tema e essa proposta estão sendo conduzidos no âmbito

da universidade está longe de ser a ideal. A comunidade acadêmica foi

ignorada e sua formulação e o projeto não oferece [sic] justificativas

pedagógicas sólidas. A forma delineada de pensar essa proposta e um

método que contraria a tradição de debate plural e democrático tão cultivado

na universidade. Concebida pelos reitores das universidades públicas

paulistas e pelo governo estadual, a proposta carece de legitimidade

acadêmica [...]. É de suma importância que se abra um período adequado de

debates sobre a proposta oficial e que haja espaço e receptividade para

apresentação de sugestões alternativas” (Faculdade de Arquitetura, Artes e

Comunicação. Cf. SÃO PAULO, 2013a)

“Em janeiro de 2013 a Comissão nomeada pela Congregação para elaborar

documento que servisse de subsídio para discussão deste colegiado foi

surpreendida com a informação da existência de uma proposta concreta

elaborada pelo Conselho dos Reitores das Universidades do Estado de São

Paulo [...]. A interpretação que se pode ter é que o CRUESP tomou decisões

sem fazer qualquer consulta a respeito de posicionamentos que seriam

tomados em qualquer das três Universidades referidas. O referido Programa

foi “dado a conhecimento” dos membros do CEPE [...] chama atenção,

ainda, o tempo exíguo destinado à discussão de tema tão importante [...]

com o argumento de que se não atendermos a esse prazo, a Assembleia

Legislativa Paulista tomará a decisão por nós, como que ignorando

185

deliberadamente a condição de autonomia que conquistamos a certo tempo

[...]” (Instituto de Biociências. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

A condução do processo de aprovação da proposta do PIMESP de fato assumiu

um caráter verticalizado e “apressado”. O CRUESP e o executivo estadual paulista

assumiram publicamente a importância da criação de um programa de cotas em outubro

de 2012 e em dezembro do mesmo ano, a proposta tinha já sido finalizada, sem as

contribuições dos docentes ou de qualquer outro segmento da sociedade civil.

Entre a apresentação da Proposta pelo CRUESP- janeiro de 2013 - e a data para

devolutiva – abril do mesmo ano- os docentes se viram obrigadas a discutir e avaliar o

PIMESP. Entretanto, nos perguntamos até que ponto o argumento da “velocidade da

condução” acerca da avaliação do PIMESP também não se constitui como estratégia

com vistas a delongar ainda mais a adoção de cotas étnico-raciais na UNESP?

Como dito anteriormente, a UNESP iniciou a discussão sobre ações afirmativas,

incluindo o debate sobre cotas sociais e raciais em 2005. Se passaram então 10 anos

entre o debate inicial e a aprovação da implementação das cotas. Ainda assim, grande

parte dos professores alegou precisar de mais tempo para discutir e aprofundar o debate.

Se por um lado, a condução do processo de discussão pelos elaboradores do PIMESP

assumiu um caráter autoritário, por outro lado, chama atenção a procrastinação da

discussão entre os professores sobre as políticas de ação afirmativa na modalidade de

reserva de vagas.

Outro ponto que merece destaque sobre o argumento levantado pelos docentes

acerca do caráter antidemocrático da avaliação do PIMESP, é de que dentre as 19

manifestações que fazem crítica à condução do processo pelo pouco tempo de

envolvimento da comunidade acadêmica, apenas três atas apontam para a necessidade

de considerar o debate em curso no âmbito federal sobre políticas de ação afirmativa e

convidar outros especialistas na temática para colaborar no processo:

“O Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Paulista não se

apresenta como uma proposta de inclusão (COTAS) e, portanto, não justifica

a velocidade da tramitação desta proposta e nem de políticas emergenciais.

Além disso, não leva em consideração pelo menos 10 anos deste debate em

nível nacional e dentro da própria Unesp e desconsidera as experiências já

implementadas” (Departamento de Educação Física. Cf. SÃO PAULO,

2013a)

“Ações afirmativas que busquem compensar esse quadro histórico podem e

devem se realizadas. Na úlitma década, diversas formas de inclusão foram

tentadas, como está historiado no documento elaborado pela Comissão da

PROGRAD. No ano passado, por meio da Lei 12. 711 […] o governo federal

implementou a reserva de vagas sociais, representadas pelos extratos sociais

186

que realizaram seus estudos no ensino fundamental e médio em escolas

públicas (EP), e raciais (PPI).” (Instituto de Biociências, Letras e Ciências

Exatas. Cf. SÃO PAULO, 2013a)

Além disso, chama a atenção também o fato de os docentes reivindicarem um

processo mais democrático, mas a maioria das manifestações não faz menção à

importância de considerar a participação do movimento negro, por exemplo, ou

qualquer outro movimento implicado nas políticas de ação afirmativa como os

indígenas, recomendando apenas o adiamento da adoção do PIMESP ou da necessidade

de mais tempo para avaliar a proposta:

“ […] devido as várias sugestões e as discussões do sistema de cotas,

sugere-se o adiamento, por pelo menos um ano, para amadurecimento e

posterior implementação; que o Governo do Estado estabeleça ações para

melhoria do ensino público fundamental e médio, de tal modo que no prazo

proposto não seja mais necessária a adoção do sistema de cotas” (Faculdade

de Engenharia de Ilha Solteira. Cf. SÃO PAULO, 2013a)

“ […] Deve se fixar um plano/pacto para melhoria da qualidade da educação

básica paulista, viabilizado pela Secretaria do Estado de Educação (e

supervisionado pelas Universidades Paulistas), definindo metas, investindo

esforços onde os problemas estão localizados e não tentando implantar

medidas paliativas nesse processo que é histórico-social. Ressalta que o

período de vigência deste plano/pacto seria o período em que as

Universidades centrariam sua discussão sobre a temporalidade do ingresso

por cotas – estabelecendo‐se um prazo máximo de 10 anos para viabilização

das metas prevista pelo plano/pacto, bem como para ingresso de alunos pela

ação afirmativa da UNESP (sistema de cotas)” (Comissão Local do Núcleo

de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP), do campus de Ilha Solteira. Cf.

SÃO PAULO, 2013a).

Diante disso nos perguntamos: até que ponto os docentes estavam reivindicando

um processo democrático de fato ou estavam apenas insatisfeitos pelo fato da

elaboração e condução do processo ter sido conduzido unicamente pelo executivo

estadual e CRUESP?

Importante destacar que não estamos desconsiderando o caráter autoritário e a

exigência de velocidade por parte dos elaboradores na avaliação da Proposta. Por outro

lado, é preciso atentar que a reivindicação de autonomia universitária, implícita na

reivindicação de mais tempo para análise, parece também escamotear a protelação da

adoção de políticas de ação afirmativa. Nesse sentido, a reivindicação de mais tempo e

mais participação parece servir como instrumento de controle autoritário para controlar

e mesmo limitar o acesso à universidade. Nesse sentido, o apelo a autonomia

universitária ou ainda a horizontalidade dos processos decisórios parece converter-se em

mecanismo de (re) produção do racismo institucional.

187

A identificação da má qualidade do ensino público básico como causa real do

problema do acesso ao ensino superior esteve presente em 33 das 34 manifestações. A

melhoria do ensino público básico como a verdadeira solução para o problema foi

consenso tanto nas atas dos docentes que foram contra o PIMESP quanto entre os

docentes que foram a favor:

”Por fim, entendemos que é dever do Governo do Estado de São Paulo

implantar medidas efetivas para a melhoria do Ensino Fundamental e Médio, e

não atribuir esta função às Universidades” (Faculdade de Medicina Veterinária.

Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] Um programa de inclusão social verdadeiramente efetivo seria a melhoria

do ensino público sem causar prejuízos a nenhuma classe da sociedade”

(Faculdade de Odontologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] não há na proposta do PIMESP qualquer menção à necessidade de uma

urgente política de valorização e recuperação do ensino fundamental e médio

por parte do Governo do Estado de São Paulo, como se a dificuldade de acesso

dos alunos da escola pública ao Ensino Superior não fosse decorrente do

descalabro em que se encontra o ensino oferecido na escola básica [...] ações

afirmativas que busquem compensar esse quadro histórico podem e devem ser

realizadas [...] entende-se que tais ações, ainda que justas e necessárias, são

paliativas sem, por si só, apresentarem poder de alterar o perfil da distribuição

de renda da sociedade brasileira [...] políticas que transformem a qualidade da

escola pública nos níveis fundamental e médio são fundamentais e urgentes

para que todos os extratos sociais possam competir em igualdade pelas vagas no

ensino superior [...]” (Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São

José do Rio Preto. Cf. SÃO PAULO, 2013ª).

“[...] paralelamente a esse programa, o governo estadual deverá promover ações

de recuperação do ensino público nos níveis fundamental e médio, de modo que

todos possam concorrer em condições iguais [...]” (Instituto de Geociências e

Ciências Exatas. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] acrescentamos ainda que para o Conselho Diretor desta unidade, essa não

é a melhor solução para o problema da educação no estado ou mesmo no país,

porém esperamos que o programa seja implementado de maneira que possa

corrigir as falhas dentro do possível e que os verdadeiros esforços se voltem

para a educação de base, na qual acreditamos haver necessidade [grifo do

original] maior de planejamento e de novas políticas de funcionamento”

(Campus Experimental, Tupã. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

A educação formal é propagandeada como o único meio que supostamente torna

possível a mobilidade social nas formações capitalistas de grupos excluídos entretanto, é

fundamental situarmos que a instituição da educação pública tem uma finalidade na

estruturação de classes no capitalismo, a saber, difundir que basta que todos passem

pelos níveis da educação formal para tornarem-se iguais para disputar vagas em

concursos públicos ou ainda acessar espaços de poder como é o caso da universidade.

188

Bourdieu & Passeron (1970) evidenciaram a falácia da neutralidade do sistema

de ensino público e de que forma a instituição escolar, assume uma função reprodutora

das desigualdades sociais e mantenedora da divisão social do trabalho por meio da

disseminação da ideologia da meritocracia. Mas de que forma a implantação dessa

aparente neutralidade contribui para a reprodução da divisão social do trabalho? E como

a classe média se beneficia desse mito? Todas as 33 menções feitas pelos docentes em

relação à necessidade de “melhoria” do ensino público básico, referem-se a tal melhoria

como “o verdadeiro problema” a ser enfrentado pelo poder público no que tange ao

acesso de estudantes pobres e negros às universidades.

Recorrer à melhoria do ensino básico como justificativa para negar ou colocar

como não prioridade a adoção de políticas afirmativas com reserva de vagas mascara

um dos principais pilares de sustentação e reprodução da classe média: a defesa do Mito

da Escola Única. Nesse sentido difundir que o que determina o acesso daqueles grupos à

universidade pública é unicamente a escolarização, é fundamental para que fração da

classe média abastada vinculada à universidade mantenha seu principal nincho de

reprodução.

Em algumas atas, os docentes chegam inclusive a reconhecer a sua condição de

classe média e defender os seus interesses, como podemos ver nos trechos a seguir:

“[...], além disso, o sistema de cotas penaliza por demais a população de classe

média (representada por um grande faixa da população brasileira) que investe

em escolas particulares para seus filhos, visto que o ensino das escolas públicas

até o presente momento é precário[...]” (Faculdade de Odontologia- Conselho

de Professores da Disciplina de Periodontia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] Ao assumir que os egressos das escolas particulares estão em vantagem,

despreza-se a causa deles terem procurado essas escolas. Uma causa provável é

a de que o ensino médio particular é mais eficiente que o público […] em vista

disso é também provável que famílias de todas as raças estejam reservando uma

parte de sua renda para seus filhos cursarem escolas particulares […] portanto,

a não ser comportando-se como um déspota pode o Estado arrogar a si o direito

de privilegiar um segmento e punir outro, por ter feito este esforço adicional de

pagar a seus filhos o que o próprio estado não lhe deu. Ou alguém duvida que

ensino fundamental e médio de qualidade oferecido pelo governo (municipal,

estadual e federal) aumentaria substancialmente a inclusão social na

universidade? (Faculdade de Odontologia- Departamento de Fisiologia e

Patologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

Como assinala Saes (1997), para a classe média, pouco importa se o ensino

público tem de ser de qualidade ou não, pois como vimos nos trechos acima, a classe

média abastada recorre ao ensino privado para os seus filhos. Assim o argumento

recorrente dos docentes da UNESP de defesa de uma “educação universal pública” de

qualidade se constitui apenas como aparência dos reais interesses da classe média, pois

189

de fato a classe média não necessita de um ensino público de qualidade, pelo contrário

“inscrevê-los numa escola particular, onde o alto preço da mensalidade não só garante a

qualidade do ensino como também elimina uma parte dos futuros concorrentes,

delineia-se como a estratégia mais adequada para a consecução desse objetivo [de

manter-se em postos de trabalho não-manual]” (Idem, p. 104).

Assim a defesa do ensino público de qualidade se constitui como mecanismo

eficaz, na medida em que reproduz a um só tempo o arcabouço ideológico que estrutura

a sociedade capitalista, difundindo o Mito da Escola Única e ao mesmo tempo em que,

no caso do conflito em torno das cotas, nega o racismo e reproduz a idéia de que o

problema é a educação pública ofertada aos pobres em geral.

A implantação do ensino básico público, obrigatório e gratuito confere um status

de igualdade de oportunidades, isto é, independente da classe social, todos podem

acessar a escola. Será esse o principal recurso ideológico que a classe média propagará

com vistas à sua própria valorização econômica e social (SAES, 2005). Como afirmou

Décio Saes, o culto à ideologia do mérito exerce uma funcionalidade, a saber: o de

melhorar a posição relativa da classe média na hierarquia do trabalho. Nesse sentido, o

discurso meritocrático apareceu em 12 do total de atas analisadas, mas não para

contrapor a existência de injustiças, necessariamente, mas para reforçar que qualquer

medida afirmativa não deve abdicar desse valor:

“[...] parece que aprovando o PIMESP (vide organograma) evitamos a

proposta racista do governo federal [...] até ponto o ingresso por privilégio é

de fato lei? [...] para onde vai o mérito da sigla Pimesp se ela garante

ingresso privilegiado na universidade? [...], entretanto a questão

fundamental que se apresenta a respeito do PIMESP é outra: se por cursar o

ICES (que já atende privilégios de escola e raça), o cidadão deve ter

privilégio adicional para ingressar na Unesp [...] se o Estado fornecesse

ensino médio de qualidade teríamos uma porcentagem maior de egressos de

escolas públicas [..]”(Faculdade de Odontologia. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] O Departamento de Didática da FCL concorda que essas políticas

[cotas] precisam garantir a qualidade da educação nas universidades paulistas

e dar incentivo aos esforços pessoais pelo reconhecimento do mérito dos

estudantes” (Faculdade de Ciências e Letras. Cf. SÃO PAULO, 2013a).

“[...] propostas de ingresso por privilégio sejam quais forem elas,

acobertam mensagens despóticas e demagógicas travestidas de democracia.

Cabe as universidades mostrar aos governos os limites para o arrojo sem

ferir princípios como responsabilidade e mérito. Cabe a Unesp mostrar

caminhos para inclusão social sem se tornar cumplice de situações

embaraçosas para o mérito que ela tanto cultiva.” (Faculdade de

Odontologia- Departamento de Fisiologia e Patologia. Cf.SÃO PAULO,

2013a).

“[...] Que sejam valorizadas prioriotariamente as notas obtidas no ENEM e

considerada a classificação dos alunos cotistas inscritos no vestibular “[...]

190

sugestões à proposta do PIMESP, a saber: […] realização periódica de

avaliação criteriosa dos acadêmicos ingressantes pelo referido Programa,

visando redefinir as ações do PIMESP” (Faculdade de Ciências e Letras.

Cf.SÃO PAULO, 2013a).

A defesa da meritocracia nos trechos acima parecem evidenciar como raça está

presente mas ao mesmo tempo ausente nos debates: os docentes não mencionam

explicitamente os negros e indígenas não estariam aptos a ingressar na universidade mas

quando exarcebam a explicitação da defesa do mérito parecem criar uma narrativa que

contrapõem os beneficiários dos programas afirmativos de um lado e a garantia da

meritocracia de outro, criando uma espécie de pólo antagônico. Nesse sentido, a

ideologia meritocrática nos parece ser informada nesse contexto por um entendimento

racializado de quem possui dons e méritos e quem não os possui.

O discurso meritocrático, segundo César Barros (2007), ganha força na década

de 50 com a entrada do grande capital monopolista no Brasil, contexto no qual a

valorização da certificação escolar e a introdução de mecanismos supostamente

meritocráticos (processos seletivos e concursos) são adotados a partir das novas

exigências para acesso às burocracias privada e do Estado. A falência de muitas

empresas familiares, a ocupação de cargos nas empresas privadas por profissionais

liberais e a instituição de concursos no serviço público foram fatores decisivos para

modificar a reprodução das camadas médias. O ensino superior passou a ser o meio pelo

qual as camadas médias assegurariam a certificação escolar necessária para manutenção

do seu lugar na divisão social do trabalho, a saber, em postos de trabalho não-manual

(BARROS, C. M. 2007).

A certificação escolar passa a ser concebida como resultado dos esforços

individuais e como critério fundamental para a entrada em determinados postos de

trabalho (BARROS, C. M. 2007). Entretanto, é sabido que a pobreza e o racismo são

fundamentais para compreendermos os níveis educacionais que determinados grupos

alcançam. Dada essas opressões constituintes do capitalismo, o falseamento da realidade

assume um papel fundamental na manutenção da reprodução das classes, como afirma

Pimenta (2012):

“[…] A razão dessas contradições se portarem como paradoxo está na

necessidade da ideologia constantemente se renovar, já que sua função é

realizar uma dissimulação sutil do mundo social, fundar simulacros para

tentar ocultar o profundo antagonismo vivido pelas sociedades de classe.

Essa constituição e renovação geral da ideologia sobre a realidade político-

educacional se sustenta profundamente através da ideologia e das práticas

ideológicas jurídicas. Estas, amparadas na figura de um Estado democrático

de direito, possui a capacidade de neutralizar formalmente, no nível do

191

discurso, as contradições sociais, e através de sua atuação gerar uma

simulação de ‘justiça’no âmbito da sociedade […]” (PIMENTA, 2013,

p.16)

A ideologia da meritocracia está necessariamente atrelada ao Mito da Escola

Única, como aponta Saes (2005). A instauração do ensino público, obrigatório e

gratuito, se constitui como principal arranjo institucional que serve a classe média, ao

conferir uma ilusória igualdade de oportunidades a todos os indivíduos, independente

das condições estruturais, oportunizando, ilusoriamente, mobilidade social a todos que

dela possam usufruir.

Cabe fazermos um brevíssimo comentário no sentido de ampliar o conceito de

ideologia meritocrática aqui empregada e fundamentada na contribuição do pesquisador

marxista Décio Saes (1975; 1985; 2005). Pretendemos enfatizar que o fato da classe

média brasileira (e logo, da ideologia meritocrática) ter se constituído no período de

transição do período escravocrata para a instituição da primeira República com a

instauração do regime de trabalho assalariado, tem implicações que, em nosso ponto de

vista, circunscrevem a ideologia meritocrática em um arcabouço racista. Essa ampliação

do conceito nos permitirá compreender, por exemplo, porque não é contraditório que as

universidades de São Paulo tenham aceitado flexibilizar a meritocracia ao instituir os

programas de bonificação no vestibular para egressos do ensino público, mas tenham se

posicionado contrários à reserva de vagas com recorte étnico-racial.

Segundo Saes (2005), a classe média (desprovida de capital, mas totalmente

inserida e subordinada na ordenação capitalista), busca diferenciar-se das outras classes

por possuir dons e méritos que a tornaria apta ao trabalho não-manual (funções ligadas à

gestão, administração e especialidades técnico-científicas).

A configuração da esfera jurídico-política97 que reestruturou as instituições

políticas na primeira República de modo a manter a distinção não apenas de classe, mas

de raça, ou seja, entre negros libertos e brancos, permite-nos afirmar que a classe média

branca, se constituiu como grupo na divisão de classes afirmando um posicionamento

marcado também pela distinção racial já que teriam de enfrentar os também desprovidos

97 Sobre as leis, podemos citar inúmeras mantidas nos primeiros anos da República que impactaram

profundamente a situação dos negros libertos como: incentivo a política migratória européia

(acarretando a disputa entre europeus e negros libertos por postos de trabalho, onde os últimos foram

preteridos em lugar dos primeiros), proibição do exercício de certas profissões por negros libertos e por

fim o acesso à educação formal entre o século XIX e XX que se por um lado não foi proibida aos negros

libertos, tinha como finalidade civilizar e educar para o trabalho manual, como discutiremos no capítulo

4.

192

de capital e possuindo apenas a força de trabalho, os negros recém-libertos e que

portanto se constituíam como grupo capaz de disputar lugares na nascente classe média.

Nesse sentido, é preciso ir mais fundo na análise da relação entre o pós-abolição

da escravidão e constituição da classe média no Brasil para compreendermos de que

forma a desvalorização do trabalho manual e a defesa da meritocracia estão inscritas no

processo de atualização do racismo e anti-negritude na formação de classes no Brasil.

Segundo, Saes (1975) o valor dado ao trabalho não-manual, “tende a ser

valorizada [pelas camadas médias urbanas], pois paira sobre o trabalho braçal a

condenação social imposta por séculos de escravidão” (cf. SAES, 1975, p. 27). Ora,

parece-nos que consoante à condenação social da escravidão (diga-se de passagem,

alimentada muito mais pelo temor da possibilidade de tornar-se mercadoria, já que uma

grande parcela dos brasileiros livres também eram desprovidos de capital), a própria

constituição das camadas médias confunde-se com a construção de uma narrativa que

liga ausência de dons e méritos à inferiorização-desumanização do negro na nascente

República democrática brasileira.

Ao analisar a natureza do movimento antiescravista urbano no século XIX e a

participação da classe média, Saes (1981) afirma que a classe média urbana defendeu o

igualitarismo jurídico- e não igualitarismo socioeconômico- pois:

“Na verdade, é o seu interesse político geral que a leva a lutar pela cidadania: só

a supressão do trabalho escravo e a igualização jurídico- formal de todo os

indivíduos permitirão o desenvolvimento de um processo- impossível numa

formação social escravista- de valorização social do trabalhador não-manual.

Por que a valorização social do trabalhador não-manual é impossível na

formação social brasileira de meados do século XIX? É que, tendo o trabalho

manual um caráter dominantemente compulsório, torna-se impossível para os

trabalhadores não-manuais, provar- para eles mesmos e para as outras classes

sociais- que a sua superioridade social sobre o escravo [sic] advém de uma

superioridade de ‘dons e méritos’. Impossibilitado o confronto de capacidade

entre o trabalhador não-manual, torna-se impossível, para toda e qualquer classe

social, alimentar a ilusão da existência de uma ‘meritocracia’ no país […] essa

classe […] deve buscar a construção de uma hierarquia de trabalho, fundada na

suposição da existência de uma escala de ‘dons e méritos’ [...]” (idem, p. 21).

Se a classe média esteve envolvida na luta antiescravista sem preocupar-se com

a melhoria das condições materiais de vida e de trabalho do negro, antes exerceu um

papel crucial na elaboração da justificativa da sua própria condição privilegiada98 (que

98 Como explica Saes (1975) “[…] os esforços de mobilidade individual ascendente dos membros destas

camadas [camadas médias] eram facilitados pelas situações oligárquicas (que encontravam prepostos à

medida para o desempenho de altos cargos políticos e burocráticos) e justificados, aos seus próprios

olhos, pela necessidade imperativa de que os mais cultos e aptos assumissem a direção da sociedade

brasileira. Eis por que foi o grande número de apadrinhados e bacharéis, egressos dos setores médios

tradicionais, a ocuparem altos cargos no legislativo, executivo e judiciário” (idem, p. 67).

193

por sua vez passa pela justificação da condição subalternizada dos negros e não de

outros grupos como os imigrantes europeus99), é preciso compreender de que forma a

conformação da ideologia meritocrática no Brasil é informada pelo racismo. E com esse

posicionamento não queremos afirmar que a estrutura de relações de produção

capitalistas seja uma mera extensão de seus antecedentes históricos, mas estamos

chamando atenção para necessidade de compreender como se fundiu classe e raça na

formação da ideologia meritocrática no Brasil.

A instalação da república e ascenção do igualitarismo abstrato articulado à

meritocracia para justificar a divisão entre dominados e dominantes é antes uma

ideologia que facilita uma transição de formas legais de desumanização dos negros para

formas dissimuladas de reprodução do racismo institucional. Isto é, perde legitimidade a

narrativa, amplamente aceita no período colonial, dos negros sem alma e, portanto,

passíveis de exploração e em seu lugar consolida-se a idéia do negro sem dons e sem

mérito na República. Tal ponto nos leva a levantar a possibilidade de que a

consolidação da ideologia meritocrática tenha profunda relação com “as novas maneiras

de legitimar as antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre

dominados e dominantes” (QUIJANO, 2005, p. 203).

Nesse sentido, em nossa análise, a recusa ao PIMESP pelos docentes da UNESP

esteve articulada ao fato do Programa fazer referência à reserva de vagas étnico-raciais.

Do total das 34 manifestações, apenas 3 fizeram críticas ao ICES pelo seu caráter racista

(mas apenas uma o nomeia como tal) e 14 estiveram contra o ICES por seu caráter

racialista. A negação de que a racialização organiza hierarquicamente a sociedade e as

relações sociais, e que dentre várias consequências, tem impedido o acesso de negros e

indígenas ao ensino superior público é um elemento central para compreender a razão

pela qual os docentes tomam antirracialismo como antirracismo. O discurso

antirracialista esteve atrelado à definição do problema de acesso como à universidade

como efeito exclusivamente da má qualidade da escola pública:

99 Gostaríamos de frisar dois pontos quanto ao estímulo à imigração européia. Em primeiro lugar que nos

primeiros anos, na transição do século XIX para o XX as idéias eugenistas ganhavam força e uma parte

considerável das camadas médias aderiu a essa corrente. Podemos citar alguns dos muitos nomes como

Júlio de Mesquita (proprietário do jornal O Estado de S. Paulo); Oliveira Vianna; Arnaldo Vieira de

Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo) dentre outros que aderiram aquela corrente.

As idéias eugenistas também estiveram expressas na constituição de 1934: "Art. 138. Incumbe á União,

aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica". E em

segundo lugar é preciso ter em conta as centenas de revoltas lideradas pelos negros tanto no Brasil

(Revolta dos Malês, Conjuração baiana, Levante dos Haussás) como em outras partes da América (caso

da Revolução do Haiti), impulsionando entre as elites a construção (conveniente) de uma imagem dos

negros como insolentes e pouco afeitos ao trabalho.

194

“[...] em se tratando de obrigatoriedade da utilização de quotas, a FMVZ

[Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia] entende que para a

inclusão de alunos cotistas deve ser considerado, exclusivamente o aspecto

socioeconômico, ou seja, apenas alunos provenientes do ensino obtido por

escolas públicas, excluindo-se o caráter racial da proposta original”

(Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

“[...] a Câmara manifestou-se como segue: […] 3. Rejeitou, por 11 (onze)

votos contrários 1 (uma) abstenção, a proposta de que dentre a inclusão de

50% de alunos oriundos escolas públicas, haja reserva de vagas para pretos,

pardos e índios [...]” (Câmara Central de Graduação. Cf.SÃO PAULO,

2013a).

" [...] favorável a inclusão social por meio de cotas sociais para alunos

oriundos de escola pública e contrária à inclusão de cotas para PPI's-pretos,

pardos e índios [...]” (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão

Universitária. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

[...] O programa de inclusão deverá ser implementado no âmbito das

Universidades Públicas Paulistas para dar condições de ingresso no ensino

superior público de setores da sociedade que enfrentam barreiras sociais e

econômicas que impedem esse acesso. Os setores envolvidos nessa inclusão

referem-se aos alunos oriundos da escola pública no ensino médio,

independentemente de sua origem racial [...] paralelamente a esse programa,

o governo estadual deverá promover ações de recuperação do ensino

público nos níveis fundamental e médio, de modo que todos possam

concorrer em condições iguais, ingressando no ensino superior aqueles que

mais se esforçaram para esse processo de seleção [...]” (Instituto de

Geociência e Ciências Exatas/ Rio Claro. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

As cotas sociais, para estudantes de escolas públicas, não geram o mesmo

incômodo por parte dos docentes como geram as cotas raciais, o que para nós corrobora

que a fração da classe média branca assume um posicionamento contrário às cotas

informado por raça. Ao se referirem às cotas raciais, os docentes afirmam que elas

ofereceriam perigo como “fraudes”, “carências de critérios objetivos para definição de

raças”, “criação de tensões étnicas”, “instauração de um sistema de privilégios”. Como

explicar as razões pelos quais os docentes reconheçam que há desigualdades e que se é

preciso intervir, mas negam a desigualdade gerada pela hierarquia racial? Parece-nos

que a fração da classe média alta e branca aceita que o igualitarismo abstrato e a

meritocracia podem vir a ser colocados em suspeição desde que seja para beneficiar

oriundos de escolas públicas, independente de raça, o que acaba por silenciar o racismo

institucional.

Se por um lado o ICES foi criticado (foram oito unidades que manifestaram-se

contrárias) porque teria reserva de vagas para negros e indígenas, por outro os docentes

não deixaram de notar as ‘peculiaridades’ do Instituto que de algum modo parecia

ameaçar a garantia da distinção da fração da classe média alta, ao aproximar a função da

universidade de um modelo de “mercadoria-educação” (RODRIGUES J., 2007):

195

“[...] A criação de cursos sequenciais à distância com um conjunto de

disciplinas questionáveis. A que servirão? É para a formação de mão de obra

de “segunda linha”, uma vez que o documento prevê o ingresso do aluno em

duas redes completamente distintas de escolarização, sendo uma a

Universidade, que garante a formação propedêutica e outra a Fatec, que

forma o trabalhador manual? Se o objetivo é a inclusão social, não deveriam

os conteúdos ter estreita relação com aqueles trabalhados na Educação

Básica? Trata-se de uma tentativa de recuperação dos alunos a quem está

sendo negado publicamente o acesso ao conhecimento histórico e

socialmente elaborado? [...] Com a proposta do curso – intitulado “tipo

College” – o tempo de permanência do aluno atendido pelo Programa de

Inclusão por Mérito, antes do ingresso no nível superior, seja ele na

Universidade (USP, UNESP, UNICAMP) ou na Faculdade (Fatec), será

ampliado em mais dois anos ao término do Ensino Médio, totalizando, em

média, 15 ou 16 anos, ao passo que a classe média e alta continuará a ter seus

filhos aprovados ao final do 13º ou 14º ano de estudo [...]” (Faculdade de

Ciências/Departamento de Educação. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

“[...] Se de fato o que se pretende [segundo o PIMESP] é ‘aumentar o grau de

competitividade proveniente do ensino médio’ [...] e ‘a participação das

categorias sócio-étnicas’ por que enveredar por esse caminho [ICES]? Por

que criar dois sistemas de ensino superior diferenciados? Em lugar disso,

não seria mais producente criar mecanismos favoráveis de acesso dos alunos

da escola pública [...] sem a criação de um sistema paralelo? Outro aspecto a

ser apontado refere-se à estrutura curricular desses cursos sequenciais [...]

cabe perguntar qual é o fundamento epistemológico no qual essas disciplinas

estão ancoradas. O que se pretende com tais disciplinas? Que tipo de

formação se quer oferecer aos jovens egressos da escola pública?”

(Congregação do Instituto de Biociências. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

“[...]Ressalta‐se que o papel da universidade é garantir uma formação

qualificada de profissionais e pesquisadores de nível superior e não intervir

diretamente na Educação Básica no sentido de promover a constituição de um

nível de ensino paralelo (entre Educação Básica e cursos de graduação) – os

Colleges –, que talvez possa impactar na manutenção da má qualidade da

educação básica oriunda de um processo de “proletarização” e

“desvalorização” do magistério público (Educação Básica) [...]” (Faculdade

de Engenharia/ Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP)-Campus

de Ilha Solteira. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

O ICES é resultado de uma tentativa (frustrada) de agradar os “que queriam mais

e os que queriam menos”, isto é, ao mesmo tempo em que a burocracia educacional

pretendia adequar o ICES às demandas do mercado de trabalho, por outro lado, tentava-

se ajustar esse fim a outro: controle do processo sobrecertificação. Esse último, de

interesse da fração da classe média alta e branca parece não ter convencido os docentes

e dado o formato de curso sequencial, possibilitando acarretar mudanças que poderiam

pôr em risco as condições de reprodução da distinção da classe média, foi rechaçado

pelos docentes.

Outro aspecto a ser analisado foi o modo como foram colocadas às alternativas

para votação, revelando certo grau de manipulação a fim de rechaçar a possibilidade de

adoção de cota étnico-racial como podemos ver no registro da ata a seguir:

196

“Permeada pelos aspectos acima, procedeu-se a uma longa discussão, que

resultaram em três proposições votadas individualmente […] 1) Proposta do

PIMESP- Favoráveis 1, contrários 19 e abstenções 3; 2) Implementação de

um política de Cotas Sociais e Raciais, que teriam os mesmos percentuais

propostos na legislaçao federal, ou seja, 50% das vagas reservadas para os

egressos da escola pública (EP) sendo 35% delas reservadas para as etnias

preto, pardo e indígena (PPI), desde que seja explicitada a contrapartida do

governo estadual [grifo nosso], com a criação de um Fundo de permanência

estudantil digno, financiado pela Secretaria de Estado do Desenvovimento

Social e administrado pelas universidades. Votação: 17 favoráveis, 3

contrários e 2 abstenções […]3) Implementação de política de cotas raciais,

com a destinação de 35% do total das vagas para PPI e com a criação do

Fundo de Permanência Estudantil, mantido pela Universidade [grifo nosso].

Votação: favoráveis-3, contrários- 13 e 2 abstenções- 6” (Instituto de

Biociências, Letras e Ciências Exatas, . Cf.SÃO PAULO, 2013a).

Há nesse trecho um rearranjo que parece inocente e passa despercebido a

primeira vista mas que se olharmos com mais atenção, nos questionamos porque na

proposta 3 (reserva de vagas étnico- raciais) votada pelos docentes do Instituto está

atribuido apenas à UNESP os custos pela implementação do programa afirmativo,

enquanto na proposta 2 (com reserva para egressos de escola pública e dentro daquelas

vagas negros e indígenas) o “fundo de permanência estudantil digno” seria mantido pelo

governo do estado? Parece que houve na elaboração das propostas a serem votadas uma

tentativa de privilegiar as cotas sociais ao colocar a responsabilidade financeira da

reserva de vagas raciais apenas para a universidade, o que obviamente torna essa

proposta menos atraente que a número 2, na qual o governo estadual arcaria com os

custos pela implementação do programa afirmativo.

Em um documento produzido pela Câmara Central de Graduação100,

gostaríamos de destacar um trecho para refletirmos acerca da possibilidade da discussão

do PIMESP na UNESP ter sido no fundo uma disputa por conceitos divergentes de

justiça, tendo de um lado o entendimento dos docentes e de outro o entendimento dos

elaboradores do PIMESP. Vejamos o trecho do relatório produzido pela Câmara:

“Somos uma sociedade de classes que se caracteriza principalmente pelo fator

econômico resultando em divisão social e dificultando a evolução dos

indivíduos das classes menos favorecidas. No que se refere ao Ensino Superior

Público, e particularmente à Unesp, não há como deixar de notar que o alunado

tem apresentado uma composição em que predominam os originários das

classes social/economicamente mais favorecidas. Sem dúvida há uma dívida

social a ser saldada pela coletividade. Uma vez que constata esta realidade,

forçoso é adotaram-se medidas de correção da distorção” (Câmara Central de

Graduação. Cf.SÃO PAULO, 2013a)

100 A Câmara desempenhou diversas funções, desde acompanhamento e reunião das manifestações dos

docentes, até a elaboração de documentos para orientar a discussão.

197

Além do posicionamento da Câmara quanto ao recorte de classe, o trecho “Sem

dúvida há uma dívida social a ser saldada pela coletividade. Uma vez que constata esta

realidade, forçoso é adotaram-se medidas de correção da distorção” nos incita a refletir

acerca das justificativas dadas pelos docentes para adoção dos programas, fossem

afirmativos (tal qual o proposto pelo governo federal) ou inclusivos (sem um viés de

discriminação racial positiva). Válido aprofundar a discussão e buscar entender se de

fato a discussão do PIMESP também foi atravessada por justificativas diferenciadas

entre os docentes da UNESP e os proponentes do Programa de Inclusão com Mérito em

relação à forma de ampliar o acesso à Universidade. Isto é, estava em disputa conceitos

de justiça diferentes? Entendemos que sim, há, em alguma medida, uma disputa pelo

conceito de justiça, porém subjacente à dispusta pelo controle educacional, ou seja, à

reboque da busca pelo controle da expansão e não como tema central.

Retomando as justificativas para adoção de políticas de ação afirmativa

categorizadas por Feres Jr. (2005) para amalisarmos o debate na UNESP, o

entendimento de justiça dos docentes parece estar mais ancorado na idéia de justiça

distributiva na medida em que, no geral, os discursos minimizam (e por vezes, negam)

as discriminações raciais (e o peso do passado escravocrata na conformação das

desigualdades atuais), privilegiando o foco na situação de desigualdades presentes que

acometeria os estudantes de escolas públicas:

“Há uma indiscutível crise estrutural na educação básica brasileira e que é

um equívoco considerar que apenas os eventuais cotistas necessitam de um

processo de recuperação de defasagens de aprendizagem” (Congregação da

Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. Cf. SÃO PAULO,

2013a)

“A congregação observa também que a implantação de um Instituto

Comunitário de Ensino Superior- ICES, nos moldes dos Colleges, como

proposto […] não contribuiria de forma efetiva para sanar as deficiências na

formação do aluno proveniente da escola pública […] diante disso deve-se

pensar em formas de, pelo menos amenizar as deficiências de formação

apresentadas pelos alunos provenientes da escola pública” (Faculdade de

ciências e tecnologia. Cf .SÃO PAULO, 2013a).

“[…] este é o início de uma discussão ampla, pois, as formas, de

manutenção dos alunos carentes precisam ser retomadas […]” (Instituto de

Ciência e Tecnologia/Campus de São José dos Campos. Cf. SÃO PAULO,

2013a)

A “má qualidade” do ensino público é, portanto, o motivo da desigualdade de

acesso de ampla maioria da sociedade às instituições de ensino, o que exclui qualquer

conexão entre racismo e passado escravocrata. Entretanto, com essa discussão acerca da

justificativa em torno das ações afirmativas e dos entendimentos de justiça não estamos

198

afirmando que esse foi o cerne do debate e que tenha sido a razão para o rechaço da

Proposta na UNESP. Entendemos que o cerne do debate esteve mais em como chegar a

arranjos possíveis que garantissem a manutenção da hierarquia do trabalho e na medida

em que estava impossivel mantê-la intacta, os egressos da escola pública foram os

eleitos pelos docentes como beneficiários legítimos das políticas de acesso:

“Deve ser defendida uma política de cotas para ingresso nas universidades

paulistas como contribuição destas diante do caótico cenário de má

qualidade da Educação Básica pública – uma condição de`justiça social´”

(Comissão Local do Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP).

Cf.SÃO PAULO, 2013a).

“É importante a instituição da política de cotas tal como se indica na

legislação federal sobre o assunto, enquanto ação emergencial, com limites

de prazo para a sua implementação e parte de um amplo Programa de Ações

Afirmativas, estabelecendo-se o compromisso com a busca da superação de

problemas estruturais da educação brasileira […]” (Congregação da

Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. Cf.SÃO PAULO,

2013a)

“[…] a Câmara manifestou-se como segue: […] 4. aprovou por unanimidade

a proposta de que a inclusão social para incluir alunos oriundos de escolas

públicas e permitir a justiça social ocorra por acréscimo do número de vagas

desde que haja aporte adicional de recursos” (Câmara Central de

Graduação. Cf.SÃO PAULO, 2013a).

Analisando o final do período escravocrata, Clovis Moura (1988) aponta que

além de leis postas em prática para barrar a inserção do negro em espaços que não fosse

o do trabalho manual sem assalariamento, o pseudoabolicionismo praticado já na fase

final do regime escravocrata foi também uma importante estratégia para barrar a luta

abolicionista revolucionária que os negros vinham travando. A defesa da bonificação ou

aceitação das cotas sociais nos parece ir pelo mesmo caminho, no sentido de que a

classe média branca não tem interesse em afirmar a legitimidade da reivindicação do

movimento negro a partir de um entendimento abertamente racializado para manter os

grupos raciais nos seus lugares na divisão social do trabalho.

A UNESP é composta por 21 unidades de ensino e em relação ao ICES, 8

manifestaram- se contra, duas a favor (mas desde que fosse ministrado pelo governo,

fora da Universidade) e a outras unidades sequer comentaram o Instituto, focando-se na

melhoria do ensino básico ou o pedindo mais tempo para analisar as propostas de

políticas de ação afirmativa.

A argumentação que justifica a recusa ao ICES, leva-nos a interrogar-nos se a

crítica ao Instituto e ao currículo está relacionada ao medo de uma suposta ameaça à

manutenção da hierarquização do trabalho. Isto é, a recusa aos ICES está relacionada à

199

igualização do sócio-econômica do trabalho manual e do trabalho não-manual? Ou a

recusa ao ICES poria em risco o Mito da Escola Única? Para nós, nos parece que são as

duas coisas.

O currículo do ICES e a sua explícita vinculação ao mercado de trabalho, sem

preocupação com a manutenção do prestígio social advindo do “trabalho intelectual”

confrontava diretamente a marca distintiva dos docentes em relação aos trabalhadores

manuais. Ao mesmo tempo em que o funcionamento de uma escola diferenciada em

relação às demais escolas, talvez pudesse vir a por em causa a inserção privilegiada dos

trabalhadores não-manuais na estrutura de classes já que de fato a tal melhoria na

qualidade do ensino tão mencionada pelos docentes pudesse vir a se efetivar no ICES.

Em nossa interpretação, o PIMESP foi rejeitado em parte pelos docentes da

UNESP muito mais pela ameaça em “apagar” as fronteiras que demarcam os lugares na

estrutura de classes (materializado na proposta do ICES) do que pelo caráter racista do

Programa. Assim dado o contexto no qual as políticas de ação afirmativa estavam a ser

adotadas em ritmo intenso no País, a grande mobilização do movimento negro, o

Conselho Universitário da UNESP aprovou o PIMESP, ainda que parcialmente em

2013. Avancemos para analisar o debate na UNICAMP e perceber se há de fato unidade

entre as justificativas entre uma e outra Universidade.

A UNICAMP e a rejeição ao PIMESP: a escolha pela bonificação

(PAAIS) e pela continuidade do Programa de Formação Interdisciplinar

Superior (PROFIS)

A análise do processo de avaliação da proposta do PIMESP, iniciado em 2013

na UNICAMP causa-nos, à partida, algumas inquietações pela condução centralizadora,

para dizer o mínimo, escolhido pela reitoria (e aceita pelo corpo docente). O Conselho

Universitário (CONSU) da UNICAMP conduziu de modo diferenciado a avaliação

sobre o PIMESP no que tange à participação direta dos docentes na avaliação da

Proposta.

A instituição de dois Grupos de Trabalhos (GT) pelo CONSU, o primeiro em

fevereiro de 2013 (na gestão do reitor Fernando Costa) e o segundo em maio do mesmo

ano (na gestão do reitor José Tadeu Jorge), nos leva a questionar o motivo desse tipo de

condução que se diferenciou do modo como transcorreu a avaliação da proposta do

PIMESP na USP e na UNESP, onde as unidades foram diretamente convidadas a

manifestar-se.

200

Apenas algumas poucas congregações na UNICAMP posicionaram-se acerca do

PIMESP mesmo sem serem convocadas a fazê-lo. Entramos em contato com as 24

unidades de ensino em 2015, mas apenas cinco deram retorno afirmando, ora

desconhecer a discussão sobre o assunto, ora não existir formalização do

posicionamento da Unidade sobre essa discussão ou ainda ter ocorrido à discussão, mas

sem a produção de um documento com o posicionamento final da congregação. De todo

modo, isso também é dado/informação, ou seja, diferentemente da USP e da UNESP, na

UNICAMP o processo de discussão sobre o PIMESP seguiu na direção pela

manutenção da bonificação, sem ouvir diretamente a opinião dos docentes.

Em relação a ausência de participação do corpo docente de modo geral e da

comunidade acadêmica, se por um lado parece contraditória com o discurso

reivindicado por muitos docentes no que tange a horizontalidade das decisões tomadas

na universidade, por outra, por outro lado, essa “apatia” do corpo docente era

conveniente com a manutenção das ações ditas inclusivas e que já estavam em curso na

Universidade. Cabe atentarmos para um aspecto curioso desse processo na Unicamp:

não houve nenhuma manifestação oficial ou até mesmo extraoficial dos professores

quanto à discussão não ser levada para os departamentos e os posicionamentos dos

professores serem considerados na decisão final da Universidade.

Intrigada com o fato de os docentes praticamente assistirem ao trabalho dos dois

grupos de trabalho acima mencionados e acatarem as avaliações feitas pelos referidos

GT’s que por sua vez acabaram por referendar os programas já existentes (PAAIS e

Profis), resolvi ampliar o corpus de análise, o que acarretou no resgate de alguns

documentos sobre as políticas de inclusão vigentes na UNICAMP. O resgate histórico

das políticas é uma tentativa de compreender essa diferenciação na forma da condução

da avaliação do PIMESP e suas implicações no processo de discussão sobre a ampliação

do acesso à universidade. A seguir, a análise dos programas inclusivos existentes na

UNICAMP entre os anos de 2004 e 2014.

O Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS)

A chegada do Partido dos Trabalhadores em 2003 ao governo federal abriu um

novo capítulo no debate nacional em torno da ampliação do acesso ao ensino superior.

A discussão sobre a constituição das Políticas de ação afirmativa com reserva de vagas

étnico-raciais marcou os primeiros anos do governo do PT. A mobilização do

movimento negro ganhava visibilidade em vários estados da federação, incluindo São

201

Paulo, pressionando as universidades estaduais paulistas a responderem a esse tema que

se inseria na agenda política nacional.

A UNICAMP foi a primeira dentre as três universidades estaduais a incluir o

debate em sua pauta e em 2003 o Conselho Universitário (CONSU) resolveu instituir

um Grupo de Trabalho que teve como principal resultado a realização de um estudo

coordenado pela Comissão do Vestibular (COMVEST) para analisar “temas relativos à

participação social” (Cf. UNICAMP, 2003).

A proposta do estudo, que parecia genérica na sua chamada, assumiu contornos

muito bem definidos na escolha dos recortes de análise a serem investigados: comparar

o coeficiente de rendimento médio ao longo do curso de graduação de todos os

ingressantes entre 1994 e 1997 com sua classificação no vestibular para verificar as

diferenças de notas entre alunos oriundos das escolas públicas e demais. O resultado do

estudo demonstrou que os estudantes que concluíram o ensino médio em escolas

públicas apresentaram um desempenho acadêmico positivo e melhor do que os demais,

como afirmou Leandro R. Tessler, um dos responsáveis pelo estudo e um dos

elaboradores da proposta do PAAIS:

“[…] O resultado desse estudo indicou que se a Unicamp de alguma forma

aumentasse o número de egressos de escolas públicas entre seus alunos, o

resultado poderia ser positivo em termos de desempenho acadêmico. Isso pode

ser entendido da seguinte forma: se dois candidatos, um egresso de escola

pública e um de escola privada empataram (tiveram pontuação semelhante) no

vestibular, se optarmos pelo que veio da escola pública teremos um melhor aluno

na Unicamp. Um mecanismo de ação afirmativa que considera prioritariamente o

mérito medido pelo vestibular pode na verdade melhorar o corpo discente da

universidade […]” (TESSLER, 2006, p. 6)

O mérito e autonomia universitária defendidos nas conclusões do estudo, estarão

também referidos na própria deliberação (CONSU-A-012/2004) que viria a instituir o

PAAIS na qual o:

“O Reitor […] considerando: O permanente e indissolúvel compromisso da

Unicamp com a autonomia universitária e o valor acadêmico; O objetivo,

desejável academicamente e socialmente justo, de se criar oportunidades para

que o corpo de estudantes reflita com a maior similitude possível, e à luz dos

valores acima afirmados, a sociedade brasileira […] Fica aprovado o

Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social na UNICAMP” (Cf.

UNICAMP, 2004c).

Os trechos acima evidenciam que desde a concepção, as políticas de inclusão na

UNICAMP tinha como elemento central a “preocupação” com o desempenho

acadêmico dos beneficiários daquelas políticas. Em outras palavras, já é possível

percebermos como a inclusão passa estar condicionada aos valores de mérito e

202

autonomia universitária, ficando à reboque desses valores e circunscrevendo o debate

sobre inclusão na direção oposta ao que vinha sendo debatido tanto no Brasil como em

outros países acerca da adoção de políticas afirmativas.

Merece ainda a nossa atenção o recorte dado ao estudo produzido pelo GT,

assim como as conclusões do estudo. Comecemos pelo fato do estudo não ter levado em

conta o critério étnico-racial e apenas a variável escola pública na escolha do perfil dos

estudantes selecionados para o estudo e como recomendação final no desenho da

política do que viria a ser a política de acesso:

“[…] Outra questão muito importante é sobre a cor da pele das pessoas. Está

falando a cor da pele, porque não sabe se tem que falar raça, etnia ou

descendência, cada uma dessas coisas é sujeita a vários tipos de críticas. Os

levantamentos que existem no Brasil falam da cor da pele, porque é isso que as

pessoas declaram para o IBGE, então não está falando isso com nenhum

conteúdo ideológico ou de qualquer natureza. Essa questão também foi

trabalhada e analisada pelo Grupo de Trabalho que não chegou a uma conclusão

a ponto de fazer uma recomendação ao Conselho Universitário […] A

Universidade só tem dados sobre a cor da pele dos estudantes a partir de 2003,

quando começou, por determinação do Ministério do Trabalho, um levantamento

sobre cor da pele da sua população. Houve muita oposição em toda

Universidade, várias organizações se manifestaram, trouxeram a questão ao

Conselho Universitário e à Câmara de Administração e a UNICAMP acabou por

decidir não fazer levantamentos dessa natureza, porque na época foram

classificados como de natureza racista e discriminatórios, […] Mesmo assim o

Grupo de Trabalho considerou que aquela proposição é unificadora e contou com

o apoio quase unânime […], foi a da adição de pontos para os oriundos da

escola pública, porque esta é defensável completamente, é coerente com a

cultura e as tradições da UNICAMP, e o Grupo de Trabalho considerou também

que devem realizar mais estudos que permitam incluir o tema e a característica

cor da pele nesse conjunto de ações.[…]” (Cf. UNICAMP, 2004b, p. 126-127)

A justificativa para ausência de dados étnico-raciais do corpo discente constrasta

com a realidade da política brasileira de recenseamento que inclui informações sobre o

perfil étnico-racial da população brasileira desde 1872. O argumento de que esse tipo de

levantamento é de natureza racista e discriminatória, nos remonta à justificativa dada

em diversos períodos da história brasileira pelas classes dominantes acerca dos

“perigos” do censo étnico-racial, como consta na declaração do coordenador do Censo

de 1920 a respeito da retirada categoria cor no censo de 1920:

“[...] a supressão do quesito relativo à cor explica-se pelo fato das respostas

ocultarem em grande parte a verdade, especialmente quanto aos mestiços, muito

numerosos em quase todos os estados do Brasil e, de ordinário, os mais

refratários às declarações inerentes à cor originária da raça a que pertencem”

(Brasil, 1922, p. 488-489 apud CAMARGO, 2009, p. 373).

O apelo às atitudes e práticas de dissimulação do racismo no que tange ao

silenciamento racial nos dados sobre o perfil racial da população universitária evidencia

que a escolha do CONSU em não realizar um censo sobre o perfil étnico-racial do corpo

203

é: 1) uma postura que toma o antirracialismo como antirracismo e; 2) uma escolha

política pela negação do reconhecimento de que os negros e indígenas estão fora desse

espaço. Escolhas políticas que não são novas.

No início do século XX, a justificativa da supressão do quesito cor/raça no censo

era pautada pelo branqueamento e busca pela homogeneização da população brasileira.

Na ditadura militar dos anos 60, a justificativa para omissão de dados raciais era

baseada no interesse pela disseminação do mito da democracia racial. No século XXI, a

narrativa do multiculturalismo, onde a nação brasileira é narrada como um país

vocacionado para a diversidade, parece dar o tom do debate para novamente negar o

racismo. A negação da “mancha negra”, segundo Abdias do Nascimento (2017):

“[...] reitera a erradicação da mancha negra, agora com o uso dos poderes da

magia branca ou da justiça branca. Dessa espécie de alquimia estatística resulta

outro instrumento de controle social e ideológico: o que deveria ser o espelho

de nossas relações de raça se torna apenas um travesti de realidade. E as

informações que os negros poderiam utilizar em busca de dignidade, identidade

e justiça lhes são sonegadas pelos detentores de poder. O processo tem

justificatica numa alegação de justiça social: todos são brasileiros, seja o

indivíduo negro, branco, mulato, índio ou asiático. Em verdade, em verdade,

porém a camada dominante simplesmente considera qualquer movimento de

conscientização afro-brasileira como ameaça ou agressão retaliativa. E até

mesmo se menciona que nessas ocasiões os negros estão tratando de impor ao

país uma suposta superioridade racial negra. Qualquer esforço por parte do

afro-brasileiro esbarra nesse obstáculo” (idem, p.93-94).

A supressão do quesito racial naquele contexto, ao mesmo tempo em que

dissimula a cor de quem ocupa aquele espaço, escamotea a exclusão racial daqueles que

a décadas não conseguem acessar a universidade e essa posição da Universidade nos

informa de que modo o racimo institucional opera.

Importante ainda quanto ao recorte e às conclusões do estudo realizado em 2004

na UNICAMP, atentar para o contexto no qual aquele estudo emerge, quais grupos

representa e que tipos de interesses estão em dispusta. Nesse sentido, é válido trazer o

fato de no mesmo dia em que de se deu a aprovação do PAAIS no CONSU, o

Coordenador de Pesquisa da Comissão permanente do Vestibular, Professor Renato

Pedrosa, um dos principais responsáveis pela pesquisa, escreveu um artigo intitulado

Inclusão social, cotas e autonomia universitária na Folha de São Paulo em que dizia o

seguinte sobre as políticas de ação afirmativa:

“[…] Este artigo se propõe a discutir alguns aspectos levantados pela iniciativa

do Executivo Federal […] proponho que o debate se amplie para incluir outras

formas de ações além da reserva de vagas, tão eficientes quanto esta para atingir

os mesmos objetivos, mas que preservem a autonomia das instituições

acadêmicas para decidir sobre o processo. Além disso, que garantam que não há

nenhum grupo específico da sociedade previamente excluído de disputar parte

204

das vagas do sistema universitário público, como o sistema de reserva de vagas

impõe […]” (Cf. PEDROSA, 2004).

Longe de propormos qualquer coisa que se aproxime do individualismo

metodológico, ao fazermos referência ao manifesto de um dos atores institucionais e dos

principais envolvidos no debate sobre políticas de inclusão na UNICAMP, nossa

intenção é evidenciar como as ações da fração da classe média alta e branca foram

direcionadas e estiveram mobilizadas no contexto de debate sobre as cotas para a

disseminação de uma narrativa que opunha cotas a automomia universitária e como essa

última deveria ser priorizada em qualquer debate sobre aquele tema. Nesse sentido

analisar o artigo (manifesto) do referido pesquisador permite que o discurso seja

abordado a partir de uma perspectiva relacional entre a (re)produção de estruturas

discursivas e como elas respondem a interesses de grupos, instituições, e estão

atrevessadas por relações de poder (VAN DIJK, 2006).

A narrativa da autonomia universitária como elemento que condiciona as ações

da universidade- inclusive na formulação de uma política inclusiva, por um lado, busca

legitimar o descomprometimento com qualquer ação que esteja fora do projeto político

daquela fração da classe média. E por outro lado, a garantia da autonomia é narrada

como indicativo do respeito à democracia, apelando a sociedade a apoiar, pois apenas

por meio dela é que a sociedade poderá garantir sua participação nas decisões, como

parece sugerir as palavras do Professor Renato Pedrosa, ao afirmar que “[…] este é o

momento para que a sociedade em geral, além das várias esferas do Estado, atente com

cuidado para a questão, buscando, caso existam, alternativas à reserva numérica de

vagas, as chamadas cotas. […]” (Cf. PEDROSA, 2004).

A partir dos resultados do estudo realizado em 2004, o Grupo de Trabalho

considerou que seria adequado que a UNICAMP priorizasse, nos programas inclusivos,

estudantes oriundos de escolas públicas e propôs uma adição de 30 pontos na Nota

Padrão de Opção do Vestibular para estudantes com aquele perfil, pois:

“[…] considerou esta estratégia bastante adequada, porque está coerente com três

valores muito importantes para a comunidade da UNICAMP: 1) autonomia,

seguidamente defendida, que pressupõe uma parte importante do seu exercício

para se selecionar os estudantes que vão cursar os cursos da UNICAMP; 2) valor

acadêmico, qualificação e mérito, que é completamente respeitado nessa

proposição e nesta estratégia, aliás, uma descoberta bastante original, porque o

Brasil inteiro pensa que ao se fazer mais inclusão nas universidades públicas

brasileiras necessariamente deverá conviver com uma perda de qualidade dos

estudantes admitidos. O que a UNICAMP está demonstrando é que não podem

generalizar isso para outras instituições, cada uma deverá fazer seus estudos, mas

no caso da UNICAMP, está demonstrado com muita certeza que esta ação de

inclusão levará também a uma melhora da qualidade acadêmica do corpo

205

discente da UNICAMP; e 3) valor desse objetivo permanente da UNICAMP de

realizar ações que elevem a inclusão social e a diversidade em todos os seus

cursos. Então, a UNICAMP está fazendo uma proposição que alia o valor

acadêmico à inclusão, ao contrário do que o Brasil inteiro está pensando sobre

essa questão […]” (Cf. UNICAMP, 2004b, p. 125)

O Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social da Unicamp – PAAIS – foi

instituído em maio de 2004, por deliberação do Conselho Universitário da Unicamp,

sendo aprovada por maioria (62 votos a favor e 2 abstenções). O PAAIS constituia-se de

duas iniciativas, visando estimular o ingresso para estudantes da rede pública do Ensino

Médio: 1) Programa de isenção das taxas do vestibular; 2) Programa de bônus de pontos

para os candidatos na nota final do Vestibular.

Consideramos oportuna uma análise do texto que estabeleceu o Programa:

“[…] Os estudos estatísticos detalhados, realizados pela Comissão do

Vestibular, Comvest, que mostraram que para candidatos com notas

semelhantes no vestibular, aqueles oriundos do ensino médio público

apresentaram desempenho acadêmico superior ao daqueles oriundos do ensino

médio privado; Que é objetivo acadêmico da universidade oferecer

oportunidades àqueles candidatos que demonstrem a maior capacitação para

os níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística; Que a

Constituição Brasileira estabelece, em seu Artigo 208, inciso V que: "o acesso

aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a

capacidade de cada um"; Que, à luz dos resultados dos estudos

supramencionados, fica claro que para a correta e precisa avaliação da

capacidade acadêmica dos candidatos é essencial complementar a informação

trazida pela nota obtida pelo candidato no exame vestibular com informações

sobre a natureza administrativa da escola na qual cursou o ensino médio; Que

os supramencionados estudos demonstraram que ao se acrescentar até trinta

pontos às Notas Padronizadas de Opção (NPOs) de candidatos oriundos de

escola pública, a nota final obtida por estes refletirá mais precisamente sua

capacidade acadêmica e de desenvolvimento intelectual; e Que a Unicamp vem

desenvolvendo ações que visam o melhoramento da escola pública, baixa a

seguinte deliberação: Artigo 1º - Fica aprovado o Programa de Ação Afirmativa

para Inclusão Social na UNICAMP” (UNICAMP, 2004c)

É preciso fazer algum esforço para compreender, mediante o documento de

criação do Orograma, em que medida as justificativas para a criação e escolha do

formato do PAAIS dialogam com as justificações políticas e jurídicas mais correntes

para adoção de políticas de ação afirmativa, a saber, reparação, justiça distributiva e

diversidade (FERES JR., 2005). Ao lermos o documento de fundamentação do referido

Programa, a busca pelo ampliação do acesso ao ensino superior para grupos

historicamente discriminados, sofre tamanho esvaziamento que a ação afirmativa que o

PAAIS carrega no nome parece mais referir-se a afirmação da meritocracia em si

mesma como fim primeiro do Programa.

206

É possível considerar, com algum esforço, que dada à preocupação com o

egresso de escola pública e a preocupação em propiciar inclusão (com mérito), as

justificativas que embasariam o PAAIS estariam relacionadas à justiça distributiva e à

diversidade, com ênfase nessa última. Recrutar os “melhores” desde que os docentes

mantivessem o controle desse processo de gestão da diversidade sem interferências e

isso só seria possível recorrendo à defesa da autonomia universitária como prioridade.

Nesse aspecto reside, em nossa análise, o ponto chave da operacionalização do racismo

institucional: quem determina o modo como serão selecionados os candidatos? A

negação da reserva de vagas étnico-raciais e a supervalorização do egresso de escola

pública parecem responder à questão.

A defesa do vestibular se insere nesse contexto como mecanismo que ao mesmo

tempo em que ‘recrutaria os melhores’, legitimaria a meritocracia “supostamente”

vigente no aparelho educacional:

“[…] Não violamos os princípios de mérito acadêmico porque não temos cotas.

Nós simplesmente tratamos de uma forma diferente os egressos de escola

pública, não reservamos vaga pra [sic] ninguém […] Apesar de ser um

programa de ação afirmativa, não abrimos mão de uma seleção que leve em

conta o mérito. E nós confiamos muito no nosso vestibular. Nós achamos que o

nosso vestibular – o que não é regra para todos os vestibulares – é um bom

avaliador de mérito” […] (Leandro Russovski Tessler, ex- coordenador-

executivo da Comissão Permanente do Vestibular da Universidade de

Campinas. Cf. AGÊNCIA, 2007).

O trecho supracitado choca-nos (ou deveria chocar-nos) não apenas pela total

ausência de questionamentos acerca do caráter excludente do vestibular, mas pela

própria valorização e crença absoluta desse tipo de mecanismo como avaliador eficaz na

aferição de capacidade intelectual dos candidatos.

A aprovação do PAAIS pode ser lida como uma evidência acerca do consenso

do corpo docente sobre o entendimento do que deveriam ser as políticas de inclusão na

universidade e quem deveria ser o público beneficiário:

“[…] O que foi proposto permitirá manter e até melhorar o nível dos alunos

que serão selecionados pelo vestibular […] É muito diferente do sistema de

cotas, que reserva vagas independentemente da qualificação, podendo

colocar em risco o valor acadêmico que deve basear a atuação da

universidade […]” (Tadeu Jorge, à época vice-reitor e coordenador do

Grupo de Trabalho encarregado de elaborar a proposta. Cf. LEVY, 2004).

“[…] é perfeitamente possível aliar inclusão com valor acadêmico desde que

não haja interferências externas e estranhas ao mundo acadêmico, como a

invenção das tais cotas, que o governo quer impor de cima pra baixo na

reforma universitária, ao invés de estabelecer objetivos e metas e deixar que

as universidades usem a sua inteligência, a sua capacidade de pensar e de

entender o ambiente no qual estão inseridas para criar soluções como essa

[programa de bonificação] que a UNICAMP criou” (Carlos Henrique de

207

Brito Cruz, ex-reitor da UNICAMP e reitor que liderou a criação do

programa de bonificação da UNICAMP. Cf. SERVIÇO, 2005).

O PAAIS, em sua concepção original, atribuía 30 pontos adicionais apenas na

nota da segunda fase do vestibular para candidatos que cursassem todo o Ensino Médio

em escola pública porém os resultados do estudo de avaliação de impacto do Programa

realizado pela Comvest em 2006, apontavam para os limites em termos de inclusão de

pobres mas principalmente de negros e indígenas já no segundo ano de vigência do

PAAIS. Em 2005, ocorreu um aumento em relação a 2004 no número de aprovados

provenientes do ensino público, passando de 31,4% em 2004 para 34,1% em 2005, mas

em 2006 o número declinou para 31,3%. Avaliações posteriores mostraram que esse

declínio seguiu e em 2010 o número de estudantes aprovados do ensino público era de

apenas 29,4% (FERES JR. et al, 2013a), longe dos 50% estabelecidos como meta pelo

Programa.

Dados de 2006 apontavam que além desse declínio no número de vestibulandos

provenientes da rede pública de ensino, a porcentagem de negros e indígenas que

adentraram na Unicamp e inscritos no PAAIS, praticamente manteve-se estagnado ao

longo dos anos: de 14% em 2004 para 19,2% em 2005 e depois para 17,6% em 2006

(FERES JR. et al, 2013a). Ainda assim, mesmo diante da ineficiência do Programa, a

defesa do mérito seguia sendo a preocupação central dos representantes institucionais:

“[...] o importante nessa nossa discussão é que as três universidades aqui

representadas [UNESP, UNICAMP e USP] hoje são vanguarda no Brasil,

são as melhores universidades do Brasil, juntamente com outras

universidades federais elas são importantes para o desenvolvimento do país.

E por que elas são as melhores do país? Porque elas têm os melhores

professores e os melhores alunos, elas conseguem atrair os melhores alunos.

Então o mérito desses alunos que entram nessas três universidades [UNESP,

UNICAMP E USP] é muito grande e isso é importante que seja preservado

[…] (Fernando Costa, à época reitor da UNICAMP e um dos elaboradores

da proposta. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).

Em 2013, com o debate gerado pelo PIMESP, ocorreu uma reforma no PAAIS a

fim de salvar o modelo de bonificação e melhorar os seus resultados. Nas reformulações

modificou-se o valor do bônus para o Vestibular 2014, dobrando a bonificação de 30

para 60 pontos na nota final de candidatos da rede pública de ensino e de 40 para 80

pontos para aqueles que, além de terem cursado ensino médio público, se

autodeclarassem pretos, pardos ou indígenas. Em março de 2014, o então reitor José

Tadeu Costa, anunciava na mídia os impactos dessa mudança, tidos pela reitoria como

expressivos no que tange às metas de inclusão propostas pela Universidade:

208

“[…] Podemos comprovar estatisticamente que o PAAIS sustenta os níveis

de excelência da Unicamp, ao mesmo tempo em que promove a inclusão

[…] É importante ressaltar que o PAAIS é um programa flexível, que

poderá ser ajustado nos próximos anos, com a segurança de que não vai

piorar o desempenho nos cursos de graduação da Unicamp. Ao contrário de

uma solução fácil como a das cotas, temos uma metodologia bastante

adequada” (Cf. SANGION, 2014).

De fato, as alterações no PAAIS causaram modificações no perfil dos

ingressantes com aumento do percentual de alunos que cursaram o ensino médio

integralmente em escolas públicas. Ao olharmos para os cinco cursos mais concorridos

(Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Civil, Midialogia e Engenharia

Química), a presença de estudantes de escola pública aprovados saiu de 14,5%, 3,3%,

12,35%, 16,67% e 16,67% respectivamente em 2013 para 33,3%, 31%, 31,65%, 30% e

23,7% em 2014 (Cf. SANGION, 2014). Entretanto, a meta estabelecida dos 50% de

ingressantes de escolas públicas não foi alcançada mesmo com as modificações. E no

caso das metas para os alunos negros e indígenas (35%) os resultados foram bastante

tímidos. Para os mesmos cinco cursos mais concorridos, a porcentagem de estudantes

negros e indígenas saiu de 7,4%, 10,3%,10,1%, 6,7% e 3,4% em 2013 para 9,2%,

10,3%, 8,8%, 13,3% e 22% em 2014.

Ao analisarmos os impactos no número de estudantes advindos de escola

pública que adentraram na UNICAMP desde a criação do PAAIS, o referido Programa

parece não ter modificado significamente o perfil de classe (e menos ainda de raça) dos

ingressantes. Tal fato pode estar relacionado ao desenho do Programa que não

considerava critérios de renda e raça, o que implica que estudantes egressos de escolas

públicas com renda média e alta (e brancos), mas que tenham vindo de escolas

renomadas foram diretamente beneficiados pelo aumento na bonificação. O PAAIS

segue sendo disseminado como programa inédito no país que conseguiu aliar “mérito e

inclusão” mesmo não incluindo negros e indígenas.

O Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis)

Na esteira da lógica de inclusão concebida pela UNICAMP, isto é, que vinha

priorizando autonomia universitária, mérito e o foco no estudante de escola pública, o

Profis foi proposto e aprovado pelo CONSU em 2010 em sessão extraordinária,

passando a entrar em vigor a partir de 2011. Tem como formato um curso sequencial

profissionalizante cujo objetivo seria:

“[...] buscar alunos com mérito. Então a UNICAMP fez um programa

piloto em que ela escolhia ou dava a oportunidade de ingressar na

209

universidade os melhores alunos das escolas públicas de Campinas [...] e na

UNICAMP ele tinha a oportunidade de fazer um curso superior mas geral

que dava uma formação ampla [entrevistador interrompe: você certifica esse

curso?] certifico. Ele tem um diploma de nível superior e a UNICAMP

garantia aquele estudante [...] uma vaga no curso regular da Universidade

em medicina ou engenharia, dependendo do desempenho durante esses dois

anos e esse programa tem dois anos” (Fernando Costa, à época reitor da

UNICAMP e um dos elaboradores do PIMESP. ENSINO Superior Especial,

2013).

Segundo o Relatório preliminar da Pró-Reitoria de Graduação (UNICAMP,

2014), o Profis diferenciava-se do que vinha sendo adotado por outras universidades (o

relatório não menciona quais) porque permitiria “acesso a cursos de nível superior

(graduação); e isso com caráter de inclusão social decorrente do modelo de

recrutamento dos alunos para integrarem seu corpo discente, selecionados com base no

desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e exclusivamente de

escolas públicas de Campinas” (Idem, p.1). A seguir, abordaremos a justificativa para a

criação do Programa, a escolha pelo modelo e por fim os desdobramentos desse tipo de

política no que tange à ampliação do acesso à universidade.

Segundo os documentos de avaliação do PROFIS, as razões que levaram a

criação do referido Programa em 2010 estariam relacionadas à:

“seria a capacidade de aliar inclusão social com mérito”, com foco nos

estudantes de escolas públicas tendo em conta que as desigualdades de acesso

ao ensino superior “[...] envolve a qualidade da preparação no Ensino

Fundamental e ensino médio, a renda familiar e o nível de escolaridade dos

pais [...] estas variáveis aparecem associadas (baixa qualidade da preparação

na educação básica, com baixa renda familiar e pais com menor nível de

escolaridade)” (Cf. CARNEIRO A.M. et al, 2012, p. 23).

O apelo à renda e a escola pública como justificativa para criação do programa

em um primeiro momento parece estar relacionada com uma preocupação da ordem da

justiça distributiva, entretanto avancemos na análise dos objetivos da formação

oferecida pelo PROFIS a fim de para verificar essa hipótese:

“[...] formação busca cobrir o conhecimento básico do mundo natural, social

e artístico, oferecendo disciplinas básicas para desenvolver habilidades como

solucionar problemas de forma cooperativa, comunicação, raciocínio lógico e

pesquisa quantitativa e qualitativa. Busca também a formação de cidadãos

críticos e a preparação para o mundo do trabalho no sentido do

desenvolvimento das habilidades necessárias para qualquer formação

profissional” (Idem, p. 25).

O modelo do PROFIS é baseado em um curso que dura dois anos com matérias

das áreas de ciências humanas, biológicas, exatas e tecnológicas e o objetivo desse tipo

210

de formação seria capacitação “para exercer as mais distintas profissões”, além

obviamente, como não podia deixar de ser, oferecer “uma visão integrada do mundo”.

“[...] a ampliação de conhecimentos nas áreas acadêmicas desenvolvidas nas

Ciências Humanas e da Natureza, com abordagem de problemas científicos

de modo integrado e a compreensão da ciência como um modo de olhar o

mundo; nas áreas de Artes e Ciências Humanas, incluindo aspectos estéticos,

possibilitando participação ativa no processo de apreciação e de criação

nessas áreas; desenvolvimento de conhecimento de métodos de pesquisa

quantitativos e qualitativos; compreensão das relações do conhecimento com

o mundo do trabalho, visando uma definição mais segura do campo

profissional futuro; e, finalmente, compreensão de si mesmo como membro

de uma sociedade diversificada, globalizada e em constante mudança.”

(Ibidem)

Soa-nos familiar. O flerte com o mundo do trabalho, a ênfase na capacitação

profissional (mas que como veremos, apenas aparente), o apelo a uma formação

humanista, expressa sem nenhum constrangimento no objetivo da política e no

entusiasmo dos docentes envolvidos na proposta pela capacidade do programa em

ofertar aos alunos selecionados “a cultura de primeira a que finalmente têm acesso”101.

“O diferencial” da política não passou despercebido pela burocracia educacional

paulista e em 2012, o PIMESP lançaria o ICES tendo no Profis sua inspiração.

Segundo um dos idealizadores, Marcelo Knobel, à época da aprovação, pró-

reitor de Graduação e idealizador do programa, “o ProFIS constitui uma iniciativa

inédita para selecionar alunos que eram excluídos ou tinham chance reduzida no sistema

tradicional de seleção, sem abdicar do mérito acadêmico” (JORNAL da UNICAMP,

2013).

De fato, os resultados da avaliação realizada com a primeira turma do Profis em

2011 (Cf. CARNEIRO A. M. et al, 2012) pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas

(núcleo responsável pelo acompanhamento do Programa), do total de inscritos (731) na

primeira turma do Profis, 237 inscreveu-se para o vestibular da UNICAMP, mas apenas

27 conseguiram passar pelo vestibular. Ainda assim, gostaríamos de destacar o

silenciamento na fala do então Pró-reitor e superestimado no Relatório de Avaliação do

primeiro ano do Profis no que diz respeito aos reais motivos pelos quais esses jovens

são excluídos e por quais razões não almejam a entrada na universidade, tendo em vista

a diferença entre os inscritos no Profis e os estudantes que prestaram o vestibular. Além

do conhecimento sobre a dificuldade de adentrar na Universidade via vestibular, as

101 Marcelo Knobel, à época pró-reitor de Graduação e um dos criadores do Programa em entrevista ao

Portal Ig em 28 de maio de 2011. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/eles-nao-prestaram-vestibular-mas-entraram-na-unicamp/n1596980560046.html. Acesso: 10 mai. 2015.

211

condições materiais de vida desses jovens condiciona a escolha por cursos como o

Profis, como assinala César Barros (2007):

“[...] os custos indiretos da escolarização fazem com que os pais relativizem a

importância da trajetória escolar para além da alfabetização e de noções

matemáticas, necessárias para a entrada no mercado de trabalho. Tais custos

indiretos de escolarização seriam os possíveis incrementos na renda familiar

que deixam de ser obtidos com a manutenção dos filhos na escola. Este

posicionamento vai gerar um determinado conformismo em relação à

impossibilidade da trajetória escolar mais longa, eventual para esta classe, e

uma valorização da formação direta na atividade profissional (Idem, p. 89)

Não é coincidência que o ProFis ainda que não tivesse critério racial nos seus

quesitos apresentasse em 2013 um nível de inclusão racial acima da média dos outros

programas da UNICAMP: em 2013, 40% dos alunos eram negros, “percentual 2,7 vezes

superior ao percentual de matriculados através do vestibular e ligeiramente acima da

distribuição de raça/cor da população de 18 a 24 anos do Estado de São Paulo”

(CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 27). Além disso, “77% dos matriculados do ProFis

são a primeira geração no ensino superior em suas famílias, em comparação aos cerca

de 46% dos matriculados via vestibular” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 27). Esses

dados poderiam gerar alguma expectativa mas se mediante a condição de ignorarmos o

formato do Programa: curso sequencial, sem acesso direto a Universidade. Tal formato

parece indicar uma preocupação de fundo dos docentes com o controle da

sobrecertificação.

A justificativa para a escolha do modelo de curso sequencial profissionalizante é

assim definida no Relatório de Avaliação do ProFis (UNICAMP, 2013):

“[...] Além disso, a notória insegurança na escolha profissional pelos estudantes

concluintes do ensino médio pode ser bastante reduzida ao longo dos dois anos

previstos para a integralização em fase do ProFIS pois, além da formação

superior diversificada, o convívio com a realidade do ambiente universitário e o

contato próximo com os cursos de graduação oferecidos na Unicamp são

importantes fatores contribuintes para tal” (UNICAMP, 2013, p.2).

A mistificação em torno dos reais motivos de criação do Profis além de

escamotearem as razões da “insegurança profissional” dos estudantes relacionada à

própria condição de classe e raça dos estudantes, dissimula, por um lado, a busca pelo

controle no caesso à universidade e por outro evidencia a lógica integracionista

neoliberal do Programa, expressa nos objetivos voltados para:

“[...] capacidades de ler, escrever, lidar com números, saber pensar e resolver

problemas, trabalhar em grupo etc, e apoia a escolha da formação profissional e a

formação de cidadãos críticos e preocupados com uma sociedade mais justa [...]

os estudos sobre o acesso à educação superior mostram, como impactos, que os

egressos do ensino superior são mais propensos a ser mais felizes, saudáveis e

democraticamente tolerantes; menos probabilidade de atividade criminosa; maior

212

participação em eleições e inclinação para trabalho voluntário” (CARNEIRO A.

M. et al, 2012, p. 23).

Salta aos olhos nos trechos acima a inversão da resposta ao problema do caráter

racista e elitista das universidades públicas. Não esqueçamos que esses jovens já tinham

cursado o ensino básico, já tinham realizado o Exame Nacional do Ensino Médio e

ainda assim o que lhes é ofertado enquanto currículo pelo ProFis parece mais um

programa para as séries iniciais do ensino básico sem mencionar o viés descaradamente

essencialista na forma como os elaboradores do Programa concebem os jovens

beneficiários. Entretanto, a justificativa para o currículo provém da constatação (?) das;

“[...] deficiências de formação, fruto da degradação da educação básica (Castro,

2011). Com a expansão das matrículas do ensino superior, esse nível de ensino

tem recebido alunos com formação insuficiente sem base sólida. Dessa forma, as

IES se veem frente ao desafio de oferecer o reforço de habilidades que deveriam

ter sido desenvolvidas nos níveis anteriores de escolaridade, o que pode ser feito

com os programas de educação geral” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 31).

Apesar de fazer uma afirmação que tem desdobramentos importantes para a

avaliação séria de qualquer política pública, o artigo que faz o balanço do primeiro ano

do Profis, cita apenas uma única referência-Castro, 2011 para balizar a afirmação

quanto à suposta deficiência dos alunos ingressantes no contexto de ampliação do

acesso à universidade. Na referência102 citada no artigo não encontramos menção a

qualquer estudo de caso que comprove a deficiência dos ingressantes e nem tampouco

encontramos no artigo evidências baseadas em dados factíveis acerca da relação entre

expansão de acesso ao ensino superior e aumento do ingresso de estudantes com

deficiências na formação básica.

Se não estaria baseada em evidências e estudos científicos de avaliação de

impacto quanto à relação mencionada entre políticas inclusivas e insuficiência dos

beneficiários, baseado em quais evidências o Núcleo responsável pela avaliação do

Profis reafirma essa associação? A ideologia meritocrática responde em parte a

pergunta, mas não poderíamos deixar de chamar atenção para o caráter essencialista que

dá o tom acerca do imaginário sobre os ingressantes que por sua vez são definidos como

deficientes.

O estudo da avaliação do primeiro ano do Profis afirma que “[...] além da

adaptação do conteúdo, os professores adaptaram também a linguagem habitualmente

102CASTRO, Claudio de Moura. Educar para o ofício ou educar para mudar de ofício? Ensino Superior

Unicamp, ano 2, n.3, junho 2011, p.20-39. Disponível em:

https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/educar-para-o-oficio-ou-educar-para-mudar-de-

oficioij. Acesso em 26 de março de 2014.

213

utilizada em sala de aula porque os alunos do ProFis demonstraram não ter

familiaridade com determinados termos e vocabulário” (CARNEIRO et al, 2012, p. 33)

mas que mesmo assim a avaliação é positiva porque “todos os professores comentaram

que os alunos evoluíram ao longo das disciplinas, inclusive com a constatação de saltos

ao longo da convivência e imersão no cotidiano das atividades acadêmicas” (Idem, p.

35). Sobre esse trecho, há uma série de reflexões que poderíamos fazer mas gostaríamos

de destacar três.

Em primeiro lugar o relatório não especifica quais seriam os “termos e

vocabulários” que os alunos do ProFis não tinham familiaridade. Seriam termos

específicos das disciplinas ou do cotidiano? E sendo do cotidiano, cotidiano de quem?

Em segundo lugar, qual é o parâmetro que leva a conclusão de que as dificuldades que

os jovens do Profis enfretam são exclusivas a esse grupo? Temos avaliações de

acompanhamento dos jovens que entram pelo vestibular tradicional que indique que já

nos primeiros dias de curso eles têm domínio do tal vocabulário exigido?

A avaliação feita pelo NEPP parece induzir a uma especificidade do perfil dos

jovens ingressantes no Profis que ao mesmo tempo em que justifica a própria existência

do Programa, também narra esses jovens como incapazes, sem habilidades. Ainda que

os docentes tenham mobilizado de forma mais intensa a ideologia meritocrática para

fazer frente aos programas de ação afirmativa, em nosso entendimento, em alguns

momentos os discursos deixam escapar a reivindicação da ideologia do dom

(BOURDIEU, 1982), evidenciando os contornos da lógica integracionista das políticas

de inclusão defendidas pela fração da classe média alta e branca na medida em que se

cria uma narrativa que esvazia a capacidade e a dignidade dos sujeitos destinatários

desse tipo de política, elaborada a partir de uma lógica neoliberal de integração.

Os sujeitos são vistos e narrados como incompletos. Essa escancarada

desumanização da população pobre, negra e indígena nos remonta à afirmação de

Carlos Hasembalg (1979) acerca de como a perpetuação da condição social

subalternizada da população negra não deve ser procurada “ […] na organização social

[sociedade escravocrata] destruída noventa anos atrás (ou nos supostos “defeitos” das

vítimas)” mas sim “nas práticas racistas e discriminatórias no período posterior à

abolição” (Idem, p. 16). Além disso, a “evolução” e a menção à “convivência e imersão

no cotidiano das atividades acadêmicas” parece querer forjar uma integração mesmo

que os alunos do ProFis não fossem de fato estudantes universitários. Nesse sentido, de

que tipo de “imersão no cotidiano das atividades acadêmicas” estamos falando?

214

A escolha pelo modelo de curso sequencial profissionalizante, apesar de flertar

com certo paternalismo ao definir como objetivo do programa um meio de contribuir

“para uma definição mais segura do campo profissional futuro; e, finalmente,

compreensão de si como membro de uma sociedade diversificada,” se olharmos para o

currículo, onde consta apenas uma disciplina referente às “profissões” nos perguntamos

quais seriam os reais objetivos do Programa:

Figura 1: Disciplinas da Grade Curricular do Profis

Fonte: UNICAMP, 2013.

A profissionalização parece ser mais uma fraseologia para atrair os jovens do

que de fato se faz presente na grade curricular do curso. O próprio NEPP, ao avaliar os

objetivos do currículo e a proposta de formação geral do currículo, aponta para a

existência de um “paradoxo” (apenas aparente, em nossa análise) entre:

“[a necessidade de] dar aos graduados uma base mais ampla de conhecimentos e

habilidades que permita ajuste rápido às novas ocupações. [e] oferecer o reforço

de habilidades que deveriam ter sido desenvolvidas nos níveis anteriores de

escolaridade, o que pode ser feito com os programas de educação geral. Não há

215

uma definição consensual do termo formação geral, mas este pode ser entendido

como a parte comum do currículo que é oferecida a todos os estudantes como

aspecto prévio e primordial do desenvolvimento intelectual, que os prepara para

ações cívicas e para a aquisição das competências profissionais, sendo também

necessária para uma vida de contínua aprendizagem, por oferecer uma

formação conceitual, e não prática utilitarista” (CARNEIRO A. M. et al, 2012,

p. 31).

Os elaboradores do Profis parecem ter feito a opção por uma “formação geral”

que contradiz a tal promessa de profissionalização do Programa e talvez isso explique,

em parte, a diferença entre os que se matricularam e os que concluíram o curso no

primeiro ano do ProFis.

Dados de 2011 apontam para a existência de uma diferença significativa entre os

alunos que iniciam o curso e os que conseguem terminá-lo com uma vaga na

Universidade: dos 120 ingressantes, 53 conseguiram, ao fim de dois anos, ingressar em

um curso na UNICAMP. A taxa de evasão também evidencia o desenho equivocado

dessa política que em 2011, teve de 28% do total de ingressantes desistindo do

Programa. Entretanto, em relação a esses dados, os avaliadores do Programa interpretam

como algo supostamente “natural” já que o valor é “ semelhante ao observado para os

cursos de graduação da Unicamp em 2011 (25% nos cursos diurnos e 33% nos cursos

noturnos) e a desistência pode ser explicada pela carga horária total do curso (1755

horas)” (UNICAMP, 2013).

A equiparação da situação da desistência entre os alunos do Profis e os

estudantes universitários, para nós, é uma tentativa de escamotear o equívoco do

desenho do ProFis. A menção à situação dos estudantes universitários parece querer

equiparar a condição dos dois grupos distintos (os alunos do Profis não estão

matriculados em um curso de graduação), ocultando que o curso sequencial levava à

desistência do Programa. Quando os ingressantes no Programa conseguem concluir não

saem com um diploma, mas com um “Certificado de conclusão de curso sequencial de

ensino superior”, tenha lá o peso que essa certificação tenha no mercado de trabalho.

Retornando ao problema da desistência, a “carga horária alta, com uma média de

29,25 créditos por semestre” como reconhecem os próprios idealizadores e avaliadores

do Programa (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 29), pode ser uma das razões pelas

quais os estudantes desistem tendo em vista que, como apontado na pesquisa realizada

pelo NEPP, 54,8% dos jovens matriculados no Profis tinha como motivação a entrada

no mercado de trabalho e isso implica dizer que muitos dentre eles talvez tivessem que

trabalhar para manter-se estudando. Nesse sentido, concluir um curso integral de dois

216

anos, como era o formato do Profis, não era uma realidade possível para muitos dos

jovens ingressantes tendo em vista que eles tinham uma renda familiar per capita 3,6

vezes menor que a renda média da população de 18 a 24 anos do Estado de São Paulo

com acesso ao ensino superior (idem, p. 33).

A avaliação do primeiro ano do Profis apresenta dados sobre o interesse dos

jovens pelo Programa: para 59% dos matriculados, o principal interesse era “o

currículo de formação geral” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 29) mas ainda assim

existiam outros 41% que não tinham interesse nessa formação mais geral e

presumimos que tinham interesse em acessar à universidade, já que era esse uma das

promessas do Programa.

O último ponto em relação aos desdobramentos do Profis é quanto à orientação

profissional que o Programa se propunha a fazer e talvez nesse ponto resida à

dissimulação para controlar e bloquear o acesso dos jovens pobres e negros se não à

Universidade ou pelo menos a alguns cursos. Os dados trazidos no artigo “Formação

interdisciplinar e inclusão social – o primeiro ano do ProFIS” (2012) acerca da escolha

profissional dos jovens inscritos no Programa levantam alguns questionamentos quanto

à “orientação profissional” prometida. Vejamos:

“[...] Em relação à opção de curso apontada inicialmente no questionário da

matrícula, 49% dos alunos mudaram a opção de cursos para outra grande área do

conhecimento. Essa migração pode reforçar que o ProFIS realmente tem

contribuído para a definição vocacional de seus alunos. Ou pode ser uma

adequação à real oferta de vagas ou até mesmo uma adequação frente ao

desempenho (bom ou ruim) em disciplinas específicas, o que precisamos

investigar melhor” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 30).

No mesmo artigo, encontramos que dentre os objetivos dos jovens que

ingressaram no Profis, apenas 13% dentre eles escolheram o Profis pela sua promessa

de “apoio na escolha da carreira” (Idem, p. 29), o que em nossa leitura implica dizer que

os jovens já sabiam a profissão e, portanto o curso que gostariam de frequentar na

Universidade. Então o que explicaria que ao final do curso, 49% dos jovens tenham

mudado sua escolha profissional? Em nossa leitura, “o apoio na escolha da carreira” é

na realidade a forma dissimulada de bloquear o acesso dos jovens a cursos mais

“nobres”, ceifando o desejo deles de escolher livremente a carreira profissional e os

mantendo assim longe de alguns cursos. Como analisou Bourdieu (1982):

“[...] Segue-se que os alunos das classes populares pagam sua admissão no ensino

secundário pela sua relegação a instituições e carreiras escolares que, como se

fossem armadilhas, os atraem pela falsa aparência de uma homogeneidade de

fachada para encerrá-los num destino escolar mutilado” (p.168).

217

O Profis, como dissemos, inspirou o PIMESP, mas esse último não foi

implantado na UNICAMP mesmo com uma lógica muito similar ao primeiro programa.

Então como explicar que um tenha sido aceito pelo Conselho Universitário e o outro

não? Em nossa análise, além do impacto da grande mobilização do movimento negro e

do movimento estudantil, denunciando o caráter racista do PIMESP, entendemos que o

Profis já estava a assegurar o controle da sobrecertificação, dispensando a necessidade

de implantar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista e

evitando assim a instauração de um conflito entre a burocracia educacional, docentes e o

movimento negro, ainda que tenha conseguido apenas momentaneamente.103 Nesse

sentido, dada que já existiam de mecanismos de controle para a formação de “novos

bacharéis” na UNICAMP, a condução da avaliação do PIMESP naquela universidade,

como veremos a seguir, transcorreu de um modo diferenciado.

A avaliação do PIMESP e opção pela continuidade das formas de controle

de expansão do acesso

O então reitor à época da apresentação do PIMESP, Fernando Costa, criou em

fevereiro de 2013 um Grupo de Trabalho (GT) que contava com a participação de 19

pessoas e que seria responsável por avaliar o PIMESP, o que acabou por não ocorrer

tendo em vista as eleições para reitor em maio de 2013.

O recém-empossado reitor José Tadeu Jorge revogou a deliberação do

antecessor, estabeleceu as “metas de inclusão”, seguindo as porcentagens estabelecidas

na lei federal de cotas mas manteve a política de bonificação (PAAIS), aumentando a

pontuação e mantendo o Profis. Ele também deliberou a criação do Grupo de Trabalho-

CONSU Inclusão (GT-CONSU Inclusão) que deveria não apenas avaliar o PIMESP,

mas de modo mais amplo, analisar os modelos de políticas de inclusão vigentes no

contexto das universidades no País. A seguir o trecho da deliberação que faz referência

ao objetivo de trabalho do Grupo:

“[…] Artigo 4º - O Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior

Público Paulista (PIMESP) e a participação do Instituto Comunitário de Ensino

Superior (ICES) na implementação desse programa, assim como cotas e outras

propostas de inclusão, serão objeto de estudos e debates na comunidade

universitária ao longo do segundo semestre de 2013, os quais fornecerão

subsídios para sua análise pelo Conselho Universitário até o final do primeiro

semestre de 2014. § 1º - Os estudos e debates referidos no caput serão

executados e coordenados por um Grupo de Trabalho do Conselho Universitário

(GT/CONSU) […]” (UNICAMP, 2013b)

103 Tendo em vista que em 2016 a greve de estudantes viria a mudar o rumo da discussão.

218

A opção pela criação do GT, e não abertura do debate com a comunidade

acadêmica, nos leva a inferir que a forma de condução do processo avaliativo do

PIMESP na UNICAMP tinha no horizonte controlar o debate para assegurar a

manutenção das políticas de inclusão já existentes.

A forma como foi conduzido o processo de avaliação do PIMESP na UNICAMP

só pode ser dimensionada se atentarmos que garantir o controle das formas de acesso à

universidade esteve na agenda de trabalho de diversos reitores ao longo dos anos 2000.

Isso levanta a possibilidade de que o desejo de manter a estrutura excludente da

universidade era mais que um interesse individual de um ou outro reitor mas

correspondia aos interesses de certa parcela dos docentes:

“[...] Paralelamente a UNICAMP criou no ano passado um programa de

ação afirmativa para aumentar ou intensificar a inclusão social em seus

cursos de graduação. É um programa muito interessante porque tem

características até revolucionárias ao aliar a inclusão social com o mérito e o

valor acadêmico – uma aliança que é algo inteiramente diferente do que o

Brasil vinha pensando sobre o assunto até aqui. No Brasil inteiro todo

mundo pensa que mais inclusão é sinônimo de menos valor acadêmico, de

menos mérito, mas a UNICAMP demonstrou que isso não é verdade […]

Então é um programa que faz mais inclusão e ao mesmo tempo que [sic]

traz melhores estudantes para a UNICAMP. É um programa que vai

continuar […]” (Professor Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da

Unicamp à época da criação do PAAIS, Cf. Cf. SERVIÇO, 2005)

“[...] o PAAIS é o Programa de inclusão mais eficiente que nós conhecemos

[...] É um programa que reúne condições importantes de manter a

competição pelo ingresso, minimamente considera o preparo dos estudantes

mas nivela aqueles que foram menos favorecidos para competição do

vestibular […]” (Professor José Tadeu Jorge, reitor da Unicamp à época da

rejeição do Pimesp. Cf. BRANDT, 2013)

Percebemos que há uma lógica partilhada pelos ex- reitores da UNICAMP no

que tange ao entendimento deles da centralidade da competência/mérito no processo de

ampliação do acesso à universidade. Nesse sentido, as prioridades estabelecidas como

objetivos dos programas de ampliação de acesso em nada dialogam com as justificativas

históricas mais correntes e que foram amplamente mobilizadas na criação de programas

de ação afirmativa no ensino superior em várias partes do mundo, incluindo o Brasil.

Os programas de ações afirmativas no ensino superior têm como fim primeiro a

criação de medidas com o objetivo de oportunizar a grupos historicamente

desfavorecidos o acesso à universidade e ponto. Ou seja, não há vinculação ou

condicionamento a outro objetivo, que é o que parece estar evidente na fala dos ex-

219

reitores ao enfatizarem que há uma “aliança entre inclusão social com o mérito e o valor

acadêmico” ou ainda de que “É um programa que reúne condições importantes de

manter a competição pelo ingresso”, diluindo totalmente os objetivos desse tipo de

política e a preocupação com os sujeitos a que ela se destinaria. Talvez, justamente por

querer garantir que o processo de amplição de vagas estivesse controlado e

condicionado ao mérito e à competência, os reitores tenham escolhido o formato de

Grupo de Trabalho para analisar o PIMESP.

A seguir, analisaremos a composição e as recomendações do Grupo de

Trabalho-CONSU Inclusão com base no “Relatório Consolidado do GT-CONSU

Inclusão (Deliberação Consu-A-004-2013)”.

O GT-CONSU Inclusão foi instituído em 28 de maio 2013 e finalizou seus

trabalhos no dia 13 de maio de 2014, após 6 encontros gerais que resultaram no relatório

com recomendações entregue em 2014. O GT Inclusão foi composto por 15 docentes, 3

discentes e 1 representante da comunidade externa104, divididos em três comissões

(subgrupos) e cada um deles responsável por avaliar um tipo de programa afirmativo, a

saber: Subgrupo de Programas Afirmativos, Subgrupo PIMESP e Subgrupo Cotas.

Analisaremos as recomendações por cada subgrupo.

A análise do Subgrupo de Programas Afirmativos em um primeiro momento

chama atenção pelo título do grupo e o que de fato ele analisou, que diferentemente do

que está enunciado (Programas Afirmativos) não chegou de fato a esmiuçar todos os

programas afirmativos ou modelos de programas afirmativos em outras universidades,

mas limitou-se a analisar simulações no PAAIS “de forma a obter cenários que

levassem à participação destes estudantes em pelo menos 35% das vagas do Vestibular

Unicamp”, pois o foco “foram nas ações que propiciassem um aumento percentual na

104 Vale uma nota sobre o único membro da comunidade externa convidado para compor o GT, José Ellis

Ripper Filho que foi professor no departamento de física na UNICAMP nos anos 60. Em entrevista para a

Revista Pesquisa Fapesp, sua biografia assim é resumida na entrevista: “[...] é um empresário na área de

telecomunicações, como presidente da empresa AsGa, que produz equipamentos para transmissões via

fibra óptica. É também um exemplo bem-sucedido de migração da sala de aula para a iniciativa privada.

Engenheiro eletrônico por formação, antes de se aventurar no arriscado mundo dos negócios, ele se

tornou professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) quando voltou

ao Brasil depois de passar alguns anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e como

pesquisador do Laboratórios Bell (Bell Labs) da norte-americana AT&T (hoje Lucent), nos Estados

Unidos”. Nos chama atenção os motivos pelos quais, dentre uma gama significativa de estudiosos acerca

do tema de programas de ações afirmativas, um físico que transformou-se em empresário foi convidado

para analisar as políticas de ampliação de acesso à Universidade. A entrevista encontra-se disponível em:

https://revistapesquisa.fapesp.br/2004/07/01/jos%C3%A9-ellis-ripper-filho-alternativas-do-saber/ Acesso

em: 28 de março de 2018.

220

participação de estudantes oriundos de Escolas Públicas entre os ingressantes na

Unicamp. Estes estudantes podem ser optantes do PAAIS ” (UNICAMP, 2014).

A escolha do foco do Subgrupo enquadra o problema (escola pública), e a

solução-(PAAIS) de modo que, à partida, não há uma análise crítica das limitações do

PAAIS, discussão que estava em vigor no meio do movimento negro, estudantil e entre

os estudiosos de programas de ações afirmativas como é o caso do Professor João Feres

Júnior e o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA105) e que

vem produzindo a mais de uma década uma série de análises sobre as políticas

afirmativas no Brasil. Em um dos estudos, Feres Jr. (et al, 2013a) conclui que o modelo

de bonificação não tem os mesmos impactos que a reserva de vagas no que tange à

inclusão de negros e indígenas:

“[..] Experiências como a da Unicamp têm demonstrado que o sistema de

bonificação conduz a resultados tímidos, senão nulos, no que concerne a meta de

incrementar a quantidade de candidatos de grupos desprivilegiados que

ingressam na universidade (Unicamp, 2013). Além disso, sabe-se que esse

sistema, quando eficaz, comumente resulta em uma distribuição desigual desses

candidatos entre os cursos: aqueles mais prestigiosos e disputados são pouco

tocados pelo sistema de bonificação, enquanto aqueles menos competitivos

costumam ser mais impactados por essa modalidade de ação afirmativa. Essa

assimetria é fácil de entender. Imaginemos que o bônus consiste em adicionar 20

pontos a alunos oriundos da escola pública e que para o curso de pedagogia a

nota de corte no vestibular (acima da qual o candidato é aprovado) seja 100 e

para o curso de medicina seja 400. O bônus de 20 pontos confere ao candidato ao

curso de pedagogia uma vantagem muito maior, 20% da nota de corte, do que ao

candidato ao curso de medicina, para o qual o bônus corresponde apena a 5% da

nota de corte. Isso não ocorre nos sistemas de cotas em que as reservas são

aplicadas a cada curso e turno, pois nesse caso a presença do grupo de

beneficiários é nominalmente garantida pelo procedimento, a despeito das notas

e outros procedimentos de entrada [...]” (idem, p. 9)

A análise do subgrupo “Programas Afirmativos” ignorou esse e outros estudos

sobre programas afirmativos ou mesmo experiências de programas de bonificação em

outros contextos a fim de comparar e sugerir melhorias ao PAAIS, se limitando a

realizar simulações de aumento de bônus e se isso resultaria em maior inclusão. O

referido Subgrupo concluiu (ou partira da premissa?) de que sim, que aumentar a

bonificação para estudantes de escola pública (60 pontos adicionais) e estudantes negros

e indígenas (120 a mais), seria suficiente para aumentar a matrícula desses grupos na

Universidade, apesar de não fazer menção a esse ponto nas recomendações.

O subgrupo conclui (não sabemos baseado em que tipo de informação, pelo

menos no relatório analisado não consta análises sobre esse ponto) que a ausência de

pessoas negras e indígenas deve-se a falta de conhecimentos desses grupos sobre a

105 Ver mais informações: http://gemaa.iesp.uerj.br/

221

existência da Universidade e do vestibular, pois o Subgrupo sugere nas recomendações

da sua avaliação, medidas que parecem partir desse pressuposto, como: “divulgação do

PAAIS nas escolas e no website da Universidade e da secretaria de educação”,

“participação dos membros do COMVEST em feiras de vestibulandos”, “visitas às

escolas”. Também sugere continuar usando o ENEM para os candidatos que assim

desejem (esse ponto também não foi alvo do estudo).

Além disso, o Subgrupo faz recomendações à melhoria do ensino público,

sugerindo restruturar a rede básica de ensino aos moldes dos colégios técnicos

administrados pela UNICAMP, como Cotil106 e Cotuca107. Por fim, válido dizer que

mesmo com o título “Programas Afirmativos” e do subgrupo ter analisado, com todas as

limitações, o PAAIS, no relatório produzido não há uma análise profunda acerca do

Profis que já estava em curso desde 2011 e que portanto, já existiam dados para fazer

uma análise se assim o subgrupo o quisesse, mas parece que essa possibilidade sequer

foi considerada, o que nos leva a refletir sobre os motivos desse silêncio sobre o Profis.

A seção do “Relatório Consolidado do GT-CONSU Inclusão” que corresponde

ao Subgrupo “PIMESP”, inicia por definir sua tarefa que corresponderia a “[...]

levantar as informações referentes à proposta do Programa de Inclusão com Mérito no

Ensino Superior Público Paulista […] e avaliar a situação das atividades propostas e a

possibilidade e a necessidade de adequação e atualização das metas propostas”

(UNICAMP, 2014, p.5). Chama atenção que o subgrupo não faz menção à avaliação da

possibilidade de adoção do PIMESP mas apenas às metas contidas naquele Programa.

Assim, no Relatório, o subgrupo faz uma extensa descrição do Programa (que não

adentraremos porque já o fizemos nas seções anteriores) e, após ter se reunido apenas

uma vez, conclui que:

“[...] Pelo que foi discutido, a conclusão é que as metas definidas então pelo

PIMESP, dentro do contexto da Unicamp, estão sendo atingidos com as

alterações recentes realizadas no programa PAAIS da Unicamp. As estratégias

propostas como implantação do ICES, planos de recrutamento de estudantes, e

de um fundo especial de apoio à inclusão social, não possuem resultados em

andamento; mas essas estratégias devem ser revistas e rediscutidas, tendo em

vista os resultados obtidos com a alteração do PAAIS e possível proposta de

direcionar os esforços das três Universidades públicas paulistas, tanto para

fornecimento de conteúdo quanto sua infraestrutura para, em conjunto com a

Univesp, estabelecer um plano de implantação e ampliação de ensino superior à

distância, o qual permitirá rapidamente oferecer um número expressivo de vagas

no ensino superior público paulista” (Idem, p. 8).

106 Para mais informações: https://www.cotil.unicamp.br/portal/ 107 Para mais informações: https://cotuca.unicamp.br/cotuca/

222

Se por um lado, o subgrupo descarta a necessidade de adoção do PIMESP, já

que em relação às metas, a UNICAMP já estaria a alcançá-las, por outro lado, aponta

para a possibilidade de voltar a discutir o Programa mas com foco no sistema de

educação à distância como forma de expandir as vagas. Diante do exposto, o PIMESP

parece não ter sido recomendado pelo Subgrupo não pelo contéudo racista e elitista da

proposta, mas porque a UNICAMP, já estaria atingindo as metas com o PAAIS. Válido

mencionar que novamente nenhuma referência foi feita ao ProFis por esse grupo.

Por fim, temos o Subgrupo “Cotas” que realizou uma audiência pública em 2014

e cuja caracterização assim está definida no Relatório: “reunião essa que contou com a

presença de representantes de vários movimentos sociais voltados à integração racial”

(Ibidem, p, 2). Ainda que não seja possível perceber, a partir da análise do Relatório,

exatamente de onde se concluiu que a reunião tivesse esse fim e no que exatamente

consistiria integração racial, tendo em vista que esse termo sequer é mencionado no

documento de criação do grupo de trabalho e não aparece em nenhum outro documento

oficial da UNICAMP no período analisado.

O relatório do Subgrupo aponta duas reivindicações que os estudantes

expressaram na audiência:

“[...] A Unicamp deveria, em seus órgãos colegiados e administrativos, assumir e

efetivar discussões sobre cotas de qualquer natureza, mas principalmente sobre

as cotas raciais, como um mecanismo de ingresso na Universidade; e 2. Deveria

ser estabelecida uma audiência pública do CONSU, para justificar o porquê

dessa não discussão e não opção da Unicamp pelas cotas” (UNICAMP, 2014,

p.9).

Importante termos em conta que a Frente Pró-cotas já estava atuante nos espaços

da Universidade, pressionando os docentes e a reitoria pela discussão sobre adoção de

programas de ação afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais.

O Subgrupo apresenta ainda uma extensa descrição da história das ações

afirmativas e sobre elas tece alguns comentários e dentre um deles, ao referir-se ao

sistema de reserva de vagas étnico-raciais, o Subgrupo resume esse modelo como “[...]

As cotas são chamadas de políticas públicas mais radicais e objetivam a concretização

da igualdade material entre sujeitos e nasceram no âmbito das ações afirmativas”

(Ibidem, p.10). Não se percebe a partir de qual referencial os docentes que compõem o

Subgrupo classificam a modalidade de reserva de vagas como “mais radical”. Talvez a

máxima, “entre os que querem mais e os querem menos, temos o PIMESP”, tantas

vezes repetidas ao longo do processo de avaliação das cotas e do PIMESP, pode situar

tal afirmação do Subgrupo.

223

Os componentes também descrevem a lei de cotas e são enfáticos em concluir

que “a leitura dessa lei indica que nela não estão previstas cotas raciais nas

Universidades Públicas, mas ao adotar ações afirmativas na área da educação, ficaria a

critério das Instituições como implementá-las” (Ibidem, p. 11).

O Subgrupo também faz uma breve análise acerca do debate suscitado pela

modalidade de reserva de vagas étnico-raciais e afirmam que existiriam críticas a esse

modelo em decorrência da mestiçagem no Brasil e aqui gostaríamos de chamar atenção

para um ponto interessante: ainda que a política de reserva de vagas estabelecida pelo

governo federal para pretos, pardos e indígenas, o subgrupo faz menção apenas a uma

parte do grupo beneficiário:

“[...] um dos discursos que mais surgem contra a política de cotas coloca que em

vez do ingresso de negros se daria por meio de cota, o Estado deveria melhorar os

ensinos fundamental e médio de modo a garantir uma equiparação de saberes”

(Ibidem, p.13).

Mas por que a referência apenas aos negros se a política estaria destinada

também aos indígenas? Se o problema é com o desenho da política em si (dado o caráter

miscigenado da sociedade brasileira e a qualidade do ensinso público) porque há apenas

referência apenas a um grupo que seria beneficiário da política e não a todos os grupos?

Vejamos um trecho do documento:

“[...] A questão da mestiçagem no Brasil, que impede uma definição exata de

quem é negro ou afrodescendente também é tomada como ponto de discussão

para os que são contrários às cotas. Por não existir um critério científico que

indique ou certifique quem é negro em nosso país, a cota poderia ser aplicada a

indivíduos que não se enquadrariam dentro dessa política. Nesse caso os

defensores das cotas raciais não consideram que essas situações seriam

suficientes para invalidar sua aplicação. Ainda, no Brasil, verifica-se que os

níveis de escolaridade se diferenciam entre os jovens que se autodeclararam

pertencentes à população branca ou não branca” (Ibidem, 13).

A idéia de uma nação mestiça é reproduzida pelo subgrupo como forma de

questionar a legitimidade de políticas de discriminação racial positiva. Mas ainda assim

não fica evidente porque a menção apenas aos negros? Ora, se os beneficiários da

reserva de vagas seriam pretos, pardos e indígenas que correspondem respectivamente

5,5%, 29,1% e 0,1% do total da população de São Paulo, os docentes estavam

preocupados com o grupo que numericamente seria o maior beneficiário, a saber, os

negros. Mas a questão numérica explica apenas em parte as críticas dirigidas às cotas

raciais. Para além da confusão entre antirracialismo (com o apelo a negação da

existência da raça em termos biológicos) e antirracismo que marcou o discurso dos

docentes no conflito em torno do PIMESP, é preciso confrontar esses discursos com a

224

narrativa acerca do “perigo da degeneração” 108 da universidade pela presença dos

cotistas.

A força do racismo institucional está em justamente seguir vigoroso mesmo com

o suposto consenso da inexistência das raças em termos biológicos (e as doutrinas dai

decorrentes), mesmo que atitudes ou opiniões declaradamente racistas não estejam no

bojo da discussão. Isto para dizer que, em primeiro lugar quando os docentes são

enfáticos na reivindicação de uma nação mestiça, colocando-a como motivo de

questionamento da necessidade da adoção de uma política de discriminação racial

positiva, está a um só tempo a reproduzir o mito da democracia racial, ao mesmo tempo

em que utilizam esse argumento como impeditivo real da criação da política.

Convém assinalar a contradição expressa no trecho acima quando, mesmo

afirmando a dificuldade de identificar quem seria negro no Brasil por conta da

mestiçagem, o Subgrupo coloca um dado acerca das diferenças de escolaridade a partir

do elemento “branco” e “não-branco”, ou seja, ainda que o Subgrupo assinale as

dificuldades de classificação racial dos brasileiros, utiliza um dado produzido a partir de

uma classificação racial. Como afirma Goldberg (2015) “[…] race today is supposed to

be a thing of the past. And yet all we do, seemingly, is to talk about it. We talk (about)

race when not talking (about) it; and we don’t talk (about) it when (we should be)

talking (about) it” [...] Such is the condition, the paradox, of postraciality” (p. 1).

O subgrupo também faz referência ao PAAIS e ao Profis. Sobre esse último

curioso notar que há apenas dois parágrafos sem nenhuma avaliação do Programa mas

ainda assim, mesmo sem números, sem avaliação sobre um dos principais programas de

ação afirmativa que a Universidade tinha naquela altura, os componentes recomendam

que o Profis, assim como o PAAIS, deve ser mantido e a eles acrescentar 2% de cotas

raciais em cursos noturnos e 5% de cotas para alunos provenientes de famílias que

tenham a primeira geração candidatando-se ao ensino superior mas ambas as sugestões

condicionadas à realização de mais estudos de impacto (na estrutura da universidade, no

108 O termo é uma alusão à expressão mitos da degenerescência universitária utilizada pelo professor

Ivan Siqueira, Professor do Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP no artigo intitulado:

Universidade pública: mérito ou oportunidade? No referido artigo, escrito em 2016, o professor tece

críticas ao fato da USP ainda não ter aderido ao sistema de reserva de vagas em nome defesa do mérito.

Link para reportagem: http://jornal.usp.br/especial/universidade-publica-merito-ou-oportunidade/.

Acesso em 20 jan de 2019.

225

orçamento, etc). Em síntese: o que resultou desse processo de avaliação foi a escolha

pela protelação da adoção de reserva de vagas étnico-raciais e manutenção das políticas

já existentes.

A UNICAMP optou pela permanência de seus programas de inclusão, fazendo

apenas reformulações na bonificação mesmo diante das críticas a esse tipo de política,

advindas tanto do movimento negro como de estudiosos no que se refere ao formato e ao

valor máximo do bônus (raramente alcançado pelos optantes pelo Programa). Além

disso, o bônus não alteraria a nota de corte dos exames por curso, diferentemente do que

ocorre com o sistema de reserva de vagas, onde há garantia das vagas sem estar

condicionada à nota de corte. Nesse sentido, a equação entre bônus e nota de corte é

incapaz de alterar o perfil dos cursos mais elitistas das universidades, como medicina,

direito e as engenharias. Daflon et al (2013) endossa o argumento:

“Outra diferença entre o sistema de bônus e o sistema de cotas se refere à

distribuição dos beneficiários nos diferentes cursos universitários. Cursos de

maior prestígio acadêmico e mercadológico costumam apresentar uma

concorrência mais acirrada e, portanto, barram uma quantidade maior de

candidatos em desvantagem social [...] Tendo em vista que os adicionais

fornecidos pelos sistemas de bônus não variam de acordo com a

competitividade de cada curso, esse sistema tende a concentrar os

beneficiários das ações afirmativas nos cursos menos concorridos, falhando,

portanto, em incluir candidatos desfavorecidos nos cursos de elite. O

sistema de cotas fixas e por cursos tende a evitar essa defasagem” (idem, p.

26).

O processo de avaliação do PIMESP na UNICAMP indica os meandros dos

mecanismos de protelação da ampliação de reserva de vagas para negros e indígenas,

justificados ora na defesa da autonomia universitária, ora na defesa obstinada pela

meritocracia ou ainda da mestiçagem. A discussão conduzida pelo GT-Consu- Inclusão

deixa evidente, em nossa análise, que se dependesse da vontade do corpo docente e da

burocracia educacional da UNICAMP, a reserva de vagas étnico-raciais e o acesso de

negros e indígenas aquela universidade, muito dificilmente teria se tornado realidade

não fosse a mobilização do movimento negro e estudantil que viriam a ganhar força

nos anos seguintes.

A USP e a rejeição ao PIMESP: a reformulação do sistema de bonificação

Os docentes da Universidade Estadual de São Paulo rejeitaram por ampla

maioria a adoção do PIMESP. Apesar das discordâncias entre os argumentos para

justificar o rechaço, nos parece que em um ponto teve consenso entre os docentes: a

226

rejeição ao ICES. Ainda que tenha ocorrido um esforço por parte da burocracia

educacional em enfatizar que o ICES seria uma estratégia de inclusão melhor que as

cotas, como podemos ver no trecho a seguir:

“[ao referir ao Instituto Comunitário de Ensino Superior] Ele é um programa

maior do que isso [cotas]. Ele é um programa que busca exatamente

estabelecer através de várias estratégias condições para atrair os jovens para

as nossas instituições públicas quebrando as barreiras do medo, da idéia de

que não terá chance nas nossas universidades, de que ele não tem como

competir. Ao contrário, nós estamos dizendo: você tem chance, você pode, e

nós te oferecemos condição para que você desenvolva suas aptidões dentro

das nossas instituições públicas e isso é que é uma das características fortes

do programa. Por isso é que eu digo ele é um programa de inclusão. Não é

uma questão de reserva de cotas, só. Ele é um programa de inclusão visando

a quê? Visando exatamente a ter dentro da universidade a mesma

diversidade que você encontra na sociedade, que é uma sociedade múltipla

do ponto de vista étnico-social[…]” (Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior

Especial, 2013)

O esforço empreendido pela burocracia educacional parece não ter tido sucesso e

os docentes rejeitaram a proposta do PIMESP. Entretanto, ainda que o ICES tenha sido

um dos principais pontos de discordância em relação ao Programa (31 das 42 unidades

manifestaram-se contrárias), outros elementos também compuseram os discursos dos

docentes e a partir disso categorizamos cinco pontos centrais que destacamos nos

discursos: 1) autonomia universitária (pouca participação dos docentes na elaboração do

PIMESP e pouco tempo para avaliação); 2) a definição do problema de acesso à

Universidade como estrito à pobreza e a qualidade da escola pública seguido da negação

do racismo; 3) a ênfase no mérito (atrelado à defesa da manutenção dos programas já

existentes por garanti-lo); 4) defesa da diversidade desde que funcional e; 5) rejeição ao

ICES. Comecemos nossa análise pelo ponto 1.

A ênfase no modo como foi elaborado o PIMESP e como foi conduzido o

processo de avaliação foi alvo de críticas por parte quase absoluta dos docentes, que

entendiam que o PIMESP não correspondia aos anseios da Universidade, o que exigiria,

segundo os docentes, mais tempo para analisarem o Programa:

“[…] O programa, por ter sido feito dentro de um contexto ‘fora’ da

Universidade não contempla a estrutura da Universidade e pode ocasionar

mudanças drásticas do seu funcionamento [..] o Departamento é favorável

ao INCLUSP pelas seguintes razões […] foi proposto pela própria

Universidade, de acordo com suas características, e, portanto, já está

acomodado à estrutura da Universidade” (Departamento de Fisiologia. Cf.

INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] a proposta foi apresentada há pouquíssimo tempo […] com prazo

inviável para a deliberação sobre o tema. Ressaltaram que é grande a

227

possibilidade da ocorrência de riscos quando o debate é feito às pressas e

sem reflexão suficiente, que se diferencia em muito das ações afirmativas

consolidadas nas universidades federais, por exemplo […] Que o tempo

dado para a consulta e manifestação das Unidades da USP foi muito curto,

dada a importância do assunto […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).

“[…] O PIMESP, concebido sem a participação da comunidade das

Universidades Estaduais Paulistas, foi produzido pelo Conselho de Reitores

das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) com a participação das

secretarias Estaduais de São Paulo, Universidade Virtual do Estado de São

Paulo, UNIVESP, entre outros órgãos do governo estadual. […]”

(INSTITUTO DE PSICOLOGIA, 2013).

“[…] A congregação do IAU [Instituto de Arquitetura e Urbanismo]

considera que o tema das ações afirmativas destinadas a minimizar as

desigualdades nas condições de acesso ao ensino universitário de qualidade

é da maior importância e justifica que a comunidade universitária se debruce

sobre as diferentes proposta num processo de discussão amplo e cuidadoso.

Apesar das limitações de oportunidade e prazos para a realização desse

debate […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO, 2013).

A reivindição por participação e por mais tempo para avaliar a proposta, nos

parece em primeiro lugar um mecanismo para dissimular o desinteresse real dos

docentes em discutir políticas afirmativas já que a discussão vinha ganhando força

nacional e já estava de algum modo na agenda das universidades estaduais paulistas

desde 2004 (data da criação do PAAIS na UNICAMP) e na agenda da USP pelo menos

desde 2006 (com a criação do Inclusp em 2006).

Poucas manifestações, ao mencionarem a não participação da comunidade

universitária na elaboração da Proposta do PIMESP, fazem menção à participação do

corpo discente ou mesmo dos movimentos negro e indígena, por exemplo, na discussão.

Em segundo lugar, nos parece que reivindicar mais tempo e mais participação

conota uma preocupação em gerir e controlar a “diversidade” a ser incluída com a

ampliação do acesso à universidade do que uma demanda real por ampliação do debate,

além da evocação de uma fictícia “tradição” democrática nas decisões relativas às

políticas de acesso (como veremos mais adiante no contexto de aprovação do

INCLUSP). Atrelada à reivindicação por mais horizontalidade no processo, algumas

manifestações apontam para necessidade de mais tempo para analisar o tema:

“[…] A CG (Comissão de Graduação) […] concordou que os programas de

inclusão são importantes, mas sem discussão ampla sobre o assunto não

permite a elaboração de um projeto completo. Propôs que seja elaborado um

calendário de estudo para que aspectos importantes relativos ao

detalhamento possam ser especificados […]” (ESCOLA DE

ENGENHARIA, 2013).

“[…] O Conselho [ …] manifestou-se favoravelmente à adoção de Políticas

de ação afirmativa para ingresso nas Universidades estaduais paulistas e

228

contrária à implantação imediata do PIMESP. Propõe um prazo de 120 dias

para as propostas de inclusões raciais e socioeconômicas sejam amplamente

discutidas pela comunidade universitária […] (Conselho do Departamento

de Ciências Básicas . Cf. FACULDADE DE ZOOTECNIA, 2013).

“ […] a Egrégia Congregação […] aprovou: […] Sugerir ao Conselho

Universitário a criação de uma comissão que, no prazo de 90 dias, apresente

proposta alternativa ao PIMESP […]” (ESCOLA DE EDUCAÇÃO

FÍSICA, 2013).

“ […] a Congregação do IP/USP (Instituto de Psicologia) manifestou-se

favoravelmente à adoção de cotas nas universidades estaduais paulistas e

contrária à implantação do PIMESP. Propôs um prazo de 90 dias para que a

comunidade da USP seja incluída no debate, por meio de seus

representantes, ouvindo seu corpo de pesquisadores e especialistas […]”

(INSTITUTO DE PSICOLOGIA, 2013).

Causo-nos também estranhamento que a demanda por mais tempo para análise

do PIMESP tenha apenas surgido nesse contexto, não tendo ocorrido o mesmo

incômodo à época da implantação dos programas de bonificação na USP, quando foram

os reitores em exercício a fazerem propostas de implantação dos programas de

bonificação que por sua vez foram aprovados em prazos relativamente curtos. Foi na

gestão da então reitora Suelly Vilela Sampaio que o INCLUSP foi aprovado em 2006.

Válido frisar que a referida ex-reitora ao assumir a reitoria em novembro de 2005 já

fazia referência à criação de um programa de inclusão e qual deveria ser o modelo:

“Qual o desafio do vestibular? É não premiar apenas a informação, porque

assim você não privilegia uma determinada classe econômica. É preciso

também ver as habilidades dos candidatos. Agora, como fazer isso? Estamos

procurando. Sou contra as cotas, a simples reserva de vagas. A entrada na

universidade precisa privilegiar o mérito acadêmico, o aluno precisa ter

condição de acompanhar o curso. Mas podemos até criar um sistema de

pontuação” (Cf. TAKAHASHI, & MELO, 2005).

O Grupo de Trabalho criado em 2006, na gestão da ex-reitora, elaborou e

conseguiu aprovação do INCLUSP pelo conselho universitário já em junho do mesmo

ano e tinha a bonificação para alunos de escolas públicas como forma de ampliação de

acesso. Diante disso, concluímos que os docentes ao rechaçarem a falta de tempo e

participação na elaboração do PIMESP estavam a reivindicar na realidade a tutela na

elaboração da política de inclusão.

O segundo ponto, relativo à crença do espaço da universidade como espaço

democrática por excelência, fora dos conflitos e tensões da comunidade política nos

leva a confrontar a própria condição de classe e raça dos docentes. E por quê? Nos

discursos sobressai-se uma universidade quase ontologicamente democrática, como

espaço plural em si, negando o pacto do aparelho educacional de Estado com a

229

reprodução da divisão do trabalho (SAES, 2008, p. 174) que é ao mesmo tempo elitista

e racista.

Atrelado à reivindicação por mais participação e mais participação, a defesa da

autonomia universitária foi amplamente reivindicada, ora vinculada à opção pela

manutenção do INCLUSP e do PASUSP (29 das 42 unidades manifestaram essa

posição) e a não adesão à política afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais, ora

esteve acompanhada de uma posição positiva dos docentes quanto à necessidade de se

repensar as políticas inclusivas em curso. De todo modo, entre aqueles que queriam a

manutenção dos programas inclusivos vigentes e os que manifestaram vontade de

discutir sobre a nova proposta, a quase absoluta maioria das manifestações criticou a

condução antidemocrática do processo por ferir a autonomia universitária:

“[…] O avanço do debate e das práticas e programas já implantadas ou em

implantação nas Universidades Estaduais Paulistas- no caso da USP, o

INCLUSP e o PASUSP- não deve ser interrompido por uma proposta que,

com independência de suas intenções, surge para a comunidade universitária

como intempestiva e vertical […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA,

abril de 2013).

“[…] O conselho […] após ampla discussão concluiu o seguinte: a questão

proposta tem a finalidade de cumprir exigência de estâncias superiores

(estadual e federal); a USP através de seus programas de inclusão (PASUSP

e INCLUSP) já cumpre parte da proposta […]” (Manifestação do

Departamento de Puericultura e Pediatria. Cf. FACULDADE DE

MEDICINA, 2013).

Embora reconheçamos que o cronograma de avaliação do PIMESP pudesse estar

atrelado a outros interesses ( como as eleições que ocorreriam naquele ano), a

reivindicação de uma condução democrática e de mais tempo, parecem ser apenas

evocadas para garantir a defesa da manutenção dos sistemas de bonificação, ignorando a

extensa produção de estudos acerca dos limites dos programas de bonificação como o

Inclusp. Como aponta Daflon et al (2013), a longo prazo a modalidade de bonificação

acaba por igualar beneficiários e não-beneficiários daquela modalidade de ação

afirmativa:

“[…] Formalmente e em tese os dois sistemas podem ser equivalentes.

Basta que o bônus seja calculado para resultar no mesmo número de vagas

que seriam preenchidas pela modalidade das cotas, para que não haja

diferenças substantivas. Contudo, mantidas a proporção da cota e a

magnitude do bônus ao longo do tempo, as diferenças emergem: o sistema

de bônus garante que a distância entre o desempenho dos beneficiários e dos

não beneficiários mantenha-se constante. Ou seja, os beneficiários sempre

terão o mesmo grau de vantagem em relação aos não-beneficiários. Porém, a

proporção dos selecionados pela ação afirmativa pode variar em cada

processo seletivo. No sistema de cotas, por outro lado, a proporção de

230

beneficiários mantém-se constante, enquanto a diferença de desempenho

dos cotistas e dos não-cotistas pode variar consideravelmente […]” (idem,

p.316).

A defesa da manutenção dos programas de bonificação pelos docentes reforça a

indiferença daquele grupo ao extenso debate e pesquisas feitas em relação à reserva de

vagas como um tipo de ação afirmativa realmente efetiva no combate às desigualdades

raciais no ensino superior.

Ao mesmo tempo em que rechaçaram o PIMESP pela condução pouco

democrática, os docentes negaram a existência do racismo e consequentemente não o

consideraram como razão justa para adoção de reserva de vagas étnico-raciais, apelando

ao recorte de renda como principal impeditivo da entrada dos jovens negros e indígenas

nas universidades:

“[…] O DB [o departamento de botânica] contrário a se levar em conta

critério racial para ingresso na universidade. Como o próprio documento do

“PIMESP” salienta em sua introdução, ‘No Brasil, a renda familiar é o fator

mais determinante do que a cor para o acesso ao Ensino Superior’, portanto

não há justificativa convincente para se fazer distinção entre pretos, pardos e

índios [sic]. O fator determinante, portanto, é a renda familiar […]”

(Departamento de Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] Mesmo reconhecendo que o critério do mérito deva nortear as ações

da universidade, há que se reconhecer a absoluta necessidade de algumas

respostas efetiva à angustiante situação de extrema dificuldade de acesso ao

ensino público de terceiro grau enfrentada por pessoas de menor nível

sócioeconômico[…] Então o PIMESP precisaria vir acompanhado de ações

outras, articuladas com o ensino básico e médio, no sentido de aprimorá-los;

a USP tem muito a contribuir com isso, com ações de: […] Rediscussão dos

critérios de distribuição de cotas, que deveriam nortear-se pela situação

econômica dos pretendentes, jamais pela cor da pele. A defesa desse

argumento parte do princípio que a priorização a partir dos menos

favorecidos estenderia, forçosamente, o benefício aos negros. A priorização

partindo dos negros, todavia, nem sempre favorecia o conjunto de carentes,

uma vez que a cor da pele não é pré-requisito para a pobreza […] ”

(Manifestação do Departamento de Medicina Social. Cf. FACULDADE DE

MEDICINA, 2013).

“[…] o departamento se põe contrário a alguns itens contemplados na

proposta atual: serão 2000 vagas obtidas por classificação pelo ENEM,

sendo 50% reservadas a PPIs. Julgamos que as vagas deveriam priorizar o

atendimento de metas sociais, e não de metas étnico-sociais como propõe o

texto […]” (Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE

BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] De acordo com os dados apurados, destaca-se que a maioria é contra o

PIMESP na forma como foi apresentado, com realce contrário para as cotas

“raciais” […] Destaca-se também […] que a maioria dos participantes é

favorável a algum tipo de cota social (baseada no salário mínimo) […]”

(INSTITUTO DE ASTRONOMIA, 2013).

“[…] O Pimesp não atende adequadamente ao objetivo de promover a

inclusão social na USP e […] Peca também por não incluir critérios de renda

familiar considerada unanimamente como o principal fator de exclusão, e por

231

assumir metas de curtíssimo prazo (3 anos) que modificam radicalmente o

perfil do corpo discente da USP […] Considera-se, no caso da USP, que o

compromisso de alcançar uma meta de 50% de egressos do ensino médio em

escola pública em apenas 3 anos seria uma decisão precipitada e de

consequências imprevisíveis […] Que, em qualquer modelo de inclusão

social que a USP venha a adotar, o critério de renda familiar [grifo da

Congregação] seja considerado de modo explícito e com peso significativo

[...] “[…]Esses programas deverão ser oferecidos a todos os candidatos que

se enquadram nos grupos focados no projeto de inclusão, que serão

selecionados para deles participarem por critérios de desempenho (provas,

notas do Enem etc), em vista das limitações de vagas” (INSTITUTO DE

GEOCIÊNCIAS, 2013).

Embora reconheçam que existe uma estrutura que condiciona a entrada de

alguns grupos na universidade, os docentes apontam que essa estrutura seria

determinada apenas por critério sócioeconômico/renda e portanto, apenas aquele

critério deveria ser utilizado para a definição do público beneficiário das políticas

inclusivas. Entretanto, válido ressalvar que a renda nunca esteve como critério dos

programas de inclusão da USP mas apenas o critério escola pública. Até 2014, o

critério era ser egresso de escola pública, inclusive gerando uma distorção escandalosa

entre os beneficiários dos Programas de inclusão vigentes:

“[...] No que se refere aos alunos optantes pelo INCLUSP, nota-se que a

maior parte dos matriculados possui renda familiar entre 3 e 5 salários

mínimos. Todavia, é curioso notar que há alunos beneficiados pelo INCLUSP

cuja renda familiar é superior a 15 salários mínimos. No vestibular para

ingresso no ano de 2015, por exemplo, 74 alunos beneficiados pelo

INCLUSP declararam ter renda familiar entre 15 e 20 salários mínimos109,

enquanto 66 declararam possuir renda familiar superior a 20 salários

mínimos” (VENTURINI, 2015, p. 14).

Apesar de não termos dados que possam analisar a fundo o beneficiamento de

estudantes com renda familiar exorbitante uma possível explicação é que o INCLUSP

estaria a beneficiar os alunos das melhores escolas públicas de São Paulo.

Os docentes, até 2014 (corte temporal da presente pesquisa), nunca

reivindicaram mudanças no INCLUSP a fim de incluir os estudantes pobres, mas

parece que dado o PIMESP ter colocado a possibilidade de incluir estudantes negros e

indígenas, de imediato os estudantes pobres passaram a ser objeto de preocupação dos

docentes e não só: eles deveriam ser os únicos beneficiários da política. Em nossa

leitura, os docentes tinham pré-disposição em flexibilizar a meritocracia quando essa

visasse atender a estudantes egressos de escolas públicas, mas não estudantes negros e

indígenas, evidenciando a negação do racismo, o que nos permite afirmar que a prática

109 O salário mínimo vigente no ano de 2015 era de R$724,00.

232

política da fração da classe média alta e branca é informada também por sua posição

racial na hierarquia do trabalho.

A negação das categorias de raça e racismo é central para compreender o

posicionamento dos docentes da USP, que parecem encontrar na defesa de critérios

econômicos seguida da preocupação com a qualidade da escola pública as justificativas

para afastarem o “perigo da degeneração”:

“[…] Por fim, a congregação entende que tais iniciativas, por mais

relevantes que sejam, não podem sob qualquer hipótese elidir um fato

inegável: a crise que instalou no ensino básico. Boa escola, ensino afinado

com nossa contemporaneidade, para ricos e pobres, para brancos, negros,

pardos e índios aumentaria o número de alunos que concluem o ensino

fundamental e médio- reconhecidamente um dos maiores filtros ao acesso à

universidade- e certamente dispensariam o recurso às políticas

compensatórias […]” (FACULDADE DE FILOSOFIA, 2013).

“[…] Em resposta […] o Departamento […] se manifesta sobre o PIMESP

da seguinte forma: Prosposta ara alunos oriundos de Escolas Públicas,

quesito sócio-econômico, aprovada. Proposta para alunos oriundos de

Escolas Públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas, quesito sócio-

étnico (racial), reprovada […]” [grifos e destaques vindos do original]”

(Manifestação do Departamento de Prótese. Cf. FACULDADE DE

ODONTOLOGIA, 2013).

“[…] Ainda, observando os resultados positivos […] com os programas

INCLUSP e PASUSP se manifesta favorável ao aprimoramento e extensão

destes programas, ressaltando que os critérios para ingresso no ensino

superior devem ser embasados em mérito acadêmico e não em quaçquer

critério que beneficie uma ou outra classe étnica” (ESCOLA DE

ENGENHARIA, 2013).

Importante dizer que dentre os documentos analisados, apenas dois utilizam o

termo discriminação negativa para referir à proposta do ICES, mas nenhum dentre eles

citam a palavra racismo, termo amplamente utilizado pelo movimento negro paulista

para referir-se ao ICES e a proposta do PIMESP como um todo. Se de um lado

podemos afirmar que a ideologia da classe média branca, atravessada pela defesa da

meritocracia aliada ao igualitarismo negam a possibilidade de enunciar o racismo, pois

reduzem o antirracismo ao antiracialismo (GOLDBERG, 2002), por outro, a

invisibilização e negação da categoria social cor/raça e a sua substituição por egressos

da escola pública são dispositivos sob os quais o racismo institucional operacionaliza

práticas que impedem que negros e indígenas possam acessar à universidade.

Os docentes manifestaram apoio à manutenção das políticas inclusivas em curso

(INCLUSP e PASUSP), escolha que se justificaria pela desconfiança acerca da

capacidade do PIMESP em assegurar os critérios meritocráticos:

233

“[…] Assim, fazendo um levantamento histórico dos resultados obtidos dos

programas de inclusão e permanência já implementados pela USP, as

tabelas seguintes expressam os dados da EESC [Escola de Engenharia de

São Carlos] […]. Esses resultados devem ser divulgados à sociedade e

comunidade acadêmica , comprovando que um programa rígido de cotas

não seria necessário […] Ainda, observando os resultados positivos

alcançados nos últimos anos com os programas INCLUSP e PASUSP, a

EESC se manifesta favorável ao aprimoramento e extensão destes

programas […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).

“[…] o Departamento indica alguns pontos […] fortalecer o INCLUSP e

PASUSP que tem critérios claros de avaliação sequencial durante o ensino

médio […]” (Manifesto do Departamento de Genética. Cf. FACULDADE

DE MEDICINA, 2013).

“ […] Os programas INCLUSP e PASUSP têm apresentado bons resultados

[…] A porcentagem de estudantes de escolas públicas acima de 20% é

observada mesmo nos cursos de alta concorrência, como é o caso do curso

de Medicina. Portanto, o aperfeiçoamento dos programas INCLUSP e

PASUSP poderia certamente aumentar de maneira significativa a inclusão

de estudantes de escolas públicas […]” (Manifestação da Comissão de

Graduação. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013)

“ […] considerando a existência de um programa de inclusão social na USP

(INCLUSP) que propiciou 30% das 10. 733 vagas oferecidas em 2012

preenchidas por alunos oriundos da escola pública […] se o programa

estiver funcionando a contento, qual a necessidade de implementar uma

nova estratégia com tantos itens obscuros? […] (Manifestação do

Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013)

O Programa de Inclusão Social da USP (INCLUSP) e o Programa de

Avaliação Seriada (PASUSP) foram criados em 2006 e 2008 respectivamente por

iniciativa da Universidade e talvez tenha tido influência das discussões realizadas na

UNICAMP iniciadas em 2004 e que culminaram na criação do primeiro programa

de ação afirmativa vigente em uma universidade estadual pública de São Paulo. Não

é coincidência, portanto, que a USP também tenha optado pelo modelo de

bonificação.

O INCLUSP, inicialmente concedia o bônus de 3% em ambas às fases do

vestibular para candidatos que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio

público em escolas da rede pública municipal, estadual ou federal (os critérios de

renda e raça estavam fora do desenho da política). Embora tivesse o foco no egresso

da escola pública, o Programa nos primeiros anos não conseguia atingir a meta

(50% dos ingressantes deveriam ser de escola pública): em 2006, os egressos de

escola pública representavam 24,7% do total de matrículas, passando a 26,7% em

2007 e apresentando uma queda em 2008, onde as matrículas de egressos de escola

pública corresponderam a 26,3% do total (PROGRAD, USP, 2008, p. 4).

234

Constatada a incapacidade do Programa em incluir jovens de escola pública, a

USP instituiu um Grupo de Trabalho ligado à Pró-reitoria de graduação em 2008

que dentre outras observações, apontou que:

“[...] Dentre as possíveis hipóteses para explicar a diminuição do número de

candidatos no vestibular das universidades públicas paulistas, em especial

os oriundos do ensino público, estão a criação de novos campi da

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Guarulhos e Diadema, a

criação da Universidade Federal do ABC (UFABC) e, principalmente, a

corrida dos alunos de Ensino Médio público ao programa de bolsas para o

ensino superior privado concedidas pelo governo federal (PROUNI). A

essas explicações soma-se a cultura de auto-exclusão dos estudantes do

Ensino Médio público em relação aos vestibulares das mais concorridas

universidades públicas” (USP-PROGRAD, 2008, p. 4-5).

Admitindo que de fato o contexto tenha impactado o número de inscritos oriundos

das escolas públicas, nos parece que recorrer ao contexto é mais uma forma de

protelação do enfrentamento da questão central: os mecanismos de seleção da USP são

altamente excludentes e seus programas inclusivos passam ao largo do enfrentamento

das injustiças reforçadas pelos mecanismos de seleção daquela universidade. Mesmo

com a instalação de outras universidades, como referido no documento, a presença de

estudantes de escolas públicas não chegava a 30% do total de matrículas mesmo com o

programa de bonificação em curso e antes das novas universidades mencionadas no

trecho acima. Assim como também é lamentável que novamente as vítimas do sistema

sejam narradas pelos docentes como as culpadas pela situação na qual são relegadas e se

coloque a culpa em uma “cultura de auto-exclusão” que seria característica daqueles

jovens.

O Grupo de Trabalho após analisar a insuficiência do Inclusp, elaborou o PASUSP

que consistia em uma prova elaborada pela USP, a ser aplicada nas escolas que

optassem por participar do Programa e os estudantes que escolhessem participar do

PASUSP teriam bônus adicional de até 3% no vestibular mas proporcional ao resultado

obtido na prova. O PASUSP passou a ser aplicado no vestibular de 2009. Outra

modificação realizada para o vestibular de 2009 foi acréscimo de bônus aos estudantes

com bom desempenho no ENEM com acréscimo de 6% em cima da nota total do

vestibular.

Ainda assim, as modificações não foram capazes de aumentar as matrículas de

alunos egressos de escolas públicas: o percentual total de alunos que cursaram o ensino

médio integralmente em escolas públicas e se matricularam na USP no período de 2007

235

a 2015 se manteve em torno de 27% e o de alunos de escolas privadas representavam

68% do total de matrículas (VENTURINI, 2015, p. 12).

A ineficácia dos programas adotados pelo USP era de conhecimento dos

docentes (dado a publicação de notícias sobre o assunto, as reuniões no Conselho

Universitário para tratar do tema, as denúncias feitas pelos movimentos sociais sobre o

caráter limitador dos programas), entretanto, a insistência por parte dos docentes em

mantê-los parecem ignorar todo esse contexto.

Como é possível explicar a defesa pela manutenção de programas insuficientes

mesmo que fosse sabido, à época, que os resultados dessas políticas estivessem a

apontar para a insuficiência daqueles modelos no que tange ao aumento de negros e

indígenas no corpo discente? Em nosso entendimento, a defesa dos programas de

bonificação e a recusa ao PIMESP (também pela proposição de cotas) evidenciam os

novos mecanismos de controle da sobrecertificação e manutenção da hierarquia racial

do trabalho. Nesse ponto adentramos no terceiro argumento dos docentes: a defesa da

meritocracia. Analisemos os trechos a seguir:

“[…] O PIMESP se propõe a ser um programa de Inclusão com Mérito, o

que pressupõe que haja alguma preocupação com o perfil dos cotistas

futuros e ações para recuperar as deficiências e as lacunas que, porventura,

o sistema de educação básica tenha deixado, [grifo nosso] preocupação está

aliás, que, se posta deveria ser geral e não restrita aos cotistas [...] Dado o

problema de fundo, que é a considerável falta de vagas públicas na educação

superior paulista, o perfil dos cotistas e as necessidades de intervenção dele

decorrente, dependerá muito do curso escolhido. É preciso insistir que

eventuais programas de recuperação devem depender de cada curso, tanto

por causa das eventuais deficiências apresentadas pelos ingressantes nos

diferentes cursos, como pelas exigências destes mesmos cursos”

(ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA USP, 2013).

“[No PIMESP] Como são separados os alunos cotistas dos não-cotistas no

vestibular? O que ocorrerá se não existirem alunos egressos do College em

condições de ingressar na Universidade? […]” (ESCOLA DE

ENGENHARIA, 2013).

“[…] foi considerado que a proposta como está confeccionada acarretaria

uma perda na qualidade dos alunos selecionados que se refletiria, daqui há

alguns anos, sobre todos os esforços que as universidades paulistas têm

feito para atingir o nível de excelência mundial […]” (Manifestação do

Departamento de Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013)

A desconfiança dos ingressantes se converte, portanto, em um mecanismo que

mascara o desinteresse em ampliar o acesso à Universidade, revelando, em nossa

interpretação, concepções acerca dos destinatários que os essencializa na categoria de

seres incompletos, pois seriam despreparados, desqualificados, reificando o imaginário

dos possiveis destinatários das políticas com modalidade de reserva de vagas étnico-

236

raciais. Nesse processo que visa a manutenção do lugar de reprodução da fração da

classe média alta e branca, via controle da sobrecertificação, a defesa do mérito toma

proporções que ao fim do debate ficamos com a sensação que o mérito é tomado pelos

docentes como um fim em si mesmo, subvertendo a razão de existir das políticas

afirmativas. Analisemos os trechos a seguir:

“[…] A proposta precisa de ajustes e o Departamento indica alguns pontos

que carece de mais debates e cumprimento para que a inclusão por mérito

seja a principal meta da proposta […]” (Manifestação do Departamento de

Genética. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).

“[…] outro grupo considera que o “college”, se bem estuturado, pode ser um

caminho de inclusão, pois reforça a meritocracia […]” (FACULDADE DE

SAÚDE PÚBLICA, 2013).

“[…] Em conclusão a Congregação […] manifestou-se favorável ao

PIMESP destacando que a grande virtude desta proposta é a inclusão com

mérito […]” (INSTITUTO DE QUÍMICA, 2013).

A defesa do mérito aparece também atrelado ao mito da democracia racial e

nesse ponto chama atenção como raça e classe se conformam na ideologia da fração da

classe média alta e branca paulista, evidenciando como a estrutura racial informa a

hierarquia do trabalho:

“[…] a maioria dos membros do conselho não é favorável ao sistema de

cotas raciais. Houve concenso de que são inadequadas e que podem ser

inclusive prejudiciais, em virtude da dificuldade da aplicação de

classificações na população do país, que é muito miscigenada; além disso,

podem levar a distorções no processo da auto-identificação e estimular a

discriminação racial ou social dos estudantes […] houve concenso que as

cotas sociais seriam mais adequadas, pois levariam em conta a falta de

acesso à educação de qualidade por motivos enconômicos, um critério mais

justo de ser determinado do que o de raças […]” (Manifestação do

Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE

BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] Quanto aos princípios e hierarquização da educação no Brasil […] os

critérios de inclusão com base étnica merecem críticas, uma vez que

esbarram em problemas de reconhecimento preciso dos ingressantes e,

talvez, até discriminação racial, agravada no transcorrer do curso, pelo

maior índice de reprovação, em nossa opinião, esperado entre os PPIs

provenientes da EP [Escola Pública]” (Manifestação do Departamento de

Oftalmologia, Otorrinoralingologia e Cirurgia de cabeça e pescoço. Cf.

FACULDADE DE MEDICINA, 2013).

Os trechos supracitados evidenciam a força da crença democracia racial e da

mestiçagem no imaginário que orienta a ação política da fração da classe média alta e

branca ao mesmo em que expõem o imaginário que inferioriza negros e indígenas,

ingressantes pelo sistema de reserva de vagas, ao se supor que deles viriam os maiores

237

índices de reprovação e por isso sofreriam mais discriminação. Uma narrativa que

naturaliza a desumanização de grupos historicamente oprimidos, mas que é corrente na

sociedade brasileira a tal ponto que não nos chocamos com esse tipo de afirmação

preconceituosa, para dizermos o mínimo. Nesse sentido, em decorrência da importância

social dessa construção ideológica nos parece problemático e inadequado basear a

reflexão sobre a resistência dos docentes das universidades estaduais paulistas às cotas

apenas do ponto de vista da posição de classe dos docentes. É preciso situar essa

resistência também como negação do racismo e da estrutura que o mantém.

Consideramos importante refletir porque para alguns estudiosos das políticas de

ação afirmativa, a explicação para a preferência de algumas universidades por políticas

afirmativas com recorte social seria reflexo da “maior sensibilidade à questão da

pobreza” (PAIVA & ALMEIDA, 2010). Estamos de acordo que sim, a pobreza parece

ser mais inteligível para as classes dominantes, entretanto para nós o mais importante

frente a essa constatação, seria perguntar porque a pobreza é reconhecida como

elemento que traz impeditivos em termos de acesso pleno a direitos mas racismo sequer

é considerado como uma opressão existente. Os estudos acima mencionados parecem

não problematizar o suficiente como as lógicas que orientam a formulação de políticas

públicas também estão atravessas e são informados pelo racismo.

A crença na democracia racial, a negação do racismo e a postura antirracialista,

em nosso entendimento, balizaram a rejeição às cotas étnico-raciais:

“[…] Nossos docentes concordaram com a proposta de destinar 50% das

matrículas para os estudantes oriundos da escola pública. Contudo não

concordaram com o percentual de PPI, uma vez que a classificação da raça

no Brasil carece de critérios objetivos. A autodeclaração do aluno para uma

ou outra raça, além de implicar em uma subjetividade, pode implicar em

fraudes. Assim, nosso grupo propõe que tais vagas sejam destinadas a

qualquer estudante da escola pública que tenha sido selecionado por meio de

meritocracia, independente de sua raça, etnia ou condição social […]”

(Manifestação do Departamento de Fonoaudiologia. Cf. FACULDADE DE

ODONTOLOGIA, 2013).

Além de recorrer a algumas afirmações que ignoram todas as contribuições

advindas das ciências sociais sobre a questão racial no Brasil, a posição do corpo

docente da USP deixa evidente a existência de um dúbio posicionamento sobre a

implementação das ações afirmativas: se por um lado os docentes aceitam flexibilizar a

ideologia meritocrática, aceitando a instituição de reserva de vagas para alunos oriundos

da escola pública, por outro renegam esse dispositivo se ele visa beneficiar pretos,

pardos e indígenas. O racismo também estrutura lugares de privilégio, pois fica

238

evidente, a partir dos posicionamentos dos docentes, que as políticas de ação afirmativa

só são vistas como inadequadas quando aquelas focam na inclusão da população negra e

indígena.

O entendimento dos docentes de que as políticas compensatórias deveriam

existir apenas porque os níveis de qualidade do ensino básico e médio públicos

impossibilitariam chances reais dos estudantes do sistema público competirem em

condições de igualdades com os demais, além de ocultar os motivos reais dessa

exclusão (organização do sistema capitalista e como interage com o racismo),

escamoteia o fato de a classe média ter na realidade interesse na falência do sistema

público de ensino, como afirma Saes (2008).

A classe média, na segunda metade do século XIX, esteve envolvida na

construção das instituições públicas de ensino buscando nela sua valorização em termos

econômicos e sociais. Tais instituições, ao oferecerem ensino a todos de modo

indistinto, apresentam o desempenho escolar superior dos estudantes do ensino privado

como resultado do mérito pessoal. A instituição do ensino público serve, portanto, para

construir uma falsa idéia de igualação e nivelamento entre desiguais (SAES, 2008). Na

medida em que esconde o real motivo do sucesso daqueles alunos, a saber, pela

superioridade econômica em relação aos estudantes proletários, a Escola Pública se

constitui como o principal recurso ideológico da alta classe média, como podemos

perceber a partir dos trechos de algumas atas a seguir:

“Tão importante quanto democratizar o acesso à Universidade é

continuarmos a reivindicar a melhoraria do Ensino básico e Ensino Médio

que foram sucateados nas últimas décadas” (ESCOLA DE ENGENHARIA,

2013).

“[…] Os alicerces da Educação Básica no sistema público deveriam ser

priorizados, pois são [sic] um mecanismo essencial para garantir iguais

oportunidades de acesso ao ensino superior” (INSTITUTO DE CIÊNCIAS,

2013).

“[…] De modo geral as manifestações convergiram para o fato de que o

equilíbrio entre os percentuais de participação sócioétnica na população do

Estado e as matrículas no ensino superior nas Universidades Públicas e no

Centro Paula Souza só ocorrerão quando houver a valorização e o

fortalecimento do ensino fundamental e médio, a partir de maiores

investimentos e melhoria da qualidade de ensino e que esse deveria ser o

foco de qualquer programa que vise a inclusão, com mérito, no ensino

superior” (ESCOLA SUPERIOR, 2013).

“[…] O DB [o Departamento de Botânica] se posiciona totalmente contrário

à implementação do PIMESP na universidade, tendo em vista que não

considera adequada essa medida, sem que haja, uma forte ação de

recuperação da qualidade do ensino público fundamental e médio. São

nesses níveis que ocorre a grande diferença de qualidade entre o ensino

239

público e o particular, fazendo com que o aluno de escola pública tenha

menos chance de ingressar […]” (Manifestação do Departamento de

Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] A presente proposta visa encobrir um problema grave de educação dos

níveis fundamental e médio de uma forma extremamente simplista. Todo o

cidadão merece ter uma educação adequada que o possibilite se inserir

ensino superior e no mercado de trabalho de forma competitiva […] De

qualquer forma, o problema principal que parece sair do foco com a

discussão das cotas, é que a grande maioria da população tem acesso a uma

educação pública que na maior parte dos casos é medíocre e insuficiente”

(Manifestação do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Cf.

INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] concessão de mais investimentos, por parte do poder público, para

melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio, de modo a preparar

os estudantes que frequentam tal universo, tanto em relação ao acesso ao

ensino superior de qualidade, quanto a um desenvolvimento intelectual de

excelência […]” (ESCOLA DE EDUCAÇÃO FÍSICA, 2013).

“[…] foi de comum acordo entre os presentes a opinião de que o mais

importante para a educação seria o governo investir na educação de base, o

que automaticamente promoveria a inclusão de todas as crianças brasileiras,

independente de raça, etnia e condição social […]” (Manifestação do

Departamento de Fonoaudiologia. Cf. FACULDADE DE

ODONTOLOGIA, 2013).

“[…] O concenso sobre as limitações do ensino público- brasileiro e

paulista-e suas consequências justifica a pertinência de propor ao Governo

de São Paulo a elaboração de um programa estratégico de recuperação do

Ensino Público Paulista […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA, 2013)

“[…] O Conselho desse departamento considera de suma importância

políticas de inclusão social que efetivamente levem melhorias no acesso, de

todas as classes sociais e raças, ao ensino universitário brasileiro. Não

concordamos, no entanto, que se tente resolver com programas mal

estruturados e de êxito duvidoso, problemas relacionados ao ensino médio, e

fundamental, do estado de São Paulo […]” (Manifestação do Departamento

de Fisiologia. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).

“[…] Este Instituto reconhece o mérito da proposta, porém, o projeto não

resolve o problema de reestruturação do ensino médio, possibilitando que os

candidatos cheguem com nível adequado à Universidade […]”

(INSTITUTO DE ASTRONOMIA, 2013).

A qualidade do ensino público como principal, senão único, motivo pelo qual

pessoas negras e indígenas não conseguem acessar a universidade traz à tona o fato de

que “os que vencem a disputa numa ordem social competitiva precisam lidar não apenas

com o desafio de como continuar a ser um vencedor, mas também de justificar

moralmente os critérios que validam a disputa” (CAVALCANTE, 2018, p. 113). Nesse

sentido reiterar a defesa da melhoria do ensino básico público evidencia o anseio da

fração da classe média alta e branca em dar contornos igualitários à corrida pela

ocupação dos espaços de poder, como é o caso das universidades públicas.

240

Gostaríamos de despender ainda algumas reflexões sobre a manifestação da

Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

que produziu um extenso documento analisando o PIMESP para que possamos

compreender as várias nuances acerca da ideologia da classe média em torno da

discussão sobre o racimo. Os argumentos da FFLCH questionam o Programa de

Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista, alegando que o referido

Programa, tal qual como fora apresentado pelo Conselho de Reitores das Universidades

Estaduais Paulistas (CRUESP), não priorizava os objetivos das políticas de ação

afirmativa, mas sim propunha um novo sistema de educação superior público com a

introdução de um curso preparatório anterior à entrada na universidade, atrelando à

conclusão e bom desempenho nesse curso ao acesso à universidade por parte dos

cotistas. Para a referida Congregação isso seria um tipo de discriminação negativa,

contrariando o que estaria previsto na Constituição, que permitiria apenas discriminação

positiva.

A Congregação também problematizou os efeitos em termos de inclusão de

pretos, pardos e indígenas (PPI’s) do INCLUSP e do Programa de Avaliação Seriada

(PASUSP), argumentando que a falta de análises rigorosas dos dados sobre, por

exemplo, qual vinha sendo a proporção de PPI’s que estava sendo contemplada pelos

programas supracitados encobrem os efeitos reais daqueles programas. Entretanto, a

problematização da Congregação em torno do PIMESP cessa por aqui.

Ao longo do documento produzido pela FFLCH, a crença na meritocracia

atrelada ao não questionamento do vestibular, acaba por reiterar a lógica que questiona a

competência dos beneficários das políticas de reserva de vagas, lógica que esteve

presente nas manifestações das demais congregações:

“Como é bem sabido, no entanto, essas políticas [de cotas] não fazem tábula

rasa da qualificação acadêmica, apenas alteram o padrão de seleção dos

candidatos [...] Com a política de cotas, a competição por vagas

permanecerá– e nos cursos mais procurados, permanecerá muito forte –,

porém com efeitos menos injustos do que os verificados hoje” (FFLCH,

2013).

“[…] Caso o sistema de cotas venha realmente a ser implantado, seria

interessante um sistema que possibilitasse um apoio a alunos com

deficiências de formação […]” (Manifestação do Departamento de Genética

e Biologia Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] Como serão selecionados os estudantes que cursarão o ICES […] o

documento indica que todos os alunos deverão ter cursado ensino médio em

escolas públicas, mas haverá um número obrigatório de estudantes PPI, o

que indica que a seleção não será apenas por mérito […] ” (INSTITUTO DE

BIOCIÊNCIAS, 2013).

241

“[…] A utilização do ensino à distância proposto pelo PIMESP, para

nivelamento intelectual de alunos formados em escolas mais fracas, não é

adequada, pois não são só conhecimentos que são necessários, mas um

processo mais amplo de inclusão social e cultural e de convivência no

ambiente acadêmico […]” (FACULDADE DE SAÚDE, 2013).

Embora duas manifestações tenham questionado a existência do vestibular (em

uma, chega-se até a sugerir a abolição desse mecanismo na seleção, mas apenas para

alguns cursos), ainda assim o tom do discurso da maior parte as atas analisadas aponta

para a naturalização e defesa da existência do vestibular, sem qualquer tipo de

questionamento desse instrumento, que é em si um mecanismo que assegura a

monopolização das vagas por parte daqueles que tiveram condições financeiras para

prepararem-se para a prova. Na realidade, na maioria dos documentos analisados para a

presente tese, há a confirmação de que esse meio seria o mais adequado para selecionar

os melhores e que inclusive condiz com a autonomia das universidades:

“[…] O vestibular para acesso às universidades públicas, ainda que com

imperfeições, é um método que parece mais justo, pois possibilita o

reconhecimento do mérito, livre de protecionismo ou de outros tipos de

influências […]” (Manifestação do Departamento de Genética e Biologia

Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] O programa [PIMESP] tal qual apresentando, não tem nenhuma

vinculação com os processos de seleção de candidatos às vagas das três

universidades do estado de São Paulo. Cada uma delas, exercendo o princípio

da autonomia universitária a elas outorgada em 1988, tem seu próprio sistema

de avaliação dos candidatos e seus próprios órgãos que o implementam.

Apesar de os vestibulares não serem unificados, os três são convocados por

editais públicos que garantem direito de inscrição no concurso a todos os

cidadãos do país, e não apenas aos residentes no Estado, que tenham

completado o ensino médio. Frente a essa constatação fica evidente que o

PIMESP provocará mudanças no sistema de ingresso […]” (FFLCH, 2013).

“[…] a proporção de alunos oriundos do sistema público (escolas públicas,

50%) seja feita a partir dos alunos aprovados para a segunda fase do

vestibular da FUVEST, uma vez que essa primeira avaliação é indispensável

para o aluno cursar o ensino superior. Ou seja, os alunos não aprovados para

a segunda fase não teriam condições mínimas (requisitos mínimos) de serem

matriculados em um curso de ensino superior. Assim na segunda fase do

vestibular da FUVEST, seria feita a distribuição de vagas de acordo com o

sistema proposto para cotas […]” (Manifestação do Departamento de

Ciências Biológicas. FACULDADE DE ODONTOLOGIA, 2013).

“[…] Que sejam feitas, com urgência, alterações no Vestibular da USP, que

permitam selecionar com maior eficiência os alunos mais capacitados a

serem acolhidos em programas de ensino superior de alto nível […]”

(INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS, 2013).

O debate suscitado entre os docentes na USP parece indiferente às discussões na

sociedade brasileira sobre racismo e sobre a finalidade das políticas afirmativas,

242

chegando mesmo a reproduzir argumentos de caráter racista. Tais narrativas remetem ao

que afirmou Ianni (2004):

“[...] São estereótipos, signos, símbolos mobilizados ao acaso das situações

elaboradas no curso de anos, décadas, séculos, com os quais o “branco”,

“dolicocéfalo”, “europeu”, “ariano”, “norte-americano”, “ocidental” explica,

legitima, racionaliza ou naturaliza a sua posição e perspectiva privilegiadas, de

controle de instrumentos de poder. Nesse sentido é que essa ideologia é uma

técnica de estigmatização recorrente, reiterada em diferentes formulas e

verbalizações, desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma. Sob vários

aspectos, essa ideologia racial é transmitida por gerações e gerações, através

dos meios de comunicação, da indústria cultural, envolvendo também sistema

de ensino” (idem, p.24).

Gostaríamos de analisar o que categorizamos como “defesa da diversidade

funcional” pelos docentes a partir das atas. Nesse sentido, percebemos que ao

reivindicar a integração das “diferenças”, os docentes falam da diversidade com

características desejáveis e nesse sentido incluir adquire a conotação de “atrair

talentos”:

“Foram também sugeridas medidas que poderiam certamente contribuir para

facilitar o ingresso na USP de talentos de todo o país, particularmente

aqueles com condições sociais e econômicas mais precárias [..] 1) Muitos

docentes entendem que o processo de ingresso no ensino superior público

no estado deve ser repensado. Um processo de seleção unificado, quer seja

em nível estadual ou federal, poderia beneficiar enormemente uma camada

significativa da população que não tem recursos financeiros […] esta

medida também poderia gerar um impacto positivo para as universidades,

particulamente nos cursos com baixa concorrência, pelo potencial de atrair

mais talentos, particulamente nos cursos com baixa concorrência, pelo

potencial de atrair mais talentos, particularmente de outros estados; 2)

Iniciativas para identificar e apoiar inclusive a permanência na USP de

potenciais talentos, em nível nacional, também foram descritas por muitos

docentes como necessárias[…]” (INSTITUTO DE CIÊNCIAS, 2013)

“[…] Uma sugestão interessante foi que fosse feita a descoberta de

“talentos” já no ensino médio, possivelmente por meio dos programas já em

andamento […] estes jovens teriam, então, uma preparação mais ampla e

aprofundada pela própria USP para concorrer a uma de suas vagas […]”

(FACULDADE SAÚDE, 2013)

“[…] Tendo em vista a importância de atrair e capacitar o máximo de

talentos existentes na escola pública, nas famílias de baixa renda e no grupo

PPI [...] a USP deverá investir paralelamente […], em formas de

qualificaçao pré-universitária que visem a inclusãos desses grupos […]”

(INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS, 2013).

Na concepção dos docentes o programa afirmativo serve para buscar “atrair

talentos”. Nesse contexto, a diversidade pode ser considerada como objeto de políticas

de inclusão desde que os mecanismos que supostamente asseguram o mérito sejam

mantidos. A defesa da diversidade enquanto circunscrita como demanda do capitalismo

neoliberal é mais uma das armadilhas da lógica integracionista que parece orientar a

243

posição dos docentes na medida em que essa “bandeira”, na realidade, não desafia os

pressupostos que reificam os grupos racializados assim como reitera a concepção de

diversidade como apenas um “recurso” dentro de uma ordem capitalista, mantendo

intacta a estrutura de classe e raça. O apelo à diversidade nesse contexto, portanto, está

muito mais relacionado à proteção de privilégios do que ao desmantelamento de lógicas

desumanizadoras.

A “busca por talentos” sufoca os conflitos e mascara o racismo, esvaziando a

discussão sobre raça enquanto categorização social que por sua vez está refletida no

acesso desigual à universidade. E sobre esse ponto, gostaríamos de fazer duas

considerações.

Em primeiro lugar, a “busca por talentos” revela o total esvaziamento dos

objetivos das políticas de ação afirmativa, na medida em que a preocupação dos

docentes não está focada em discriminar positivamente para ampliar o acesso dos

grupos “minoritários” do estado de São Paulo, mas sim em recrutar os “melhores”,

mesmo que isso implique em fazer ajustes na forma de ingresso para ir buscar “os

talentos” até mesmo em nível nacional, como sugere a proposta do Instituto de Ciências.

Não esqueçamos que a discussão em torno do PIMESP tinha como foco debater

políticas afirmativas para incluir a população negra e indígena do estado de São Paulo.

Em segundo lugar, a “busca por talentos” evidencia as armadilhas de políticas

sob o aparato da gramática neoliberal da diversidade tendo em vista que a diversidade

só é desejável na medida em que está dentro dos critérios definidos a partir de quem

detem o poder e só é aceita se não desafiar os mecanismos que possibilitam a

reprodução da estrutura capitalista. E isso implica na manutenção de privilégios com

base em classe e raça.

Por fim, gostaríamos de analisar as reflexões dos docentes acerca do ICES, que

por sua vez foi alvo de duras críticas pelos docentes. Mas quais teriam sido o teor das

críticas? Nesse sentido, gostaríamos de analisá-las a partir de dois blocos: o primeiro

bloco de manifestações contrárias ao ICES pelas lacunas na proposta do PIMESP (por

deixar em suspeição a capacidade do Instituto em assegurar a distinção do espaço da

universidade) e o segundo bloco que rejeitou (pelo receio de que o ICES pudesse tirar

da Universidade o controle sobre o processo de sobrecertificação). Analisemos o

primeiro bloco de manifestações:

“[…] Sabemos que a origem dessa desigualdade no acesso á universidade

pública está no ensino fundamental e médio deficientes. Portanto, programas,

como o proposto [ICES] são paliativos e deveriam vir acompanhados de políticas

244

públicas, não somente da valorização efetiva dos docentes envolvidos no ensino

básico, como das condições estruturais desses cursos. Além disso, visto que há

uma deficiência no mercado de técnicos qualificados, como diariamente os

veículos de comunicação alardeiam, a prioridade deveria ser se concentrar na sua

formação com cursos de nível médio profissionalizante […]” (Manifestação do

Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] Muitas manifestações apontam para problemas propostos

especificamente para o modelo apresentado para o College: uma vez que:

apresenta disciplinas relacionadas, por exemplo, a empreendedorismo, trabalho

em equipe e gestão do tempo que não parecem se relacionar com o objetivo de

preparar os alunos para o ingresso na universidade, mas sim com sua colocação

no mercado de trabalho […] o college poderia ser transformado numa

universidade virtual, de acesso mais amplo e com características atraentes de

formação em várias especialidades, contemplando, por exemplo, um período de

com [sic] formação profissionalizante mínima [nos moldes com está sendo

proposto] e um período opcional complementar de formação plena. Nesse caso,

seria preservado o sistema atual de seleção […]” (ESCOLA DE

ENGENHARIA, 2013).

“[…] Que o ICES (“college”), na forma proposta, seja rejeitado como

mecanismo de ingresso na USP, tendo em vista que sua conceituação e o

currículo proposto não caracterizam uma preparação para o ingresso na

universidade, mas antes uma formação técnica, de nível médio e não superior,

aparentemente voltada para o mercado de trabalho, e que, ainda, o caráter não-

presencial das aulas é inadequado para os fins propostos [...]” (INSTITUTO DE

GEOCIÊNCIAS, 2013).

“[…] antes de aceitar qualquer compromisso, é fundamental esclarecer qual o

papel das universidades públicas estaduais na mecionada parceria com a

UNIVESP para o oferecimento dos cursos superiores sequenciais na construção

do ICES[…]” (Manifestação do Departamento de Biologia Celular e Molecular

e Bioagentes Patogênicos. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).

“[…] A criação do ICES pode se considerada experimental em nosso ensino.

Sem organizar o que já tem, cria-se outra modalidade, com grandes riscos de

também cair nas malhas da indigência e sucateamento […] Outro grande

problema com a proposta de criação do ICES é a idéia de se utilizar a infra-

estrutura das universidades, das ETECS e das FATECS […] e a falta de clareza

sobre como será composto o corpo docentes […] Quanto ao corpo docente em

particular, entendemos que a USP não está preparada pata tal desafio. Nossa

competência como professores é bastante diversa daquela exigida para a

complementação do ensino médio supostamente deficiente […]” (Manifestação

do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia. Cf. FACULDADE DE

MEDICINA, 2013).

Nesse primeiro bloco de manifestações, o receio dos docentes em relação ao

ICES esteve atrelado à possibilidade do Insituto converter o espaço da universidade em

espaço de formação de mão-de-obra barata à disposição das dinâmicas de mercado,

confrontando a posição de classe média dos docentes, impelindo-os a “defender os

[seus] interesses [e] […] valorizar-se econômica e socialmente aos olhos da classe

capitalista, em detrimento da classe dos trabalhadores manuais” (SAES, 2007, p. 112).

245

O segundo bloco de manifestações contrárias ao ICES diz respeito ao receio dos

docentes na perda do controle do processo ampliação do acesso à USP. Nesse sentido,

os docentes apelam ao papel específico que teria a universidade como instituição

produtora de conhecimento:

“[…] A eventual criação de uma nova instituição estadual de ensino superior,

de caráter semi-presencial, bem como a eventual criação de novas modalidades

de organização do ensino superior, devem ser objeto de avaliação e debate

específicos, sem se confundir com o tema, importante e estratégico, das

Políticas de ação afirmativa em geral e das cotas em particular” (INSTITUTO

DE ARQUITETURA, 2013)

“[…] É papel da universidade resolver as deficiências do ensino fundamental e

médio da escola pública? Se sim, por que não incluir uma maior participação da

universidade no ensino médio, na formação de professores, desenvolvimento de

projetos que promovam a inclusão, assessorias de ensino, atividades

laboratoriais e outras […] (Manifestação do Departamento de Ginecologia. Cf.

FACULDADE DE MEDICINA, 2013)

“[…] Então o PIMESP precisaria vir acompanhado de outras ações […]; a USP

tem muito a contribuir com isso, com ações de: […] Assessoria às secretarias de

educação a às escolas públicas de ensino médio, visando capacitar docentes,

discutir currículos, avaliar implementação, etc […]” (Manifestação do

Departamento de Medicina Social. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).

“[…] Outras Manifestações foram registradas e reafirmaram a importância das

universidades (em especial a USP) na formação de pessoas das mais diferentes

áres que atuaram- e ainda atuam- na formulação de políticas públicas nos níveis

municipal, estadual e federal […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).

Após ampla rejeição por parte dos docentes acompanhada de forte mobilização

do movimento negro, o PIMESP foi rechaçado e a pró-reitoria da USP apresentou em

maio de 2013 uma proposta de reformas contida no “Plano de recrutamento

Institucional de Capacitados”. O plano era uma recomendação do PIMESP para que as

universidades recrutassem os 60% dos alunos referentes à meta de inclusão de alunos

egressos da escola pública (os outros 40% seriam atingidos pelo ICES) e dentre esses

negros e indígenas. Segundo o que consta na proposta do PIMESP, o objetivo do plano

de recrutamento era:

“[...] Implantar, em cada Universidade, os Planos Institucionais de Recrutamento

de estudantes capacitados e participantes dos grupos sociais no regime de metas:

ano 1 - 2.158 estudantes oriundos de escolas públicas, sendo 1.299 pretos,

pardos ou indígenas; ano 2 - 3.272 estudantes oriundos de escolas públicas,

sendo 1.870 pretos, pardos ou indígenas; ano 3 e subsequentes - 4.520 estudantes

oriundos de escolas públicas, sendo 2.543 pretos, pardos ou indígenas. Destes,

40% serão recrutados através do ICES” (CRUESP, 2012).

Apesar de ter como objetivo “ampliar a inserção de alunos provenientes de

escolas públicas e, também, ampliar a inserção do grupo PPI dessas escolas, na

246

Universidade de São Paulo” (USP, 2013, p. 1), no geral, o Plano Institucional de

Estudantes Capacitados, a começar pela nomenclatura, não modificava a estrutura de

seleção existente incidindo apenas sobre as formas de preparação para o “sistema

meritocrático”. Entretanto, mesmo sendo restrito, o Plano de Recrutamento previsto

pelo PIMESP dava margem para os docentes exercerem autonomia e proporem outras

formas de ampliação do ingresso para grupos excluídos, porém o Plano também foi

rechaçado pela Pró Reitoria de graduação da USP em decorrência da “dimensão da

Graduação da USP”:

“em razão da dimensão da Graduação da USP, em relação à das duas outras

Universidades Públicas do estado de São Paulo, a Pró-reitoria de Graduação

considera que a concretização dos objetivos do Plano Institucional da USP, no

sentido de atingir as metas propostas pelo PIMESP, só poderá ser alcançada de

modo responsável até 2018, e não em 2016 como antes sugerido” (Ibidem).

A Reitoria, em junho de 2013, apresentou à comunidade universitária o Plano

Institucional 2013-2018 no qual centrava as ações de ampliação de acesso em dois

eixos: ampliação da bonificação do INCLUSP e criação do Programa de Preparação

para o Vestibular da USP (PPVUSP) e que foi aprovado pelo Conselho Universitário.

Além disso, a narrativa de que os estudantes pobres, negros e indígenas não prestariam

vestibular porque desconhecem a existência do mesmo esteve expresso no Plano no que

tange às “estratégias para ampliar a divulgação do INCLUSP por meio do programa

Embaixadores, como indicado por cerca de metade das unidades da USP” (Ibidem),

apesar de quanto a esse último ponto não termos vistos nos documentos analisados

menção ao referido programa.

O programa de bonificação da USP inicialmente conferia bônus de até 3%

apenas aos egressos de escola pública após a discussão gerada pelo PIMESP, passou

também a conferir bonificação para pretos, pardos e indígenas egressos de escola

pública, mas condicionado ao desempenho no vestibular. A bonificação passou de um

máximo de 8% no caso do INCLUSP, para 15%, e de 15% para 20%, no caso do

PASUSP. A pontuação máxima seria concedida se o aluno acertasse mais que 27

questões na prova da primeira fase do vestibular, isto é, em caso de acertar menos que as

27 questões nenhum bônus seria concedido.

Outra mudança em relação ao ‘antigo’ INCLUSP gerada pelo debate em torno

do PIMESP, foi quanto à nota de corte que passou a ser calculada depois do acréscimo dos

bônus. Foram também instituídas novas regras de bonificação no Programa: o estudante

de escola pública poderia receber adicional na nota de até 20% e estudantes de escola

247

pública pretos, pardos e indígenas poderiam receber 5% a mais, totalizando 25% de

bonificação.

Apesar das modificações no INCLUSP, até o ano de 2015 o cenário de exclusão

permanecia quase inalterável tanto para egressos de escolas públicas, como para negros

e indígenas. Segundo dados do GEMAA (2015), feitos a partir da análise descritiva dos

dados estatísticos divulgados pela FUVEST com base nas respostas ao “Questionário de

Avaliação Sócio-econômica”, fornecidas pelos inscritos e matriculados no vestibular

para ingresso nos cursos de graduação da USP, entre 2007 e 2015, apenas 11,75% dos

alunos que ingressaram na USP eram pardos, 2,46% pretos e 0,24% indígenas.

Sobre o critério “escola pública”, o número de alunos matriculados que

concluíram o ensino médio integralmente em escolas públicas representava apenas 27%

do total de matriculados entre os anos de 2007 e 2015. Válido ainda enfatizar que a

USP, até 2014, não adotou o critério de renda como critério de seleção para alunos

pobres, beneficiando estudantes não-pobres de escolas públicas renomadas e com renda

superior a 15 salários mínimos (VENTURINI, 2015, p. 16), mantendo assim seu status

de principal ilha de privilégio branco do país.

Considerações gerais A proposta do PIMESP assombrou a fração da classe média alta e branca por

duas razões em nossa análise. A primeira razão, pela possibilidade do Programa em

oferecer um perigo real ao apagamento da distinção do trabalho dos docentes, ao

aproximar a universidade das demandas do mercado de trabalho, com a instituição do

ICES, transformando-a em reduto de formação de trabalhadores e logo, pondo em

perigo a manutenção da marca distintiva da fração da classe média alta.

A segunda razão, foi o fato do PIMESP, ao incluir na proposta a reserva para

negros e indígenas, ter confrontado a um só golpe o sistema meritocrático e a narrativa

da democracia racial. A reserva de vagas raciais previstas no Programa ameaçou de uma

só vez a crença na harmoniosa sociedade paulista, expôs os limites dos programas que

vinham sendo implantados pelas universidades e desafiou (ainda que de modo bastante

limitado) as soluções que vinham sendo implantadas por aquela fração da classe média

em relação à democratização do acesso ao ensino superior.

A defesa, pelos docentes, das “políticas de inclusão” existentes nas

universidades estaduais paulistas, também revelam por um lado como a atualização dos

248

pressupostos do paradigma da integração na formulação das soluções para “o problema

do negro” constituem os novos contornos do racismo institucional e, por outro lado,

como os elementos centrais que fundamentam a criação dessas políticas permite que

entendamos como classe e raça acomodam-se na configuração das relações de poder e

espaços de privilégio no contexto paulista.

Os discursos analisados evidenciaram, em nossa interpretação, que a classe

média não é apenas agente de marginalização no processo de valorização dos

trabalhadores não-manuais, ela própria, converte-se em agente de desumanização das

populações subalternizadas na medida em que a prática pedagógica daquela fração da

classe média na busca pela legitimação da cultura da classe dominante deslegitima

outras culturas que estão fora da “zona do ser” (FANON, 1975).

A proposta do PIMESP (e o debate gerado a partir da proposta) também

evidenciou a lógica classista e racista da fração da classe média alta e branca, que

orientada pela defesa do mérito articulada a negação do racismo, tem pautado sua

atuação no contexto de debate sobre as políticas de inclusão na educação superior nas

universidades estaduais de São Paulo de modo a bloquear, ou quando não protelar, a

democratização das universidades. Entretanto, como discutimos no capítulo 2, esse

posicionamento não é uma característica ou uma particularidade da fração alta da classe

média paulista. Nesse sentido, a análise do debate gerado em torno da avaliação do

PIMESP , parece sugerir que quando o assunto é ampliação do acesso à educação por

grupos historicamente excluídos, a classe dominante e a classe média parecem limitar-se

a propor políticas inferiores (em relação ao que poderiam ser e mesmo ao que existe) e

inferiorizadoras no que tange ao modo como são desenhadas e seus fins intimimante

relacioadas ao modo como aquelas classes concebem o público beneficiário.

A educação como recurso mobilizado e gerenciado pela classe média e

legitimado pelas elites e pelo Estado voltado para regeneração da população negra está

ancorada em um acúmulo de experiências relativas ao processo de desumanização de

negros e pobres no Brasil. Nesse sentido entendemos que o PIMESP e os demais

programas de inclusão elaborados pelos docentes de São Paulo estão inseridos num

processo histórico longínquo que associou escola pública-civilização-branqueamento

desde as primeiras décadas da República. E sobre a “lógica da regeneração” trataremos

no próximo capítul

249

CAPÍTULO 4: “A REDENÇÃO DE CAM”: O ESTABELECIMENTO DA

EDUCAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL E O MELHORAMENTO DA NAÇÃO

Figura 2: A redenção de Cam

Modesto Brocos. A redenção de Cam (1895). Óleo sobre a tela, 199cm x 166cm. Rio de

Janeiro. Museu Nacional de Belas Artes

A consagração da obra A redenção de Cam está estritamente relacionada a sua

capacidade de reunir as principais idéias que circulavam entre as elites e a

intelectualidade brasileira acerca da construção da identidade nacional e do futuro da

nação no contexto da jovem República. A obra retrata o desejado (embranquecimento),

ainda que pela via da miscigenação, da população brasileira.

250

A obra, a começar pelo título, reflete os impasses no qual a elite brasileira

branca se via envolta entre os séculos XIX e XX, isto é, como branquear uma nação

com uma população significativa de negros e com um processo de miscigenação já em

curso?

O título da obra faz referência à passagem bíblica que narra a condenação feita

por Noé ao seu filho Cam (e seus descendentes) por ele ter olhado o pai nu e bêbado.

Como Cam é narrado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas, aquela

passagem passa a ser disseminada, principalmente com o papel ativo da Igreja

Católicacomo, a justificativa divina para a escravização dos africanos à época colonial.

Entretanto, como o pintor retrata na tela, seu interesse não está na maldição de Cam mas

como seria possível sua redenção.

A partir da imagem, vemos três gerações que parecem ser da mesma família,

mas com diferentes tons de pele. No canto esquerdo, uma mulher mais velha, negra, que

se encontra com pé na terra, descalça (marca que os negros cativos ou libertos

carregavam) ergue as mãos aos céus, parecendo estar a agradecer pelo nascimento do

neto branco que vemos no centro da tela. No canto direito, um homem branco, que pisa

em um calçamento de pedras e parece ser o pai da criança que está no colo de uma

mulher negra, mas também de tom de pele menos escuro em relação à senhora que seria

sua mãe no canto esquerdo.

Na contramão da Europa, a ramificação eugenista no Brasil não tinha contexto

para condenar a miscigenação, diante do contingente populacional negro recém- liberto

e a grande massa já em franco processo de miscigenação. Desse modo, valorizar as

misturas (mesmo com fins de branqueamento) era a única possíbilidade de tornar

possível a transmissão das características genéticas dos imigrantes brancos aos

descendentes, eliminando os traços indígenas e africanos dos habitantes do país.

A famosa tela “A redenção de Cam”, pintura do espanhol naturalizado brasileiro

Modesto Brocos (1852-1936), professor da Escola Nacional de Belas artes (1891-1936),

vencedora da medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895, foi usada

pelo médico João Batista de Lacerda (1846-1915), cientista e diretor do Museu

Nacional do Rio de Janeiro, em uma publicação no I Congresso Mundial das Raças, em

1911, em Londres. A obra, assim como o artigo do médico ilustram as possibilidades do

embranquecimento da população brasileira mesmo com a miscigenação:

“[…] Demais, devem todos saber, porque a sciencia já o demonstrou, que

embora tomada como caracter differente de raça. A côr não passa de um

caracter anthropologico accidental […] que a superioridade e a inferioridade

251

das raças no sentido absoluto é um facto inveridico; e que no mundo só

existem raças adiantadas e atrazadas, devendo ser attribuidas essas

differenças ás condições do meio physiso e social em que o homem evoluio.

[…] Entretanto não se póde negar que o demorado contacto entre duas

raças, uma atrazada, outra adiantada, venha com o tempo fazer adquirir á

raça adiantada, muitos dos vicios e defeitos da raça atrazada […] Este facto

verificou-se não só no Brasil como em outros países onde a raça negra teve

prolongado contacto com a população branca. […] quanto mais diffundir a

civilização no paiz, tanto mais intensa será a reducção da raça indigena, a

qual, estou certo, desapparecerá com os negros daqui a um seculo […] O

abandono, o isolamento, a inação, a incuria a que se entregaram após a

abolição da escravidão, tem augmentado de mais em mais a sua decadencia

e estão concorrendo para a sua extincção. No Brasil o problema da raça

negra resolve-se sem esforço e sem dificuldade […]” (LACERDA, 1912, p.

90-91).

Nesse contexto da miscigenação como fatalidade e o branqueamento como

destino a ser perseguido, nas primeiras três décadas da República vemos desenrolar-se

um processo de institucionalização da instrução pública que destinaria à educação um

papel central no melhoramento da nação miscigenada brasileira. Nesse sentido a

educação pública, nas primeiras décadas da República, se converterá na solução para

civilizar e estabelecer os marcos da cidadania no Brasil, convertendo-se como

elemento neutralizador fundamental de conflitos na organização da hierarquia racial na

sociedade de classes no Brasil.

O objetivo do presente capítulo é compreender como se deu no Brasil a

instituição do aparelho educacional e a constituição peculiar, em nossa leitura, da

ideologia meritocrática no contexto brasileiro marcado pela experiência da escravidão

negra. Desse modo, buscaremos evidenciar como a educação nas primeiras décadas da

República constituiu-se como: 1) meio de regeneração da população negra; 2) meio de

reprodução da recém-nascente classe média branca e; 3) como promessa (nunca

cumprida) de mitigação do racismo.

Após a análise das argumentações que sustentaram a oposição da alta fração da

classe média branca às cotas em São Paulo, entendemos que o forte apelo à

desconfiança da capacidade da população negra e indígena, o medo da “degeneração”

da qualidade da universidade e a constatação de que essa lógica vem sustentando a

formulação de políticas educacionais com vistas à ampliação do acesso às universidades

estaduais paulistas, precisavam ser melhor analisados a fim de aprofundar a relação,

que parece vir de longa data, entre racismo e sistema educacional.

A pergunta feita em 1978 por Abdias do Nascimento (2017), sobre como “o

sistema educacional funciona como aparelhamento de controle nesta estrutura de

discriminação [...]?” parece fundamental se quisermos entender como o debate gerado

252

pela instituição das políticas de ação afirmativa confrontou narrativas hegemônicas

acerca da condição do negro, desafiando lugares e explicitando a posição (reacionária)

de certa fração da classe média branca.

A implantação da modalidade de reserva de vagas étnico-raciais no ensino

superior público brasileiro colocou em xeque o imaginário acerca do lugar do negro na

sociedade brasileira, expondo a lógica racializada que estrutura as classes no Brasil e

como aquela lógica tem estado presente na formulação de alguns tipos de políticas

educacionais. Nesse sentido, buscaremos na primeira parte do presente capítulo,

evidenciar como a lógica, presente também no discurso dos docentes acerca da

desconfiança da qualidade dos cotistas e na proposta do PIMESP em relação ao seu

caráter civilizacional, tem uma bagagem histórica evidenciadas nas políticas

educacionais nas primeiras décadas do século XX: negros e pobres como

ontologicamente inaptos a exercerem funções não-manuais e portanto, como objetos a

serem civilizados mas apenas para ocuparem postos de trabalhos manuais.

Longe da pretensão de realizarmos um longo percurso historiográfico,

pretendemos sintetizar como a grande reforma educacional realizada entre os anos 20 e

30 da República brasileira foi concebida por certa lógica civilizacional que sob a

alegação da necessidade de regeneração da população pobre e negra, relegou aquela

população uma educação de terceira classe que comprometeu profundamente o destino

dos negros na sociedade brasileira. Nesse sentido, procuraremos também situar como a

ideologia meritocrática no Brasil só pode ser compreendida em sua plenitude se

considerarmos os dois polos antagônicos que a sustenta: competência (como sinônimo

de branquidade) e degenerescência (como equivalente à negritude).

Procuraremos evidenciar que a construção desses pólos ocorreu ao longo dos

primeiros 30 anos da República sob a liderança dos intelectuais que levariam à cabo a

Reforma Educacional dos anos 20 e 30. A análise da institucionalização da educação

pública no Brasil oferece a possibilidade de compreendermos como as políticas

educacionais nas primeiras décadas do período republicano, refletiram uma concepção

racializada da sociedade e na qual a ideologia meritocrática moderniza a seletividade

racial e naturaliza a condição do negro.

Na segunda parte, a partir da análise de dados entre escolarização e perfil racial

no Brasil (1988-2013), buscaremos analisar como a existência da educação pública no

século XXI tem também sido utilizada para dissimular o racismo institucional na

distribuição dos postos de trabalho. Se as políticas educacionais eram concebidas para

253

servirem como fonte de regeneração da população negra e pobre nos séculos XIX e XX,

no século XXI a educação como única via para a integração da população negra ao

mundo do trabalho continua a dissimular o racismo que informa a hierarquia do trabalho

nas sociedades capitalistas. Importante dizer que nossa intenção nesse capítulo não

passa em nenhum momento por questionar ou interpretar como menor as reivindicações

do movimento negro por acesso à educação. A democratização do ensino não é alvo de

questionamento na presente tese.

Nossa proposta nesse capítulo é evidenciar como a educação tem sido

mobilizada pelas classes dominantes como forma de moderar e amortecer os conflitos

raciais e obscurecer o racismo institucional. Apresentaremos uma série histórica de

dados que indicam um padrão na taxa ocupacional: mesmo tendo a mesma escolaridade

em relação aos brancos, os negros continuam a liderar as taxas de desocupação,

indicando a persistência do racismo. Dito isso, avançaremos a seguir na tentativa de

apresentar o processo de institucionalização da educação pública no Brasil e como os

negros são inseridos nesse processo.

A política educacional pública no início do período republicano é fundada com

objetivo de desenvolver competências para o exercício da cidadania sem, no entanto

abandonar “o imaginário de uma população [pobre, preta e mestiça] concebida como

grupo inferior, de ‘difícil educação’” no período do Império (VEIGA, 2008, p. 507).

Com isso queremos dizer que a política educacional (e a ideologia meritocrática que a

sustenta) nos primeiros anos da República se configurará a partir de uma compreensão

racializada da sociedade onde negritude e competência seriam incompatíveis.

Nos primeiros anos da República, a política educacional foi marcada por

interdições e restrições aos negros que, se por um lado não vedavam completamente o

acesso de negros à educação, criavam normas que convertiam-se em verdadeiros

impedimentos para a formação educacional da população negra.

Alguns mecanismos criados e/ou reforçados na República como a vigilância da

polícia nas escolas frequentadas por negros (a fim de intervir em casos de agressão ou

violência e expulsar os culpados), a exigência de vestimentas adequadas, material

escolar e merenda (BASTOS, 2016, p. 747) ou ainda a instituição de taxas e exames

para admissão no ensino fundamental e superior (Decreto nº 8.659/1911, Cf. BRASIL,

1911) foram mecanismos que se por um lado, não assumiram formas jurídicas

abertamente expressas com vistas a impedir totalmente o acesso dos negros à escola

pública, acabaram por afastar nos primeiros anos da República a possibilidade de

254

formação escolar da população negra que, em sua maioria, não dispunha de dinheiro

(para pagar as taxas e material) e não tinha os conhecimentos prévios exigidos nos

exames admissionais para entrar nas escolas (como língua francesa ou aritmética).

A primeira metade do século XX foi marcada por reformas no sistema

educacional que foram elaboradas e executadas tendo como pressuposto “[...]

higienizar, civilizar, modernizar, enfim, preparar camadas da população para novos

hábitos de vida e de trabalho” (MATE, 2002, p.36). A educação formal passou então a

ser o bastião que iria redimir a população negra, outorgando-lhes um “diploma de

brancura” (DÁVILA, 2006). Nesse contexto o movimento pela Reforma Educacional

dos anos 20 e 30 foi um momento de tensionamento (não de ruptura radical) no modo

de conceber os fins da política educacional e a própria clientela a quem se destinaria a

educação pública.

O Manifesto dos pioneiros da educação nova de 1932 marcará essa distinção

nos modos de conceber a política educacional brasileira. Assinada por 26 intelectuais

que já tinham visibilidade nacional, fosse pela atuação profissional, fosse pela

participação em associações (ligadas em sua maioria às ciências, artes e educação), o

Manifesto (que ficaria conhecido apenas como Manifesto dos pioneiros da educação

nova), viria a colocar a questão da instrução pública como o grande problema nacional:

“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e

gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar

a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do

sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível

desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das

forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são

os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se

depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado atual da

educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas

econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e encadear, dirigindo-as

no mesmo sentido, todos os nossos esforços […]” (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p.

188).

O apelo ao progresso da nação que estaria travado pelo “problema educacional

brasileiro” foi a base que orientou a ação política daquele grupo, entretanto, essa

retórica apelativa serviu como estratégia (eficaz) para mistitificar a natureza do

Manifesto e seus fins políticos: a redifinição do papel da educação na divisão social do

trabalho. A atuação dos assinantes em associações com fins políticos merece um

adendo. A mais importante dentre elas foi a Associação Brasileira de Educação (ABE),

fundada em 1924.

255

A Associação Brasileira de Educação, apesar de ter nascido da tentativa de

fundação de um partido político (que se chamaria Ação Nacional), ficou marcada na

historiografia brasileira como uma instituição desinteressada do jogo político e

preocupada unicamente com a questão da educação. Entretanto, como aponta

CARVALHO, M.M.C. (1998), ao autonomear-se apartidária e defensora do progresso

da nação pelas vias da educação, a ABE procurava arregimentar poder político sob uma

fachada desinteressada partidariamente, de modo que não pudesse ser confrontada,

ganhando cada vez mais respaldo nacional sob a bandeira da defesa da educação. E a

defesa da educação pública viria se converter em estratégia de ampliação de poder do

referido grupo. Avancemos com a análise do Manifesto:

“[…] A instrução pública não tem sido, entre nós, na justa observação de Alberto

Torres, senão um "sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as

cidades e da produção para o parasitismo". É preciso, para reagir contra esses males,

já tão lucidamente apontados, pôr em via de solução o problema educacional das

massas rurais e do elemento trabalhador da cidade e dos centros industriais já pela

extensão da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profissional,

baseada no exercício normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente

dessas escolas (primária e secundária profissional) às necessidades regionais e às

profissões e indústrias dominantes no meio.” (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 197)

Travestida na preocupação com a modernização do país via reforma do ensino,

os intelectuais, assinantes do Manifesto encontraram na redifinição do papel da escola

na República, o meio pelo qual poderiam controlar, de uma só vez, a inserção das

massas na sociedade industrial nascente (sob o trinômio moral, saúde e trabalho) ao

mesmo tempo em que conseguiriam assegurar a educação secundária e superior para si,

garantindo que essa classe pudesse ascender aos postos de liderança na condução dos

rumos do país (CARVALHO, M.M.C., 1998; 2000; 2003).

É fundamental enfatizar que os intelectuais reinvidicavam uma nova

mentalidade (republicana) acerca do papel da educação, mas “curiosamente” não se

dirigiram no Manifesto contra às oligarquias mas sim à “classe média (burguesia)” e sua

“estrutura tradicional escolar” que mantinha, via instrução pública, seus interesses de

classe, impedindo à “interpenetração das classes sociais” e colocando obstáculos para

que a educação pública atendesse “à diversidade nascente de gostos e à variedade

crescente de aptidões [comprovados via exames psicológicos] capazes de arrastar o

espírito dos jovens à cultura superior […]" (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 198).

A disseminação da necessidade de orientar a divisão social do trabalho a partir

da articulação entre “tipos mentais e necessidades sociais” (Cf. AZEVEDO, F.E.A.

2006, p. 199) em um contexto no qual a abolição não havia completado sequer 40 anos

256

e com forte influência das teorias eugenistas e evolucionistas (como as análises feitas

por Hebert Spencer), não nos deixa restarem dúvidas acerca de quais tipos sociais, no

imaginário daqueles intelectuais, estariam e quais não estariam aptos à “cultura

superior”.

Munidos da defesa da educação pública como redentora “dos males da Pátria”,

entre os anos de 1920 e 1930, os intelectuais ligados ao Manifesto (e dentre eles, muitos

ligados à criação da USP), empreenderam reformas educacionais em diversos estados

no Brasil110. Uma análise das idéias que circulava entre esse grupo acerca do “problema

da instrução pública”, parece deixar evidente que todas essas reformas no ensino

público tinha como objetivo central liderar a civilização das massas sob três diretrizes

principais: hierarquização a partir de “aptidões naturais”, higienização e moralização da

classe trabalhadora (CARVALHO, M.M.C., 1998; 2000; 2003).

O ponto-chave do Manifesto, que interessa a discussão no presente capítulo, é a

(suposta) tentativa de superar “[…] o divórcio entre as entidades que mantêm o ensino

primário e profissional e as que mantêm o ensino secundário e superior […]” (Cf.

AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 197) e que orientou as diretrizes educacionais na Primeira

República. Vejamos o que diz o Manifesto:

“[…] a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e

sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista,

[instalada para uma concepção burguesa, resultante da doutrina do individualismo

libertário] montada para uma concepção vencida. Desprendendo-se dos interesses

de classes, a que ela tem servido a educação […] deixa de constituir um privilégio

determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um

"caráter biológico", com que ela se organiza para a coletividade em geral,

reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as

suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A

educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes,

assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-

se para formar "a hierarquia democrática" pela "hierarquia das capacidades",

recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de

educação […] (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 191)

Apesar de certa sofisticação com a qual os elaboradores do Manifesto trataram

a necessidade da não dicotomia entre ensino profissional e universitário, a recorrência

às “necessidades psicobiológicas” de cada educando para justificar as aptidões e

atividades para as quais deveria ser encaminhados, acaba por invocar uma

determinação (de cunho biológico/evolucionista) que ao final viria a justificar,

cientificamente, a manutenção da hierarquização, definidas legalmente, a partir de

110 Acerca das reformas empreendidas por esse grupo em diversos estados do Brasil Cf. nota de rodapé

n. 80.

257

então, não mais pela cor da pele, mas pelas capacidades psicobiológicas dos

indivíduos.

O longo trabalho documental realizado por Jerry Dávila (2006) analisa como a

expansão e reforma do sistema educacional nas primeiras décadas do século XX foram

feitas com vistas à reprodução da manutenção dos lugares de privilégio com base em

raça. O autor analisa as políticas educacionais do período que vai de 1917 a 1945 e

conclui que os pressupostos da “eugenia lamarckiana” foram incorporados nas políticas

educacionais e nos projetos levados por educadores, intelectuais e políticos e que

mobilizaram a ciência, a técnica e o Estado a fim de regenerar a população negra com

vistas ao embranquecimento, não mais de sua cor mas agora de suas práticas.

A análise das políticas educacionais e da legislação para regulamentar o ensino

público brasileiro nascido após a abolição da escravidão, possibilita que percebamos de

que forma o racismo atravessou todo o processo de reforma e expansão da instrução

pública e qual o papel da classe média nesse processo. Para Dávila (2006), os

educadores:

“[…] Tinham fé irrestrita na capacidade do estado de funcionar de maneira

técnica e científica para transformar a nação. Os condutores da expansão e

reforma educacional acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou

pessoas de cor, eram sub-cidadãos presos na degeneração – condição que

herdavam de seus antepassados e transmitiam a seus filhos, enfraquecendo a

nação. Os mesmos educadores tinham também fé na sua capacidade de

mobilizar ciência e política para redimir essa população, transformando-a em

cidadãos-modelo […]” (idem, p. 12-13).

As produções no campo da medicina e da sociologia, extremamente

influenciadas pelo pensamento eugênico, forneceram as linhas gerais que marcaram o

caráter racista que orientou a política educacional na primeira república e ao longo da

Era Vargas.

A lógica que orientava a prática educacional era oferecer ensino diferenciado

para pobres e negros, onde “os alunos pobres e de cor foram marcados como doentes,

maladaptados e problemáticos” (DÁVILA, 2006, p. 13). Para tal fim, a inclusão dos

testes psicológicos e o desenvolvimento do ramo da psicologia (como ferramenta

científica válida para instruir e desenvolver as faculdades mentais das crianças)

ganharam centralidade nas reformas educacionais promovidas nas três primeiras

décadas da República (CARVALHO, M. M. C., 1998).

A política educacional brasileira nas primeiras décadas do século XX foi

marcada por um duplo movimento: 1) expandir rumo à universalização do sistema

258

educacional, consolidando o igualitarismo burguês e; 2) garantir a manutenção de

mecanismos que perpetuassem a distinção entre a educação para as elites e a educação

para a grande massa de negros e pobres. Nesse sentido, a expectativa em torno da

educação era consolidar hierarquias e moderar a mobilidade econômica dos negros.

Um exemplo do processo de contenção da ascensão dos negros (e, portanto,

melhoramento racial), foi a institucionalização de processos seletivos e treinamentos

que resultaram no embraquecimento do quadro de professores na cidade do Rio de

Janeiro no início do século XX, como aponta Jerry Dávila (2006).

O projeto de embranquecimento das práticas via educação, foi liderado por

artistas (Heitor Vila-Lobos), antropólogos (Artur Ramos), educadores (Anísio

Teixeira, Fernando de Azevedo, Afrânio Peixoto) e com apoio do Estado. Um dos

principais entusiastas das políticas de “embranquecimento” foi o então Ministro da

Educação e Saúde no Governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema que tinha junto

com aqueles intelectuais, a “incumbência de forjar um Brasil mais europeu e preso a

um senso de modernidade vinculado à brancura, [assim] esses educadores construíram

escolas em que quase toda ação e prática estabeleciam normas racializadas e concedia

ou negava recompensas com base nelas” (DÁVILA, 2006, p. 24).

A maquinaria de melhoramento via educação, foi montada de modo silencioso,

isto é, políticos, intelectuais e educadores imprimiram suas concepções de raça às

políticas educacionais sem nomeá-las como tal dissimuladas em uma retórica que

articulava saberes da medicina, conhecimentos tecnicistas e nesse sentido “[...] o

conceito de mérito usado para distribuir ou restringir recompensas educacionais foi

fundado em uma gama de julgamentos subjetivos em que se embutia uma percepção da

inferioridade dos alunos pobres e de cor” (Idem, p. 13).

O processo que consolida a ideologia meritocrática no período republicano, em

nossa análise, se dá em concomitante à subjetivação racial. Subjetivação que ocorre por

meio da valorização da ideologia meritocrática. A hierarquização racial, portanto é a

base que sustenta o sistema meritocrático brasileiro, naturalizando a distribuição de

dons e méritos, ou ainda nas palavras de Michael Omi e Howard Winant (2014) “[...]

Race becomes "common sense"—a way of comprehending, explaining and acting in the

world” (p. 3).

A educação pública tem sido espaço de conflitos e tensões em torno dos seus

obejtivos. Portanto, a finalidade na educação em um contexto no qual raça estrutura

relações de poder, não passa incólume às tentativas por parte da elite branca de criar

259

uma sensação de igualitarismo, confirmada pela existência da educação pública.

Entretanto, como veremos a seguir a instrução pública não tem sido capaz de desmontar

as lógicas racistas que orientam a seleção de trabalhadores.

Avançaremos agora para a segunda parte do presente capítulo, a saber, a análise

dos dados acerca da taxa de desocupação por perfil racial escolaridade. Fizemos um

levantamento dos dados da PNAD para vermos qual é a situação da população negra no

que tange a taxa de ocupação e as disparidades em relação à população branca. Veremos

que há um movimento de marginalização racializada que marca a distribuição de

empregos em todos os outros níveis de escolaridade. Vejamos os dados do gráfico 2 que

se referem-se à taxa de desocupação entre respondentes alfabetizados entre os anos de

1988 e 2013111.

Gráfico 2: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de

escolaridade Elementar (alfabetizados)

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.

Os dados do Gráfico 2 apontam para as diferenças entre as taxas de desocupação

entre brancos e negros com o mesmo nível de escolaridade elementar: em 1990 o

desemprego não chegava a atingir 2% das pessoas brancas enquanto a taxa de

111 Sobre os dados da PNAD, como será possível constatar, a referida Pesquisa não foi realizada nos anos

de 2000 e 2010. Além disso, em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre,

Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

1,9%1,5%

1,8%

2,8%2,5%2,7%

3,2%3,4%3,8%

4,2%4,3%

3,5%4,0%

3,3%3,4%2,9%2,7%

2,1%2,6%

1,7%1,5%1,7%

2,6%

2,0%

3,6%

3,8%3,6%3,1%

4,2%4,4%

5,1%5,4%5,2%

5,2%5,2%

4,5%4,6%

3,8%3,8%

2,8%

3,8%

2,8%2,4%

2,8%

19

88

19

89

19

90

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19

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19

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20

11

20

12

20

13

Brancos Negros

260

desocupação entre negros atingia 3,6% da parcela dessa população com nível elementar

de escolaridade. Nesse extrato, a baixa escolaridade poderia ser a razão explicativa para

a taxa de desocupação, mas por quais razões ela atinge mais a população negra?

Os dados do gráfico 3 referem-se à taxa de desocupação entre respondentes da

PNAD com nível de escolaridade 1º Grau (Ensino Fundamental) entre os anos de 1988

e 2013.

Gráfico 3: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de

escolaridade 1º Grau

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.

Nesse extrato, observamos a partir dos dados supracitados, que se mantém a

disparidade na taxa de desocupação entre brancos e negros com ensino fundamental: em

1999, por exemplo, 15,3% dos brancos se encontravam desocupados, enquanto, entre os

negros esse número chegava a 19%. Os padrões de disparidade não apenas se mantêm

em relação ao grupo de desocupados com nível elementar de escolaridade como

aumenta a diferença entre brancos e negros com ensino fundamental completo. Válido

dizer que a primeira década dos anos 2000 acentua uma tendência de diminuição dessa

disparidade racial nessa parcela da população. Esses números apontam para a

complexidade dos modos de manifestação do fenômeno da marginalidade e os efeitos

da sua interação com o racismo: quando há aumento dos postos de trabalho, há a

inclusão dos negros de modo parcial e se há a diminuição da oferta de trabalho, os

negros são os mais atingidos pelas ondas de desemprego.

8,1%6,4%

7,8%

11,4%10,5%10,8%12,3%12,7%

15,7%15,3%13,8%13,5%13,9%

12,6%11,4%11,2%

9,8%9,0%10,6%

8,4%7,2%7,6%

10,0%

7,9%8,5%

14,8%

12,0%13,3%

14,5%15,7%

15,2%

19,0%18,2%

17,3%17,9%

14,3%16,0%13,8%

12,8%11,6%

12,8%

10,5%8,8%

10,0%

19

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20

11

20

12

20

13

Brancos Negros

261

Os dados do gráfico 4 referem-se a taxa de desocupação entre respondentes da

PNAD com nível de escolaridade Ensino Médio (2º Grau) entre os anos de 1988 e 2013.

Gráfico 4: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de

escolaridade 2º Grau

Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.

Interessante observar em relação às taxas de desemprego entre negros com

ensino médio, que a taxa de desocupação é levemente maior que na faixa da população

negra com ensino fundamental. Dado que seria necessário um outro trabalho de tese que

analisasse a conjuntura mais geral e o próprio contexto de reestruturação produtiva dos

anos 90 que permitisse afirmar com precisão as razões dessa diferença, ainda assim,

podemos dizer que suspeitamos que a competição entre negros e brancos por empregos

ofertados para quem tem ensino médio é maior se comparada à faixa populacional que

tem ensino fundamental (pelo tipo de emprego), aumentando a taxa de desocupação

entre negros com ensino médio. Importante observar ainda que os números melhoram

nos primeiros anos do século XXI, mas os negros continuam liderando a taxa de

desocupação, dado esse que nos informa sobre como a população negra, mesmo em

conjunturas favoráveis em relação ao aumento das taxas de ocupação, segue liderando

as taxas de desemprego.

Os dados do gráfico 5 referem-se a taxa de desocupação entre respondentes da

PNAD com nível de escolaridade Superior entre os anos de 1988 e 2013 e novamente a

cor da desocupação permanece nesse nicho de escolaridade: os negros são os mais

6,5%4,4%

6,5%

10,4%9,2%10,1%10,3%

12,0%14,5%

15,7%13,4%14,3%14,7%13,9%

11,8%13,1%12,7%

9,7%12,5%

8,8%8,4%8,3%

9,8%

6,7%

9,0%

13,6%13,1%

11,0%12,5%

14,8%14,1%

20,5%

17,3%18,1%17,2%18,2%

18,4%16,0%17,0%

12,2%

16,6%

13,1%10,8%10,1%

19

88

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19

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11

20

12

20

13

Brancos Negros

262

atingidos pelo desemprego também entre as pessoas com ensino superior ainda que as

taxas nesse nicho sejam de fato menores do que nas outras faixas de escolaridade.

Gráfico 5: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com

nível de escolaridade Superior

Fonte: elaboração própria a partir dos dados do PNAD.

Nesse nível de escolaridade, a média da taxa de desocupação entre os brancos ao

longo dos 25 anos analisados é de 3,6% enquanto entre os negros é de 4,2%, diferindo

em relação as outras faixas educacionais e evidenciando que sim, a formação

universitária ainda possibilita acesso ao mercado de trabalho.

Outra observação importante é o influxo entre os anos de 2012 e 2013 que

observamos nos demais níveis de escolaridade analisados até aqui e que também marca

a taxa desocupação dentre as pessoas com ensino superior: entre os brancos observamos

certa estabilidade na taxa de desocupação e ou até mesmo decréscimo e entre os negros

percebemos uma tendência de aumento. Em 2012 e 2013 a taxa de desocupação entre os

brancos com diploma universitário se manteve em 3,4%, já entre os negros saiu de 4,2%

em 2012 para 4,5% em 2013.

Importante ainda atentar quanto aos dados acima apresentados, destacar que os

desenhos das curvas para negros e brancos em todos os gráficos são similares, as

subidas e descidas, no geral, são as mesmas e nos mesmos anos em todas elas, apesar de

que como fica evidente, há distância entre brancos e negros. Ainda assim, há um

elemento comum de classe: negros e brancos, todos são trabalhadores expostos, com

1,6%1,1%

1,7%

3,0%3,0%2,7%

3,4%4,0%4,3%4,5%

4,2%4,1%4,6%

4,1%4,6%

4,1%4,2%4,4%4,3%3,6%3,4%3,4%

2,8%

1,9%

4,9%3,6%3,3%3,2%

3,7%3,7%

2,1%

5,2%

4,3%4,8%

5,1%4,7%

5,2%5,0%5,0%

4,3%

5,6%

4,6%4,2%4,5%

19

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20

12

20

13

Brancos Negros

263

intensidade distinta, à insegurança do mercado de trabalho. Nesse sentido, a

possibilidade de alianças multirraciais pode converter-se em estratégia eficaz de reação

e proposição de novos caminhos para emancipação, se considerarmos que os

entrecruzamentos entre classe e raça conformam a organização do capitalismo.

A discussão iniciada por Moura (1988) sobre o que ele chamou de “imobilismo

social contra o negro no mercado de trabalho” parece atual para compreender o

panorama da taxa de desocupados no Brasil. Embora os dados apresentados na presente

seção não nos forneçam informações sobre escolarização e categoria ocupacional ou

ainda outros elementos como a formação escolar na escola pública ou privada que nos

permitisse afirmar de todo que há uma divisão racial do trabalho e o efeito dessas

variáveis nas taxas de desocupação entre brancos e negros, ainda assim, observando o

quadro geral de escolarização e ocupação, a série histórica parece evidenciar que sim,

existe uma hierarquia racial do trabalho no Brasil e que a escolarização não tem

desmobilizado o peso da estrutura racista que privilegia brancos na ocupação de postos

de trabalho.

A educação segue conferindo às relações capitalistas uma aparência igualitária e

niveladora mantendo a divisão do trabalho com base na hierarquia racial e diante desse

quadro é preciso que reconheçamos as dinâmicas raciais que continuam organizando

racialmente o capitalismo por meio de suas práticas e ideologias. Nesse sentido,

entendemos que o racismo é a força material que permeia as estruturas sociais

emergentes do capitalismo (ROBINSON, 2000 [1983]).

As políticas educacionais desde as primeiras décadas da República,

desempenham um papel fundamental na regulação das relações entre elite, classe

média, pobres, brancos e negros que dentre outros feitos, tem (re) produzido uma

narrativa de incompatibilidade entre negritude e competência que permite a reprodução

da divisão do trabalho na sociedade brasileira. Sobre o processo de divisão do trabalho e

o papel da educação, Saes (2008) nos alerta que:

“[...] cairia em contradição o Estado capitalista que encaminhasse todos os

alunos para o desempenho de um trabalho de concepção, pois, nesse caso, a

sobre-qualificação chegaria ao seu grau máximo; ou o Estado capitalista que

preparasse todos os alunos, simultaneamente, para o desempenho de trabalhos de

concepção e de trabalhos de execução, pois, nesse caso, o Estado capitalista

estaria atuando, no plano educacional, como se fosse um Estado socialista.” (p.

169)

No jogo de ocultar e dissimular os interesses de classe que tem acompanhado as

políticas educacionais, como o movimento negro pode mobilizar os processos de

264

expansão do ensino público para erodir os alicerces que mantem a exploração e a

dominação? A reflexão levantada por Hasenbalg et al (1999) parece ainda muito

pertinente:

“as realizações educacionais dos não-brancos são traduzidas em ganhos

ocupacionais e de renda proporcionalmente menores do que os dos brancos. A partir

disso, pode-se concluir que não será através do processo de mobilidade social

individual que o Brasil irá se aproximar de uma situação de maior igualdade ente

grupos sociais” (p. 40).

Entendemos que o acesso à educação formal é uma condição para o progresso

dos negros mas no presente capítulo buscamos chamar atenção que mesmo essa

reivindicação precisa vir acompanhada de uma crítica ao modo como a burguesia e a

classe média tem se apropriado dessa reivindicação para conferir uma aparência

igualitária ao capitalismo racial. As reflexões suscitadas no presente capítulo acerca da

função da educação na sociedade de classes no século XXI não pretende em absoluto

menosprezar o papel da educação formal na luta pela emancipação do povo negro

tampouco das ações afirmativas, pois como bem analisou Cornel West (1994):

“A crise fundamental na América negra é dupla: pobreza demais e amor-

próprio de menos. O problema urgente da pobreza dos negros deve-se

principalmente à distribuição de riqueza, poder e renda […] os progressistas

deveriam encarar a ‘ação afirmativa’ não como a solução principal para a

pobreza, nem como um meio suficiente para igualdade. Devemos considerá-

la principalmente como algo que desempenha um papel restritivo: garantir

que as práticas discriminatórias contras as mulheres e pessoas de cor sejam

atenuadas […] mesmo que seja deficiente para reduzir a pobreza dos negros

ou que contribua para a persistência das idéias racistas […] sem ela o acesso

dos negros à prosperidade norte-americana seria ainda mais difícil, e o

racismo […] continuaria a existir de qualquer modo” (idem, p. 81-83).

Nesse sentido, a tentativa de expor algumas reflexões acerca dos usos e abusos

da defesa da educação pública pela elite e pela classe média não tem como finalidade

criticar a reivindicação do movimento negro por acesso a educação pública, pois isso

seria, para dizer o mínimo, injusto e pouco estratégico tendo em vista os “esforços

redistributivos” dos últimos governos progressistas graças à luta do movimento negro.

Nossa intenção foi unicamente evidenciar que a luta por acesso a educação é sim

fundamental, mas a desumanização, a exploração e a dominação no qual o povo negro

brasileiro está submetido não se constituem apenas como um “problema de educação”.

A reivindicação da inserção do negro em espaços como o da universidade não

pode estar dissociada, em nossa leitura, de reivindicações que confrontem à organização

da hierarquia racial do trabalho, que em nossa ponto de vista, tendo sido o motivo pelo

qual a educação destinada a negros, indígenas e pobres tem, historicamente, se

265

convertido em campo de (re)produção de relações de opressão e inferiorização. Os

programas “inclusivos” existentes nas universidades estaduais paulistas entre 2004 e

2014 parecem evidenciar nossa hipótese.

A exclusão do negro da educação universitária caminha lado a lado com as altas

taxas de desemprego que atingem de modo mais perverso a população negra, principais

vítimas do trabalho precarizado e das “instabilidades” do capitalismo. Nesse sentido, o

presente capítulo buscou refletir sobre a necessidade da luta antirracista considerar a

estrutura capitalista como um todo e seu funcionamento que cria obstáculos a instituição

de uma educação emancipatória e que corresponda à reivindicação do movimento

negro e os “esforços de afirmar a condição humana dos negros” (WEST, 1994, p. 85).

266

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate gerado nas três universidades estaduais públicas paulistas acerca da

adoção da reserva de vagas com recorte étnico racial entre os anos de 2004 e 2014 se

converteu em uma oportunidade para entendermos em que medida a obstinação da

fração da classe média alta e branca pela ideologia meritocrática informa acerca da

estreita relação entre a prática política daquela fração classe e a reprodução de

mecanismos racistas no processo de expansão do ensino público brasileiro.

A crítica ao PIMESP pelos docentes se não serviu para manter as três

universidades isoladas absolutamente das mudanças que estavam a ocorrer no cenário

nacional em relação à expansão do acesso ao ensino superior, acabou por protelar a

adoção de cotas étnico-raciais. A crítica feita pelos docentes foi em parte conservadora e

racista. Em outras palavras, a recusa ao PIMESP não foi necessariamente pelo caráter

descaradamente racista e elitista do Programa, mas pela possibilidade real de

desorganizar os espaços de privilégio, já que a proposta do Programa instituiria o

mecanismo de reserva vagas, limitando – ainda que pouco – a reprodução e manutenção

dos privilégios da fração da classe média que tem perpetuado sua condição por meio do

controle do espaço da universidade.

O PIMESP foi resultado de uma tentativa de administrar um período no qual as

relações políticas, as formas de reprodução de classe- no caso a classe média- e

representações políticas estavam em disputa, diante da força do movimento negro e da

expansão das políticas de cotas no contexto nacional. Nesse sentido, entendemos que a

defesa da manutenção dos programas já existentes pelos docentes tinha como objetivo

afastar o perigo da deterioração da “excelência” das universidades, evidenciando a

busca daquela fração da classe média pela manutenção da hierarquia racial do trabalho.

O discurso meritocrático juntamente com mito da democracia racial articulado

ao antirracialismo compôs a base discursiva sobre a qual os docentes construíram seus

argumentos para barrar o PIMESP, assim como a adoção das cotas. Nesse sentido, esse

construto ideológico complexo foi mobilizado pela fração da classe média alta e branca

de forma a obscurecer os interesses e conflitos presentes na implementação das políticas

de ação afirmativa nas universidades estaduais paulistas, contribuindo para a

perpetuação do monopólio (racial e de classe) das vagas em instituições públicas de

ensino com grande prestígio e reconhecimento internacional.

267

A (suposta) reivindicação da classe média pela melhoria do ensino público não

conseguiu sustentar-se em algumas manifestações dos docentes, ficando mesmo

explícito, em nossa interpretação , que a rejeição ao PIMESP, principalmente ao modelo

do Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), tinha como pano de fundo uma

preocupação com a possibilidade da erosão da “hierarquização do trabalho” (SAES,

1977, p. 100).

A crença do espaço da universidade como espaço democrático por excelência,

fora dos conflitos e tensões da comunidade política esteve também presente nos

manifestos, o que nos leva a confrontar a própria condição de classe e raça dos

docentes. E por quê? Nos discursos sobressai-se uma universidade quase

ontologicamente democrática, como espaço plural em si negando o pacto do aparelho

educacional de Estado com a reprodução da divisão do trabalho (SAES, 2008, p. 174)

que é ao mesmo tempo elitista e racista.

Longe de um programa totalmente forjado fora da lógica que orientava a

formulação de outros programas inclusivos já existentes nas universidades estaduais de

São Paulo, o PIMESP reproduziu (ainda que não de todo) a definição “do problema e da

solução” relativa à ampliação do acesso às universidades que estiveram nos

pressupostos de criação dos programas inclusivos vigentes nas estaduais paulistas como

o PAAIS, o Profis, o INCLUSP e o PASUSP. E afirmamos isso com base em dois

argumentos básicos.

Em primeiro lugar, em relação à definição do problema, a saber, da não presença

no espaço das universidades públicas de grupos historicamente oprimidos como

decorrente exclusivamente da má qualidade do ensino público. Tanto o PIMESP como

os demais programas partilhavam desse entendimento. E nesse sentido, a recorrência a

escola pública, acaba por jogar o racismo para fora do enquadramento da questão e a

pobreza e escola pública são tomadas como sinônimos, silenciando a estrutura de

classes e as hierarquias raciais que sustentam a exclusão da universidade. Como

resultado do enquadramento míope do problema do acesso, a negação do racismo e a

tomada do antirracialismo como antirracismo dissimulou o racismo institucional,

embasando a reprodução pelos docentes de uma narrativa muito próxima ao que Sueli

Carneiro (2002) chamou de “neo-democracia racial”.

Em segundo lugar, partindo da definição de que o problema é a má qualidade do

ensino público, a classe média, frente à pressão da classe dominante e do movimento

negro, buscou soluções que garantissem acima de tudo a manutenção do seu lugar de

268

reprodução. Para isso investiu em estratégias para controlar as fronteiras que dividem

trabalhadores manuais e trabalhadores não-manuais, garantindo o controle do processo

de sobrecertificação por meio da defesa dos programas inclusivos já existentes nas

universidades. Nesse contexto, a reivindicação da autonomia universitária teve um papel

importante, configurando-se em uma estratégia fundamental no conflito gerado em

torno do PIMESP.

Se por um lado, o conflito em torno do PIMESP nos informa acerca das novas

estratégias empregadas pela fração da classe média alta e branca frente à expansão do

acesso ao ensino superior, por outro, a narrativa empregada pelos docentes evidenciam

as tensões e choques na reprodução da estrutura racializada no Brasil, tornando

evidente, para nós, como aquela fração da classe média passa a ser agente que contribui

para a reprodução do imaginário que desumaniza a população negra no Brasil. Nessa

perspectiva, ao passo que afirma sua distinção pelas suas competências intelectuais, a

classe média branca constrói a base epistemológica que naturaliza a inferioridade da

população negra.

Parafraseando Fanon, que bem disse que um país é racista ou não é, o processo

de adoção das políticas afirmativas nas estaduais de São Paulo revelam os meandros dos

mecanismos que reproduzem as relações de classe e raça. As tensões racias, abertas e ao

mesmo tempo silenciadas, ao longo do processo que culminaram na rejeição do

PIMESP e que levaram a mera reformulação dos programas de “inclusão” já existentes

nas três universidades nos levam a refletir acerca dos limites da gramática da

diversidade que parece ter ganhado legitimidade junto à fração da classe média alta e

ligada à universidade naquele contexto.

A narrativa da diversidade, apropriada pelo neoliberalismo e reproduzida pelos

docentes expressa na “busca por talentos” presente em vários documentos analisados na

presente tese, é o mais do mesmo: reprodução da lógica da inclusão circunscrita no

horizonte do igualitarismo abstrato que esvazia os componentes históricos da luta

antirracista e que por isso não dialoga com os sujeitos políticos que reivindicam direitos

mas também o reconhecimento de uma história de opressão.

A reivindicação da diversidade presente no discurso dos docentes das

universidades estaduais paulistas, portanto, só é desejável na medida em que está

dentro dos critérios definidos pela fração da classe média alta e branca ou ainda nas

palavras do reitor da USP, Vahan Agopyan, “as cotas não são favor ou assistencialismo,

269

mas uma maneira de a universidade recrutar ótimos alunos e avançar” 112. O discurso da

“diversidade funcional” parece dar novos contornos à domesticação da luta pela

democratização do acesso à universidade, ao mesmo tempo em que modera os

conflitos de classe e raça.

A dinâmica que o capitalismo imprime às relações de classe, exigindo uma

renovação nos mecanismos de sustentação da hierarquia do trabalho, torna pertinente,

em nossa análise, a apropriação do conceito de racismo institucional para entendermos

como se dá a operacionalização da hierarquização racial a partir de mecanismos

rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização do negro de modo velado. E é a

partir dessa perspectiva- da negação dos condicionantes institucionais que perpetuam o

racismo- que inscrevemos a resistência da fração da classe média alta e branca no

debate sobre o PIMESP.

Do envolvimento (oportunista) nas lutas antiescravistas a reduto opositor da

adoção de reserva de vagas étnico-raciais, procuramos evidenciar na presente tese que

a narrativa da incompatibilidade entre competência e negritude não é um mero efeito

colateral da ideologia meritocrática reproduzida pela fração da classe média alta e

branca na busca pela manutenção da sua condição, mas é precisamente a reificação do

negro, fonte por excelência da afirmação da suposta superioridade daquela fração de

classe como justificativa para legitimar a manutenção do seu lugar na universidade.

112 Fonte: Revista Veja, edição online, 18 de maio de 2018. Disponível em:

https://veja.abril.com.br/revista-veja/um-passo-decisivo/ Acesso em: 20 jun. 2018.

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