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Luciene Ferreira da Silva Guedes
A CONSTRUO DE HABITUALIDADE INCEPTIVA NO PORTUGUS DO BRASIL:
UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
Juiz de Fora
2006
Luciene Ferreira da Silva Guedes
A CONSTRUO DE HABITUALIDADE INCEPTIVA NO PORTUGUS DO BRASIL:
UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
Dissertao de Mestrado apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras, Instituto de Cincias Humanas e de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, rea de concentrao Lingstica, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras.
Orientador: Maria Margarida Martins Salomo
Juiz de Fora
2006
Luciene Ferreira da Silva Guedes
A CONSTRUO DE HABITUALIDADE INCEPTIVA NO PORTUGUS DO BRASIL:
UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA
Dissertao de Mestrado submetida ao Instituto
de Cincias Humanas e Letras, UFJF, como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
Mestre em Letras e aprovada pela seguinte
banca examinadora:
____________________________________________________
Professora Doutora Maria Margarida Martins Salomo UFJF
ORIENTADORA e PRESIDENTE
____________________________________________________
Professora Doutora Maria Lcia Leito de Almeida UFRJ
MEMBRO TITULAR EXTERNO
____________________________________________________
Professora Doutora Neusa Salim Miranda UFJF
MEMBRO TITULAR INTERNO
Juiz de Fora, Dezembro de 2006
AGRADECIMENTOS
A Deus, minha inesgotvel fonte de vida e sabedoria.
coordenao do Programa de Ps-graduao em Letras pelo apoio e ateno.
Aos meus professores, grandes mestres, pelos conhecimentos valiosos e, principalmente, pela
lio de vida que cada um deixa transparecer.
minha inesquecvel turma do mestrado, Azussa, Bethnia, Glauce, Llian, Luciana Arruda,
Luciana Genevan, Mnica, Patrcia, e Roberto, companheiros de caminhada, de lutas e de
vitrias.
minha Orientadora, Professora Margarida Salomo, que me honrou com a oportunidade e o
prazer de aprender, por suas mos, a ser uma pesquisadora, e pelo apoio e motivao que me
permitiram seguir nesta empreitada.
Aos meus amigos que direta ou indiretamente sempre desejaram meu sucesso e so, de certa
maneira, responsveis por mais esta vitria.
minha famlia, pai, me, tia, irmos e sobrinhos, por suportarem a distncia, acreditarem na
minha capacidade e por serem o meu alicerce em todos os momentos.
Ao meu marido, Mairton, pela compreenso, incentivo, por ser meu exemplo de fora e
coragem, por nunca me deixar fraquejar e, principalmente, por demonstrar que o verdadeiro
amor realmente vence todas as barreiras.
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo uma construo especfica que
compe a rede construcional com o verbo dar em PB expressa atravs de uma perfrase da
acepo aspectual - a Construo Habitual Inceptiva. Nosso estudo faz uma reanlise da tese
de Salomo (1990) para esta construo. A partir das premissas tericas do
sociocognitivismo, postulamos que a Construo Habitual Inceptiva uma Construo do
Portugus do Brasil; para tanto, buscamos reconhecer a relao entre essa construo e as
outras construes da rede com dar em PB e os elos de herana e motivao que a instanciam
atravs da mesclagem conceptual, explicitando as especificidades desta construo que lhe
garantem a identidade nica.
ABSTRACT
This dissertation studies a specific grammatical construction in Brazilian Portuguese
- the Inceptive Habituality Construction, the verb dar, give, in Portuguese. It shows that
the construction inherits from three others, namely a Modal Construction, also expressed
with give, a Factivity Construction, introduced by the Perfectivity marker, and
aTopicalization Construction, via word order. The dissertation findings are relevant both to
studies in grammaticalization as in Construction Grammar theory.
SUMRIO
1. INTRODUO 07
2. A GRAMTICA NA PERSPECTIVA DA LINGUISTICA SOCIOCOGNITIVA 10
2.1. Sintaxe e semntica nas abordagens tradicionais 102.1.2. A concepo sociocognitiva 122.1.3. Noo de foco e perspectiva 132.2. A motivao conceptual da gramtica 182.2.1. A gramtica como uma rede de construes 212.3. Projees figurativas: metfora, metonmia e mesclagem conceptual 252.4. Arquitetura Paralela 312.5. O processo de gramaticalizao 352.5.1. Gramaticalizao e forma gramaticalizada 372.5.2. Mecanismos da gramaticalizao 38
3. ASPECTO 40
3.1. Consideraes preliminares 403.2. Tempo e Aspecto 413.2.1. Aktionsart 423.3. Perfectivo e Imperfectivo 443.3.1. Habitualidade 473.3.2. A categoria da Habitualidade no PB. 483.3.3. Inceptividade 51
4. MOTIVAO E CATEGORIA RADIAL: CONSTRUES COM O VERBO
DAR NO PORTUGUS DO BRASIL
56
4.1. Primeiras consideraes 564.2. A proposta de uma rede construcional 574.2.1. A construo central e os seus subcentros 594.2.2. Os subcentros 634.2.2.1. O subsistema de CAUSAO 634.2.2.2. O subsistema de MOVIMENTO 654.2.2.3. O subsistema de TRANSFERNCIA (METAFRICA) DE RECURSO 664.2.2.4. O subsistema de AO 67
5. ANLISE DA CONSTRUO DE HABITUALIDADE INCEPTIVA 69
5.1. Quadro hipottico 695.1. A construo Habitual Inceptiva 705.2.1. A semntica da construo 725.2.2. Sintaxe da Construo 795.3. Outras construes Inceptivas com dar. 815.3.1. A construo Inceptiva dar em 815.3.2. A construo Inceptiva dar de 825.3.2. Por que todas estas construes? 83
5.4. O processo de gramaticalizao na rede 84
6- CONCLUSES 85
BIBLIOGRAFIA 88
APNDICE 92
1- INTRODUO
O presente estudo toma como objeto um conjunto de construes do Portugus do
Brasil expressas atravs de uma perfrase da acepo aspectual de Habitualidade Inceptiva,
altamente produtivas no uso corrente. Esta construo pertence a um subcentro dentro da rede
construcional com o verbo dar em PB, ilustradas pelos seguintes exemplos:
(1) Ela tambm deu pra ficar mais tempo acordada que dormindo e est ocupando. (AP.5)1
(2) Absurdamente, ele deu pra ser muito, muito amoroso comigo, o meu filho. (AP.18)
(3) O Ex deu pra ter crise de conscincia. (AP.26)
(4) Voc deu pra ler poesia agora, Irani? (AP.53)
(5) Agora ele deu pra danarino. (AP.81)
(6) Depois de seduzi-la por meses at faz-la reavaliar uma reconciliao, agora deu
pra se fazer de gostoso, no atender telefonemas. (AP.87)
(7) Agora deu pra chover todo o dia. (AP.76)
1 Esta identificao refere-se aos exemplos retirados da WEB e que esto relacionados no apndice.
Nosso estudo trata as especificidades sintticas, semnticas e pragmticas dessa
construo lanando mo dos pressupostos do sociocognitivismo, buscando reconhecer a
motivao conceptual subjacente ao seu uso. Nesse sentido, postulamos que tal construo
constitui um caso de herana mltipla de outras construes: a construo Modal Habilitativa,
a construo de Topicalizao e a construo Factiva, sendo que seu esquema sinttico-
semntico mescla essas trs construes. Alm disso, a Construo Habitual Inceptiva
sustenta uma Habitualidade inerente, que no se resume mera repetio de uma situao, e,
diferentemente de outras habituais, possui o foco na Resultante deflagrada.
A fim de se chegar a essa anlise, recorremos principalmente aos trabalhos de Lakoff,
Fauconnier, Fauconnier & Turner e Goldberg cujas abordagens so revisitadas no captulo 2
desta dissertao. Buscamos complementar essas concepes com a Hiptese da Arquitetura
Paralela proposta por Jackendoff, que se mostra convergente com a anlise construcional, e
com uma breve recenso dos estudos funcionalistas e tipolgicos da gramaticalizao, visto
que nossa construo uma expresso perifrstica da acepo aspectual Habitual Inceptiva,
que se gramaticalizou dentro da rede construcional que emprega como predicador o verbo
dar.
Nosso captulo 3 se ocupa do recenseamento da literatura clssica do Aspecto,
considerando as acepes de Comrie, e, tambm, de alguns tratamentos do Aspecto em
Portugus, alm das consideraes de Salomo (1990) sobre esta categoria.
No captulo 4, resenhamos brevemente a tese de Salomo (1990), destacando,
principalmente a rede construcional com o verbo dar em PB, e seus subcentros motivados.
A partir desse arcabouo terico, passamos, no captulo 5, a anlise especfica da
construo Habitual Inceptiva, empreendendo uma reanlise da tese de Salomo (1990) para
esta construo, reconhecendo a relao entre essa construo e as outras construes da rede
com dar em PB e os elos de herana e motivao que a instanciam. Em suma, buscamos em
nossa anlise explicitar as especificidades desta construo que lhe garantem a identidade
nica.
Acreditamos que nosso trabalho se faz relevante pois devotamo-nos a descrio dos
fenmenos lingsticos tpicos do Portugus falado no Brasil; tratamos nesta dissertao da
categoria gramatical do Aspecto, fenmeno este pouco estudado no Portugus do Brasil em
funo da sua relativa opacidade formal, ou seja, fundido com Tempo, Modo, Classe
Morfolgica; buscamos apresentar evidncias que corroborem a hiptese sociocognitiva da
continuidade essencial entre lxico/morfologia e sintaxe. E dessa forma, oferecemos
argumentos materiais que contribuem para a concepo da linguagem como uma rede
construcional.
2. A GRAMTICA NA PERSPECTIVA DA LINGUISTICA SOCIOCOGNITIVA
2.1. Sintaxe e semntica nas abordagens tradicionais
Grande parte dos desenvolvimentos da lingstica no sculo XX, empreendidos
principalmente pelas vertentes estrutural e gerativa, seus grandes pilares, consolidaram-se sob
uma viso abstrata, universalista, sistmica e formal do objeto da lingstica. Para os estudos
da linguagem, inauguram a era da forma (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 03).
Com efeito, clara a autonomia atribuda faculdade da linguagem e aos fenmenos
lingsticos em si, que, sob esta viso, so descritos como se fossem alheios s outras
capacidades humanas. No obstante, inegvel a contribuio dessas vertentes lingstica
contempornea, razo pela qual passamos a considerar certos aspectos fundamentais de
ambas, ainda que sucintamente.
Saussure, ao adotar a langue como objeto de investigao, lana mo do conceito de
sistema, apreendendo a realidade social como um conjunto formal de relaes. Segundo sua
definio "a lngua produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenes
necessrias adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos
indivduos" (SAUSSURE, 1975 [1916], p. 17). Assim, a lngua exterior ao indivduo, que,
por si s, no pode nem cri-la nem modific-la, ela no existe seno em virtude duma
espcie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade (SAUSSURE, 1975
[1916], p. 22). Nesse sentido, o estudo da linguagem restringe-se s estruturas lingsticas e
maneira como as mesmas se relacionam dentro do sistema.
Chomsky, embora sustente uma anlise formalista estrutural dos fenmenos
lingsticos, empreende uma ruptura epistemolgica com esta tradio ao conceber que o
objeto da lingstica no a langue, mas a competncia lingstica de um falante-ouvinte
ideal situado numa comunidade de fala homognea. Assim, adota uma teoria lingstica
mentalista na medida em que objetiva descobrir a realidade mental subjacente ao
comportamento efetivo (CHOMSKY, 1975 [1965], p. 83-84).
Ancorado nas teorias de cunho racionalista, Chomsky idealiza um sujeito dotado
geneticamente de um mdulo cognitivo autnomo, responsvel pela aquisio da linguagem,
definido de forma descontextualizada, embora ativado pelo uso.
A aproximao racionalista sustenta que, para alm dos mecanismos
perifricos, existem idias e princpios inatos de vrios tipos que
determinam a forma do conhecimento adquirido dum modo que pode ser
considerado bastante restritivo e organizado. Uma condio para que os
mecanismos inatos sejam activados consiste na estimulao apropriada
(CHOMSKY, 1975 [1965], p. 131-132).
A infinitude discreta, ou seja, a geratividade, tema primordial na teoria chomskyana,
exibe uma natureza exclusivamente sinttica, algortimica e composicional, uma vez que a
gramtica constitui-se num sistema finito de regras responsvel pelo poder de gerar um
nmero ilimitado de estruturas lingsticas.
Sob o vis formalista, portanto, os aspectos pragmticos e semnticos do uso da
lngua, a dimenso sociocultural do sujeito e a idiomaticidade inerente s lnguas humanas so
preteridos como objeto de investigao.
Em funo disso, a lingstica cognitiva, herdeira da semntica gerativa, manifesta-se
como uma ruptura frente ao paradigma formal, principalmente no que respeita questo do
sentido e das determinaes pragmticas sobre a construo da significao.
2.1.2. A concepo sociocognitiva
O arcabouo terico da Lingstica Sociocognitiva (SALOMO, 1999) ao aproximar
linguagem, contexto, pragmtica e cognio implica em mudana considervel na orientao
dos estudos lingsticos, na medida em que se dispe programaticamente a estudar um
falante/ouvinte real, histrico, cultural e socialmente inserido.
Em vista disso, a linguagem passa a ser considerada uma capacidade social e
cognitiva, e o sujeito passa a figurar ativamente no processo de construo do significado.
Nos termos de Salomo (1999), a vertente sociocognitiva define-se por conceber uma
linguagem:
operadora da conceptualizao socialmente localizada atravs da atuao de um sujeito cognitivo, em situao comunicativa real, que produz significados como construes mentais, a serem sancionadas no fluxo interativo. Em outras palavras, a hiptese-guia que o sinal lingstico (em concomitncia com outros sinais) guie o processo de significao diretamente no contexto de uso. Pela sua nfase equilibrada em todas as fontes de conhecimento disponveis (gramtica, esquemas conceptuais, molduras comunicativas), esta hiptese denomina-se sociocognitiva (SALOMO, 1999, p. 64).
Como se pode inferir, tal hiptese advoga em favor da escassez do signo lingstico,
que funciona como uma pista no contexto de uso. Essa caracterizao advm do fato de a
hiptese postular a linguagem como parte da cognio, ou seja, contgua a outras semioses e a
outros processos cognitivos.
Conforme Fauconnier e Turner (2002, p. 03-15), a tradio anterior toma o significado
pela sua representao formal, ignorando que a significao construda atravs de operaes
mentais complexas. A metfora da armadura de Aquiles evoca exatamente este equvoco de
tomar o aparato blico pelo guerreiro analogia ao equvoco de tomar a armao do
significado [a expresso simblica] pelo vigoroso, complexo e oculto processo de construo
significativa. Na verdade, cabe linguagem a funo de deflagrar, dentro de um contexto
especfico, domnios conceptuais scio-culturalmente constitudos, que progressivamente se
especificariam como a significao local, comunicativamente vlida.
A fim de ilustrar este programa de estudos, consideremos um caso de Modificao
Adjetival como na sentena mulher boa. Caso essa sentena seja proferida por algum ou
alguma entidade que recebeu uma demonstrao de sua bondade, provavelmente estar se
referindo sua generosidade pessoal; proferida no local de trabalho onde ela preste um
servio de qualidade, poder referir-se sua competncia profissional; enunciada por pessoas
que levem em considerao sua aparncia, pode referir-se aos seus dotes fsicos. Desse modo,
percebe-se que o significado no calculvel simplesmente a partir da soma das partes
constituintes da sentena, mas emerge de um conjunto de pistas, lingsticas e contextuais,
alm da perspectiva de quem a enuncia.
Conclui-se que a lingstica sociocognitiva, embora no negue a composicionalidade,
admite suas limitaes, pois considera um sujeito cognitivo, que possui uma base de
conhecimentos construda social e culturalmente, bastante distinto do falante/ouvinte
inocente nos termos de Fillmore (1979).
2.1.3. Noo de foco e perspectiva
A lingstica sociocognitiva considera que o sujeito figura efetivamente no processo
de construo do significado, que se d no curso da interao, na medida em que o falante
assume uma determinada perspectiva e age dentro de especfica cena comunicativa.
O conceito de frame, proposto por Fillmore, no final da dcada de setenta, traduzido
pela lingstica sociocognitiva como enquadre, essencial no processo de construo do
significado, visto que o mesmo implica uma operao de fatiamento de uma cena conceptual
em termos da relevncia informacional atribuda s dimenses que a compem. Assim, no
curso da interao a expresso lingstica salienta algumas dimenses do processo cognitivo,
que so relevantes para a interpretao, e apaga ou desfoca outras (SALOMO, 1999,
p.43-46).
Como define Salomo (1999, p. 45) enquadrar estabelecer uma certa projeo sobre
um domnio cognitivo determinado; em outras palavras, enquadrar ter uma perspectiva
diferenciada sobre uma determinada situao. Assim, o ponto de vista do participante da
interao fundamental, uma vez que sem a identificao do adequado ponto de vista
possvel contribuir equivocadamente a significao.
Em Ingls, Lakoff (2006, p. 28) observa que a expresso The Wednsday meeting was
moved two days ahead pode possibilitar duas interpretaes para o novo dia de reunio:
sexta-feira, se o intrprete adotar o ponto de vista de Ego avanando sobre a trajetria do
tempo, ou, segunda-feira se o intrprete adotar o ponto de vista do tempo avanando em
direo ao Ego.
Comrie (2001 [1976], p. 4), por exemplo, ao abordar a categoria lingstica do
Aspecto, argumenta que a distino entre Perfectivo e Imperfectivo no uma diferena
objetiva entre situaes, pois possvel para o falante referir-se mesma situao de forma
perfectiva ou imperfectiva sem cair em contradio. Dessa forma, a diferena entre as
expresses ela leu o livro e Ela estava lendo (quando ele chegou) reside no fato de que
enquanto a primeira sentena, Perfectiva, visualiza a situao de fora, como uma situao
fechada, a outra sentena, Imperfectiva, adota uma perspectiva interna, ou seja, considera as
fases em que o processo se desdobra. Portanto, a distino entre Perfectivo e Imperfectivo se
d em funo da perspectiva comunicativa adotada pelo falante.
O conceito de enquadramento adotado pela viso sociocognitiva considera que bases
de conhecimento estruturado (ou frames) constituem condio indispensvel a qualquer
processamento de informao, que , desta forma, circunstanciado s estruturas de memria
pessoal e/ou scio-histrica.
Em vista disso, a lingstica sociocognitiva concebe que o processamento do discurso
implica a ativao de complexas construes cognitivas, que podem ser estveis ou locais.
Modelos Cognitivos Idealizados, Molduras Comunicativas e Esquemas Genricos constituem
domnios estveis de conhecimento que so evocados na representao lingstica e
contextual. Os Espaos Mentais, doravante EMs, por sua vez, constituem os domnios locais.
Conforme Lakoff (1987, p. 68), o conhecimento humano organiza-se por meio de
Modelos Cognitivos Idealizados, ou MCIs, modelos mentais do mundo, criados em funo
das experincias corporais, sociais, histricas e culturais dos usurios da linguagem. Assim,
os MCIs se configurariam como estruturas de memria pessoal ou social.
Para Lakoff (1987, p. 74-76), estruturas categoriais e efeitos prototpicos so produtos
dessa organizao. O conceito de me, por exemplo, possui um sentido central, prototpico,
que envolve uma complexa combinao de vrios modelos individuais, tais como: me
quem d a luz, quem contribui com os genes, quem cria, que casada com o pai. A partir
desse MCI bsico, outros conceitos so construdos como me adotiva, me de aluguel, me
biolgica, me solteira, etc.
As molduras comunicativas, conforme Salomo (1999, p. 30 e ss.), presumem a
definio das identidades dos participantes na interao, dos papis sociais que eles
desempenham, do tipo de simetria das relaes sociais entre eles, do tipo de agendas que
organizam os encontros. Os esquemas genricos, por sua vez, so esquemas conceptuais
representados de forma mais abstrata. Caracterizam-se pela flexibilidade de sua instanciao,
de acordo com as necessidades locais manifestadas.
Os Espaos Mentais, que constituem os domnios locais, so estruturas mentais que
pertencem memria de trabalho; so, pois, instveis e transitrios, variando com o fluxo
discursivo.
Conforme Salomo (1999), em sua recenso do trabalho de Fauconnier (1994; 1997),
os EMs organizam-se internamente por meio dos domnios conceptuais mais estveis (MCIs,
molduras comunicativas, esquemas genricos), e, externamente encontram-se ligados uns aos
outros por conectores, ou seja, marcas lingsticas e contextuais, que relacionam elementos
atravs de espaos.
Os espaos criados no decorrer do discurso formam uma complexa rede hierrquica:
um espao capaz de gerar outros espaos distintos que podem entrar e sair de foco,
conforme a dinamicidade dos processos do pensamento que, por sua vez, se manifestam
atravs da linguagem.
Numa rede, cada espao possui caractersticas prprias, ou seja, distingue-se dos
outros atravs da funo que cumpre no processo discursivo. Em qualquer ponto do discurso
pode ser instanciado um espao BASE, que ancora o falante, ou seja, incorpora sua
perspectiva sobre a situao comunicativa (participantes e tipo de evento), assim como o seu
ponto de vista cognitivo. O espao BASE responsvel por desenvolver o espao FOCO, que
indica qual espao est ativo num dado momento do discurso, isto , qual a informao
saliente, mais importante, naquele instante.
Os espaos mentais so estruturados, segundo Fauconnier (1997, p. 40), atravs de
construtores de espaos (space builders), que so expresses gramaticais (expresses
nominais, verbais, preposicionais e adverbiais) incumbidas de abrir um novo espao ou de
mudar o foco entre os espaos existentes.
Veja-se o exemplo no meu tempo, a escola pblica era boa. Nessa sentena tem-se
como space builder a locuo adverbial no meu tempo, que introduz o espao mental Passado
(P), diferindo do espao base (B), onde figura a entidade a (escola pblica) e tem sua
contraparte identificada por a. De acordo com a proposta de Fauconnier 1994, 1997, a
formalizao dessa sentena supe as seguintes relaes:
Figura 1
A configurao representada acima, entretanto, um exemplo de operaes bem mais
complexas, que foram aprimoradas em Fauconnier e Turner 2002, tal como apresentar-se- na
seo que encerra projees figurativas.
Na perspectiva de Jackendoff (2002, p. 408-416), o FOCO codificado pela estrutura
conceptual atravs da camada da estrutura informacional. A estrutura informacional preocupa-
se com o fluxo de informao na interao falante/ouvinte os meios pelos quais o falante
quer informar ao ouvinte, ou seja, aquilo para que o falante quer sensibilizar o ouvinte: qual
B
(Base / Ponto de vista)
P (Foco)
a
a
a: escola pblicaBOA a
a informao mais relevante, mais nova ou j conhecida ou facilmente recupervel no
contexto. Portanto, Jackendoff converge com os lingistas cognitivos na preocupao com a
codificao do ponto de vista e, sinteticamente, estabelece o seguinte leque de distines:
i) FOCO SIMPLES:
- Quem tava no show?
- O Joo.
ii) FOCO RESTRITIVO:
- Quem tava no show? O Joo, o Pedro ou o Thiago?
iii) FOCO CONTRASTIVO:
- Quem tava no show? O Joo ou o Pedro?
iv) FOCO METALINGSTICO:
- Eu no falei LOBO, eu falei BO-LO.
2.2. A motivao conceptual da gramtica
As concepes de sentido e linguagem adotadas pela lingstica sociocognitiva
divergem claramente do modelo gerativista chomskyano, tal como exposto nas sees
anteriores. A teoria lingstica, nesta concepo, no imputa sintaxe exclusividade na
gerao da linguagem; mas postula uma geratividade manifestada em diversos domnios, sem
estabelecer fronteiras rgidas entre fonologia, sintaxe, morfologia, semntica e pragmtica.
A concepo de gramtica adotada pelos cognitivistas procede principalmente dos
estudos de Langacker (1987) e Lakoff (1987), cujas abordagens, embora distintas,
argumentam em favor de uma gramtica motivada conceptualmente, definida por seu carter
simblico. Nessa perspectiva,
a gramtica , essencialmente, uma estrutura simblica e significativa. Por
essa razo, a gramtica deve ser explicada em referncia ao sistema
conceptual que ela expressa e a forma gramatical deve ser analisada como
sendo motivada pelo significado que ela conduz. (LANGACKER apud
SALOMO, 1990, p. 13, grifo do autor)
A questo da motivao da gramtica uma discusso antiga e complexa. Embora
Saussure tenha alegado que o signo lingstico, em sua natureza, arbitrrio, ele, entretanto,
reconhece que na relao significado e significante existe a possibilidade de motivao.
Entretanto, essa motivao aparece sob o rtulo de arbitrariedade relativa, ou seja, palavras
como dez e nove, signos totalmente arbitrrios, mantm com o significado uma relao
imotivada; j a palavra dezenove apresenta uma arbitrariedade atenuada, uma vez que seu
significado deriva das partes que a compem (SAUSSURE, 1975 [1916], p. 152-155).
J para a lingstica cognitiva, tal como argumentado por Lakoff (1987, p. 346), a
noo de motivao caracterizada de maneira diferente: trata-se alguma entidade simblica
como sendo motivada quando ela no arbitrria e no previsvel. A motivao no um
fenmeno algortmico, mas ocupa lugar central na cognio, pois mais fcil aprender
alguma coisa que motivada do que alguma coisa que arbitrria.
Na viso de Lakoff (1987, p. 538), a estrutura cognitiva organizada em termos de
boas gestalts e variaes mnimas das mesmas, o que torna todo o processamento cognitivo
fcil de aprender e de usar. Dessa forma, a eficincia cognitiva maximizada. Quando
ocorrem diversas variaes mnimas de um modelo cognitivo bem estruturado, o resultado
uma categoria estruturada radialmente.
Ao estudar a rede polissmica do verbo dar no Portugus do Brasil, Salomo (1990)
adota a hiptese que apresenta a gramtica como sendo conceptualmente motivada, ou seja,
prope a existncia de uma rede construcional, que uma categoria estruturada radialmente
cujo centro ocupado por uma construo do tipo Maria deu um pedao de bolo para Joo,
que sustenta o sentido cannico de TRANSFERNCIA DE POSSE; as demais construes
integrantes da rede so motivadas e baseadas nessa construo central por meio de projees
figurativas metafricas e metonmicas. Assim, a geratividade, longe de ser um fenmeno
algortmico, se d atravs de projees simblicas que possibilitam uma irradiao de
construes especficas (voltamos a tratar deste tema no captulo 4 desta dissertao).
As categorias lingsticas apresentam funcionamento semelhante a outras categorias
do nosso sistema conceptual, ou seja, exibem efeitos prototpicos e de nvel bsico. Assim,
uma categoria radial, fundamentada no esquema imagtico centro-periferia, estrutura-se a
partir de um modelo central que previsvel, ao passo que os membros no-centrais so
motivados por este e conservam com ele certas semelhanas.
Sob o vis cognitivista, a composicionalidade , ento, revisitada. Ainda na dcada de
70, Fillmore (1979) discute diversas expresses, convencionalizadas impossveis de serem
geradas ou interpretadas observando-se princpios de composicionalidade estrita. Desse modo,
reinaugura a investigao de fenmenos idiomticos antes considerados perifricos pela
grande tradio dos estudos lingsticos.
Considere-se o exemplo das Construes Idiomticas Negativas Enfticas do tipo No
vou festa nem que chova canivete, nem que a vaca tussa, nem que a galinha crie dentes,
nem morta, etc. Tais construes cristalizadas no PB, de modo algum tm seu significado
calculado somente das suas partes componentes, mas, numa anlise bastante simplificada, so
instanciadas sob o padro no Y nem que Z, configurando-se como herdeiras das
construes de dupla negao e das construes subordinadas concessivas. Contudo, as
Expresses Idiomticas Negativas Enfticas possuem uma finalidade pragmtica especfica,
com a inteno de atribuir um efeito jocoso e de criar uma situao inusitada expressa pela
orao concessiva2. Provavelmente, um padro abstrato especfico permite que construes
inditas sejam instanciadas, tais como, No vou nem que Jesus Cristo aparea l, No fao
nem que a vaca morra de tuberculose, entre outras.
Ao assumir que a gramtica motivada por fatores lingsticos, corporais, culturais e
sociais, a lingstica cognitiva assume que a forma no autnoma nem se autojustifica, mas
que as lnguas se organizam como redes de construes com significados interligados.
Nessa perspectiva, surge a Gramtica das Construes. A mesma, por partilhar muitos
fundamentos tericos e filosficos com a lingstica cognitiva, acaba por constituir-se como a
teoria da gramtica deste projeto cientfico.
2.2.1. A gramtica como uma rede de construes
Conforme observado na seo anterior, a Gramtica das Construes emerge em
funo da necessidade de se reconhecer que as lnguas so constitudas por unidades
lingsticas cuja complexidade no se resume a clculos combinatrios simples.
Na viso de Goldberg (1995, p. 01-23), as construes gramaticais definem-se como
pareamentos forma-sentido, dotadas de significado independentes dos itens lexicais que as
instanciam, diferenciando-se entre si quanto sua complexidade, ou seja, podem ser unidades
analticas em diversos nveis (morfologia, sintaxe ou discurso). Assim sendo, a Gramtica das
Construes se funda na concepo de que lxico e gramtica no se distinguem, ou seja,
entende-se a gramtica como uma rede de construes, lxico e sintaxe formando um s
contnuo. Tal rede, acompanhando Lakoff (1987, p. 462-468), caracteriza-se como uma rede
de ligaes por herana.
2 Mais detalhes da anlise ver GUEDES, L. & MATSUOKA, A. Anlise das construes Idiomticas Negativas Enfticas: uma viso cognitivista. Revista Eletrnica Gatilho, Juiz de Fora, 2005.
Essa concepo corroborada por estudos realizados recentemente, como a anlise de
Pulhiese (2004), que toma como objeto de investigao as construes reflexivas que
aparecem destransitivizadas, ou seja, sem o pronome reflexivo, dito expletivo, chamadas
construes desreflexivizadas. Nesse escopo, construes do tipo A eu machuquei no
servio e aposentei por invalidez, ao invs de constiturem um caso de variao da valncia
verbal, como na anlise anterior, so motivadas pela reflexiva cannica com foco no resultado
da ao e constituem um caso de reenquadramento da cena conceptual.
Os pressupostos de Goldberg (1995), assim como outras investigaes acerca da
especificao da estrutura argumental, buscam superar as solues lexicalistas que resolvam
este problema aumentando o nmero de entradas lexicais de um predicado.
Salomo (2002, 2005) reconhece em Portugus a CONSTRUO DO
PREJUDICADO, que se encontra em oposio Construo do Beneficirio, configurando-se
como uma instncia particular da Construo do Objeto Afetado. Vejam-se os seguintes
exemplos:
(8) Ele ainda me bate com o carro, amassa o carro do sujeito e tem a cara de pau de
falar que o amassado j tava!
(9) Fui fazer um baita discurso sobre o Guga e ele me perde logo na estria!
(10)E agora em 2006 ele me cai de uma rvore e arrebenta a cabea.
Conforme Salomo (2002, 2005), uma abordagem lexicalista restringiria a tais usos a
aplicao de uma regra lexical valncia intransitiva dos verbos bater, perder e cair,
registrando uma valncia ad hoc para cada um destes diferentes verbos.
Ao assumir a abordagem construcional, Salomo (2002, 2005) estabelece que haja
uma configurao sinttica, pareada com a indicao pragmtico-semntica correspondente,
que poder ser empregada com qualquer predicado, semanticamente cabvel, na circunstncia
em que o falante queira se apresentar como negativamente atingido pela situao evocada.
Nesse sentido, o tratamento construcional representa um avano, pois permite
reconhecer generalizaes, como a CONSTRUO DO PREJUDICADO, cuja interao
com cada um dos verbos considerados compreende uma mudana sinttica e semntica.
Na concepo de Goldberg (1995, p. 50), a integrao entre lxico e gramtica realiza-
se respectivamente atravs da fuso entre as funes dos participantes e as funes
argumentais. A fuso entre essas funes especificada por dois princpios: o princpio da
coerncia semntica, que presume compatibilidade semntica entre as funes, e o princpio
da correspondncia, que expressa a obrigatoriedade da correlao entre as funes. Pode
ocorrer tanto a omisso de um participante, como nos casos de Destransitivizao do tipo Ele
bebe () bastante, Escrever () bem no fcil, como pode ocorrer o acrscimo de um
argumento, como na construo do prejudicado.
Sob essa viso, Salomo (2004) mostra que a Construo Transitiva com sujeito
Afetado do tipo Ele me assou uma picanha no ponto motivada pela construo Transitiva
Cannica Ele assou uma picanha no ponto e pela Construo do Beneficirio (para x),
constituindo-se assim, num caso de herana mltipla.
Desse modo, a Construo Transitiva Cannica apresenta como participantes o
ASSADOR e a COISA ASSADA, que correspondem respectivamente aos papis argumentais
de Agente e Paciente, que por sua vez mantm uma correlao com a estrutura sinttica, ou
seja, os papis gramaticais, como se nota na configurao seguinte baseada em termos
goldbergianos:
Figura 2: CONSTRUO TRANSITIVA CANNICA
De acordo com as observaes de Goldberg (1995, p. 39-43), a variao na valncia
do verbo se d em funo da cena comunicativa na qual o participante esteja envolvido.
Assim, na Construo do Beneficirio, que uma das instanciaes da construo do sujeito
Afetado, tem-se o acrscimo do Beneficirio, configurando-se como um novo argumento do
verbo, que inscrito por linhas pontilhadas como apresentado na seguinte representao:
Figura 3: CONSTRUO DO BENEFICIRIO
Sem. FAZER MUDAR < AGT PAC >
R
P: assar < assador coisa (assada) >
Sx V SUJ OBJ. DIRETO
Sem. FAZER MUDAR < AGT PAC BEN >
R
P: assar < assador coisa (assada) >
Sx V SUJ OBJ. DIRETO OBJ. IND.
Percebe-se que a presente anlise assume o conceito de motivao, pois as
construes estabelecem vnculos que formam uma rede construcional atravs de elos de
herana, e so parcialmente especificadas a partir de uma construo mais bsica.
Segundo Salomo (2005, p. 07), esta viso motivacionista da gramtica, expressa
programaticamente por Langaker, para quem a sintaxe semntica congelada, facilita o
tratamento da emergncia de formas lingsticas calcadas no uso, como o caso das formas
originadas por gramaticalizao. Tal processo de suma importncia para a anlise que nos
propomos realizar nesta dissertao.
Embora esta abordagem construcional seja inegavelmente superior a tradio formal,
mostra-se menos apta quanto ao tratamento da sub-especificao dos domnios conceptuais;
assim as relaes de herana sofrem uma reviso a fim de oferecer uma abordagem mais
processual dos fenmenos lingsticos.
2.3. Projees figurativas: metfora, metonmia e mesclagem conceptual
Para a vertente cognitivista, a noo de projeo um conceito caro, uma vez que
ultrapassa as relaes formais algbricas, tratadas na lingstica gerativa, em favor da
considerao das relaes entre domnios, tratadas como centrais para a cognio e para a
linguagem.
A partir dos estudos seminais de Lakoff e Johnson (2002 [1980], p. 45-48), a metfora,
at ento vista como um simples ornamento, um desvio da linguagem usual, limitada
Potica e Retrica, passa a ser considerada um fenmeno cognitivo constitutivo do
pensamento e da ao humana. Nessa perspectiva, as metforas so concebidas como
mapeamentos entre domnios conceptuais, constituindo-se num dos principais instrumentos da
cognio humana e, como tal, onipresente em expresses lingsticas da fala quotidiana.
Nos termos de Salomo (2005, p. 08), a partir dessa concepo torna-se possvel
compreender e explicar toda uma rede de marcadores aspectuais em Portugus atravs de
metforas convencionalizadas como TEMPO ESPAO e MUDANA MOVIMENTO,
como se evidencia nos seguintes exemplos:
(11)Entrei na faculdade no primeiro semestre de 2000. (Inceptivo)
(12)Estou na faculdade desde 94. (Estativo)
(13)Passei a faculdade inteira ouvindo legio urbana. (Progressivo)
(14)Eu sa da faculdade muito crua. (Terminativo)
Conforme Salomo (2005), o conjunto de verbos espaciais utilizados nestas
expresses motivado pela metfora EVENTOS SO LUGARES, por conseguinte, a
Incepo do Evento compreende a Entrada no mesmo, a Terminao compreende a Sada, a
Durao compreende a Passagem e a Instanciao compreende a Estadia. Visto que essas
expresses manifestam os contrastes da categoria gramatical do Aspecto, conclui-se que a
metfora motiva esta expresso gramatical.
Lakoff (1993, p. 01-07) postula que o lcus da metfora no a linguagem, mas a
maneira como conceptualizamos um domnio mental em termos de outro. Desse modo, a
metfora caracterizada como um mapeamento cognitivo atravs de domnios conceptuais,
pelo estabelecimento de correspondncias. Entende-se tambm, que o mapeamento na
metfora sempre unidirecional.
Na metfora O AMOR UMA VIAGEM, por exemplo, o domnio da JORNADA,
que constitui um subdomnio do MOVIMENTO, mapeado sobre o domnio do AMOR, que
constitui um subdomnio das EMOES. Nessa projeo haver correspondncias parciais
como: VIAGEM / RELAO AMOROSA; VIAJANTES / AMANTES; VECULO /
RELAO AMOROSA; PERCURSO / HISTRIA. Assim, temos expresses nas quais essa
metfora torna-se consistente, tais como nossa relao chegou ao fim; nossa relao est
num beco sem sada; nosso casamento est caminhando pra crise dos sete anos; entre outras.
Consoante Lakoff (1993, p. 10), os mapeamentos, entretanto, no ocorrem
aleatoriamente, mas respeitando restries, reunidas no Princpio da Invarincia. Tal
princpio estabelece que os mapeamentos metafricos preservam a tipologia cognitiva do
domnio fonte, de maneira consistente com a estrutura do domnio alvo. Esse princpio
garante que, no esquema imagtico do CONTAINER, por exemplo, INTERIORES sejam
mapeados sobre INTERIORES, EXTERIORES sobre EXTERIORES, e FRONTEIRAS sobre
FRONTEIRAS. Ocorre, entretanto tambm, uma preservao da estrutura conceptual do alvo,
que no pode ser violada.
A metonmia, por sua vez, definida por Lakoff (1987, p. 77) como um princpio
cognitivo bsico no qual se focaliza um aspecto saliente de uma dada categoria, de tal modo
que este aspecto usado para representar a categoria como um todo. Assim, a metonmia, ao
contrrio da metfora, envolveria um mesmo domnio conceptual, em que a expresso de um
subdomnio suficiente para a evocao total do domnio alvo.
Segundo Barcelona (2003, p. 04), embora a metfora tenha na literatura recente
recebido mais ateno que a metonmia, esta , provavelmente, mais bsica para a cognio e
para a linguagem. Assim, a hiptese de Barcelona (2003, p. 31) de que qualquer
mapeamento metafrico pressupe um mapeamento metonmico conceptualmente anterior.
A fim de validar sua hiptese, Barcelona (2003, p. 35-48), parte de supostos contra-
exemplos, como a metfora CORES BERRANTES SO SONS ESTRIDENTES. Barcelona
refuta a posio de que tal metfora seja instanciada a partir de um atributo do domnio da
audio mapeado sobre o domnio visual. Antes, o autor defende que o mapeamento
metafrico ocorre entre um domnio altamente especfico, isto , o domnio dos SONS
ESTRIDENTES, e um domnio visual altamente especfico, o domnio das CORES
BERRANTES.
A maioria das cores constituda de uma escala orientada numa certa dimenso:
considerando o grau de luminosidade, possvel dizer, por exemplo, vermelho escuro e azul
claro; nesse sentido, o domnio das cores incorporaria uma norma para a escala
correspondente, de tal modo que h um ponto considerado normal naquela escala. Em
conseqncia, certas experincias perceptuais podero ser tratadas (em qualquer domnio
genrico) como aberrante ou transgresso.
Segundo Barcelona (2003, p. 37), a motivao metonmica para a metfora CORES
BERRANTES SO SONS ESTRIDENTES poderia, pois, ser representada da seguinte
maneira:
Domnio alvo Domnio fonte
Cores Berrantes
Domnio transgressivo na escala das cores
Sons Estridentes
Domnio transgressivo na escala tonal
Figura 4
Portanto, a motivao metonmica para a metfora seria a ativao da similaridade
entre o domnio alvo do mapeamento metafrico, que metonimicamente compreendido
como um subdomnio, e o domnio fonte do mapeamento metafrico, tambm compreendido
como um subdomnio. De fato, o que se d o mapeamento parcial de correspondncias
imagticas, o que mostra quo complexa esta operao cognitiva.
Augusto Silva (2003, p.27), ao abordar a distino metfora e metonmia, parece
alinhar-se a essa perspectiva por considerar a metonmia como uma relao contingente de
contigidade conceptual entre elementos de um mesmo domnio conceptual, ao passo que a
metfora consiste de uma projeo entre dois domnios distintos com base num conjunto
sistemtico de correspondncias por similaridade conceptual. Nesse sentido, metfora cabe a
estruturao do alvo em termos da fonte, enquanto metonmia cabe a ativao do alvo tendo
a fonte como ponto de referncia.
Conforme Barcelona (2003, p. 42), a metfora vem existncia como uma
generalizao de uma metonmia. O autor sustenta seu ponto de vista argumentando que o
Princpio da Invarincia, tal como na definio de Lakoff (1993, p. 10), funcionaria como
uma restrio metonmica sobre mapeamentos metafricos. Assim, o autor postula que
metfora e metonmia sejam consideradas como dois plos num continuum ao invs de
categorias separadas.
Desenvolvimentos posteriores, nas investigaes da lingstica cognitiva, conduzem
ao desenvolvimento da teoria da integrao conceptual (FAUCONNIER; TURNER, 2002),
que identifica os blendings, mesclagens, como uma operao bsica cuja estrutura uniforme e
propriedades dinmicas aplicam-se sobre muitas reas do pensamento e da ao, incluindo as
projees figurativas previamente estudadas.
Fauconnier e Turner (2002, p. 39-50) postulam a existncia de projees mltiplas, de
tal modo que projees bidominiais, no caso das metforas, venham a ser melhor
caracterizadas como redes multidominiais. Desse modo, a rede de domnios envolvida na
projeo constitui-se de, no mnimo, quatro domnios: um domnio genrico, dois domnios
fonte, um domnio mescla. As principais caractersticas do processo de mesclagem so:
(i) mapeamento parcial de contrapartes entre os espaos fonte;
(ii) existncia de um espao genrico que reflete as estruturas e organizaes abstratas
partilhadas pelos espaos fonte;
(iii) o quarto espao, o espao mescla, que resulta de uma projeo parcial dos espaos
fonte e herda parte de suas caractersticas;
(iv) o espao mescla, que estrutura emergente prpria.
Considere-se como exemplo a sentena Alckmin vem perdendo flego na corrida
presidencial3, veiculada recentemente por um jornal on-line que informa sobre as campanhas
eleitorais de 2006 para a presidncia. Ao fazer uma anlise dessa sentena, nos termos da
mesclagem, obtemos a seguinte representao:
3 Extrado do jornal: Correio do Estado, 23/08/06. www.correiodoestado.com.br
Espao Genrico
Input 1 Input2
Espao Mescla
Figura 5: Projeo Figurativa Corrida Eleitoral
Objetivo vitria
Percurso
Sujeito
Estratgias
Lugar de ao
Resultado
Corrida / EleiesAtleta / Candidato
Competio / Busca de votosDiminuio da velocidade
Diminuio em termos estatsticos
Disputa poltica
Eleies
Candidato
Busca de votos
Pas
Diminuio em
termos estatsticos
Disputa esportiva
Corrida
Atleta
Competio
Pista de atletismo
Diminuio da
velocidade
Nesse exemplo, h nitidamente uma projeo metafrica, inclusive bastante difundida
socialmente, na qual o domnio das eleies, ou seja, a campanha eleitoral compreendida
nos termos de competies esportivas, mais especificamente uma corrida.
Segundo Fauconnier e Turner (2002, p. 114), a mesclagem um mecanismo de
compresso por excelncia. Portanto, podemos concluir que o principal objetivo da mescla,
ou seja, das operaes de integrao, gerar unicidade e compresso para propiciar o
entendimento.
No exemplo acima considerado, as compresses so muitas e expressivas: Alckmin, o
candidato, representado como atleta, comprime todo o processo de candidatura e campanha
em desenvolvimento; a perda de flego comprime tanto o desempenho nas pesquisas como
aquilo que provavelmente a sua causa, o volume da campanha. Assim, relaes vitais como
CAUSA E EFEITO, TEMPO, IDENTIDADE, PARTE-TODO, INTENCIONALIDADE
apresentam-se de modo facilmente resgatvel e compreensvel para o leitor: o complexo
processo de disputa eleitoral aparece agora expresso na ESCALA HUMANA.
Fauconnier e Turner (2002, p. 180-187) postulam uma tipologia de mesclagens, que
no nosso propsito nesta dissertao focalizar. importante, entretanto, apontar que eles
tratam as construes gramaticais como domnios de escopo duplo: de fato, o pareamento
forma/sentido simbolicamente comprimido estabelece vinculao entre significante fsico e
uma rede de conceptualizaes, inteiramente estranha materialidade de sua expresso.
2.4. Arquitetura Paralela
Jackendoff (2002, p. 107-151), ao postular a hiptese da Arquitetura Paralela, fruto de
seu trabalho com Semntica Conceptual desde os anos 80, idealiza uma nova concepo para
a faculdade da linguagem que, embora seja ainda uma viso marcadamente mentalista,
representa uma superao frente aos modelos chomskyanos. Tal hiptese seria uma resposta
ao que Jackendoff considera um grande erro do modelo terico chomskyano, ou seja, sua
concepo sintatocntrica (JACKENDOFF, 2002, p. 109).
O diferencial nesta teoria consiste no reconhecimento e formalizao da noo de que
o poder gerativo da linguagem no se restringe sintaxe, mas engloba diferentes sistemas
combinatoriais independentes, que se acham alinhados uns aos outros por meio de sistemas de
interface, so sistemas geradores tanto a sintaxe como a semntica e a fonologia
(JACKENDOFF, 2002, p. 111).
Na Arquitetura Paralela a gramtica possui uma organizao tripartite, assim, a
estrutura fonolgica, responsvel pela gerao das estruturas fnicas, e a estrutura semntica,
responsvel pela gerao das significaes, seriam conectadas pela estrutura sinttica. A
mesma, est, pois, no centro das duas estruturas, tornando-as mais precisas e articuladas,
como constatamos na seguinte configurao retirada de Jackendoff (2002, p. 125):
Jackendoff (2002, p. 152) desenvolve sua concepo de lxico baseada na seguinte
questo: quais aspectos de uma elocuo esto armazenados na memria de longo termo e
quais aspectos so construdos on line na memria de trabalho? Em outras palavras, o que
encontramos no lxico em contraste ao que encontramos na sintaxe.
Nos termos de Jackendoff (2002, p. 130-131), ao lxico compete armazenar as
estruturas na memria de longo termo a partir das quais constri-se o discurso. De acordo
com o autor a funo dos itens lexicais servir como regras de interface, e o lxico como um
todo considerado uma parte dos componentes de interface. Nessa viso, o papel dos itens
lexicais vai alm da simples insero dos mesmos nas derivaes sintticas, pois eles
estabelecem correspondncias de certos constituintes sintticos com estruturas fonolgicas e
conceptuais.
Nessa concepo, o lxico deixa de ser considerado um repositrio de palavras e
passa a ser compreendido como o conhecimento que os indivduos possuem de sua lngua.
Regras de formao fonolgica
Regras de formao sinttica
Regras de formao
conceptual
Estruturas Fonolgicas
Estruturas Sintticas
Estruturas Conceptuais
Interfaces para
audio e fala
Interfaces para
percepo e ao
EF-ES Regras de Interface
ES-EC Regras de Interface
EF-EC Regras de Interface
Figura 7: Arquitetura Paralela Tripartite Figura 6: Arquitetura Paralela
Jackendoff (2002, p. 152-162) postula um lxico heterogneo e flexvel, que no seria
constitudo apenas de palavras, mas tambm de itens menores que palavras, como o sufixo
{+eiro}, itens maiores que palavras, que podem ir desde expresses formulaicas do tipo
valeu, t jia, marcadores discursivos como o seguinte, at textos inteiros como um
poema ou uma letra de msica, memorizados, alm de itens lexicais abstratos, como o caso
da perfrase aspectual [estar + V + ndo].
Em vista disso, embora o lxico seja caracterizado como o que est armazenado na
memria de longo termo, os itens lexicais participaro das construes on line na memria de
trabalho. Nesse sentido, a palavra co, por exemplo, deve estar armazenada na memria de
longo termo, pois no construda de partes menores. J a sentena meu co bravo ser
construda on line de seus elementos constituintes, usando o padro abstrato que a licencia
como uma sentena do Portugus. Contudo, uma vez que essa sentena tenha sido repetida e
ouvida freqentemente, ela pode, por sua vez, vir a estar armazenada na memria de longo
termo. o caso de algumas expresses idiomatizadas na lngua como vida de co, co sem
dono, mundo co, co de guarda, co-guia, como co e gato, quem no tem co caa com
gato, co chupando manga, etc.
De acordo com Jackendoff (2002, p. 152-162), essa viso do lxico possibilita a
existncia de itens lexicais defectivos. Ou seja, uma palavra prototpica , de fato, uma
correspondncia entre a fonologia, a sintaxe e a semntica, mas poderiam existir itens lexicais
aos quais podem faltar essas correspondncias. Assim, h itens lexicais que tm fonologia e
semntica, mas no tm sintaxe, como: sim, tchau, oi, entre outros. Existem tambm itens
com sintaxe e fonologia, mas sem semntica, como: it, no ingls em it rains, ou il no Francs
em il pleut. H ainda itens lexicais que tm sintaxe e semntica, mas no tm fonologia, como
os sujeitos nulos em Portugus. Da mesma forma, o lxico pode conter partes de fonologia
sem sintaxe ou semntica, como: abracadabra, ocos pocos.
a partir dessa idia, dos itens lexicais defectivos, ou seja, itens lexicais com
correspondncias incompletas, que se abrem as portas para pensar sobre as regras gramaticais
de maneira totalmente nova. Assim, se existem itens lexicais aos quais faltam traos de um ou
mais dos componentes gerativos, ento poderiam existir itens com sintaxe, mas sem fonologia
e semntica. Tal item lexical constituiria uma regra gramatical, ou Regra-L, que est
armazenada na memria de longo termo, com fonologia e semntica no especificadas. As
Regras-L seriam padres formais abstratos e totalmente abertos, como o padro da construo
do passado composto em Portugus [ter +V + do].
desta forma que a Gramtica das Construes e a hiptese da Arquitetura Paralela
convergem para a mesma concepo de gramtica: ambas reconhecem o carter central dos
idiomatismos para a linguagem, e rechaam a concepo dicotmica entre lxico e sintaxe.
Assim, estas vertentes abraam a viso construcionista sobre a lexicalista: para a
especificao da estrutura clausal contribuiro padres oracionais abstratos armazenados
como itens lexicais, na mesma condio em que armazenada toda a informao sobre
qualquer outro item lexical (seja, por exemplo, um verbo).
Todavia, h importantes diferenas entre as duas abordagens. Primeiramente, a viso
construcionista, por ser emergente dos estudos de Fillmore com idiomatismos e expresses
formulaicas, enfatiza o nvel pragmtico de determinao das construes, dimenso
negligenciada nas anlises de Jackendoff at aqui.
Outra diferena substancial jaz na flexibilidade peculiar da gramtica concebida como
arquitetura paralela: os itens lexicais, que vo desde morfemas s regras-l, so tambm
representaes simblicas, mas como exposto anteriormente, h itens que so defectivos, e
que podem ser inclusive vazios semanticamente, como o caso do it em It rains ou do il em
Il pleut. Nesse sentido, a concepo de Jackendoff mostra-se mais vantajosa do que a
Gramtica das Construes, uma vez que permite uma maior flexibilidade no tratamento da
gramtica como uma rede de construes.
Em vista disso, a abordagem de Jackendoff (2002) harmoniza-se com a Teoria da
Mesclagem Conceptual de Fauconnier e Turner (2002), na sua abordagem das construes
como mesclagens de duplo escopo, aptas a comprimir conceitos. Em funo dessa capacidade,
possvel para as lnguas possurem formas j cristalizadas tais como as palavras prototpicas
mo, verde, andar, que sustentam uma forte estabilidade conceptual, contudo, h casos de
formaes mais complexas como corrida eleitoral, em que necessrio recuperar as
projees originrias, realizar a mesclagem e considerar o carter heterogneo dos espaos de
input. Nesse sentido, as regras-l podem ser tratadas como inputs cristalizados, esquemas
genricos aptos a originar novos cenrios e novas interpretaes.
2.5. O processo de gramaticalizao
Os conceitos de motivao e cristalizao so cruciais dentro do escopo adotado pela
gramtica sociocognitiva, na perspectiva de que certas construes podem especializar-se
como expresses de Categorias Gramaticais. Em vista disso, a presente seo dedicada a
uma resenha sucinta das principais idias correntes nos estudos de gramaticalizao, uma vez
que nosso objeto de investigao, a construo ele deu pr beber, uma expresso
gramatical.
Gramaticalizao , segundo Hopper e Traugott (2003 [1993], p. 19-25), o estudo de
formas gramaticais, vistas no como objetos estticos mas como entidades sofrendo mudana.
O termo gramaticalizao foi cunhado pelo lingista francs Antoine Meillet, responsvel
por reconhecer a importncia da gramaticalizao como uma rea central da teoria da
mudana lingstica. Meillet enfatiza que o foco de estudo no se restringe s origens das
formas gramaticais, mas s suas transformaes.
Conforme Hopper e Traugott (2003 [1993], p. 22), Meillet, em seu artigo Lvolution
des formes grammaticales, descreve como novas formas gramaticais emergem atravs de
dois processos, quais sejam: a analogia, pela qual novos paradigmas desenvolvem-se atravs
da semelhana formal com paradigmas j estabelecidos; e a gramaticalizao, pela qual novas
formas gramaticais desenvolvem-se, pela passagem de uma palavra autnoma ao papel de
elemento gramatical. Desse modo, esses dois processos seriam os responsveis pela
constituio de novas formas gramaticais. Embora a gramaticalizao originariamente seja
vista como uma mudana que afeta palavras individuais, de fato a maior parte de suas
manifestaes de natureza sintagmtica/construcional.
Os autores observam que alguns estudos sobre a gramaticalizao (principalmente
aqueles desenvolvidos por Traugott (1982) e Heine, Claudi e Hnnemeyer (1991)), sustentam
que o processo de gramaticalizao envolve fatores semnticos, cognitivos e pragmticos, de
tal modo que abstraes metafricas so um meio pelo qual emergem novas estruturas
gramaticais, a partir de construes freqentes e bsicas nos usos lingsticos anteriores.
2.5.1. Gramaticalizao e forma gramaticalizada
Os estudos da gramaticalizao oferecem duas perspectivas: a primeria, histrica,
considerada a principal, investiga as formas gramaticais originrias e as mudanas que elas
sofrem. A outra perspectiva, mais sincrnica, considera a gramaticalizao como fenmeno
sinttico, discursivo e pragmtico, a ser estudado considerando os usos lingsticos
(HOPPER; TRAUGOTT, 2003 [1993], p. 01-03).
Um ponto freqentemente enfatizado por Hopper e Traugott (2003 [1993], p. 06-07)
que as formas no mudam abruptamente de uma categoria a outra, mas atravs de uma srie
de pequenas transies que tendem a ser similares atravs das lnguas. Os autores utilizam o
termo cline, continuum, para explicar o fato emprico de que as formas tendem a sofrer os
mesmos tipos de mudanas em analogias similares, atravs das lnguas. Portanto, um
continuum tem ambas as implicaes, histrica e sincrnica.
Da perspectiva histrica, um cline conceptualizado como uma trajetria natural
que evolui junto com as formas; sincronicamente, o mesmo pode ser pensado como um
continuum, ou seja, um arranjo de formas ao longo de uma linha imaginria, em que numa
extremidade h uma forma mais completa, lexical, e na outra extremidade h uma forma
compactada e reduzida, gramatical.
Segundo os autores, ponto comum entre muitos lingistas a convico da existncia
de um continuum de gramaticalidade, que tomaria a seguinte forma: Item lexical>palavra
gramatical>cltico>afixo inflexional (HOPPER E TRAUGOTT, 2003 [1993], p. 07).
Esses contnuos que tm sido propostos, baseados em muitas dimenses diferentes de
forma e significado, envolvem uma progresso unidirecional em graus de vinculao, isto
, a escala de coeso entre formas adjacentes, desde arranjos mais livres, como as perfrases,
at os mais estreitos como as inflexes morfolgicas. Segundo os estudos da
gramaticalizao, h uma forte tendncia em direo unidirecionalidade na histria das
formas individuais.
Estudos mais recentes, de corte cognitivo, ou que se desenvolvem a partir das
premissas da lingstica baseada no uso, tm demonstrado que a unidirecionalidade
uma hiptese de trabalho; de fato, a natureza heterclita dos usos lingsticos tem mais
ilustrado irradiaes (mltiplos trajetos) do que uma estrada nica na evoluo lingstica.
2.5.2. Mecanismos da gramaticalizao
Hopper e Traugott (2003 [1993], p. 39-70) consideram dois mecanismos gerais pelos
quais a gramaticalizao ocorre: primeiramente a reanlise e secundariamente a analogia. Na
reanlise, as propriedades sintticas, morfolgicas e semnticas das formas so modificadas.
Estas modificaes compreendem mudanas na interpretao, ou seja, na categoria sinttica e
no significado, mas no na prpria expresso formal.
A reanlise considerada o mais importante mecanismo para gramaticalizao porque
constitui um pr-requisito para a implementao da mudana atravs da analogia.
A analogia, estritamente falando, modifica manifestaes de superfcie, e, em si
prpria no efetua mudana de regra, embora promova a disseminao da mudana e na
comunidade.
Desse modo, reanlise e analogia operam em eixos distintos: enquanto a primeira
trabalha no eixo sintagmtico, a analogia opera no eixo paradigmtico, sendo responsvel por
tornar observveis as mudanas da reanlise.
Segundo os autores, observa-se, no decurso da mudana, que o significado gramatical
desenvolve-se atravs de um processo de generalizao ou desbotamento do contedo
semntico originrio. Tal processo pode ser caracterizado, em parte como um aumento na
polissemia de uma forma, e em parte como uma ampliao na distribuio de um morfema,
que passa de lexical a gramatical, ou de menos gramatical para mais gramatical. Assim,
medida que a gramaticalizao progride, os significados se transformam e os contextos de uso
se diversificam.
Em vista disso, formas e significados antigos podem conviver e interagir com formas e
significados novos: esse fenmeno denominado layering ou variabilidade, caracterizando-se
como resultado sincrnico da gramaticalizao de formas no mesmo domnio.
O conceito de gramaticalizao perfeitamente acomodvel na perspectiva
construcionista da lingstica sociocognitiva e da Arquitetura Paralela: ambos estes
paradigmas assumem a gramtica como uma rede de pares forma/sentido, que, pelo uso,
podem convencionalizar-se em uma especfica acepo e oferecer-se, pois, como uma regra-
l /esquema abstrato para reconceptualizaes e novas compresses operadas pelo sinal
lingstico.
3. ASPECTO
3.1. Consideraes preliminares
A categoria do Aspecto mal reconhecida pelos estudos gramaticais do Portugus e,
com exceo de alguns trabalhos lingsticos, todos no final do sculo XX (Castilho (1967,
2002), Travaglia (1981), Costa (2002), Salomo (1990)), muito pouco merecedora de
abordagens sistemticas. Como a nossa tradio de estudos gramaticais tem clara raiz
filolgica e greco-latinista, a relativa opacidade formal do Aspecto (fundido com Tempo,
Modo, Classe Morfolgica) explica esta desateno.
Estudos lingsticos contemporneos, principalmente na vertente tipologista, chamam
a ateno no s para a crucialidade gramtico-conceptual do Aspecto, mas tambm para sua
universalidade: h mais lnguas no mundo que codificam Aspecto do que as que codificam
Tempo.
Considerando que o objeto de investigao desta dissertao a construo
perifrstica Habitual Inceptiva do tipo Ele deu pr beber, consideramos indispensvel
passar por tratamento clssico do Aspecto (como Comrie 1976) e depois por alguns
tratamentos do Portugus, para melhor situar a nossa anlise.
Alm disso, nosso trabalho est baseado na hiptese adotada em Salomo (1990) de
que o Aspecto deve ser caracterizado como categoria de sentena e no como categoria do
item lexical (do verbo).
3.2. Tempo e Aspecto
Embora Tempo e Aspecto se refiram ao ordenamento cronolgico das situaes no
mundo, h uma imensa diferena entre as duas categorias: Tempo categoria ditica, que
trata de ancorar temporalmente o discurso, isto , de estabelecer a referncia cronolgica do
enunciado em termos do movimento de enunciao. Por isso que as distines tpicas de
Tempo so Passado, Presente e Futuro.
Aspecto tem a haver com a estrutura temporal interna do evento enunciado. A primeira
distino forte em termos aspectuais retrocede aos esticos e a Aristteles (LYONS, 1977, p.
704) e distingue entre aes completas (perfeitas, tlicas) e incompletas (imperfeitas,
atlicas).
De fato, esta a distino fundadora da categoria Aspectual. A partir da (desta
distino entre fechado e aberto, que , como pondera Comrie (1976, p. 03) uma questo de
ponto de vista) que poderemos entender outras categorias aspectuais (Durao, Fases de um
Processo, Iteratividade).
Para exemplificar esta distino, consideremos os exemplos abaixo:
(15)Conversei muito com o presidente Lula sobre isso.
(16)Antes da Pscoa, estive conversando por quase duas horas com aquele cidado que
veio do Estado do So Paulo, o dito lder do PCC.
Em (15) torna-se expresso que o ato de conversar, concluso, ocorreu antes do
momento em que o falante se situa agora. J em (16) alm de estar expresso que o ato de
estar conversando ocorreu antes do momento da fala, est expressa tambm a durao e
progressividade do evento relatado. Dessa forma, em (16) o falante chama a ateno para a
constituio temporal interna do enunciado.
De fato, de acordo com Mateus (1989, p. 90), o Aspecto define-se por exprimir o
modo de ser (interno) de um estado de coisas, descrito atravs das expresses de uma lngua
natural, em funo da seleo de um predicador de quantificao de um intervalo de tempo, e
de referncia fronteira inicial ou final de um dado intervalo.
3.2.1. Aktionsart
Se o Aspecto trata da estrutura temporal interna dos eventos verbalizados, est claro
que a contribuio lexical dos predicadores um dos elementos que contribui para este
especfico enquadramento. Da o termo Aktionsarten, usado especialmente para designar as
classes de evento lexicalmente evocadas pelos predicadores.
Segundo Scher (2004, p. 66), os tipos de ao, primeiramente reconhecidos por
Aristteles, correspondem a duas classes fundamentais, os estados, que expressam
permanncia estvel de uma situao, e eventos, que expressam processos de mudana. Tais
eventos podem ser concebidos como unidades conceptuais fechadas ou como
desenvolvimentos progressivos. Verbos designativos de processos no evocam essa
terminao, como elemento inerente da significao. Considerem-se os exemplos:
(17)Eva s comeu a ma porque esta tinha poucas calorias.
(18)Ele (Lula) se sentou na cadeira no primeiro dia de mandato como candidato e no
como presidente - criticou Cristovam.
A sentena (17) e concebida pontualmente, ou seja, presume-se que a ao de comer
tenha-se completado. Na sentena (18), ao contrrio, a ao metonmica de sentar na cadeira
mostra-se como um processo interminado, sem um estgio de terminao necessrio (de fato,
Lula continua sentado nesta mesma cadeira desde entao). A distino entre esses verbos
encontra-se no nvel lexical, e os verbos que evocam um ponto final intrnseco dos processos
que designam so chamados tlicos; j aqueles que no evocam este mesmo tipo de
terminao so chamados atlicos.
De acordo com Scher (2004, p. 67), Vendler, seguindo uma tipologia de estruturao
de eventos, reconhece quatro categorias de predicadores que expressam atividades, estados,
accomplishment e achievement. Essas classes definem a Aktionsart dos verbos.
Estados e Atividades distinguem-se por sua processualidade (no caso das Atividades),
mas no designam uma terminao inerente; accomplishments e achievement distinguem-se
tambm por sua processualidade (no caso dos accomplishments) mas no necessariamente
designam sua terminao inerente (sua telicidade).
Em sua discusso sobre Aktionsart, Comrie (1976, p. 41-44) inclui a categoria de
semelfactivo, que se refere a uma situao que acontece uma s vez, e a de iterativo, para
referir uma situao que repetida, como se constata nos seguintes exemplos:
(19)Ele tossiu para anunciar sua presena.
(20)Ela tossiu a missa quase toda.
De acordo com Comrie (1976, p. 44-50), estados, atividades e accomplishments so
durativos, sendo que o estado no envolve mudana, as atividades so atlicas e
accomplishments so tlicos; os semelfactivos e achievements so pontuais, os primeiros
atlicos e os ltimos tlicos.
Tanto Lyons (1977, p. 705-706) quanto Comrie (1976, p. 07) distinguem Aspecto e
Aktionsart: enquanto o Aspecto representa a gramaticalizao das distines semnticas que
apresentam, a Aktionsart, por outro lado, representa a lexicalizao destas distines.
Para distinguir Aspecto e Aktionsart, Lyons (1977, p. 706) introduz o termo carter
aspectual, para identificar as distines lexicalizadas :
(21)Conheci o gato h dois meses e j vou casar!
(22)Reconheci o gato que me assaltou ontem.
Nas sentenas acima os verbos conhecer e reconhecer distinguem-se aspectualmente:
enquanto a sentena (21) denota um estado, a sentena (22) denota um evento. Segundo
Lyons, Aspecto e Aktionsart so dimenses lingsticas interdependentes porque ambos
apiam-se sobre as mesmas distines ontolgicas.
No nosso caso, embora reconheamos a distino como tributo literatura
especializada sobre o assunto, mais nos interessam as distines semnticas identificadas j
que est claro que varivel o processo de sua expresso lingstica (desde lexemas at
perfrases at afixos inflexionais).
3.3. Perfectivo e Imperfectivo
A tradio gramatical, geralmente, refere Perfectivo e Imperfectivo como Tempos
(gramaticais), entretanto, na perspectiva de Comrie (1976, p. 03), estes termos designam
distines aspectuais.
A fim de ilustrar a distino delineada por Comrie entre Perfectivo e Imperfectivo
considere-se a seguinte sentena:
(23)Eu estava almoando em casa quando ele ligou.
Na viso apresentada pelo autor, a perfrase estava almoando apresenta um
contexto, um pano de fundo para algum evento, enquanto que o evento focalizado
suscitado pelo verbo ligou. Dessa forma, o verbo ligou apresenta significado Perfectivo, pois
a situao concebida em sua totalidade, sem referncia sua constituio temporal interna,
ou seja, a situao apresentada como um todo nico no-analisvel. Ao contrrio, a perfrase
aspectual faz referncia constituio temporal interna da situao, ou seja, refere-se a um
perodo interno dentro do evento ALMOO, sem focalizar seu incio ou seu final. Nesse
sentido, ele ligou um evento que ocorreu durante o perodo que o falante estava almoando,
ou seja, concomitante com esta durao.
Em suma, a distino postulada por Comrie (1976, p. 04) pode ser descrita da seguinte
maneira: enquanto o Perfectivo enquadra a situao de fora o Imperfectivo enquadra a
situao de dentro.
Comrie (1976, p. 04) chama a ateno para o fato de que a diferena entre
perfectividade e imperfectividade no se assenta numa diferena objetiva entre situaes e,
nem necessariamente a diferena que apresentada pelos falantes como sendo objetiva. Pois
possvel para qualquer falante referir-se mesma situao uma vez com a forma perfectiva e
outra imperfectiva sem ser contraditrio. Dessa maneira, Comrie traa a hiptese da
perspectiva subjetiva ao considerar o ponto de vista do falante, como observa Salomo
(1990, p. 158).
Para Comrie (1976, p. 09), o Aspecto, como uma categoria gramatical, pode ser
expresso tanto morfologicamente quanto perifrasticamente. Assim, de acordo com Salomo
(1990, p.), no Portugus, por exemplo, a estrutura morfolgica favorece a confuso entre
Tempo e Aspecto, visto que as descries tradicionais, ao concentrarem-se nas conjugaes
verbais, ignoram as distines aspectuais empregadas perifrasticamente ou atravs da cpula.
Dessa forma, o Portugus dispe de formas como:
(24)Eu almocei com uma amiga.
(25)Eu almoava vendo televiso.
(26)Eu no estava no local, eu estava almoando.
(27)Eu tenho almoado em casa ultimamente.
(28)Eu venho almoando no RU desde o incio do ano.
A variedade das expresses do Aspecto, especialmente do Imperfectivo (presente nos
exemplos 24 a 28, com nuanamento devido diversidade de suas combinaes) ilustra o fato
tanto da flexibilidade da codificao destes sentidos como a complexidade obtida pela
variedade das integraes conceptuais.
Segundo Castilho (2002), as perfrases so mais importantes para a expresso do
Aspecto em PB do que as flexes temporais, e, por conseguinte, dignas de estudo mais
aprofundado.
As prximas sees deste captulo sero dedicadas a duas categorias aspectuais
fundamentalmente significativas para nossa anlise, quais sejam, Habitualidade e
Inceptividade.
3.3.1. Habitualidade
Conforme Comrie (1976, p. 27), usual assumir que Habitualidade e Iteratividade
sejam a mesma coisa. Do ponto de vista do autor, essa uma concepo equivocada, pois a
mera repetio de uma situao no suficiente para que a mesma seja caracterizada como
habitual, e uma situao pode ser habitual sem necessariamente ser iterativa.
Para Comrie a Habitualidade diferencia-se da Iteratividade, uma vez que o carter
distintivo de
todas as habituais que as mesmas descrevem uma situao que caracterstica de um perodo estendido de tempo, ou seja, a situao referida vista no como uma propriedade incidental do momento, mas, precisamente, como um trao caracterstico de um perodo todo (COMRIE, 1976, p. 27-28).
Logo, o trao caracterizador da Habitualidade o durativo:
(29) A platia costumava vai-los (a banda), s pelo fato de ela ser mulher.
(30) Ele costumava sair de casa, todos os dias, de manh cedo, e s voltava noite, a
horas mortas.
A situao evocada em (29) muito mais importante como emblema da relao banda/
audincia (neste sentido, claramente uma projeo metonmica) do que evocativa de uma
srie de situaes que se tenham repetido. No obstante, Habitualidade pode corresponder
tambm Iterao, como exemplificado por (30).
A Habitualidade geralmente correlacionada com Imperfectividade. Comrie (1976, p.
41-44), ao abordar a diferena entre os aspectos Pontual e Durativo, faz a distino entre
Imperfectividade e Duratividade. De acordo com o autor, enquanto a Imperfectividade
significa enquadrar uma situao do ponto de vista da sua estrutura interna, a Duratividade
define-se pelo prolongamento temporal de uma situao. O oposto da Duratividade seria,
ento, a Pontualidade, que por sua vez indica uma situao que acontece em um nico
momento, como os semelfactivos, citados anteriormente.
3.3.2. A categoria da Habitualidade no PB.
De acordo com Salomo (1990, p. 177), tanto quanto a Aspectualidade, a categoria da
Habitualidade tambm internamente estruturada, em vista disso, o fato de se usar o termo
Habitual para designar situaes usuais ou costumeiras ou regulares conduz metfora
EVENTOS SO AES.
Salomo (1990, p. 178-190) organiza o sistema da Habitualidade no PB em cinco
construes perifrsticas que introduzem significados habituais mais especficos, quais sejam:
Costumeira, Habitual Passada, Habitual Temporria, Habitual caracterstica e Incoativa
Habitual.
A construo Costumeira caracteriza-se por apresentar o verbo costumar seguido
pela forma infinitiva do Verbo Principal, como visto nos seguintes exemplos:
(1) CONSTRUO COSTUMEIRA
(31)Eu costumo ler em qualquer canto.
(32)Voc costuma ter dores nas costas no trabalho?
(33)Costuma chover muito em So Paulo, sobretudo no vero.
(34)Sempre costumei compreender e relevar na maioria das vezes.
(35)Ainda no Brasil, a sociedade costumou chamar de Informtica tudo que est
relacionado ao computador.
(36)Costumo ficar constrangido quando estou num lugar muito movimentado.
(37)Costumo estar absorvido em meus prprios pensamentos.
O verbo costumar tem o status sinttico de Auxiliar, visto que a predicao seguinte
encontra-se no infinitivo, e o sujeito de costumar sempre idntico ao sujeito da predicao
seguinte.
A segunda construo perifrstica traz a idia de Habitualidade Passada, e construda
com Cpula Incoativa ficar no Passado Imperfectivo, e a predicao afetada numa forma
nominal, Gerndio ou Particpio. Exemplos desta construo seguem abaixo:
(2) HABITUALIDADE PASSADA
(38)A gente ficava jogando futebol no campo e, quando ele chegava, todos saam
correndo. (Atividade)
(39)A gente ficava acordado ate s 6 da manh. (Estado)
(40)Ela ficava muito brava quando o seu time perdia.
Salomo faz uma distino entre a construo de Hbito Temporrio, que caracteriza-
se pelo verbo andar e a construo de Hbito Caracterstico caracterizada pelo verbo viver,
ambas construes seguidas por formas nominais de predicao (Gerndio ou Particpio).
(3) HABITUAL TEMPORRIA
(41)A Jlia anda chegando um pouquinho atrasada na escola.
(42)O povo brasileiro anda assustado com a violncia.
(43)O artista "Mrio" anda com dor de cotovelo do seu dolo: Marco Paulo!
(44)Aqui em Santa Maria anda chovendo muito.
(4) HABITUAL CARACTERSTICA
(45)Rosinha reclama de Caetano, que vive chegando tarde em casa.
(46)O cidado vive assustado e no lhe faltam motivos para isso.
(47)O Damio vive com dor de dente.
(48)Aqui no vive chovendo, muito pelo contrrio quente e seco.
A anlise ressalta o fato de que os significados dessas construes esto relacionados a
propriedades Agentivas, ou pelo menos, ao comportamento Humano. A anlise sinttica de
andar e viver mostra que h razes suficientes para classific-los como Auxiliares, uma vez
que os mesmos satisfazem os critrios com relao forma nominal da predicao seguinte,
identidade do sujeito, escopo de negao e acessibilidade ao fenmeno sinttico de clusula-
nica.
O fato de o Portugus empregar, sistematicamente, predicao de movimento a fim de
comunicar perifrasticamente a noo de Habitualidade est relacionado s metforas:
VIDA MOVIMENTO.
MUDANAS NA EXISTNCIA SO MOVIMENTOS.
ESTADOS NA VIDA SO REGIES DELIMITADAS.
HBITOS SO ESTADOS.
HBITOS SO REGIES DELIMITADAS (na paisagem vida).
A quinta construo identificada ter sua anlise apresentada no captulo 5, pois a
mesma constitui objeto de investigao desta dissertao.
3.3.3. Inceptividade
Em geral a categoria aspectual da Incepo no tem tido lugar de destaque nas
abordagens do Aspecto. Quando mencionada aparece sempre relacionada ao aspecto
Incoativo: Inceptivo e Incoativo so tomados como sinnimos que designam o processo de
incio de alguma situao.
Todavia, Salomo (1990, p. 199-205), ao investigar a categoria radial das construes
com o verbo dar no PB, reconhece que a construo Experiencial com dar, que compe o
subsistema de Causao, inclui como parte de seu significado a noo aspectual de Incepo,
como apresentado nas seguintes sentenas:
(49)A msica de Presley me d sono.
Essa sentena exprime que a msica faz com que eu entre num estado de sonolncia.
Dessa forma, a expresso Causativa da Experincia significaria tambm a Incepo na
experincia. Logo, Incio difere-se de Incepo, por esta estar evocada num esquema
conceptual causativo.
Conforme aponta Salomo (1990, p. 202), o sistema aspectual do PB dispe de trs
categorias distintas relacionadas a Incepo, a saber: Comeo, a construo Incoativa
Habitual e a Cpula Incoativa. Entretanto, Salomo acrescenta a construo Experiencial
Causativa, designando-a Incepo. Logo, o sistema Inceptivo do PB seria constitudo de
quatro categorias, apresentadas respectivamente:
(50)O ex-namorado de Suzane comeou a chorar e recebeu um abrao do irmo que
estava sentado na cadeira, algemado.
(51)Ele deu pra agir feito co de guarda, agora!
(52)Fiquei com raiva do Zizou! Na hora, nem pensei no Materazzi.
(53)Ah...me deu raiva do Zidane ter ganhado o prmio de melhor jogador...depois do
que ele fez ontem com o coitado do italiano no merecia.
Embora a Cpula Incoativa (52) e Incepo (53) compartilhem o mesmo frame e
evoquem situaes estativas, ambas apresentam perspectivas distintas sobre o cenrio
estativo.
A fim de justificar a natureza da relao entre Causao e Incepo, Salomo (1990, p.
203) busca subsdios no estudo de Talmy a respeito da lexicalizao do Aspecto e da
Causao. Segundo Salomo, Talmy nota que a lexicalizao dos domnios semnticos dos
estados envolvem apenas trs tipos de causao aspectual:
(a) estar num estado (predicaes estativas)
(b) entrar num estado (predicaes incoativas)
(c) pr num estado (predicaes agentivas).
Segundo Salomo (1990, 203), Talmy aponta que as lnguas no lexicalizam de
maneira uniforme os trs tipos. O Portugus, assim como o Espanhol, lexicaliza (c), expressa
(b) atravs da reflexivizao e (a) atravs da cpula com particpio, como apresentado
respectivamente pelos exemplos abaixo:
(54)Estendi a mantinha e deitei o beb em cima.
(55)Outro dia (me) deitei na rede e vi a lua cheia na mesma posio.
(56)Quando chegou em casa, o gato estava deitado no sof.
De acordo com Talmy (apud SALOMO, 1990, p. 204), devido a uma restrio, as
lnguas lexicalizam ou a/b ou b/c, mas no a/c, respeitando a contigidade entre as fases
constitutivas de um processo, relacionadas de forma metonmica (a fase evocada capaz de
evocar o processo como um todo). Dessa forma, a construo Causativa inclui como seu
resultado uma Mudana de Estado e a Metonmia fornece a conexo lgica entre as noes de
Causao e Incepo.
Outro ponto extremante importante o fato de que a Construo de Experincia com
dar apresenta o Estmulo mapeado como sujeito e o Experienciador ocupa o lugar de
Complemento, logo, a Experincia vista como um processo. A metfora que sustenta tal
viso EXPERINCIAS SO ESTADOS, portanto, pode-se entrar no estado, ficar nele,
passar por ele e partir dele, como pode ser visto nos seguintes exemplos:
(57)Entrei numa depresso e precisei de ajuda mdica.
(58) Em 97, eu estava na maior depresso.
(59) No passei depresso aqui nesta segunda viagem.
(60) Sa da depresso, j cuido de plantas em casa e meu relacionamento com minha
esposa melhorou muito.
Segundo Salomo (1990, p. 212-213), o estudo da expresso da Experincia mostra
dois modos de conceb-la: o primeiro esttico e insensvel s diferenciaes aspectuais; o
outro dinmico e sensvel ao Aspecto. Este ltimo compreende trs vises do cenrio da
Experincia: um Causativo, um Incoativo e uma perspectiva Estativa. A perspectiva
Causativa, que descreve a deflagrao do processo, deve ser considerada como a fase
Inceptiva do contorno temporal da Experincia e, como tal, deve distinguir-se da Incoativa.
A distino entre Incoatividade e Incepo, portanto, repousa no seguinte fato:
enquanto a Incoatividade descreve a entrada em um estado do ponto de vista do participante
Mudado, a Incepo descreve a entrada num estado da perspectiva da deflagrao do processo
de mudana, assumindo, assim, uma perspectiva Causativa que anterior Mudana em
andamento (SALOMO, 1990, p. 218).
De acordo com Salomo (1990, p. 220-222), no sistema Inceptivo do PB, as
construes perifrsticas de Experincia apresentam as seguintes distines: (i) colocar num
estado Incepo; (ii) entrar num estado Incoatividade; (iii) estar no estado Estatividade;
(iv) sair do estado Terminao; (v) estar fora do estado.
A fase Inceptiva pode ser representada por uma esquematizao Agentiva ou
Causativa:
(61) Minha me me fez raiva na hora de votar.
(62) Essa palestra me deu raiva.
Nessas sentenas percebe-se que a esquematizao Agentiva da Incepo,
representada pela sentena (61), distinta das Construes Causativas, representada por (62),
pois nestas o fator que impulsiona a Experincia uma Causa, no um Agente. A construo
Causativa inclui na sua constituio conceptual as metforas EXPERICIAS SO EFEITOS
e EXPERIENCIADORES SO PARTES AFETADAS.
Salomo (1990, p. 232) identifica trs categorias relacionadas ao sentido aspectual de
comeo de uma situao:
i) Comeo: a mais geral das categorias de Iniciao e interage livremente
com Aes, Atividades, Estados e Processos.
ii) Incoatividade: aplica-se somente a Estados e Processos e focaliza uma
Entidade Mutante.
iii) Incepo: tem o mesmo padro de ocorrncia da Incoatividade, mas focal