A Chegada Dos Pregadores

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  • 8/10/2019 A Chegada Dos Pregadores

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    A CHEGADA DOS PREGADORES8 CENTENRIO DA FUNDAO DAS MONJAS

    1206-2006

    Para comemorar o Dia Internacional da Famlia Dominicana, o ConselhoNacional decidiu, neste ano da celebrao do 8 centenrio da fundao dasMonjas, enviar a cada um dos membros da Famlia Dominicana uma curtareflexo sobre o incio de Prouille.

    Devido a factores histricos a existncia das Monjas uma realidaderelativamente pouco conhecida em Portugal. Existem trs mosteiros Lamego,Ftima e Lisboa cuja presena ainda no se imps como realidade de

    Famlia.Quereramos que, neste Ano Jubilar, se pudessem criar espaos de reflexo econhecimento de modo a que, na Famlia Dominicana, as Monjas possamocupar plenamente o lugar fundador da viso de Domingos.

    No dia 29 de abril de 2006, Festa de St Catarina de Sena, o Mestre Geral daOrdem, Fr. Carlos Azpiroz, inaugurou um Ano Jubilar para fazer memria dos800 anos da fundao das Monjas. Esta celebrao teve lugar em Prouille, edo programa constou, entre outras coisas, uma conferncia feita por umamonja, a Ir. Barbara Beaumont, op, historiadora da Ordem. O ttulo da

    conferncia foi, A chegada dos pregadores.O que se apresenta aqui uma traduo livre de algumas passagens maissignificativas desse texto, para reflexo da Famlia Dominicana neste AnoJubilar.

    A CHEGADA DOS PREGADORES

    Na altura em que se celebram os 800 anos da fundao das monjas, urgentese torna saber se a ideia que temos da viso de domingos corresponde

    realidade. Como escreveu Guy Bedouelle (historiador da Ordem), h umaestreita relao entre o ideal da Ordem, que a busca da verdade, e o estudoda histria. Que um historiador seno algum que procura saber ecompreender o passado? Com efeito, compreender donde viemos ajuda-nos asaber onde estamos e para onde vamos, ou seja, a nossa histria faz parteintegrante das nossas identidades pessoais e colectivas. A nossa histria umelemento chave no processo de conhecimento de si prprio, ingredienteessencial de toda a vida religiosa.

    Se h aspectos da viso de Domingos que forma obscurecidos pelas brumas e

    as lendas dos sculos, o historiador deveria poder ajudar-nos a descobri-los.

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    Esta transformao da viso, pelo conhecimento da histria, o que tentamosfazer olhando mais de perto o que aconteceu em Prouille h 800 anos.

    O titulo que escolhi para este contributo histrico A CHEGADA DOSRPEGADORES uma citao do monge cisterciense, Pierre de Vaux de

    cernai, cronista da cruzada albigense, e creio que importante porque estaexpresso utilizada, sem excepo, cada vez que se trata do bispo Diego., dedomingos e dos seus companheiros. Por um aldo, esta frmula pregadores -indica a sua funo na igreja, uma dezena de anos antes da fundao daordem; por outro, este nome tambm serve para os distinguir dos cruzados.Para o cronista, 1206 , com efeito, o ano a assinalar no que respeita chegada dos pregadores. Foi no fim deste esmo ano que o mosteiro deProuille foi fundado.

    preciso no esquecer que, em 1206, ainda Domingos no tinha qualquerprotagonismo. Estava em misso ao servio do seu bispo, e o lugar quenaturalmente lhe cabia era sombra do bispo que apresentando pelocronista desde o princpio, como um grande homem de grande louvor.

    Ainda segundo as crnicas, no incio do vero de 1026, os pregadoresencontraram-se perto de Montpellier com os legados do Papa. Depois desseencontro, o bispo mandou de volta para Osma, em Espanha, os seus criados ecarruagens, porque Diego tinha proposto uma nova estratgia que consistia emvencer os herticos adoptando os seus prprios mtodos, isto , imitando osapstolos em tudo, viajando a p e mendigando de porta em porta. Estadeciso significativa para compreender a fundao e o futuro da Ordem

    porque os motivos de Diego eram 100% apostlicos. Segundo o historiador daOrdem, Simon Tugwell, a pobreza foi adoptada porque era a estratgiamissionria mais promissora, naquelas circunstncias. Neste ponto h umcontraste importante com Francisco de Assi; para este a pobreza fazia parte dabusca pessoal de santidade, ligada com a luta interior e o processo deconverso. No caso de Domingos toda a sua vida se configurou pelasnecessidades dos outros.

    A bula do Papa Inocente III, data de 17 de Novembro de 1026, estendia aoutros colaboradores a misso da pregao, at a confiada unicamente aoscistercienses. Domingos fazia parte dos que haviam dado provas e que goraeram oficialmente incorporados na Santa Pregao, imitando a pobreza deCristo, com esprito ardente, para a converso dos herticos pelo exemplo empalavras e em actos.

    Diego e Domingos instalam-se em Fanjeaux. A partir da vo concentrar osseus esforos numa zona geograficamente limitada e, segundo o cronista, oseu objectivo era concentrar-se mais vigorosamente na pregao, seguindo oexemplo do Mestre divino em actos e palavras. A fundao e Prouille deveconsiderar-se como uma etapa importante neste processo de enraizamento ede concentrao de esforos.

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    O nome de Prouille no figura na crnica de cernai nem noutras fontes nodominicanas. Como interpretar este silncio? Um factor a ter em conta que afundao duma comunidade de mulheres podia ser entendida neste casoerradamente como no dizendo directamente respeito campanha contra osherticos, tema principal destas crnicas. Tambm, para os que escreveram

    antes da fundao da Ordem, o verdadeiro significado de Prouille, no podiaser perceptvel. O seu reconhecimento como primcias da obra de domingosdependia da existncia de outros frutos posteriores.

    Contudo, uma leitura atenta das crnicas, revela um aspecto importante dainstalao em Prouille. Pierre de Cernai escreve que Diego voltou a Espanhaem Setembro de 1027 para, a partir dos seus prprios rendimentos, fornecer onecessrio aos pregadores da palavra de Deus na provncia de Narbonne.Outro cronista, Robert dAuxerre, numa crnica de 1207/1208 consideradacomo um dos escritos histricos mais importantes da Idade Mdia, explica que

    esse dinheiro vindo de Espanha era necessrio para abastecer os depsitoslocais. dos seus prprios haveres, ele [Diego] tinha comprado reservas dealimentos e tinha institudo um certo nmero de depsitos que punha,generosamente, disposio dos pregadores da palavra de Deus. OraProuille que justamente nesta data se encontrava em gestao, consideradacomo um deste depsitos. E ia tornar-se o principal e mais bem sucedidodesses centros de abastecimento, em todos os sentidos do termo, material eespiritual.

    Portanto, no seu incio, o stio de Prouille era um lugar de apoio aos pregadoresitinerantes e, ao mesmo tempo, a casa de uma comunidade de mulheres.Como explicar a fundao de uma comunidade feminina neste momento, emque a misso da pregao apresentava ainda tantas dificuldades?

    A ideia de que Domingos teria fundado primeiro um mosteiro decontemplativas de clausura, para que elas j estivessem presentes e orandopelos irmos pregadores quando estes fossem fundados, no tem qualquerapoio histrico.

    Prouille nasceu mais da necessidade de encontrar soluo para o problemaconcreto da pregao do que do desejo de fundar um mosteiro. Se o problemaem questo no tivesse sido urgente, Diego e Domingos teriam seguramenteesperado uma conjuntura mais favorvel para se lanar numa tal aventura.

    Neste caso, a urgncia pastoral era dupla: por um lado, que fazer das mulheresconvertidas do Catarismo que ficavam separadas das suas famlias e semrecursos financeiros. E por outro, como impedir que fossem recrutadas para oCatarismo jovens catlicas sem recursos.

    O facto de se tratar de mulheres convertidas do catarismo, coloca a fundaode Prouille um pouco parte na histria das fundaes monsticas na idademdia. Elas representavam o tipo de candidatas que nunca teriam sido

    acolhidas nas abadias catlicas da regio. Descobrimos a, penso eu, umaspecto fundamental da viso inicial de Domingos que preciso no perder de

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    vista. E tocamos a originalidade dos comeos de Prouille e portanto dos inciosda Ordem. Tratava-se essencialmente duma fundao criada como refgiopara mulheres recentemente reconciliadas com a Igreja Catlica, sem apoiofamiliar e sem recursos financeiros. Em tudo isto Domingos revela-se o homemevanglico que, no seguimento de Jesus, acolhe os pecadores e os doentes

    que tm necessidade de mdico.

    Num certo sentido, Prouille foi uma fundao fora das normas., Havia ummandato pontifcio muito claro para um grupo de pregadores, mas nenhumameno de um mosteiro. Normalmente eram necessrias garantias financeirasantes de fundar uma comunidade de monjas que, deveria ser afiliada numaOrdem religiosa reconhecida. Prouille no possua quaisquer rendimentos em1026 e provvel que mesmo as irms no tivessem quaisquer bens pessoais.Dado que a comunidade foi inaugurada na festa de S. Joo Evangelista, 27 deDezembro de 1206, facilmente se imagina que a necessidade de fundos

    suplementares, rapidamente se fez sentir. Da a deciso e Diego voltar aEspanha em 1027. De facto, sob todos os pontos de vista, a fundao deProuille realizou-se por etapas, como muitas das fundaes dos nossos dias.Uma tradio idealizada transmitiu a ideia segundo a qual Domingos teriafechado as monjas logo em 1027. Mas na realidade nesta data, no existiamconstrues monsticas em Prouille; as irms tinham sido repartidas por duasou trs casas de particulares, umas em Fanjeaux, outras em Prouille. De facto, muito raro que uma nova comunidade possua desde os princpios belosedifcios construdos de propsito; as constituies j redigidas; os hbitos espera; a chave da clausura da porta espera de ser fechada para que tudo

    fique perfeito. Somos tentados a imaginar a fundao de Prouille, mas osfactos brutos da histria mostram-nos que no foi esse o caso. No entanto, oque se sabe que domingos, os seus companheiros pregadores e as irmsutilizavam desde o princpio a Igreja de Prouille. Por esse motivo bemverdade que o corao da comunidade est ligado a esse lugar desde o incio.

    A maneira como Simon Tugwell apresenta resumidamente estesacontecimentos parece-me muito a propsito: Ele [Domingos] fundou tambmuma casa em Prouille para as mulheres resgatadas da heresia, que se tornoupouco tempo depois num mosteiro de monjas. A frase muito simples, masos verbos empregues so chaves para compreender a perspectiva missionriade domingos: 1) mulheres que tinham sido resgatadas, o que sugere umasituao bastante dramtica onde as suas almas estavam em perigo; 2) porcausa disso ele organiza algo para fazer face situao: fundauma casa; 3)s depois a casa se torna num mosteiro e as mulheres monjas, isto , a suainsero nas estruturas eclesiais faz-se a seu tempo e em todo o caso maistarde.

    Na primavera de 1207, o posto de Prouille/Fanjeaux foi dotado de um estatutooficial como posto e misso, tornando-se parte integrante da Santa pregaoconfiada a Diego e Domingos. Mas como Diego morre antes do fim de 1027,

    domingo encontrou-se sozinho cabea do empreendimento. A comunidadedas irms, de fundao recente, ia tornar-se o centro estvel de uma dos

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    sectores da Santa pregao. importante dizer uma palavra sobre a histriado termo santa pregao. A expresso foi aplicada misso junto dos ctarospelo papa Inocncio III. No que diz respeito a Prouille, encontra-se essadesignao num documento legal de 1207.

    Quem fundou Prouille, Diego ou Domingos?. Seria impensvel, no contextoda misso de pregao em que Diego como bispo ocupava o primeiro plano eainda por cima representava a hierarquia da Igreja, que fosse o seu sub-prior afundar um mosteiro de maneira autnoma. Mas o que certo que foiDomingos sozinho que assumiu a responsabilidade de Prouille, a partir demeados de 1207 quando Diego volta a Espanha e morre em 30 de Dezembrodesse mesmo ano.

    Parece que os primeiros edifcios especificamente monsticos foramdeterminados em 1211, o que permitiu s irms, at ento dispersas, reunirem-se. As estatsticas de que dispomos falam de doze irms no incio, das quaisnove seriam convertidas do catarismo. Em 1211 eram j vinte.

    Nesta altura Domingos teria podido separar as irms dos irmos pregadores,instalando os homens numa das casas deixadas livres pelas irms. Mas nofez; foi escolha de domingos manter as duas comunidades masculina efeminina no mesmo lugar.

    O mosteiro ter permanecido durante dez anos numa situao bastante frgil,sem afiliao a qualquer Ordem. Num documento datado de 1211, Foulques,bispo da diocese de Toulouse a que pertencia Prouille, no lhes chamamonjas, mas senhoras convertidas vivendo religiosamente.

    Com base em documentos histricos, podemos afirmar que Domingos poderiater confiado as monjas aos cistercienses que tinham sido colaboradores namisso da pregao. Que ele no tivesse tomado essa opo parece apoiar aideia segundo a qual o que Domingos desejava era fazer algo de novo,nomeadamente, criar uma entidade religiosa que comportaria frades e irms eque a presena das duas comunidades uma de frades e outra de monjas no mesmo lugar, lhe gradaria.

    Eis pois que temos como elementos da novidade da viso de Domingos, ospregadores e as monjas vivendo aldo a lado num processo em devir. Mas no tudo., porque desde 1207 existem provas incontornveis da presena deleigos vivendo e trabalhando em Prouille, ao lado dos pregadores e dassenhoras convertidas. Mas os leigos em questo no eram somentetrabalhadores agrcolas contratados segundo as necessidades. No, e esta uma das cosias mais espantosas da histria dos dez primeiros anos deProuille. Temos actos notariais segundo os quais, nesta poca que precede afundao da Ordem, casis de aldeias da regio, na sua maior parte de origemmodesta, fizeram dom de si mesmos e de todos os seus bens ao SenhorDeus, Bem Aventurada Maria e a todos os santos de Deus e santa

    Pregao, ao Senhor Domingos de Osma e todos os irmos e irms presenteshoje e no futuro. Estas actas assemelham-se inteiramente a frmulas de

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    profisso, mas como a ordem no existia ainda, tambm no podia haver umaOrdem terceira. Apesar disso, Domingos aceita em nome da comunidade daSanta Pregao o dom que faziam estas pessoas.

    Nos dez primeiros anos de Prouille, havia, sem dvida nenhuma, pregadores,

    aspirantes a monjas e leigos homens e mulheres a viver dentro do mesmoespao fechado. Uma etapa significativa da histria de Prouille e importantepara situar o lugar das monjas na Ordem, a bula de Inocncio III, datada de 8de fevereiro de 125. o primeiro documento pontifcio que marca o incio doprocesso que culminar no reconhecimento d Ordem dos pregadores. E essedocumento diz respeito aos frades e s monjas. Nele ainda no aparece adesignao de mosteiro: dirigido ao prior, irmos e monjas da casa de SantaMaria de Prouille.

    No se sabe ao certo como todo este conjunto de pessoas estaria organizado.Mas a novidade da fundao de Domingos em Prouille deve procurar-se naprpria identidade das primeiras irms. A radicalidade da viso de Domingoslevou-o concepo de um mosteiro que seria a obra-prima da misericrdia -a misericrdia posta em prtica. Se ele convertia mulheres pertencentes aconventos ctaros, necessrio seria propor-lhes uma forma de vida religiosa derigor comparvel. E o que mais, a admisso devia ser gratuita, porque no sepodia esperar qualquer dote vindo de famlia ctaras.

    Um outro elemento chave da novidade da viso de Domingos, a noo decomplementaridade. Na verdade, considerando as fundaes feitas durante asua vida, claro quera seu desejo ter um convento de monjas prximo de um

    convento de frades. Os frades e as irms esto ligados no por uma autoridadelocal comum, mas a ligao era estabelecida pelo Mestre da Ordem, por umafrmula de profisso que at era comum.

    As monjas de Prouille fazem pois parte integrante da misso da Ordem desdeo seu incio. A mesma coisa vlida para os leigos, j presentes em Prouilledesde 1207, ainda que s tivessem sido integrados oficialmente na Ordem em1285 com a Regra do Mestre Munio de Zamora.

    Portanto, no aprece absolutamente nada exagerado dizer que, no s Prouilleconstituiu as primcias da ordem enquanto primeira comunidade religiosa

    fundada por So Domingos, mas tambm que a Santa Pregao lanou osfundamentos daquilo que se chama h sculos a Famlia Dominicana. Estaexpresso era correntemente utilizada nos sculos XVII e XIX. H pois razopara se refutarem os cpticos que gostariam e ver na noo de FamliaDominicana uma qualquer inveno dos finais do sculo XX.

    Talvez uma das grandes lies a reter da histria dos princpios de Prouille eque representa ao mesmo tempo para ns um desafio seja aceitar estarmosnum processo de transformao que pode durar um certo tempo. Isto implicanecessariamente aceitar um certo grau de fragilidade, at mesmo de

    vulnerabilidade. Foi assim que viveram as primeiras monjas de Prouille. Porqueo que ns somos raramente visvel no princpio; vamo-nos transformando

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    nele, dia aps dia, nas actividades quotidianas que do um sentido nossaexistncia.

    A minha convico que, o que podemos aprender da histria de Prouille, dizmais respeito ao presente do que ao passado.

    Irm Barbara Beaumont, op

    Prouille, abril de 2006