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1 4.3 A causalidade dos acidentes de trabalho A concepção do acidente do trabalho como fruto do azar, segundo Kouabenam (1999) apud Baumecker (2000), remonta a períodos muito antigos. O autor comenta que para Paracelso (1493 – 1541) os acidentes escapavam de qualquer causalidade e que eram fruto dos caprichos de demônios subterrâneos e que “tais explicações fatalistas se originam na própria história da humanidade, estando ancorada firmemente nas representações populares onde o acidente, a morte e qualquer outra forma de sofrimento são considerados como um preço a pagar pela violação da ordem estabelecida. Aliada à idéia de fatalidade aparece a da causalidade pessoal uma, vez que o azar é pessoal”. À idéia da fatalidade está amiúde associada o conceito do acaso. Ocorre que, conforme nos ensina Ruelle (1993), a interpretação científica do acaso começa pela introdução das probabilidades e o acidente não se caracteriza por ter distribuição uniforme no tempo, no espaço e nos grupos humanos, tendo determinantes, entre outros, de caráter econômico, político e social. Estando superada a compreensão do acidente do trabalho como fruto da fatalidade, onde sua ocorrência seria completamente tramada no insondável à percepção humana, descortina-se o desafio de estudar e apreender o fenômeno de maneira multicausal, identificando seus determinantes da forma mais ampla possível, ensejando a concepção de medidas necessárias à prevenção de acidentes semelhantes ou que tragam, em sua estrutura, elementos materiais ou imateriais comuns àquele objeto de análise. Embora seja nítido o entendimento que cada acidente é único, é possível identificar na sua dinâmica e estrutura elementos que podem vir a atuar como suporte para outros eventos que se deseja evitar. O grande argumento teórico e prático que sustenta a necessidade de promover exaustivas investigação e análise dos acidentes é a prevenção; é a possibilidade de conceber e implementar medidas de prevenção que sejam capazes de eliminar a chance da ocorrência de acidentes semelhantes ou que tenham na sua rede de causalidade aspectos comuns àqueles acidentes objeto de análise. Nesse sentido, desde suas primeiras versões, o método da árvore de causas traz referências à noção de focos de

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4.3 A causalidade dos acidentes de trabalho

A concepção do acidente do trabalho como fruto do azar, segundo Kouabenam

(1999) apud Baumecker (2000), remonta a períodos muito antigos. O autor comenta que

para Paracelso (1493 – 1541) os acidentes escapavam de qualquer causalidade e que

eram fruto dos caprichos de demônios subterrâneos e que “tais explicações fatalistas se

originam na própria história da humanidade, estando ancorada firmemente nas

representações populares onde o acidente, a morte e qualquer outra forma de sofrimento

são considerados como um preço a pagar pela violação da ordem estabelecida. Aliada à

idéia de fatalidade aparece a da causalidade pessoal uma, vez que o azar é pessoal”. À

idéia da fatalidade está amiúde associada o conceito do acaso. Ocorre que, conforme

nos ensina Ruelle (1993), a interpretação científica do acaso começa pela introdução das

probabilidades e o acidente não se caracteriza por ter distribuição uniforme no tempo,

no espaço e nos grupos humanos, tendo determinantes, entre outros, de caráter

econômico, político e social.

Estando superada a compreensão do acidente do trabalho como fruto da

fatalidade, onde sua ocorrência seria completamente tramada no insondável à percepção

humana, descortina-se o desafio de estudar e apreender o fenômeno de maneira

multicausal, identificando seus determinantes da forma mais ampla possível, ensejando

a concepção de medidas necessárias à prevenção de acidentes semelhantes ou que

tragam, em sua estrutura, elementos materiais ou imateriais comuns àquele objeto de

análise. Embora seja nítido o entendimento que cada acidente é único, é possível

identificar na sua dinâmica e estrutura elementos que podem vir a atuar como suporte

para outros eventos que se deseja evitar.

O grande argumento teórico e prático que sustenta a necessidade de promover

exaustivas investigação e análise dos acidentes é a prevenção; é a possibilidade de

conceber e implementar medidas de prevenção que sejam capazes de eliminar a chance

da ocorrência de acidentes semelhantes ou que tenham na sua rede de causalidade

aspectos comuns àqueles acidentes objeto de análise. Nesse sentido, desde suas

primeiras versões, o método da árvore de causas traz referências à noção de focos de

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risco ou de rubricas, conceito esse que evoluiu para os denominados fatores potenciais

de acidentes.

Embora haja algumas identidades, o termo não deve ser confundido com os

chamados fatores de riscos da técnica do mapa de riscos. Conforme enunciado por

Nahas; Vago (2002), “fator de risco é uma condição ou um conjunto de circunstâncias

que têm o potencial de causar danos à saúde, à integridade física das pessoas, ao

ambiente, ao processo ou aos equipamentos, ou seja, é tudo aquilo que tem o potencial

de causar danos”.

Um fator potencial de acidentes não precisa causar diretamente o dano, pode

estar associado ao acidente embora alheio à cena do acidente ou mesmo ter caráter

imaterial como os aspectos organizacionais e/ou culturais. Por conta de sua natureza,

não é razoável considerar como fator potencial de acidentes aquelas situações

representadas pelas ausências das mais elementares medidas de prevenção de acidentes,

previstas na legislação específica ou de imediata percepção numa inspeção no ambiente

de trabalho.

É possível que seja regra geral, mas com certeza na indústria há um elevado grau

de dependência entre as políticas de segurança e manutenção; o fracasso de uma não

significa o sucesso da outra. Nesse caso, em particular, a comunicação, tanto como

manifestação cultural, quanto como política normativa da empresa, desempenha

importante papel no estabelecimento de um regime cooperativo entre as atividades de

manutenção e as exigências da segurança. O acidente da Piper Alpha1 é exemplo

histórico do quão grave pode se tornar a não comunicação de uma intervenção da

manutenção a uma equipe que está assumindo o seu turno de trabalho (Paté-Cornell,

1993). Na aviação civil, segundo Reason; Maddox (1998), a percepção da importância

da manutenção para a segurança dos vôos comerciais teve radical transformação após o

acidente do B-737 da Aloha Airlines ocorrido em 1988.

1 O acidente com a plataforma Piper-Alpha ocorreu em 6 de julho de 1988 no Mar do Norte; matou 167

pessoas e gerou perda material da ordem de bilhões de dólares (Paté-Cornell, 1993).

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No estudo do acidente de trabalho, o foco esteve historicamente dirigido para o

erro ou falha humana. A respeito da causalidade dos acidentes industriais, Heinrich

(1941) afirmava que, para o senso comum, era admitido que a grande maioria dos

acidentes industriais seria causada diretamente por determinados atos inseguros

cometidos por pessoas ou pela exposição a determinados riscos materiais ou mecânicos.

Ao expor sua filosofia básica da prevenção de acidentes, Heinrich (1941) relaciona uma

série de axiomas da segurança industrial dos quais destacamos os seguintes:

● a ocorrência de uma lesão invariavelmente resulta de uma seqüência

completa de fatores, sendo o próprio acidente um desses fatores;

● um acidente somente pode ocorrer quando precedido ou acompanhado por

uma ou ambas das duas circunstâncias: o ato inseguro de um indivíduo ou a

existência de um risco material ou mecânico;

● os atos inseguros das pessoas são responsáveis pela maioria dos acidentes.

Heinrich representou sua concepção da causalidade dos acidentes de trabalho

por meio de um arranjo específico de cinco peças de dominó, conforme sugere a Figura

5 a seguir:

Fonte: Adaptado de Heinrich (1941).

Figura 5. Os cinco fatores de Heinrich da seqüência do acidente.

Segundo Heinrich (1941), o acidente seria causado por uma seqüência linear de

fatores que culminariam na lesão, de modo que “a ocorrência de uma lesão passível de

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prevenção é a culminação natural de uma série de eventos ou circunstâncias, as quais

ocorrem invariavelmente seguindo uma ordem lógica e fixa”. Nesse modelo cada fator é

dependente do outro, constituindo uma fila que pode ser comparada a uma fila de peças

de dominó, postas de maneira tal que a queda da primeira peça implica a queda de toda

a fila. O acidente é apenas um elemento da fila. A lógica da prevenção concebida por

Heinrich é que a subtração de uma das peças intermediárias impediria a queda da peça

que simboliza o acidente ou a lesão.

A cadeia proposta por Heinrich inicia-se com a ancestralidade e o meio social,

que seriam responsáveis por características como o descuido, a teimosia e outros traços

indesejáveis de caráter que, na compreensão do autor, podem ser hereditários e/ou

serem desenvolvidos pelo meio social. Essa “peça” seria causadora da segunda, que é

referida como sendo defeitos pessoais, que são exemplificados por meio do

temperamento violento, nervosismo, falta de cuidado e outros. Essa segunda “peça”

seria causadora da existência da terceira, que é referida como ato inseguro e condição

insegura2. Essa “peça” seria causadora da queda da quarta “peça” (o acidente), que por

sua vez, causaria a lesão, representada pela última peça da fila.

Na concepção de Heinrich, o elemento chave para a prática de prevenção,

conforme sugere a Figura 6 a seguir, é o terceiro, representado pelo ato inseguro e pela

condição insegura, sendo que a grande maioria dos acidentes seria causada pelo

comportamento inseguro do trabalhador.

2 Na ilustração original de Heinrich (1941), essa peça do dominó é referida como ato inseguro e risco material ou mecânico. Na adaptação aqui realizada optou-se pela linguagem que é a mais conhecida, que é a do ato inseguro e condição insegura.

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Fonte: Adaptado de Heinrich (1941).

Figura 6. Elemento chave de Heinrich para a prática da prevenção.

Segundo Monteau; Pham (1988) apud Almeida (1995), a classificação das

“causas” dos acidentes em atos inseguros e condições inseguras foi desenvolvida por

Lateiner com fundamento na terceira peça de dominó de Heinrich.

Esse tipo de abordagem do problema prima pela superficialidade, pois reduz o

universo da investigação à cena na qual ocorreu o acidente, onde quase que

invariavelmente a vítima ou um seu companheiro de trabalho surge como elemento

deflagrador, como autor daquela ação categorizada por Reason (1997) como uma falha

ativa. Essas falhas ativas ou erros ativos seriam cometidos pelos trabalhadores que

atuam na linha de frente das empresas e teriam conseqüências imediatas. Reason

também introduziu o conceito de erros latentes, que seriam cometidos em níveis de

concepção e de gerenciamento. Reason compara os erros latentes das organizações

tecnológicas aos patógenos residentes no corpo humano; da mesma maneira que os

patógenos, os erros latentes como projeto precário, lacunas na supervisão, defeitos não

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detectados de fabricação ou falhas de manutenção, procedimentos não factíveis,

automação mal concebida, treinamentos mal formulados e ineficazes podem estar

presentes por um grande intervalo de tempo antes de, mediante combinação com

circunstâncias locais e erros ativos, conseguirem penetrar as defesas do sistema.

A compreensão de Reason (1997) sobre a estrutura daqueles que ele chama de

acidentes organizacionais evidencia-se na Figura 7, a seguir:

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Fonte: Adaptado de Reason (1997).

Figura 7. Estágios no desenvolvimento e investigação de um acidente organizacional.

De acordo com o modelo de acidente organizacional de Reason, as falhas ativas

são produtos de ações individuais ou de equipe que, usualmente, envolvem erros (sem

má-fé) e/ou violações cometidas pelos trabalhadores de linha de frente da empresa.

Esses fatores ao combinarem-se com fatores ambientais ou outros eventos

desencadeadores encontram ou criam caminhos através das defesas (de engenharia ou

individuais) que foram engendradas pela organização para tentar impedir a ocorrência

de acidentes. Uma visualização dessa imagem é apresentada na Figura 8, a seguir:

Perdas PERIGO

Riscos

Defesas

Causas

Investigação

Caminhos das

Condições

Latentes Atos Inseguros

Fatores Internos ao Local de Trabalho

Fatores Organizacionais

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Fonte: Adaptado de Gibb; Hayward; Lowe (2001).

Figura 8. Modelo de acidente organizacional de Reason.

A grande limitação do tratamento superficial dispensado ao acidente do trabalho,

ao considerar apenas as falhas mais evidentes ou ativas, que se materializam nos

chamados atos inseguros, é não alcançar as causas raízes ou as condições latentes, de

acordo com Reason (1997), que repousam inativas no sistema de produção e que têm

potencial para contribuir, provocar ou permitir as ações praticadas pelo(s)

trabalhador(es) e que tiveram o condão de precipitar a indesejada ocorrência.

Embora a definição de causa raiz possa gerar controvérsias, é razoável especular

que, de uma maneira geral, as tentativas de conceituação da expressão, ainda que de

caráter intuitivo, guardem alguma identificação. A metodologia SOURCE3 utiliza a

seguinte definição: causas raízes referem-se à maioria das causas básicas que podem

razoavelmente ser identificadas, das quais o gerenciamento tem controle para tratar e

para as quais podem ser geradas recomendações efetivas para prevenir sua repetição

(USA, 1999). Paradies; Busch (1988) apud Almeida (2003) definem a causa raiz como 3 A metodologia SOURCE™ (Seeking Out the Underlying Root Causes of Events) é baseada em

metodologia desenvolvida pelo Departamento de Energia da Westinghouse Savannah River Corporation

em 1991 (USA, 1999).

Tarefa e Condições Ambientais

Fatores Organizacionais

e Sistêmicos

Defesas Falhas ou Ausentes

ACIDE NTE

Falhas Ativas Condições Latentes

Ações Individuais e de Equipe

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uma “causa básica que pode ser razoavelmente identificada e que a gerência tem meios

de controle para corrigir”.

De acordo com Reason (1997), é possível agrupar os modelos da gestão da

segurança e saúde no trabalho em três grandes modelos, que poderiam ser referenciados

como modelos centrados no indivíduo, na engenharia e de abordagem sistêmica. Os

modelos de gestão da segurança e saúde no trabalho constituem uma proposta de caráter

técnico-administrativo para o enfrentamento de uma classe de eventos que inclui o

acidente de trabalho. A fundamentação teórica de cada modelo de gestão das condições

de trabalho dentro do sistema empresarial denota ou se dá em razão também da

compreensão que se tem do acidente de trabalho e das disfunções do sistema de

produção que podem redundar em prejuízo para os empreendedores. Prosseguindo com

esse raciocínio, pode-se pensar em também três grandes agrupamentos teóricos para a

causalidade dos acidentes de trabalho; eles seriam calcados no indivíduo, nas falhas de

engenharia e nos problemas organizacionais.

Entre os elementos que embasam a estratégia de um importante grupo

empresarial presente na mineração (BHP Billinton, 2003), para o melhoramento do

desempenho da sua política de segurança, estão as condições seguras e o

comportamento do pessoal no local de trabalho e uma das metas do programa de

segurança é fazer com que todo seu efetivo adote comportamentos seguros no trabalho,

com as gerências estimulando o envolvimento e motivação do pessoal no uso de

processos comportamentais para melhorar o desempenho da política de segurança.

Coerentemente, a ferramenta que o grupo aplica nas investigações de acidentes,

o ICAM – Incident Cause Analysis Method, foi desenvolvido tendo como referência e

orientação o trabalho do Professor James Reason, da Universidade de Manchester, do

Reino Unido, que é um psicólogo organizacional especialista em erro humano (Gibb;

Hayward; Lowe, 2001).

A abordagem comportamental também mostra variantes e o comportamento

humano pode ser um argumento para que se chegue às causas de caráter não imediato.

A EQE International (USA, 1999), discorrendo sobre um dos cursos que oferece sobre a

investigação e análise de acidentes afirma que o curso “Preventing Human Error”

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propicia ao participante habilidade para examinar o erro humano e identificar as

condições que contribuíram para sua ocorrência, de modo que o participante se tornará

apto a reconhecer as verdadeiras causas por trás da maioria dos erros humanos, como a

fragilidade dos sistemas de gerenciamento que se usa para projetar equipamentos e

processos; desenvolver e aplicar procedimentos e políticas e selecionar, treinar,

supervisionar e comunicar-se com os trabalhadores.

No modelo do ato inseguro versus condição insegura, dois desses três grupos

apareceriam associados, como se fossem as duas faces da mesma moeda, de maneira

que o acidente seria causado por uma falha individual ou por uma falha da engenharia

ou, quiçá com mais propriedade, por uma falha técnica, de caráter operacional. Talvez

por tomar duas pretensas categorias de causas em consideração, essa visão tenha

assumido, enganosamente, ares de visão abrangente para a interpretação dos acidentes

de trabalho e venha se perpetuando no arsenal de recursos que os profissionais de

segurança e saúde no trabalho das empresas mobilizam para realizar a investigação e

análise de acidentes.

Estudos realizados no início da década de 90, no âmbito das atividades do

Programa de Saúde do Trabalhador, desenvolvido pela disciplina de Medicina do

Trabalho da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, em colaboração com o

Escritório Regional de Saúde (Secretaria de Estado da Saúde – SP), por meio da

vigilância epidemiológica dos acidentes de trabalho, constataram que as investigações

realizadas pelo SESMT e CIPA das empresas eram sempre superficiais, restritas à cena

do acidente; além de não proporcionar a experiência e o aprendizado que a busca das

causas implica, responsabilizavam o trabalhador, atribuindo-lhe a culpa pela ocorrência.

Esses estudos levaram à realização de uma pesquisa específica executada em

empresas situadas nos municípios de Botucatu e Osasco, ambos no estado de São Paulo.

Conforme relatam Binder; Almeida (1993), foram analisadas as fichas relativas aos

acidentes ocorridos em 1990, no período de janeiro a junho, inclusive, que tiveram

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emissão de CAT4 e foram investigados pela CIPA da empresa. Por conta disso, uma das

principais fontes de informação foi o Anexo II da Norma Regulamentadora 5, que

vigorou até 23 de fevereiro de 1999, quando foi publicado o texto atual da

regulamentação da CIPA. Desse Anexo II, que está reproduzido na Figura 9, a seguir,

foram compiladas e processadas as informações do tópico “Investigação do Acidente”

das fichas relativas a 125 acidentes investigados pelas respectivas Comissões Internas

de Prevenção de Acidentes.

4 A sigla CAT refere-se à Comunicação de Acidente de Trabalho que deve ser feita pela empresa nos

termos do Artigo 336 do Decreto Nº 3.048, de 6 de maio de 1999 (Saliba; Saliba, 2002)

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Fonte: Atlas (1998).

Figura 9. Anexo II da Norma Regulamentadora 5 vigente até 1999.

ANEXO II DA NR 5

FICHA DE ANÁLISE DE ACIDENTES COMISSÃO INTERNA DE PREVENÇÃO

DE ACIDENTES CIPA Nº.....................................................

EMPRESA .............................................................................................................................. ENDEREÇO........................................................................................................................... Nº ...........................................................................DATA.....................HORA .................... NOME DO ACIDENTADO................................................................................................ IDADE................................................OCUPAÇÃO ............................................................. DEPARTAMENTO EM QUE TRABALHA .....................................SEÇÃO.................. DESCRIÇÃO DO ACIDENTE ............................................................................................

.................................................................................................................................................. PARTE DO CORPO ATINGIDA ........................................................................................ INFORMAÇÃO DO ENCARREGADO .............................................................................

..................................................................................................................................................

....................................................... ENCARREGADO

INVESTIGAÇÃO DO ACIDENTE

COMO OCORREU .................................................................................................................................................................................................................................................................

CAUSA APURADA .................................................................................................................................................................................................................................................................

........................................................ MEMBRO DA COMISSÃO

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O tratamento das informações constantes nos campos “causa apurada”, “medidas

propostas”, “causa do acidente” e “responsabilidade” estão reproduzidos,

respectivamente, nas tabelas 3, 4, 5 e 6. Conforme Binder; Almeida (1993), a

distribuição das “causas apuradas” atribuídas aos acidentes de trabalho foi a que se

observa na Tabela 3, a seguir:

Tabela 3

Distribuição das “causas apuradas” para os 125 acidentes de trabalho

investigados.

Causa Apurada Acidentes de trabalho

Quantidade %

Descuido, negligência,

desatenção, exposição

desnecessária ao perigo

54

37,77

Operação incorreta 22 15,38

Não uso de Equipamento de

Proteção Individual

13 9,09

Risco inerente à atividade 12 8,39

Defeito de equipamento,

instalação ou ferramenta

12 8,39

Gerado por terceiro 7 4,90

Improvisação 4 2,80

Pressa na execução da

tarefa

3 2,10

Outras causas 8 5,59

Sem informação 8 5,59

TOTAL 143 100,0

Fonte: Adaptado de Binder; Almeida (1993).

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A análise das “causas apuradas” apontadas na Tabela 3 permite, entre outras

leituras, a de que 103 dessas causas são associadas à presença humana na execução da

tarefa, o que percentualmente representa aproximadamente 72% do total.

Em relação às “medidas propostas”, a distribuição da sua natureza nos acidentes

investigados foi aquela explicitada na Tabela 4, a seguir:

Tabela 4

Distribuição das “medidas propostas” para os 125 acidentes de trabalho

investigados.

Medida proposta Quantidade %

Conscientizar, orientar,

insistir em maior atenção,

disciplinar

86 59,7

Insistir no uso de

Equipamento de Proteção

Individual

16 11,1

Melhorar treinamento na

tarefa 3 2,1

Melhorar equipamento,

mudar processo,

inspecionar

periodicamente, eliminar

condições inseguras,

melhorar sinalização

32 22,2

Sem informação 7 4,9

TOTAL 144 100,0

Fonte: Adaptado de Binder; Almeida (1993).

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Dirigindo a essa Tabela 4 a mesma questão formulada à Tabela 3, das causas,

temos que aproximadamente 73% das medidas propostas têm como foco o

comportamento do trabalhador; esse resultado é derivação do relatado na Tabela 3, onde

72% das causas estão associadas ao trabalhador.

A distribuição em função da conclusão, por parte das empresas, quanto à causa

dos acidentes de trabalho investigados, está na Tabela 5, a seguir:

Tabela 5

Distribuição dos 125 acidentes de trabalho investigados segundo a conclusão das

empresas quanto às causas.

Conclusão Acidentes do trabalho

Quantidade %

Ato inseguro 88 (1) 70,4

Condição insegura 26 20,8

Ato e condição inseguros 4 3,2

Sem informação 7 5,6

TOTAL 125 100,0

Fonte: Adaptado de Binder; Almeida (1993).

(1) Para um acidente sobre o qual não havia registro de “causa” (sem informação na Tabela 3),

no item “Conclusão” houve registro de ato inseguro.

Também nessa Tabela 5, a parte maior da distribuição está associada ao

trabalhador, que em aproximadamente 73% dos casos teria cometido um ato inseguro.

Os dados obtidos para a distribuição da responsabilidade pela ocorrência ao

longo do universo de acidentes investigados são mostrados na Tabela 6 a seguir:

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Tabela 6

Distribuição das responsabilidades pela ocorrência nos 125 acidentes de trabalho

investigados.

Responsável Quantidade %

Acidentado 69 55,2

Outro trabalhador 4 3,2

Empresa e acidentado 2 1,6

Empresa 8 6,4

Subtotal 83

Sem informação 42 33,6

TOTAL 125 100,0

Fonte: Adaptado de Binder; Almeida (1993).

Segundo essa Tabela 6, a própria vítima é responsabilizada em mais da metade

(69) de todos os casos (125) analisados. Também temos que em 42 fichas esse campo

não foi preenchido, de forma que o volume de acidentes com essa informação se reduz

de 125 para 83.

Em relação à responsabilidade apontada, podemos considerar que em 75 dos

casos (incluímos a responsabilidade de outro trabalhador e a responsabilidade solidária

com a empresa) ela recai sobre o trabalhador. Isso, em relação ao subtotal de 83,

corresponde a 90,36%. Relacionando esse achado com o modelo aplicado nas

investigações realizadas, segundo o qual o acidente ocorre por um ato inseguro do

trabalhador ou pela existência e exposição a uma condição insegura de trabalho, temos

que, do total de acidentes investigados, cerca de 90% teriam sido causados por um ato

inseguro do trabalhador, na sua grande maioria, a própria vítima.

É digno de menção que essas proporções reproduzam aquelas encontradas em

outro estudo realizado há mais de 60 anos nos EUA (Heinrich, 1941). Nesse estudo,

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foram colecionados dados relativos a 75.000 acidentes industriais. Desse total, 2%

teriam tido como causa fatores imprevisíveis e os demais 98%, fatores previsíveis. Esses

números são, de certa maneira, alentadores para os profissionais de segurança e saúde

no trabalho; afinal, o atributo da previsibilidade do acontecimento é condição necessária

à prática da prevenção, que emerge da relação entre o prever e o prevenir. Assim,

prevenibilidade e previsibilidade são atributos que mantém inter-relação, embora não

sejam, na linguagem estatística, mutuamente exclusivos, pois a capacidade de prever

não implica obrigatória e exaustiva capacidade de prevenir.

Voltando ao estudo realizado por Heinrich (1941) nos EUA, após definição da

natureza dos fatores quanto à previsibilidade, ele apresenta, para a fração posta como

previsíveis, uma classificação quanto aos fatores causais que é a seguinte: 10% dos

acidentes previsíveis foram causados por condições inseguras de trabalho, enquanto

88% teriam sido causados por atos inseguros dos trabalhadores. Um resumo gráfico

dessa classificação é exposto na Figura 10, a seguir:

Fonte: Sindicato dos Químicos SP/Sindicato dos Plásticos SP (1993).

Figura 10. Classificação das causas no estudo de Heinrich (1941).

Acidentes

2% Causas imprevisíveis e impreveníveis

98% Causas previsíveis e preveníveis

88% Fatores humanos – atos

inseguros

10% Fatores materiais –

condições inseguras

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Magrini; Ferreira (s/d) argumentam que a expressão “ato inseguro”, enquanto

locução da língua portuguesa não tem sustentação, pois não guarda significação por si

só, sem considerar outros elementos do contexto no qual teria ocorrido o ato

considerado como inseguro. Alguns aspectos que têm clara relação quanto à segurança

presente em cada atitude no ambiente de trabalho são: o ambiente, a tecnologia

empregada, o domínio do trabalhador em relação a essa tecnologia e, por último mas

não de forma menos importante, os sistemas de proteção existentes e efetivamente

utilizados. Corroborando essa abordagem do problema, Almeida (1995) afirma que a

proposição da prevenção, apenas com base na eliminação dos atos inseguros, deriva da

compreensão do comportamento do trabalhador como autodeterminado, configurando

uma leitura reducionista do acidente de trabalho.

No Brasil, lamentavelmente, a compreensão do acidente de trabalho como fruto

de um ato inseguro do trabalhador ou de uma condição insegura do ambiente de

trabalho ainda é o pensamento hegemônico. Conforme lembra Binder (1997),

possivelmente por influência do que ocorria internacionalmente, essa concepção foi

trabalhada e difundida no Brasil por meio de uma série de publicações como o Cadastro

de Acidentes – Norma Brasileira 18 (Associação Brasileira de Normas Técnicas, 1975)

e aquelas editadas pela Fundacentro, onde merecem destaque as coleções “Curso de

Engenharia do Trabalho” (Clemente, 1981) e “Curso de Medicina do Trabalho”

(Ribeiro Filho, 1981; Saad, 1981).

A expressão “ato inseguro” pode levar à compreensão de que todas as falhas

humanas no ambiente de trabalho podem ser agrupadas em uma só categoria.

Entretanto, conforme nos ensina Reason (1997) os erros humanos podem assumir

diferentes formas, ser gerados por diferentes mecanismos psicológicos e ocorrer em

diferentes partes do sistema.

O “ato inseguro” tal qual é compreendido e aplicado na análise de acidentes na

maioria das empresas do Brasil assemelha-se a uma caixa preta indevassável. Assim,

para fins de compreensão do fenômeno acidente, trata-se de conceituação inútil, que não

produz informação passível de tratamento no âmbito dos sistemas de gestão de

segurança e saúde no trabalho. Na verdade, trata-se de modelo que tem o condão de

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elidir qualquer possibilidade de aprendizado que poderia ser gerado pela investigação e

análise de acidentes e atua como mecanismo de culpabilização do trabalhador.

Oliveira (1997) ao discorrer sobre as tentativas de perpetuação de certa versão

da realidade reproduz o seguinte trecho de publicação utilizada nas campanhas de

prevenção de acidentes de uma determinada empresa:

“...a prevenção de acidentes não depende somente de boas condições materiais,

mas, principalmente, do elemento humano, ou seja, você [...] Grande parcela de

responsabilidade na prevenção de acidentes cabe ao empregado, não ao dirigente, pois

devido à natureza de seu trabalho, é quem corre maior risco de acidentes, por estar

fazendo trabalhos que exigem movimentos físicos, estar em contato direto com

máquinas, equipamentos etc. [...] Para o seu benefício não seja igual a um destes:

distraído, imprudente, gozador, curioso, sabido, ingênuo, exibicionista, displicente,

teimoso5”.

Estamos sempre prontos para julgar nossos semelhantes; é comum que ao

presenciar determinadas situações onde se observou um acidente, as pessoas tenham a

propensão de eleger responsáveis, ou melhor, culpados. Conforme assinala Reason

(1997) essa tendência encontraria explicação na “ilusão do livre arbítrio6”, que faz a

atribuição do erro ser tão usual para a natureza humana. Faz parte da nossa cultura,

também com raízes fincadas na fé cristã, a crença de que somos todos artífices de nosso

destino, de forma que os indivíduos têm a liberdade de escolha entre o certo e o errado.

Em função dessa compreensão dos indivíduos como seres livres, suas atitudes também

tendem a ser entendidas, pelo menos em parte, como de caráter voluntário. Assim, se o

erro carrega vontade, ao seu autor pode ser imputada a responsabilidade pelo que

provoca.

5 Oliveira (1997) registra que cada um dos tipos elencados se faz acompanhar de uma ilustração caricatural. 6 Diz-se que o livre arbítrio é uma ilusão porque nosso espaço de ação é sempre limitado pelas circunstâncias locais (Reason, 1997).

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Reason (1997) ao desenvolver suas idéias sobre o gerenciamento do erro

humano ilustra a nocividade que o conceito de culpa acarreta por meio de um ciclo, por

ele chamado de ciclo da culpa, conforme se observa na Figura 11 a seguir:

Fonte: Adaptado de Reason (1997).

Figura 11. O ciclo da culpa.

Esse ciclo vicioso configura verdadeira armadilha para o combate ao erro. A

culpa, também é importante frisar, é elemento comprometedor da investigação,

particularmente se está associada na cultura da empresa à punição.

As ações humanas são vistas como as causas de acidentes que menos restrições sofrem.

Por que? Porque as pessoas são vista como agentes livres, aptos à escolha entre o certo e o errado.

Uma vez que os erros são tratados como parcialmente deliberados, são passíveis de caracterizar culpa.

Ações entendidas como recrimináveis são tratadas com avisos, sanções e exigências de maior cuidado da próxima vez.

Tais medidas são ineficazes, de modo que os erros continuam associados aos eventos indesejados.

Os erros agora são tratados como realmente algo censurável, pois quem errou parece ignorar as advertências e punições.

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“A clareza com que o esquema ou árvore expõe os “mecanismos” envolvidos na

ocorrência dos acidentes pode facilitar a superação da “cultura” da culpa” (Almeida,

1995).

Discorrendo sobre a existência de inquéritos e processos que atestam a fatalidade

como causa de acidentes, Ussier (2002) lembra e comenta: “Por exemplo, até 1988 eu

era promotor criminal no interior de São Paulo, onde a gente faz de tudo um pouco.

Cheguei a arquivar inúmeros inquéritos policiais de acidentes de trabalho porque

na minha cegueira de então eu sempre questionava: Mas será que alguém empurrou o

cara da obra? A vítima não tomou o cuidado necessário! O que ele estava fazendo lá em

cima? E acabava arquivando o inquérito porque não conseguia ver a ocorrência de um

crime ali, no ambiente de trabalho.

Mas depois que passei a conhecer aquele mundo subterrâneo das relações de

trabalho, eu venho afirmando com todas as letras, que nenhum acidente ocorre por

acaso, porque o trabalhador quis se acidentar, ou se descuidou. Não existe legalmente, o

que antigamente a ideologia ‘prevencionista’ chamava de ato inseguro. Mas essa cultura

de que o acidente acontece por culpa do empregado existe até hoje.

Eu trabalho e venho trabalhando há 10 anos para tentar mudar um pouco essa

cultura nos inquéritos civis que são da minha responsabilidade.

Toda vez que chega ao nosso conhecimento lá na promotoria um acidente grave,

um acidente fatal, eu peço para um dos engenheiros de segurança do trabalho que

assessoram o Ministério Público de São Paulo, elencar todas as causas que levaram à

ocorrência daquele acidente. Nós chegamos sempre à conclusão de que aquele acidente

aconteceu, no mínimo, em razão de uma multicausalidade na qual a irresponsabilidade

da empresa sempre aparece”.

A sujeição do trabalhador a uma condição de trabalho onde existe risco grave e

iminente é precedida pela opção por uma concepção do trabalho em formato que

implica risco de morte para quem o executa. Nessas circunstâncias, só a recusa ao

trabalho significa a determinação do não-acidente, vez que a mensuração do risco grave

e iminente recai no campo regido pela teoria das probabilidades.

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No arcabouço teórico da Convenção 1747 da Organização Internacional do

Trabalho, em relação à análise dos grandes acidentes, tem-se que as causas principais

são classificadas nas seguintes categorias: operacionais; ambientais; organizacionais e

pessoais. Embora a classificação das causas sugira uma abordagem multicausal do

acidente, não há indicação de método a ser aplicado para a identificação das causas

denominadas principais (Almeida, 2003).

A sociedade moderna convive com tecnologias de alto risco, onde eventuais

erros humanos têm a capacidade de provocar efeitos catastróficos, capazes de atingir

grandes extensões territoriais e permanecerem ativos em sua nocividade por muito

tempo. Entre os sistemas complexos que utilizam tais tecnologias, Perrow (1984) cita as

plantas de energia nuclear, as plantas químicas, aeronaves e controles de tráfego aéreo,

embarcações, barragens, armas nucleares, missões espaciais e a engenharia genética.

Segundo Reason (1993), os desenvolvimentos que vêm ocorrendo na psicologia

cognitiva, nos campos teóricos e metodológicos, desde a década de 70, possibilitam que

se faça um estudo dos erros por eles mesmos. Uma melhor compreensão dos processos

mentais poderá mais que permitir a concepção de métodos eficazes para prevenir ou

reduzir os erros humanos. Para Reason (1993), se a compreensão dos processos mentais

pela psicologia cognitiva propiciar uma concepção adequada dos processos cognitivos

de controle, ela deverá também explicar, não apenas o desempenho correto, mas

também as formas mais previsíveis das falhas humanas.

Reason (1993) afirma que a precisão de nossa previsão dos erros depende

enormemente da qualidade da nossa compreensão dos fatores envolvidos na produção

desses erros, assim como a discriminação das causas é condição imprescindível à

7 Na Conferência realizada em Genebra, no dia 22 de junho de 1993, a Organização Internacional do

Trabalho (OIT) adotou a Convenção de número 174 versando sobre a PREVENÇÃO DE GRANDES

ACIDENTES INDUSTRIAIS que envolvam substâncias perigosas cujas conseqüências resultem na

exposição de trabalhadores, população e meio ambiente a riscos imediatos ou de médio e longo prazo. A

Convenção OIT 174 foi ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº

246/2001 e sancionada pela Presidência da República por meio do Decreto 4.085, de 15.01.02 e entrou

em vigor no País a partir de 02 de agosto de 2002.

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apreensão do ensinamento que o acidente implica. A abordagem sistêmica do acidente

de trabalho busca a maior qualificação da compreensão que se tem do fenômeno, para

subsidiar o incremento da capacidade de prevenção de ocorrências indesejadas pela

organização e a necessidade da melhor compreensão das vicissitudes da intervenção

humana está contemplada nesse contexto analítico. Com isso, Reason (1993) afirma que

uma concepção adequada dos processos cognitivos de controle poderá explicar as

formas mais previsíveis da falha humana.

Um bom início é tentarmos conceituar o que seria, afinal, o erro. Segundo

Reason (1990) é aceitável que o erro seja conceituado como a falha de ações planejadas

em atingir uma meta desejada.

A abordagem que será praticada para a compreensão do erro humano também

deve ter caráter sistêmico, pois seria um equívoco teórico dedicar a um componente do

sistema um tratamento diferenciado; à parte, cabe uma abordagem que seja compatível

doutrinariamente8 com aquela praticada com o todo.

Assim, com o propósito de examinar a produção dos erros com o mesmo olhar

sistêmico, Reason (1993) afirma que a compreensão dos fatores de produção desses

erros só será possível com o suporte de uma teoria que contemple e articule os

principais aspectos presentes, que são: a natureza da tarefa e as condições nas quais ela

é realizada, os mecanismos que regem a atividade e as particularidades do sujeito.

Uma teoria que considere a multiplicidade dos fatores presentes no ambiente de

trabalho e ainda atente para a forma de inserção do trabalhador no sistema de produção

objeto de análise e sua relação com os demais elementos, poderá avançar no sentido de

permitir não só a previsão das circunstâncias mais propícias à produção do erro, como

também antecipar a forma particular que o erro assumirá.

Isso posto, o grau de complexidade do sistema sob foco atua como fator

determinante para a profundidade da leitura que se consegue fazer. Quanto mais simples

os sistema, com mais facilidade se empreende com sucesso uma abordagem sistêmica.

No entanto, para a maioria dos erros, nossa capacidade de apreensão da interação

8 Doutrina é o conjunto de princípios que servem de base a um sistema filosófico, científico etc.

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complexa entre os fatores causais mostra-se imperfeita e incompleta. A conseqüência

disso é que as especulações que pode fazer a respeito dos erros acabam tendo caráter

probabilístico.

Na discussão que faz sobre os erros humanos, Reason (1990) associa a noção de

erro à noção de intenção, de maneira inseparável; para ele, se existe o propósito de fazer

um inventário das diferentes formas que o erro assume, é producente começar pela

examinação dos variados tipos de comportamento intencional.

O algoritmo proposto por Reason (1990) permite diferenciar os tipos de

comportamentos intencionais, conforme se observa na Figura 12, a seguir:

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Fonte: Adaptado de Reason (1993).

Figura 12. Algoritmo de Reason - Algoritmo que permite diferenciar os tipos de

comportamentos quanto à intencionalidade.

Seale (1980) apud Reason (1990) introduziu uma diferenciação importante a ser

considerada na análise das ações intencionais, que comporta a intencionalidade sempre

mas não necessariamente uma intencionalidade planejada ou premeditada. É necessário

ter claro que o desenrolar de uma intenção premeditada ou planejada comporta duas

classes de ações, quais sejam: as ações intencionais e as ações sem intenção.

Havia intenção premeditada na ação?

Havia intenção na ação?

Ação involuntária ou sem intenção

Ação espontânea ou subsidiária

Não

Sim

As ações ocorreram conforme previsto?

Sim

As ações atenderam os fins propostos?

Sim

Ação bem sucedida

Ação não intencional (falha ou lapso)

Não

Ação intencional mas com falha

Não

Sim

Não

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De acordo com Reason (1990), ações não intencionais ocorrem devido a falhas

da memória que impedem a realização da atitude planejada, constituindo um lapso, ou

alguma falha como falta de atenção que provoca a realização da ação equivocada, o que

constituiria um deslize.

As ações intencionais são de dois tipos: erros e violações. Erros ocorrem quando

a compreensão, o conhecimento ou julgamento, numa determinada situação, são

deficientes e uma ação é planejada e executada de uma maneira tal que não redunda no

resultado desejado. Violações são ações intencionais que, por várias razões não estão

em conformidade com as regras vigentes, padrões e normas. Exceto atitudes deliberadas

como a sabotagem, a motivação envolvida na ocorrência de uma violação não é a de

causar mal ou dano, mas freqüentemente é simplesmente “completar a tarefa” (Gibb;

Hayward; Lowe, 2001).

Encontramos exemplo de ação intencional sem intenção premeditada nas ações

subsidiárias. Atrás das ações subsidiárias eu tenho uma intenção, mas não tenho uma

intenção premeditada ou planejada. Ao discorrer sobre essa questão, Reason (1993)

exemplifica com a seguinte situação: quando você afirma que irá ao trabalho de carro,

não está conscientemente se referindo a cada ação envolvida nesse propósito, como o

fato de que vai abrir a porta do carro, sentar, por o cinto de segurança, checar posição

dos espelhos, colocar a chave no contato, dar partida no motor etc. Essas são as ações

ditas subsidiárias.

Na abordagem sistêmica do acidente de trabalho deve ser considerada a forma

na qual a preocupação com a prevenção de acidentes se faz presente na cultura

organizacional, como se manifesta nas pequenas e grandes decisões que são tomadas

durante o transcorrer de um turno de trabalho. Höpfl (1994) examina as implicações da

mudança na cultura organizacional para as formas nas quais as questões afetas à

segurança são percebidas, formuladas e atendidas.

Schein (1985) apud Höpfl (1994) define cultura como o conjunto de “assunções

básicas e crenças que são compartilhadas pelos membros de uma organização”.

Fornecendo outros elementos para a conceituação de cultura dentro da organização,

Schein (1985) apud Maximiano (1997) afirma que “cultura é a experiência que o grupo

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adquiriu à medida que resolveu seus problemas de adaptação externa e integração

interna, e que funciona suficientemente bem para ser considerada válida. Portanto, essa

experiência pode ser ensinada aos novos integrantes como forma correta de perceber,

pensar e sentir-se em relação a esses problemas.

Robbins (1990) apud Maximiano (1997) sugere alguns indicadores para que a

cultura organizacional possa ser identificada e analisada, que são os seguintes:

● Iniciativa individual. Nível de responsabilidade, liberdade e independência

das pessoas;

● Tolerância ao risco. Nível de encorajamento da agressividade, inovação e

riscos;

● Direção. Clareza em relação aos objetivos e expectativas de desempenho;

● Integração. Capacidade de as unidades trabalharem de maneira coordenada;

● Contatos gerenciais. Disposição dos gerentes para fornecer comunicações

claras, assistência e apoio aos subordinados;

● Controle. Volume de regras e regulamentos, e de supervisão direta que se

usa para supervisionar e controlar o comportamento dos empregados;

● Identidade. Grau de identificação das pessoas com a organização como um

todo, mais que com seu grupo imediato ou seus colegas de profissão;

● Sistema de recompensa. Associação entre recompensas e desempenho;

● Tolerância ao conflito. Grau de abertura para a manifestação de conflitos e

críticas;

● Padrões de comunicação. Grau de restrição das comunicações aos canais

hierárquicos.

Turner (1978) apud Höpfl (1994) afirma que os acidentes principais têm um

“período de incubação”, no qual ocorrem uma série de eventos não registrados ou

percebidos; isso contraria o pensamento estabelecido nas organizações de que o sistema

opera de uma maneira definida e os riscos existentes já foram caracterizados. Sathe

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(1983) apud Höpfl (1994) argumenta que “as pessoas sentir-se-ão compromissadas com

os objetivos da organização quando identificam em tais objetivos alguma ligação

emocional. As crenças e os valores compartilhados que compõem a cultura ajudam a

gerar essa ligação”.

No contexto onde se dá a realização do trabalho a figura humana é central. É

necessário considerar que o acidente de trabalho é problemática social, que não tem suas

principais raízes fincadas no chão da fábrica, de forma que mobiliza, na busca da

imprescindível transformação da realidade, diversas disciplinas das Ciências Humanas,

com destaque para as Ciências Sociais e a Psicologia. A primeira porque o trabalho é

atividade basal da organização da sociedade e a segunda porque o comportamento

humano está sempre entre as múltiplas causas imediatas do acidente do trabalho. Assim,

essas disciplinas, além das interfaces que apresentam, se ocupam de áreas do

conhecimento que esteve pouco presente na revisão bibliográfica feita nesta dissertação.

Àqueles que pretenderem aprofundar sua leitura nessas áreas, Almeida (2000) e (2002)

apresenta extensa e recomendada relação de bibliografia.

O texto completo está disponível no endereço: http://www.fundacentro.gov.br/biblioteca/biblioteca-digital/acervodigital/detalhe/2010/8/uma-leitura-da-arvore-de-causas-no-atendimento-da-demanda-do-poder-judiciario-um-fluxograma