A CAMINHO DO PENSAMENTO E DA POESIA-mestrado.pdf

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA EM PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO

    LARISSA SOUSA FERNANDES

    VERDADE EM OBRA:

    ARTE E POESIA NA FILOSOFIA DE MARTIN HEIDEGGER

    JOO PESSOA PB

    2011

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    LARISSA SOUSA FERNANDES

    VERDADE EM OBRA:

    ARTE E POESIA NA FILOSOFIA DE MARTIN HEIDEGGER

    Dissertao apresentada ao Programa de ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal da Paraba UFPB como requisito para obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro

    JOO PESSOA PB

    2011

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    F363v Fernandes, Larissa Sousa. Verdade em obra: arte e poesia na filosofia de

    Martin Heidegger / Larissa Sousa Fernandes.-- Joo Pessoa, 2011.

    93f. Orientador: Robson Costa Cordeiro Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA 1. Heidegger, Martin, 1889-1976 Crtica e

    interpretao. 2. Filosofia. 3. Arte - Poesia. 4. Poesia Filosofia. 5. Verdade.

    UFPB/BC CDU:

    1(043)

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    TERMO DE APROVAO

    LARISSA SOUSA FERNANDES

    VERDADE EM OBRA:

    ARTE E POESIA NA FILOSOFIA DE MARTIN HEIDEGGER

    Dissertao aprovada em 24 de outubro de 2011, como requisito para a obteno do

    grau de mestre em filosofia UFPB (Universidade Federal da Paraba), pela

    seguinte banca examinadora:

    __________________________________________________________

    Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro (UFPB) - Orientador

    ____________________________________________________________

    Profa. Dra. Ana Thereza de Miranda Cordeiro Drmaier (UFPB)

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Francisco Jos Dias de Moraes (UFRRJ)

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    memria de Joo Ferreira de Sousa

    e Luzia Andr Fernandes.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Robson, por me acompanhar neste trabalho como tambm por estar sempre disposio para auxiliar nas necessidades muitas das vezes burocrticas que se exigiram no decorrer do processo; Aos professores Ana Thereza Drmaier e Francisco Jos, pela disposio em contribuir, participando da banca de defesa; Aos professores Deyve Redyson, pela participao na qualificao como tambm pelas muitas contribuies para minha formao acadmica e Narbal de Marsillac, pelas relevantes intervenes na qualificao; Ao professor Srgio Persch, que foi extremamente prestativo quando necessitei recorrer a seu auxlio; A todos que fazem a coordenao do PPGFIL, em especial Francisco e Ftima, bem como ao coordenador, professor Anderson D'arc; Ao professor Reginaldo Oliveira, que me impulsionou no comeo desta caminhada e tem sempre me apoiado desde ento; Aos queridos Daniel e Marcela, muito obrigada, no s pela leitura atenta do meu texto, como tambm pela sincera amizade; Flora, por sua amizade e por ter contribudo com este trabalho, se prontificando na correo do abstract; Ao Tiago, pelo companheirismo, pacincia e suporte; Aos meus pais e demais familiares, sem os quais nada seria possvel; Deborah, Suelen e Gilianne, grandes amigas com quem sempre pude contar; Aos estimados Ana, Luciano, Jackson e Adalberto; Aos colegas que tive o prazer de conhecer no decorrer do mestrado, Herculano, Milena e Katja, que compartilharam e contriburam em diversos momentos deste processo; E por fim, sabendo da dificuldade em registrar aqui cada uma das pessoas que tiveram sua relevncia no feitio deste trabalho, agradeo imensamente a todos.

    Quero desejar, antes do fim a mim e aos meus amigos, muito amor e tudo mais Que vivam sempre jovens, que tenham as mos limpas e aprendam o delrio com coisas reais. (Belchior Antes do fim)

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    No me importo com as rimas. Raras vezes

    H duas rvores iguais, uma ao lado da outra.

    Penso e escrevo como as flores tm cor

    Mas com menos perfeio no meu modo de exprimir-me

    Porque me falta a simplicidade divina

    De ser todo s o meu exterior.

    Olho e comovo-me,

    Comovo-me como a gua corre quando o cho inclinado,

    E a minha poesia natural como o levantar-se o vento...

    (Fernando Pessoa)

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    RESUMO

    A presente dissertao busca compreender de que modo se articula o pensamento acerca da arte e da poesia na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), mediante a leitura das conferncias A origem da obra de arte e Hlderlin e a essncia da poesia. A analtica acerca da arte e da poesia em Heidegger se d de maneira totalmente desvinculada da apreciao esttica e da crtica literria, pois o filsofo se distancia de qualquer maneira de lidar com a arte enquanto objeto de apreciao subjetiva do ser humano. Na ontologia fundamental de Heidegger, a obra de arte vislumbrada em seu puro deixar-ser. deixando que a obra seja obra, que esta poder mostrar-se em sua essncia. A obra, mais que uma coisa no sentido de um mero objeto para apreciao, tratada aqui como lugar privilegiado do acontecimento da verdade. A obra de arte se configura como lugar do acontecimento da verdade, se caracterizando como o no-estar-encoberto do ente. Isto ocorre por que pela obra se apresenta um mundo em conflito com a terra. O mundo aparece como mundo histrico e a terra como o inumano em sua essncia. Estas so duas foras opostas que se confrontam num combate essencial na obra de arte no qual um eleva-se e mostra-se tal qual perante o outro. na contenda deste combate que a verdade aparece essencializando-se na obra de arte. A verdade como no-encobrimento do ente proporciona a este ltimo apresentar-se tal qual . Este modo de apresentar o ente o que os gregos chamavam Tchne, isto , uma pro-duo autntica onde o ser do ente se presenta. A arte tambm encontra-se no mbito da Tchne, e a poesia, enquanto composio desveladora do ente pela palavra , para Heidegger, o modo mais elevado da Tchne na medida em que projeta o ser-humano para o aberto no qual se encontra clareira e encobrimento. Pelo dito potico o ente nomeado pela primeira vez. Tal nomear um dizer desvelador, que s possvel de ser dito por aqueles que esto na ausculta ao ser, que, segundo Heidegger, so os poetas. Estes intermedeiam uma relao originria que h muito se perdeu, pois se colocam entre os que acenam para a verdade do ente, os deuses, e aos que, por serem constitudos de linguagem, tais acenos podem ser acessveis, os homens. Os poetas so os guardies destes acenos e possuem por misso anunci-los a um povo histrico, fundando o habitar potico entre os homens. Palavras-chave: Heidegger, arte, poesia, verdade, obra de arte.

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    ABSTRACT

    This essay aims to understand how the thoughts about art and poetry are articulated in Martin Heidegger's (1889 1976) philosophy, by reading the lectures The origin of the work of art and Hlderlin and the essence of poetry. In Heideggers work, art and poetry are analized totally separated from aesthetics appreciation and the literary critics, because the philosopher takes distance of dealing with art as a human Being's object of subjective appreciation. In Heidegger's fundamental ontology the work of art is seen in its own being. Allowing the work of arts Being a work of art, that it'll appear in its essence. The work of art, more than a subject of consideration, is seen here as a favored place where truth happens. The work of art is the place where truth happens, characterizing itself by not being covered. That happens because in the work of art a conflict between World and Earth. presents itself The world appears as an historical world, and the earth as the inhuman. in essence These are two opposing forces facing each other in a essential conflict in the work of art where one rises and shows up itself in the presence of the other. The truth appears in the strife of this conflict, essentially in the work of art. The truth as the uncovered being allows the being to show itself as it is. This way of unveiling the being is what the greeks called Tchne, an authentic production where the Being presents itself. Art is also found in the Tchne sphere, and the poetry, as the beings unveiled composition by the word, is, to Heidegger, a higher way of Tchne because it projects the human Being to the opening where is inlightment and concealment. By the poetic saying the being is named for the first time. Such naming is an unveiled say, which is only possible to be said by that ones hearing the Being, which are, according to Heidegger, the poets. They mediate an original relationship that long ago was lost, because they put themselves between the ones who waves the being's truth, the gods, and the ones to whom, for having a constituted language, these waves are accessible, the men. The poets are the guardians of these waves and have the mission of announcing them to an historical people, founding the poetic dwelling between men. Key-words: Heidegger; art; poetry; truth; work of art.

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    SUMRIO

    Introduo...............................................................................................................10

    1. O questionar originrio: Que (obra de) arte?................................................16

    1.1. Fenomenologia, Hermenutica, Viravolta: As vias de acesso para a

    compreenso heideggeriana da obra de arte...........................................................16

    1.2. A pergunta pela obra de arte enquanto coisa....................................................22

    1.3. O ser-utenslio e o apontamento para o pr-se-em-obra da verdade................31

    2. A obra de arte e o apelo calado da verdade.....................................................39

    2.1. O combate entre mudo e terra e o apontamento para Pr-se-em-obra da

    verdade.....................................................................................................................39

    2.2. Pr-se-em-obra como Aletheia..........................................................................46

    2.3. O resguardar da obra de arte.............................................................................52

    3. A poesia de Hlderlin e o poetar originrio.......................................................62

    3.1. Hlderlin, o poeta dos poetas...........................................................................62

    3.2. A linguagem como dilogo essencial..................................................................68

    3.3. O dito potico como nomear inaugural...............................................................76

    Concluso.................................................................................................................84

    Referncias...............................................................................................................88

    Anexos......................................................................................................................91

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    INTRODUO

    A presente dissertao tem por objetivo principal entender como se d o

    pensamento acerca da arte, e como tal pensamento acarreta na compreenso da

    essncia da poesia na filosofia de Martin Heidegger (1889 1976). Para tanto, toma-

    se como referncia os escritos A origem da obra de arte (Der Ursprund des

    Kunstwerkes), resultado de trs conferncias proferidas entre os anos de 1935 e

    1936, e Hlderlin e a essncia da poesia (Hlderlin und das wesen der Dichtung),

    conferncia proferida em 1936 e publicada em 1944, que, como reitera Nunes (1992,

    p.255), so textos que se complementam.

    A associao de tais obras no aleatria, tendo em vista sua

    complementaridade no sentido de que, enquanto a primeira tratar da questo

    acerca da obra de arte enquanto pr-se-em-obra da verdade, culminando nesta

    enquanto poesia no seu modo mais essencial, o segundo texto aprofunda o

    pensamento acerca da poesia, levando-a a um sentido mais radical, pois discute o

    criar prprio da poesia como o que funda essencialmente o habitar humano na

    terra.

    A analtica que circunda a questo acerca da obra de arte e da poesia em

    Heidegger, encontra-se no mbito da sua ontologia fundamental, portanto, refere-se

    questo acerca do sentido do ser. Sendo assim, relacionar tal reflexo

    apreciao esttica um equvoco, visto que o que posto em obra na obra de arte

    se d de modo originrio, num mostrar-se espontneo onde se patenteia a prpria

    essncia da verdade.

    Da mesma forma, compreender a poesia a partir da crtica literria , para o

    filsofo, dissec-la como a um objeto qualquer, sem, no entanto, deix-la aparecer

    em si. Deixar que a arte e a poesia se mostrem em seu modo mais originrio,

    entrar no mbito fundamental da compreenso que deixa que o ente seja tal qual ,

    sem interferncias subjetivas que atribua significados que, ao invs de apresentar o

    ente verdadeiramente, sufoca-o com tantas atribuies que acaba por deix-lo cada

    vez mais encoberto numa nvoa de conceitos postos arbitrariamente.

  • 11

    Tal modo de compreenso se d no decorrer de todo pensamento deste

    filsofo, desde a analtica existencial de Ser e Tempo (Sein und Zeit - 1927) at a

    viravolta (Kehre) do seu pensamento, momento caracterizado por um desvio no

    caminho que vinha sendo percorrido nesta obra, tendo em vista que esta

    direcionava-se mais para a analtica existencial que para uma ontologia fundamental.

    Isso significa que a necessidade da virada no pensamento se d no momento

    em que a busca pelo sentido do ser como tal, objetivo do pensamento heideggeriano

    desde sua gnese, confronta-se com um caminho que conduzia para compreenso

    dos modos de constituio do Dasein. No entanto, vale salientar que esta viravolta

    no deve ser compreendida como rompimento ou destruio de tudo que havia sido

    dito antes para se instaurar uma nova filosofia. Na realidade o que acontece um

    redirecionamento das questes postas em Ser e Tempo, no intuito de aprofund-las,

    no neg-las.

    Os textos centrais aqui apreciados fazem parte desta viravolta, que alguns

    denominam como Segundo Heidegger. Por este motivo, refazer o caminho de

    Heidegger requer primeiramente uma compreenso destes aspectos metodolgicos,

    que sero discutidos preliminarmente no primeiro captulo, onde se articular a

    fenomenologia, a hermenutica e a viravolta (Kehre) como base de sustentao do

    pensamento, no intuito de entender como Heidegger coloca as questes a serem

    discutidas.

    Aps tais esclarecimentos, toma-se como ponto de partida da fundamentao,

    a conferncia A origem da obra de arte, no intuito de percorrer todo o caminho

    proposto pelo filsofo, que, como afirma, muitas vezes acarreta no no-trilhado,

    numa experincia fundadora de pensamento. Neste texto, como o prprio ttulo j

    indica, Heidegger inicia perguntando pela origem da obra de arte, que nesse caso,

    uma pergunta pela origem essencial da obra de arte, pelo modo mais originrio de

    se dar arte.

    Onde e como essencialmente se d arte? Qual seu comeo? O que uma

    obra de arte? Estas so algumas das primeiras questes a serem discutidas nos

    momentos iniciais do texto, as quais Heidegger no oferece uma resposta imediata,

    mas, aprofundando o enigma que a arte, parte das primcias que o envolvem.

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    Desse modo, a obra de arte surge como resultado de um trabalho artstico,

    que implica em dizer que da obra participam mais dois elementos: o artista, aquele

    que produz a obra, e a arte, elemento que circunda a obra e o artista.

    Estas questes referem-se pergunta de onde e como se d arte, no intuito

    de entender como esta comea, ou seja, se pelo trabalho do artista que se d obra,

    ou se pela obra o artista enquanto tal, ambas envoltas num crculo hermenutico

    que possui como particularidade ser um crculo produtivo, no hierarquizado, onde

    todos os elementos que deste participam se elevam e se mostram em sua co-

    pertinncia.

    Passando por estas questes, mas, no entanto, sem as deixar de lado, o

    filsofo parte para a pergunta pelo que uma obra. Tal pergunta acarreta no sentido

    da obra de arte enquanto coisa, tendo em vista que esta parece estar disposta

    enquanto tal. Nesta perspectiva, a pergunta pela obra se direciona para a pergunta

    pela coisa, j que, se a obra uma coisa, cabe primeiro saber o que uma coisa e

    depois que coisa a obra de arte. Assim, discute-se primeiramente as concepes

    de coisa postas pela tradio, culminando em trs concepes: A coisa como sujeito

    de suas propriedades; a coisa como unidade do que dado pelos sentidos e a coisa

    como ajuste conceitual matria () e forma ()), sendo esta terceira a que

    mais se aproxima da noo de obra enquanto coisa, tendo em vista que esta

    acarreta na essncia do utenslio, como aquilo que fabricado tendo em vista uma

    finalidade.

    No entanto, a arte tem seu fim em si mesma, no podendo ser assim

    compreendida, o que leva o filsofo a vislumbrar a essncia do utenslio a partir de

    uma obra de arte, mais precisamente um quadro de Van Gogh, onde apresentado

    um utenslio de calado, um par de sapatos de campons. Pelo utenslio expresso

    no quadro, possvel visualizar o mostrar-se deste como o que patenteia um mundo

    campons, diferentemente do que acontece se o mesmo apetrecho de calado for

    observado numa vitrine ou imerso no cotidiano da camponesa. Pela pintura de Van

    Gogh, o utenslio mostra-se, essencializando-se na obra de arte.

    Heidegger conduz a uma compreenso que deixa-ser a obra, sem o intuito de

    analis-la, mas permitir que esta se mostre espontaneamente, culminando no

  • 13

    mostrar-se como por-se-em-obra da verdade na obra de arte, tendo em vista que,

    aps discutidas as questes que circundam este carter de coisa da obra de arte,

    esta se mostrou como o que mostra originariamente o ente.

    Desse modo, o que se toma como referncia para a discusso seguinte a

    questo acerca da essncia da verdade, um dos temas indispensveis para a

    compreenso do pensamento heideggeriano. Isto se d a partir do 44 de Ser e

    Tempo e da conferncia Sobre a essncia da verdade, ambas discutidas luz de A

    origem da obra de arte, pois para adentrar na obra de arte enquanto pr-se-em-obra

    da verdade, fundamental esclarecer como se d o pensamento acerca da essncia

    da verdade.

    A obra de arte pe em obra a verdade como acontecimento, dialogando com

    a obra mesma. Neste momento do texto, Heidegger aponta para uma obra

    arquitetnica, um templo grego (provavelmente o templo de Paestum) onde ali o

    filsofo faz ver um mundo histrico num combate essencial com a terra inumana. Tal

    combate no observado no sentido negativo, onde um objetiva a destruio do

    outro. No combate essencial, ao contrrio, um eleva-se sobre o outro, fazendo com

    que cada qual se sobressaia tal qual .

    O ser-obra est imerso neste combate na medida que a prpria essncia da

    verdade, retirando-se desta todos os equvocos aos quais se lhe impuseram pela

    tradio, tambm aparece como combate essencial, participando desta a clareira e o

    encobrimento, ambas relevantes para que a verdade essencialize-se.

    Aparecendo todos estes elementos, retoma-se a questo que circunda o

    carter de coisa da obra, o fazer artstico, de onde retirar-se h o seu ser-criada.

    Nesse sentido, o ser-obra como pr-se-em-obra da verdade, passa a ser apreendido

    a partir do modo mais essencial do criar, que os gregos nomearam por , que

    no indica apenas um ofcio artesanal ou manufatureiro, mas tambm o fazer

    enquanto saber artstico. A obra, na perspectiva da produo, no sentido de

    um produzir instaurador que promove o desvelamento.

    Como algo de produzido, a obra necessita ser resguardada, no sentido que

    aparece como produo inaugural de um mundo histrico, humano. Resguardar

  • 14

    querer estar no mbito do desvelamento, deixar que a obra seja obra e, assim,

    fazer com que se estabelea sua permanncia no mundo. Ao ser-obra como o que

    torna patente o acontecimento da verdade, como instar historial do ser humano na

    terra, Heidegger designa como poesia.

    Em A origem da obra de arte, a arte se condensa na noo de poesia, que

    vem a ser aqui elucidada, entre outros textos, ensaios e conferncias, sobretudo em

    Hlderlin e a essncia da poesia. No entanto, preliminarmente ao adentrar na

    discusso acerca da poesia, uma pergunta vale ser esclarecida: Por que Hlderlin?

    Tal questo objetiva compreender o encontro entre Heidegger e Hlderlin, como e

    porqu o filsofo busca apreender a essncia de toda poesia a partir da obra deste

    poeta.

    Tanto na conferncia citada como em Hinos de Hlderlin (Hlderlins Hymnen

    1934/35), Heidegger faz meno a este poeta como o poeta do poeta (2009,

    p.38; 2004, p.37). O encontro com a obra de Hlderlin, para Heidegger o descerrar

    de um caminho para o pensamento arraigado no sentido do ser, onde o pensamento

    no mais exclusivo da filosofia, mas sobretudo essencialmente potico.

    Assim, reafirma-se o que filsofos a exemplo de Vico (1668 - 1744) e Sneca

    (4 a.C 65 d.C) manifestaram acerca dos poetas como geradores de pensamento.

    Este ltimo em uma de suas cartas a Luclio Das artes liberais (Liberalium artium) -

    contempla em Homero um pensador, apesar de ainda se arraigar a idia do

    pensador como filsofo, no entanto, Homero no produz pensamento a partir do

    conceito, mas, assevera Sneca, Homero , antes de ser poeta, um sbio pois seus

    escritos se dirigem para a virtude. Por sua vez, Vico fala da poesia como primeira

    linguagem de um povo histrico, de onde se expressa pensamento.

    Hlderlin est no nvel dos grandes poetas, afirma Heidegger, pois sua poesia

    instaurao da verdade, nomear inaugural pela palavra potica. Tal modo de

    apreender poesia o pensar potico que intenciona recuperar aquilo que se perdeu

    no advento da tcnica moderna, a linguagem essencial, que nomeia o ente mediante

    a escuta que se volta para o apelo do ser.

  • 15

    A essncia da linguagem, nesta perspectiva, aparece a partir da prpria

    essncia da poesia. A linguagem, como afirma Heidegger na Carta sobre o

    humanismo (Ueber den Humanismus - 1946) a casa do ser (1979, p.149), o

    que confere ao ser humano, ser humano enquanto tal, existir. O homem s homem

    por que dotado de linguagem. pela linguagem que este funda seu habitar

    histrico na terra. O advento da linguagem e a fundao histrica so unas,

    indissociveis, pois se fundam e se estabelecem ao mesmo tempo.

    Nesta perspectiva, o que possibilita, dentro da histria, o instituir-se da

    linguagem essencial, o que inaugurado pelos poetas. O habitar do homem

    potico por que se deu, em primeiro lugar, enquanto poesia. Sendo assim, os poetas

    ocupam um lugar privilegiado na histria do pensamento, se colocando na posio

    de escuta ao ser, nomeando-o originariamente.

    Escutar o chamado do ser travar um dilogo essencial que, induzido por

    esta escuta, permite o nomear. O que se nomeia nesta perspectiva o vigorado

    pelos deuses. Na escuta essencial, estes que falam. Assim, o poeta intermedeia a

    relao entre deuses e homens, onde estes primeiros acenam para o anncio do

    desvelamento originrio, para o anncio do ser. Desse modo, os poetas, nesta

    posio mediadora, so os profetas que anunciam a verdade da palavra pelo dito

    potico.

    Compreender o pensamento acerca da arte e da poesia em Heidegger partir

    da relao entre arte, verdade e poesia, tendo em vista sua ontologia fundamental

    que inaugura-se com a pergunta pelo ser-obra, investigando a origem essencial da

    obra de arte, acarretando no pensamento inaugural da poesia, que se funda na livre

    instaurao da verdade do ser.

  • 16

    I

    O QUESTIONAR ORIGINRIO: QUE (OBRA DE) ARTE?

    1.1. Fenomenologia, Hermenutica, Viravolta: As vias de acesso para a compreenso heideggeriana da obra de arte.1

    Na sua analtica acerca da obra de arte, Heidegger pretende uma

    (des)construo fenomenolgica de todos os conceitos que ali aparecem. Isto , o

    filsofo pretende chegar ao modo mais originrio destes, no sentido de ir s coisas

    mesmas; proposta deste mtodo desde sua gnese.

    O pensamento fenomenolgico de Heidegger herana de seu mestre

    Husserl (1859-1938), a partir das Investigaes Lgicas (Logische Untersuchungen -

    1900) que pretendia atribuir um carter de cincia rigorosa filosofia. Num primeiro

    momento, esta era sua influncia. No entanto, Heidegger pretende adequar tal

    mtodo inteno de sua filosofia, como afirma na conferncia Meu caminho para a

    fenomenologia (Mein Weg in die Phanomenologie 1963):

    a atividade docente de Husserl consistia no progressivo exerccio e na aprendizagem do ver fenomenolgico; ele exigia tanto a renncia a todo uso no crtico de conhecimentos filosficos como impunha no trazer-se, para o dilogo, a autoridade dos grandes pensadores. (HEIDEGGER, 1979, p.299)

    Heidegger atribui um novo rosto fenomenologia, tendo em vista a crtica

    tradio metafsica, que parte de uma releitura do mtodo cartesiano, enfatizando a

    relao sujeito-objeto. A partir dessa crtica, o filsofo registra em Ser e Tempo uma

    fenomenologia que se distancia daquela noo de um mtodo a se aplicar ao

    pensamento, confundindo-se entre tantos outros caminhos empregados para a

    1 As citaes de alguns textos so tradues prprias feitas a partir dos textos de Heidegger

    traduzidos para o espanhol bem como de comentadores. Para uma melhor compreenso destas, faz-se necessria a reproduo das passagens citadas tal como esto no original.

  • 17

    compreenso da filosofia. Diferente disto, o filsofo expe o mtodo fenomenolgico

    como o mtodo que deve corresponder ao apelo do que deve ser pensado, isto ,

    como tarefa do pensamento:

    [...] a Fenomenologia no nenhum movimento, naquilo que lhe mais prprio. Ela a possibilidade do pensamento que periodicamente se transforma e somente assim permanece de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a fenomenologia for assim compreendida e guardada, ento pode desaparecer como expresso, para dar lugar questo do pensamento, cuja manifestao permanece um mistrio (Ibidem, p.301)

    A questo do pensamento a qual Heidegger se prope a questo do

    ser. A fenomenologia, para ele, a nica que d acesso ao sentido do ser, pois

    propicia a destruio da ontologia imposta pela tradio: A explicitao do sentido

    do ser ser o papel da ontologia em seu significado lato. Essa explicitao no pode

    tomar como instrumento, nenhum mtodo tradicional, pois a tradio, justamente,

    permitiu o velamento, a dissimulao e a distoro do sentido do ente (STEIN,

    2001, p.170).

    No 7 de Ser e Tempo, Heidegger aborda o mtodo fenomenolgico

    tomando a fenomenologia como cincia dos fenmenos, etimologicamente

    constituda por fenmeno () e logos (). Sendo assim, esses dois

    termos so considerados separadamente num primeiro momento, para que

    posteriormente seja possvel uma apreenso da fenomenologia em seu aspecto

    fundamental.

    A palavra fenmeno, do grego , significa aquilo que se

    mostra em si mesmo (HEIDEGGER, 1995, p.58), como o que est luz, o que

    aparece, originariamente compreendido pelos gregos como ente. O ente, enquanto

    representao de uma totalidade, traz em seu seio um manifestar-se prprio, que se

    configura como um no mostrar-se em si mesmo, pois um anunciar no modo da

    simples aparncia. Por outro lado, essa manifestao tambm pode se dar como um

    anunciar daquilo que se vela, que no se mostra.

    Nesta perspectiva, o fenmeno diz respeito aquilo que se mostra enquanto

    manifestao e que anuncia o que se vela neste mesmo manifestar-se: o que assim

    se mostra (fenmeno, portanto em sentido originrio e autntico) , ao mesmo

  • 18

    tempo, manifestao que anuncia algo que se vela nas manifestaes (Ibidem,

    p.60). O fenmeno a manifestao do ente em seu mostrar-se em si mesmo, no

    indicando mais uma simples aparncia, como o concebe a tradio. Neste mostrar-

    se em si mesmo, o prprio ser do ente manifesta-se.

    Ao observar mais claramente o conceito de fenmeno, o autor parte para a

    anlise do termo logos (), que tambm participa da fenomenologia enquanto

    mtodo de acesso aos fenmenos. A tradio literal de logos discurso, que por

    sua vez, interpretado na tradio filosfica como razo, juzo, conceito, definio,

    fundamento, relao, proporo (Ibidem, p.62). A tradio, com tais interpretaes,

    dissimulou a noo fundamental do logos, que essencialmente significa deixar e

    fazer ver aquilo sobre o que se discorre. Neste discorrer, o uso da palavra se d de

    modo essencial: em seu exerccio correto, o discurso (deixar ver) tem o carter de

    fala, de articulao em palavras. O e, na verdade,

    articulao verbal em que algo visualizado (Ibidem, p.63).

    Assim, o logos deixa e faz ver. Por consentir a visibilidade do ente, o logos

    pode enunciar de modo verdadeiro ou dissimulado. Enquanto verdadeiro, o logos

    desencobrimento, desvelamento, pois retira o vu daquilo que se encobre no

    discurso e, ao mesmo tempo dissimulao, encobrimento, pois o discurso pode

    expor o ente como aquilo que ele no .

    Na unio entre fenmeno e logos, a fenomenologia aparece como deixar e

    fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra, a partir de si

    mesmo (ibidem, p.65). Desse modo, a noo de fenomenologia enquanto ir s

    coisas mesmas refere-se ao como, no sentido do tratamento dado aos fenmenos

    em seu seio. Este como se d a partir da apresentao do ente retirado do

    velamento pelo logos.

    Entretanto, aquilo que se vela, no o ente propriamente dito, mas o ser do

    ente, sua essncia. exatamente nesta perspectiva que Heidegger expe a

    fenomenologia como via de acesso para a ontologia, visto que ao promover o

    aparecimento do ente enquanto tal, est, consequentemente, promovendo a

    apreenso do ente em seu ser: Fenomenologia no a cincia de tal e tal coisa,

  • 19

    mas o mtodo de acesso a tal e tal coisa. (STEIN, 2001, p.169).

    O fenmeno no o ser desvelado efetivamente, mas aquilo em que o ser

    pode ainda no ter sido desvelado, ou ainda, apresentado em sua essncia, e,

    encoberto novamente (pela tradio), se mostra no modo da aparncia. A ontologia

    fundamental s possvel mediante o mtodo fenomenolgico, visto que o ser

    constitutivo do fenmeno. Em seu contedo, a fenomenologia a cincia do ser dos

    entes ontologia (HEIDEGGER, 1995, p.68).

    Ao apresentar a fenomenologia deste modo, Heidegger claramente a associa

    quilo que os primeiros filsofos denominaram Alethia, isto , a verdade

    compreendida como o desvelar do ente em seu mostrar-se mais originrio:

    [...] o que para a fenomenologia dos atos conscientes se realiza como o automostrar-se dos fenmenos pensado mais originariamente por Aristteles e por todo o pensamento e existncia dos gregos como Alethia, como o desvelamento do que se pre-senta, seu desocultamento e seu mostrar-se. Aquilo que as Investigaes redescobriram como a atitude bsica do pensamento revela-se como o trao fundamental do pensamento grego, quando no da filosofia como tal (HEIDEGGER, 1979, p.300).

    A analtica desenvolvida em Ser e Tempo, voltada para a analtica existencial,

    objetivava a constituio ontolgica do ser humano, o Dasein , visto que, por este

    ser dotado de linguagem, o nico capaz de compreender o ser na totalidade,

    possuindo no logos a capacidade interpretativa, que em sua origem, hermenutica.

    Fenomenologicamente, a hermenutica visa a interpretao, que por sua vez

    o prprio realizar-se da compreenso: interpretar no tomar conhecimento do

    que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na

    compreenso(HEIDEGGER, 1995, p.204). O Dasein a abertura para a

    compreenso do carter do ser dos entes no-dotados de sua constituio

    ontolgica, isto , os entes simplesmente dados, e, por conseguinte, a compreenso

    do seu prprio ser analtica da existencialidade da existncia (Ibidem, p.69).

    Estes modos de apreenso filosfica dizem respeito no a meros modos

    interpretativos a serem atribudos filosofia, mas se apresentam, para o autor de

    Ser e Tempo, como o filosofar prprio. A filosofia uma ontologia fenomenolgica e

    universal que parte da hermenutica da pre-sena, a qual, enquanto analtica da

  • 20

    existncia, amarra o fio de todo o questionamento filosfico no lugar onde ele brota e

    para onde ele retorna (Ibidem, p.69).

    Assim, o problema central da filosofia heideggeriana, o ser, tratado

    originariamente pelos gregos e dissimulado pela tradio desde os medievais at a

    modernidade, acarretando no modo como habitualmente se compreendem os

    conceitos. No entanto, afirma Heidegger: aquilo que nos aparece como [sendo]

    natural provavelmente apenas o habitual de um hbito de h muito, que esqueceu

    o inabit(u)ado de onde surgiu. Porm, este inabit(u)ado abateu-se sobre o homem e

    levou o pensar ao espanto (1998, p.17).

    A funo do mtodo fenomenolgico-hermenutico se mostra no momento em

    que, a partir da desconstruo dos conceitos pr-estabelecidos pela tradio, deixa

    com que o fenmeno aparea em seu modo mais essencial, em seu ser. A

    destruio volta-se contra o encobrimento e empreende a liberao daquilo que

    estava encoberto (GADAMER, 2007, p.99).

    Todo este percurso do pensamento heideggeriano no se apresentaria de

    modo diferente na analtica acerca da obra de arte. Contudo, h uma reconduo da

    questo do sentido do ser, que inicialmente direcionada a partir da temporalidade

    finita do Dasein como ser-no-mundo. A hermenutica da existncia cede lugar

    hermenutica da temporalidade do ser inserido na histria. Nesta perspectiva, o

    sentido do ser d lugar verdade do ser, que agora est focado mais na abertura

    prpria do ser determinado historicamente que na abertura do Dasein enquanto ser-

    no-mundo.

    Este momento decisivo no pensamento de Heidegger, denominado Viravolta

    [Kehre], se d a partir do impasse que o filsofo encontra frente a uma continuidade

    de Ser e Tempo, visto que essa obra encaminhou-se para a analtica existencial,

    mas que de forma alguma muda o objetivo principal de sua filosofia, que a

    pergunta pelo ser, sua ontologia fundamental. E, apesar de uma viravolta no ter

    sido prevista em Ser e Tempo, o modo como Ser e Tempo realizou a analtica

    existencial est acertado e se tornou um caminho possvel e necessrio, porque

    permitiu a viravolta na qual o filsofo pensa o sentido do ser (STEIN, 2001, p.304).

  • 21

    Nesta perspectiva, Heidegger no pretende um esquecimento do que foi

    discutido em Ser e Tempo, mas um aprofundamento das questes ali abordadas,

    visando uma compreenso mais essencial. A fenomenologia e a hermenutica, que

    antes eram desveladores das estruturas do Dasein, agora participam da prpria

    estrutura do ser, trazendo o homem como seu portador:

    A fenomenologia hermenutica que em sua dimenso apofntica desvelava as estruturas do ser-a, torna-se na viravolta a relao hermenutica que liga ser e homem, transformando o homem que traz a mensagem (o sentido) do ser que lhe foi transmitido pelo prprio ser. O homem o hermeneuta que escuta a mensagem do ser, que a leva como mensageiro [...] A fenomenologia o prprio pensamento do ser, que este instaura no homem. Podemos, desse modo, apreciar o movimento da viravolta no prprio mtodo de Heidegger (STEIN, 2001, p.306).

    A relao do homem com o ser se modifica a partir do modo como este se d

    historicamente, isto , a partir do seu acontecer histrico: O ser nunca outra coisa

    seno o seu modo de se dar histrico aos homens de uma determinada poca, os

    quais esto determinados por este seu dar-se na sua prpria essncia entendida

    como o projecto que os constitui (VATTIMO, 1989, p.109). A relao entre homem e

    ser decisiva quando se trata de compreender o sentido do ser, visto que as

    aberturas histricas nas quais o ser aparece, so definidas a partir da relao entre

    o Dasein e os entes que se lhe apresentaram num determinado momento histrico.

    Na perspectiva da obra de arte, esta ltima passa a se configurar como a

    prpria abertura em que o ente se apresenta: Heidegger encontra o ponto de

    referncia para descobrir uma actividade do homem que no s ntica (interior ao

    mundo do ente), mas tambm ontolgica (determinante, isto , a prpria abertura em

    que se apresenta o ente) na obra de arte (Ibidem, p.113).

    A obra de arte, ao se situar historicamente, constitui-se como o que permite o

    aparecimento do ser, possibilitando, a partir da compreenso da essncia da poesia,

    o acontecimento da verdade. A questo da arte histrica. Mas no se trata de

    histria da arte. Ao contrrio, trata-se da potncia histrica da prpria arte e, em

    primeiro lugar, da poesia, no sentido de que a arte funda a histria, abre um mundo,

    e, assim, realiza um acontecer da prpria verdade (DUBOIS, 2004, p.166).

  • 22

    A analtica heideggeriana acerca da obra de arte no se refere pura e

    estritamente a uma esttica ou filosofia da arte. Contrria a isso, a proposta de

    Heidegger aparece como uma tentativa de visualizar o fenmeno que a arte, onde

    o que se objetiva em toda apreciao que envolve este fenmeno a pergunta pelo

    ser-obra, assim como afirma no aditamento de A Origem da Obra de Arte:

    Todo o ensaio A origem da obra de arte se move conscientemente, porm, de forma inexpressa, no caminho da pergunta pelo estar-a-ser-do-ser. A meditao sobre o que a arte est determinada apenas, no seu todo e de forma decisiva, pela pergunta sobre o ser. A arte no tida nem como campo de realizao da cultura, nem como apario do esprito, pertence ao acontecimento de apropriao [Ereignis] unicamente a partir do qual se determina o sentido do ser (HEIDEGGER, 1998, p.92).is

    Compreender a arte simplesmente no mbito esttico, para Heidegger,

    vislumbr-la apenas a partir de uma mera relao desta com o Dasein, a partir da

    experincia esttica, tratando-a como um ente simplesmente dado, esquecendo

    daquilo que em seu pensamento primordial, isto , de sua essncia, seu ser. Por

    mais que seus trabalhos estticos tenham certa autonomia e o prprio autor aluda

    muito escassamente sua obra anterior, claro que esta possui em suas ideias

    centrais o que foi proposto em Ser e Tempo2 (RAMOS, 2005, p.8).

    Deste modo, o que exposto em Ser e Tempo como uma ontologia

    fundamental (onde a questo central o Dasein, seus modos de ser e sua relao

    enquanto ser-no-mundo, com os entes simplesmente dados que lhe vem ao

    encontro), na Origem da obra de arte uma ontologia no seu mais estrito sentido3

    (Ibidem, p.8), na qual [...] Heidegger dir que a verdade no do Dasein, mas do

    prprio ser [...] (NUNES, 2007, p.84).

    1.2. A pergunta pela obra de arte enquanto coisa

    2 Por ms que sus trabajos estticos tengan cierta autonoma y el propio autor aluda muy

    escasamente a su obra anterior, es claro que aqullos tienen em sus ideas centrales el supuesto de El ser y el tiempo.

    3 una ontologa del arte en su ms estricto sentido.

  • 23

    No ensaio A Origem da Obra de Arte, Heidegger prope uma ontologia da

    obra de arte, isto , uma compreenso do ser-obra, onde por origem, o filsofo

    compreende a provenincia da essncia da obra de arte. Assim entendida, a busca

    pela origem no uma mera analtica da fase inicial da histria da arte ou do modo

    como surge uma obra especfica num determinado momento.

    Tal proposta visa o originrio, a compreenso da obra enquanto tal, como esta

    verdadeiramente . Origem diz respeito verdade originria, ao vnculo da obra

    com a primeira compreenso do ser (Ibidem, p.91). A pergunta pela obra de arte o

    questionar originrio proposto por Heidegger desde Ser e Tempo4: ...todo

    questionamento uma procura. Toda procura retira do procurado sua direo prvia.

    Questionar procurar cientemente o ente naquilo que ele (1995, p.30).

    vlido afirmar que a obra de arte inicia-se a partir do trabalho do artista. No

    entanto, para que seja artista, indiscutvel a sua produo artstica, suas obras. S

    artista aquele que possui sua obra, que por sua vez, s obra a partir do trabalho

    do artista. Obra e artista pertencem a um terceiro elemento, a arte. ela que

    determina a obra e o artista, e vice-versa, visto que a arte s a parir das obras. A

    co-pertinncia artista-obra-arte movimenta-se em crculo, onde obra de arte, artista e

    arte so um a origem do outro. A pergunta pela origem circular.

    O artista a origem da obra. A obra a origem do artista. Nenhum sem o outro. No obstante, nenhum dos dois porta, por si s, o outro. Em cada caso, o artista e a obra so, em si [mesmos] e na sua relao recproca, mediante um terceiro [termo], que o primeiro, sendo por ele [e] a partir dele que o artista e a obra de arte adquirem o seu nome mediante a arte. (HEIDEGGER, 1998, p.8)

    O movimento circular, contudo, no deve ser visto como algo improdutivo,

    repetitivo. O crculo, longe de ser um crculo vicioso, pretende o afastamento da

    causalidade to arraigada ao pensamento:

    [...] toda a gente nota facilmente que andamos s voltas. O entendimento comum exige que se evite esse crculo, porque ele uma infrao contra a lgica. [...] preciso que percorramos inteiramente este curso circular. No se trata nem de um recurso a que nos vejamos obrigados, nem de um defeito [...] No somente o passo principal da obra para a arte que, como

    4 Vale salientar que, em Ser e Tempo, o filsofo no problematiza a questo acerca da obra de arte,

    nem da arte como um todo. Em A origem da obra de arte Heidegger, diferentemente de Ser e Tempo, a pergunta pelo ser se d a partir da arte e no mais a partir da analtica do Dasein.

  • 24

    passo da arte para a obra, um crculo; s voltas neste crculo anda, antes, cada um dos passos singulares que tentamos dar. (Ibidem, p.9-10)

    O crculo produtivo que Heidegger prope para a compreenso da obra de

    arte interliga os conceitos de modo que a arte no aparea sem estes dois

    elementos constitutivos (obra e artista), e, por conseguinte, estes dois no existam

    sem a arte. O ponto de partida tomado para percorrer este curso circular de

    investigao, ser exatamente partir de onde a arte se d concretamente, isto , a

    partir das obras, o que significa que a pergunta pela arte a pergunta pela essncia

    da obra de arte. Ao analisarmos a obra de arte j pressupomos a sua essncia, que

    a arte, determinvel atravs das obras (NUNES, 2007, p.93).

    A obra de arte a arte materializada mediante o trabalho do artista. Deste

    modo, Heidegger toma como ponto de partida a obra de arte em sua realidade

    efetiva, apresentando assim claramente a primeira questo: O que uma obra de

    arte? Tal questionamento tem como proposta vislumbrar a obra de arte mediante

    seu prprio estar-a, deixando que se mostre tal qual , ou seja, permitindo que o

    ser-obra aparea, sem qualquer interveno.

    No encontro com as obras de arte que esto a dispostas, conclui-se que

    estas esto perante de modo to natural como qualquer outra coisa (HEIDEGGER,

    1998, p.10). Sendo assim, a resposta pergunta O que uma obra de arte? a de

    que a arte seria uma coisa dentre tantas outras, presentes no cotidiano: o que quer

    que se diga de uma obra de arte, ela parece em princpio uma coisa, coisa entre

    outras. Os quartetos de Beethoven so depositados no poro como os sacos de

    batatas, e o quadro pendurado na parede como um fuzil de caa, diz em resumo

    Heidegger (DUBOIS, 2004, p.168).

    Enquanto ente, a obra de arte possui esse carter coisal. Para o filsofo, este

    consiste na apreciao da obra como algo de outro, o que os gregos nomeavam

    , traduzido por alegoria, que d a conhecer publicamente um outro,

    revela algo de outro (HEIDEGGER, 1998, p.11), onde o que aparece no apenas

    o carter de coisa, mas tambm este outro.

    Somado a isto, a obra de arte tambm smbolo, enquanto algo produzido,

    confeccionado para representao de algo. Smbolo era nomeado , o pr

  • 25

    em conjunto com o que foi produzido algo de outro (alegoria). Alegoria e smbolo,

    portanto, caracterizam a obra de arte como objeto produzido que manifesta algo de

    outro.

    O que se faz necessrio compreender o carter de coisa da obra, para

    posteriormente saber se esta possui algo de outro que no apenas o carter de

    coisa, o que s se efetivar mediante uma compreenso da coisa propriamente dita:

    Queramos encontrar a realidade efetiva imediata e plena da obra de arte; pois s

    assim descobrimos tambm nela a arte efetivamente real. Antes de mais, temos,

    portanto, de trazer considerao esse carter de coisa da obra. (Ibidem, p.12).

    Segundo o filsofo, ao tratar da coisa, a filosofia encontra-se em

    desvantagem, visto que tal conceito j est demasiado posto e estabelecido pelo

    pensamento cientfico, fazendo-se necessrio, portanto, sair do que est posto,

    mediante um afastamento do modo ordinrio de compreenso da coisa, para

    conseguir acess-la enquanto tal.

    [] a filosofia, quando se inicia, encontra-se numa situao desfavorvel. O mesmo no acontece com as cincias, pois a estas as representaes, opinies e maneiras de pensar quotidianas atribuem sempre uma entrada e um acesso imediatos. Se o modo habitual de representar for tomado como a nica medida de todas as coisas, a filosofia, ento, ser sempre algo de deslocado. (HEIDEGGER, 1987, p.13)

    A tradio filosfica define a coisa como o ente em geral. Tal concepo

    extremamente abrangente, podendo a coisa ser desde uma mesa, passando pelo

    cu e a terra, at abarcar coisas mais complexas como a morte ou at mesmo o

    prprio Deus. Tudo pode ser uma coisa. No texto Que uma coisa? (Was ist ein

    Ding? 1935/6), Heidegger afirma que por coisa pode-se entender, segundo um

    rigoroso uso da linguagem, o mesmo que qualquer coisa, aquilo que o contrrio do

    nada (Ibidem, p.17).

    No entanto, mesmo identificando a coisa como ente, Heidegger alerta que

    preciso delimitar o ente que ao modo-de-ser da coisa face ao ente que ao

    modo-de-ser da obra. (1998, p.13). A noo de coisa, nesta perspectiva, deve se

    aproximar daquela que se refere s coisas do cotidiano, visto que no comumente

    ouve-se chamar Deus uma coisa, assim como o prprio homem.

  • 26

    Desta forma, trata-se da coisa num sentido restrito, enquanto objeto, como

    aquilo que est ao alcance, o que se pode ver, tocar. Para Heidegger, deve-se

    primeiro olhar para aquilo que est disposio ao buscar acessar a essncia de

    algo. Este deve ser o ponto de partida. O que se entende corriqueiramente por coisa,

    so as coisas nas quais se lida no uso, assim como as coisas da natureza, bem

    como tudo que inanimado nesse contexto. O que proposto aqui uma

    compreenso da coisa enquanto mera coisa, tendo em vista retirar da coisa a

    contaminao pelo manuseio que se faz desta, possibilitando vislumbr-la em seu

    puro ser.

    O mero quer aqui dizer, por um lado, a pura coisa, que simplesmente uma coisa e nada mais; mas o mero quer dizer simultaneamente: apenas e s uma coisa, num sentido j quase depreciativo. As meras coisas, excluindo at as coisas de uso, so tomadas como as coisas propriamente ditas (Ibidem, p.14)

    mais simples compreender a coisa enquanto objeto, no sentido restrito.

    Estas so sempre meras coisas ou qualquer coisa; mas qualquer coisa no

    deve se limitar a este sentido restrito, embora a questo o que uma coisa?

    sempre remeta a este. Tambm na pergunta pela coisa no se pretende ir aos

    especialistas em determinadas coisas, como no caso da arte, onde se recorreria, por

    exemplo, ao crtico de arte, para saber o que esta coisa, a obra de arte. Ao

    contrrio, deve-se buscar compreender a coisa enquanto coisa, longe de qualquer

    referncia, em sua coisalidade:

    Ultrapassamos mesmo estes domnios do inanimado, do animado e do utilitrio e queremos apenas saber: que uma coisa? Na medida em que questionamos deste modo procuramos aquilo que faz a coisa ser coisa, enquanto tal, no enquanto pedra ou madeira, aquilo que torna-coisa (be-dingt) a coisa. No questionamos acerca de uma coisa de uma determinada

    espcie, mas acerca da coisalidade da coisa. (HEIDEGGER, 1987, p.20)

    A pergunta pela coisalidade da coisa a pergunta pelo incondicionado. Isto ,

    no est sujeita a esta ou aquela coisa, mas coisa ela mesma. Olhar a coisa na

    sua coisalidade, ou seja, em seu ser, implica olhar para aquilo que pertence a todas

    as coisas e a cada uma delas (Ibidem, p.27). A obra de arte no aparece aqui como

    uma coisa qualquer, mas como aquilo que possui em si tambm um carter de coisa.

    Compreender este carter de coisa ir coisa mesma. Para tanto, Heidegger

    recorre a trs significaes da coisa no decorrer da tradio filosfica.

  • 27

    A primeira define a coisa como aquilo que rene um grupo de caractersticas

    especficas, como suporte de propriedades. Tal definio pretende ver a coisa a

    partir de sua estrutura, sua constituio. Tal modo de apreenso da coisa-em-si vem

    desde Plato e desenvolve-se principalmente em Aristteles, mas assim

    compreendida devido recepo das palavras gregas pelo pensamento romano-

    latino.

    Ao se observar uma coisa, v-se sempre algo que determinada por suas

    propriedades, isto , a partir do modo como esta ou aquela coisa se constitui. Nesta

    perspectiva, afirma Heidegger: O que , portanto, uma coisa? Um centro, volta do

    qual giram propriedades mutveis, ou um suporte em que estas propriedades se

    apoiam, qualquer coisa que tem em si outras coisas (Ibidem, p.40).

    No entanto, afirma Heidegger, esta compreenso modificada a partir da

    transio do grego para o latim, influenciando, dessa forma, toda a tradio

    filosfica. Enquanto que no pensamento grego a estrutura da proposio se adequa

    estrutura da coisa Hypokeimenon na transio para o latim ocorre o oposto, a

    coisa se adequa ao intelecto Subjectum -, no mais aparecendo no seu estar-a-ser

    originrio, mas a partir de uma mera interpretao do intelecto humano, que atribui

    qualidades coisa.

    Atrs da traduo [bersetzung] aparentemente literal e, portanto, que preserva [o sentido], encobre-se um tranpor [bersetzen] da experincia grega para um outro modo de pensar. O pensamento romano toma posse das palavras gregas sem uma experincia igualmente originria que corresponda quilo que elas dizem, sem a palavra grega. O desterro [Bodenlosigkeit falta de solo] do pensamento ocidental comea com esta traduo. (HEIDEGGER, 1998, p.15-16)

    Contudo, isto no significa dizer que o problema que cerca a coisa-em-si j

    est dado, pois tanto a proposio quanto a coisa so parte de uma outra estrutura

    mais originria. Portanto, apreender a coisa como um apanhado de caractersticas

    dispersa o sentido da coisa atribuindo-lhe inconsistncia, visto que esta definio

    de demasiada abrangncia, podendo qualquer ente ser definido como tal:

    [...] este conceito de coisa (a coisa como portadora de suas notas caractersticas) no se aplica apenas as meras coisas, s coisas propriamente ditas, mas a todo e qualquer ente. Da que tambm nunca se consiga, com a sua ajuda, demarcar o ente que ao modo da coisa [dinglich] do ente que no ao modo da coisa (Ibidem, p.17)

  • 28

    A segunda compreenso da coisa refere-se a esta como aquilo que

    perceptvel aos sentidos, configurando-se enquanto Aisthton ( ). De acordo

    com esta interpretao, a coisa tomada a partir da apreenso da sua materialidade

    pelos sentidos: a unidade da multiplicidade do que dado aos sentidos (Ibidem,

    p.18). Entretanto, tal constatao acaba sendo to inconsistente quanto a anterior,

    ao observar-se que as coisas nem sempre passam obrigatoriamente pelos sentidos,

    pois tais sensaes vo muito aqum do que realmente so.

    Em casa, ouvimos a porta bater e nunca ouvimos sensaes acsticas, nem sequer meros rudos. Para ouvir um puro rudo, temos de desviar os ouvidos das coisas, subtrair a elas a nossa audio, quer dizer, ouvir de forma abstrata. No conceito de coisa agora indicado, h no tanto uma agresso coisa, mas sim a tentativa excessiva de traz-la at ns da forma mais imediata possvel. (Ibidem, p.19)

    Tal reflexo sinestsica conduz ao imediatismo, como se fosse possvel, pela

    percepo sensvel obter a experincia originria da coisa, enquanto um puro

    sentido. Entretanto, no h como acessar um puro sentido, pois no se d uma pura

    percepo, assim como, por exemplo, no se d um puro pensar. Nesta perspectiva,

    a sensao no acessa a coisa-em-si, pois sentir no o mesmo que perceber

    atravs dos sentidos (aisthsis) a coisa mesma.

    Neste ponto, observa Heidegger, as duas definies da coisa no contribuem

    com a compreenso da coisa em sua essncia visto que, enquanto a primeira afasta

    a coisa excessivamente ao abord-la como um apanhado de caractersticas,

    universalizando seu conceito, pois todo e qualquer ente pode ser assim tomado, a

    segunda, ao propor sua acessibilidade pelos sentidos, a aproxima demasiadamente.

    Enquanto que a primeira concepo das coisas a mantm , por assim dizer, afastadas de ns e as leva para longe, a segunda aproxima-as demasiado de ns. Em ambas as concepes, a coisa desvanece-se. Por isso, h talvez que abandonar os excessos de ambas as concepes. A coisa ela mesma deve [ser] deixada no seu repousar-em-si. (Ibidem, p.19)

    A terceira e ltima concepo exposta por Heidegger, busca reunir as duas

    concepes anteriormente citadas em uma compreenso mais originria, bem como,

    de acordo com o prprio filsofo, numa interpretao to antiga quanto estas. Trata-

    se da concepo que parte do ajunte conceitual matria e forma.

    Esta apreenso surge a partir do pensamento aristotlico, no qual a coisa

  • 29

    matria e forma. A partir desta compreenso, a obra de arte

    constitui-se em matria enformada, na qual a presena da coisa na obra de arte

    aparece a partir de sua matria-prima: da pedra de onde provm a escultura, da cor

    que d vida pintura expressa no quadro, do som do qual depende a msica: a

    matria o suporte e o campo para o formar artstico (Ibidem, p.20).

    A matria, intrinsecamente unida forma, agrega tanto as propriedades da

    coisa, quanto sua qualidade sensvel. A coisa s como tal, se matria se unir a

    forma. A obra de arte se constitui, segundo as teorias estticas, como uma forma

    retirada de uma matria, ou ainda de uma matria transformada. Sendo assim,

    vislumbrar a coisa enquanto matria enformada seria o caminho mais adequado

    para a compreenso do carter de coisa da obra de arte.

    A distino entre matria e forma, mesmo nas [suas] mais diversas modalidades, o esquema conceptual por excelncia de toda a teoria da arte e de toda a esttica. Este facto incontestvel no prova, porm, nem que a distino entre matria e forma esteja fundamentada de forma suficiente, nem que ela pertena originariamente ao mbito da arte e da obra de arte. (Ibidem, p.20)

    Este conceito se aproxima muito do conceito de utenslio, no que concerne ao

    fato de que este uma matria enformada para uma determinada finalidade, como,

    por exemplo, um machado, uma cadeira ou um sapato. Cada uma dessas coisas

    tem sua funo determinada. Por sua vez, a obra de arte algo que est a para

    nada, isto , possui sua finalidade em si mesma, no se configurando como algo til

    em si.

    Nesta perspectiva, os conceitos de matria e forma concedem um espao

    extremamente diverso. Isso pode ser constatado observando-se uma viga de metal.

    Esta possui uma forma especfica, mesmo que no to bem disposta quanto uma

    escultura de mesmo material. Um machado feito de madeira e metal possui uma

    forma, no entanto, no uma obra de arte. Desse modo, constata-se que forma

    cabe distribuir e contornar a matria, atribuindo-lhe funes especficas, a partir da

    qualidade material. Estas qualidades expem a sua serventia.

    A serventia, por sua vez, caracterstica essencial do utenslio, pois este

    algo fabricado para uma finalidade especfica. O ajuste matria-forma abarca a

  • 30

    essncia do utenslio, entretanto, no d conta da coisidade da coisa enquanto mera

    coisa, mas, por outro lado, no perde totalmente sua semelhana com a obra de

    arte, visto que ambos, - utenslio e obra se configuram enquanto resultado da

    produo humana.

    A obra de arte, por sua vez, se distancia do utenslio, dada a sua auto-

    suficincia, o que a aproxima da mera coisa, que, assim como a obra de arte, existe

    em si mesma, para si mesma. O utenslio mais que uma mera coisa, pois algo

    produzido para um objetivo determinado e, ao mesmo tempo, inferior obra de arte,

    por no ser autnomo. Neste caso, afirma Heidegger, o utenslio ocupa um lugar

    interposto entre a mera coisa e a obra de arte.

    Por ser intermedirio entre obra de arte e mera coisa, a interpretao da mera

    coisa e da obra de arte enquanto matria enformada se verifica, a partir daqui, ante

    a apreciao da essncia do utenslio: na medida em que o utenslio ocupa uma

    posio intermdia entre a mera coisa e a obra, de supor que, com a ajuda do ser-

    utenslio, se conceba tambm o ente que no tem carter de utenslio as coisas e

    as obras e, por fim, todo ente (Ibidem, p.23).

    No decorrer da tradio que dispe acerca da histria do ser, as definies

    que abarcam o conceito de coisa desembocam numa equiparao desta com o

    utenslio e com a obra, encobrindo e dissimulando seu ser. At aqui, a realidade das

    obras encaminhou-se para a obra em seu carter de coisa, que por sua vez se

    direcionou ao utenslio. Sendo assim, o caminho para a compreenso da mera coisa,

    como tambm da obra de arte, se dar a partir da apreciao da essncia do

    utenslio, isto , do ser-utenslio, que primeiramente aparece enquanto ordenao da

    matria pela forma, mas que, no entanto, no d conta deste ente especfico, sendo

    necessrio apreend-lo de modo mais originrio.

  • 31

    1.3. O ser-utenslio e o apontamento para o pr-se-em-obra da verdade

    No 15 de Ser e Tempo, Heidegger descreve o utenslio como o ente que vem

    ao encontro do Dasein no mundo atravs da lida cotidiana, sendo, nesta perspectiva,

    aquilo com que se lida na ocupao (HEIDEGGER, 1995, p.109). O ser-utenslio

    do utenslio se d a partir de sua pertinncia, se configurando enquanto ser-para,

    que aparece na lida ou manuseio do utenslio numa circunviso, isto , num modo

    prprio da lida com os utenslios mediante o uso, atribuindo a este manuseio,

    confiabilidade e segurana.

    Em A Origem da Obra de Arte, no entanto, Heidegger procura compreender o

    ser-utenslio sem recorrer a nenhum conceito anterior, pois deixando que o ente

    seja ente, sem qualquer interveno, que este aparecer no seu mostrar-se-em-si.

    Para tanto, cabe analisar um utenslio qualquer, um par de sapatos. Para ilustrar

    esse utenslio de calado, o autor recorre a uma famosa tela5 do pintor holands

    Vincent Van Gogh (1853-1890), na qual dentre muitas obras do artista que ilustram

    este mesmo utenslio apresenta-se um par de sapatos de campons, mais uma de

    suas muitas obras tematizando a vida no campo6.

    A obra selecionada, no o ao acaso. Ao buscar apreender o ser-utenslio do

    utenslio a partir desta arte plstica, Heidegger observa o utenslio em questo

    retirando-o das concepes habituais do utenslio, mediante a relao matria e

    forma, vislumbrando-o no cotidiano da camponesa, que usa o utenslio de calado

    na sua labuta no campo, tornando-se claro o emprego de uma epoch7

    fenomenolgica para tanto:

    5 Vide anexo I. 6 Tais obras tinham por finalidade expor a realidade dos camponeses sem idealizaes,

    diferentemente de outros artistas, como afirma Van Gogh em carta a seu irmo Theo, tratando do que seria posteriormente considerada sua primeira grande obra - Os comedores de batata: Eu tentei enfatizar que essas pessoas, comendo suas batatas luz do lampio, haviam escavado a terra com as mesmas mos que punham no prato... como elas tinham obtido honestamente seu alimento (VAN GOGH apud GREEN, 2002, p.12). Respondendo s crticas que surgem logo aps esta obra o artista adverte: Se uma pintura de camponeses cheira a bacon, fumaa, vapor de batatas tudo bem, nada disso anormal (Ibidem, p.13).

    7 O uso da epoch se d mediante o mtodo fenomenolgico, quando o filsofo busca compreender algo longe de qualquer referencial. um por entre parntesis, retirando dali qualquer pr-conceito ou pr-juzo para que a coisa aparea tal qual .

  • 32

    Como havemos de experimentar aquilo que o utenslio verdadeiramente ? O procedimento que agora necessrio tem manifestamente de se manter afastado das tentativas que logo voltam a trazer consigo as transgresses [prprias] das concepes habituais. Ficamos mais bem protegidos relativamente a isso se descrevermos simplesmente um utenslio sem [o recurso a] uma teoria filosfica. (HEIDEGGER, 1998, p.23)

    Cabe agora apreender o ser-utenslio sem recorrer a qualquer conceito

    anterior, apenas deixando que o quadro de Van Gogh apresente o ser do ente que

    ali est mostra: devemos voltar-nos para o ente, pensar nele mesmo acerca de

    seu ser, mas [temos que fazer isso] deixando-o estar, ao mesmo tempo, em sua

    essncia (Ibidem, p.26).

    Primeiramente, deve-se refletir no que se pensa quando se v o calado.

    Nesta primeira apreenso, diz o filsofo, observa-se imediatamente seu material, o

    couro, as costuras e os pregos e, por conseguinte, sua utilidade, que a de calar

    os ps. Logo, aparece o para qu foi designado, sua serventia: Para o trabalho, para

    a festa, entre outros. O utenslio demonstra mais uma vez sua essncia no uso.

    neste processo de uso do utenslio que o carter de utenslio deve efetivamente vir a

    nosso encontro (Ibidem, p.28).

    Dentro do mbito do uso, o par de botas mostra-se, autenticamente, como

    aquilo que eles mesmos so quando quem os usa, neste caso, a camponesa, no

    d conta efetivamente de que os est usando, simplesmente utilizando-os de forma

    mecanizada, dentre muitos outros utenslios utilizados dentro de um contexto

    especfico, na lida cotidiana.

    A camponesa usa os sapatos no campo. S aqui so aquilo que so. So-no de modo tanto mais autntico quanto menos neles pense a camponesa, no seu trabalho, ou mesmo quanto menos os olhe ou sequer os sinta. Ela est de p e anda com eles. assim que os sapatos servem efectivamente. neste processo de uso do utenslio que o carter de utenslio deve efectivamente vir ao nosso encontro. (Ibidem, p.28)

    No entanto, frente pintura de Van Gogh, no se define com exatido a

    serventia do par de botas. Este nem ao menos apresentado dentro de um contexto

    que especifique seu uso. O artista apenas apresenta, primeira vista, um utenslio

    em repouso, um par de sapatos de campons e nada mais (Ibidem, p.28).

    Heidegger no pretende observar a obra apenas como um conjunto de cores e

    formas delineadas numa tela. O filsofo almeja demonstrar que na obra de arte em

  • 33

    questo revelar-se- a realidade do par de botas, isto , todo o contexto no qual est

    inserido. O quadro permite que o modo mais originrio do utenslio, o ser-utenslio,

    aparea.

    Da abertura escura do interior deformado do calado, a fadiga dos passos do trabalho olha-nos fixamente. No peso slido, macio, dos sapatos est retida a dureza da marcha lenta pelos sulcos que longamente se estendem, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual perdura um vento agreste. No couro, est [a marca] da humildade e da saturao do solo. Sob as solas, insinua-se a solido do carreiro pelo cair da tarde. O grito mudo da terra vibra nos sapatos, o seu presentear silencioso do trigo que amadurece e o seu recusar-se inexplicado no pousio desolado do campo de inverno. Passa por este utenslio a inquietao sem queixume pela segurana do po, a alegria sem palavras do acabar por vencer de novo a carestia, o estremecimento da chegada do nascimento e o tremor na ameaa da morte. Este utenslio pertence terra e est abrigado no mundo da camponesa. a partir desta pertena abrigada que o prprio utenslio se eleva ao seu repousar-em-si (Ibidem, p.28-29).

    No quadro, o utenslio que ali se apresenta se mostrou tal qual , na sua

    pertena ao mundo da camponesa. Diferentemente do que ocorre em Ser e Tempo,

    onde o utenslio se revela atravs da manualidade, na obra de arte o ser-utenslio do

    utenslio surgiu a partir da obra de arte, onde, ao apresentar o utenslio de calado

    imerso no mundo da camponesa, expe uma reflexo que no feita pela

    camponesa na sua lida cotidiana. s a partir do utenslio que aparece em repouso

    no quadro, que este mundo surge com toda sua fora:

    [...] a obra de arte, seja qual for, pode sobressair tendo uma relevncia extraordinria, fora da vida comum. [...] a arte sempre ser, luz da verdade do ser, uma sada do cotidiano, no sentido inverso quele movimento de queda [Verfallen]; uma retirada desse envolvimento do cotidiano. (NUNES, 2007, p.98)

    A partir do utenslio no quadro, aparece um mundo que abarca a vida da

    camponesa, num mbito que no envolve apenas o contexto do trabalho, da lida

    com a terra, mas tambm suas preocupaes, suas conquistas, seus planos. Sendo

    assim, a obra de arte no expressa alguma coisa como a mundanidade do mundo,

    mas apresenta a singularidade de um mundo (DUBOIS, 2004, p.171).

    A partir do mostrar-se da obra de arte em questo, Heidegger afirma: Este

    utenslio pertence terra e est abrigado no mundo da camponesa (1998, p.29).

    Pertencer, significa fazer parte, encontrar abrigo. Aquilo que abriga o que protege,

    o que acolhe. E s por meio disto que o filsofo chama de pertena abrigada,

  • 34

    que o utenslio pode elevar-se no seu repousar-em-si.

    No andar da camponesa, o calado no aparece, nem muito menos tudo

    aquilo que a obra de Van Gogh permitiu ver. A camponesa no reflete acerca de seu

    mundo, mas apenas usa seus sapatos, anda com estes, como se este simples

    andar com [eles] fosse to simples assim (Ibidem, p.29). A camponesa est imersa

    no seu mundo, e no precisa subtrair-se dele para compreender tudo isso: Todas as

    vezes que a camponesa, j noite dentro, pe de lado, no seu cansao dorido mas

    so, os sapatos e, estando ainda escura a madrugada, os volta logo a tomar para si,

    ou quando, nos dias de descanso, passa junto deles, ela sabe tudo isto sem

    quaisquer consideraes ou observaes (Ibidem, p.29).

    A obra de arte, ao instaurar um mundo, pe-em-obra a verdade do ente.

    Pela pertena abrigada do mundo, o par de sapatos, expresso na obra de arte, exibe

    algo mais que a serventia crua do utenslio, mas seu modo mais originrio. O mundo

    da camponesa apareceu a partir do par de sapatos, na sua fiabilidade

    [Verllichkeit]8, na certeza e segurana de sua pertena ao mundo.

    A partir desta reflexo, Heidegger vai mais alm daquela interpretao do

    utenslio como algo que serve para uma finalidade, visto que a serventia, isto , a

    entrega ao uso, expe, nesta entrega, a confiana na terra, a fiabilidade. Na obra de

    arte expressa, todo um mundo se apresenta, trazendo tona a realidade cotidiana

    da camponesa, que, diante da fiabilidade, que o ser-utenslio do utenslio, se torna

    possvel. Nesta perspectiva, a fiabilidade aquilo que assegura a confiana, a

    solidez, o slido onde o mundo se finca.

    A fiabilidade aparece como ser-utenslio do utenslio. o que permite ao

    utenslio pertencer ao mundo sem cair na usura, no desgaste desolado que

    transforma o utenslio em mero objeto, onde o cotidiano maante e montono.

    8 Do alemo Verllichkeit, onde verlsslich traduz-se por confiana. Podendo ser compreendido

    como aquilo que confivel ou ser-de-confiana (NUNES, 2007, p.96). Harada (2009), traduz a palavra por confiabilidade, acreditando ser esta mais esclarecedora para compreenso do referido conceito, comparando a palavra com Gelassenheit, traduzido por serenidade, outro conceito heideggeriano que trata da escuta do homem ao ser, livre da imposio da tcnica moderna que suprime o pensamento. Em ambas as palavras, encontra-se implcito o termo Lassen, que, traduzido por deixar, implica em deixar ser em si, abandonar nesta serenidade o ser que se oculta e deixar que este aparea.

  • 35

    Neste uso que v no utenslio apenas uma forma agregada a uma matria, o ser-

    utenslio se perde na serventia mecanizada: agora j s a crua serventia visvel

    (Ibidem, p.30). A serventia, portanto, configura-se como conseqncia essencial

    (HEIDEGGER, 1998, p.29) desta fiabilidade. Sem esta ltima, a serventia desgasta-

    se no habitual.

    Apenas mediante este estar-em-si do utenslio de calado, pde-se dar

    conta de sua fiabilidade, como aquilo onde o mundo da camponesa est assentado

    e, no entanto, encobre-se. A fiabilidade como ser-utenslio do utenslio, foi desvelada

    pela obra.

    O ser-utenslio do utenslio foi encontrado. [...] mas apenas pelo facto de nos termos posto perante a figura de Van Gogh. Esta falou. Na proximidade da obra, estivemos, subitamente, num lugar que no aquele em que habitualmente costumamos estar (Ibidem, p.30).

    A obra deixou ver o mundo da camponesa retirando o calado do mero

    manuseio, fazendo aparecer a vida camponesa no seu modo originrio. No foi uma

    simples interpretao realizada subjetivamente que permitiu uma anlise da obra e

    do utenslio apresentado nela desta maneira. Isto s aconteceu por que a obra

    mesma permitiu.

    A pintura de Van Gogh, ao manifestar o ser-utenslio, revela,

    simultaneamente, a essncia do utenslio, o que este verdadeiramente . Devido a

    este fato, o que est em obra na obra de arte a verdade, em outras palavras, a arte

    manifesta o pr-se-em-obra da verdade. A obra apresentou o ente em seu

    desencobrimento. Desencobrir aquilo que os gregos denominavam Alethia

    ( ) e que posteriormente se traduziu por verdade: Na obra caso nela

    acontea uma patenteao originria do ente naquilo que ele e como , est em

    obra um acontecer da verdade (Ibidem, p.31).

    Sem a obra, o calado no teria se revelado em sua essncia. A obra de arte

    revelou um mundo que se perde no cotidiano, mundo este que ao se abrir na e pela

    obra de arte, ps em obra a verdade do ente. Nesta perspectiva, o pr-se-em-obra

    da verdade a essncia da obra de arte. Ao afirmar isto, Heidegger no quer dizer

    que a arte uma cpia da realidade do real, como o que existe de modo efetivo. Isto

    seria recorrer ao conceito da tradio filosfica onde a essncia da verdade se d

  • 36

    mediante a concordncia (adequatio) da proposio com o ente.

    Esta interpretao no d conta do ser-obra, pois a arte funda um mundo

    prprio, no se configurando, como comumente se interpreta, como um espelho do

    sensvel: a obra de arte no exprime nem d testemunho de um mundo constitudo

    fora dela ou independentemente dela; ela prpria abre e funda um mundo

    (VATTIMO, 1997, p. 115). Segundo Heidegger, o mundo que se abre na obra de arte

    s foi possvel de ser vislumbrado no mediante uma interpretao subjetiva; mas

    isto apenas aconteceu por que obra foi conferida o seu estar-a-ser.

    O que se apresenta na obra no faz referncia ao ente intramundano

    simplesmente dado, pois a obra revela o que Heidegger denomina como a essncia

    universal das coisas. Alm disso, esta nem sempre faz referncia a algo que existe

    concretamente no mundo, como exemplifica o filsofo no poema A fonte Romana,

    do poeta suo Conrad Ferdinand Meyer (1825-1898):

    O jorro eleva-se e, caindo, enche

    at orla a taa de mrmore,

    que, cobrindo-se, transborda

    para o fundo de uma segunda taa;

    a segunda, ao acolher demais, d,

    ondulante, terceira o seu fluxo,

    e cada uma, ao mesmo tempo, d e recebe

    e flui e repousa9

    9 Na traduo portuguesa da Fundao Calouste Gulbenkian, as rimas prprias ao poema se esvaem. No entanto, estas so de extrema relevncia j que por elas, o fluxo da fonte aparece na dinmica da palavra. Desse modo, transcreve-se abaixo tanto o texto original alemo (1980, p.22), como a traduo de MOOSBURGUER (2007, p.23), que respeita as rimas presentes no texto original.

    Der rmische Brunnen

    Aufsteigt der Strahl und fallend giet

    Er voll der Marmorschale Rund,

    Die, sich verschleiernd, berfliet

    In einer zweiten Schale Grund;

    Die zweite gibt, sie wird zu reich,

    Der dritten wallend ihre Flut,

    Und jede nimmt und gibt zugleich

  • 37

    (MEYER apud HEIDEGGER, 1998, p.33).

    Segundo Heidegger, a fonte a que o poeta faz meno no existe de modo

    concreto e nem abarca a essncia de todas as fontes romanas. No entanto, atravs

    do manuseio das palavras, est contido no poema o pr-se-em-obra da verdade,

    quando, pela linguagem, o poeta abre um mundo prprio, que apresentado numa

    perspectiva diferente daquela do mundo concreto. A obra de arte no pode situar-se

    no mundo, mas ela prpria abre um mundo porque representa uma espcie de

    projecto sobre a totalidade do ente e, neste sentido, novidade radical. (VATTIMO,

    1997, p. 116).

    A fonte a que o poeta faz meno, longe de ser uma descrio de outra fonte

    existente, permite, pela palavra, o mostrar-se da fonte, pelo seu movimento, sua

    beleza, que esto no fluir e repousar atravs de seu fluxo. A fonte, atravs do

    poema, ultrapassa a categoria de coisa, e presentifica-se no seu estar-a-ser

    originrio.

    O que perceptvel at agora, o distanciamento da analtica heideggeriana

    acerca da obra de arte do discurso esttico, que define a relao com a obra de um

    modo extremamente subjetivo, no qual o sujeito que analisa a obra relaciona-se com

    esta a partir da sensao que a mesma provoca para si.

    O discurso de Heidegger no busca uma maneira de representar esta ou

    aquela obra, determinando-as a partir do seu gosto subjetivo ou de regras

    padronizadas que determinem o que ou o que no uma obra de arte. Muito

    Und strmt und ruht.

    A Fonte Romana

    Sobe o jato e pleno vasa

    taa de mrmore redonda

    Que enchendo-se extravasa

    Para o fundo de uma segunda;

    E a segunda, de cheia borbulhando,

    terceira d em ondas sua enchente,

    E cada uma toma e d ao mesmo tempo

    E corre e se suspende.

  • 38

    menos, como se pde observar claramente, fazer da obra uma representao que

    est em conformidade com algo que existe em um mundo real.

    Quando afirma que na obra de arte est em obra o acontecimento da

    verdade, no se deve entender que a obra uma imitao ou conformidade com

    algo real, mas, diferentemente do modo corriqueiro como se compreende verdade,

    Heidegger traz uma analtica muito mais originria. At agora, Heidegger

    compreende o ser-obra mediante uma anlise essencial do utenslio e da coisa.

    Para tanto, foi necessrio entender o ser do ente. Esta compreenso abre o caminho

    que desencadeia no carter de coisa na obra e, posteriormente, no ser-obra.

    A seu modo, a obra de arte torna originariamente patente o ser do ente. Esta patenteao originria, o desencobrir a verdade do ente, acontece na obra. Na obra de arte, a verdade do ente ps-se em obra. A arte o pr-se-em-obra da verdade. O que a verdade ela mesma, para que, a seu tempo, acontea, propiciando-se como arte? O que este pr-se-em-obra? (Heidegger, 1998, p. 35-36)

    A partir da apreciao da obra de arte enquanto coisa apreendeu-se o ser-

    utenslio do utenslio que, por sua vez, abriu caminho para o pr-se-em-obra da

    verdade na obra de arte, demonstrando que a realidade das obras no se d

    unicamente pelo seu aspecto coisal, mas pela obra como lugar do acontecimento da

    verdade. Sendo assim, faz-se necessrio deslocar a pergunta para aquilo que na

    obra est posta em obra, isto , para a verdade.

  • 39

    II

    A OBRA DE ARTE E O APELO CALADO DA VERDADE

    2.1. O combate entre mundo e terra e o apontamento para o pr-se-em-

    obra da verdade

    At agora, foi explanado o modo como Heidegger chega obra de arte

    como pr-se-em-obra da verdade, que reclama o carter de obra da obra, visto que

    nem a coisa nem o utenslio o conseguiram, pois estes no deram conta do ser-obra

    apenas compreendendo o modo como o ser dos entes aparece na obra. Nesta

    perspectiva, o filsofo pergunta qual deve ser o ponto de partida para tal

    compreenso, ainda buscando partir da realidade das obras em seu puro estar-a-

    ser.

    As obras so tornadas acessveis fruio artstica pblica e particular. As autoridades oficiais encarregam-se da sua proteco e manuteno. O perito em matria de arte e o crtico de arte ocupam-se delas. O comrcio de obras de arte vela pelo mercado. A histria da arte faz das obras objectos de uma cincia. Ser, ento, no meio dessa trama complexa que as obras vm elas mesmas ao nosso encontro? (HEIDEGGER, 1998, p. 37).

    Este questionamento acarreta na compreenso de que as obras de arte

    esto deslocadas do seu lugar de origem. Nesta afirmao, o autor no quer dizer

    que isto acontece pela retirada da obra de um espao para outro. O que ele

    pretende enunciar o fato de que as obras de arte simplesmente dispostas numa

    coleo se mostram apenas em seu carter de coisa. Fixadas em um museu como

    tambm em meio a runas, como no caso de algumas obras arquitetnicas, a arte

    sofre a privao de seu mundo.

    O quadro de Van Gogh est ali posto no museu do mesmo modo que as

    pirmides esto no Egito. Ali, apenas se encontram, apesar de magnficos, meros

    objetos arquitetnicos que no so mais aquilo que foram no mundo ao qual

  • 40

    pertenceram, ou seja, as obras esto dispostas, no entanto, o mundo no qual

    nasceram e foram edificadas, decaiu. O que restou foi a simples conservao

    daquelas obras e sua contemplao.

    No entanto, ser que a obra continua ainda [a ser] obra, se est fora de

    qualquer conexo? (Ibidem, p. 38). Isto , ser que o acontecimento da verdade na

    obra de arte, enquanto seu mostrar-se de modo mais essencial, possvel mesmo

    mediante este deslocamento do mundo da obra de arte? Para ilustrar esta questo,

    o autor parte de uma obra arquitetnica, um templo grego10. Ao vislumbrar obra de

    tal magnitude, o que se pode apreender?

    O templo, afirma Heidegger, est ali presente de modo tal que levanta um

    mundo e elabora a terra, e ser exatamente a partir destes dois elementos que a

    verdade se d, enquanto acontecimento, na obra. O templo instaura um mundo a

    partir daquilo que ele mesmo representa para um povo num determinado momento

    da histria. No templo, est presente o divino, o que o configura como um local

    sagrado, onde o povo que o ergueu deposita sua f.

    A obra arquitetnica envolve a figura do deus e, neste encobrimento, deixa-a avanar, atravs do prtico aberto, para o recinto sagrado. [...] A obra que o templo articula e rene pela primeira vez sua volta, ao mesmo tempo, a unidade das vias e das conexes em que nascimento e morte, desgraa e bno, triunfo e oprbrio, perseverana e decadncia...conferem ao ser-humano a figura do seu destino. A vastido vigente destas conexes que esto abertas o mundo deste povo histrico (Ibidem, p.38).

    A partir desta descrio, Heidegger demonstra que o templo mais que

    simples runa, que, naquele espao no qual esteve h tanto tempo, serve apenas

    como atrao turstica. O templo, vislumbrado neste primeiro momento, como algo

    edificado por motivos religiosos, apresenta o levantar de um mundo. Levantar este

    em que so reunidos a vida, a cultura, os costumes e o esprito de uma civilizao. A

    obra arquitetnica um relato, uma constatao daquele momento histrico ao qual

    pertenceu o templo. H aqui, portanto, o aparecimento e a constatao de um

    mundo levantado pelo homem e no qual este deposita sua existncia, atribuindo-lhe

    significado, que se modifica ao longo da histria.

    10 Segundo Ramos (2005, p.15), o templo a que Heidegger faz referncia , provavelmente um dos

    templos de Paestum (Nos anexos II e III, encontram-se as imagens dos templos de Atenas e Apolo).

  • 41

    Ao afirmar que a obra de arte levanta um mundo, deve-se considerar que

    este levantar no diz respeito ao levantar como o edificar de uma obra arquitetnica,

    assim como tambm no se refere ao representar de um festival ou o erigir de uma

    esttua, no sentido de instalao. Heidegger afirma que tal erigir ou levantar tem o

    sentido de consagrar e glorificar, como aquele consagrar que concede obra este

    atributo de sagrado, tendo em si o glorificar que pertence esfera da representao

    e culto do divino. Consagrar e glorificar pertena do mundo, que por sua vez os

    expe por intermdio da obra. Nesta perspectiva, levantar um mundo faz parte da

    essncia da obra de arte, como afirma Heidegger: a obra, soerguendo-se em si

    mesma, torna originariamente patente um mundo e mantm-no em vigente

    permanncia. Ser-obra significa: levantar um mundo. (Ibidem, p.42).

    O mundo, mostrando-se como tal, promove a abertura do ente, por exemplo,

    no que mostrado diante do quadro de Van Gogh, onde pelo par de botas em

    repouso na tela, revela-se o mundo da camponesa. Tanto no quadro de Van Gogh

    como no templo, um mundo instaurado e levantado. Na obra de arte, o mundo que

    ali se mostra no mera descrio da concretude do habitual, mas aparece como

    criao, envolvendo uma gama de significados singulares, que, reunidos, promove

    uma abertura para algo totalmente novo: a obra de arte no exprime nem d

    testemunho de um mundo constitudo fora dela ou independentemente dela; ela

    prpria abre e funda um mundo (VATTIMO, 1989, p.115). O mundo levantado e

    fundado na obra de arte onde se abriga o destino da humanidade, ao qual o

    homem pertence, um mundo histrico, que, em constante movimento, circunscreve o

    espao que o delimita.

    [...] a rocha alcana o suportar e o jazer e s assim se torna rocha; os metais alcanam o resplandecer e o reluzir, as cores o brilhar, o som o soar, a palavra o dizer. Tudo isto surge diante na medida em que a obra se repe no carter macio e pesado da pedra, no carter firme e malevel da madeira, na dureza e no brilho do metal, no luminoso e no escuro da cor, no timbre do som e no poder de nomear da palavra (HEIDEGGER, 1998, p. 39).

    A obra de arte, ao levantar um mundo, tambm expe a matria que a

    constitui, as cores, no caso do quadro, a rocha, no caso do templo. Em seu posfcio

    de A Origem da obra de arte, Gadamer afirma:

  • 42

    Uma obra de arte no significa algo, no se refere a uma significao como um sinal, mas se apresenta em seu prprio ser, de tal modo que o contemplador requisitado a demorar-se com ela. to ela mesma que est a, que, ao contrrio, aquilo mesmo de que feita, pedra, cor, som, palavra, vem somente nela a seu prprio ser-a... Os sons em que uma obra-prima da msica consiste so mais sons do que quaisquer barulhos e demais sons, as cores da pintura so de um colorido mais prprio at do que a mais vistosa colorao da natureza, a coluna do templo deixa o pedregoso manifestar seu ser no soerguer e sustentar mais propriamente do que no bloco de pedra no talhado. (2007, p.74)

    O de que feita a obra, sua matria-prima, aparece em seu prprio estar

    a. Na pintura, a cor mais que mera cor, na msica, o som no se apresenta como

    um rudo qualquer, na obra arquitetnica a pedra que compe o templo no mais

    aquela que est a na natureza como qualquer outra; na poesia, a composio na e

    pela palavra, deixa ver o modo mais essencial desta. A arte faz ver, torna visvel

    aquilo que por si mesmo se encobre, a terra: O que assim vem frente na obra

    justamente seu ser encerrado e seu encerrar-se, o que Heidegger denomina ser-

    terra. Terra na verdade no matria, mas aquilo desde onde tudo vem frente e

    para onde tudo se recolhe. (Ibidem, p.74)

    A obra de arte elabora a terra, deixando que a terra seja terra. A obra retira

    da matria o que h de excessivo, fazendo-a surgir. Quando este retirar respeita a

    matria, a terra aparece em seu ser, enquanto encobrimento. Isto no significa, no

    entanto, que a terra corresponda matria. H que manter afastadas daquilo que

    esta palavra [terra] aqui quer dizer tanto a representao de uma massa de matria

    sedimentada, como a representao meramente astronmica de um planeta

    (HEIDEGGER, 1998, p.39).

    A terra, aquilo de onde a obra de arte se institui e logo em seguida, faz

    emergir. Diferentemente do que acontece com o utenslio, no qual a matria se

    perde na serventia, na obra de arte ela se mostra como tal. No que a obra exiba o

    de qu feita, de um modo qualquer; mas por que na obra de arte a matria

    aparece enquanto tal. Heidegger, ao falar sobre o elaborar da terra na obra de arte,

    no se refere terra enquanto matria, pois a obra se pe de p na e pela terra que,

    por sua vez, aparece na obra arquitetnica no apenas enquanto simples rocha.

    Sobretudo, a terra mostra-se com toda fora como aquilo que emerge em meio ao

    templo que se erige sobre ela:

  • 43

    a de p, a obra arquitetnica repousa sobre o solo rochoso [...] A de p, a obra arquitetnica resiste tempestade furiosa que sobre ela se abate [...] S o brilho e o fulgor da rocha, que aparecem eles mesmos apenas graas ao sol, fazem, no entanto, aparecer br