Upload
dangdieu
View
234
Download
2
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
REA DE CONCENTRAO: GEOGRAFIA E GESTO DO TERRITRIO
A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)
JEANE MEDEIROS SILVA
UBERLNDIA/MG
2012
JEANE MEDEIROS SILVA
A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutora em Geografia.
rea de Concentrao: Geografia e Gesto do Territrio.
Orientadora: Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach.
Uberlndia/MG
INSTITUTO DE GEOGRAFIA
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
Jeane Medeiros Silva
A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)
_________________________________________________
Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach
Orientadora
_________________________________________________
Profa. Dra. Marsia Margarida Santiago Buitoni UERJ
Examinadora
_________________________________________________
Profa. Dra. Rogata Soares Del Gaudio UFMG
Examinadora
_________________________________________________
Prof. Dr. Dcio Gatti Jnior UFU
Examinador
_________________________________________________
Profa. Dra. Rita de Cssia Martins de Souza UFU
Examinadora
Data: 27/junho/2012
Resultado: Aprovada com Louvor
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.
S586b
2012
Silva, Jeane Medeiros, 1978-
A bibliografia didtica de geografia: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...) / Jeane Medeiros Silva.
2012.
394 f. : il.
Orientador: Vnia Rubia Farias Vlach.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Uberlndia, Progra-
ma de Ps-Graduao em Geografia.
Inclui bibliografia.
1. Geografia - Teses. 2. Geografia - Estudo e ensino - Brasil -
Histria - Teses. 3. Geografia - Bibliografia - Teses. I. Vlach, Vnia
Rubia Farias. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de
Ps-Graduao em Geografia. III. Ttulo.
CDU: 910.1
Aos meus pais, Geraldo e Herotildes, minha fora e meu refgio sempre.
AGRADECIMENTOS
divina fora, imensurvel, que me protege, guia e vela pelos meus atos, agradeo
pela f que me sustenta e me equilibra, nos dias difceis, nas alegrias da vida.
Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach, orientadora e amiga, que me acompanha h
doze anos, indicando-me os caminhos do ensino da Geografia, atenta, paciente e
generosa: sou sua indisfarvel discpula e levarei para sempre as marcas de sua
dedicao Geografia brasileira, transmitidas minha formao acadmica.
minha famlia, fora oculta que se desvela em zelo e apoio incomensurveis:
Geraldo e Herotildes, meus pais, Naama, minha irm, e Deds, meu cunhado.
Adrianna Silveira das Neves e ao Itamar Carlos de Jesus Jr., pela alegria do
convvio e pela fora nos dias difceis: vocs so muito especiais e eternos em meu
corao.
s amigas de f, sonhos e ousadias, Lvia Silva Sousa e Andria Mello Lac: toro
pela fora do futuro a nosso favor, nenhum plano em vo.
nia Franco de Novaes, amiga to ntegra, que me inspira verdadeiramente.
Aos amigos da infncia geogrfica: Clcio Jos Carrilho e Mrcia Andria Ferreira
Sousa pelo entusiasmo, humor e torcida, pessoas muito especiais para mim.
Roberta Afonso Vinhal Wagner e Elza Canuto, pelo incentivo sempre.
amiga Miyuki Kurokawa, pela torcida carinhosa, primeiro do outro lado da ponte do
Araguari e depois do outro lado do mundo mesmo.
Claudia Ftima Kuiawinski e Sofia Lorena Vargas Antezana, companheiras de
lida, sempre dispostas a ouvir e a ajudar.
Aos Profs. Drs. Adriany de vila melo Sampaio, Eucidio Pimenta Arruda e Srgio
Luiz Miranda, pelo acurado exame e contribuio por ocasio da qualificao da
tese.
RESUMO
Considerando que os livros didticos de Geografia so um dos lugares manifestos do discurso histrico-ideolgico do pensamento geogrfico no Brasil, instituinte, tambm, da histria desta cincia, o objetivo da tese foi compreender a bibliografia didtica do ensino de Geografia, bem como a histria e o pensamento deste ensino, entre as dcadas de 1810 e 1930, por meio da descrio da trajetria constitutiva e da anlise do livro didtico de Geografia e dos discursos dos seus sujeitos. Considerou-se a Anlise do Discurso, a Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo como subsdios terico-metodolgicos para apreender a bibliografia didtica de Geografia como objeto de pesquisa. A bibliografia sistematizou dados referentes a 276 ttulos, de 510 edies, escrita por 183 autores. As primeiras manifestaes da Geografia como disciplina independente surgiram no ensino superior, na organizao curricular de alguns dos primeiros cursos cientficos introduzidos no territrio brasileiro, no contexto da formao da Academia Real Militar (1810), pelo que a Geografia passou a ser estudada em aulas avulsas, marcando esse processo o surgimento de livros didticos no incio da dcada de 1820, at ser introduzida permanentemente no quadro curricular do Colgio Pedro II a partir de 1837. O ensino de Geografia, com intensidade variante, ao longo de sua trajetria, assumiu um papel cultural, um papel nacional e um papel cientfico no contexto da educao brasileira. Os discursos didticos de Geografia, desde seu surgimento, inscreveram-se na Geografia moderna em sua vertente clssica, emergente no sculo XVIII, assimilando a estrutura da Geografia Fsica, da Geografia Poltica e da Cosmografia como vertentes da sua organizao, modelo que, em fins do sculo XIX, comeou a apresentar sinais de esgotamento. Os anos 1920 foram um divisor de guas para o ensino de Geografia e para a bibliografia didtica dessa disciplina. O sopro da orientao moderna da Geografia, somada ao sentimento de cansao aferido pela Geografia descritiva, a reorientao dos objetivos do ensino contriburam para compor um novo quadro didtico para a Geografia. O exame da bibliografia permitiu acompanhar a formao e o desenvolvimento da Geografia como disciplina escolar. Demonstrou como o seu contedo transgrediu sua funo auxiliar, no ensino implcito desse saber, caracterstico aos perodos jesuticos e pombalino, at canalizar uma constituio nica, dando voz a uma disciplina formada, com lugar e responsabilidades na instituio escolar, entre o reinado e a primeira repblica. Foi possvel, ainda, examinar questes como autoria, autoridade, legitimao da disciplina, a relao dos textos com os currculos propostos, a questo das fontes e das tradues, posicionamentos frentes tradio, metodologia de ensino e formao dos professores, a questo da nacionalidade, e outras, percebidas enquanto regularidades na disperso do discurso didtico de Geografia.
Palavras-chave: Ensino de Geografia; Bibliografia didtica de Geografia; Geografia Descritiva; Currculo de Geografia; Discurso didtico.
ABSTRACT
Considering the geography textbooks as one of the places of historical and ideological discourse of geographical thought in Brazil, instituting the history of this science, the thesis aim to understand the didactic bibliography of geography, its history and thought, between 1810s and the 1930s, through the constitutive description of the trajectory and the analysis of the Geography textbook and the discourses of their subjects. It was considered Discourse Analysis, History of School Subjects and Curriculum History as theoretical-methodological to grasp the geography teaching for research subject. The bibliography systematized data on 276 books, 510 editions, written by 183 authors. The first manifestations of Geography discipline as independent discipline emerged an in superior education in the curriculum of some early science courses introduced in Brazil in the context of Royal Military Academy (1810) formation, so the geography began to be studied in independent courses, marking this process the emergence of textbooks in the early 1820s, being introduced permanently in the curriculum of the Colgio Pedro II from 1837. The geography teaching, with an intensity variation along its trajectory, assumed a cultural, a national and a scientific paper in the context of Brazilian education. The didactic discourses of Geography, since its inception, enrolled in Geography modern classic, emerging in the eighteenth century, understanding the structure of the Physical Geography, the Political Geography and Cosmography as aspects of its organization, a model which, at the end nineteenth century, began to show signs of exhaustion. The 1920s were a watershed for the teaching of Geography and the its didactic literature. The "modern lines" of geography, coupled with the feeling of fatigue as measured by descriptive geography, the reorientation of the education aims contribute to compose a new framework for teaching geography. The examination of the literature allowed the monitoring of the formation and development of geography as a school subject. Demonstrated its content violated its auxiliary function, implicit in the teaching of this knowledge to channel a unique composition, giving voice to a discipline formed, with place and responsibilities in the school between the kingdom and the first republic . It was also possible to examine issues such as authorship, authority, discipline legitimacy, the relationship of the texts with the proposed curriculum, the question of sources and translations, fronts positions tradition, the teaching methodology and teacher training, the question nationality, and others perceived as regularities in the dispersion of the geography didactic discourse.
Keywords: Teaching Geography; Bibliography teaching of Geography, Descriptive Geography, Geography Curriculum, teaching discourse.
SUMRIO
CONSIDERAES INICIAIS ............................................................................. 01
CAPTULO 1 UMA PERSPECTIVA TERICO-METODOLGICA PARA A
ANLISE DA BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: disciplina,
currculo e discurso .............................................................................................
12
1.1 A Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo: algumas
contribuies para uma histria da disciplina escolar de Geografia e de sua
literatura didtica ................................................................................................
13
1.2 Anlise do Discurso: fundamentos terico-metodolgicos da interpretao 25
1.2.1 O sujeito, a histria e a ideologia na anlise discursiva: a questo
da autoria .................................................................................................
28
1.2.2 O discurso, seus elementos e a formao do dizer didtico .......... 37
1.3 Procedimentos metodolgicos da pesquisa da Anlise do Discurso ........... 45
CAPTULO 2 DESCRIO DA BIBLIOGRAFIA DIDTICA (1814-1939):
discusso da trajetria constitutiva dos manuais de Geografia ..........................
49
2.1 A bibliografia didtica de Geografia .............................................................. 49
2.2 A autoria da bibliografia ................................................................................ 87
2.3 A editorao .................................................................................................. 93
2.4 O desenvolvimento fsico-grfico dos manuais didticos de Geografia ....... 108
CAPTULO 3 DO ENSINO IMPLCITO AO ENSINO EXPLCITO DA
GEOGRAFIA: prenncios da disciplina e do livro didtico nos movimentos
histricos anteriores independncia poltica do Brasil .....................................
121
3.1 A educao colonial: os primeiros indcios de uma educao geogrfica ... 125
3.2 A educao colonial: a influncia do isolacionismo ...................................... 136
3.3 Reinado (1808-1821): o surgimento dos primeiros indcios de uma
literatura didtica de Geografia ...........................................................................
139
3.3.1 Academia Real Militar do Rio de Janeiro (1810): a primeira
explicitao da Geografia como disciplina .................................................
144
3.4 Uma avaliao da posio da Geografia como atividade de ensino entre
1549 e 1821: prenncios da formao de uma disciplina geogrfica no Brasil .
161
CAPTULO 4 DELINEAMENTOS CONSTITUTIVOS DA GEOGRAFIA
ESCOLAR NO IMPRIO (1822-1889): o estabelecimento de uma disciplina e
de uma bibliografia didtica ................................................................................
169
4.1 A educao brasileira e o ensino de Geografia no perodo Imperial ............ 172
4.1.1 Da Assembleia Constituinte de 1823 ao Ato Adicional de 1834: o
entreposto da consolidao da Geografia como disciplina ........................
174
4.1.2 Currculo e ensino de Geografia no Imprio: o papel do Colgio
Pedro II .......................................................................................................
180
4.2 O currculo e a constituio da bibliografia didtica de Geografia no
perodo imperial ..................................................................................................
200
4.2.1 A tradio da Cosmografia, da Geografia Fsica e da Geografia
Poltica ........................................................................................................
201
4.2.2 A bibliografia didtica de Geografia no Imprio ................................. 205
4.2.3 A formao do currculo escolar de Geografia no Imprio ................ 212
CAPTULO 5 DELINEAMENTOS CONSTITUTIVOS DA GEOGRAFIA
ESCOLAR NA PRIMEIRA REPBLICA (1889-1930...): permanncias e
transformaes na disciplina e em sua bibliografia didtica ...............................
227
5.1 A educao brasileira na Repblica: o lugar da Geografia escolar e sua
proposta curricular ..............................................................................................
229
5.2 A constituio da bibliografia didtica de Geografia no perodo republicano 252
5.2.1 A bibliografia didtica de Geografia na Repblica ............................ 253
5.2.2 A contribuio de Said Ali: o significado da sua proposta de
regionalizao ............................................................................................
257
5.2.3 A contribuio de Delgado de Carvalho: a orientao moderna da
Geografia e sua relao com o livro didtico .............................................
260
5.2.4 Antonio Firmino Proena: sntese das transformaes no ensino de
Geografia ....................................................................................................
265
5.2.5 Fernando Antnio Raja Gabaglia: o ensino de Geografia por
prticas .......................................................................................................
268
CAPTULO 6 DISCURSOS NO LIVRO DIDTICO DE GEOGRAFIA:
anlises de elementos constitutivos da bibliografia e do ensino geogrfico ......
272
6.1 O discurso da designao das obras ........................................................... 275
6.2 A formao do discurso didtico de Geografia: estabelecimento da
Geografia descritiva ............................................................................................
287
6.3 Prefcios, prlogos, notas de advertncia, apresentaes e imprensa: os
discursos do entorno ..........................................................................................
300
6.3.1 Estabelecimento da autoria e da obra: vozes constitutivas dos
sujeitos e dos discursos didticos ..............................................................
301
6.3.2 A identidade e a legitimidade da disciplina ........................................ 310
6.3.3 Os sujeitos da recepo enunciativa ................................................. 314
6.3.4 A relao do discurso didtico de Geografia com os currculos e
programas ..................................................................................................
315
6.3.5 Enfrentamentos das tradues, fontes e lacunas do discurso
didtico de Geografia .................................................................................
317
6.3.6 Discursos emergentes como oposio tradio da bibliografia
didtica de Geografia .................................................................................
325
6.3.7 Enunciados ao professor: instrues e recomendaes dos autores
aos docentes de Geografia ........................................................................
329
6.3.8 Posies constitutivas da bibliografia didtica de Geografia quanto
ao nacionalismo ..........................................................................................
334
6.4 Livro escolar de Geografia e representaes sobre o ensino geogrfico no
perodo em questo ............................................................................................
340
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 351
REFERNCIAS .................................................................................................. 366
APNDICE ......................................................................................................... 389
01 obras de importncia direta para a bibliografia didtica de geografia
brasileira .............................................................................................................
390
LISTA DE FIGURAS
01 Atos de controle e advertncia contra a pirataria de obras didticas em
exemplares de Henrique Martins (1896), Carlos Ges (1918) e Jos Theodoro
de Souza Lobo (1927) ........................................................................................
85
02 Distribuio geogrfica da produo da bibliografia didtica de Geografia
no Brasil (1814-1939) .........................................................................................
100
03 Distribuio geogrfica da produo da bibliografia didtica na Europa
(1814-1939) ........................................................................................................
102
04 Baptiste Louis Garnier (1823-1893), pioneiro das atividades editoriais
para o livro didtico brasileiro e Francisco Alves de Oliveira (1848-1917), que
consolidou o mercado das publicaes didticas no Brasil ................................
107
05 Encadernaes tpicas da bibliografia didtica de Geografia at fins do
sculo XIX ...........................................................................................................
110
06 Capa da 5. ed. da Chorographia do Brasil, de Henrique Martins (1896): a
identificao da obra desloca-se da lombada e da folha de rosto para a capa
frontal ..................................................................................................................
112
07 Reproduo da folha de rosto na capa do exemplar de 1902 de A Terra
illustrada. Geographia universal, physica, ethnographica, poltica e econmica
das cinco..., de Frere Ignace Chaput (F.I.C.) .....................................................
113
08 Geographia Elementar, de A. de Rezende Martins exemplar de 1926:
das primeiras obras em formato panormico .....................................................
114
09 Ilustraes e um dos mapas coloridos da obra Curso methodico de
Geographia physica, politica, histrica, commercial e astronomica, composto
para uso das escolas brazileiras, de Lacerda, 1887 ..........................................
116
10 Capa da obra Geographia Elementar, de Arthur Thir ............................... 118
11 Algumas pginas internas da obra Geographia Elementar, de Arthur
Thir ....................................................................................................................
118
12 Fotografias ilustrando a obra Lies de Chorographia do Brasil, de
Horacio Scrosoppi ..............................................................................................
119
13 Esquema da explicao para o processo de Gormao das chuvas
proposto por Gabaglia (1930) .............................................................................
270
LISTA DE GRFICOS
01 Produo da bibliografia didtica de Geografia por dcada (1814-1939) .. 86
02 Distribuio da produo de livros didticos por localidade (1814-1939) .. 99
LISTA DE QUADROS
01 Bibliografia didtica brasileira de Geografia (1814-1939) ........................... 51
02 Produo por autoria, para autores com mais de dois ttulos de manuais
didticos de Geografia (1814-1939) ...................................................................
91
03 Descrio das casas publicadoras da bibliografia didtica de Geografia
(1814-1939) ........................................................................................................
94
04 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1838 .................................................................................
188
05 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1841 .................................................................................
189
06 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1850 .................................................................................
191
07 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1855 .................................................................................
192
08 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1857 .................................................................................
194
09 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1862 .................................................................................
195
10 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1870 .................................................................................
196
11 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1876 .................................................................................
197
12 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1878 .................................................................................
197
13 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na
vigncia do Imprio 1881 .................................................................................
198
14 Organizao curricular da obra Compendio de Geographia Universal,
rezumido de diversos authores e offerecido a mocidade brazileira, de Bazilio
Quaresma Torreo, 1824 ...................................................................................
213
15 Organizao curricular da obra Corografia, ou abreviada historia
geographica do imperio do Brasil..., de Domingos Jose Antonio Rebello, 1829
216
16 Plataforma curricular do Colgio Pedro II em 1850 ensino secundrio ... 217
17 Plataforma curricular executada na segunda e quarta edies de
Pompo Brasil ....................................................................................................
220
18 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, no Colgio Pedro II, na
vigncia do Decreto n. 8051, de 25 de maro de 1881 ......................................
223
19 Plataforma curricular executada no Curso methodico de Geographia, de
Joaquim Maria de Lacerda, dcada de 1880 .....................................................
225
20 Plataforma curricular executada nos Elementos de Chorographia do
Brazil, de Henrique Martins, dcada de 1880 .....................................................
225
21 Constituio da Grade Curricular de Geografia, de acordo com o Decreto
n. 981, de 8 de novembro de 1890, para a instruo primria e secundria do
Distrito Federal, Reforma Benjamim Constant ...................................................
232
22 Ensino Primrio: Programa de Geografia na vigncia da Reforma
Benjamim Constant (1890-1901) ........................................................................
234
23 Ensino Secundrio: Programa de Geografia na vigncia da Reforma
Benjamim Constant (1890-1901) ........................................................................
235
24 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de
acordo com o Decreto n. 3.914, de 23 de janeiro de 1901, Reforma Epitcio
Pessoa ................................................................................................................
237
25 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de
acordo com o Decreto n 8.660, de 5 de abril de 1911, Reforma Rivadvia
Corra .................................................................................................................
239
26 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, Colgio Pedro II, na
vigncia da Reforma Rivadvia Corra (1911-1915) .........................................
240
27 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de
acordo com o Decreto n. 11.530, de 18 de maro de 1915, Art. 167, Reforma
Carlos Maximiliano .............................................................................................
242
28 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de
acordo com o Decreto n 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925, Art. 47,
Reforma Luiz Alves Rocha Vaz ..........................................................................
243
29 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, Colgio Pedro II, na
vigncia da Reforma Luiz Alves-Rocha Vaz (1925-1931) ..................................
244
30 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de
acordo com o Decreto n 19.890, de 18 de abril de 1931, Reforma Francisco
Campos ..............................................................................................................
249
31 Programa de Geografia na vigncia da Reforma Francisco Campos
(1931-1937) para o Curso Fundamental ............................................................
251
32 Programa de Geografia na vigncia da Reforma Francisco Campos
(1931-1937) para o curso secundrio .................................................................
251
33 Exemplos enunciados de sujeitos-destino da bibliografia .......................... 281
LISTA DE TABELAS
01 Populao e educao no Brasil 1820-1950 ........................................... 171
CONSIDERAES INICIAIS
O Ensino de Geografia foi decisivo para a formao de um discurso cientfico
geogrfico no Brasil, e uma prtica anterior sua institucionalizao em sociedades
ou na academia: esse tem sido um consenso entre os que estudam a histria e o
pensamento do ensino dessa disciplina. Os objetivos da Geografia acadmica, com
tais razes, tm fundamentos que permeiam desde a estruturao territorial das
atividades econmicas nacionais at o processo de constituio e consolidao das
prprias regies nacionais, unificados aos interesses sociais, econmicos e polticos
organizados em construes discursivas manifestas em prticas artsticas,
miditicas, escolares, programas governamentais, entre outros, elaborando corpos
ideolgicos que sustentaram (e sustentam) essa orientao. Dessa forma, considero
a educao geogrfica como um dos pilares dos discursos sobre o territrio, e,
nessas circunstncias, considero os manuais escolares como um dos pilares
tradicionais desta educao e, como contribuio da presente pesquisa, considero-
os parte importante da gnese de um pensamento e prtica da Geografia, bem
como partcipe da histria da Geografia e do seu ensino no Brasil.
Esses livros, ou o seu desenvolvimento e expresso, so um indicador
cultural importante e, como objetivos discursivos, abrigam processos sobre a
formao de sujeitos, efeitos de sentido e efeitos ideolgicos, sob orientao de
alguma discursividade geogrfica, qual seja ela.
No obstante, o gnero didtico, por suas contradies e, principalmente,
por estar sob a tica de um produto cultural menor na linha dos gneros que
documentam a pesquisa acadmica, foi desconsiderado por muito tempo enquanto
objeto de estudo. Os livros didticos de Geografia, a propsito, apenas em fins do
sculo XX, mais precisamente a partir da dcada de 1980, passaram a ser alvo de
artigos, dissertaes de mestrado e teses de doutorado (PINHEIRO, 2005a; 2005b;
SILVA, 2006). Anteriormente a essa dcada, so poucas as contribuies nesse
sentido. Considerando essas pesquisas, indiscutvel o vnculo entre a produo
dos livros didticos de Geografia e o discurso institucionalizado dessa cincia: sem
aprofundar no mrito da questo, posso afirmar que as denominadas Geografia
Tradicional, Geografia(s) Crtica(s), Geografia Humanstica principalmente estas
tiveram/tm seus professores e autores didticos (Cf. SILVA, 2006). Mas quais
seriam essas relaes anteriormente institucionalizao brasileira da Geografia?
De onde enunciavam aqueles autores? Quais formaes discursivas e ideolgicas
orientavam suas prticas enunciativas? De quem eram essas vozes que
conformavam um discurso pedaggico para a Geografia? Que obras foram aquelas,
e quais suas marcas na histria e no pensamento da Geografia e do seu ensino?
Esta pesquisa defende a tese de que os livros didticos de Geografia so
um dos lugares manifestos do discurso histrico-ideolgico do pensamento
geogrfico no Brasil, instituinte, tambm, de sua histria, e, por isso, prope estudar
a constituio do discurso escolar da Geografia por meio de sua bibliografia didtica,
identificando os autores pioneiros, suas instncias de interlocuo e as contribuies
identificveis e manifestas nesses objetos no que tange formao da Histria e do
Pensamento Geogrfico em um perodo especfico, isto , aquele que antecede
institucionalizao da Geografia acadmica no Brasil, na dcada de 1930,
procurando, em paralelo, perceber a construo desse discurso enquanto gnero
bibliogrfico: um discurso didtico de Geografia. O perodo de abordagem, portanto,
estende-se desde o tempo dos jesutas, perpassando pelos perodos pombalino e
joanino at o Imprio (1822-1889), quando a educao brasileira, em geral, e a de
Geografia, em especfico, comea a ser organizada, alcanando as transformaes
que acompanharam o estabelecimento da Repblica (1889) at o surgimento da
Geografia acadmica no pas, quando a Educao brasileira, j destituda da Igreja
Catlica como mentora do ensino, e, sob orientao do Estado, compartilha com a
Academia (ou com a classe intelectual) a regulamentao do ensino e, por
conseguinte, da produo dos livros didticos, interveno que atinge igualmente os
manuais de Geografia.
Portanto, concentro meu objeto de pesquisa na bibliografia didtica aqui
sistematizada, enveredando pela formao do ensino de Geografia, no que respeita
constituio da disciplina, formao do currculo, perspectivas sobre esse ensino,
e, sobretudo, o discurso do e sobre o livro didtico de Geografia.
O livro didtico de Geografia, em geral, tendo sua relevncia denegada pela
academia, quando foi, enfim, objeto de estudo, apenas alguns de seus aspectos
despertaram o interesse da pesquisa: as polticas pblicas, a ideologia (ainda que
em uma viso marxista, base epistemolgica das Geografias Crticas, perspectiva
que fez essas primeiras leituras do livro didtico), a metodologia de ensino, no
sendo explorado, na totalidade, seu papel histrico e epistemolgico. Apesar de
contraditrio, o livro didtico um produto complexo, com ampla margem para a
investigao cientfica, sendo uma lacuna a produo de perspectivas histricas que
compreendam e esclaream aspectos que engendram o surgimento e o
desenvolvimento da Geografia e do seu ensino no Brasil.
Considerando que os textos didticos de Geografia (e, por conseguinte, o
ensino dessa disciplina) anteciparam a institucionalizao acadmica da cincia, e
muitos de seus debates, inclusive o da orientao moderna (Said Ali e Delgado de
Carvalho, dentre outros, que sero examinados nessa pesquisa, so exemplos
desse processo, sendo esta expresso de Delgado), verifica-se a necessidade de se
avanar no debate sobre os discursos materializados nessa bibliografia, mesmo
porque o livro didtico, em si, foi das primeiras formas de institucionalizao do
discurso geogrfico. Em pesquisa anterior, em nvel de dissertao de mestrado1,
identifiquei um significativo desconhecimento sobre a histria do livro didtico de
Geografia no Brasil, particularmente suas relaes com a academia e com outras
fontes de produo da pesquisa e do conhecimento geogrfico, sobretudo um
desconhecimento sobre o perodo delimitado para esta pesquisa, dado que as
pesquisas existentes sobre o livro didtico se concentram prioritariamente na
produo contempornea.
Esse desconhecimento leva a prevalecer lugares comuns, simplistas e
simplificadores ao referenciar o ensino de Geografia e os livros didticos do perodo
em recorte: a noo de que existiriam poucos e raros livros de Geografia, a
prevalncia de textos importados, o discurso apoltico, no cientfico, so algumas
das redues que se engendram no desconhecimento histrico do livro didtico de
Geografia.
O preenchimento de tais lacunas anima o debate do ensino de Geografia e
subsidia a formao de professores desta disciplina, pois auxilia o esclarecimento de
um passado ainda sem luz apropriada, alocado na penumbra que antecede um
1 SILVA, Jeane Medeiros. A constituio de sentidos polticos em livros didticos de geografia
na tica da Anlise do Discurso. 2006. 275 f. Dissertao (Mestrado em Geografia) Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia, 2006.
perodo bem mais conhecido o da Histria do Pensamento Geogrfico e do ensino
dessa cincia aps a institucionalizao acadmica da cincia geogrfica no
Brasil, embora seja parte constituinte da realidade atual. Sobretudo, contribui para
demover certas anlises destitudas de compreenso do perodo em foco, tais como
as mencionadas acima, o que leva muitos pesquisadores a fazer avaliaes
errneas e anacrnicas do ensino, mtodos e materiais daqueles anos, tornando-as
um consenso amplamente reproduzido, de especial maneira no mbito da formao
de professores de Geografia.
O contexto das pesquisas do Ensino de Geografia, nesse incio de milnio,
propcio valorizao do livro didtico como objeto de pesquisa e fonte da produo
de conhecimentos: a distncia entre livro didtico de Geografia e a pesquisa
acadmica tende a ser reduzida, pelo menos em vista da crescente quantidade, e
qualidade, de trabalhos sobre o tema a partir do final da dcada de 1990. A
propsito, em se tratando de uma atividade com linguagem(ns) autoria, escrita,
formao bibliogrfica... oportuna a utilizao da Anlise do Discurso como
sustentao terico-metodolgica de uma compreenso do livro didtico de
Geografia, aliada a algumas perspectivas da Histria das Disciplinas Escolares e da
Histria do Currculo enquanto sustentao para a construo de um corpo histrico
para anlise. A linguagem por si s j contorna com relevncia a proposta, uma vez
que, com a Anlise do Discurso, inova-se a questo da interpretao, que perpassa
pelas prticas de produo e recepo textuais, fazendo desse campo de estudo
uma contribuio vigorosa para o debate da educao geogrfica quanto
considerao de relaes que atravessam a linguagem, a Histria, a ideologia, as
condies de produo discursiva e, ainda, a constituio dos sujeitos e dos
sentidos que entrecruzam a tessitura da Histria da Geografia no Brasil.
Por objetivo geral, proponho compreender a bibliografia didtica do ensino
de Geografia, bem como a histria e o pensamento deste ensino, entre as dcadas
de 1810 e 1930, por meio da descrio de sua trajetria constitutiva e da anlise dos
discursos dos seus sujeitos.
As etapas de efetivao dessa proposta objetivam, especificamente:
a) Buscar elementos tericos e metodolgicos que auxiliem a
compreenso da disciplina e da bibliografia didtica de Geografia,
sobretudo na Anlise do Discurso de linha francesa;
b) Reunir referncias da bibliografia didtica de Geografia no perodo
entre a refuncionalizao da Colnia brasileira para sediar o Reino
portugus at o momento contemporneo institucionalizao da
Geografia acadmica no Brasil, sistematizando autores e obras que
subsidiaram o ensino de Geografia brasileiro.
c) Compreender historicamente a formao e a consolidao da
disciplina nos movimentos histricos que a definiram, procurando
perceber os reflexos desses movimentos na bibliografia didtica de
Geografia;
d) Analisar elementos constitutivos do discurso instituinte da
bibliografia sistematizada na pesquisa, identificando posies
autorais, discursos e efeitos de sentido que esbocem, a partir dela,
os lugares da Histria do Ensino de Geografia brasileiro.
Esse percurso agrega significados Geografia brasileira e ao seu ensino,
alm de ressignificar o livro didtico de Geografia e seus autores como objeto de
estudo e documento das prticas geogrficas no Brasil.
Para conduzir a proposta de conhecer o pensamento e o ensino geogrfico
por meio dos sujeitos, sentidos e fundamentos ideolgicos que, paulatinamente,
tomam forma de um gnero integrante do discurso geogrfico, constituindo um
acervo de obras e de referncias didticas, utilizo as tcnicas da pesquisa
bibliogrfica como ponto inicial para vislumbrar, de acordo com as possibilidades da
pesquisa, a histria do livro didtico de Geografia de 1814 at o final da dcada de
1930. Defino este perodo tomando como marco inicial a publicao da obra
Elementos de Astronomia para uso dos alumnos da Academia Real Militar, de
Manoel Ferreira de Arajo Magalhes, publicada no Rio de Janeiro em 1814, pela
Impresso Rgia. O perodo de abordagem encerra-se sem limite preciso na dcada
de 1930, quando a Geografia foi institucionalizada no Brasil, de acordo com o
modelo de produo e formao que perdura at a atualidade, afirmando alguns dos
vnculos entre a academia e a produo dos manuais didticos de Geografia, mas
sem necessariamente aprofundar a questo dessa institucionalizao nesse
momento da pesquisa. Apesar de limitar a sistematizao ao ano de 1939, algumas
edies de anos anteriores so reeditadas nas dcadas seguintes, registros
contabilizados na pesquisa, pois o critrio para a incluso de um ttulo na relao foi
o ano da primeira edio, ou edio mais antiga identificada.
Em linhas gerais, trata-se de uma pesquisa exploratria, visando
proporcionar a discusso de um problema a produo da literatura didtica de
Geografia no perodo anterior institucionalizao da cincia geogrfica um tema
ainda pouco conhecido entre os historiadores do pensamento e do ensino
geogrfico.
A pesquisa, portanto, foi iniciada com um exaustivo levantamento de
referncias e produo de fichas para localizao, acesso ou obteno das fontes
primrias ou de dados a elas relacionados. Foram consultados catlogos de diversas
bibliotecas de universidades brasileiras, bem como catlogos virtuais da Bibliotque
Nationale de France, o Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros (1810 a
2005) LIVRES, o Acervo Geral e Acervo de Obras Raras da Fundao Biblioteca
Nacional (Rio de Janeiro, RJ) e da Biblioteca Arthur Viana (Belm, PA). Consultei,
tambm, catlogos e extratos de catlogos de editoras, catlogos de exposies
geogrfica e pedaggica, alm de consultar acervos particulares e obras de
referncia bibliogrfica (SILVA, 1870; BLAKE, 1883; 1893; 1895; 1898; 1899; 1900;
1903; GARRAUX, 1962; MORAES, 1969). Dentre os indicadores de busca,
destacaram-se os termos geographia2, chorographia, compendio, cosmographia,
geografia, geographico, geogrfico, geogrfica, geographica, corographia,
corografia. Seguiram-se o levantamento de critrios histricos para classificao dos
2 O perodo em abordagem nesta tese passou por diversas formas de ortografia da lngua
portuguesa. Diante disso, as transcries diretas sero sempre de acordo com a ortografia vigente na fixao do texto poca, exceo de alguma transcrio cujo acesso obtido j constasse com uma atualizao. Os nomes dos autores igualmente tero observados a ortografia corrente poca de sua existncia ou registro.
grupos de referncias, seleo e anlise destas, notadamente os perodos Jesutico,
Pombalino, do Reinado, Imperial e Republicano, com subdivises que se fizeram
necessrias. Os principais perodos histricos do territrio brasileiro ficam como
expresso mxima do recorte, pois so responsveis por transformaes
significativas na educao brasileira, que diferenciam um perodo de outro.
Esta etapa inicial permitiu a identificao de ttulos, autores, anos e locais de
publicao, definindo um panorama histrico-descritivo que permite entrever o
surgimento e o desenvolvimento dos manuais de Geografia e do ensino desta. A
composio de um panorama bibliogrfico de obras e autores constituiu o arcabouo
de fontes para construo histrica e anlise.
Na delimitao da pesquisa no foram inscritos o levantamento, a anlise ou
a historicizao de atlas, dicionrios, cartas, globos3, literatura para o ensino cvico,
literatura pedaggica e demais materiais dessa linha que, embora tenham feito a
histria da disciplina Geografia, constituindo sua literatura, considero produtos
complementares e de referncia, sem a abrangncia que os livros escolares
propriamente tm. fato inegvel que esses materiais subsidiaram o ensino de
Geografia, apresentando vnculos diretos com esse ensino, mas no so oportunos
a este trabalho, neste momento, pela necessidade de delimitao e controle da
extenso da pesquisa de acordo com a estrutura de uma tese: apenas me utilizei
dos mesmos marginalmente, por necessidade da anlise.
Enganos e omisses so inevitveis em trabalhos com bibliografia,
sobretudo em perodos com tempo dilatado em dcadas e, sobretudo, dcadas e
sculos distantes da atualidade. A disperso eleva os objetos culturais categoria
de raros ou desaparecidos, sustendo-se em seus contextos pelo valor e impacto
histrico que tiveram uma condio que o tempo pode lembrar ou esquecer. De
acordo com as condies da pesquisa, pretendi elaborar uma base ampla, a mais
completa, de forma que a pesquisa dispe de uma bibliografia, dentre as possveis,
para anlise.
Nesta tese, denomino por bibliografia didtica de Geografia o acervo de
documentos em anlise direta ou indireta dado que nem todos os ttulos so
3 Uma histria da bibliografia didtica na perspectiva cartogrfica por ser encontrada na tese A
cartografia nos livros didticos e programas oficiais no perodo de 1824 a 2002: contribuies para a histria da geografia escolar no Brasil, de Levon Boligian (2010).
acessveis. Atualmente, tratamos os objetos em estudo pelo termo livro didtico
para os quais genericamente empregam-se com regularidade, enquanto sinnimos,
obra didtica, livro-texto, manual didtico, compndio. Essas designaes so
historicamente constitudas: compndio, por exemplo, foram os nomes gerais desses
livros, em boa parte do sculo XIX, dada a concepo e a metodologia de
elaborao, nomeando um conjunto de conhecimentos relativos a uma dada rea do
saber, dentre os considerados mais importantes, em forma de livro, compilados ou
no. Livro-texto j uma denominao mais recente, bem como livro didtico.
Podem ser compreendidos como livros se forem impressos, encadernados,
legalmente catalogados, publicados4. Por apostilas, se a divulgao do texto sofre
variaes em relao ao padro livro.
Esses materiais, nessa pesquisa, so tratados, quando em conjunto, por
duas denominaes: literatura didtica e bibliografia didtica de Geografia.
Por bibliografia didtica, compreendo a sistematizao, possvel ao
alcance dessa pesquisa, do acervo cujas fontes tenham sido identificadas,
acessadas ou adquiridas; referem-se tambm, consequentemente, sistematizao
de dados como indicao de autoria, titulao e subtitulao, edio, local e casa de
publicao, ano de publicao, quantidade de pginas impressas e registro de
outros dados complementares caracterizao formal do livro, tais como colees,
volumes, traduo, adaptao, reviso, ampliao. Para o levantamento das obras
em estudo, porm, os dados foram organizados em um levantamento bibliogrfico
no qual constaram as primeiras edies ou a edio mais antiga que pude localizar,
seguindo uma ordem cronolgica, conforme pode ser visto no Quadro Relao geral
de ttulos por autor - ndice por data de primeiras e demais edies, ou edio mais
antiga identificada, apresentada no Captulo 2. O levantamento foi organizado para
que a entrada de cada ttulo registre, cronologicamente, todas as edies
identificadas da obra. Esses documentos apresentam especificidades anlise e
construo histrica da pesquisa, conforme abordo apropriadamente no desenvolver
das descries e anlises.
4 Publicao enquanto manifestao notria de uma obra, seja pelo uso (aquisio, leitura, adoo
institucional), seja pela visibilidade, mesmo quando no institucional, pelas finalidades e direcionamento ao pblico, pela integrao a acervos, catlogos, bem como pela citao em obras de referncias.
Por literatura didtica de Geografia, entendo todos os aspectos que
extrapolam as dimenses fsicas de uma obra ou da bibliografia, sobretudo os
aspectos terico-metodolgicos, polticos, sociais, ideolgicos e outros que
apresentam continuidades, rupturas, conflitos, contradies, mas se desenvolvem na
composio de uma rea perfazendo uma formao discursiva em torno desses
objetos. Nessa categoria, tambm so inclusos atlas, dicionrios, cartas, globos,
literatura para o ensino cvico, literatura pedaggica e demais materiais dessa linha
que, conforme demonstrado, embora sejam parte integrante da histria da disciplina
Geografia, no esto em foco nesta pesquisa.
O corpus est constitudo, assim, pela bibliografia didtica na qual se
encontram majoritariamente livros compendiados, traduzidos, adaptados, produzidos
ou importados para o ensino de Geografia brasileiro. Marginalmente, quando
julgados importantes para a anlise, outros documentos, de outros gneros, so
tomados como parte do corpus e como unidade de anlise, como j mencionei.
A propsito da bibliografia e da literatura didticas de Geografia, considero, a
partir de uma viso geral do corpus e do seu contexto, que h um ensino explcito e
um ensino implcito de Geografia. O ensino explcito de Geografia compreende os
programas e currculos elaborados para o ensino e aprendizagem exclusivo desta
disciplina Geografia, com os materiais culturais produzidos para esse fim, tais como
as obras da bibliografia. O ensino implcito de Geografia compreende, por sua vez, o
aprendizado e o ensino incidental de contedos de Geografia em outros programas,
currculos e disciplinas. Para exemplificar, os livros de leitura, os livros do ensino
cvico, os livros de Histria esto todos eivados com discursos geogrficos, pois as
formaes discursivas que justificaram e promoveram o ensino de Geografia em
muito extrapolam os interesses desta disciplina.
A pesquisa inicia-se com a construo de uma perspectiva terica,
perpassando pela construo histrica da disciplina e dos manuais de Geografia, at
alcanar uma sntese analtica do perodo delimitado.
Por conseguinte, no primeiro captulo, Uma perspectiva terico-metodolgica
para a anlise da bibliografia didtica de Geografia: disciplina, currculo e discurso,
apresento discusses relativas Anlise do Discurso e a algumas perspectivas da
Histria das Disciplinas Escolares e da Histria do Currculo, no que tocam de perto
ao estudo do objeto proposto e aos objetivos lanados. No se trata propriamente de
fazer uma histria das disciplinas em geral, ou do livro didtico como um todo, o que
no objetivo da pesquisa, mas de buscar elementos que auxiliem a compreenso
da bibliografia didtica de Geografia, tendo na Anlise do Discurso elementos
conceituais e metodolgicos que fundamentem essa compreenso. Procuro,
portanto, construir uma perspectiva para compreender os documentos em anlise
como bibliografia especfica do ensino da Geografia e partcipes do processo de
constituio discursiva do gnero didtico.
No segundo captulo, Descrio da bibliografia didtica (1814-1939):
discusso da trajetria constitutiva dos manuais de Geografia, apresento os dados
bibliogrficos, em sua sistematizao e discuto aspectos relacionados constituio
do acervo, tais como autoria, editorao, apresentao grfica, dentre outros.
No terceiro captulo, Do ensino implcito ao ensino explcito da Geografia:
prenncios da disciplina e do livro didtico nos movimentos histricos anteriores
independncia poltica do Brasil, percebo, na disperso do ensino jesutico,
pombalino e joanino, as razes da disciplina e da bibliografia didtica de Geografia,
com particular ateno Academia Real Militar (1810), instituio integrante do
movimento de introduo do pensamento cientfico no Brasil, e marco no ensino de
Geografia brasileiro.
No quarto captulo, Delineamentos constitutivos da Geografia escolar no
Imprio (1822-1889): o estabelecimento de uma disciplina e de uma bibliografia
didtica, demonstro o surgimento da Geografia como disciplina consolidada na
educao brasileira, bem como seu desenvolvimento curricular, aliando essa
trajetria a um crescente mercado editorial, que ser aliado das nascentes
instituies escolares, sobretudo do ensino secundrio, ambientando a consolidao
da Geografia como disciplina escolar e a constituio de um acervo bibliogrfico
desta disciplina, na vigncia do Imprio.
No quinto captulo, Delineamentos constitutivos da Geografia Escolar na
Primeira Repblica (1889-1930...): permanncias e transformaes na disciplina e
em sua bibliografia didtica, examino o debate e os atos que promovem a
transformao do fazer e modo de ser da disciplina geogrfica e da sua bibligorafia
durante a vigncia da Primeira Repblica, em fins do sculo XIX at a dcada de
1930, tempo em que a Geografia est constituida e institucionalizada, e incorporada
de certa tradio quanto a uma literatura didtica.
No ltimo captulo, Discursos no livro didtico de Geografia: anlises de
elementos constitutivos da bibliografia e do ensino geogrfico, procuro analisar as
circunstncias e vnculos constitutivos da bibliografia, observando, em seu discurso,
como os sujeitos autores se impem no cenrio educacional, aspectos da
legitimao da disciplina, a relao com as propostas curriculares, o posicionamento
da bibliografia em relao a sua prpria tradio, o posicionamento com suas fontes,
com os professores, com as formaes ideolgicas.
Em um aspecto geral, a trajetria delineada pela pesquisa demonstrou uma
atividade intensa, embora fragmentada, que participou da delineao e afirmao da
Geografia como disciplina escolar, respondendo s necessidades impostas pela
educao brasileira, reagindo s crticas colocadas pela intelectualidade brasileira,
de forma a compor um material extremamente rico para a compreenso da histria
da Geografia escolar e mesmo do pensamento geogrfico brasileiro.
CAPTULO 1
UMA PERSPECTIVA TERICO-METODOLGICA PARA A ANLISE
DA BIBLIOGRAFIA/DIDTICA DE GEOGRAFIA: disciplina, currculo e discurso
Para alcance dos objetivos propostos nesta tese, elejo um corpus de anlise
os manuais de Geografia, examinados a partir do discurso didtico desta
disciplina, o que um recorte de pesquisa, isso porque o discurso didtico da
Geografia se enuncia em diferentes materialidades: na produo do professor
(resumos, anotaes, relatrios, fala...), na produo dos alunos, na produo do
Estado (legislao, relatrios, programas...), nos manuais didticos, na cincia
geogrfica, na imprensa e em tantas outras instncias, alm da literatura didtica de
Geografia propriamente dita. Dessa forma, a literatura do ensino de Geografia, por
meio da bibliografia suscitada, colocada como objeto de estudo e, a partir dele,
incorporar-se- outras materialidades que se fizerem necessrias para a construo
e a anlise de uma histria do livro e da disciplina escolar da Geografia, dentre
tantas possveis.
A Geografia que se ensina tem uma histria e um desenvolvimento
peculiares que atravessam sua constituio e sua institucionalizao. Nesta
pesquisa, tomo a Anlise do Discurso como fundamentao terico-metodolgica
para compreender este percurso, atravs dos livros didticos como materialidades
discursivas deste ensino. Para isso, neste captulo, procuro compreender a Anlise
do Discurso a partir da questo do sujeito e do discurso, especificamente o dos
sujeitos autores e o didtico.
A Anlise do Discurso, como o prprio nome enuncia, procede por meio da
anlise como mtodo e do discurso como teorizao. Ambos, anlise e discurso,
transitam em uma circunscrio histrica; neste caso, a histria da disciplina de
Geografia. Para atingir esse enquadramento terico, parto de algumas das
contribuies da Histria das Disciplinas Escolares e da Histria do Currculo como
definio de uma perspectiva para compreender a histria do livro didtico de
Geografia, no bojo da qual a pesquisa se prope a compreender aspectos das
formaes discursivas e ideolgicas que acompanham a emergncia e o
desenvolvimento desta disciplina no sculo XIX at a dcada de 1930.
1.1 A Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo: algumas contribuies para uma histria da disciplina escolar de Geografia e de sua literatura didtica
A anlise discursiva leva-nos a identificar e mover-se nas circuntncias da
histria, onde os discursos se filiam e produzem sentido. A literatura didtica, como
as que compem o objeto desta pesquisa, s tem existncia na vida e dinmica de
uma disciplina. Organizar e analisar uma bibliografia do ensino de Geografia, dessa
forma, acompanhar o fazer histrico da disciplina de Geografia. No campo da
Educao, duas reas de estudo, a Histria das Disciplinas Escolares5 e a Histria
do Currculo, tm contribuies para auxiliar a construo de uma perspectiva
histrica do Ensino de Geografia, quanto sua formao disciplinar, o que inclui
uma compreenso do desenvolvimento curricular e quanto formao dos seus
manuais didticos.
Bittencourt (2008), ao abordar o problema do saber escolar, no mbito da
Histria das Disciplinas Escolares, lembra que o mesmo se estrutura em uma trade:
o saber a ser ensinado, o saber ensinado e o saber apreendido. O perodo
delineado para esta pesquisa, historicamente distante dos dias atuais, dinamizado
em geraes j extintas, apresenta dificuldades documentais para o estudo do saber
ensinado e do saber apreendido, sem inteireza de fatos e repercusses, de modo
que historicizar a disciplina precisa recorrer a meios indiretos para promover e
construir conhecimentos. O sculo XIX no apresenta fartos registros sobre o ensino
de Geografia quanto aos aspectos dos saberes ensinados e apreendidos, quando
ainda era iniciante, no contexto geral da educao brasileira, a imprensa pedaggica
e algo que se assemelhasse produo de saberes acadmicos sobre a educao
5 Histria das Disciplinas Curriculares, Histria das Matrias Escolares, Histria dos Saberes
Escolares e Histrias dos Contedos Escolares so outros campos com afinidades, na Educao, Histria das Disciplinas Escolares (SOUZA JNIOR; GALVO, 2005).
geogrfica. Registros oficiais, como relatrios inerentes vida burocrtica do Estado,
obras memorialistas, a literatura ficcional (de forma muito fragmentada), so os
documentos mais pertinentes compreenso da Geografia ensinada, no perodo
circunscrito a esta pesquisa, para se conhecer os discursos instituintes da Geografia
escolar brasileira. Apiam esta proposta, ainda, as diversas pesquisas acadmicas
sobre o tema, embora tambm no sejam muitas. Nesse conjunto, mais acessvel
o saber a ser ensinado, do qual os manuais didticos, a legislao e os programas
educacionais so documentos muito vivos, indicativo do caminho trilhado nesta tese.
No contexto da Histria das Disciplinas Escolares, para conhecimento do
saber a ser ensinado, so importantes os currculos e programas, a legislao,
pareceres, os documentos institucionais (editoras, rgos da administrao do
Estado e escolar). Sobretudo, so importantes os livros didticos: os prefcios,
prlogos, advertncias, textos introdutrios, ttulos das obras, informaes de folhas
de rosto, os ndices, e propriamente os discursos produzidos e armados nessa
estrutura. A documentao de referncia do saber a ser ensinado permite entrever a
proposta de um ensino modelar como ponto de partida para as prticas que seriam
exercidas, que resultam no saber ensinado e no saber apreendido. De acordo com
Chervel (1990, p. 209):
O estudo dos contedos beneficia-se de uma documentao abundante base de cursos manuscritos, manuais e peridicos pedaggicos. Verifica-se ai um fenmeno de "vulgata", o qual parece comum s diferentes disciplinas. Em cada poca, o ensino dispensado pelos professores , grosso modo, idntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nvel. Todos os manuais ou quase todos dizem ento a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleo de rubricas e captulos, a organizao do corpus de conhecimentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exerccios praticados so idnticos, com variaes aproximadas. So apenas essas variaes, alis, que podem justificar a publicao de novos manuais e, de qualquer modo, no apresentam mais do que desvios mnimos: o problema do plgio uma das constantes da edio escolar.
A Histria da Educao, em geral (ou as nacionais), tem tradio e
divulgao ampla. Nela recente, no entanto, a Histria das Disciplinas Escolares,
com ateno especial histria das disciplinas em particular. Chervel (1990)
demonstra que, da crise dos estudos clssicos, a partir de 1850, emergiu uma
perspectiva de ensino fundamentado no exerccio intelectual capaz de formar o
esprito do aprendiz, e a essa acepo iniciou-se o desenvolvimento de conjuntos
culturais de contedos que, principalmente a partir das primeiras dcadas do sculo
XX, associaram-se ao termo disciplina. No sentido original, enquanto formadoras
de espritos, as disciplinas aplicavam-se s humanidades clssicas. No sculo XX,
reforo desse processo, tem-se o fortalecimento de outra classe de estudos os
contedos cientficos como motrizes da formao humana e, nesse contexto, o
termo disciplina generaliza-se como classificao das matrias de ensino,
consolidando-se como [...] os mtodos e as regras para abordar os diferentes
domnios do pensamento, do conhecimento e da arte (CHERVEL, 1990, p. 181).
Paradoxalmente, como demonstro nos prximos captulos, esse processo iniciou
cedo no caso do ensino da Geografia brasileira, mas em um movimento espiralado,
com dificuldade para estabelecer seu centro, seu lugar como disciplina, oscilando
entre um saber clssico e um saber cientfico.
Como tal, as disciplinas seriam o espao da sistematizao de
conhecimentos introdutrios para um pblico iniciante, cujo acesso integralidade
ficaria reservado ao ingresso no ensino superior. Aos educadores, ou a outros
sujeitos autorizados pelas formaes institucionais e governamentais, caberiam a
responsabilidade dessa realizao, isto , o desenvolvimento e a aplicao de
mtodos de ensino, bem como o desenvolvimento discursivo das disciplinas,
esquema esse de ampla aceitao dentre os estudiosos da educao,
frequentemente denominado de vulgarizao da cincia. Chervel (1990) e outros
historiadores das disciplinas questionam esse modelo pelo estreitamento da
perspectiva das disciplinas quanto existncia autnoma de cada uma.
No caso da Geografia, se tomamos o consenso da precedncia do ensino
cincia (pelo menos na perspectiva da Geografia Moderna, e quanto
institucionalizao desta), com as relativas ressalvas como demonstro em captulo
posterior, permite-se creditar crtica de Chervel razes para desmistificar esse
posicionamento tradicionalmente aceito. Pois na Geografia isso incisivamente
particular: muitos dos textos a trabalhar o territrio brasileiro, na totalidade possvel
poca, aps o trabalho de Ayres de Casal (1817a; 1817b), foram textos didticos,
compendiados e produzidos para as prticas educacionais. Na gnese da histria e
do pensamento geogrfico, nesse sentido, esto os livros escolares. Sobretudo, as
instncias de produo desses conhecimentos em nada se assemelharam a um
recipiente enchendo-se do jorro de uma cincia acadmica, em pores mais
palatveis aos sujeitos alvos os aprendizes; esta no deixar de ter a sua
importncia e contribuio significativa, inclusive predominante, mas at pouco antes
das ltimas dcadas do sculo XIX no so poucos os sinais que asseguram um
fazer tambm autnomo para o ensino de Geografia no Brasil. No raro, os autores
da bibliografia em questo, em prefcios ou notas introdutrias, deixam claro que, na
elaborao de seus materiais, consultaram acadmicos de referncia na Geografia
europeia, sobretudo franceses, mas que lanaram mo a consultas prprias, em
especial s estatsticas governamentais. Essa trajetria atesta que os contedos
geogrficos esto longe de ser reflexos exatos, simplificados e vulgarizados de uma
cincia dada, antes se formando como uma construo histrica da instituio
escolar, da cultura social desta. Alm disso, os livros didticos organizaram uma das
primeiras formas de institucionalizao do saber geogrfico no Brasil.
A finalidade da educao e a funo dos professores constituem um
ncleo importante da Histria das Disciplinas Escolares (CHERVEL, 1990).
Contrapondo este princpio com a anlise discursiva, torna-se evidente a questo
ideolgica e o papel dos sujeitos na produo de sentidos constitutivos do discurso
didtico duas feies dos livros escolares como instncia de produo linguageira.
O livro escolar converge essas duas perspectivas: enquanto intrpretes do currculo,
formadores de uma concepo disciplinar e propositores de uma metodologia de
ensino, os sujeitos autores se comportam como professores, consolidando a
percepo mais ampla da educao em seu tempo. Nestas circunstncias, a Histria
das Disciplinas Escolares atribui ao currculo, especificamente Histria do
Currculo, a explicao sobre porque certos conhecimentos, em determinado
momento, so ensinados, e porque so conservados, excludos ou alterados
(MOREIRA, 2007).
O manual didtico testemunha as finalidades do ensino de um contedo,
mas certamente no reflete o ensino como acontecimento e prtica social, nem os
discursos que se articulam em torno dos sentidos produzidos em seu dizer. Apesar
disso, o livro didtico um dos pilares do estudo das disciplinas escolares, e da sua
historicizao, de maneira que uma das formas de se conhecer a histria de uma
disciplina por sua produo editorial, desde que se rena, para tanto, um corpus
representativo de suas diversas pocas aquelas de inovao e as de estabilidade.
Em sua produo, de acordo com Chervel, os contedos so reapropriados por meio
de uma metodologia de ensino que diferencia os estados de aprendizagens: na
produo de livros para o ensino, nesse sentido, h pressupostos na motivao da
aprendizagem e na organizao dos saberes em uma progresso contnua. Os
contedos, j pela seleo e, depois, pelo tratamento etrio dispensado,
descaracterizam-se em relao aos seus objetivos originais:
O que caracteriza o ensino de nvel superior, que ele transmite diretamente o saber. Suas prticas coincidem amplamente com suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes e os contedos do ensino. O mestre ignora aqui a necessidade de adaptar a seu pblico os contedos de acesso difcil, e de modificar esses contedos em funo das variaes de seu pblico: nessa relao pedaggica, o contedo uma variao (CHERVEL, 1990, p. 188).
Os conceitos e processos cientficos precisam de traduo em nvel de
linguagem pr-existente, no caso do discurso didtico. Por outro lado, h a
exposio dos contedos. Nesta fase, h a execuo das prticas pedaggicas, que
compreende desde a elaborao de manuais estrutura rgida no mdio prazo das
relaes de ensino e aprendizagem at as prticas docentes estrutura flexvel
dessa mesma relao: [...] uma varivel que, em geral, pe em evidncia algumas
grandes tendncias: evoluo que vai do curso ditado para a lio aprendida no
livro, da formulao estrita [...] para as exposies mais flexveis [...] (CHERVEL,
1990, p. 207). Para Bakhtin (1997), o texto composto a partir de uma estruturao
definida para o exerccio de uma funo e sua comunicao. O estilo no
meramente a marca de um autor, em uma produo de nvel tcnico, porm , de
igual modo, elemento de unidade de um gnero.
Ainda na relao entre cincia e discurso didtico, os historiadores da
disciplina escolar so crticos quanto s vises simplistas da vulgarizao da cincia:
esta o esteio primo de dilogo da disciplina escolar e dos seus currculos, mas o
saber escolar tem uma trajetria constitutiva prpria. Na realidade, trata-se de uma
relao conflituosa, com acertos e desacertos, encontros duradouros e retrocessos,
certamente peculiares a cada disciplina. Das cincias, as disciplinas querem os
resultados mais conclusivos e abertos a explicaes assimilveis pelos alunos. No
caso da Geografia, as primeiras fases da produo de manuais verificam essa
questo. Em sua maioria, eram textos que compendiavam livros e documentos de
diversas instncias, mas, ademais, eram produtores de conhecimento, ou no
mnimo, sistematizadores dos mesmos6. A anlise vertical dessa proposio
apresenta dificuldades devido s condies autorais prprias poca da produo
bibliogrfica em estudo nesta pesquisa, principalmente por no ser comum
referenciar fontes, uma prtica que, relativamente, nunca deixou de ser usual na
produo de discursos didticos. Como explicitado posteriormente, a
heterogeneidade mostrada (processo discursivo que remete e nomeia o Outro no
mbito da enunciao) no uma marca comum no discurso didtico, e quando ,
tem um funcionamento especfico (complementar e para aprofundar
desenvolvimentos de contedo ou ilustrar as abordagens em foco, por exemplo).
As disciplinas constituem-se de forma aditiva, avanando ou retrocedendo,
para uma nova composio, no que tange constituio da sua formao discursiva,
nos quais se alojam os currculos, os mtodos, os objetivos. So de fato produtos
histricos. Seus discursos so acrescidos, ampliados, reduzidos, de acordo com as
necessidades socialmente colocadas e de acordo com o pblico definido para elas.
Sua histria curricular e seus livros textos demonstram esse desenvolvimento: so
as disciplinas escolares um
[...] vasto conjunto cultural amplamente original que ela [a escola] secretou ao longo de decnios ou sculos e que funciona como uma indicao posta a servio da juventude escolar em sua lenta propenso em direo cultura da sociedade global (CHERVEL, 1990, p. 205).
As disciplinas escolares se compem, assim, pelos mtodos de exposio
dos contedos explcitos, o que funo do professor e tambm dos manuais.
Os discursos didticos so selecionados tanto na cincia como em outras
formaes discursivas: nas artes, na administrao pblica, na imprensa, nos
saberes clssicos e na religio. Nesta perspectiva, os historiadores da disciplina
escolar criticam a viso da disciplina como simples vulgarizao cientfica,
acertadamente. A percepo da disciplina ampla e no condiz, necessariamente,
com uma reduo da complexidade de uma cincia ao ponto palatvel dos
estudantes em iniciao. E no que diz respeito cincia, nem todos os seus
discursos interessam a um ensino bsico, seja pela complexidade, seja pelo estdio
6 Os manuais de Geografia, em nosso caso, sobretudo aqueles que abordam o Brasil, ou sua
corografia, tinham um pblico que ultrapassava os interesses escolares, como demosntro no ltimo captulo desta pesquisa.
de suas fronteiras. O saber cientfico um corpo em composio, em avano,
apresentando espaos de incertezas, de debate, de problemas no resolvidos.
Majoritariamente, o discurso didtico opta pela base mais slida da cincia ou dos
conhecimentos de base, historicamente consolidada e mesmo por vezes cristalizada
de acordo com os paradigmas dominantes, sendo da que o currculo escolar se
alimenta.
Nesse conjunto, o currculo se apresenta como uma plataforma estrutural
para a literatura didtica. A base de estruturao dos manuais escolares (sejam eles
compndios, livros didticos, apostilas) perpassa pelo currculo. Um passo
importante autonomia de um conjunto de saberes e, por conseguinte, gnese de
uma disciplina, a constituio de um currculo aplicado ao ensino, a proposio de
objetivos que definem um lugar para esses saberes na formao em implemento.
No Brasil, diferentes movimentos histricos e suas formaes marcam a
construo do currculo, em termos gerais: as concepes jesuticas, o movimento
cientificista do perodo joanino, o nacionalismo patritico, a concepo positivista no
perodo inicial da Repblica, o movimento escolanovista, o movimento tecnicista,
chegando at as formaes atuais, como o construtivismo e as tendncias histrico-
culturais. No entrarei em detalhes nesses movimentos porque os atinentes ao
currculo de Geografia, nico com espao nessa tese, tero desenvolvimento em
captulo posterior. Todavia, vale ressaltar que a elaborao de currculos observando
alguma teorizao, no mbito das instituies, somente se verificou aps a dcada
de 1920, dcada na qual marcante a transferncia de influncia na educao da
Frana para os Estados Unidos da Amrica. Em outras palavras, at ento o
currculo era uma prtica das instncias educacionais, mas no necessariamente
objeto de estudos formais. De acordo com Moreira (2007, p. 15), as reflexes e
prticas com fundamentao em teoria tiveram, a partir da, trs recortes histricos
na educao brasileira no sculo XX:
O primeiro anos vinte e trinta corresponde s origens do campo do currculo no Brasil. O segundo final dos anos sessenta e setenta corresponde ao perodo no qual o campo tomou a forma e a disciplina currculos e programas foi introduzida [...nas] faculdades de educao. O terceiro de 1979 a 1987 caracteriza-se pela ecloso de intensos debates sobre currculo e conhecimento escolar, bem como por tentativas de reconceptualizao do campo.
A dcada de 1990 representou outro marco. Qual seja, contudo, sua instncia de
emerso, o currculo uma construo histrico-cultural, reagindo a repercusses
sociais, polticas e culturais. Apesar de o perodo anterior dcada de 1920 no
contar com uma anlise sistmica, no significa que no tenha existido. Como dito
anteriormente, a organizao do ensino sempre implica a organizao de um
currculo.
O termo "currculo", a propsito, tem emprego desde a primeira metade do
sculo XVI; no entanto, as primeiras teorizaes remontam ao incio do sculo XX.
Enquanto prtica educativa, o currculo passou a ter difuso do sculo XVI em
diante, em universidades, colgios e escolas europeus, na forma do Modus et Ordo
Parisienses. Modus referia-se s combinaes e subdivises das classes escolares,
regidas com instruo individualizada. Ordo (ordem), por seu lado, referia-se
sequncia, ou ordem de eventos, e tambm coerncia do ensino (HAMILTON,
1992). Dentre os registros histricos referentes ao currculo, Hamilton (1992) relata
que na Universidade de Leiden (1582), o aluno era certificado quando tinha
"completado o curriculum de seus estudos; na Universidade de Glasgow (1633) e
na Grammar School de Glasgow (1643), o curriculum condizia ao curso completo
frequentado pelo aluno.
Sua teorizao, desde ento, tem evoludo em associao compreenso
das transformaes no mundo do trabalho e aos processos gerais de produo. No
campo da educao, o termo foi definido e redefinido de acordo com as perspectivas
de diferentes pocas a partir do sculo XX. Inerente a qualquer organizao de
ensino, na concepo mais clssica de currculo7, tem-se uma estrutura organizada
com contedos indicados para o ensino de um campo do saber; em outras palavras,
a definio mais clssica de currculo ser uma relao de disciplinas em um curso,
e uma relao de contedos em uma disciplina, organizada em sequncia a uma
determinada lgica, ordenada em um tempo de execuo, obedecendo a alguma
proposta ou necessidade institucional.
Historicamente, a prtica do currculo escolar passou por duas tendncias de
estudos sistematizados: as concepes tradicionais ou conservadoras e as
concepes crticas, todas influentes na educao brasileira do sculo XX. Nas
7 Do latim, curriculum, derivado de currere, significando "caminho", "trajeto", "percurso". Atribui-se,
ainda, o significado de ordem como sequncia ou ordem como estrutura (GOODSON, 2001).
teorias tradicionais, foi muito influente a compreenso do currculo a partir das
teorias da administrao, particularmente a Teoria da Administrao Cientfica, de
Frederick W. Taylor (1856-1915), prevalecendo a preocupao com resultados em
razo da valorizao dos contedos, objetivos e ensino. Atuaria, assim, como uma
seleo na totalidade cultural conhecida, seleo essa relacionada s dinmicas
sociais polticas, culturais, econmicas , intencional, portanto. Sob influncia das
teorias administrativas, predominou a elaborao de currculos tecnicistas,
denunciados a partir dos anos 1960 na perspectiva da crtica ao funcionamento da
sociedade capitalista e do funcionamento das instituies nesse contexto, dentre as
quais a escolar (APPLE, 1982; MOREIRA, 2007). At as dcadas iniciais do sculo
XX, o currculo foi uma prtica para a elaborao de planos de estudo, embora em
nada se possa dizer que essa prtica fosse neutra e despossuda dos elementos
que permaneceram na elaborao de currculos at a atualidade: definio de
objetivos educacionais, debate poltico, dentre outras. A mudana para objeto de um
campo de estudos sistematizados, a contemplar a totalidade das experincias
orientadas a serem vivenciadas pelos estudantes no contexto escolar, considerando
os interesses destes, surgiu a partir do trabalho pioneiro de John Franklin Bobbit
(1876-1956)8, cuja obra The Curriculum foi publicada nos Estados Unidos em 1918
(MOREIRA, 2007). O contexto do surgimento desse campo nos EUA compreendia
as transformaes scio-econmicas que o pas atravessava entre fins do sculo
XIX e incio do sculo XX, com a transformao de uma economia agrria para uma
economia industrial, com uma populao predominantemente urbana e vivenciando
os primeiros impactos da imigrao massiva (iniciada no sculo XIX). Os
educadores, quele tempo, sentiam uma ameaa homogeneidade da cultura
estadunidense,
[...] uma cultura centrada na cidade pequena e sedimentada em crenas e atitudes da classe mdia. A comunidade que os antepassados ingleses e protestantes dessa classe lavraram de um deserto parecia desmoronar-se diante de uma sociedade urbana e industrial em expanso [...]. (APPLE, 1982, p. 108).
Os trabalhos de Bobbit, e de outros pioneiros, direcionavam-se a convergir o
currculo com as necessidades econmicas e culturais da poca e, com inspirao
8 Outros tericos do currculo, contemporneos de Bobbit, foram: Edward L. Thorndike (1874-1949),
W. W. Charters (1875-1952) e David Snedden (1868-1951), dentre outros.
nos princpios da Administrao Cientfica, procuraram especificar os objetivos
educacionais para as dinmicas da vida social. Interessava, nesses estudos,
preservar "[...] o consenso cultural e, ao mesmo tempo, [...] destinar aos indivduos o
seu lugar adequado numa sociedade industrial interdependente (APPLE, 1982, p.
107). A escola foi percebida como uma instituio partcipe na compensao dos
problemas sociais, ampliando-se a concepo do currculo para alm de um
conjunto de saberes, ou seja, compreendendo-o como estrutura para organizao
de atividades e experincias capazes de moldar o comportamento e o pensamento
do aprendiz. No coincidentemente, a experincia e a prtica foram integrantes da
proposta curricular de Geografia a partir da dcada de 1930. Para tanto, o currculo
poderia dispor de representaes da sociedade, em padres pr-definidos, de forma
a produzir o "humano socializado" (MOREIRA, 1992, p. 15). O passo seguinte foi
dado por Ralph W. Tyler (1902-1994) na dcada de 1940 e por John Dewey (1859-
1952), um pouco antes. De acordo com Moreira (1992), Tyler trabalhou a proposta
progressista de um currculo tecnicista, e Dewey, com a considerao dos interesses
e as atividades da criana, tornando-se um importante crtico da educao herdada
do sculo XIX, amplamente praticada no Brasil at quase a metade do sculo XX a
pedagogia das lies:
A escola tradicional est organizada para permitir que se pratiquem certas habilidades mecnicas e certas idias, sem cogitar da prtica de outros traos morais e emocionais desejveis em uma personalidade. Como aprender, com efeito, honestidade, bondade, tolerncia, no regime de lies marcadas para o dia seguinte? S uma situao real de vida, em que se tenha de exercer determinado trao de carter, pode levar sua prtica e, portanto, sua aprendizagem. Da ser necessrio que a escola oferea um meio social vivo, cujas situaes sejam to reais quanto as fora da escola (DEWEY, 1979, p. 57).
A proposta de Tyler foi amplamente aceita. Basicamente consistia em
controlar o planejamento do estudo em todos os ngulos, definindo os objetivos
educacionais atravs de um trplice que considerava os interesses e necessidades
discentes, o cotidiano extraescolar, as sugestes dos especialistas nos contedos,
repassando-o pelo crivo filosfico e psicolgico, isto , dos valores e das condies
de aprendizagem. Tratava-se de uma teoria pragmtica, voltada para implementar a
viso cultural e ideolgica da ordem social e econmica estabelecida. Sem espao,
portanto, para a diversidade, embora, por preconizar tantas perspectivas,
transparecesse neutralidade. A questo, clarificada na reviso crtica posterior,
condizia a quais seriam os interesses, os cotidianos, as especialidades, os valores
elegidos.
Na concepo dialtica, base das interpretaes crticas do currculo, que se
seguiram, o Estado articula uma classe social dirigente e uma classe social civil,
propondo e atingindo objetivos coesos aos interesses de classes, a ser legitimado
pela articulao de uma ideologia dada, sustentculo da hegemonia que mantm o
poder em exerccio (GRAMSCI, 1995). Essa compreenso levou s teorias crticas
que agiram analiticamente nos silenciamentos das abordagens conservadoras sobre
o currculo. Essas crticas operaram com conceitos como reproduo cultural,
emancipao e libertao, embasadas na questo da ideologia. Concepes
como aparelho ideolgico do estado, reproduo da estrutura social e interesses
da classe capitalista definiram duas linhas de estudo sobre o currculo: uma
enfatizava os contedos (originando a Pedagogia Crtica dos Contedos) e outra,
chamada genericamente de "educao popular", trilhou a reflexo sobre as lutas das
classes trabalhadoras, orientando o currculo a contemplar tanto os contedos
clssicos quanto os conhecimentos profissionais. Os fundamentos da teoria crtica,
para o qual igualmente contriburam referenciais da psicanlise, da fenomenologia e
da hermenutica, permitiram rever as relaes de ensino e aprendizagem a partir
das conexes entre saber, currculo, ideologia e poder, discernindo o discurso
escolar como entreposto de problemas expressos na excluso escolar, atravs da
eleio curricular de determinadas formas de raciocnio que privilegiava alguns
contedos e silenciava outros.
Vistos em retrospectiva, de fato, os currculos apresentam vises de mundo
sectadas em formaes discursivas que expressam determinados valores atuantes
poca, embora atuem igualmente vozes dissonantes, capazes de perturbar a
estabilidade e implodir determinados consensos. Por isso mesmo, tais vozes so
contidas e silenciadas por todos os meios possveis: a interdio dessas vozes, em
termos da bibliografia didtica, sinaliza a existncia ou no desses materiais e seus
discursos no mercado educacional. Algumas obras didticas de Geografia ilustram
esse processo, quando propem uma abordagem ou metodologia no concordante,
que resultam na no publicao ou na no adoo nas escolas: o caso das Breves
noes para se estudar com methodo a Geographia do Brasil, de Praxedes Pacheco
(1857), que analisarei em outro momento. s vezes, tem aceitao tmida no
mercado escolar.
Mais recentemente, o currculo na perspectiva humanista (teorias
tradicionais), na tecnicista, bem como na perspectiva dos currculos emancipatrios
das pedagogias crticas foi questionado por teorias ps-crticas. O pensamento ps-
estruturalista (movimento ao qual a Anlise do Discurso pertence) desenvolveu
formas de anlise prpria para a crtica s instituies, teorizando sobre um conjunto
diversificado de objetos e meios, tais como a linguagem, a mdia, as artes, dentre
outros, de modo que o estudo do currculo questionou a distino entre
conhecimento clssico e cultura cotidiana. Passa-se a considerar um currculo
flexvel, sensvel s diferenas culturais. A construo e o desenvolvimento de
identidades no entreposto de prticas sociais integram a proposta de teorizao e
elaborao dos currculos, proposta que tanto envolve o multiculturalismo quanto a
Anlise do Discurso.
A tradio, por seu lado, perpassa a histria dos currculos. No pretexto de
transmitir o sentido etimolgico da palavra entregar (no latim, traditio, tradere)
prticas, conhecimentos, atitudes, valores, normas, a elaborao do currculo
introduz sutilmente as marcas de uma poca, ao mesmo tempo em que seleciona no
passado o que condiz e silencia, ou exclui o que for inconveniente aos interesses em
sustentao.
Esse breve exame terico e histrico sobre o currculo, a ser aprofundado na
medida em que for necessrio anlise da tese, introduz o currculo como um
ncleo motor ao fazer da literatura didtica: contacta os espaos, sujeitos,
instituies que se cruzam na formulao do discurso didtico e dos seus objetivos
educacionais.
importante ressaltar que o perodo em anlise tem deficincia de estudos
gerais, no sentido epistemolgico, do currculo, cujos estudos sistematizados so
marcados a partir do sculo XX, como visto. No entanto, o desenvolvimento atual do
estudo do currculo permite perceber nuances e tendncias integradas s prticas
antigas do currculo, no que tange constituio e s transformaes de um
currculo para a Geografia escolar brasileira e para a constituio de sua bibliografia
didtica.
1.2 Anlise do Discurso: fundamentos terico-metodolgicos da interpretao
A Anlise do Discurso um campo de estudo interdisciplinar que dialoga a
Lingustica com cincias de formao social, destacando-se por considerar e
valorizar, em seu corpo terico, a historicidade inscrita na linguagem e romper a
noo de transparncia/literalidade desta, demonstrando-a como histrica e
ideolgica.
A partir do acervo terico-metodolgico da anlise discursiva, possvel
pesquisa considerar a linguagem como categoria para investigar o processo de
produo de sentidos e seu funcionamento histrico-social. Com a Anlise do
Discurso, a lin