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A atividade fotográfica do pós-modernismo

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A at ividade fotográfica do pós-modernismo

Douglas Crimp

o artigo foi apresentado no colóquio "Performance et Multidisciplinarité" patrocinado pela revista Parachute, em Montreal, em outubro de 1980, e

posteriormente publicado pelo revista October (n. 15, inverno (980). Em sua abordagem da atividade fotogrófica do pós-modernismo, Douglas Crimp analisa a

ruptura da noçõo de original no trabalho de vórios artistas contemporâneos, entre outros Sherie Levine, Cindy Sherman e Richard Prince, enfocando criticamente as

noções de presença, subjetividade e representaçõo. O autor sublinha igualmente o recalque, pelo discurso modernista, do fotografia como agente de subversão do

julgamento de arte.

Pós-modernismo, fot ografia, presença.

E, no entanto, foi com esse conceito fetichista de arte, fundamentalmente antitécnico, que se debateram os teóricos da fotografia durante quase 100 anos, naturalmente sem chegar a

qualquer resultado . Porque tentaram justificar a fotografia diante do mesmo tribunal que ela havia derrubado.

Walter Benjamin, A pequena história da fotografia I

Que a fotografia tenha subvertido o julgamento de arte é um fato que o discurso do modernismo achou necessário reprimir, e, assim, parece que podemos com segurança dizer do pós-modernismo que ele constitui precisamente o retorno do reprimido. O pós­modernismo só pode ser entendido como uma ruptura específica com o modernismo, com aquelas instituições que são sua pré-condição e que dão forma a seu discurso. Essas instituições podem ser nomeadas da seguinte forma: primeiro, o museu; depois, a História da Arte; e, finalmente, num sentido mais complexo, porque o modernismo depende de sua presença e de sua ausência, a fotografia. O pós-modernismo refere-se à dispersão da arte, sua pluralidade, com o que eu certamente não quero dizer pluralismo. Plural ismo é, como sabemos, aquela fantasia de que a arte é livre, livre de outros discursos, instituições, livre, acima de tudo, de história. E essa fantasia de liberdade pode ser mantida porque todo trabalho de arte é sustentado para ser absolutamente único e original. Contra esse pluralismo de originais, quero falar sobre a pluralidade de cópias.

Aproximadamente há dois anos, em um artigo intitulado "Pictures", no qual achei útil de início empregar o termo pós-modernismo, tentei traçar um perfil do trabalho de um grupo de jovens artistas que estavam apenas começando a expor

em Nova York2 Esbocei a origem de suas

preocupações com o que foi pejorativamente rotulado de teatralidade da escultura minimal e

as extensões dessa posição teatral na arte dos anos 70. Naquela época, escrevi que o modo estético exemplar durante os anos 70 foi a performance, todos aqueles trabalhos que eram constituídos numa situação específica e por uma duração específica; trabalhos sobre os quais poderia ser dito literalmente que se tinha que estar lá, isto é, trabalhos que assumiam a

presença do espectador diante do trabalho enquanto ele acontecia, privilegiando, portanto, o espectador e não o artista.

Em minha tentativa de continuar a lógica do que

eu estava descrevendo, deparei-me eventualmente com uma barreira. O que eu queria expl icar era como partir dessa condição

TEMÁ TICA' DOUGlA5 CRIMP 127

ale R E V 1ST A D o P R o G R A M A D E PÓS· G R A D U A ç Ã o E M A R T E S V I SUA I S E B A • U F R J • 2 o o 4

de presença - o estar lá necessário para a performance - para o tipo de presença que só é possível por meio da ausência que sabemos ser a condição para a representação. Eu estava escrevendo sobre trabalhos que se tinham

ocupado, depois de quase um século de repressão, da questão da representação. Apontei essa transição com um certa zombaria, uma citação epígrafe suspensa entre duas seções do texto. A citação, tirada de um dos contos de

fantâsmas de Henry James, era uma falsa tautologia, que Jogava com o duplo, efetivamente antitético, do significado da palavra presença: ''A presença diante dele era uma presença".

o que acabei de chamar de zombaria talvez não

fosse exatamente isso, mas, até certo ponto, a alusão a algo realmente crucial sobre o trabalho descrito, que gostaria de elaborar agora, Para

fazer isso, quero adicionar a terceira definição para a palavra presença. A essa noção de presença que diz respeito a estar lá, estar em frente a, e a essa noção de presença que Henry

James usa em suas histórias de fantasmas - a presença que é um fantasma e, portanto,

realmente uma ausência, a presença que nõo está lá - quero acrescentar a noção de presença como um tipo de adicional do fato de estar lá,

um aspecto fantasmagórico da presença que é seu excesso, seu suplemento. Essa noção de presença é o que queremos dizer quando falamos, por exemplo, que Laurie Anderson é uma performer com presença. Queremos dizer com isso não apenas que ela está lá, diante de nós, mas que ela está mais do que lá, que, em

adição a estar lá, ela tem uma presença. E se pensamos em Laurie Anderson dessa maneira pode parecer um pouco estranho, porque a presença particular de Laurie Anderson efetua­se com o uso de tecnologia reprodutiva que realmente a faz quase ausente, ou apenas lá,

como o tipo de presença a que Henry James se referia quando falou "a presença diante dele era uma presença".

Foi precisamente esse tipo de presença que atribuí às performances de Jack Goldstein, como Two Fencers, e à qual vou adicionar agora as

performances de Robert Longo, como Surrender Ambas foram um pouco mais do que presenças,

esquetes rPerformed tableaux] que estavam no

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espaço do espectador, mas que pareciam etéreas, ausentes. Tinham a estranha qualidade de hologramas, muito vívidas e detalhadas,

presentes e, ao mesmo tempo, fantasmagóricas, ausentes. Goldstein e Longo, Junto com grande número de seus contemporâneos, são artistas

cujo trabalho se aproxima da questão da representação por meio de modos fotográficos, particularmente todos aqueles aspectos da fotografia que têm a ver com reproducão, com cópias e cópias de cópias. A extraordinária presença de seus trabalhos é afetada pela ausência, pela distância intransponível do

original, até mesmo da possibilidade de um original. Tal presença é o que atribuo a esse tipo de atividade fotográfca que chamo pós­modernismo.

Essa qualidade de presença pareceria ser o oposto do que Walter Benjamin tinha em mente quando introduziu na linguagem crítica a noção

de aura. A aura tem algo a ver com a presença do original, com a autenticidade, com a

existência única do trabalho de arte no lugar em que este por acaso esteja. Éesse aspecto do trabalho que pode ser testado por uma análise

química ou pelo conhecimento especializado, aspecto que a disciplina da História da Arte, ao

menos em seu disfarce como Kunstwissenschatt, é capaz de aprovar ou desaprovar; aspecto, portanto, que tanto admite quanto bane o trabalho de arte do museu. Para o museu não há negócio com falsos, cópias ou reproduções. A presença do artista no trabalho tem que ser detectada; é assim que o museu sabe que tem algo autêntico.

Mas é essa própria autenticidade, Benjamin nos

diz, que é inevitavelmente depreciada pela reprodução técnica, diminuída pela proliferação de cópias. "O que qesaparecerá na era da

reprodução técnica é a aura do trabalho de

arte", essa é a maneira como Benjamin coloca]

Éclaro, porém, que aura não é um conceito mecânico, como empregado por Benjamin, mas

sim um conceito histórico. Não é algo que um trabalho feito manualmente tem que um trabalho feito mecanicamente não tenha. Do ponto de vista de Benjamin, certas fotografias têm aura, enquanto mesmo uma pintura de

Rembrandt perde sua aura na era da reprodução técnica. O desaparecimento da

aura, a dissociação de trabalho e estrutura da

tradição, é um resultado inevitóvel da

reprodução técnica. Isso é algo que todos nós

experimentamos. Sabemos, por exemplo, da

impossibilidade de experimentar a aura de uma

pintura como a Mono Liso, mesmo estando

diante dela no Louvre. Essa aura tem sido

profundamente depreciada pelas mil vezes que

temos visto sua reprodução, e nenhum nível de

concentração irá restaurar sua unicidade para

nós.

Parecerá, então , que, se esse desaparecimento

da aura é um fato Inevitável do nosso tempo,

então igualmente inevitáveis são todos os

projetos de recuperá-I a, de fingir que o original

e o único são ainda possíveis e desejados. E isso

é em nenhum lugar mais aparente do que no

campo da fotografia, a própria culpada da

reprodução técnica.

Benjamin conferia uma presença ou aura apenas a um número limitado de fotografias - as da

chamada fase primitiva, o período anterior à comercialização da fotografia, depois da década

de 1850. Afirmou, por exemplo, que as pessoas

nessas primeiras fotografias tinham "uma aura

em tomo delas, um meio que atravessado por

seu o lhar lhes dava uma sensação de plenitude e

segurança" 4 Essa aura parecia ser, para

Benjamin , o produto de duas coisas: o longo

tempo de exposição , durante o qual o assunto

transformava-se , tal como era, em imagens: e a única, não mediada, relação entre o fotógrafo,

que era "um técnico da nova escola" , e seu

modelo, que era "um membro de uma classe

ascendente, dotado de uma aura que se

refugiava até nas dobras de sua sobrecasaca ou

da gravata lovolliere". S A aura nessas

em pintura: significa olhar não para a mão do

artista, mas para a incontrolada e incontrolável

intrusão da realidade, a qualidade absolutamente

única e até mesmo mágica, não do artista, mas

de seu assunto . E é, talvez, por ISSO que lhe

pareceu tão pouco judicioso que os fotógrafos

tenham começado, depois da comercialização

do meio, a simular a aura perdida pela aplicação

de técnicas imitativas daquelas da pintura. Seu

exemplo foi o processo da goma bicromatada usada em fotografias pictorialistas.

Embora possa parecer a princípio que Benjamin

lamentasse a perda da aura, a verdade é, de

fato, o contrário. "O significado social da

reprodução, particularmente em sua forma mais positiva, é inconcebível", escreveu Benjamin,

"sem o aspecto destrutivo, catáliico, sua

liquidação dos valores tradicionais da herança

cultural" ? Esta era para ele a grandeza de Atget:

"Ele iniciou a liberação do objeto de sua aura, o

que é a mais incontestável realização da nova

escola de fotografia" 8 ''A coisa mais marcante

sobre as imagens [de Atget] ... é seu vazio."9

Essa operação de esvaziamento, a exaustão da

aura, a contestação da unicidade da obra de arte

têm sido aceleradas e intensificadas na arte das

últimas duas décadas. Da multiplicação das

imagens fotográficas em serigrafia nos trabalhos de Rauschenberg e Warhol à fabricação

industrial das estruturas repetitivas dos escultores

minimalistas, tudo na prática artística radical

parece conspirar para a liquidação dos valores

culturais tradicionais aos quais Benjamin se

referia. E, porque o museu é essa instituição que

foi fundada unicamente sobre esses valores, e

cUJo trabalho é o de sustentar esses valores, ele

fotografias, então, não se encontra na presença do fotógrafo na fotografia, da .

maneira como a aura de uma pintura é determinada pela presença da

inconfundível mão do pintor em seu

quadro. Ao contrário, trata-se da

presença do assunto, do que é

fotografado, "a pequena centelha do

acaso, do aqui e agora, com a qual a

realidade chamuscou a imagem" 6 Para

Benjamin, então, a especialização em

fotografia é uma atividade

diametralmente oposta à especialização

T EM Á TI CA ' DOUGlAS C R I MP 129

a/e REVIS T A DO PROGR AMA DE POS - GRADUAÇAO EM ARTES V I SUA I S EBA o UfRJ' 200 4

tem enfrentado uma crise de proporções conside ráveis. Um sintoma dessa crise é a maneira com que nossos museus, um após o outro, por volta dos anos 70, abdicaram da responsabilidade com a prática artística contemporânea e se voltaram com nostalgia para a arte que havia sido previamente re legada a suas reservas técnicas. Uma História da Arte revisionista logo começou a ser justificada por "revelações" de méritos de artistas acadêmicos e figuras menores de todos os tipos .

Por volta de meados da década de 1970 apareceu outro sintoma - e mais sério - da crise do museu, o qual eu já havia mencionado: as várias tentativas de recuperar o aurático. Essas tentativas manifestaram-se em dois fenômenos contraditórios: a ressurgência da pintura expressionista e o triunfo da fotografia como arte. O museu tinha abraçado ambos os fenômenos com igual entusiasmo, para não dizer voracidade.

Pouco, acho, precisa ser dito sobre a volta da pintura como expressão pessoal. Nós a vemos em todos os lugares para onde nos viramos. O mercado está entupido dessa pintura. Chega­nos sob todo t ipo de disfarce, pintura de padrões, new image painting, neoconstrutivismo, neo-expressionismo: é pluralista com certeza. Mas dentro desse individualismo, essa pintura é profundamente conformista em um ponto: seu desprezo pela fotografia. Escrevendo um texto tipo manifesto para o catálogo de sua Arnerican Painting: The Eighties - essa exposição oracular acontecida no outono de I979 para demonstrar a ressurreição miraculosa da pintura - Barbara Rose nos disse:

Os pintores sérios dos 80 formam um grupo extremamente heterogêneo - alguns abstraoos, alguns representocionais. Como são unidos por um número suficiente de questões criticas, é poss(veJ isol6-los como um grupo. São, em primeiro lugar, dedicados a preservar a pintura como uma arte transcendente e universal em oposição a uma significância local e do momento. Sua estética, que sintetizo qualidades t6teis e as qualidades óticas, define-se em oposição consciente à fotografia e a todas as formas de reprodução técnica que procuram privar o trabalho de

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arte de sua "aura" única. É, de fato, a acentuação dessa aura, por vórios meios, que a pintura agora autoconsciente pretende ­tonto enfatizando o gesto do artista quanto criando imagens vision6rias altomente individuais, que não podem ser confundidas nem com a própria realidade, nem com nenhuma outra". 10

Que esse tipo de pintura considere tão claramente a reprodução técnica como um inimigo é sintomático da profunda ameaça às idéias herdadas (as únicas idéi.as conhecidas por essa pintura) colocada pela atividade fotográfica do pós-modernismo. Mas, nesse caso, isso é sintomático também de uma mais limitada e intema ameaça: a que se colocou para a pintura quando de repente a própria fotografia adquiriu aura. Agora não é apenas uma questão de ideologia, agora é uma competição real pela aq uisição de verba e pelo espaço de parede do museu.

Mas como é que, de repente, a fotografia se viu conferida de uma aura? Como a plenitude das cópias foi reduzida à escassez dos originais? E como nós conhecemos o autêntico de sua reprodução? I I

Entra o especialista. Mas não o especialista em fotografia do tipo de Walter Benjamin ou, mais próximo de nós, Roland Barthes. Nem "a centelha do acaso" de Benjamin, nem o "significado terceiro" de Barthes iriam garantir o lugar da fotografia no museu. O especialista necessário para esse trabalho é o historiador de arte à moda antiga, com suas análises químicas e, mais importante, sua análise estilística. Autenticar a fotografia requer todo o maquinário da História da Arte e da museologia, com algumas adições, e mais do que algu ns truques de prestidigitação. Para começar, há, é claro, a incontestável raridade da idade, a cópia de boa safra. Certas técnicas , tipos de papéis e químicas ficaram fora de uso, e então a idade da cópia pode ser facilmente estabelecida. Mas esse tipo de raridade certificada não é o que me interessa, nem seu parale lo na prática fotográfica contemporânea, a edição limitada. O que me interessa é a subjetivação da fotografia, as maneiras pelas quais o especialista da "centelha do acaso" da fotografia é convertido em um

especialista do estilo fotográfico. Porque agora, parece, finalmente podemos detectar a mão do fotógrafo, exceto, é claro, pelo fato de que essa é seu olho, sua visão única. (Embora possa também ser sua mão: basta escutarmos os

adeptos da subjetividade fotográfica descreverem o ritual místico desempenhado pelos fotógrafos em seus laboratórios).

Dou-me conta, naturalmente, de que ao levantar a questão da subjetividade estou revivendo o principal debate na história da estética da fotografia, o que diz respeito à prova direta e à prova manipulada, ou às numerosas variações sobre esse tema. Mas o faço aqui para

poder enfatizar que a recuperação da aura para a fotografia subsumiria de fato sob a bandeira da

subjetividade todo a fotografia, a fotografia cuja fonte é o espiríto humano e aquela cuja fonte é

o mundo em nossa volta, as ficções as mais completamente manipuladas e as transcrições mais fiéis do real, de composição e

documentário, os espelhos e as janelas, Comera Work em seu início, Ufe em seus belos dias. Mas

esses são apenas os termos de estilo e modo da

concordância do espectro da fotografia-como­

arte. A restauração da aura, o conseqüente

colecionar e exibir não param por aí. É estendido à carte-de-visite, ao encarte de moda,

à foto publicitária, ao instantâneo anônimo ou ao polaróide. Na origem de cada um há um Artista,

e, portanto, cada um pode achar seu lugar no espectro da subjetividade. Tem sido lugar­comum da História da Arte afirmar que o realismo e o expressionismo são meras

questões de níveis, isto é, questões de estilo.

A atividade fotográfica do pós-modernismo opera, como podemos esperar, em cumplicidade com esses modos de fotografia­como-arte, mas só o faz visando subvertê-los e

excedê-los. E o faz precisamente em relação à aura, embora não para recuperá-Ia, mas para deslocá-Ia, para mostrar que é agora também

apenas um aspecto da cópia, e não do original. Um grupo de Jovens artistas trabalhando com fotografia tem endereçado as pretensões da fotografia à originalidade, mostrando a ficção

dessas pretensões e mostrando a fotografia sempre como uma representação, um sempre­já-visto. Suas imagens são furtadas, confiscadas, apropriadas, roubadas. Em seus trabalhos, o

original não pode ser localizado, é sempre diferido; mesmo o eu que pode ter gerado um original é demonstrado ser ele próprio cópia.

Num gesto característico, Sherrie Levine começa uma declaração sobre seu trabalho com

uma anedota que é muito familiar:

Como a porta estava apenas meio fechada, tive uma visão confUsa de minha mãe com meu pai na cama, um em cima do outro. Mortificada, machucada, chocada de horror, tive a detestóvel sensação de ter-me colocado cega e completamente em mãos indignas. Instintivamente e sem esforço, me dividi, por assim dizer, em duas pessoas, sendo que uma, a real, a genuína, continuou por conta própria, enquanto a outra, uma bem-sucedida imitação da primeira, foi delegada a ter relações com o mundo. Meu primeiro eu continua a distância, impassivo, irônico e observador. 12

Não apenas reconhecemos isso como a descrição de algo que já conhecíamos - a cena

primária -, mas nosso reconhecimento pode

estender-se mais além, ao romance de Moravia

do qual a descrição foi retirada. Porque o relato autobiográfico de Levine é uma mera junção de citações surrupiadas - e se considerarmos isso uma maneira estranha de escrever sobre o

método de trabalho de alguém, talvez então devêssemos nos voltar para o trabalho que ela descreve.

Em uma exposição recente, Levine mostrou seis

fotografias de um jovem nu. Elas foram simplesmente refotografadas da famosa série de Edward Weston sobre seu filho pequeno Neil, disponíveis para Levine como pôster publicado pela Witkin Gallery. De acordo com a lei do direito autoral, as imagens pertencem a Weston

ou, agora, ao espólio Weston. Penso, entretanto, que, para ser justo, podemos dá-Ias igualmente a Praxíteles, já que, se é a imagem que pode ser possuída, então essas certamente pertencem à escultura clássica, o que as colocaria em domínio público. Levine disse que,

quando mostrou suas fotografias para um amigo, ele comentou que elas apenas o faziam querer ver as originais. "É claro", ela respondeu, "e as originais fazem você querer ver aquele menino

TEMÁTICA· DOUGLAS CRIMP 131

a/e RE V IS TA DO PRO G R AMA D E P Ú S - G R AD U AÇA O EM A RTE S V ISU A I S E G A o UFRJ o 2004

pequeno, mas, quando você vê o menino, a arte se foi " . O desejo suscitado por essa

representação não se limita ao pequeno menino, não é de maneira alguma satisfeito por

ele. O desejo de representação só existe na medida em que nunca é preenchido, na

medida em que o original é sempre diferido.

Ésomente na ausência do original que a representação pode dar-se. E a representação se dá porque sempre já está no mundo como representação. Foi, é claro, o próprio Weston quem disse que "uma fotografia tem que ser visualizada por inteiro antes de se fazer a tomada". Levine levou o mestre ao pé da letra e, fazendo-o, tem mostrado o que ele realmente quis dizer. O o priori que Weston tinha em mente não estava de todo em seu espírito; estava no mundo, e Weston apenas o copiou.

Esse fenômeno talvez seja ainda mais crucial nessas séries de Levine, em que essa

imagem o priori não é tão obviamente confiscada da cultura de elite - pela qual eu entendo ao mesmo tempo Weston e

Praxíteles - , mas do próprio mundo, no qual a natureza se coloca como antítese da representação. Dessa maneira, as imagens

que Levine recortou de livros de fotografias de Andreas Feininger e Elliot Porter mostram cenas da natureza extremamente familiares.

Elas sugerem que a descrição de Roland Barthes do tempo da fotografia como o "isso foi" seja

interpretada de uma nova maneira. A presença que tais fotografias têm sobre nós é a presença

do déjà vu, a natureza como já tendo sido vista, natureza como representação.

Se as fotografias de Levine ocupam um lugar

nesse espedro da fotografia-como-arte, seria como o mais distante da fotografia direta - não

só porque as fotografias das quais ela se apropria operam desse modo, mas porque ela não manipula suas fotografias de nenhuma forma: ela

só (e literalmente) tira fotografias. No outro

extremo desse espedro está a fotografia que é composta com afetação, manipulada, ficcionalizada, chamada de composição, categoria na qual encontramos fotógrafos­autores tais como Duane Michals eLes Krims. A estratégia desse gênero é uti lizar a aparente

veracidade da fotografia contra si mesma,

criando ficções por intermédio da aparência de realidade contínua na qual foi teCida uma dimensão narrativa. As fotografias de Cindy Sherman funcionam nesse espedro, mas

..-­

. -'

unicamente para poder expor uma dimensão não desejada dessa fiCção, pois a ficção que Sherman revela é a ficção do eu. Suas fotografias mostram que as supostas autonomia e unidade do eu, a partir das quais os outros "realizadores"

criarão suas ficçõe s, são em si nada mais do que uma série de representações descontínuas, cópias e falsificações.

As fotografias de Sherman são todas auto­retratos em que ela aparece disfarçada, atuando em um drama cujos detalhes são suprimidos.

Essa ambigüidade da narração é paralela à ambigüidade do eu ao mesmo tempo ator na narração e seu criador. Pois, embora Sherman

seja literalmente outocriodo [self-creote]13 nesses

trabalhos, ela é criada na imagem já conhecida dos estereótipos femininos; seu eu é então entendido como contingente às possibilidades providas pela cultura da qual Sherman participa e não por algum impulso interno. Nisso, suas

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fotografias revertem os termos de arte e da autobiografia, Usam arte não para revelar o verdadeiro eu do artista, mas para mostrar o eu como uma construção imaginária, Não existe a verdadeira Cindy Sherman nessas fotografias, existem apenas as aparências que ela assume, E ela não cria essas aparências, mas simplesmente as escolhe do jeito que qualquer um de nós o faz, A pose da autoria é dispensada não só pelos meios técnicos de produção de imagens, mas pela obliteração de qualquer continuidade de qualquer personagem essencial ou mesmo rosto reconhecível nas cenas descritas,

o aspecto de nossa cultura que é profundamente manipulador dos papéis que representamos é, evidentemente, a publicidade de massa, cuja estratégia é disfarçar a fotografia de composição em fotografia documentária, Richard Prince rouba as mais francas e banais dessas imagens, que se inscrevem como um tipo de choque no contexto da fotografla-como­arte, No final, porém, sua familiaridade brutal dá lugar à estranheza, como se uma dimensão de ficção não desejada e não pretendida as reinvadisse, Isolando, aumentando e justapondo fragmentos de imagens comerciais, Prince aponta para a invasão desses fantasmas de ficção nessas imagens, Focando diretamente no bem de consumo como fetiche, e usando com maestria a ferramenta do fetichismo do bem de consumo, as fotografias refotografadas de Prince adquirem uma dimensão hitchcokiana: o bem de consumo torna-se um Indício, Adquire, pode-se dizer, uma aura, só que agora é uma função não de presença, mas de ausência, separada de uma origem, de um gerador, da autenticidade, Em nosso tempo, a aura tem-se tornado somente uma presença, quer dizer, um fantasma,

Dcugla> Cntnp é doc!o," pela Ci!y Un,versl!y of New York desde 1994, professor de HlStótia da Arte e ~tudos Cufturais e VISuaIS, critico de arte, colat~:>radof/editor da revior;t.;l CXtaber. Conhecido corno leórico do pós-modcmtsmo nas artes vl'Suaís, d~ntre suas pubr<aç6es destaca-se 00 lhe MLiSeum's Ruins. Mrf Pres), 1993.

Tradução: Claudia Tavares Revisão técnica: Glória Ferreira

Notas

I Walter Benjamim, 'A pequena história da Fotografia ", citado a . partir da tr. br de Sérgio Paulo Rouanet, in: Walter

Benjamim, Obros Escolhidos. Magia e técnico, arte e político, São Paulo: Brasiliense, 1987: 92, Todas as citações deste texto são feitils a partir dessa tradução. (NRT)

2 Douglas Crrmp, "Pdures", Octcber n.8, p,irrovera 1979: 75-88,

J Walter Benjamin, 'A obra de arte na era de sua reprodutibll idade técn ica", in op, Clt.: 165- 196,

< Water Benjamin, "A peque0a histórra da Fotografia",op. cit. : 98.

S Idem Ibidem: 99,

"Idem ibidem: 94,

7 Wa~er Benjamin, 'A obra de arte na era de sua reprodutlbilidade técnica", op. cit.

8 Walter Benjamin, '" pequena histó,1a da fotografia", op, cir.: 100.

9 Idem ibidem: 10 1.

10 Barbara Rose, Americon Painting: The Elghties, Bulfalo, Thoren-Sidney Press, 1979,

! I A urgência dessas queslões evidenCiou-se IniCialmente para mim lendo o editorial preparado por Annette Michelson para o número 5 de OClOber, edição especial sobre fotografia (verão 1978: 3-5),

12 Sherrie Levlne, declaração Inéditil, 1980.

13 Há na expressão self-creoted um duplo sentido da palavra se/r JOgo sobre a criação do eu e outo-crioçao, (NRT)

TEM A TIC A ' D OUGLAI CR I MP 133 l