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| 99 Anais II Cong. Int. Uma Nova Pedagogia para a Sociedade Futura | ISBN 978-85-68901-07-6 | p. | set. 2016. A arquitetura como ferramenta de construção da cidadania Rafael De Conti Lorentz 1 - UFRGS Subtema: Como ambientes educativos formais e informais formam cidadãos capazes de compreender e cumprir seus deveres pessoais e sociais. Resumo O trabalho investiga o papel da arquitetura como ferramenta capaz de materializar um espaço que estimule a construção da cidadania baseada no indivíduo como protagonista responsável. Para isso, desenvolve uma reflexão teórica acerca da dimensão existencial do espaço construído e da importância do vínculo de identidade entre este e o usuário como fundamento da compreensão do indivíduo como cidadão. Como consequência, o espaço público é analisado como pano de fundo primordial sobre o qual se estrutura uma dinâmica de estímulo a valores que promovem a cidadania ou, o que seria o oposto, a massificação do indivíduo. Como estudo de caso, apresenta o projeto para a renovação de uma praça pública localizada no município de Horizontina, no Rio Grande do Sul, desenvolvido entre março e abril de 2016. O projeto surge dentro do contexto de um trabalho de capacitação comunitária mais amplo, promovido por uma organização não governamental. As etapas de desenvolvimento e as decisões de projeto são apresentadas descrevendo a relação dos fenômenos arquitetônicos com a intenção de retomada do sentido de comunidade baseada no cidadão como protagonista responsável. Espera-se que o trabalho apresentado contribua para a compreensão dos aspectos subjetivos da arquitetura enquanto construção coletiva e da valorização do seu papel social ao promover a lógica de responsabilização do cidadão frente ao espaço público. Palavras-chave: Arquitetura; Cidadania; Identidade; Espaço Público 1. Introdução: a dimensão existencial do espaço O termo arquitetura, em sua etimologia, é formado pela união dos termos gregos arché e tekton 2 . O primeiro se refere à noção de princípio, de origem, algo anterior ou mais antigo, e está presente também nas palavras arquétipo e arqueologia. O segundo se relaciona com a ideia de construção, de materialização, de transformar algo em realidade. Em termos práticos, podemos aferir que a função da arquitetura, seria a de traduzir em termos de espaço e tempo (aqui e agora) uma ideia ou princípio gerador, ou seja, construir o ambiente humano de acordo com uma informação inicial que, sem a arquitetura, não se projeta para a existência. Como disse Louis Kahn, “o que o homem faz deve responder às leis da natureza. O que a natureza faz, faz sem o homem, e o que o homem faz, a natureza não pode fazer sem ele 3 ”. A determinação objetiva sobre qual informação constituiria esse princípio 4 do qual falamos é tarefa complexa, e certamente excede o argumento possível de ser abordado no presente trabalho. De todo 1 Arquiteto graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2011. Mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR) da UFRGS, em 2016. Desde 2014 atua à frente do escritório Boa Arquitetura, baseado em Porto Alegre. E-mail: [email protected] 2 MENEGHETTI, A. OntoArte: o Em Si da arte. Florianópolis: Ontopsicologica Editrice, 2003, p. 255 3 McCarter, R. Louis I. Kahn Complete Works. Phaidon Press, 2005, p. 158 4 Segundo Meneghetti, “o princípio é a ordem ecológica como percebida pela ordem organísmica ou viscerotônica, a qual, por sua vez, é a direta fenomenologia da ordem psíquica do homem”. 99-110

A arquitetura como ferramenta de construção da cidadania

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Anais II Cong. Int. Uma Nova Pedagogia para a Sociedade Futura | ISBN 978-85-68901-07-6 | p. | set. 2016.

A arquitetura como ferramenta de construção da cidadania

Rafael De Conti Lorentz1 - UFRGS

Subtema: Como ambientes educativos formais e informais formam cidadãos capazes de compreender e cumprir seus deveres pessoais e sociais.

ResumoO trabalho investiga o papel da arquitetura como ferramenta capaz de materializar um espaço que estimule a construção da cidadania baseada no indivíduo como protagonista responsável. Para isso, desenvolve uma reflexão teórica acerca da dimensão existencial do espaço construído e da importância do vínculo de identidade entre este e o usuário como fundamento da compreensão do indivíduo como cidadão. Como consequência, o espaço público é analisado como pano de fundo primordial sobre o qual se estrutura uma dinâmica de estímulo a valores que promovem a cidadania ou, o que seria o oposto, a massificação do indivíduo. Como estudo de caso, apresenta o projeto para a renovação de uma praça pública localizada no município de Horizontina, no Rio Grande do Sul, desenvolvido entre março e abril de 2016. O projeto surge dentro do contexto de um trabalho de capacitação comunitária mais amplo, promovido por uma organização não governamental. As etapas de desenvolvimento e as decisões de projeto são apresentadas descrevendo a relação dos fenômenos arquitetônicos com a intenção de retomada do sentido de comunidade baseada no cidadão como protagonista responsável. Espera-se que o trabalho apresentado contribua para a compreensão dos aspectos subjetivos da arquitetura enquanto construção coletiva e da valorização do seu papel social ao promover a lógica de responsabilização do cidadão frente ao espaço público.

Palavras-chave:Arquitetura; Cidadania; Identidade; Espaço Público

1. Introdução: a dimensão existencial do espaço

O termo arquitetura, em sua etimologia, é formado pela união dos termos gregos arché e tekton2. O primeiro se refere à noção de princípio, de origem, algo anterior ou mais antigo, e está presente também nas palavras arquétipo e arqueologia. O segundo se relaciona com a ideia de construção, de materialização, de transformar algo em realidade. Em termos práticos, podemos aferir que a função da arquitetura, seria a de traduzir em termos de espaço e tempo (aqui e agora) uma ideia ou princípio gerador, ou seja, construir o ambiente humano de acordo com uma informação inicial que, sem a arquitetura, não se projeta para a existência. Como disse Louis Kahn, “o que o homem faz deve responder às leis da natureza. O que a natureza faz, faz sem o homem, e o que o homem faz, a natureza não pode fazer sem ele3”. A determinação objetiva sobre qual informação constituiria esse princípio4 do qual falamos é tarefa complexa, e certamente excede o argumento possível de ser abordado no presente trabalho. De todo

1 Arquiteto graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2011. Mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR) da UFRGS, em 2016. Desde 2014 atua à frente do escritório Boa Arquitetura, baseado em Porto Alegre. E-mail: [email protected] MENEGHETTI, A. OntoArte: o Em Si da arte. Florianópolis: Ontopsicologica Editrice, 2003, p. 2553 McCarter, R. Louis I. Kahn Complete Works. Phaidon Press, 2005, p. 1584 Segundo Meneghetti, “o princípio é a ordem ecológica como percebida pela ordem organísmica ou viscerotônica, a qual, por sua vez, é a direta fenomenologia da ordem psíquica do homem”.

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modo, à parte essa imprecisão epistêmica, devemos reconhecer que a arquitetura carrega, de modo intrínseco, um potencial de síntese de valores subjetivos que são determinantes à sua formalização concreta enquanto espaço construído. Mesmo que se materialize em termos de parede, teto, janela ou porta, estes fenômenos possuem um sentido, um significado que se relaciona com o princípio que os define. O espaço construído, portanto, ação radicalmente humana de transformação da realidade, opera como mediador entre o indivíduo e seu contexto, possui a capacidade de informar o sujeito a respeito daqueles valores que o determinam.

A compreensão da arquitetura como objeto capaz de reunir um significado existencial ao homem é explorada por Norberg Schulz, tomando como ponto de partida e definição de Martin Heidegger do termo habitar. Segundo Heidegger, que procura definir o fenômeno da existência humana em torno da ideia de ser-no-mundo (Dasein), o ato de habitar propicia ao homem um reconhecimento existencial, enquanto sintetiza, em um objeto, a estrutura da existência humana. O homem habita, portanto, quando é capaz de se orientar em um ambiente e de se identificar com o mesmo. Habitar não se configura em um mero refúgio, mas implica a criação de um vínculo de identidade entre usuário e espaço, ou seja, o homem deve reconhecer ali algo de si próprio, fazendo com que o espaço se torne lugar. Esse, por sua vez, é definido por Schulz5 como um espaço dotado de um caráter específico, retomando o conceito de genius loci, ou espírito do lugar. O objetivo da arquitetura seria justamente o de concretizar o genius loci de cada situação específica, criando um espaço construído no qual o homem seja capaz de projetar a sua identidade.

Mesmo que a imagem mais recorrente que surja quando tentamos descrever esse espaço existencial seja a do indivíduo e sua casa, sendo esse o lugar mais radical do homem, a mesma estrutura de representatividade ocorre na constituição dos espaços públicos. Se a casa é a delimitação da unidade de ação do indivíduo, constitui seu espaço de liberdade e, sobretudo, a manifestação da sua identidade funcional, o espaço público é o fenômeno que torna visível os valores e a cultura de uma determinada comunidade. Tanto quanto o morador deve reconhecer algo de si (iso) na casa em que habita, cada indivíduo deve ser capaz de identificar no espaço coletivo a sua participação no corpo social que o envolve. A praça é o espaço público dotado de maior importância e valor simbólico em todas as culturas. Bem mais que um espaço com escala necessária para os eventos em que deve reunir-se toda a comunidade, como festas ou execuções, a praça é o espelho em que a comunidade pode enxergar-se como unidade. Em nossa cultura ocidental, não é à toa que a praça tende a ser construída em conjunto com os equipamentos públicos de maior importância, como palácios de governo, teatros e igrejas, formando assim a interface visível entre o indivíduo e o aglomerado de instituições e valores que definem a cultura, os estereótipos e as leis de seu tempo.

A capacidade do espaço público de promover o estabelecimento de um vínculo de identidade com o indivíduo é a base da relação de reciprocidade que sustenta a construção da cidadania em um determinado corpo social. Como ressalta Cacciari6, o termo latino civitas, do qual deriva a palavra cidade, difere substancialmente do termo grego polis. Se para os gregos

5 NORBERG-SCHULZ, C. Genius Loci. Electa – Documenti di Architettura, 2005, p. 56 CACCIARI, M. A Cidade. Gustavo Gili, 2009.

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a união de indivíduos em um coletivo estava baseada em um vínculo de origem ou sangue, a noção romana de comunidade se apoia na reunião de indivíduos sob uma determinada lei. Enquanto a polis tende a expressar um grupo de pessoas com a mesma origem e, portanto, mais relacionada ao lugar, civitas expressa a noção de um grupo de pessoas diferentes unidas pelo respeito a regras e leis comumente acordadas. Da mesma raiz latina que deriva a palavra cidade, temos também cidadão, civilidade e cidadania. Essa última é a característica ou qualidade do cidadão, aquele indivíduo que faz parte da civitas ao reconhecer o conjunto de convenções que delimitam as relações sociais naquele contexto específico. A praça, portanto, tem o papel simbólico de representar o acordo sobre o qual se baseia a convivência em sociedade, e que exige uma impostação responsável por parte do indivíduo. Ela é o lugar da cidadania, o espaço de mediação entre um cidadão e os demais, o qual tem sua existência e direitos reconhecidos enquanto respeita exatamente os mesmos termos em relação ao outro.

O fundamento da cidadania, portanto, é o reconhecimento da própria responsabilidade frente ao outro, tendo como mediador o coletivo. Para tanto, o indivíduo deve ser capaz de identificar no todo algo de si, deve ver-se partícipe daquela comunidade. Caso contrário, fica-se à margem, não é possível respeitar a cidadania sem ao menos tê-la. Ao não reconhecer a si mesmo na civitas, o indivíduo automaticamente anula a reciprocidade-base que valida a existência do outro, e, portanto, não existe mais a compulsão ao dever, ao comportamento responsável frente aos seus concidadãos. O espaço público é o reflexo direto da manutenção ou rompimento de uma cultura que suporte o exercício da cidadania. Se tomamos como exemplo as piazzas italianas renascentistas, veremos que existe ali um espaço capaz de traduzir de modo muito claro relações que estimulam o protagonismo responsável do cidadão. Nelas, a arquitetura está pensada à medida do homem, facilitando a ocupação do espaço público na farta utilização de bancos, fontes e escadarias. Todos esses elementos são sempre lugares para uso do cidadão, seja qual for seu papel na sociedade. As loggias situadas ao térreo fornecem abrigo para o encontro informal entre as pessoas, enquanto as moradias dos pavimentos superiores se abrem diretamente para a praça ou para a rua. De uma forma muito direta, o privado e o coletivo são colocados em constante interface, estimulando a convivialidade positiva entre os cidadãos e a consequente apreensão de um senso de civilidade a priori. Do lado oposto, podemos verificar que o urbanismo aplicado a partir do século XX sacrificou a qualidade e a importância dos espaços públicos, e que, nas grandes cidades, a maioria das praças se tornaram o local de reunião de todos os comportamentos viciosos e degradantes, justamente opostos à noção de cidadania. A fragmentação do espaço urbano se dá com mais força justamente nas cidades que se desenvolvem a partir do segundo Pós-Guerra, e traz em si a marca indelével de uma cultura de massa, seja na disseminação do transporte via automóvel, seja na perda de importância do espaço público enquanto componente cultural. O resultado é um ciclo vicioso em que os indivíduos não mais se reconhecem enquanto cidadãos. O corte do vínculo de identidade entre o indivíduo e o espaço público rompe o vínculo sobre o qual se baseia a cidadania, transformando o homem em massa, não mais cidadão. A retomada do indivíduo como protagonista responsável da sociedade em que se insere passa, fundamentalmente,

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pelo restabelecimento do vínculo de identidade que fundamentará a atuação da cidadania.

Fig. 01: A praça do Capitólio, em Roma: projetada por Michelangelo no século XVI. (Fonte: vitruvius.com.br)

Fig. 02: A praça da Sé, em São Paulo. (Fonte: www.oglobo.com)

2. Desenvolvimento: a comunidade de Paraíso

A experiência prática que justifica o presente trabalho, e que é apresentada no que segue, surge como uma oportunidade de aplicação do entendimento da relação entre espaço público e cidadania através do desenvolvimento do projeto de arquitetura para uma praça. Localizado no Noroeste do Rio Grande do Sul, Horizontina é um município de aproximadamente 20 mil habitantes cuja economia possui relação direta com o agronegócio, seja através do cultivo da terra, seja pelo setor metal-mecânico. A multinacional John Deere, fabricante de maquinário agrícola, é a maior empresa da cidade, responsável pela geração de postos de trabalho e de valor capazes de garantir a Horizontina um dos maiores IDH do estado. Nesse contexto, a Fundação John Deere, braço de ação social ligado à empresa, promoveu a instalação na cidade de um núcleo da organização não-governamental Global Communities (GC)7, responsável por fomentar projetos de desenvolvimento sustentável em diversos países. Em Horizontina, a organização promove, desde 2015, um projeto voltado para comunidades de baixa renda chamado “Semeando o Futuro”. Com três anos de duração, o projeto começou identificando comunidades em situações de vulnerabilidade social, buscando mobilizar seus líderes para a transformação de sua realidade socioeconômica. Dentre as ações realizadas, a GC incentivou a criação de associações de bairro e criou parcerias com as faculdades da cidade para oferecer cursos profissionalizantes aos moradores. Dentro da implementação do Semeando o Futuro na comunidade do Bairro Paraíso, ao mapear as demandas e desejos dos moradores sobre quais ações seriam importantes para o desenvolvimento local, a equipe da GC se deparou com a intenção de executar uma revitalização na praça do bairro. É a partir daí que surge a oportunidade de nossa colaboração, ao longo dos meses de março e abril de 2016, ao prestar o serviço técnico de desenvolvimento do projeto de arquitetura necessário para o escopo, através do escritório Boa Arquitetura8.

7 Disponível em <h/ttp://www.globalcommunitiesbrasil.org/>8 www.boaarquitetura.com

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Fig. 03: Vista aérea da localização do Bairro Paraíso em relação ao centro da cidade. (Fonte: Google Earth)

O Bairro Paraíso está afastado do centro da cidade de Horizontina, em uma área de baixa densidade nas proximidades do aeroporto e do parque de exposições. Sua distribuição na malha urbana faz com que esteja razoavelmente isolado, cercado por áreas de lavoura e com acesso por uma estrada secundária. Seus moradores possuem um perfil de baixa renda e escolaridade, muitos vivendo em lotes sem título de propriedade, resultado de ocupações informais anteriores. O transporte para o centro é feito por ônibus, com baixa frequência, e as crianças devem se deslocar até outras localidades para ir à aula, visto que a escola do bairro foi fechada já há alguns anos.

É justamente esta estrutura abandonada o elemento mais marcante da atual praça de Paraíso. O edifício térreo, onde funcionava uma escola de ensino fundamental, encontra-se em ruínas em meio à praça. Esta, de formato triangular, tem interface com casas de moradores a oeste e sudeste, e com uma grande área de lavoura ao norte. Em sua ponta leste, justamente a direção da estrada que leva ao centro da cidade, possui uma pequena parada de ônibus. A porção oeste, mais larga, é ocupada por vegetação alta e fechada, sob a qual resta a ruína da antiga escola. O espaço central da praça abriga um improvisado campo de futebol, onde as crianças costumam brincar nos finais de semana.

A principal reivindicação da comunidade era justamente a recuperação do edifício abandonado. De fato, a realidade que encontramos se apresenta como um infeliz paradoxo. Em tese, a existência de uma escola construída junto à praça de uma comunidade pequena, em um ambiente arborizado e tranquilo, deveria criar um lugar público de intensa vitalidade, capaz de incentivar o convívio entre os moradores, dar às crianças espaços para brincadeiras e aulas ao ar livre, materializar a identidade daquela comunidade em um lugar de amplo exercício da cidadania. A realidade, porém, é de uma praça abandonada em todos os aspectos, sem iluminação que permita seu uso noturno, sem pavimentação que permita caminhar em dias úmidos e sem nenhum suporte para o convívio entre os moradores.

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O resultado é o lugar da não-cidadania, um espaço incapaz de oferecer ao indivíduo qualquer sentido de pertencimento ou identidade, sem o qual não é possível que este se perceba como cidadão. Assim, evade-se da responsabilidade básica de construção da cidadania, e emerge o comportamento da massa, do indivíduo que não é nada. O resultado é que a estrutura abandonada não só passa a abrigar comportamentos delinquentes, como passa a incentivá-los, mesmo que inconscientemente. Aquilo que, um dia, abrigara um lugar de educação, se tornou um banheiro a céu aberto no coração do símbolo da civilidade.

Fig. 04 e 05: O campo de futebol e a parada de ônibus atuais da praça. (Fotos do autor)

Fig. 06 e 07: O edifício da escola abandonado em meio à vegetação densa. (Fotos do autor)

3. Resultados: uma hipótese construtiva

A primeira diretriz que traçamos, ao ter contato com a realidade de Paraíso, foi de que o projeto de arquitetura para a praça não deveria ser uma solução imposta por um grupo de técnicos externos, mas deveria envolver a comunidade desde a sua concepção inicial. Isso se deve ao fato, primeiramente, de que existem realidades e aspirações que só podem ser informadas pelos próprios moradores, e não podem ser substituídas por deduções ou ambições pessoais dos profissionais responsáveis. Em segundo lugar, dar à comunidade um papel ativo no desenvolvimento do projeto estimula a responsabilização dos moradores em relação a este, tanto no que tange a busca dos recursos necessários para a sua construção quanto na manutenção das novas estruturas ao longo do tempo.

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Assim, procuramos, com o apoio da equipe da Global Communities, dar à comunidade um protagonismo ativo no processo criativo, solicitando que os próprios moradores expressassem, através de desenhos e gráficos, as melhores soluções que imaginavam para a sua praça. Realizamos essa etapa em algumas reuniões, em que crianças e adultos desenharam seus projetos para a praça e os apresentaram para a comunidade com suas justificativas. Nesse momento, nosso papel foi de fornecer a orientação técnica para sintetizar as demandas, muitas vezes abstratas, em termos de soluções factíveis. Em outras palavras, nos preocupamos em conduzir o debate, registrando as aspirações da comunidade e conjugando estas com necessidades técnicas, como nivelamento do terreno e questões de drenagem, que sabíamos ter de atender, além de condicionantes legais.

Fig. 08 a 11: Registros da participação dos moradores durante o processo de projeto. (Fotos do autor)

O resultado desse processo colaborativo de projeto foi apresentado à comunidade para sua aprovação, e consta de uma tentativa de construção do espaço da cidadania no bairro Paraíso. Como primeira decisão de projeto, buscamos criar um elemento ordenador capaz de unificar os diferentes espaços, conectando os fluxos, mas, principalmente, gerando uma imagem que fizesse com que a praça seja percebida como um todo. Assim, surge um pequeno muro de contenção feito em alvenaria de tijolos aparentes que separa a praça em dois níveis. O muro assume uma forma curva, gerando espaços côncavos opostos junto à chegada na praça e junto ao campo de futebol. Ali, o nível inferior é adequado para a instalação de um campo definitivo, ao lado do qual está disposto uma quadra de vôlei de areia. O formato do muro de contenção propicia o estabelecimento de uma identificação marcante para a praça, e também cria um espaço de arquibancada voltada para o nível mais baixo do terreno, onde estão as quadras

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esportivas. Além disso, esse muro foi proposto de modo a subir 40 centímetros em relação ao nível mais alto do terreno, ou seja, em toda a sua extensão também configura um banco contínuo, criando inúmeros espaços para os usuários sentarem, conversarem e se encontrarem. O encontro entre os indivíduos é fundamental para o fortalecimento do sentido de comunidade.

Fig. 12 e 13: Diagrama da delimitação dos dois níveis da praça e distribuição das atividades.

Fig. 14 e 15: Vista aérea do projeto final, com destaque para o papel integrador do muro de contenção.

A inserção do muro permite a solução das diferenças topográficas do terreno em dois níveis principais. O posicionamento da área esportiva naquele inferior se justifica pela presença da arquibancada, pela insolação e pelo fato simples de que desse modo os usuários dos outros espaços ficam mais protegidos das bolas dos jogos. A arquibancada talvez seja o elemento mais ilustrativo da integração desejada para o espaço da praça. Ali, naquilo que seria um problema de nivelamento, procuramos criar uma estrutura que, em dias comuns, pode ser utilizada como banco informal, e em dias de jogos pode colaborar para a união dos moradores em torno de um momento de lazer e civismo. Na porção oeste do nível superior da praça está a maior parte das atividades. Junto à Rua Laguna foram posicionados, lado a lado, um espaço de ginástica ao ar livre e um parque infantil. O parque está logo na esquina, para permitir que os adultos, mesmo de suas casas, possam observar os filhos brincando, enquanto a academia funciona como interface protetiva entre o parque e o interior da praça. Na área junto à Rua México, bastante úmida por estar sob a copa fechada das árvores, distribuímos um grupo de churrasqueiras ao ar livre. Essas terão a função de dar o suporte necessário para que os moradores utilizem a praça aos finais de semana, como se fosse uma extensão de sua própria casa. Além disso, seu posicionamento evita que existam pontos vazios dentro da praça, criando sempre fluxos de usuários que tragam atividades e forneçam o controle da segurança através de sua presença.

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Fig. 16: Vista aérea da versão final do projeto.

Aquele que hoje é o principal símbolo do abandono, a escola em ruínas, será transformada no principal catalisador do sentido de cidadania que se espera da praça revitalizada. Sua estrutura será recuperada e ampliada para que passe a abrigar o Centro de Integração do Bairro Paraíso. Sua função será dar o suporte necessário para que todas as atividades comunitárias que precisem de espaços fechados possam ser realizadas. Está prevista a realização de cursos, campanhas de vacinação e pesagem de crianças, reuniões da Associação de Moradores, encontro de grupos de artesanato etc. Além disso, pretende-se que a estrutura do Centro de Integração possa ser alugada para a realização de aniversários, formaturas e eventos em geral, tanto para os moradores do bairro quanto de outras localidades, com a intenção de criar assim uma rentabilidade que permita a manutenção da estrutura ao longo do tempo. Para isso, nos preocupamos em prever, no projeto, as instalações necessárias para este uso. As duas salas existentes foram unificadas em um salão só, capaz de comportar o número previsto de pessoas. Também adaptamos os banheiros para a acessibilidade exigida e criamos uma cozinha interna que pudesse atender aos eventos. Foi criada uma varanda voltada para a porção oeste da praça, evitando que o edifício se fechasse para o entorno, e adicionada uma área aberta coberta, ampliando a estrutura de telhado. Espera-se, assim, que o Centro de Integração tenha condições de ser o grande ponto de convergência da comunidade de Paraíso.

Dentro da preocupação com a relação de identidade dos moradores com seu espaço público, fundamental para a intenção de construção de um espaço para a cidadania, estabelecemos uma paleta de cores para ser usada em todos os elementos instalados na praça. Composta por cinco tonalidades de laranja, escolhida justamente por sua força, a paleta está presente na estrutura metálica da cobertura do novo Centro de Integração e na estrutura dos bancos. A intenção é de que ela se torne um item de fácil leitura como característica do bairro, e poderia até mesmo migrar para camisetas ou outros itens menores. O laranja também é usado na estrutura da nova parada de ônibus, posicionada no extremo leste da praça. Substituindo a velha

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casinha existente, a nova proposta para a parada de ônibus cria um espaço de espera maior e com maior visibilidade, permitindo que esteja à vista desde todos os pontos da praça. Suas cores compõem, junto com um totem, a imagem mais marcante do bairro para aqueles que chegam pela estrada, criando para os moradores uma referência de orgulho sadio e de pertencimento.

Em termos gerais, todas as decisões de projeto foram direcionadas para a criação de um espaço amplo, integrado, que incentive o convívio e seja capaz de criar uma relação de identidade com os moradores do bairro. Vemos isso, sobretudo, na busca de criação de um espaço gentil, que estimule o convívio ao mesmo tempo que seja facilmente percebido como um todo. A inexistência de zonas cegas ou escuras desencoraja qualquer delinquência, com o reforço da nova iluminação proposta, visto que a presença dos outros lembra a cada usuário constantemente que ele é um cidadão, e que o espaço em que se encontra exige um comportamento adequado e responsável. A arquitetura, nesse caso, atua como catalisador das relações entre usuário e espaço capazes de reforçar a apreensão de um sentido de comunidade e, portanto, de cidadania, baseada sobre o indivíduo responsabilizado.

Fig. 17 e 18: Perspectivas mostrando o detalhe do Centro de Integração conforme a solução proposta para a

recuperação da estrutura abandonada da escola. Na estrutura metálica está presente a paleta de cores em tons de laranja. As duas imagens mostram a fachada oeste e o espaço das churrasqueiras ao ar livre.

Fig. 19 e 20: À esquerda, perspectiva mostrando detalhe da arquibancada. À direita, vista de chegada na praça,

com a nova parada de ônibus e o totem de identificação do bairro.

4. Considerações Finais: a construção do espaço da cidadania

O processo de revitalização da praça de Paraíso, apesar dos avanços obtidos com o desenvolvimento do projeto de arquitetura, tem ainda pela frente o duro desafio de ser integralmente realizado. Mesmo contando com o suporte técnico de nosso escritório e a mobilização iniciada pelo projeto Semeando o Futuro, com o trabalho da equipe da Global Communities, resta muito claro para todos que os protagonistas responsáveis pela sua

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realização deverão ser os próprios moradores. Esta incumbência está presente em decisões de projeto, como a da transformação do Centro de Integração em um espaço passível de ser explorado comercialmente e também na solução construtiva das novas estruturas utilizando alvenaria de tijolos aparentes, o que possibilita que a manutenção possa ser realizada pelos próprios moradores ao longo do tempo. Acima disso, existe a compreensão de que o esforço de mobilização para a execução do projeto é parte inerente daquele projeto maior, do qual a arquitetura é somente instrumento: a construção do espaço da cidadania no Bairro Paraíso. Tanto quanto o envolvimento dos moradores durante o projeto colabora para que estes sintam-se responsáveis pelo resultado final, também a sua responsabilização pela construção e manutenção da nova praça é fundamental para que a estrutura física seja dotada de um sentido de comunidade. As dificuldades naturais ao processo de concretização seguramente reforçarão o sentimento de responsabilidade dos moradores pelo lugar.

O projeto para a praça do Bairro Paraíso nos mostra o importante papel que a arquitetura tem na retomada de valores humanos fundamentais na dialética de nossa realidade urbana. O espaço estranho ao homem o torna indiferente, em última instância, a si mesmo, e o resultado é uma sociedade que sofre as consequências de sua própria marginalização. A cidadania só pode existir se for garantida a existência do cidadão, e esse só existe como tal se salvaguardar sua identidade funcional. Portanto, que o espaço seja feito à medida do homem é o melhor serviço que a arquitetura pode prestar à construção da cidadania do homem livre, protagonista responsável da sua existência.

Fig. 21: Moradores reunidos em frente a estrutura abandonada da escola. A mudança depende deles.

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5. Referências

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JIMENEZ, M. A psicologia da percepção. Piaget, 2003.

McCARTER, R. Louis I. Kahn Complete Works. Phaidon Press, 2005.

MENEGHETTI, A. Pedagogia Ontopsicológica. Ontopsicológica Editora Universitária, 2014.

MENEGHETTI, A. OntoArte: o Em Si da arte. Ontopsicologica Editrice, 2003.

NORBERG-SCHULZ, C. Genius Loci. Electa – Documenti di Architettura, 2005.

NORBERG-SCHULZ, C. Il Significato nell’a Architettura Ocidentale. Electa – Documenti di Architettura, 2005.

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VENTURI, R. Complexidade e Contradição em Arquitetura. Martins Fontes, 2004.

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