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2Um Bonde Chamado Desejo - Terence Williams - A Morte do ... · A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE Tradução de Flávio Rangel 1980 EDITOR: VICTOR CIVITA. CIP Brasil. Catalogação-na-Fonte

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Tennessee Williams UM BONDE CHAMADO DESEJO Arthur Miller A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE

Tennessee Williams UM BONDE CHAMADO DESEJO Tradução de Brutus Pedreira Arthur Miller A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE Tradução de Flávio Rangel

1980 EDITOR: VICTOR CIVITA

CIP Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro, SP Williams, Tennessee, 1911 W691u Um bonde chamado desejo / Tennessee Wil- liams ; tradução de Brutus Pedreira. A morte do caixei ro-viajante / Arthur Miller ; tradução de Flávio Ran gel. São Paulo : Abril Cultural, 1980. 1. Teatro estadunidense I. Pedreira. Brutus, 1904-1964. II. Miller, Arthur, 1915 III. Rangel. Flávio, 1934- IV. Título: Um bonde chamado desejo. V. Título: A morte do caixeiro-viajante. 78-0912 CDD-812.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Século 20 ; Teatro ; Literatura estadunidense 812.5 2. Teatro : Século 20 : Literatura estadunidense 812.5

TENNESSEE WILLIAMS (1914- ) VIDA E OBRA (Introdução a Um Bonde Chamado Desejo)

Títulos originais: A Streetcar Named Desire Death of a Salesman Copyright Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1980. Texto publicado sob licença de Tennessee Williams, Nova York (Um Bonde Chamado Desejo), copyright 1947 by Tennessee Wlliams. Tradução publicada sob licença da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, Rio de Janeiro (Um Bonde Chamado Desejo). Texto publicado sob licença de Arthur Miller, Nova York) A Morte do Caixeiro- Viajante), copyright 1948, 1949, 1951, 1952, 1975 by Arthur Miller. Tradução publicada sob licença de Flávio Nogueira Rangel, Rio de Janeiro (A Morte do Caixeiro- Viajante).

A humanidade é uma grande esperança perdida. Cada ho-mem está trancado dentro de si mesmo e sua alma é semelhante a um poço onde só o sofrimento vive e se agita. Solidão. loucura e marginalidade são os destinos das criaturas que se corrompem no dinheiro e no desejo — carcereiros da alma. Não há liberdade fora da morte. A vida é violência e ritual antropofágico. Os úni cos companheiros do indivíduo são o medo e a solidão. E. para eles. não há remédio; conseqüentemente, não há cura. Foi a partir dessa terrível visão de mundo que Tennessee Williams escreveu quase toda a sua obra. Pessimista e moralista, ele não consegue enxergar seu semelhante como alguém capaz de engendrar uma nova sociedade — menos atraente, talvez, mas com sentimentos e valores menos condenáveis. Suas personagens são criaturas tristes c solitárias: bêbados, poetas vagabundos, operários humilhados, mulheres reprimidas, homossexuais atordoados pela perseguição, atores sem papel, damas decadentes, virgens loucas, prostitutas feridas. Sem exceção, um mesmo estigma os tortura: estão sós. Sua dramaturgia caracteriza-se como uma longa e penosa confissão solta no tempo e no espaço. Acreditando que a natureza humana é basicamente corrompida e miserável, ele juntou ao pessimismo filosófico uma neurose pessoal que nem a psicanálise conseguiu arrefecer. Mas se as personagens pertencem ao mundo dos marginais e dos doentes, também são fruto da mais sincera compaixão humana. Assim, o público sempre recebeu seus dramas de braços abertos. Os recalques apresentados no palco pur-gam os espectadores de seus próprios recalques: nas neuróticas criaturas, cada um projeta a sua própria neurose. No entanto, se essa confissão obsessiva tornou Tennessee Williams cúmplice do público, ela conseguiu separá-lo da crítica. Os críticos o julgaram várias vezes como um autor superficial, distante da realidade nos temas que aborda. Arthur Millcr (1915). dramaturgo norte-americano de idêntico sucesso, chegou a afirmar que enquanto Tennessee Williams não mergulhasse suas personagens na história, elas jamais seriam verdadeiramente humanas. Não passariam de ficção novelesca e o dramaturgo teria sempre que usar o artifício formal da cruel-dade para manter vivo o interesse do público.

UMA INFÂNCIA INFELIZ Para Tennessee Williams, escrever é mais que um modo de expressão: além de um meio para se comunicar com a vida e um salto para a fama. tem sido um ritual subjetivo em que ele exorciza seus demônios e supera a perniciosidade da angústia. Filho do sofrimento e do preconceito (teve uma infância marcadamente repressiva), sua vida está sempre presente em sua obra literária. Em cada personagem que cria há um pouco dos fantasmas que povoam sua memória. Batizado como Thomas Lanier Williams, a própria escolha de seu pseudônimo representa um recuo no passado. Nascido em Columbus, sul dos Estados Unidos, em 1914, foi viver em St. Louis, Mississípi, para acompanhar o pai. Ali. por causa de seu sotaque sulino, os amigos lhe deram o apelido de "Tennessee". Em homenagem à sua origem, bem como ao sobrenome dos pais, ele passou a se assinar Tennessee Williams. A imagem prepotente do pai foi a principal marca que se fixou em sua personalidade. Cornellius Williams jamais deu im-portância a Tennessee. Ele lhe parecia um menino frágil e inconseqüente. Foi para Darkin, o filho mais novo, que se dirigiram todas as atenções e carinhos. Incompreendido, acusado e constantemente escarnecido pelo pai. Tennessee Williams refugiou-se na doçura da mãe. também submissa ao velho patriarca. Dos avós maternos guardou lembranças mais amenas. Aris-tocratas decadentes, os velhos acobertavam a precariedade eco-nômica e o ocaso social através de requintes cotidianos, fineza nos gestos e formalismo nas relações pessoais. Todo esse uni-verso, caracterizado pelo autoritarismo paterno e sensibilidade materna, seria revivido na obra de Tennessee Williams. Em Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire, 1947) uma de suas peças mais famosas, Stanley Kowalsky, o principal personagem masculino, tem muito da violência do ve-lho Cornellius. Blanche Dubois, a protagonista, é sobretudo uma criatura sensível, semelhante à figura da mãe. Em 1919, Cornellius abandona o Sul e vai para St. Louis. Um trabalho modesto, numa fábrica de calçados, leva a família a alterar o orçamento doméstico e mudar seu padrão de vida. Até então, Tennessee não conhecera a pobreza, nem a feiúra que havia nela. Os avós maternos fazem de tudo para esconder do menino a lamentável situação da família. Mas a miséria de St.

Como um animal acuado, Blanche rejeita o mundo sórdido e mesquinho que o rude Stanley Kowalskv a obriga a ver. Louis, com seus bairros pobres e sua gente cansada, humilhada pelo desemprego e pela fome, salta à vista. Agora não eram apenas a prepotência e a ignorância de Cornellius que atormentavam o menino. Um outro estigma viria juntar-se: o da pobreza. Para fugir à miséria e à insensibilidade paterna, Tennessee refugiou-se em seu quarto. Pintou-o de branco e enfeitou-o com um zoológico de animaizinhos de vidro. Só saía de seu refúgio para comer. O episódio marcou de tal forma sua sensibilidade que serviu de base para uma de suas peças mais famosas:À Margem da Vida (The Glass Menagerie, 1945). Em St. Louis. Tennessee Williams apaixonou-se pela primeira e única vez. Cornellius não permitiu o namoro, usando de todos os subterfúgios para impedi-lo. A jovem era neta de um empregado da loja onde trabalhava e sua mãe era divorciada — o que, para ele, não lhe conferia qualquer respeito moral. Tudo isso significava, para o preconceituoso Cornellius um sinal de fraqueza. Apaixonar-se por uma moça de origem social inferior e de passado moral pouco recomendável só podia ser mais uma humilhação a que o filho queria submetê-lo. Impedido de prosseguir seu romance, Tennessee fechou-se

no mutismo. Só muito tempo depois escreveria o conto O Campo das Crianças Tristes, onde desafogou o sofrimento desse período de repressão. O texto seria publicado na revista Weird Tales, onde o autor usaria pela primeira vez seu pseudônimo. Isso o esti-mulou a seguir a carreira jornalística. Assim, em 1931, ingressou na faculdade. Sofreu nova ofensiva do pai quando foi recusado pelo exér-cito. Cornellius. veterano de guerra, considerou a isenção do filho na carreira militar como uma afronta pessoal. Para puni-lo, obrigou-o a abandonar o jornalismo e empregou-o como auxiliar na fábrica de calçados. Como reação, Tennessee passou a freqüentar bares onde marginais de todo tipo promoviam orgias e bebedeiras. Vician-do-se pouco a pouco no ócio e no álcool, sofreu um penoso processo de degradação física e mental. E acabou interno num sanatório — bêbado, inútil e ocioso como seus companheiros. DO ANONIMATO AO SUCESSO Ainda no sanatório, Tennessee esboçou seu primeiro texto teatral, Cairo!Xangai! Bombaim! (1925), onde mostrava o mundo marginal que o conduzira ao esgotamento nervoso. Sempre sobre o mesmo tema, Tennessee escreveu mais três peças: The Magic Tower (1936). Candles to the Sun (1936) e The Fugitive Kind (1937). Sem uma estrutura equilibrada, esses primeiros trabalhos, apesar de terem sido bem recebidos pelo público da cidade de Memphis — onde Tennessee convalescia —, não arrancaram seu autor do anonimato. Ansioso por promover-se além do amadorismo, Tennessee Williams fez nova tentativa, enviando quatro peças de um ato para um concurso de dramaturgia de Nova York. A coletânea, reunida sob o nome de American Blues, foi premiada com a quantia de 100 dólares e uma agente de Hollywood, entusias-mada com a qualidade dos textos, chamou seu autor para escre-ver roteiros de cinema. Mas o cinema não seria ainda a porta definitiva do sucesso: o único roteiro que conseguiu concluir foi recusado e ele perdeu o contrato. Um novo momento de angústia seguiu-se ao episódio de Hollywood. Tennessee, porém, reagiu à depressão e escreveu sua 10

A chegada de Blanche: cansada, destruída, ela procura manter a aparência de uma aristocrata do Sul. Logo, porém, o choque com a realidade fará com que se desagregue. (Nas fotos, cenas do espetáculo dirigido por Elia Kazan em 1947, com Marlon Brando, Jessica Tandy, Kim Hunter e Karl Malden.)

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primeira peça realmente estruturada em termos teatrais: À Mar-gem da Vida. Encenada com estrondoso êxito de público e crítica, a peça colocava-o, finalmente, na vanguarda teatral, chamando a atenção dos principais produtores dos Estados Unidos. Procurado com insistência pelo meio teatral, e elogiado pela imprensa, Tennessee Williams entrou na roda viva do sucesso. Mas este não foi tão agradável como ele imaginara. Tornar-se homem público exigia compromissos e alianças muitas vezes desprezíveis, que violentavam a sua sensibilidade. Bombardeado incessantemente pela publicidade, devassado em sua vida íntima, o jovem dramaturgo chegou a ter saudade do tempo em que era apenas um poeta anônimo, amargando suas angústias no meio da madrugada. Em 1944 submeteu-se a uma operação de catarata e foi con-valescer no México onde, pela primeira vez depois do sucesso de À Margem da Vida, conseguiu um pouco de tranqüilidade. Autocriticou-se e comentou o mal que a fama lhe fizera num artigo belíssimo, "A Catástrofe do Sucesso". Mais duas peças nasceram desse período de crítica e repouso: Um Bonde Cha-mado Desejo e Anjo de Pedra (Summer and Smoke). Em 1947 Anjo de Pedra é montada em Dallas. Mais uma vez Tennessee conhece o sucesso. Desta vez, mais preparado emocionalmente, o barulho dos aplausos não o ensurdeceu. "Acho que será impossível escrever outra peça", disse para Carson McCullers (1917-1967), escritora que foi sua melhor amiga. Na época, trabalhavam juntos na adaptação teatral de um romance de Carson, The Memher of the Wedding (A Testemunha de Casamento). Não havia nenhuma indicação de que ele estivesse incapacitado para criações futuras: Anjo de Pedra nem bem acabara de estrear, e pouco tempo se passara entre o trabalho de elaboração daquele texto e a adaptação do romance de Carson. Um período tão curto longe da máquina de escrever não po-deria significar, para alguém menos angustiado, senão o descanso ou o tempo necessário para a interiorização profunda de um novo tema. Mas Tennessee se sentia estéril, apesar de o teatro ser a única expressão de seus sofrimentos pessoais. "Sim, eu já me senti bloqueado como autor. Mas o meu desejo de escrever sempre foi tão forte que consegui ultrapassar esse bloqueio", respondeu numa entrevista. E era verdade. "O desejo de escrever ao mesmo tempo o 12

Slanlev vasculha a mala de Blanche e o pouco que restou da fortuna de Belle Rève: jóias falsas, peles ordinárias e perfumes baratos. tortura — pois é voraz c insaciável — e o liberta, pois é seu meio de comunicação com a vida." Mas de outros desejos falaria em suas peças. Anjo de Pedra e o desejo sexual reprimido, a alma torturada. John e Alma — personagens principais do drama — são as figuras antagônicas da peça. John é a personagem materialista e mesquinha. Alma é o espirito, puro e torturado pelo desejo. Um Bonde Chamado Desejo também possui como tema cen-trai a mesma luta moralista e obsessiva. Blanche é a alma e Stanley o corpo. Se Anjo de Pedra foi sucesso. Um Bonde Chamado Desejo foi além do esperado. Encenada em todo o mundo, a peça foi traduzida em várias línguas e deu a Tennessee os prêmios Pulitzer e Critc's Award. FRACASSO E PSICANÁLISE Laureado, elogiado, sem nenhum obstáculo profissional. tendo nas mãos os produtores e diretores de teatro mais importantes do mundo, Tennessee foi descansar em Roma. 13

Pela primeira vez não se sentia estéril ao término de uma peça, pois já estava produzindo um romance: A Primavera da Sra. Stone (The Roman Spring of Mrs. Stone, 1950) e uma nova peça, A Rosa Tatuada (The Rose Tattoo, 195 1). A Rosa Tatuada é seu primeiro texto onde não se vê apenas o sofrimento e a marginalidade. Tennessee fez essa comédia num período feliz e no auge do sucesso. Mas a montagem de 1951 trouxe o primeiro fracasso: "A Rosa" não foi bem recebida pela crítica, que detestou seu otimismo lírico. Deprimido com o fracasso, o escritor tentou novamente o sucesso. Retomou uma antiga peça em um ato, Ten Blocks on Camino Real e escreveu Camino Real (1953). Mas os aplausos não vieram. A peça foi considerada vazia e idealista. Em 1955 escreveu Gata em Teto de Zinco Quente (Cat on a Hot Tin Roof). Dirigida por Elia Kazan, "Gata" deu novamente a Tennessee a alegria perdida dos aplausos. E os prêmios Pulitzer e Critc's Award. Menos ansioso que nas duas estréias anteriores, escreveu a peça de que mais gosta: A Descida de Orfeu (Orpheus Descending, 1955), recolocando nela o tema da alma torturada pelo desejo. Desta vez, com mais veemência, a crítica o arrasou. "Orfeu" foi considerada uma peça moralista e superficial, e Tennessee saiu-se das acusações gravemente abalado em sua autoconfiança. Afinal, se "Orfeu" é, em sua opinião, a melhor coisa que escrevera, por que esse repúdio da crítica? Temendo, mais que a esterilidade, a incapacidade de julgar o próprio trabalho, entrou em crise de depressão. Com a morte do pai, em 1956 — e tendo perdido o avô em 1958 —, Tennessee decidiu fazer psicanálise. Era insuportável a tensão diária em que vivia. Preferiu mergulhar em seus fantasmas interiores, mesmo que esse mergulho o ferisse mais que o fracasso. Com a psicanálise mais uma fase se iniciou. De Repente, no Último Verão (Suddenly Last Summer, 1958) é a primeira peça da chamada fase "psiquiátrica". Sebastian, principal perso-nagem, é um homossexual que é devorado por uma turba de rapazes. Interrogado sobre o porquê desse terrível episódio. Tennessee afirmou: "O indivíduo é um antropófago da pior espécie(. . .). Todo mundo está disposto a devorar todo mundo ..." Devido a essa afirmação, a fase "psiquiátrica" foi também chamada de "fase antropofágica". E acabou exatamente quando 14

Na barulhenta e miserável casa dos Kowalsky, surge uma réstia de esperança para a patética Blanche: o amor de Mitch. De maneira implacável, porém, ela vê destruída sua última possibilidadede recuperação. 15

a psicanálise acabou. Recebendo alta de seu analista, Tennessee ingressou numa nova etapa, fusão de todas as anteriores. Doce Pássaro da Juventude (Sweet Bird of Youth, 1959). Período de Ajustamento (Period of Adjustment, 1960) e Noite do Iguana (The Night ofthe Iguana, 1962) são as principais peças escritas depois da psicanálise. Elas contêm os mesmos temas dos outros textos — solidão, marginalidade, violência —mas não agradaram à crítica. Doce Pássaro de Juventude conta a história de uma velha atriz e seu amante. Praticamente a mesma trama reaparece em The Milk Train Doesn't Stop Here Anymore (1964), que mais tarde seria adaptada por Joseph Losey para o cinema, com Liz Taylor, Richard Burton e Noel Coward nos papéis principais. Quando Tennessee escreveu The Seven Descendents of Myr-tle (1968), os jornais simplesmente tentaram destruí-lo. Somente em 1970 ele encontraria forças para voltar a expor-se publicamente. Nesse ano decidiu procurar um novo rumo para sua dramaturgia e um novo estilo para suas personagens. Os temas centrais foram mantidos: morbidez, marginalidade e repressão sexual. A linguagem mudou: tornou-se fria, distan-ciada. E as personagens também são mais desgrenhadas que as anteriores, não lhes sobrando uma ponta de dignidade. Nas peças anteriores, apesar de contundidas, as criaturas de Tennessee mantinham certa decência pessoal, dentro de um có-digo de ética muito particular. Agora elas são predominante-mente mesquinhas e medíocres — sendo a mediocridade o que Tennessee considera o pior de todos os defeitos. Mas Dragon Country (1970), volume que contém uma série de peças em um ato, não o reconciliou com a crítica. Inseguro e temendo a esterilidade — fantasma que o perseguira durante toda a vida —, Tennessee relembra sucessos e fracassos afir-mando: "Cada escritor, ao longo de sua vida, exprime um único tema. Para mim, esse tema é a necessidade de compreensão". A MULHER QUE ESPERAVA O AMOR Blanche Dubois, protagonista de Um Bonde Chamado Desejo, é a personagem mais rica de Tennessee Williams. Tem co-movido platéias de todo o mundo com sua ambígua neurose, sua fome de amor, sua ânsia de compreensão. 16

O interesse de Blanche é despertado por pequenos e sensíveis detalhes: Mitch fuma cigarros finos, possui uma cigarreira de prata e gosta de poesia. A peça conta uma estória simples. Mas é na descrição apai-xonada e cúmplice das personagens que reside sua grande força dramática. A irmã de Blanche, Stella, casara-se com Stanley Kowalsky, homem pobre e rude. Para Blanche é muito difícil compreender que a irmã, educada de maneira aristocrática e sensível, tenha se apaixonado por um polonês ignorante e grosseiro. Após a ruína da família cada uma das irmãs seguira um destino próprio. Stella adaptou-se ao mundo de seu marido. Blanche manteve a postura aristocrática, os gestos finos, a sensibilidade exacerbada. No entanto foi profundamente infeliz na sua 17

vida amorosa: seu marido homossexual acabara por suicidar-se. O episódio da morte do jovem provocou-lhe violenta depressão e, a partir de então, ela se prostituiu. Mas a prostituição não foi para Blanche um meio de remendar a miséria econômica. An-tes de mais nada serviu como desrecalque sexual de uma mulher que queria amor e nunca pôde encontrá-lo. A peça começa quando Blanche — recém-expulsa do colégio onde lecionava — vai pedir auxílio a Stella. Acusada de tentar seduzir um aluno adolescente, ela fora demitida como imoral. E o que se passou entre esse fato e a sua chegada à casa da irmã permanece obscuro e fantasioso. Stanley sente-se agredido com a visita daquela mulher refinada que todo o tempo ironiza a sua rudeza. Começa então a investigar seu passado. E descobre que Blanche havia se prosti-tuído num hotel de marginais. A descoberta causa alívio — ao invés de perplexidade —, pois ele encontra finalmente o argu-mento que precisava para expulsar a cunhada de casa. Quando concluiu a investigação, Blanche fazia a última ten-tativa para encontrar o amor na pessoa de Mitch, amigo de Stanley. Ela havia mentido sobre o passado para não perder o respeito do rapaz. Stanley é impiedoso: conta o que sabe a Mitch, que imediatamente desfaz o noivado e abandona Blanche. Enquanto Stella está dando à luz na maternidade, Stanley se embriaga e atira por terra o que resta de são na personalidade da cunhada. Violenta-a, e daí por diante ela vai enlouquecendo até o momento final da peça, quando ele chama os médicos de um hospício vizinho para interná-la. "Sempre dependi da delicadeza de estranhos", diz Blanche ao médico que a conduz suavemente para fora de cena. Sem saber que vai para um hospício, ela sorri para o médico e elegantemente se deixa levar. Quando entrevistaram Tennessee sobre essa personagem, ele contou que a primeira imagem que tivera de Blanche foi a de uma mulher sentada numa cadeira, olhando o vazio, à espera de qualquer coisa. "Talvez o amor". . . Um Bonde Chamado Desejo é principalmente o drama das ilusões e frustrações de uma mulher hipersensível, traumatizada por uma decepção amorosa. Frente a um homem vigoroso e verdadeiramente primitivo em sua rude espontaneidade, ela se sente ferida e, ao mesmo tempo, irremediavelmente atraída. É um forte e reprimido desejo sexual que a incomoda e repugna. 18

Stanley violenta Blanche, atirando por terra o que restava de são em sua personalidade. Daí por diante ela enlouquecerá gradativamente.

Tennessee Williams afirmou ser Blanche sua personagem mais racional. Blanche é, de fato, uma figura singular. Refinada e nostálgica de seu meio social — onde as mulheres, seres delicados, são protegidas pelos homens —, ela se considera superior a todos os que a rodeiam. Reagindo dessa forma, ela recusa a realidade do sórdido mundo em que se viu obrigada a viver. Quando Mitch destrói as lanternas de papel que ela colocara no apartamento de Stella, ela explode: "Não quero realismo. Eu quero magia. Sim, sim, magia. É o que tento dar às pessoas. Não digo a verdade, digo o que deveria ser verdade. E se isso é pecado, que eu seja amaldiçoada para sempre". Blanche recusa a pobreza. Não aceita as necessidades criadas pela miséria. Assim, ela rejeita o mundo e o caráter rude e imediatista das pessoas que a rodeiam. Sua fragilidade, suas roupas, sua linguagem e sua vontade de manter a integridade são valores agressivos num mundo onde as pessoas estão preocupadas fundamentalmente com a luta pela sobrevivência. Essa postura a isola de todos, inclusive de sua irmã, Stella. Adaptando-se de maneira prática e realista à sua vida com Stanley, Stella aprendeu a aceitar a pobreza e o meio social em que vive. É a forma que encontrou para manter-se viva. Stella é cúmplice do internamento da irmã. Sente-se culpada quando o médico vem buscá-la. Mas, quando Blanche finalmente é levada para o hospício, ela se apóia em Stanley — seu refúgio, seu presente e seu futuro —, sabendo que, ao livrar-se de sua irmã, sua vida retomará o curso normal. Verdadeiro contraponto à figura de Blanche, Stanley é uma personagem permanentemente voltada para o presente. Ele é a resposta viril e sem arestas à decadência aristocrática de Blanche. Stanley vive quase ao "rés-do-chão". Importa-lhe o presente e suas necessidades primárias: comer, dormir, fazer amor, jogar e beber com os amigos. Para viver a seu lado é preciso ser forte. Ele não compreende as sutilezas, a sensibilidade ou a poesia. Quando denuncia o passado da cunhada, cumpre uma sentença que julga necessária para si e para todos os outros que o rodeiam: é preciso que a vida continue. Cada personagem da peça exprime, na realidade, um único tema, comum a toda obra de Tennessee Williams: a necessidade de compreensão para indivíduos atingidos pela marginalidade. Tennessee Williams não divide o mundo entre o bem e o mal. Ele se revolta fundamentalmente contra o puritanismo 20

Vivien Leigh (Oscar de melhor atriz, 1951) e Marlon Brando, os extraordinários intérpretes da versão cinematográfica de Um Bonde Chamado Desejo. dentro do qual ele próprio foi criado e assinala permanentemente o caráter ambíguo da natureza humana. Mas não consegue evitar o moralismo, a nostalgia da pureza perdida e a colocação quase alegórica das personagens, símbolos da carne e do espírito. De qualquer forma, as perversões são para ele uma forma de purgação dentro de uma concepção cristã. O próprio final trágico de Um Bonde Chamado Desejo reflete esse sentido de purgação. A primeira montagem da peça foi realizada em 1947 e dirigida por Elia Kazan, fundador do Actors Studio de Nova York. Kazan deu a Jessica Tandy o papel de Blanche e a Marlon Brando — que estreava profissionalmente — o papel de Stanley. Dois anos depois, o espetáculo estreava em Londres, no Aldwych Thealre, sob a direção de Laurence Olivier e com Vivien Leigh 21

no papel de Blanche. Na versão cinematográfica, realizada em 1951 por Elia Kazan, os intérpretes escolhidos foram Vivien Leigh e Marlon Brando. No Brasil, tivemos duas atrizes que conseguiram interpretações marcantes no papel de Blanche Dubois: Henriette Morineau, na direção de Ziembinski. no início da década de 1950, e Maria Fernanda, dirigida por Augusto Boal, no espetáculo levado pelo Teatro Oficina de São Paulo em 1965. Nossa última Blanche foi Eva Wilma, dirigida por Kiko Jaess em 1975.

"Sempre dependi da delicadeza de estranhos ", diz Blanche ao médico e à enfermeira que a conduzem suavemente para fora de cena. 22

Tennessee Williams UM BONDE CHAMADO DESEJO Tradução de Brutus Pedreira Peça em onze cenas

PERSONAGENS BLANCHE STELLA STANLEY MITCH EUNICE STEVE PABLO UMA MULHER NEGRA UM MÉDICO UMA ENFERMEIRA UM JOVEM COBRADOR UMA MULHER MEXICANA A ação da peça se desenvolve durante a primavera, o verão e o começo do outono, em Nova Orleans.

C EN A I O exterior de um edifício de esquina de dois andares em uma rua de Nova Orleans, entre os trilhos da L & N e o rio. A região é pobre mas, ao contrário de regiões correspondentes em outras cidades americanas, tem um certo charme que emana de sua própria condição de lugar mal-afamado. As casas, em sua maioria, são estruturas brancas, desbotadas e cinzentas, com escadas externas a desmoronar e com galerias e cumeei-ras singularmente ornamentadas. Este edifício tem dois apartamentos, um no andar superior e outro no de baixo. Escadas de um branco esmaecido conduzem às entradas de ambos. Estão surgindo as primeiras sombras de uma noite do começo de maio. O céu que aparece ao redor do sombrio prédio branco é de um azul singularmente delicado, quase um azul-turquês a, o que veste a cena com uma espécie de lirismo e graciosamente atenua a atmosfera de decadência. Pode-se quase sentir o ar quente que vem do rio escuro, para além dos armazéns situados à beira do rio, com suas leves fragrâncias de 27

bananas e café. Uma atmosfera correspondente é evocada pela música de artistas negros que freqüentam um bar perto da es-quina. Nessa parte de Nova Orleans, na realidade, sempre se está próximo de uma esquina e sempre se ouve, algumas portas mais abaixo, na rua, o som de estanho de um piano que está sendo tocado com a apaixonada fluência de dedos escuros. Esse piano tocando blues expressa o espírito da vida que se leva nesse lugar. Duas mulheres, uma branca e outra negra, estão tomando ar nos degraus do edifício. A mulher branca é Eunice, que ocupa o apartamento de cima; a mulher negra é uma vizinha, pois Nova Orleans é uma cidade cosmopolita, e existe um relaciona-mento relativamente caloroso e descontraído de raças na parte velha da cidade. Acima da música do piano blue podem ser ouvidas as vozes de pessoas da rua sobrepondo-se ao som que vem do piano. (Dois homens estão dobrando a esquina, Stanley Kowalsky e Mitch. Eles têm entre vinte e oito e trinta anos de idade e estão vestidos rusticamente, com macacões azuis de trabalho. Stanley carrega sua jaqueta de boliche e um pacote manchado de vermelho que está trazendo do açougue. Eles param ao pé da escada) STANLEY Eh!Stella!Stella! 28

(Stella aparece no patamar; é uma jovem amável, tem cerca de vinte e cinco anos e uma formação obviamente muito diferente da de seu marido.) STELLA (ternamente) Não grite comigo desse jeito. Alô, Mitch. STANLEY Apanhe! STELLA Que é? STANLEY Carne! (Ele atira o pacote para ela. Ela grita, protestando, mas consegue apanhá-lo; então ela ri quase sem fôlego. Seu marido e o amigo já estão se dirigindo de volta à esquina.) STELLA (chamando por ele) Stanley ! Aonde é que você vai? STANLEY Jogar boliche! STELLA Posso ir ver? STANLEY Venha! (Sai.) 29

STELLA Vou já. (Para a mulher branca) Alô, Eunice, como vai? EUNICE Vou bem. Diga a Steve que arrange o que comer por lá, porque aqui não sobrou nada. (Todos riem; a mulher negra não pára de rir. Stella sai.) MULHER NEGRA O que é que tinha no pacote que ele jogou para ela? (Ela se levanta dos degraus, rindo mais alto.) EUNICE Quieta aí, agora! MULHER NEGRA Apanhar o quê! (Continua a rir. Blanche aparece na esquina, carregando uma valise. Olha para uma tira de papel, a seguir para o edifício, novamente para o papel e em seguida de novo para o prédio. Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada. Seu aparecimento destoa nesse cenário. Ela está elegantemente vestida, com um vestido branco de corpinho leve, colar e brincos de pérola, luvas e chapéu brancos, com a aparência de quem estivesse chegando a um chá de verão ou a um coquetel no parque do distrito. Ela

tem cerca de cinco anos mais que Stella. Sua delicada beleza deve evitar a luz forte. Há qualquer coisa em relação às suas maneiras e em relação às suas roupas claras que lembram uma mariposa.) EUNICE (finalmente) Que é que há, meu bem, anda perdida? BLANCHE (com um tom levemente histérico) Disseram-me que eu tomasse um bonde chamado Desejo, depois passasse para um outro chamado Cemitério, andasse seis quarteirões e desceria nos Campos Elisios! EUNICE É onde está, agora. BLANCHE Nos Campos Elisios? EUNICE É aqui, os Campos Elisios. BLANCHE Eles não devem ter compreendido muito bem o número que eu estou procurando. . . EUNICE Que número procura? (Blanche olha com enfado para a tira de papel.) BLANCHE Seiscentos e trinta e dois. 31

EUNICE Não precisa ir mais longe. BLANCHE (sem compreender) Estou procurando minha irmã, Stella Dubois — quero dizer — a senhora Stanley Kowalski. EUNICE É aqui mesmo. Por pouco se desencontrou dela. BLANCHE Ela mora aqui? EUNICE No andar de baixo e eu no de cima. BLANCHE. E ela não está? EUNICE Não reparou naquela cancha de boliche, antes de virar a esquina? BLANCHE Não, acho que não. EUNICE Pois é lá que ela está, vendo o marido jogar boliche. (Pausa.) Não quer deixar sua mala e ir lá procurá-la? BLANCHE Não, obrigada. MULHER NEGRA Vou dizer a ela que a senhora chegou. 32

BLANCHE Obrigada. MULHER NEGRA Seja bem-vinda. (Sai.) EUNICE Ela não estava esperando a senhora essa noite? BLANCHE Não, não. Essa noite não. EUNICE Bem, então porque é que não entra e fica à vontade até eles chegarem? BLANCHE Como poderia eu entrar? EUNICE Esta casa é nossa. Posso fazer a senhora entrar. Levanta-se e abre a porta do andar de baixo. Há uma luz atrás da veneziana, o que a torna azul-claro. Blanche lentamente a segue para o apartamento do andar de baixo. As áreas que o cercam escurecem à medida que o interior se ilumina. Podem-se ver dois aposentos, não muito bem definidos. O aposento em que elas entram primeiro é realmente uma cozinha, mas contém uma cama dobrável a ser usada por Blanche. O aposento além desse é um dormitório. Ao lado desse aposento há uma porta, a do banheiro.) 33

EUNICE (como que se desculpando, reparando no olhar de Blanche) Está um pouco desarrumada agora, mas, depois de limpa, fica muito agradável mesmo. BLANCHE É? EUNICE Hum, hum, eu acho. Então é irmã de Stella? BLANCHE Sou. (Querendo livrar-se dela) E obrigada por me ter feito entrar. EUNICE No hay de que, como dizem os mexicanos, no hay de que! Stella falou-me da senhora. BLANCHE Falou? EUNICE Acho que ela me disse que a senhora ensinava na escola. BLANCHE Sim, lecionava. EUNICE E é do Mississípi, não é? BLANCHE Sou. 34

EUNICE Ela me mostrou um retrato do lugar em que moravam, a fazenda. BLANCHE Belle Rêve? EUNICE Uma casa grande e bonita, com colunas brancas. BLANCHE É. . . EUNICE Uma casa como aquela deve ser bem difícil de manter. BLANCHE Se me dá licença, estou quase caindo. EUNICE Claro, meu bem. Por que não descança um pouco? BLANCHE Não, o que eu quis dizer é que eu gostaria de ficar só. EUNICE (ofendida) Ah ! bom, nesse caso eu vou dar o fora. BLANCHE Eu não quis ser rude, mas. . . EUNICE Vou dar um pulo à cancha de boliche e digo à Stella que venha já. 35

(Sai. Blanche se senta em uma cadeira, em posição bastante ereta, com seus ombros levemente arqueados, as pernas apertadas, bem juntas e as mãos segurando firmemente a bolsa, como se estivesse sentindo muito frio. Após algum tempo, um olhar sem brilho sai de seus olhos, e ela começa vagarosamente a olhar em volta. Um gato mia. Ela retém a respiração com um gesto de espanto. Subitamente nota alguma coisa em um ar-mário entreaberto. Levanta-se e cruza o aposento em direção a ele, apanhando uma garrafa de uísque. Enche meio copo de uísque e bebe rapidamente. Recoloca cuidadosamente a garrafa no seu lugar e lava o copo na pia. Em seguida, volta a se sentar em frente à mesa.) BLANCHE (em voz baixa, para si mesma) Preciso controlar-me! (Stella, apressada, dobra a esquina do prédio e corre para a porta do apartamento do andar de baixo.) STELLA (chamando alegremente) Blanche! (Por um momento elas se fitam uma à outra. Então Blanche salta e corre para ela com um grito ansioso.) BLANCHE Stella, oh, Stella, Stella! Stella que é Estrela! (Começa 36

a falar com vivacidade febril, como se temesse que qualquer uma delas parasse para pensar. Apertam-se num abraço impulsivo.) BLANCHE Deixe-me olhar para você. Não, mas não olhe para mim agora. Não, até mais tarde, quando eu tiver tomado um banho e estiver mais descansada. E apague essa luz de cima, apague essa luz que eu não quero que ninguém me veja nesse fulgor impiedoso! (Stella ri e aquiesce.) Agora venha cá, Stella! (Ela a abraça mais uma vez.)Eu pensei que nunca você chegasse a este lugar horrível! Mas o que é que eu estou dizendo? Não quis dizer isso. Eu quis ser amável e dizer: "Que lugar confortável e tão. . ." Mas, queridinha, ainda não me disse nem uma palavra! STELLA Você não me deu tempo, querida! (Ri, mas a maneira como olha para Blanche demonstra certa ansiedade.) BLANCHE Bem, agora é a sua vez de falar. Abra a sua linda boquinha e fale, fale enquanto eu vou procurar alguma coisa para beber. Vocês devem ter uísque nesta casa, não? Onde estará? Onde estará? Ah, achei! (Corre para o armário e retira a garrafa; ela está com o corpo todo trêmulo e com a respiração arquejante. A garrafa quase lhe escapa das mãos.) STELLA (reparando) Blanche, sente-se e deixe-me servir a bebida. Não sei o que e que temos para misturar com o uísque. Talvez haja uma Coca-Cola na geladeira. 37

BLANCHE Não, Coca-Cola não, meu bem. Com os nervos no estado em que eu estou hoje. Stella, onde está? STELLA Quem, Stanley? Jogando boliche. Ele adora jogar boliche. Estão concorrendo num campeonato. . . encontrei uma soda! BLANCHE Só água, meu bem. E agora, não fique preocupada. Sua irmã não se transformou numa beberrona. Ela está apenas um pouco agitada, com calor, cansada e suja. Agora, sente-se aqui e explique-me este lugar! Mas o que é que você está fazendo num lugar como este? STELLA Blanche. . . BLANCHE Não, eu não vou ser hipócrita. Eu vou criticar tudo, ho-nestamente. Nunca, nunca, nos meus piores pesadelos, eu poderia imaginar uma coisa dessas. Lá fora, eu imagino, estão as florestas mal-assombradas de Weir! (Ri) STELLA Não, querida, isto são os trilhos da L & N. BLANCHE Não, não. Agora, falando sério, sem brincadeira. Por que você não me disse, por que você não me escreveu, querida, por que você não me contou? STELLA (servindo-se cuidadosamente de bebida) Não te contei o quê, Blanche?

BLANCHE Ora, que você tinha de viver nessas condições ! STELLA Ah, você está exagerando. Não é tão mau assim ! Nova Orleans não é como outras cidades. BLANCHE Isso não tem nada a ver com Nova Orleans. Você poderia mesmo dizer. . . oh, perdoe-me, meu bem ! (Ela pára de repente.) O assunto está encerrado ! STELLA (com uma certa secura) Obrigada. (Durante a pausa, Blanche olha para ela. Ela sorri para Blanche.) BLANCHE (olhando para seu copo, que está se agitando devido ao tremor de suas mãos) Você é tudo que eu tenho no mundo, e você não está contente em me ver ! STELLA (com sinceridade) Ora, Blanche, você sabe que isso não é verdade. BLANCHE Nao? Eu tinha me esquecido como você era quieta. STELLA Você nunca me deu uma chance de dizer muita coisa, Blanche. Por isso é que eu acabei me habituando a ficar quieta perto de você. 39

BLANCHE (vagamente) Aí está um bom hábito. . . (Então, abruptamente) Mas não me perguntou ainda como foi que consegui sair cia escola antes de terminar o período da primavera. STELLA Bem, em pensei que você mesma iria me dizer. . . se você quisesse. BLANCHE Você pensou que eu tinha sido despedida? STELLA Não, eu... pensei que você poderia ter ... pedido demissão. . . BLANCHE Fiquei de tal modo exausta com tudo que me aconteceu, que meus nervos não resistiram. (Apagando nervosamente o cigarro) Estive mesmo à margem da demência. Então, senhor Graves — o senhor Graves, é o diretor do colégio — sugeriu que eu tirasse umas férias. Claro que eu não poderia pôr todos esses detalhes no meu telegrama. (Bebe rapidamente.) Ah, isso passa através de mim até a última gota e faz com que eu sinta tão bem! STELLA Quer mais um? BLANCHE Não, não. Um é o limite. STELLA É mesmo? 40

BLANCHE Mas você não me disse ainda nem uma palavra sobre o meu aspecto. Que tal estou? STELLA Você está ótima. BLANCHE Que Deus a abençoe, pela mentira. A luz do dia jamais expôs uma ruína tão completa. Mas você. . . você engordou um pouco, sim, você está mesmo bem gordinha! E está bem assim! STELLA Ora, Blanche. . . BLANCHE Está sim, ou eu não o diria.' Você só tem que tomar um pouquinho de cuidado com os quadris. Agora deixe-me ver você. Fique de pé. STELLA Agora não. BLANCHE Não ouviu o que eu disse? Fique de pé. (Stella se levanta com relutância.) Ah, menininha descuidada. Você deixou cair qualquer coisa nessa sua linda gola de renda branca! E esses cabelos, Stella, você deve mandar arrumá-los me-lhor para sobressair seus traços tão delicados. Stella, Você tem empregada, não? 41 Não. Só com dois quartos. . .

BLANCHE Dois quartos, você disse? STELLA Sim, este e. . . (Fica embaraçada.) BLANCHE E o outro? (Ri com rispidez. Há um silêncio embaraçoso.) BLANCHE Eu vou tomar só mais um golinho, só a saideira, é isso mesmo, a saideira. Aí eu vou guardar a garrafa para não sentir mais a tentação. (Levanta-se.) Eu quero que você veja se eu estou em forma. (Vira-se.) Você sabe que eu não engordei uma grama em dez anos, Stella? Eu ainda tenho o mesmo peso que naquele verão em que você deixou Belle Rêve. O verão em que papai morreu e você nos deixou . . . STELLA (com certo enfado) Mas é incrível, Blanche, como você está bem. BLANCHE (ambas riem constrangidas) Mas se só há dois quartos, Stella, eu não vejo onde e que eu vou dormir! STELLA Você vai dormir aqui. BLANCHE Que espécie de cama é esta — é uma daquela que costumam desabar? (Senta-se na cama.) 42

STELLA Não está legal? BLANCHE ( ambiguamente) Maravilhosa, meu bem. Eu não gosto de camas muito moles. E se não há porta entre os quartos, Stella, e Stanley — isso vai ser decente? STELLA Stanley é polonês, você sabe. BLANCHE Oh, sim. Eles se parecem um pouco com os irlandeses, não é? STELLA Bem. . . BLANCHE Só que eles não são tão. . . metidos? (Ambas riem novamente, da mesma maneira.) BLANCHE Ah! Bem, de qualquer maneira eu trouxe uns vestidos lindíssimos para ser apresentada a todos os seus encantadores amigos. STELLA Receio que você não os ache encantadores. Como são eles?

STELLA Amigos de Stanley. BLANCHE Polacos? STELLA É um grupo misturado, Blanche. BLANCHE Tipos . . . heterogêneos? STELLA Tipos, é isso. BLANCHE Bem... de qualquer forma... eu trouxe umas roupas bonitas e vou usá-las. Eu acho que você está esperando que eu diga que vou para um hotel, mas eu não vou não. Eu quero ficar perto de você. eu preciso ficar com alguém, eu não posso ficar sozinha! Porque . . . como você deve ter notado ... eu não estou muito boa. . . (Sua voz se abaixa até se calar, e seu olhar parece assustado.) STELLA Você parece um pouco nervosa, exausta ou coisa parecida. BLANCHE Será que Stanley vai gostar de mim, ou vai me olhar só como uma parente que está visitando vocês? Eu não poderia agüentar isso. 44

STELLA Vocês vão se dar muito bem; basta que você não tente. . . bem. . . não tente compará-lo com os homens que saíam conosco quando estávamos lá em casa. BLANCHE Ele é tão . . . diferente assim? STELLA É sim. Ele é uma espécie diferente. BLANCHE Mas em que sentido? Como ele é? STELLA Oh, não dá pra descrever uma pessoa por quem você está apaixonada. Veja, aqui tem uma foto dele ! (Entrega uma fotografia a Blanche.) BLANCHE Ele é oficial? STELLA Sargento-mestre do Corpo de Sapadores. Aquilo ali são condecorações que ele ganhou ! BLANCHE Ele as usava quando você o conheceu? STELLA Eu te garanto que não me deixei impressionar só por essa lataria. 45

BLANCHE Isso não é o que eu ... STELLA É claro que depois eu tive que me acostumar a certas coisas. BLANCHE Como a mentalidade dele na vida civil! (Stella ri sem convicção.) BLANCHE Como foi que ele reagiu, Stella, quando você disse que eu viria? STELLA Oh, Stanley ainda não sabe. BLANCHE (assustada) Como, você ainda não lhe disse nada? STELLA Ele passa a maior parte do tempo viajando. BLANCHE Ah, ele viaja? STELLA Sim. BLANCHE Bom. Eu imagino, não é mesmo? STELLA (um pouco para si mesma) Mal posso suportar quando passa uma noite fora. 46

BLANCHE Por que, Stella? STELLA . . . Quando ele passa uma semana fora fico desespe-rada. E, quando volta, choro no colo dele, como uma criança. . . (Sorri para si mesma.) BLANCHE Acho que é a isso que se chama estar apaixonada. . . (Stella olha para cima com um sorriso radiante.) Stella. .. STELLA O quê? BLANCHE (numa agitação descontrolada) . . Stella, eu não lhe perguntei as coisas que você, pro-vavelmente, pensou que eu lhe perguntaria. Por isso, eu espero que você seja compreensiva a respeito do que eu tenho a lhe dizer. STELLA O que, Blanche? (Sua face demonstra ansiedade.) BLANCHE Eu sei que você vai me censurar por isso. Estou certa de que vai, mas antes de fazê Io, leve em consideração que você abandonou Belle Rêve. Eu fiquei e lutei. Você veio para Nova Orleans e tratou de arranjar-se!. . . Eu fiquei em Belle Rêve e tentei mantê-la! Não estou lhe dizendo isso como uma censura, mas todo o peso caiu nas minhas costas. 47

STELLA Eu me sustentei. Que mais você queria que eu fizesse, Blanche? (Blanche começa novamente a tremer com intensidade.) BLANCHE Eu sei, eu sei. Mas foi você quem abandonou Belle Rêve, não eu! Fiquei em Belle Rêve e lutei por ela, sangrei-me por ela, quase morri por ela! STELLA Pare com essa explosão de histeria e conte-me o que aconteceu! Que quer você dizer com isso de lutei e sangrei? BLANCHE Eu sabia, Stella, eu sabia que você ia reagir assim a respeito desse assunto . . . STELLA A respeito de que. . . por favor ! BLANCHE (lentamente) A perda, Stella, a perda ! STELLA Belle Rêve, perdida, é isso? Não ! BLANCHE Sim, Stella é isso. (Elas se olham por cima do linóleo de xa- 48

drez amarelo da mesa. Blanche lentamente balança a cabeça e Stella olha lentamente para baixo, para suas mãos entrelaçadas em cima da mesa. A música do piano blue se torna mais alta. Blanche passa o lenço na testa.) STELLA Mas como foi que aconteceu? BLANCHE (levantando-se) Muito engraçado, você perguntar-me como foi que aconteceu ! STELLA Blanche! BLANCHE Muito engraçado você aí sentada me acusando ! STELLA Blanche! BLANCHE Eu tive que receber todos os golpes sozinha. Todas aquelas mortes. . . O longo desfile para o cemitério. Papai, mamãe, nossa irmã, daquela maneira horrível! Você só vinha para casa à hora dos enterros, Stella. E os enterros são belos, comparados com a morte... Os enterros são calmos, e com lindas flores. Mas as mortes nem sem-pre. . . Às vezes a sua voz é rouca. Outras vezes pare-cem mesmo gritar: "Não, não me deixem morrer!" Como se nós fôssemos capazes de fazê-lo! A menos que se tenha estado lá, ao lado da cama quando eles grita 49

vam, jamais se poderá imaginar que houve luta por ar e sangue! Mas eu vi, Stella. Eu vi, eu vi. E agora você fica aí sentada acusando-me por eu ter perdido a propriedade ! Mas como é que você pensa que eu paguei por todas aquelas doenças e aquelas mortes? — A morte custa caro, Stella. E ela já tinha armado a sua tenda defronte a nossa porta. Belle Rêve era o seu quartel-general. E qual deles nos deixou um centavo que fosse da sua fortuna? E eu com meu ordenado ridículo de professora de escola! Sim, sente-se aí e acuse-me por ter deixado perder a propriedade. Eu deixei a propriedade perder-se? Mas onde estava você? Na cama com o seu "polaco"! STELLA (levantando-se) Blanche, fique quieta! (Caminha como se fosse sair da sala.) BLANCHE Stella, aonde você vai? STELLA Vou ao banheiro lavar o rosto. BLANCHE Oh, Stella, Stella, você está chorando. . . STELLA Blanche, isto a surpreende? BLANCHE Perdoe-me, Stella, eu não quis. . . (Ouve-se o som de vozes de homens. Stella entra no banheiro, fechando a porta 50

atrás de si. Quando os homens aparecem, Blanche, percebendo que deve ser Stanley voltando do boliche, caminha desorien-tada da porta do banheiro à penteadeira, olhando apreensivamente para a porta da frente. Stanley entra, seguido por Steve e Mitch. Stanley faz uma pausa perto da porta de sua casa, Steve fica ao pé da escada em espiral, e Mitch fica ligeramente acima e à direita deles, querendo ir embora. Enquanto os outros homens entram, ouve-se parte do seu diálogo.) STANLEY Foi assim que ele ganhou? STEVE Claro. Seguiu o palpite que eles lhe deram e ganhou tre-zentos dólares, com um bilhete de seis números. MITCH Não lhe diga essas coisas. Ele é capaz de acreditar. (Faz menção de se retirar.) STANLEY (impedindo Mitch de sair) Ei, Mitch, venha cá. (Blanche, ao som das vozes, retira-se para o quarto. Ela apanha a foto de Stanley na penteadeira, olha para ele e a põe novamente no lugar. Quando Stanley entra no aparta-mento, ela se move rapidamente e se esconde atrás da tela na cabeceira da cama.) 51

STEVE (para Stanley e Mitch) Ei, jogamos pôquer amanhã? STANLEY Claro que sim, na casa de Mitch. MITCH (ouvindo e voltando-se rapidamente, apoiado ao corrimão) Não, na minha casa, não. Minha mãe ainda está doente. STANLEY Está bem. Na minha casa, então. . . Mas. vocês trazem a cerveja. (Mitch finge não ouvir, diz "boa noite para todos" e vai embora, cantando. Ouve-se, vindo de cima, a voz de Eunice.) EUNICE Fiz um prato de espaguete e comi sozinha. STEVE (subindo as escadas) Eu disse a você e telefonei que estávamos jogando. (Para os homens) Cerveja Jax ! EUNICE Você não telefonou nem uma vez . . . STEVE Eu disse de manhã e telefonei na hora do almoço. . . EUNICE Bem, isso não tem importância. Veja se aparece aqui em casa de vez em quando. . . 52

STEVE Quer que saia nos jornais? (Mais risadas e gritos de despedidas vêm de onde estão os homens. Stanley abre num repelão a porta de tela da cozinha e entra. Tem estatura média, entre 1,72 m e 1,75 m, e é de compleição robusta e compacta. Uma alegria animal que está implícita em todos os seus movimentos e atitudes. Desde os primeiros anos de sua idade adulta, o centro de sua vida tem sido o prazer com as mulheres, o dar e o receber do jogo do amor, não com uma fraca atitude de concessão, de maneira dependente, mas sim com o poder e o orgulho de um galo emplumado de ricas penas em meio às galinhas. Espalhando-se a partir desse centro absoluto e capaz de satis-fazê-lo estão todos os canais auxiliares de sua vida, tais como sua amabilidade para com outros homens, seu gosto pelo humor grosseiro, seu amor por bebida, comida e jogos, seu carro, seu rádio, tudo que lhe pertence, que traz seu emblema de macho rom-pante. Ele avalia as mulheres num só olhar, com classificações sexuais em que imagens cruas faíscam em sua mente e determinam a maneira como ele sorri para elas.) BLANCHE (tentando involuntariamente evitar seu olhar fixo) Você deve ser Stanley, não? Eu sou Blanche. STANLEY A irmã de Stella? 53

BLANCHE Sim. STANLEY Alô! BLANCHE Alô! STANLEY Onde está ela? BLANCHE No toalete. STANLEY Ah, não sabia que você vinha. De onde você é, Blanche? BLANCHE Eu ... eu moro em Laurel. (Ele atravessa o aposento em direção ao armário e retira a garrafa de uísque.) STANLEY Em Laurel, é? Ah, sim, sim, em Laurel, é verdade, não é da minha região. A bebida vai embora depressa quando faz calor. (Segura a garrafa contra a luz para observar o nível do líquido.) Quer um gole? BLANCHE Não, não. Eu ... raramente toco em bebida. . . STANLEY Muita gente raramente toca em bebida, mas a bebida, muitas vezes, os deixa tocados. 54

BLANCHE (com voz abafada) Ha, ha. STANLEY Estou com a roupa grudada no corpo. Você se incomoda se eu fico à vontade? (Começa a tirar a camisa.) BLANCHE Não, por favor. STANLEY Ficar a vontade é o meu lema! BLANCHE Ah, é o meu também. E é tão difícil manter uma aparên-cia limpa com este calor! Eu ainda não me lavei nem botei um pouco de de pó-de-arroz e você já está aí. STANLEY A gente pode apanhar um resfriado ficando com a camisa molhada no corpo, principalmente quando se faz exercício pesado, como o boliche. Você é professora, não é? BLANCHE Sou. STANLEY O que é que você ensina, Blanche? BLANCHE Literatura inglesa. STANLEY Nunca fui bom em literatura inglesa. Quanto tempo vai ficar aqui, Blanche? 55

BLANCHE Eu ainda não sei. STANLEY Vai morar aqui com a gente? BLANCHE Eu gostaria, se não fosse muito inconveniente para vocês todos. . . Viajar me deixa tão cansada! STANLEY Bem, descanse. (Um gato mia perto da janela. Blanche se assusta.) BLANCHE Que é isso? STANLEY Gatos. . . Stella! STELLA (do banheiro, com voz abafada) Já vou, Stanley. STANLEY Você não caiu no vaso, hein? (Sorri maliciosamente para Blanche. Ela tenta sem êxito retribuir o sorriso. Há um silêncio.) Receio que você fique chocada por eu ser um tipo vulgar. Stella falou muito a seu respeito. Você já foi casada, não foi? (O som de uma polca torna-se audível, abafado pela distância.) 56

BLANCHE Fui, quando eu era muito jovem. STANLEY Que aconteceu? BLANCHE O rapaz morreu. (Ela ameaça cair.) Tenho medo, eu... estou passando mal! (Sua cabeça pende para a frente.) 57

CENA II São seis horas da tarde seguinte. Blanche está tomando banho. Stella está completando sua toalete. O vestido de Blanche, es-tampado com flores, está estendido sobre a cama de Stella. Stanley entra na cozinha, vindo de fora, deixando a porta aberta. Por ela entra o som do perpétuo piano blue que vem do lado da esquina. STANLEY Pra que é toda essa palhaçada? STELLA Oh! Stan! (Salta e o beija, ele aceita o beijo com uma calma arrogância.) Vou levar Blanche para jantar no Ga-latoire e, depois, a um espetáculo, porque esta é a sua noite de pôquer. STANLEY E o meu jantar, como é, hein? Não vou jantar em nenhum Galatoire! STELLA um prato de frios para você na geladeira. 59

STANLEY Puxa! Quanta gentileza. STELLA Quero ver se fico fora com Blanche até o pôquer acabar. Não sei o que ela acharia desse jogo aqui em casa. Por isso. nós vamos depois a um desses lugarzinhos do bairro e eu vou precisar de dinheiro. STANLEY Onde é que ela está? STELLA De molho, num banho quente, para acalmar os nervos. Está terrivelmente descontrolada. STANLEY Por quê? STELLA Depois da prova de fogo que teve que suportar. . . STANLEY É? STELLA Stan, nós perdemos Belle Rêve. STANLEY A propriedade lá no campo? STELLA Sim. STANLEY Como? 60

STELLA (vagamente) Oh! Teve de ser sacrificada ou coisa parecida. (Há uma pausa enquanto Stanley reflete. Stella veste e ajeita seu vestido.) Quando ela vier não deixe de dizer-lhe qualquer coisa amável sobre a sua aparência. E — ah! — não fale do bebê. Ainda não lhe disse nada, estou esperando que se acalme um pouco. STANLEY (sombrio) Ah!é? STELLA Procure compreendê-la e ser gentil com ela, Stan. BLANCHE (cantando no banheiro) "Da terra de água azul como o céu, Eles trouxeram uma donzela cativa!" STELLA Ela não esperava encontrar-nos num apartamento tão pequeno. Nas minhas cartas procurei melhorar um pouco as coisas. STANLEY É?. . . STELLA E elogie o seu vestido e diga que está encantadora. Isto tem muita importância para Blanche. É o seu fraco ! STANLEY compreendo. Agora vamos voltar atrás um pouqui-nho, onde você disse que a propriedade do campo foi Perdida. 61

STELLA Ah! Sim. . . STANLEY Que tal lhe parece? Arranje-me uns detalhes sobre esse assunto. STELLA É melhor não falar muito nisso, enquanto ela não se acalmar. STANLEY Então é assim, é? A irmã Blanche não pode aborrecer-se com negócios agora? STELLA Você viu como ela estava ontem à noite. STANLEY Hum, hum, vi como estava! Agora vamos dar uma espiada no recibo de venda. STELLA Não vi nenhum recibo. STANLEY Ela não te mostrou nenhum papel, nenhuma escritura de venda ou nada parecido, hein? STELLA Parece que não foi vendida. STANLEY Bem, então que diabo fizeram, deram de presente pra alguma organização de caridade? 62

STELLA Psst! Ela pode ouvir você! STANLEY Pouco importa que me ouça. Quero ver os papéis. STELLA Não há papéis, ela não me mostrou nenhum papel e não me importam os papéis. STANLEY Você já ouviu falar no Código Napoleônico? STELLA Não, Stanley, não ouvi falar no Código Napoleônico e, se ouvi, não vejo o que ele. . . STANLEY Deixe-me esclarecer você, num ponto ou dois, menina. STELLA Está bem. STANLEY No Estado de Luisiana, temos o Código Napoleônico, de acordo com o qual o que pertence a mulher, pertence ao marido e vice-versa. Por exemplo: se eu tivesse uma propriedade, ou você tivesse uma propriedade. . . STELLA Eu já estou ficando tonta! STANLEY Muito bem. Vou esperar até que ela deixe de ficar de 63

molho no banho quente, para perguntar-lhe se ela está familiarizada com o Código Napoleônico. Está me pare-cendo que você foi tapeada, meu bem; quando você é tapeada, de acordo com o Código Napoleônico, eu também sou. E não gosto de ser tapeado. STELLA Há tempo de sobra para você fazer-lhe perguntas mais tarde, mas, se as fizer agora, ela vai ficar com os nervos em pedaços outra vez. Não compreendo o que foi que aconteceu com Belle Rêve, mas você sabe como está sendo ridículo quando dá a entender que minha irmã ou eu ou qualquer pessoa que seja da família poderia ter roubado o que quer que fosse. STANLEY Então, onde está o dinheiro, se a propriedade foi vendida? STELLA Vendida não — perdida, perdida! Stanley ! (Ele abre bruscamente o baú que está no meio do quarto, onde estão as roupas de Blanche, e tira dele uma porção de vestidos.) STANLEY Abre seus olhos para isto ! Você acha que foi com o ordenado de professora que ela comprou isto tudo? STELLA Fica quieto! STANLEY Veja estas plumas e peles que ela trouxe para exibir-se 64

aqui. O que é isto? Um vestido de ouro maciço, acho eu. E este! O que é isto? Peles de raposa! (Sacode-as.) Peles de raposa legítimas, um quilômetro de compri-mento! Onde estão suas peles de raposa, Stella? Peludas e brancas como a neve ! Onde estão suas peles de raposa branca? STELLA São peles baratas de verão que Blanche já tem há muito tempo. STANLEY Tenho um conhecido que trabalha com esta espécie de mercadoria. Vou trazê-lo aqui para avaliar isto. Sou capaz de apostar com você que há milhares de dólares investidos nisto aqui! STELLA Não seja idiota, Stanley ! (Ele joga as peles em cima do sofá-cama e em seguida abre com violência uma pequena gaveta que há no baú e dela retira um punhado de jóias de fantasia.) STANLEY isso aqui? O tesouro de um pirata? STELLA Oh! Stanley! STANLEY Pérolas ! Fios de pérolas! O que é esta sua irmã, um es-cafandrista? Braceletes de ouro maciço ! Onde estão suas Pérolas e seus braceletes de ouro maciço? 65 STANLEY E isso aqui? O tesouro de um pirata?

STELLA Psst! Fique quieto, Stanley. STANLEY E diamantes ! Uma coroa para uma imperatriz ! STELLA Uma tiara de pedras falsas, que ela usou num baile a fantasia. STANLEY Falsas, por quê? STELLA São quase todas de vidro. STANLEY Você está brincando? Tenho um conhecido que trabalha numa joalheria. Vou trazê-lo aqui para avaliar isto. Aqui está a sua fazenda, ou o que sobrou dela, aqui! STELLA Você não faz idéia de como está sendo estúpido e horrendo! Agora feche esta mala, antes que ela saia do banheiro ! (Ele fecha o baú parcialmente, com um chute, e senta-se na mesa da cozinha.) STANLEY Os Kowalski e os Dubois têm idéias bem diferentes. STELLA (com raiva) Eles têm, realmente, Graças a Deus! Vou sair. (Apanha 66

seu chapéu e suas luvas brancas e cruza o aposento, em direção à porta da rua.) Você sai comigo enquanto Blan-che se veste. STANLEY Desde quando você me dá ordens? STELLA Você vai ficar aqui e insultá-la? STANLEY Não tenha dúvidas de que vou ficar ! (Stella sai para o alpendre. Blanche sai do banheiro, vestindo um roupão de cetim vermelho.) BLANCHE (alegremente) Alô, Stanley! Aqui estou eu, saindo de um banho quente, perfumado, e sentindo-me completamente outra. (Acende um cigarro.) STANLEY Issoé bom. BLANCHE (puxando as cortinas das janelas) Você me dá licença enquanto eu visto o meu lindo ves-tido novo. STANLEY vai em frente, Blanche. (Ela fecha os reposteiros que separam os dois aposentos.) 67

BLANCHE Ouvi dizer que esta noite vai haver aqui um joguinho de pôquer para o qual as damas não foram gentilmente convidadas! STANLEY (sombriamente) É? (Blanche tira o roupão e põe um vestido estampado com flores.) BLANCHE Onde está Stella? STANLEY Lá fora, na porta. BLANCHE Daqui a pouco vou lhe pedir um favor. STANLEY Que será? BLANCHE Uns botões, aqui atrás! Agora pode entrar! (Ele atravessa os reposteiros, com um olhar ardente.) Que tal estou? STANLEY Muito bem! BLANCHE Muito obrigada. Agora os botões ! STANLEY Não posso fazer nada com eles. 68

BLANCHE Vocês, homens, com esses dedos enormes, fortes e desa-jeitados. Posso dar uma tragada no seu cigarro? STANLEY Fume um, você mesma. BLANCHE Oh, obrigada!. . . Parece que minha mala explodiu. . . STANLEY Eu e Stella estávamos ajudando você a desfazer a bagagem. BLANCHE Fizeram, certamente, um trabalho rápido e eficiente ! STANLEY Parece que você andou invadindo algumas lojas elegantes em Paris. BLANCHE Ha, ha! Roupas é a minha paixão ! STANLEY Quanto custa uma estola de peles como esta? Esta foi presente de um grande admirador meu. STANLEY Ele deve ter tido uma grande . . . admiração ! Oh, na minha juventude tive muitos admiradores, mas 69

olhe para mim agora! (Sorri para ele, radiante.) Você poderia imaginar que eu fui uma mulher atraente? STANLEY Você está em forma. BLANCHE Eu estava apenas querendo um elogio, Stanley. STANLEY Eu não me incomodo com essas bobagens. BLANCHE Que. . bobagens? STANLEY Elogios. Mulheres. Nunca encontrei uma mulher que não soubesse se era bonita ou não, sem precisar que lhe dissessem, e algumas delas julgam-se mais do que realmente são. Uma vez, saí com uma boneca que costumava dizer: "Eu sou o tipo glamour"E eu respondi: "E daí?" BLANCHE E que foi que ela lhe disse? STANLEY Não disse nada. Ela se fechou como uma ostra. BLANCHE E acabou o romance? STANLEY Acabou a conversa — só isso. Alguns homens são apa-nhados por esse negócio de fascinação de Hollywood, outros não. 70

BLANCHE Estou certa de que o senhor pertence à segunda categoria. STANLEY Isso mesmo. BLANCHE Não posso imaginar que alguma bruxa dessas possa lançar um feitiço sobre você. STANLEY Está bem. BLANCHE O senhor é simples, direto e honesto, pendendo um pouquinho para o lado primitivo. Para interessá-lo uma mulher teria de. . . (Faz uma pausa, com um gesto indefinido.) STANLEY (lentamente) Pôr. . . as cartas na mesa. BLANCHE (sorrindo) Foi por isso que, quando o senhor entrou aqui, ontem à noite, eu disse para mim mesma: — "Minha irmã casou com um homem". Naturalmente isso era tudo que Podia dizer a seu respeito. STANLEY (levantando a voz) Agora, vamos deixar de frescura! BLANCHE (apertando as orelhas com as mãos) Ouuuu! 71

STELLA (chamando da escada) Stanley! Venha para cá e deixe Blanche acabar de vestir-se ! BLANCHE Mas eu já estou vestida, meu bem. STELLA Então, venha. STANLEY Sua irmã e eu estamos tendo uma conversinha. BLANCHE (despreocupadamente) Meu bem, faça-me um favor. Vá até o bar e traga-me um refresco de limão com bastante gelo moído. Quer fazer isso para mim, querida? STELLA (hesitante) Está bem. (Dobra a esquina do prédio.) BLANCHE A pobrezinha estava lá fora ouvindo toda a nossa conversa, e eu estou certa senhor Kowalski, que ela não o compreende tão bem quanto eu. Muito bem ! Vamos falar sem rodeios. Estou pronta para responder a todas as perguntas. Não tenho nada que esconder. Que é que há? STANLEY Há uma coisa neste Estado de Luisiana chamado Código Napoleônico, de acordo com o qual, tudo o que pertence a minha mulher é também meu e vice-versa. BLANCHE Senhor Kowalski, o senhor tem um ar impressionantemente judicial ! 72

(Perfuma-se com o vaporizador; em seguida, brincando, perfuma-o também com o vaporizador. Ele pega o vaporizador e o atira com força sobre a cômoda. Ela atira a cabeça para trás e ri.) STANLEY Se eu não soubesse que você é irmã de minha mulher, eu pensaria certas coisas de você ! BLANCHE Tais como? STANLEY Não se faça de boba. Você sabe o quê! BLANCHE (põe o vaporizador sobre a mesa) Pois bem. Cartas na mesa. Isso me convém. (Volta-se para Stanley.) Eu sei que minto muito. Afinal, o encanto de uma mulher é, cinqüenta por cento, ilusão, mas quando se trata de coisa importante, digo sempre a verdade — e a verdade é a seguinte: eu nunca enganei ninguém. Nem o senhor nem minha irmã; nem a quem quer que seja, em toda a minha vida. STANLEY Onde estão os documentos? Lá na mala? BLANCHE Tudo quanto possuo agora guardo nessa mala. (Stanley cruza o aposento em direção ao baú, abre-o com violên-cia e começa a abrir seus compartimentos.) Mas que está Pensando! Que é que o senhor tem nessa cabecinha de menino? O senhor pensa que estou escondendo alguma 73

coisa? Deixe-me fazer isso. Será mais rápido, fácil e eficiente. (Ela cruza o aposento em direção à mala e retira uma caixa de metal.) Guardo os meus papéis nesta caixa. (Abre a caixa.) STANLEY Que são aqueles ali? (Indica outro maço de papéis.) BLANCHE Cartas de amor, amarelando com o tempo, todas de um mesmo rapaz. (Ele as apanha. Ela fala impetuosamente.) Dê-me essas cartas. STANLEY Primeiro quero dar uma olhada! BLANCHE O toque de suas mãos é um insulto para elas. STANLEY Deixe disso! (Rasga a tira do maço e começa a examinar as cartas. Blanche as tira de suas mãos e elas se espalham pelo chão.) BLANCHE Agora que o senhor as tocou, vou queimá-las. STANLEY (olhando fixamente, perplexo) Que diabo são elas? BLANCHE (com as mãos no chão, reunindo as cartas) Poemas escritos por um rapaz que morreu. Eu o 74

como você gostaria de me magoar agora mas não pode. Já não sou mais jovem nem vulnerável. Mas meu marido era e eu ... Não se incomode com isso. Dê-me essas cartas de volta. STANLEY Que é que você pensava quando disse que teria de queimá-las? BLANCHE Desculpe-me. Devo ter perdido a cabeça, por um momento. Todos nós temos coisas que não queremos que os outros toquem, dada sua natureza íntima. (Ela agora parece quase desmaiar de exaustão, senta-se com o cofre nas mãos, coloca os óculos e examina metodicamente uma grande pilha de papéis.) Ambler & Ambler, hummm. . . Crabtree. . . Mais Ambler & Ambler. STANLEY O que é Ambler & Ambler? BLANCHE Uma firma que fez empréstimos sobre a propriedade. STANLEY Então ela foi perdida na hipoteca? BLANCHE (passando a mão na testa) Deve ter sido o que aconteceu. Não quero saber de "ses", de "es" nem de "mas"! O STANLEY que aquele resto de papéis? (Ela lhe entrega a caixa com todo o seu 75

conteúdo. Ele a leva para a mesa e começa a examinar os papéis.) BLANCHE (apanhando um grande envelope que contém mais papéis) Há milhares de papéis referentes a fatos de centenas de anos relacionados com Belle Rêve, à medida que, lote por lote, nossos imprevidentes avós, pais, tios e irmãos trocavam a terra por suas épicas fornicações, para falar mais claro! (Tira os óculos com um riso cansado.) E foram essas bacanais que nos despojaram da nossa fazenda, até que, {"malmente, tudo o que sobrou, e Stella pode confirmar isso, foi a casa propriamente dita, e mais ou menos vinte hectares de terras, incluindo um cemitério particular para o qual, atualmente, exceto Stella e eu, todos se retiraram. (Esparrama o conteúdo do envelope sobre a mesa.) Aqui estão todos, todos os papéis. E eu, por este ato, faço-lhe presente deles. Tome-os, examine-os, decore-os mesmo, se quiser! Acho maravilhosamente adequado que Belle Rêve seja, finalmente, esse maço de papéis velho, em suas grandes e capazes mãos!. . . Será que Stella já voltou com a minha limonada?. . . (Curva-se para trás e fecha os olhos.) STANLEY Tenho um conhecido que é advogado. Ele vai estudar isso. BLANCHE Dê-lhe tudo de presente, acompanhado de um tubinho de aspirinas. STANLEY (revelando um certo acanhamento) Você sabe. De acordo com o Código Napoleônico, um 76

homem tem de interessar-se pelos negócios de sua mulher. . . especialmente agora que ela vai ter um bebê. (Blanche abre os olhos. O piano blue soa mais alto.) BLANCHE Stella? Stella vai ter um bebê? (Cismando.) Eu não sabia que ela ia ter um bebê. (Levanta-se e cruza o aposento em direção à porta da rua. Stella aparece na esquina com uma caixa de papelão, vindo do bar. Stanley vai para o quarto com o envelope e a caixa. Os aposentos interiores desaparecem na escuridão e a parede externa da casa torna-se visível. Blanche encontra Stella ao pé da escada que conduz à calçada da rua.) Stella, minha irmã! Que felicidade ter um bebê. Está bem. Tudo está bem. STELLA Estou triste por ele ter feito isso a você. BLANCHE Oh! Creio que ele não é propriamente o tipo que gosta de perfume de jasmim, mas talvez seja o que nós precisamos para misturar com o nosso sangue, agora que perdemos Belle Rêve. Pusemos tudo em pratos limpos. Sinto-me um pouco trêmula, mas acho que manejei o caso lindamente; ri e tratei de tudo como se fosse uma brincadeira. (Steve e Pablo aparecem carregando uma caixa de cerveja.) Ri e chamei-o de menino e até flertei com ele. estava flertando com o seu marido. (Enquanto os homens se aproximam.) Os convidados para o pôquer es-tão chegando. (Os dois homens passam entre elas e en-tram em casa.) Por onde nós vamos, Stella. . . por aqui? STELLA Não, por aqui. (Leva Blanche consigo.) 11

BLANCHE (rindo) Os cegos conduzem os cegos! (Ouve-se o pregão de um vendedor de ta-males.) VOZ DO VENDEDOR Tá quentinho! 78

CENA III A NOITE DO PÔQUER Há uma reprodução de um quadro de Van Gogh, representando um salão de bilhar à noite. A cozinha sugere aquele tipo de pálida claridade da noite, com as cores simples do espectro da infância. Sobre o linóleo amarelo da mesa da cozinha está pendurada uma lâmpada elétrica, com uma forte sombra de vidro verde. Os que estão jogando pôquer — Stanley, Steve, Mitch e Pablo — usam camisas coloridas, de azul berrante, púrpura, xadrez vermelho e branco, verde-claro; eles são homens que se encontram no auge de sua masculinidade física, tão rudes, diretos e poderosos como essas cores primárias. Há pedaços vermelhos de melancia, garrafas e copos de uísque sobre a mesa. O quarto de dormir está relativamente escuro iluminado apenas pela luz que se filtra entre os reposteiros e através da ampla janela que dá para a rua. Por um momento os homens permanecem em absorto silêncio, enquanto jogam uma rodada. STEVE Blefe não vale! 79

PABLO Quem pra falar? STEVE Me dá duas cartas. PABLO Você, Mitch? MITCH Passo. PABLO Uma. MITCH Alguém quer um trago? STANLEY Sim. Eu. PABLO Porque não vai alguém até o China e não traz de lá uma travessa de picadinho? STANLEY Quando eu estou perdendo você quer comer! Ninguém na mesa. Quem abre? Vamos, abram! Tire a bunda de cima da mesa, Mitch. Numa mesa de pôquer só pode haver cartas, fichas e uísque. (Levanta furtivamente os olhos das cartas e atira algumas cascas de melancia no assoalho.) 80

MITCH Você está com tudo, hein? STANLEY Quantas? STEVE Me dá três. STANLEY Uma. MITCH Passo outra vez. Tenho de ir para casa daqui a pouco. STANLEY Cala a boca! MITCH Minha mãe está doente. Ela não dorme enquanto eu não chego. STANLEY Então porque você não fica com ela em casa? MITCH Ela diz para eu sair e eu saio, mas não me divirto. Todo o tempo fico pensando em como é que ela está. STANLEY Oh ! Pelo amor de Deus, vá para casa, então! PABLO é que você tem? 81

STEVE Flash de espadas. MITCH Vocês todos são casados. Mas eu vou ficar sozinho quando ela morrer. Vou ao banheiro. STANLEY Volte depressa e vamos arranjar para você uma chupeti-nha. MITCH Oh! Vão para o diabo! (Cruza o aposento, passando pelo quarto em direção ao banheiro.) STEVE (dando as cartas) Mão de sete cartas. (Contando uma piada enquanto dá as cartas.) Um velho fazendeiro tava sentado no quintal da casa dele jogando milho pras galinhas quando de repente ele ouviu um cacarejo alto. Então, uma galinha nova veio assustada e se separou das outras, circulando o lado da casa, com o galo bem atrás dela e chegando cada vez mais perto. STANLEY (impaciente com a história) Dá as cartas, vamos! STEVE Mas, quando o galo topou com o fazendeiro jogando milho, parou de correr, deixou a galinha escapar e começou a bicar os grãos de milho. Aí o velho fazendeiro disse: "Ai, meu Deus, tomara que eu nunca fique com uma fome dessa!" (Steve e Pablo riem. As duas irmãs aparecem na esquina do prédio.) 82

STELLA O jogo ainda não acabou? BLANCHE Que tal estou? STELLA Linda, Blanche! BLANCHE Eu estou sentindo muito calor e muito cansaço. Espere até eu passar um pouco de póde-arroz antes de você abrir a porta. Eu estou parecendo cansada? STELLA Claro que não. Você está mimosa como uma margarida. BLANCHE E. Como uma que foi apanhada há dias. (Stella abre a porta e elas entram.) STELLA Oi, vocês ainda não pararam de jogar, hein? STANLEY Onde estiveram? STELLA Blanche e eu fomos ver um espetáculo. Blanche, este é o senhor Gonzales e este o senhor Hubbell. Por favor, não se levantem. 83

STANLEY Ninguém vai levantar-se, não se preocupe. STELLA Quanto vai durar ainda este jogo? STANLEY Até que a gente esteja com vontade de acabar. BLANCHE Eu acho o pôquer um jogo tão fascinante. Posso sapear um pouquinho? STANLEY Não pode não. Por que vocês, mulheres, não vão lá para cima conversar com a Eunice? STELLA Porque são quase duas e meia. (Blanche cruza o aposento em direção ao quarto e fecha parcialmente os re-posteiros.) Vocês poderiam parar depois de mais uma mão? (Uma cadeira se arrasta. Stanley dá uma sonora lambada com a mão na coxa dela.) STELLA (rispidamente) Não achei graça, não, Stanley. (Os homens riem. Stella vai para o quarto.) STELLA Eu fico louca quando ele faz isso na frente de outras pessoas. 84

BLANCHE Acho que vou tomar um banho. STELLA Outra vez? BLANCHE Meus nervos estão em frangalhos. O toalete está ocupado? STELLA Não sei. (Blanche bate na porta. Mitch abre a porta e sai, ainda enxugando as mãos numa toalha.) BLANCHE Oh! Boa noite. MITCH Alô! (Olha fixamente para ela.) STELLA Blanche, este é Harold Mitchell, minha irmã, Blanche Dubois. (com desajeitada cortesia) Como tem passado, senhorita Dubois? 85 STELLA Como vai sua mãe agora, Mitch?

MITCH Quase o mesmo, obrigado. Ela gostou muito de você ter mandado aquele pudim. Com licença, por favor. (Cruza o aposento de novo, lentamente, de volta à cozinha, virando-se' para olhar Blanche e tossindo, um pouco timidamente. Ele percebe que ainda está com a toalha nas mãos e, com um riso embaraçado, entrega-a a Stella. Blanche o olha com certo interesse.) BLANCHE Este parece superior aos outros. STELLA Sim, ele é. BLANCHE Achei que tinha um olhar tão sensível. STELLA A mãe dele está doente. BLANCHE É casado? STELLA Não. BLANCHE É um gavião? STELLA Ora, Blanche! (Blanche ri.) Não creio que seja. 86

BLANCHE O que é que ele faz? (Começa a desabotoar a blusa.) STELLA Ele trabalha na banca de testes do departamento de peças de reposição. Na fábrica para a qual Stanley viaja. BLANCHE Isso tem alguma importância? STELLA Não. Stanley é o único dessa turma que tem possibilidade de chegar a ser alguma coisa. BLANCHE O que te faz pensar que ele vai conseguir? STELLA Olhe pra ele. BLANCHE Já olhei. STELLA Então você devia saber. esculpe-me, mas não notei a marca do gênio nem mesmo na testa do Stanley. (Tira a blusa e fica de pé, com seu sutiã de seda cor-de-rosa e sua saia branca, à luz 87

que se filtra entre os reposteiros. O jogo continua e as vozes se tornam mais baixas.) STELLA Não está na testa dele e ele não é um gênio. BLANCHE Oh! Bem, então o que é, e onde está? Eu gostaria de saber. STELLA É uma energia que ele tem. Você está bem sob esta luz, Blanche! BLANCHE Oh, estou sim! (Sai de debaixo da faixa amarela de luz. Stella tirou o vestido e colocou um quimono de cetim azul-claro.) STELLA (com uma risada de menina) Você devia ver as mulheres deles. BLANCHE (rindo) Eu posso imaginar. Mulheres grandes e gordas, suponho- STELLA Você conhece a de cima? (Mais risadas.) Uma vez (rindo) o estuque. . . (rindo) rachou . . . STANLEY Vocês, galinhas. Parem com essa conversa aí dentro! 88

STELLA Vocês não nos estão ouvindo. STANLEY Bem, vocês me estão ouvindo e eu disse que calem a boca! STELLA Estou na minha casa e vou falar tanto quanto quiser! BLANCHE Stella, não provoque uma briga. STELLA Ele está meio bêbado ! Já volto. (Entra no banheiro. Blanche se levanta e se dirige vagarosamente para um pequeno rádio branco e o liga.) STANLEY Tudo bem, Mitch, você vai? MITCH O quê? Oh ! Não, não vou ! (Blanche volta por baixo da faixa de luz. Ela levanta os braços e se espreguiça, enquanto volta, indolente, para a cadeira. Do rádio vem a música de uma nimba. Mitch se levanta da mesa.) STANLEY Quem ligou isso aí dentro? f 89

BLANCHE Eu. Você se incomoda? STANLEY Desligue! STEVE Oh ! Deixe as meninas ouvirem a sua música. PABLO Claro, isso é bom, deixe tocar! STEVE Parece que é Xavier Cugat. (Stanley levanta-se e, dirigindo-se ao rádio, desliga-o. Pára bruscamente ao ver Blanche na cadeira. Ela lhe devolve o olhar sem vacilar. Em seguida, ele se senta novamente à mesa de pôquer. Dois dos homens começaram a discutir acaloradamente.) STEVE Você pediu? PABLO E eu não pedi? MITCH Eu não estava ouvindo. PABLO Que estava fazendo então? STANLEY Olhando pelas cortinas. (Salta e se move bruscamente 90

fechando as cortinas com um gesto violento.) Agora dê as cartas de novo e vamos jogar ou acabar de uma vez. Certa gente, quando ganha, parece que tem um formigueiro, não pára quieta. (Mitch se levanta enquanto Stan-lev volta a seu lugar e grita.) Sente-se! MITCH Vou ao mictório. Não quero cartas. PABLO Claro que está com formigueiro agora. Sete notas de cinco dólares dobradinhas no bolso. STEVE Amanhã vocês vão ver eles no guichê do caixa trocando as notas por moedinhas. STANLEY E quando ele for para casa, vai depositá-las, uma por uma, naquele cofrezinho do feitio de porco que a mãe deu para ele no Natal. (Dando cartas) Essa rodada é simples. (Mitch ri constrangido e atravessa os reposteiros. Detém-se dentro do quarto.) BLANCHE (suavemente) O toalete agora está ocupado. MITCH Nós estávamos . . . bebendo cerveja. . . Blanche Detesto cerveja.

MITCH E. . . bebida para quando está quente. BLANCHE Eu não acho, não. Sempre me deixa com calor. Tem cigarros? (Vestiu o roupão de cetim vermelho-escuro.) MITCH Tenho. BLANCHE Que marca? MITCH Luckies. BLANCHE Luckies? Oh ! é a minha marca preferida. Que cigarreira tão bonita! É de prata? MITCH Sim, é; leia a inscrição. BLANCHE Tem uma inscrição? Não consigo ver bem. (Acende um fósforo e se aproxima.) Oh ! (Lendo com dissimulada dificuldade) "E assim Deus o quisesse, ainda mais te amarei. Depois da morte"! É de meu soneto favorito de Eli-zabeth Barret Browning. MITCH Você conhece o soneto? 92

BLANCHE Claro que conheço. MITCH Há uma história ligada a essa inscrição. BLANCHE Parece um romance. MITCH Uma história muito triste. A moça morreu. Ela sabia que estava morrendo quando me deu isso. Era uma moça muito estranha e muito meiga. . . BLANCHE Ela deve ter gostado muito de você. As pessoas doentes têm afeições profundas e sinceras. MITCH É verdade, têm mesmo. BLANCHE Acho que a tristeza conduz à sinceridade. MITCH Faz com que ela apareça nas pessoas. pouca sinceridade que ainda existe no mundo pertence as pessoas que passaram por alguma tristeza. Acho que você tem razão nisso. 93

BLANCHE Estou certa de que tenho. Mostre-me uma pessoa que não tenha passado tristeza e eu mostrarei a você um superficial... Desculpe-me! Minha língua está um pouquinho . . . pesada! Vocês rapazes é que são responsáveis por isso. O espetáculo acabou às onze horas e nós não podíamos voltar para casa, por causa do jogo de pôquer. Fomos então beber alguma coisa. Não estou habituada a beber mais que uma dose. Duas são o limite e. . . três! (Ri.) Esta noite bebi três. STANLEY Mitch ! MITCH Não quero cartas. Estou conversando com a senhorita. . . BLANCHE Dubois. MITCH Senhorita Dubois? BLANCHE É um nome francês. Quer dizer floresta e Blanche dizer branca; assim, os dois juntos significam floresta branca. É como um pomar na primavera, se algum dia você quiser se lembrar de mim. MITCH Você é francesa? 94

BLANCHE Somos franceses de descendência. Nossos primeiros an-tepassados americanos eram huguenotes franceses. MITCH Você é irmã de Stella, não é? BLANCHE Sou. Stella é minha preciosa irmãzinha. Eu a chamo de irmãzinha apesar de ela ser um pouco mais velha que eu. Muito pouco, menos de um ano. Quer fazer-me um favor? MITCH Claro. Que é? BLANCHE Comprei esta adorável lanterninha de papel colorido numa loja chinesa em Bourbon. Ponha-a sobre a lâmpada ! Faça-me este favor, sim? MITCH Com prazer. BLANCHE Não posso suportar a luz crua duma lâmpada, assim como não posso suportar uma observação rude ou uma ação vulgar. MITCH (ajeitando a lanterninha) Acho que você deve julgar-nos uma turma grosseira. Sou tão adaptável... às circunstâncias. 95

MITCH Isso é uma boa coisa. Veio visitar Stanley e Stella? BLANCHE Stella não tem passado muito bem, ultimamente, e eu vim ajudá-la um pouco. Ela está muito esgotada. MITCH Você não é . . . BLANCHE Casada? Não, não. Sou uma velha professora solteirona. MITCH Você pode lecionar na escola, mas não é, decerto, uma velha solteirona. BLANCHE Obrigada, cavalheiro ! Agradeço a sua galanteria! MITCH Quer dizer que a sua profissão é lecionar? BLANCHE É. MITCH Escola primária, secundária ou ... STANLEY (berrando) Mitch ! MITCH Já vou. 96

BLANCHE Santo Deus, que força de pulmões. Eu leciono na escola secundária, em Laurel. MITCH Que é que ensina? Que matérias? BLANCHE Adivinhe! MITCH Aposto que ensina arte ou música. (Blanche ri delicadamente.) Talvez eu tenha errado. Pode ensinar aritmética. BLANCHE Nunca aritmética, nunca, meu senhor. (Com uma risada) Não. Eu tenho a infelicidade de ser professora de litera-tura inglesa. Procuro instilar, num grupo de brotinhos e de Romeus de confeitaria, o respeito pelos nossos grandes escritores e poetas Hawthome e Whitman e Poe. MITCH Aposto que alguns deles estão interessados em outras coisas. Blanche Nisso você tem razão. A sua herança literária não é o que eles estimam acima de tudo o mais. Mas são encanta-dores! E na primavera, sobretudo, como é tocante vê-los fazer a sua primeira descoberta de amor. Como se nin-suem a tivesse feito antes. (A porta do banheiro se abre Stella sai. Blanche continua falando com Mitch.) Oh! Já acabou? Espere, vou ligar o rádio. 97

(Aciona os botões do rádio, este começa a tocar Wien, Wien, nur du allein. Então ela começa a dançar a valsa com gestos românticos. Mitch está encantado e se move, em tímida imitação, como um urso dançarino. Stanley se dirige bruscamente, através dos reposteiros, para o quarto. Ele chega até onde está o pequeno rádio e o retira da mesa. Gritando uma praga, ele o atira pela janela.) STELLA Bêbado, bêbado. . . seu pedaço de animal! (Precipita-se para a mesa de pôquer.) Todos vocês. . . por favor, vão embora! Se houver um pingo de decência em vocês. . . BLANCHE (rispidamente) Stella, cuidado, ele está. . . (Stanley parece a ponto de atacar Stella.) OS HOMENS (timidamente) Tenha calma, Stanley. Calma, rapaz. . . Vamos todos! STELLA Ponha você as mãos em mim e eu . . . (Volta para o lado, fora da vista. Ele avança e também desaparece. Há o som de um tapa. Stella chora. Blanche grita e corre para a cozinha. Os homens investem, e ha o som de luta corpo-a-corpo e xingamentos. Algo é derrubado e se quebra ruidosamente.) BLANCHE Minha irmã vai ter um bebê. 98

MITCH Que coisa terrível! BLANCHE Lunáticos. São uns lunáticos ! MITCH Tragam ele para cá. (Stanley é forçado a entrar no quarto, com os homens lhe segurando os braços. Ele quase consegue se livrar dos que o prendem. Depois, de repente, ele se acalma e se abandona à pressão. Eles falam baixinho e terna-mente com ele, e ele encosta sua face no ombro de um deles.) STELLA (em voz alta e descontrolada, fora de vista) Quero ir embora, quero ir embora! MITCH A gente não devia jogar pôquer numa casa em que há mulheres. (Blanche entra apressadamente no quarto.) BLANCHE Onde é que estão as roupas da minha irmã? Nós vamos Para cima, para a casa daquela mulher ! MITCH Cadê as roupas? 99

BLANCHE (abrindo o armário) Aqui estão! (Corre ao encontro de Stella.) Stella, Stella, querida ! Minha maninha, não tenha medo ! (Com seus braços envolvendo Stella, Blanche a conduz para a porta da rua e para o apartamento do andar de cima.) STANLEY (com a voz arrastada) Que foi, que aconteceu? MITCH Bebeu mais do que devia, Stan. PABLO Ele está bem agora. STEVE Claro. O meu rapaz está bem ! MITCH Deite ele na cama e arranje uma toalha molhada. PABLO Acho que agora um café seria muito bom para ele. STANLEY (com a voz pastosa) Quero água. MITCH Botem ele debaixo do chuveiro ! (Os homens conversam baixinho, enquanto o conduzem ao banheiro.) 100

STANLEY Vão à merda, seus filhos da puta. (Ouvem-se sons de tapas. A água começa a cair com/orça.) STEVE Vamos embora daqui depressa! (Eles correm para a mesa de pôquer e recolhem seus ganhos, antes de sair.) MITCH (triste, mas com firmeza) Não se deve jogar pôquer em casa que tem mulheres. (A porta se fecha quando eles saem e o lugar fica em silêncio. Os artistas negros do bar da esquina tocam Boneca de Papel, triste e lentamente. Depois de alguns momentos, Stanley sai do banheiro, com água escorrendo por seu corpo e ainda com suas ceroulas de bolinhas coloridas coladas a seu corpo.) STANLEY Stella! (Pausa.) A minha bonequinha me deixou! (Começa a soluçar. Em seguida, vai até o telefone e disca, estremecendo ainda com os soluços.) Eunice? Eu quero a minha mulherzinha, Eunice! (Espera um momento; em seguida repõe o fone no gancho, levanta-o novamente e torna a discar.) Vou ficar chamando, até que a minha mulherzinha fale comigo ! (Ouve-se uma voz aguda e in-distinguível. Ele atira o telefone no chão. Metais e piano dissonantes soam enquanto os aposentos desaparecem 101

na escuridão, e as paredes externas aparecem à luz da noite. O piano blue toca por um breve intervalo. Finalmente, Stanley sai cambaleando, semi vestido, para a entrada e desce com dificuldade os degraus de madeira que conduzem à calçada, na frente do edifício. Lá, ele atira sua cabeça para trás como um cão ao uivar e berra o nome de sua mulher: Stella, Stella! Stella! Stellaaaa!) STANLEY Stel-laaaa! EUNICE (gritando para ele, da porta de seu apartamento, no andar de cima) Deixe de estar berrando aí em baixo e volte para a cama! STANLEY Quero minha mulherzinha cá embaixo. Stella! Stella! EUNICE Ela não vai descer, não, e fique quieto senão eu chamo a polícia! STANLEY Stella! EUNICE Você não pode bater numa mulher e depois querer que ela volte. Ela não vai, não! E a mulher está grávida, seu nojento! Seu filho de polaco! Tomara que eles levem você e joguem água em cima, com a mangueira de incên-dio, como fizeram da outra vez ! 102

STANLEY (humildemente) Eunice, eu quero que a minha mulherzinha venha cá para baixo e fique comigo. EUNICE Ah! (Bate aporta.) STANLEY (com uma violência ostentórea) Stellaaaaa! (O clarinete lamenta, em tom baixo. A porta do andar de cima se abre novamente. Stella começa a descer as frágeis escadas, vestida com seu roupão. Seus olhos estão cheios de lágrimas e seu cabelo está solto sobre sua garganta e ombros. Eles se olham fixamente um ao outro. Em seguida, abraçam-se ansiosos, com gemidos baixos, semelhantes aos de animais. Ele se ajoelha nos degraus e aperta seu rosto contra a barriga dela, que começa a apresentar a curva da maternidade. Os olhos dela se cegam de ternura enquanto ela toma a cabeça dele entre as mãos e o levanta até a altura em que ela está. Ele abre a porta de tela e a levanta do chão, carregando-a em seus braços para dentro do apartamento escuro. Blanche aparece no patamar superior, vestida com seu roupão, e desce medrosamente os degraus.) Onde está minha irmãzinha? Stella? Stella? (Pára à entrada escura do apartamento de 103

sua irmã. Em seguida ela retém o fôlego, como se tivesse sido atingida. Ela olha à direita e à esquerda, como se estivesse procurando um refúgio. A música se desvanece. Mitch aparece, vindo da esquina.) MITCH Senhorita Dubois. BLANCHE Oh! MITCH Tudo em paz? BLANCHE Ela desceu e voltou com ele para lá. MITCH Claro! BLANCHE Estou apavorada! MITCH Oh! Oh ! Não há o que temer. Eles são loucos um pelo outro. BLANCHE Eu não estou acostumada com tal... MITCH Ahn, é uma vergonha que isso tivesse de acontecer justo 104

quando a senhora acabou de chegar. Mas não leve a sério. BLANCHE Que violência! É tão. . . MITCH Sente-se nos degraus e vamos fumar um cigarro. BLANCHE Eu não estou convenientemente vestida. MITCH Isto não faz diferença aqui no bairro. BLANCHE Que cigarreira tão bonita... é de prata! MITCH Eu lhe mostrei a inscrição, não mostrei? BLANCHE Mostrou. (Durante a pausa ela olha para o céu.) Há tantas... tanta confusão no mundo. . . (Ele tosse timidamente.) Obrigada por ter sido tão bom comigo. Eu preciso agora de muita bondade. 105

CENA IV Bem cedo, na manhã seguinte. Há uma confusão de vozes de rua como em um canto coral. Stella está deitada em seu quarto. Seu rosto está sereno no sol das primeiras horas da manhã. Uma de suas mãos repousa sobre sua barriga, que vai se arredondando aos poucos com sua gravidez recente. Da outra mão pende uma revista em quadrinhos colorida. Seus olhos e seus lábios têm aquela tranqüilidade meio narcotizada que existe nas faces dos ídolos orientais. A mesa está desordenada, com os restos do desjejum e as coisas quebradas na noite anterior, e o pomposo pijama de Stanley está jogado na porta do banheiro. A porta da rua está ligeiramente aberta, mostrando um céu com a luminosidade do verão. Blanche aparece nessa porta. Ela passou a noite sem dormir e sua aparência contrasta inteiramente com a de Stella. Ela aperta os nós dos dedos nervosamente contra os lábios enquanto olha atra-vés da porta, antes de entrar. 107 Blanch Stella!

STELLA (mexendo-se preguiçosamente) Humm? (Blanche deixa escapar um gemido lamentoso e corre para dentro do quarto, atirando-se ao lado de Stella em um ímpeto de ternura histérica.) BLANCHE Oh, Stella, minha irmã querida! STELLA (afastando-se dela) Blanche, que é que há com você? (Blanche se recompõe e levanta lentamente, ficando em pé ao lado da cama e olhando para a irmã, com os nós dos dedos apertados contra os lábios.) BLANCHE Ele saiu? STELLA Stan? Saiu. BLANCHE Vai voltar? STELLA Foi lubrificar o carro. Por quê? BLANCHE Por quê? Fiquei desesperada, Stella! Quando descobri que você tinha sido louca de voltar para cá depois do que aconteceu. Quase corri atrás de você. 108 J

STELLA Ainda bem que você não veio. BLANCHE No que é que você estava pensando? (Stella faz um gesto indefinido.) Responda-me! O quê? O quê? STELLA Por favor, Blanche! Sente-se a pare de gritar. BLANCHE Está bem, Stella. Vou repetir a pergunta, agir calmamente. Como pôde voltar para esta casa a noite passada? Você deve ter dormido com ele! (Stela levanta-se calma e vagarosamente.) STELLA Blanche, eu tinha esquecido como você é excitável. Está dando demasiada importância a isso. BLANCHE Estou? STELLA Sim, está, Blanche. Eu sei o que deve ter parecido a você e sinto muitíssimo que tenha acontecido, mas não foi nada tão sério como está imaginando. Em primeiro lu-gar, quando homens bebem e jogam pôquer, tudo pode acontecer. Stanley sempre quebra coisas. Na noite do nosso casamento — logo que entramos aqui — ele apanhou uma das minhas chinelas e correu pela casa que brando as lâmpadas. 109

BLANCHE Ele fez. . . o quê? STELLA Quebrou todas as lâmpadas com o salto de minha chi-nelal (Ri.) BLANCHE E você. . . você deixou? Não correu, não gritou? STELLA Eu fiquei meio excitada com isso. (Espera um momento.) Você e Eunice tomaram café? BLANCHE Você acha que eu iria querer café? STELLA Há um pouco de café ainda no fogão. BLANCHE Você aceita isso como se fosse normal, Stella. STELLA Que mais poderia ser? Ele levou o rádio para o conserto. Ele não caiu na calçada, e assim só uma válvula quebrou. BLANCHE E você fica aí parada, sorrindo? STELLA Que quer você que eu faça? 11 0

BLANCHE Caia em si e encare a situação. STELLA Qual é, na sua opinião? BLANCHE Na minha opinião?. . . Você está casada com um louco! STELLA Não! BLANCHE Sim, você está casada com um louco. Sua situação é pior que a minha. A única coisa é que você não está sendo sensata. Eu vou fazer alguma coisa. Dar um jeito em mim e começar vida nova! STELLA Sim? BLANCHE Mas você, você já se entregou. E isso não está certo, você não é velha! Você pode dar o fora. STELLA (lenta e enfaticamente) Eu não estou querendo dar o fora coisa nenhuma. BLANCHE (incrédula) O quê. . . Stella? STELLA Eu disse que não quero dar o fora de jeito nenhum. Veja a bagunça nessa sala! E aquelas garrafas vazias! Eles 111

liquidaram com duas caixas delas a noite passada! Ele me prometeu hoje de manhã que ia deixar de fazer essas reuniões para jogar pôquer, mas você sabe por quanto tempo ele vai conseguir cumprir essa promessa. Oh, bem, é a diversão dele, assim como as minhas são o cinema e o bridge. As pessoas têm de aprender a tolerar os hábitos umas das outras, puxa vida! BLANCHE Eu não compreendo você! (Stella vira-se para ela.) Eu não compreendo a sua indiferença. Isso aí é uma filosofia chinesa que você anda praticando? STELLA É o quê ... o quê? BLANCHE Essa história de ficar se arrastando por aí e resmungando . . . "Uma válvula quebrada, garrafas de cerveja vazias, bagunça na cozinha!" — como se nada fora do comum tivesse acontecido! (Stella ri vagamente e, apanhando a vassoura, fá-la girar em suas mãos.) BLANCHE Você está sacudindo essa coisa na minha frente de propósito? STELLA Não. BLANCHE Pare com isso. Largue essa vassoura. Eu não vou permitir que você limpe essa bagunça para ele! 112

STELLA Então quem é que vai limpar? Você? BLANCHE Eu? Eu! STELLA Não, acho que não. BLANCHE Deixe-me pensar. Se ao menos a minha cabeça funcionasse ! Temos que arranjar algum dinheiro, é a única saída! STELLA Acho que é sempre bom arranjar dinheiro. BLANCHE Ah! Tive uma idéia (Trêmula, torce um cigarro dentro do maço.) Você se lembra de Shep Huntleigh? (Stella sacode a cabeça.) Foi meu namorado no colégio. STELLA Sim? BLANCHE Encontrei-me com ele no inverno passado. Você sabia que eu fui a Miami nas férias do Natal? STELLA Não. BLAHCHE Bem. Eu fui. Realizei a viagem como um investimento. 113

pensando encontrar alguém que tivesse um milhão de dólares. STELLA E você encontrou? BLANCHE Sim. Encontrei Shep Huntleigh. . . em pleno Boulevard Biscayne, na véspera do Natal, ao anoitecer, entrando em seu carro, um Cadillac conversível que devia ter um quarteirão de comprimento! STELLA Teria sido um desses imprevistos do trânsito! BLANCHE Você já ouviu falar em poços de petróleo? STELLA Sim. . . ligeiramente. BLANCHE Ele os possui, espalhados em todo o Texas. O Texas esta literalmente derramando ouro nos bolsos dele. STELLA Vejam só! BLANCHE Você sabe como sou indiferente a dinheiro. Pense em dinheiro em termos do que ele possa fazer por nós. Não, ele poderia fazê-lo, certamente, poderia fazê-lo! STELLA Fazer o que, Blanche? 1 14

BLANCHE Ora. . • montar uma loja. . . para nós ! STELLA Que espécie de loja? BLANCHE Oh ! Uma. . . loja qualquer! Ele poderia fazer isso com a metade do que a mulher dele gasta nas corridas. STELLA É casado? BLANCHE Oh! E, querida, e eu estaria aqui se o homem não fosse casado? (Stella ri um pouco. Blanche subitamente salta e se dirige ao telefone e fala com uma voz aguda.) Como é que ligo para a Western Union? Telefonista! Western Union! STELLA Este é um telefone de disco, querida. BLANCHE Não consigo discar. Estou tão... STELLA Basta discar "O" Blanchf O"? STELLA Sim, "O" de Operadora ! 115

(Blanche reflete por um momento; em seguida, põe o fone no gancho.) BLANCHE Onde há um pedaço de papel? Tenho que escrever. . . o telegrama. (Vai à penteadeira e apanha um lenço de papel e um lápis de sobrancelha a fim de escrever.) Deixem ver, agora. . . (Morde o lápis.) "Querido Shep, irmã e eu em situação desesperada." STELLA Espere um pouco! Que é isso? BLANCHE "Irmã e eu em situação desesperada. Explicarei detalhes depois. . . Estaria interessado em..." (Morde novamente o lápis.) "Estaria interessado em..." (Esmaga o lápis na mesa e se levanta.) Nunca se consegue algo com pedidos diretos! STELLA (rindo) Não seja ridícula, querida! BLANCHE Mas eu vou pensar em alguma coisa, eu preciso pensar em. . . alguma coisa! Não, não se ria de mim, Stella! Por favor, por favor, não se ria, eu, eu... quero que você olhe o que tem dentro da minha bolsa! Veja o que há aqui! (Abre rapidamente a bolsa.) Sessenta e cinco míseros centavos em moeda corrente! STELLA (dirigindo-se à cômoda) Stanley não me dá uma quantia regular, ele próprio gosta de pagar as contas, mas. . . esta manhã ele me deu dez 116

dólares para ajudar a ajeitar as coisas. Pegue cinco para você, Blanche, e eu ficarei com o resto. BLANCHE Oh, não. Não, Stella. STELLA (insistindo) Eu sei o quanto o moral da gente melhora só por a gente ter um pouquinho de dinheiro no bolso. BLANCHE Não, obrigada... eu vou consegui-lo nas ruas! STELLA Que é isso? Fale direito! Como é que você foi ficar assim tão sem recurso? BLANCHE Simplesmente o dinheiro some, desaparece em qualquer lugar. (Esfrega a testa.) Ainda hoje mesmo preciso tomar um antiácido. STELLA Vou já preparar um para você. BLANCHE Ainda não. . . Eu preciso continuar pensando! STELLA Eu gostaria que você deixasse as coisas andarem ao menos por algum tempo . . . BLANCHE Stella, não posso viver com ele! Você pode, é seu marido. 1 17

Mas como eu poderia ficar aqui, com ele, depois do que aconteceu ontem à noite, só com aquela cortina entre nós? STELLA Blanche, você o viu no pior momento dele, ontem à noite. BLANCHE Ao contrário, eu o vi no melhor! O que um homem desses tem para oferecer é a força animal, e disso ele nos deu uma excelente exibição! Mas a única maneira de viver com um homem assim, é. . . ir para a cama, com ele ! E isso é tarefa sua, não minha. STELLA Depois de descansar um pouco vai ver que tudo acabará bem. Você não terá que preocupar-se com coisa alguma, alguma, enquanto estiver aqui. Refiro-me... às despesas. BLANCHE Tenho de arranjar um plano para nós duas, nós duas, não eu, sairmos daqui. STELLA Você meteu na cabeça que estou em alguma coisa de que quero fugir. BLANCHE Eu meti na cabeça que você tem suficiente memória para lembrar-se de Belle Rêve e achar impossível viver neste lugar e com estes jogadores de pôquer. STELLA Bem, você está contando demais com certas coisas. 118

BLANCHE Eu não acredito que você esteja sendo sincera. STELLA Não? BLANCHE Eu compreendo como isso aconteceu. . . um pouco. Você o viu de uniforme, ele é um oficial, não aqui, mas. . . STELLA Não tenho muita certeza de que teria feito alguma diferença o lugar onde eu o vi. BLANCHE Agora, não me diga que foi uma dessas misteriosas coisas eletrizantes que acontecem entre duas pessoas! Se você o disser, eu vou rir na sua cara. STELLA Eu não vou dizer absolutamente mais nada a respeito disso! BLANCHE Está bem, então não diga. STELLA Mas existem coisas que acontecem entre um homem e uma mulher no escuro. . . que de certa forma fazem todo o resto parecer . . . sem importância. (Pausa.) Você está falando é sobre desejo brutal. . . apenas

isso. . . Desejo!. . . o nome do bonde — um verdadeiro calhambeque — que atravessa, barulhento, o quarteirão, subindo uma velha rua estreita e descendo outra. . . STELLA Você nunca viajou naquele bonde? BLANCHE Foi ele que me trouxe aqui. . . Onde eu não sou bem-vinda e onde eu tenho vergonha de estar. . . STELLA Então você não acha que a sua atitude superior está um pouquinho fora de lugar? BLANCHE Eu não estou sendo nem me sentindo superior, absolutamente, Stella. Acredite-me, não estou! É só isso. É assim que eu vejo isso. Com um homem como Stanley, a gente sai uma, duas, três vezes quando está com o diabo no corpo. Mas viver com ele? Ter um filho dele? STELLA Já disse a você que o amo. BLANCHE Então tremo de medo, por você! E. . . Tremo de medo por você.. . STELLA Não posso impedir que você trema. Se insiste em tremer . . . (Pausa.) BLANCHE Stella, posso falar. . . francamente? 120

STELLA Sim, pode. Vá em frente. Com a maior franqueza. (Fora, um trem se aproxima. Elas ficam em silêncio até que o ruído se extingüa. Ambas estão no quarto. Sob a proteção do barulho do trem, Stanley entra, vindo de fora. Ele fica, sem ser visto pelas mulheres, segurando alguns pacotes nos braços, e ouve por acaso a conversa que se segue. Ele usa uma camiseta e calças de pano leve, riscado de azul e branco, e sujas da graxa.) BLANCHE Bem — com licença da má palavra — ele é ordinário! STELLA Ora, sim, suponho que sim. BLANCHE Supõe! Você não pode ter esquecido tanto assim a educação que .recebeu, Stella, para estar só supondo que exista qualquer indício de cavalheiro na natureza desse homem! Nem sequer uma partícula, não! Oh, se ele fosse apenas. . . comum! Apenas simples. . . e bom e saudável, mas, não. Existe alguma coisa francamente bestial nele! Você está me odiando por dizer isso, não está? (friamente) em frente e diga tudo, Blanche. Ele age como um animal. Tem hábitos de animal. Come, 121

fala, anda como um animal. Há nele qualquer coisa de sub-humano, qualquer coisa de gorila como nesses quadros antropológicos que a gente vê por aí. Milhares e milhares de anos se passaram e aí está ele: Stanley Ko-walski, o único sobrevivente da Idade da Pedra trazendo para casa a carne fresca da matança da floresta! E você. . . você aqui. . . esperando por ele? Talvez ele a ataque ou talvez grunha e beije você! Isto é, se já tiver descoberto o beijo. A noite cai e os outros gorilas se reúnem lá na cova da frente — todos grunhindo, bebendo; estraçalhando-se com ele. A sua "noite de prazer" como você chama a sua reunião de gorilas! Alguém rosna. . . alguma criatura bota a mão em alguma coisa. . . e lá vem a briga! Meu Deus, Stella, talvez nós estejamos muito longe de sermos feitos à imagem de Deus. Mas, Stella, minha irmã, houve algum progresso no mundo desde então. Coisas como a arte, a poesia, a música. . i uma espécie de nova luz apareceu. . . Em algumas pessoas sentimentos mais nobres começaram a surgir. . . E são esses sentimentos que devemos cultivar. E fazer com que eles cresçam em nós, e agarrarmo-nos a eles, e fazer deles a nossa bandeira, nossa marcha escura, para onde quer que estejamos indo. . . Não, Stella. Não fique para trás com os brutos. (Outro trem passa lá fora. Stanley hesita, lambendo os lábios. Então, subitamente ele se volta, furtivo, e se afasta da porta ao frente. As mulheres ainda não perceberam sua presença. Quando o trem termina de passar, ele chama através da porta da frente, que está fechada.) STANLEY Ei, Stella! 122

STELLA (que esteve ouvindo Blanche atentamente) Stanley! BLANCHE Stella, eu... (Mas Stella já se foi para a porta da frente. Stanley entra descuidado, com seus pacotes.) STANLEY Olá, Stella, Blanche voltou? STELLA Sim, ela voltou. STANLEY Olá, Blanche. (Sorri ironicamente para ela.) STELLA Você deve ter entrado embaixo do carro. STANLEY Os malditos mecânicos do Fritz não sabem distinguir o rabo deles de... — Eh ! (Stella o abraça com ambos os braços, com paixão, e bem à vista de Blanche. Ele ri e aperta a cabeça dela contra a sua. Por cima da cabeça dela ele ri ironicamente para Blanche através das cortinas. Enquanto as 123

luzes vão diminuindo com uma luminosidade que permanece mostrando o abraço dos dois, a música do piano blue, com trom-pete e bateria, se faz ouvir.) 124

C ENA V Blanche está sentada no quarto, abanan-do-se com um leque de folha de palmeira enquanto lê uma carta que acabou de completar. De repente ela sofre um acesso de riso Stella está se vestindo no quarto. STELLA De que está rindo, meu bem? BLANCHE De mim mesma, de mim mesma, por ser tão mentirosa! Estou escrevendo uma carta ao Shep. (Apanha a carta.) 'Querido Shep: estou passando um verão movimentadís-simo, voando de um lado para outro. E, quem sabe, talvez me venha, de repente, a idéia de estourar aí em Dal-las! Que é que você acha? Ha-ha! (Ri nervosamente e com vivacidade, tocando em sua garganta como se esti-vesse realmente falando com Shep.) Um homem prevenido vale por dois, diz o ditado", Que tal? (Mais nervosa) maioria das amigas de minha irmã vai para o norte no verão, mas algumas têm casas na praia e a ronda de diversões não pára: chás, coquetéis, almoços. . ." (Ouve-se um tumulto no andar de cima, no apartamento dos Hubbel.) 125

STELLA Acho que está havendo complicações, entre Eunice e Steve. (A voz de Eunice se eleva com uma terrível ira.) EUNICE Já ouvi falar de você com aquela loura. STEVE Mentira! EUNICE Não pense que você vai tapar os meus olhos. Eu não me importaria que você ficasse lá embaixo, no Quatro Naipes, mas você sempre vai para cima. STEVE Quem foi que me viu lá em cima? EUNICE Eu vi você perseguindo ela quase nua, na sacada. STEVE Não me ameaça com isso! EUNICE (gritando) Você me bateu ! Vou chamar a polícia! (Ouve-se o ruído de alumínio atingindo uma parede, seguido pelo urro irritado de um homem, gritos e mobília revirada. Ou-ve-se um estrépito de coisa que quebra; e, em seguida, faz-se relativo silêncio.) BLANCHE(com vivacidade) Ele a matou? 126

(Eunice aparece nos degraus, em demoníaca desordem.) STELLA Não ! Ela vem descendo a escada. EUNICE Chamar a polícia, eu vou chamar a polícia! (Dirige-se correndo para a esquina. Elas riem levemente. Stanley vem da esquina com sua camisa de seda verde e escarlate, própria para jogar boliche. Ele sobe depressa os de-graus e entra ruidosamente na cozinha. Blanche registra sua chegada com gestos nervosos.) STANLEY Que é que há com Eunice? STELLA Ela e Steve brigaram. Ela chamou a polícia? STANLEY Não. Está tomando um drinque. STELLA E muito mais prático. (Steve desce, apalpando cuidadosamente um ferimento em sua testa e olha para dentro.) STEVE Ela está aí? STANLEY Não, não. No Quatro Naipes. 127

STEVE Essa minha mulher é uma vaca no cio. (Olha para o lado da esquina um pouco timidamente, então se volta com afetada arrogância e vai atrás dela.) BLANCHE Preciso tomar nota disso no meu caderninho. Ah! Ah! Estou compilando um caderninho de palavrinhas e frases esquisitas que aprendi aqui. V-a-c a-n-o-c-i-o. STANLEY Você não vai aprender nada aqui que não tenha ouvido antes. BLANCHE Posso contar com isso? Vaca no cio. STANLEY Pode contar até quinhentos. BLANCHE Eis um número bem alto. (Ele abre rapidamente a gaveta da cômoda, fecha-a com estrondo e atira sapatos em um canto. A cada ruído Blanche estremece levemente. Finalmente, ela fala.) Stanley, sob que signo você nasceu? STANLEY (enquanto se veste) Signo? BLANCHE Signo, astrológico. Aposto que você nasceu sob o signo de Áries. As pessoas que nascem sob Áries são poderosas e dinâmicas. São loucos por barulho ! Adoram atirar coisas em redor com estrondo! Você deve ter feito muito 128

barulho no Exército, e agora, que está fora de lá, quer continuar tratando os objetos inanimados com essa fúria! (Stella está constantemente entrando e saindo do banheiro durante esta cena. Neste momento ela põe a cabeça para fora do banheiro.) STELLA Stanley nasceu cinco minutos depois do Natal. BLANCHE Capricórnio. . . o bode. • STANLEY Em que signo nasceu você? BLANCHE Eu faço anos dia 15 de setembro, logo, eu nasci sob o signo de Virgo. STANLEY Que é Virgo? BLANCHE Virgo é Virgem. STANLEY (desdenhosamente) Ahhh! (Avança um pouco, enquanto dá o nó na gravata.) Diga-me uma coisa: Você conhece alguém chamado Shaw? (O rosto dela exprime um pouco de choque. Ela apanha o vidro de colônia e ume-dece seu lenço enquanto responde cuidado-samente.) BLANCHE Bem, todo o mundo conhece alguém chamado Shaw. Por quê? 129

STANLEY Bem, é que esse alguém chamado Shaw tem a impressão de que conheceu você em Laurel. É, mas eu acho que ele deve ter confundido com essa "outra pessoa", porque esta outra pessoa é alguém que ele encontrou num hotel chamado Flamingo. (Blanche ri sem fôlego, enquanto passa o lenço umedecido de colônia em suas têmporas.) BLANCHE Temo que ele tenha me confundido com essa "outra pessoa". O Hotel Flamingo não é o tipo de estabelecimento em que eu me arriscaria a ser vista! STANLEY Você conhece esse hotel? BLANCHE Sim, eu o vi uma vez e senti-lhe o cheiro. STANLEY Você deve ter estado muito perto, se pôde sentir o cheiro. BLANCHE O odor de perfume barato é penetrante. STANLEY Esse que você usa é caro? BLANCHE Vinte e cinco dólares um vidrinho. Aliás, já está quase acabando. É apenas uma sugestão, se quiser lembrar-se do meu aniversário! (Fala com certa descontração, mas em sua voz há um tom de medo.) 130

STANLEY Shaw deve ter confundido você com alguém. Ele vive indo a Laurel e voltando de lá, assim pode verificar e esclarecer qualquer engano. (Volta e se dirige para os reposteiros. Blanche fecha os olhos como se estivesse desmaiando. Sua mão treme enquanto ela levanta o lenço novamente para passá-lo na testa. Steve e Eunice vêm caminhando da esquina. O braço de Steve está em volta dos ombros de Eunice, e ela está soluçando co-piosamente; ele está murmurando palavras de amor. Há um murmúrio de trovão à medida que eles sobem lentamente a escada, fortemente abraçados.) STANLEY (para Stella) Stella, vou esperar você no Quatro Naipes ! STELLA Hi! Não mereço um beijo? STANLEY Diante de sua irmã, não. STELLA Hein? (Sai. Blanche se levanta da cadeira. Ela parece exausta; olha ao redor com uma expressão quase de pânico.) ! Que foi que ele ouviu a meu respeito? foi que lhe contaram de mim? 131

STELLA Contaram? BLANCHE Você não ouviu ninguém falar mal de mim? STELLA Ora, Blanche ! Claro que não ! BLANCHE Sabe, Stella, corria em Laurel, uma porção de mexericos. STELLA Sobre você, Blanche? BLANCHE Eu não fui muito bem comportada, nestes dois últimos anos, depois que Belle Rêve começou a escapar -me por entre os dedos. STELLA Todos nós fazemos coisas que. . . BLANCHE É. . . Mas eu nunca fui bastante forte. Quando as pessoas delicadas como eu precisam de calor humano, elas têm de usar cores suaves e pôr uma lanterna de papel na lâmpada para amortecer a luz, mas basta ser delicada ! Não sei por quanto tempo ainda poderei enganar os outros. (A tarde já chegou ao crepúsculo. Stella entra no quarto e acende a luz sob a lanterna de papel. Ela segura uma garrafa de refnge-rante.) Você está me ouvindo? 132

STELLA Eu não ouço você quando você fica mórbida! (Adianta-se com a garrafa de refrigerante na mão.) BLANCHE (com uma abrupta mudança de ânimo, mostrando-se mais alegre) Essa Coca-Cola é para mim? STELLA Para ninguém mais! BLANCHE Obrigada, meu anjo. É só Coca-Cola? STELLA (voltando-se) Você quer misturar alguma coisa? BLANCHE Bem, uma misturazinha nunca fez mal a nenhuma Coca-Cola. Deixe comigo. Você não precisa ficar me dando atenção o tempo todo ! STELLA Mas eu gosto de lhe dar atenção, Blanche. Assim fica mais parecido com a nossa casa. (Vai à cozinha, apanha um copo e põe nele uma dose de uísque.) BLANCHE Eu tenho de admitir que adoro quando os outros me dão atenção... (Corre para o quarto. Stella vai se encontrar com ela, com o copo na mão. Blanche subitamente agarra a outra mão de Stella e com um tom lamentoso aperta a mão da 133

irmã contra seus lábios. Stella fica embaraçada por sua demonstração emotiva. Blan-che fala com voz sufocada.) Stella, você é. . . tão boa para mim ... e eu ... STELLA Blanche. BLANCHE Eu sei, Stella. Você detesta que eu fale dessas coisas sen-timentais, mas, meu bem, acredite, eu sinto as coisas mais do que lhe digo. Não vou demorar-me aqui. Não vou, prometo, eu... STELLA Blanche! BLANCHE (histericamente) Não me demoro, prometo, vou embora. Vou logo, vou mesmo. Não vou ficar aqui até que ele... me ponha para fora. STELLA E agora quer parar de dizer tolices? BLANCHE Sim, meu bem. Veja como põe. . . esses líquidos eferve-centes transbordam facilmente. (Blanche ri um riso agudo e agarra o copo, mas sua mão treme tanto que ele quase lhe escapa. Stella põe a Cola-Cola no copo. Ela espuma e derrama. Blanche dá um grito lancinante.) STELLA (chocada com o grito) Meu Deus do Céu ! 134

BLANCHE Oh ! Bem no meu vestido novo ! STELLA Oh . . . Pegue o meu lenço. Limpe com cuidado. BLANCHE (recuperando-se lentamente) Sim, sim, com cuidado . . . STELLA Manchou? BLANCHE Nem um pouquinho. Ha-ha! Que sorte, hein? (Senta-se, trêmula, tomando a bebida com evidente alívio. Segura o copo com ambas as mãos e continua a rir um pouco.) STELLA Por que foi que gritou desse jeito? BLANCHE Não sei porque gritei! (Continuando nervosamente.) Mitch. . . Mitch virá às sete. Acho que estou meio nervosa por causa das nossas relações. (Começa a falar rapidamente, sem tomar fôlego.) Eu ainda não lhe dei nada a não ser um beijo de despedida, foi tudo o que lhe dei, Stella. Quero que ele me respeite. E os homens não querem o que podem conseguir com facilidade. Mas, por outro lado, perdem o interesse muito depressa. Especialmente, quando a moça já passou dos. . . trinta. Eles acham que uma mulher de mais de trinta anos. . . deve ceder. . . não estou "cedendo". É claro que ele não sabe. . . Quero dizer que eu não lhe disse qual era a minha verdadeira idade! 135

STELLA Por que é que você se preocupa tanto com a idade? BLANCHE Por causa dos duros golpes que a minha vaidade já recebeu. O que quero dizer é . . . que ele pensa que eu sou . . . pura e correta. Quero enganá-lo o bastante para fazer com que com que ele... com que ele... me deseje. STELLA Blanche, você o deseja? BLANCHE Eu desejo descansar! Respirar calmamente de novo! Sim... eu desejo Mitch. . . desejo muito ! Pense só em isso acontecer! Posso sair daqui e não ser problema para mais ninguém . . . (Stanley aparece na esquina com uma garrafa sob o cinto.) STANLEY (berrando) Ei, Steve! Ei, Eunice! Ei, Stella! (Ouvem-se gritos alegres vindos de cima. Ouvem-se também, vindo da esquina, o som de trompete e bateria.) STELLA (beijando Blanche impulsivamente) Isso vai acontecer! BLANCHE (duvidando) Vai? STELLA Vai! (Vai até a cozinha, voltando-se para olhar para Blanche.) Vai, meu bem, vai. . . mas não tome outro drinque ! (Sua voz se apaga enquanto ela sai pela porta 136

para encontrar o marido. Blanche se afunda, exausta, na cadeira, com o copo na mão. Eunice ri alto e desce correndo as escadas. Steve corre atrás dela com gritos de prazer e a persegue até dobrar a esquina. Stanley e Stella se abraçam enquanto os seguem, rindo. O crepúsculo escurece ainda mais. A música que vem do Quatro Naipes é lenta e triste.) BLANCHE Ai de mim, ai de mim, ai de mim. (Seus olhos se fecham e o leque de folha de palmeira cai de seus dedos. Ela golpeia com a mão o braço da cadeira uma porção de vezes. Há um pequeno vislumbre de relâmpago sobre o prédio. Um jovem atra-vessa a rua e toca a campainha.) BLANCHE Entre. (O jovem aparece através dos reposteiros. Ela o olha com interesse.) Oh ! Que posso fazer por você? O JOVEM Estou cobrando para A Estrela da Tarde. BLANCHE Não sabia que as estrelas agora cobravam. O JOVEM É o jornal. BLANCHE Eu sei, estava apenas brincando. . . quer um drinque? 137

O JOVEM Não, madame. Não, obrigado. Não posso beber en-quanto trabalho. BLANCHE Mas claro. Então vejamos. . . Eu não tenho um centavo. Não sou a dona da casa. Sou a irmã dela, de Mississípi. Sou uma dessas parentas pobres de que você deve ter ouvido falar. O JOVEM Não tem importância. Volto mais tarde. (Faz menção de sair. Ela se aproxima um pouco.) BLANCHE Ei! (Ele se volta timidamente. Ela põe um cigarro em uma longa piteira.) Tem um fósforo? (Caminha em direção a ele. Eles se encontram na porta que separa os dois aposentos.) O JOVEM Pois não! (Tira um isqueiro do bolso.) Isto nem sempre funciona. BLANCHE É temperamental? (O isqueiro acende.) Ah ! Muito obrigada. (Ele tenta sair novamente.) Ei! (Ele se volta novamente, ainda mais tímido. Ela se aproxima dele.) Que horas são? O JOVEM Sete e quinze, madame. BLANCHE Tão tarde assim? Você não gosta dessas longas tardes 138

chuvosas de Nova Orleans, quando uma hora não é apenas uma hora, mas um pedacinho de eternidade caindo-lhe nas mãos. . . e quem sabe o que fazer com ele? (Ela toca no ombro dele.) Você. . . não se molhou com a chuva? O JOVEM Não, madame. Eu me abriguei. BLANCHE Numa confeitaria? E tomou uma soda? O JOVEM Hunn, hunnn. BLANCHE De chocolate? O JOVEM Não, madame. De cereja. BLANCHE (sorrindo) Cereja? O JOVEM Uma soda de cereja. BLANCHE Você me deixa com água na boca. (Toca a face dele ligei-ramente e sorri. Então se dirige para o baú.) O JOVEM Bem, é melhor eu ir andando . . . 139

BLANCHE (detendo-o) Jovem1. . . (Ele se volta. Ela retira do baú um xale grande de gaze e o coloca sobre os ombros. Na pausa que se segue ouve-se o piano blue que continua pelo resta desta cena e na abertura da cena seguinte. O jovem limpa a garganta e olha ansiosamente para a porta.) Jovem! Jovem! Jovem! Ninguém nunca lhe disse que você parece um príncipe saído das Mil Uma Noites? (O jovem ri desajeitadamente e fica em pé como um garotinho tímido. Blanche fala suavemente com ele.) Pois é o que você parece, meu bem ! Venha cá. Eu quero dar um beijo leve e suave na sua boca. (Sem esperar que ele aceite, ela vai até ele rapidamente e aperta seus lábios contra os dele.) Agora vá, vá. Eu gostaria de retê-lo, mas tenho de ser boa e não tocar em meninos. Vá, vá, vá. . . (Ele olha fixamente para ela por um momento. Ela abre a porta para ele e envia-lhe um beijo com a mão enquanto ele desce os degraus com um olhar perplexo. Ela continua lá, como que sonhando, depois de ter ele desapare-cido. Então, Mitch aparece na esquina com um punhado de rosas.) Vejam quem vem aí! Monsieur Rosen Cheva-lier Primeiro, incline-se diante de mim. . . Agora apre-sente-as! Ahhhh. . . Merciiii!. . . (Olha para ele por sobre as rosas, apertan-do-as de maneira coquete contra os lábios. Ele sorri para ela autoconfiante.) 140

CENA VI São cerca de duas horas da madrugada, da mesma noite. A parede externa do prédio está visível. Blanche e Mitch entram. A completa exaustão que somente uma personalidade neurastênica pode conhecer é evidente na voz e nas maneiras de Blanche. Mitch está impassível, mas deprimido. Provavel-mente eles estiveram no parque de diversões do lago Pontchartrain, pois Mitch está carregando, de cabeça para baixo, uma estatueta de gesso de Mae West, tipo de prêmio que se ganha em galerias de tiro ao alvo e em jogos de sorteio. BLANCHE (parando desanimada nos degraus) Bem . . . (Mitch ri com embaraço.) Bem . . . MITCH Acho que deve ser bastante tarde. E você está cansada. BLANCHE Até mesmo o homem do tamale quente já não está mais na rua, ele costuma ficar até o fim (Mitch ri embaraça-damente outra vez.) Como é que você vai para casa agora? 141

MITCH Vou até Bourbon e lá tomo um bonde que funciona de noite. BLANCHE (sorrindo nervosamente) Esse bonde chamado Desejo ainda anda por aí, gastando os trilhos a estas horas? MITCH (com pesar) Receio que você não tenha se divertido muito esta noite, Blanche. BLANCHE Eu estraguei a sua noite. MITCH Não, você não estragou a noite, mas eu senti o tempo todo que eu não estava lhe dando muita. . . diversão. BLANCHE Eu simplesmente não conseguia me animar. Só isso. Acho que eu nunca tentei tanto ficar alegre, e acabei estragando tudo. Mas ninguém pode dizer que eu não tenha tentado !. . . Eu tentei mesmo. MITCH Por que você tentou, se você não estava a fim, Blanche? BLANCHE Eu estava apenas obedecendo à lei da natureza. MITCH Que lei é essa? 142

BLANCHE A lei que diz que a mulher deve agradar o homem. . . ou então desistir! Veja se você consegue encontrar a chave da porta nesta bolsa. Quando eu estou muito can-sada meus dedos ficam todos desajeitados. MITCH (procurando na bolsa de Blanche) É esta? BLANCHE Não, meu bem, esta é a chave do meu baú. Aliás, eu vou começar a arrumá-lo logo, logo. MITCH Quer dizer que você vai embora já? BLANCHE Eu já Fiquei mais do que eles podem suportar. MITCH É esta? (A música se desvanece.) BLANCHE Heureca! Benzinho, abra a porta enquanto eu dou uma última olhada para o céu. (Debruça-se no parapeito do alpendre. Ele abre a porta e fica, sem jeito, atrás dela.) Estou procurando as Plêiades, as Sete Irmãs, mas as garotas, ao que parece, não saíram hoje. Ah, não, saíram sim, lá estão elas! Deus as abençoe! Todas elas, num bando só, voltando pra casa depois de um joguinho de bridge... Já abriu a porta? Você é legal! Acho que você 143

r vai querer ir embora agora. . . (Ele arrasta os pés e tosse um pouco.) MITCH Posso. . . hunnnnn. . . dar-lhe um beijo de despedida? BLANCHE Por que sempre pergunta antes se pode? MITCH Não sei se você quer ou não. BLANCHE Por que você não sabe? MITCH Aquela noite em que eu estacionei o carro perto do lago e a beijei, você. . . BLANCHE Benzinho, não foi o beijo que eu recusei. Eu gostei muito do seu beijo. Foi a outra pequena familiarida-de... que eu... me senti obrigada a... desencorajar. ... Eu não me ofendi! Nem um pouquinho! Prá falar a verdade, eu até fiquei lisonjeada por você... ter me desejado! Mas, benzinho, você sabe tão bem quanto eu que uma garota solteira, uma garota sozinha no mundo precisa saber controlar suas emoções, ou então ela está perdida! MITCH (solenemente) Perdida? BLANCHE Acho que você deve estar acostumado a garotas que gos- 144

tam de se perder. Do tipo daquelas que se perdem ime-diatamente, no primeiro encontro! MITCH Eu gosto que você seja exatamente do jeito que você é, porque em toda a minha. . . experiência... eu jamais conheci alguém como você. (Blanche olha gravemente para ele. Em seguida, ela sofre um acesso de riso e então bate rapidamente em sua boca com uma das mãos.) MITCH Você está rindo de mim? BLANCHE Não, querido. Olhe, o senhor e a senhora da casa ainda não voltaram, portanto, entre. Vamos tomar o último drinque juntos. Com a luz apagada. MITCH Como você quiser. (Blanche vai à frente dele em direção à cozinha. A parede externa do prédio desaparece e os interiores dos dois aposentos podem ser vistos vagamente.) BLANCHE (permanecendo no primeiro aposento) Por que não vai para o outro quarto? É mais confortável. Este estrépito no escuro quer dizer que estou procurando uma bebida. MITCH Você quer beber? 145

BLANCHE Quero que você beba! Você esteve tão ansioso e solene toda a noite. Estivemos os dois ansiosos e solenes a noite inteira e agora, quero criar. . . a joie de vivre! Agora estou ascendendo uma vela. MITCH Boa idéia. BLANCHE Vamos ser muito boêmios esta noite. Vamos fazer de contas que estamos sentados num pequeno café de artistas, na Rive Gaúche, em Paris. (Acende um toco de vela e o coloca em uma garrafa.) Moi, je suis la Dame aux Camélias! Vous êtes. . . Armand! Você entende francês? MITCH Não. Não, eu... BLANCHE Voulez vous coucher avec moi ce soir. Vous ne compre-nez pas? Ah, quelle dommage! Quero dizer, ainda bem. Achei um pouco de bebida! O suficiente para nós dois. MITCH (com pesar) Isto. . . é bom. (Ela entra no quarto com as bebidas e a vela.) BLANCHE Sente-se. Por que não tira o paletó e desabotoa o colarinho? 146

MITCH É melhor que eu fique como estou. BLANCHE Queria que ficasse apenas mais à vontade. MITCH Tenho vergonha por transpirar tanto, estou com a camisa grudada no corpo. BLANCHE Transpirar faz bem à saúde. Se a gente não transpirasse morreria em cinco minutos. (Tira o paletó dele.) Ah, que casaco tão bonito! Que tecido é este? MITCH Eles chamam de alpaca. BLANCHE Oh! Alpaca. MITCH É uma alpaca muito leve. BLANCHE Oh! Uma alpaca muito leve. MITCH Não gosto de usar camiseta. Mesmo no verão porque o suor aparece. BLANCHE Oh! 147

MITCH E, não dá a impressão de limpa. Um homem forte tem que tomar cuidado com a roupa que veste, para não parecer muito desajeitado. BLANCHE Você não é demasiadamente corpulento. MITCH Acha que não sou? BLANCHE Não é do tipo delicado. Tem uma ossatura forte e um físico muito imponente. MITCH Obrigado. No Natal passado ganhei uma carteira de sócio do Clube Atlético de Nova Orleans. BLANCHE Não diga. MITCH Foi o melhor presente que já recebi. Lá, eu levanto pesos e nado e me mantenho em forma. Quando comecei, estava ficando com a barriga mole, mas agora minha barriga está dura. Está tão dura que um homem pode me dar um soco e não sinto nada. Me dê um murro, Vamos ! (Ela o golpeia levemente.) Está vendo? BLANCHE Meu Deus! (A mão dela toca o peito dele.) MITCH Adivinhe quanto eu peso, Blanche? 148

MITCH E, não dá a impressão de limpa. Um homem forte tem que tomar cuidado com a roupa que veste, para não parecer muito desajeitado. BLANCHE Você não é demasiadamente corpulento. MITCH Acha que não sou? BLANCHE Não é do tipo delicado. Tem uma ossatura forte e um físico muito imponente. MITCH Obrigado. No Natal passado ganhei uma carteira de sócio do Clube Atlético de Nova Orleans. BLANCHE Não diga. MITCH Foi o melhor presente que já recebi. Lá, eu levanto pesos e nado e me mantenho em forma. Quando comecei, estava ficando com a barriga mole, mas agora minha barriga está dura. Está tão dura que um homem pode me dar um soco e não sinto nada. Me dê um murro, Vamos ! (Ela o golpeia levemente.) Está vendo? BLANCHE Meu Deus! (A mão dela toca o peito dele.) MITCH Adivinhe quanto eu peso, Blanche? 148

BLANCHE Oh! Eu diria. . . lá pelos. . . oitenta quilos? MITCH Adivinhe de novo. BLANCHE Menos? MITCH Não, mais. BLANCHE Bem, você é um homem alto e pode carregar bastante peso sem parecer desajeitado. MITCH Peso noventa e quatro quilos e tenho um metro e oitenta e quatro centímetros descalço — sem sapatos. E isso é o que eu peso nu. BLANCHE Oh, meu Deus. Chega até a me dar medo. MITCH (embaraçado) Meu peso não é assunto muito interessante. (Hesita por um momento.) Qual é o seu? BLANCHE Meu peso? MITCH Sim. 149

BLANCHE Adivinhe!! MITCH Deixe-me levantar você. BLANCHE Sansão ! Vamos, levante me. (Ele vem por trás dela, põe as mãos em sua cintura e a levanta levemente do chão.) Então? MITCH Você é leve como uma pena. BLANCHE Ha, ha! (Ele a abaixa, mas mantém suas mãos na cintura dela. Blanche fala com uma afetação de gravidade.) Você pode soltar-me agora. MITCH Hein? BLANCHE (alegremente) Eu disse, cavalheiro, que agora pode soltar-me. (Ele a abraça desajeitadamente. A voz dela soa gentilmente re-provadora.) Só porque Stella e Stanley não estão em casa, não é motivo para que você não se comporte como um cavalheiro. MITCH Dê-me um tapa sempre que eu passar dos limites. BLANCHE Isso não vai ser necessário. Você é, por natureza, um ca- 150

valheiro, aliás um dos poucos cavalheiros que ainda restam no mundo. Não quero que" você pense que sou uma dessas professoras solteironas e severas. O que há. . . é que... MITCH Hein? BLANCHE Bem, acho que tenho. . . idéias um pouco antiquadas. (Revira os olhos de prazer, sabendo que ele não pode ver sua face. Mitch vai até a porta da frente. Há um considerável silêncio entre eles. Blanche suspira e Mitch tosse, autoconfiante.) MITCH Aonde foram Stanley e Stella esta noite? BLANCHE Saíram com o senhor e a senhora Hubbell. MITCH Aonde foram? BLANCHE Acho que foram a uma sessão de cinema à meia-noite. MITCH Vamos sair juntos qualquer noite destas. BLANCHE Não. Acho que não seria uma boa idéia. MITCH Por quê? 151

BLANCHE Você é um velho amigo de Stanley? MITCH Estivemos juntos no Exército, no regimento 241. BLANCHE Suponho que ele fala com você francamente. MITCH Claro. BLANCHE Ele falou com você a meu respeito? MITCH Não. . . não disse muita coisa. BLANCHE Mas o que é que ele disse? Na sua opinião, qual é a atitude dele para comigo? MITCH Por que me pergunta isso? BLANCHE Bem. . . MITCH Não se dá bem com ele? BLANCHE O que é que você acha? MITCH Acho que ele não compreende você. 152

BLANCHE Essa é a maneira suave de dizer. Se não fosse por Stella que está esperando bebê, eu não seria capaz de suportar certas coisas aqui. MITCH Ele não é. . . bom, para você? BLANCHE Não. Ele é insuportavelmente rude. Faz questão de ofender-me. MITCH De que maneira, Blanche? BLANCHE Ora, de qualquer maneira que se possa imaginar. MITCH É uma surpresa para mim ouvir isso. BLANCHE É mesmo? MITCH Bem, eu... não consigo imaginar como é que alguém Pode ser rude com você. BLANCHE E, de fato, uma situação muito difícil. Como você vê, ninguém pode ter sua vida íntima aqui! Com essa cortina entre os quartos. E à noite ele anda por aqui vestido só com a roupa de baixo. E eu tenho que pedir-lhe que feche a porta do banheiro. Essa espécie de vulgaridade não é 153

necessária. Você, provavelmente, está se perguntando por que é que não me mudo. Bem, vou dizer-lhe franca mente. O ordenado de uma professora mal dá para viver, e eu não economizei um centavo o ano passado, e por isso tenho que agüentar o marido de minha irmã. Decerto, ele deve ter contado a você tudo isso e, ainda, quanto me detesta! MITCH Não penso que ele deteste você. BLANCHE Detesta, sim. Senão, por que me insultaria? A primeira vez que o vi pensei comigo mesma: esse homem é o meu carrasco! Ele me destruirá, a não ser que . . . MITCH Blanche. . . BLANCHE Que é, meu bem? MITCH Posso perguntar uma cousa? BLANCHE Sim. O que é? MITCH Que idade tem você? (Ela faz um gesto nervoso.) 154

BLANCHE Por que quer saber minha idade? MITCH Falei com minha mãe sobre você e ela perguntou-me "que idade tem Blanche?" E eu não pude responder. (Pausa.) BLANCHE Você falou com sua mãe a meu respeito? MITCH Falei. Contei a ela que você era muito simpática e que eu gostava de você. BLANCHE E estava sendo sincero? MITCH Você sabe que estava. BLANCHE Mas eu não compreendo por que é que sua mãe quer saber a minha idade? MITCH Minha mãe é doente. BLANCHE Sinto muito. É grave? MITCH Não vai viver muito. Talvez só uns poucos meses. Ela se preocupa porque ainda não me casei. Ela quer que 155

eu esteja casado antes que ela. . . (Sua voz é rouca, e ele limpa a garganta duas vezes, arrastando os pés nervosamente de um lado para o outro, pondo e tirando as mãos dos bolsos.) BLANCHE Você gosta muito dela, não? MITCH Gosto. BLANCHE Acho que você tem uma grande capacidade de devota-mento. Você vai ficar muito só, quando ela morrer, não é? (Mitch limpa a garganta e balança a cabeça afirmati-vãmente.) Eu compreendo o que isso significa. MITCH Ficar só? BLANCHE Também amei alguém, e perdi a pessoa que amei. MITCH Morreu? (Ela vai até a janela e senta-se no peitoril, olhando para fora; põe mais uma dose no copo.) Um homem? BLANCHE Não. Era um menino. Apenas um menino, quando eu ainda era muito jovem. Aos dezesseis anos fiz uma grande descoberta — o amor! Foi tudo tão simples, tão completo. Foi assim como se acendesse uma luz intensa, num lugar que estivesse sempre no escuro. Foi assim que 156

ele iluminou esse mundo para mim. Mas não tive sorte. Desiludi-me logo. Havia nele qualquer coisa muito estranha. . . Um nervosismo, uma doçura, uma delicadeza que não eram próprios de um homem — se bem que ele não tivesse nada de efeminado. Mas havia qualquer coisa. . . Ele me procurava em busca de ajuda. E eu não sabia disso. Não descobri nada, até depois do nosso casamento . . . Foi então, que eu percebi que o havia enganado de uma maneira misteriosa e que eu não lhe estava dando a ajuda de que ele necessitava, mas da qual não podia falar! Ele estava num atoleiro e agarrava-se a mim. Mas eu não o estava puxando para fora. Eu estava afundando com ele. E eu não sabia de nada. Exceto que eu o amava acima de todas as coisas. Foi então que eu descobri. E da pior maneira possível. Entrando, de repente, num quarto que julgava estar vazio, mas que não estava. Havia nele duas pessoas. O jovem com quem eu me casara e um senhor de mais idade que tinha sido amigo dele durante anos e anos seguidos. . . (Ouve-se fora uma locomotiva quese aproxima. Blanche tampa os ouvidos com as mãos e dobra o corpo. O farol da locomotiva ilumina o aposento enquanto ela vai passando. A medida que o barulho desaparece, Blanche se recompõe lentamente e continua a falar.) Mais tarde, fizemos de conta que nada disso tinha acontecido. Fomos os três juntos ao cassino Moon Lake, bêbados, rindo e cantando o tempo todo. (Soa a música de uma polca, em tom baixo, meio sumido na distância.) Dançamos a varso-viana. . . De repente, no meio da dança, o jovem com quem eu tinha me casado afastou-se de mim e saiu correndo pelo salão. Poucos momentos depois, ouviu-se um tiro. (A polca pára abruptamente. Blanche se levanta com firmeza. Em seguida, a polca retorna, em tom alto.) Saí correndo. Todos saíram correndo e aglome- 157

raram-se em torno daquela coisa horrível, à beira do lago. Eu não podia ver nada, pois havia tanta, tanta gente! Foi então que alguém me tomou pelo braço e disse: "Volte, volte. Não vai querer ver, vai?" Ver? Ver o quê?. Então ouvi vozes que diziam: Allan, Allan, Al-lan ! Oh ! Allan !!! Ele tinha metido o revólver na boca e atirado e a parte de trás de sua cabeça tinha voado pelos ares ! (Ela balança a cabeça e cobre o rosto.) Tudo porque, meu Deus, durante a dança, incapaz de con-ter-me eu lhe havia dito: "Eu vi, Allan, eu sei tudo. Você me repugna". Desde então, a luz que vinha iluminando a minha vida apagou-se de repente. E nunca mais houve outra luz em minha vida que fosse mais forte que esta pobre luz de vela. . . (Mitch levanta-se desajeitadamente e se aproxima um pouco dela. A polca aumenta de intensidade e som. Mitch fica de pé ao lado dela.) MITCH (atraindo-a lentamente para seus braços) Você precisa de alguém. E eu também preciso de alguém. Poderia ser ... você e eu, Blanche? (Ela o fita vagamente por um momento. Em seguida, com um leve suspiro, aconchega-se nos braços dele. Ela faz um esforço, em meio aos soluços, para falar, mas as palavras não vêm. Ele beija a testa dela, depois seus olhos e, finalmente, seus lábios. A melodia da polca desaparece. Ela respira lentamente, em meio a longos soluços de alívio.) BLANCHE Às vezes . . . Deus vem. . . tão depressa! 158

CENA VII É um fim de tarde, em meados de setembro. Os reposteiros estão abertos e a mesa está posta para um jantar de aniversário, com bolo e flores. Stella está completando a decoração quando Stanley entra. STANLEY Pra que todas essas palhaçadas? . . . STELLA Meu bem, é o aniversário de Blanche. STANLEY Ela está aqui? STELLA No banheiro STANLEY (imitando Blanche) "Lavando algumas coisas?" STELLA Calculo que sim. STANLEY Quanto tempo faz que ela está lá? 159

STELLA Toda a tarde. STANLEY (imitando Blanche) "De molho num banho quente?" STELLA Sim. STANLEY Temperatura 40° à sombra e ela se põe de molho num banho quente. STELLA Ela diz que isso a refresca para a noite. STANLEY E você vai lá fora comprar coca-colas para ela, não é? E as serve para Sua Majestade no banho? (Stella encolhe os ombros.) Sente-se aqui um minuto. STELLA Stanley, tenho que fazer uma porção de coisas. STANLEY Sente-se! Eu já tenho a ficha de sua grande irmã, Stella. STELLA Stanley, pare de implicar com Blanche. STANLEY E é ela que me chama de ordinário! STELLA Ultimamente, você tem feito tudo o que pode para irri- 160

tá-la, Stanley, e Blanche é sensível e você tem que com-preender que Blanche e eu fomos criadas em circunstâncias muito diferentes das suas. STANLEY Foi o que me disseram. Aliás, não me disseram outra coisa. Você sabe que ela nos está fazendo engolir um montão de mentiras aqui? STELLA Não, não sei, e . . . STANLEY Bem, é o que ela tem feito. Mas, agora, o gato saiu do saco! Descobri algumas coisas! STELLA Que coisas? STANLEY Coisas de que eu já desconfiava, mas agora tenho provas! (Blanche está cantando no banheiro uma melosa canção popular, que é usada como contraponto para a fala de Stanley.) STELLA (para Stanley) Abaixe a voz! STANLEY Que canarinho, hein? 161

STELLA Agora faça o favor de dizer-me calmamente, o que você pensa que descobriu a respeito de minha irmã. STANLEY Mentira número um: Todos esses melindres que ela finge! Você devia ver como ela está paquerando o Mitch. Ele pensava que ela só tinha sido beijada por um homem. Mas a irmã Blanche não é nenhum lírio. Ha, ha! Que lírio que ela é! STELLA Que foi que você ouviu e quem lhe contou? STANLEY O nosso fornecedor — lá da fábrica — tem viajado durante anos e sabe tudo a respeito dela. Ela é tão famosa em Laurel, como se fosse o presidente dos Estados Unidos, só que não é respeitada por nenhum partido! 0 nosso fornecedor se hospedava num hotel chamado Fla-mingo. BLANCHE (cantando alegremente) "Diga, é só uma lua de papel, Velejando num mar de papelão. . . Mas não seria pura tapeação, Se você acreditasse em mim!" STELLA Que é que há com o Flamingo? STANLEY Ela também se hospedava lá. 162

STELLA Minha irmã morava em Belle Rêve. STANLEY Isso foi depois que a propriedade escapou por entre os dedos dela. Mudou-se para o Flamingo ! Um hotel de segunda classe que tem a vantagem de não interferir na vida social privada das personalidades que vão lá. O Flamingo é usado para toda espécie de coisa, mas mesmo a gerência do Flamingo ficou tão impressionada com Lady Blanche, que pediram que ela entregasse a chave do quarto, definitivamente! Isto aconteceu duas semanas antes que ela aparecesse por aqui. BLANCHE (cantando) "E um mundo de mentiras, como um circo. Tão falso quanto pode ser... Mas não seria pura tapeação, Se você acreditasse em mim!" STELLA Que. . . mentiras. . . desprezíveis! STANLEY Claro, eu compreendo que você fique chateada com isso. Ela tapeou você, como tapeou Mitch ! STELLA É pura invenção! Não há uma palavra de verdade nisso e se eu fosse um homem e esse sujeito tivesse a ousadia de inventar coisas dessa na minha presença. . . BLANCHE (cantando) Sem teu amor, 163

É um desfile de sons irritantes ! Sem teu amor, É uma melodia tocada num parque de diversões STANLEY Meu bem, eu disse a você que verifiquei a fundo essas histórias; agora, espere até que eu acabe. A complicação com Lady Blanche foi que não podia mais agir em Lau rei! Eles manjavam tudo, depois de dois ou três encontros com ela e, então, davam o fora, e ela ia para outro com a mesma técnica, o mesmo jogo, a mesma besteira! Mas a cidade era pequena demais, para que isso continuasse toda a vida! E, passando o tempo, ela virou "figurinha" da cidade. Olhada não como diferente, mas como completamente maluca, doida. (Stella recua.) E, nos últimos anos, tem sido evitada como veneno. Por isso é que está aqui, este verão, representando toda esta cena. . . porque o prefeito praticamente disse a ela que sumisse da cidade! Sim, você sabia que havia um acampamento do exército perto de Laurel, e a casa de sua irmã era um dos lugares chamados Fora dos Limites? BLANCHE "É apenas uma lua de papel, Tão falsa quanto pode ser... Mas não seria uma tapeação, Se você acreditasse em mim!" STANLEY Bem, basta isso para ela ser um tipo refinado e particular de moça. O que nos leva à mentira número dois. STELLA Não quero ouvir mais! 164

STANLEY Ela não vai voltar a ensinar na escola! Para falar a verdade, estou querendo apostar com você que ela jamais teve a idéia de voltar a Laurel! Ela não se demitiu temporariamente do ginásio por causa dos nervos. Chutaram ela de lá. . . e detesto ter que lhe dizer a razão por que tomaram essa medida! Um rapazinho de dezoito anos . . . ela se meteu com ele ! BLANCHE "É um mundo de mentiras, como um circo, Tão falso quanto pode ser..." (No banheiro, a água continua a correr com ruído; gritinhos de prazer e acessos de riso se alternam, como se uma criança esti-vesse se divertindo na banheira.) STELLA Isto está dando-me. . . náuseas! STANLEY O pai do rapazinho soube do caso e falou com o diretor do ginásio. Ah! menina, como eu gostaria de ter estado naquele gabinete quando chamaram Lady Blanche para se explicar. Gostaria de ter visto ela tentando livrar-se dessa! Mas desta vez ela estava numa enrascada dos diabos, e ela sabia que não tinha jeito. Disseram que era melhor ela se mudar para outras bandas. Sim, senhor! Foi praticamente um decreto da cidade contra ela! (A porta do banheiro se abre e Blanche põe a cabeça para fora, segurando uma toalha que lhe envolve os cabelos.) 165

BLANCHE Stella! STELLA (debilmente) Que é, Blanche? BLANCHE Quer me dar outra toalha de banho, para enxugar meu cabelo. Acabei de lavá-lo? STELLA Sim, Blanche. (Passa, meio sonâmbula, da cozinha à porta do banheiro, levando uma toalha.) BLANCHE Que é que há meu bem? STELLA Há, o quê? BLANCHE Você está com uma expressão tão estranha no rosto! STELLA Oh!. . . (Tenta sorrir.) Acho que estou um pouco cansada! BLANCHE Por que não toma um banho também, assim que eu sair daqui? STANLEY (da cozinha) Quando vai ser isso? 166

BLANCHE Não vai demorar muito! Conforme-se em esperar com paciência! STANLEY Não é a minha paciência, é a minha bexiga. (Blanche bate a porta. Stanley ri cruelmente. Stella volta lentamente para a cozinha. Para Stella) Bem, o que é que você me diz disso? STELLA Não acredito em nenhuma dessas histórias e acho que o seu fornecedor foi muito reles e ordinário em contá-las. É possível que alguma dessas coisas que ele disse sejam, em parte, verdadeiras. Minha irmã faz coisas que eu não aprovo. . . coisas que nos preocupavam em casa. Ela sempre foi... avoada. STANLEY Avoada! STELLA Mas, quando era ainda muito moça, muito moça, casou com um rapaz que escrevia poesia. . . Ele era extremamente bonito. Acho que Blanche não só o amava, mas adorava o chão que ele pisava. Ela o adorava e o julgava demasiado perfeito para ser humano! Depois ela descobriu. STANLEY O quê? Que o belo e talentoso jovem era um degenerado. O seu fornecedor não lhe deu essa informação? 167

STANLEY O que nós discutimos são histórias recentes. Isto deve ter acontecido faz muito tempo. STELLA Sim . . . faz muito tempo. . . (Stanley se levanta e a toma pelos ombros de maneira muito gentil. Ela delicadamente se afasta dele e começa automaticamente a fincar pequenas velas cor-de-rosa no bolo de aniversário.) STANLEY Quantas velas vai pôr nesse bolo? STELLA Vou parar em vinte e cinco. STANLEY Haverá visitas? STELLA Convidamos Mitch para comer um pedaço de bolo e tomar sorvete. (Stanley parece pouco à vontade. Acende um cigarro no toco do que estava fumando.) STANLEY Eu, se fosse você, não esperaria a visita de Mitch esta noite. (Stella faz uma pausa em seu trabalho 168

com as velas e volta os olhos lentamente para Stanley.) STELLA Por quê? STANLEY Mitch é meu camarada. Estivemos juntos na Intendência do mesmo regimento, o 241 de Engenharia. Trabalhamos na mesma fábrica e agora jogamos no mesmo time de boliche. Você acha que eu teria coragem de olhar para a cara dele se... STELLA Stanley Kowalski, você repetiu o que aquele. . . ? STANLEY Ora, claro que contei para ele. Eu ficava com isso na consciência para o resto da minha vida se soubesse e deixasse meu melhor amigo cair na esparrela! STELLA E Mitch terminou com ela? STANLEY Você não terminaria se. . . ? STELLA Eu perguntei: Mitch terminou com ela? (A voz de Blanche se eleva novamente, serena como o som de um sino. Ela canta: "Mas não seria pura tapeação, se você acre-ditasse em mim ".) 169

STANLEY Não, não acho que ele tenha terminado com tudo, só que agora esta avisado! STELLA Stanley, ela pensava que Mitch ia. . . ia casar com ela. E eu desejava isso também. STANLEY Bem, ele não vai casar com ela. Talvez fosse, mas não vai pular num poço cheio de tubarões agora! (Levanta-se.) Blanche, Blanche! Posso, por favor, entrar no banheiro? (Pausa.) BLANCHE Pode sim, cavalheiro! Podia esperar um segundinho en-quanto me enxugo? STANLEY Depois de esperar por uma hora, acho que um segundi-nho vai passar depressa. STELLA E ela não perdeu o emprego? Bem, que é que ela vai fazer? STANLEY Ela vai ficar aqui só até terça-feira. Eu mesmo comprei a passagem, pra ter mais certeza. Passagem de ônibus! STELLA Em primeiro lugar, Blanche não iria de ônibus. STANLEY Ela vai de ônibus e vai gostar. 170

STELLA Não, ela não vai, não, ela não vai, Stanley ! STANLEY Ela vai! Ponto final P.S. Ela vai terça-feira. STELLA (lentamente) Que é. . . que ela vai fazer? Que é que há nesse mundo que ela possa fazer? STANLEY O futuro dela já está traçado. STELLA Que é que você quer dizer? (Blanche canta.) STANLEY Ei, canário ! Dê o fora do banheiro ! (A porta do banheiro se abre e Blanche sai com um riso alegre, mas, quando Stanley cruza com ela, um olhar assustado aparece em sua face, quase um olhar de pânico. Ele não olha para ela, mas, ao entrar no banheiro, bate a porta com estrondo.) BLANCHE (apanhando uma escova de cabelo) Ah! Eu me sinto tão bem depois de um banho quente e perfumado. Sinto-me tão descansada! (triste e hesitante, da cozinha) Você se sente bem, Blanche? 171

BLANCHE (escovando vigorosamente os cabelos) Sim, sinto-me. (Faz tinir seu copo de uísque com soda.) Um banho quente e um bom copo de bebida gelada sempre me dão uma perspectiva otimista da vida. (Olha através dos reposteiros para Stella, que está de pé entre eles, e lentamente pára de escovar os cabelos.) Aconteceu alguma coisa, Stella? Que foi? STELLA (virando-se rapidamente) Por quê? Não aconteceu nada, Blanche. BLANCHE Você está mentindo. Alguma coisa aconteceu! O que foi? (Fita Stella medrosamente. Stella finge estar muito ocupada na mesa. O piano distante toca uma melodia barulhenta e frené-tica.) 172

CENA VIII Três quartos de hora depois. A vista que se divisa através das grandes janelas está desaparecendo gradualmente na sombra dourada do crepúsculo. Um fraco raio de sol ilumina ainda o lado de um grande reservatório de água ou de gasolina que se vê adiante do terreno baldio, na direção do bairro comercial, que está agora pontilhado de minúsculos fachos provenientes de janelas iluminadas ou de janelas que refletem a fraca luz do crepúsculo. As três pessoas estão terminando uma desanimada ceia de aniversário. Stan-ley parece mal-humorado. Stella está embaraçada e triste. Blanche tem um sorriso apertado e artificial em sua face cansada. Há um quarto lugar na mesa que permanece vago. BLANCHE (subitamente) Stanley, conta uma piada! Uma história engraçada que nos faça rir. Não sei o que há que estamos todos tão solenes. Será que é por que meu namorado me abando-nou? (Stella ri debilmente.) É a primeira vez em toda a minha experiência com os homens — e eu tive muitos e variados — que alguém me abandona. Eu não sei o 173

f que fazer. . . mas conte-nos uma história, Stanley. Alguma coisa engraçada que nos faça rir. STANLEY Eu não sabia que você gostava das minhas histórias, Blanche. BLANCHE Gosto delas quando são divertidas, mas não indecentes. STANLEY Não sei nenhuma fina para seu gosto. BLANCHE Então deixem-me contar uma, Stella. STELLA Sim, conte uma, Blanche. Você costumava saber uma porção de histórias boas. (A música desaparece lentamente.) BLANCHE Deixe-me ver, agora. Preciso lembrar o meu repertório. Ah ! sim... eu adoro histórias de papagaio! Todos vocês gostam de histórias de papagaio? Bem, esta é a historia de uma solteirona que tinha um papagaio. Um papagaio que blasfemava e sabia mais palavrões que o senhor Kowalski! STANLEY Hunnn! BLANCHE E o único meio de fazer o papagaio calar-se era cobrir 174

a gaiola com um pano, porque assim ele pensava que era de noite e dormia. Um belo dia a solteirona tinha acabado de descobrir a gaiola, quando — quem é que ela viu entrando pela porta da frente? O padre ! A solteirona correu e cobriu a gaiola. O papagaio ficou absolutamente silencioso, quieto como um rato. Mas de repente quebrou o silêncio e disse: "Padre dos diabos, como o dia ficou curto". (Atira a cabeça para trás e ri. Stella também faz um inútil esforço para parecer divertida. Stanley não presta atenção à his-tória, mas estica o braço sobre a mesa para espetar seu garfo no pedaço de carne que sobrou, que depois passa a comer segurando com os dedos.) BLANCHE Bem. Pelo que eu vejo o senhor Kowalski não gostou da piada. STELLA O senhor Kowalski está demasiado ocupado em se en-gordurar e se emporcalhar um pouco para pensar no que quer que seja! STANLEY É isso mesmo, meu bem. STELLA Seu rosto, seus dedos, dão nojo, de tão engordurados. Vá lavar-se e venha ajudar-me a tirar a mesa. (Ele atira um prato ao chão.) 175

STANLEY É assim que vou tirar a mesa! (Agarra o braço dela.) Nunca mais fale assim comigo! "Porco — polaco — nojento — vulgar — engordurado" — essa espécie de palavras tem andado muito por aqui, na sua língua e na da sua irmã! Que pensam que são? Um par de rainhas? Lembrem-se do que Huey Long disse: "Cada homem é um rei!" E eu sou rei aqui dentro, é bom que não se esqueçam disso. (Atira ao chão uma xícara e um pires.) Meu lugar está limpo. Querem que eu limpe o de vocês? (Stella começa a chorar debilmente. Stanley sai com passos largos para o alpendre e acende um cigarro. Ouve-se a música dos artistas negros que tocam além da esquina.) BLANCHE Que aconteceu quando eu estava no banho, meu bem? Que foi que ele lhe disse, Stella? STELLA Nada, nada, nada! BLANCHE Eu acho que ele disse qualquer coisa a você sobre Mitch. Você sabe por que Mitch não veio, mas não quer dizer. (Stella balança a cabeça, como que desamparada.) Vou chamá-lo. STELLA Eu não o chamaria, Blanche. BLANCHE Vou, chamá-lo pelo telefone. 176

STELLA (com tristeza) Gostaria que você não fizesse isso. BLANCHE Eu quero que alguém me dê uma explicação ! (Corre para o telefone do quarto. Stella sai para o alpendre e olha com ar de reprovação para o marido. Ele resmunga e se afasta dela.) STELLA Espero que esteja satisfeito com o que fez. Nunca tive tanta dificuldade em engolir a comida em toda a minha vida, olhando para o rosto dela e para a cadeira vazia. (Chora baixinho.) BLANCHE (ao telefone) Alô. O senhor Mitchel, por favor. . . Oh ... eu gostaria de deixar o número do meu telefone, se possível. Magnó-lia 9047. E diga que é importante. . . que ele telefone. . . Sim, muito importante. . . Obrigada. (Permanece ao lado do telefone com um olhar perdido e assustado. Stanley se volta lentamente para sua mulher e a toma desajeitadamente nos braços.) STANLEY Stella, tudo vai ficar bem, depois que ela for embora e que você tiver o bebê. Tudo vai ficar bem, de novo, entre mim e você, como era antes. Lembra-se como era? As noites que tínhamos juntos? Puxa vida, meu bem, como vai ser bom, quando a gente puder fazer barulho de noite, como nós fazíamos, sem nenhuma irmã atrás das cortinas para ouvir a gente! (Ouvem-se os vizinhos do andar 177

superior rindo alto de alguma coisa. Stanley dá uma risa-dinha.) Steve e Eunice . . . STELLA Venha para cá, Blanche ! (Volta para a cozinha e começa a acender as velas no bolo branco.) BLANCHE Já vou. (Retorna do dormitório à mesa da cozinha.) Oh ! Tão bonitas ! Oh, não as acenda todas, Stella. STELLA É claro que eu vou queimá-las. (Stanley volta para dentro.) BLANCHE Você devia guardá-las para os aniversários do bebê. Espero que muitas velas brilhem na sua vida e que seus olhinhos sejam como duas velas azuis num bolo branco. STANLEY (sentando-se) Que poesia! BLANCHE (faz uma pausa e reflete um pouco) Eu não devia ter telefonado para Mitch. STELLA Pode ter acontecido uma porção de coisas. BLANCHE Isso não tem desculpa, Stella. Não estou disposta a aturar insultos. Não sou tão fácil assim. 178

STANLEY Com todos os diabos, está quente aqui dentro, com o vapor do banheiro. BLANCHE Já pedi desculpas três vezes. (O som do piano desaparece.) Tomo banhos quentes para acalmar os meus nervos. Hidroterapia, como eles chamam. Você, polaco saudável, sem um nervo no corpo, é natural que não saiba o que é estar angustiada. STANLEY Não sou polaco. Mas o que eu sou é cem por cento americano, nascido e criado no maior país do mundo e muito orgulhoso disso. Por isso não me chame mais de polaco. (O telefone toca. Blanche se levanta esperançosamente.) BLANCHE Oh ! E para mim, tenho certeza. STANLEY Eu não tenho tanta certeza. Fique no seu lugar. (Vai pre-guiçosamente até o telefone.) Alô. Ah ! Sim, alô, Mac ! (Encosta-se na parede, fitando Blanche com insolência. Ela afunda de novo na cadeira com um olhar assustado. Stella se inclina e toca no ombro dela.) BLANCHE Tire as mãos de cima de mim, Stella. Que é que há com você? Por que olham com esse olhar de piedade? 179

STANLEY (berrando) Fique quieta aí. (Ao telefone) Temos uma mulher barulhenta aqui em casa. Continue, Mac. No Riley? Não, não quero jogar boliche no Riley. Tive uma briguinha com o Riley na semana passada. Sou o capitão do time, não sou? Está certo, então não vamos jogar no Riley, vamos jogar no West Side ou no Gala! Combinado, Mac. Até depois. (Põe o fone no gancho e retorna à mesa. Blanche se controla tenazmente, bebendo rapidamente seu copo d'água. Ele não olha para ela mas enfia a mão num bolso, procurando alguma coisa. Em seguida, fala lentamente e com falsa amabilidade.) Querida Blanche, tenho uma lembrancinha de aniversário para você. BLANCHE Tem, Stanley? Muito gentil, eu não estava esperando nada. Eu... eu não sei por que Stella quis comemorar meu aniversário! Eu bem que preferia esquecê-lo. Quando a gente faz vinte e sete anos, a idade é. . . bem. . . um assunto que a gente prefere. . . ignorar! STANLEY Vinte e sete? BLANCHE (rapidamente) O que é isso? É para mim? (Ele está segurando um pequeno envelope na direção dela.) STANLEY Sim. Espero que você goste. BLANCHE O que é? Diga o que é. 180

STANLEY Passagem de volta para Laurel! No ônibus de terça-feira ! (A música de uma varsoviana penetra suavemente e continua tocando. Stella se levanta abruptamente e vira as costas. Blanche tenta sorrir. Em seguida, tenta rir. Por fim, desiste de ambos, levanta-se rapidamente da mesa e corre para o aposento contíguo. Põe as mãos na garganta e em seguida corre para o banheiro. Ouvem-se sons de tosse e de sufocamento.) Bem ! STELLA Você não precisava fazer isso ! STANLEY Você já esqueceu tudo que agüentei dela? STELLA Não precisava ser tão cruel com uma criatura assim, sozinha no mundo. STANLEY Que coisinha mais delicada que ela é ! STELLA É mesmo. Sempre foi. Você não conheceu Blanche, quando menina. Ninguém, ninguém foi mais terna e confiante do que ela. Mas gente como você abusou dela e fez com que ela mudasse. (Ele vai até o quarto, tira a camisa e coloca outra, uma camisa brilhante de jogar boliche. Ela o segue.) Você pensa que vai jogar boliche agora? STANLEY Claro que vou. 181

STELLA Você não vai jogar boliche. (Agarra-o pela camisa.) Por que fez isso com ela? STANLEY Não fiz nada a ninguém. Me larga, você rasgou minha camisa. STELLA Quero saber por quê. Responda por quê! STANLEY Quando nós nos vimos pela primeira vez, eu e você, você me achou vulgar. Você acertou, minha filha. Eu era vulgar mesmo. Era sujo. Você me mostrou o retrato da casa com as colunas. Eu tirei você de cima daquelas colunas, e você gostou!. . . E não fomos felizes juntos? Não estava tudo certo até que ela chegou? (Stella faz um ligeiro movimento. Seu olhar se volta subitamente para dentro como se alguma voz interior tivesse chamado seu nome. Ela começa a se mover lenta, arrastando-se do dormitório à cozinha, inclinando-se e descansando nas costas da cadeira e em seguida na borda da mesa, com um olhar opaco e uma expressão atenta. Stanley, que está termi-nando de ajeitar a camisa, ainda não percebeu sua reação.) E não éramos felizes juntos? E tudo não andava direito até que ela apareceu aqui? Metida a besta, di-zendo que eu era um gorila. (Subitamente ele percebe a mudança que se operou em Stella.) Ei, que é que há, Slella? (Vai até ela.) STELLA (baixinho) Leve-me para o hospital. (Ele está ao lado dela agora, amparando-a com o braço, murmurando indistintamente à medida que vão saindo.) 182

BLANCHE Quem é? CENA IX Um pouco mais tarde, na mesma noite, Blanche está sentada em posição tensa e curva numa cadeira do quarto que ela reco-briu com listras diagonais verdes e brancas. Ela está vestida com o roupão vermelho de seda. Sobre a mesa, do lado da cadeira, há uma garrafa de bebida e um copo. Ouve-se, em rápida e febril melodia de polca, a varso-viana. A música está na mente dela; ela está bebendo para fugir à música e à sensação de um desastre que se aproxima e parece murmurar as palavras da canção. Um ventilador elétrico varre metodicamente o lugar em que ela está. Mitch aparece do lado da esquina, com roupas de trabalho: camisa e calças azuis de sarja. Está com a barba por fazer. Sobe as escadas que levam à porta e toca a campainha. Blanche se assusta. MITCH (com voz rouca) Eu. Mitch. (A melodia da polca se interrompe.) 183

BLANCHE Mitch! Um minuto. (Movimenta-se pelo aposento, freneticamente, escondendo a garrafa em um armário, agachando-se em frente ao espelho e dando pancadinhas no rosto com colônia e pó-de-arroz. Ela está tão excitada que se pode ouvir sua respiração enquanto ela se movi-menta para lá e para cá. Por fim, ela corre para a porta da cozinha e o deixa entrar.) Mitch! Sei que não devia deixar você entrar depois do tratamento que me dispensou esta noite! Tão pouco cavalheiresco. Mas. . . como vai, meu bem? (Oferece-lhe os lábios. Ele a ignora e passa por ela, dirigindo-se ao interior do apartamento. Ela o segue medrosamente enquanto ele entra no quarto com passos largos.) Meu Deus, que indiferença. E que traje tão grosseiro! Nem mesmo fez a barba! Que insulto imperdoável para uma dama! Mas eu o perdôo meu bem, perdôo porque é um alívio ver você aqui. Você fez parar a polca que estava martelando a minha cabeça. Você já teve alguma coisa martelando a sua cabeça? Não, claro que não teve, não. Você nunca teria nada horrível marte-lando na sua cabeça. (Ele a fita; ela o segue enquanto fala. É óbvio que ele já tomou alguns goles pelo caminho.) MITCH Precisa ficar com esse ventilador ligado? BLANCHE Não! MITCH Eu não gosto de ventiladores. BLANCHE Então vamos desligá-lo, querido. Eu não faço questão! 184

(Aperta o botão e o ventilador lentamente vai parando. Limpa a garganta, constrangida, enquanto Mitch, no quarto, se joga na cama e acende um cigarro.) Não sei o que há para beber, ainda não procurei. MITCH Não quero a bebida de Stanley. BLANCHE Não é de Stanley. Nem tudo o que está aqui é de Stanley. Nas circunstâncias atuais algumas coisas são até minhas ! Como está sua mãe, Mitch? Ela está bem? MITCH Por quê? BLANCHE Alguma coisa não está certa esta noite, mas não se preocupe. Não vou interrogar a testemunha. Vou apenas. . . (toca a testa dele levemente; a melodia da polca começa de novo) fazer de conta que não percebo nada diferente em você. Essa música de novo . . . MITCH Que música? BLANCHE A varsoviana. A polca que eles estavam tocando quando Allan . . . Espere! (Ouve-se à distância um tiro de revólver. Blanche parece aliviada.) O tiro! Sempre pára depois disto. (A música da polca torna a desaparecer.) Sim, agora parou. 185

MITCH Você está ficando maluca? BLANCHE Vou ver o que posso encontrar, em matéria de bebida. . . (Vai até o armário, fingindo procurar a garrafa.) Ah, por falar nisso, desculpe-me por não estar vestida. Mas para dizer a verdade eu tinha desistido de esperá-lo. Esqueceu o convite para jantar? MITCH Eu não ia ver você nunca mais. BLANCHE Espere um minuto. Não ouço o que você está dizendo e você fala tão pouco que quando diz alguma coisa, não quero perder nem uma sílaba. . . Que é que estou procurando aqui? Ah! sim. . . bebida. Passamos por tantas emoções esta noite; Eu estou mesmo ficando maluca. Finge de repente ter achado a garrafa. Ele puxa o pé para cima da cama e olha para ela com desprezo.) Achei qualquer coisa para beber. Conforto do Sul! Que será isto? MITCH Se você não sabe, deve ser do Stan. BLANCHE Tire os pés da cama. Ela está só com uma coberta leve por cima. É claro que vocês rapazes não percebem coisas como essa. Eu fiz tanta coisa para esse lugar desde que vim para cá. MITCH Aposto que sim. 186

BLANCHE Você o viu antes de eu chegar. Bem, olhe para ele agora! Este quarto está quase elegante! Eu quero mantê-lo desse jeito. Será que este troço pode ser misturado com alguma coisa? Ummmm, é doce, tão doce! É muito, muito doce! Ora, é um licor, eu acho! Sim, é isso mesmo, um licor! (Mitch resmunga.) Receio que você não vá gostar, mas experimente. Quem sabe você gosta? MITCH Eu já disse a você que não quero nenhuma bebida dele. Você devia deixar de tomar as bebidas dele. Ele disse que você andou tomando o que era dele, durante todo o verão, como uma gata-do-mato! BLANCHE Que expressão tão fantástica! Fantástica da parte dele, por dizê-la, e fantástica de sua parte por repeti-la. Não vou sequer descer ao nível dessas acusações baratas para respondê-las. MITCH Huhhh.. . BLANCHE O que é que você tem, Mitch? Há qualquer coisa de estranho em seus olhos. MITCH (levantando-se) Está escuro aqui. BLANCHE Eu gosto da escuridão. A escuridão me conforta. 187

MITCH Acho que nunca vi você à luz. (Blanche ri quase sem fôlego.) É verdade! . BLANCHE É? MITCH Nunca vi você de tarde. BLANCHE E de quem é a culpa? MITCH Você é que nunca quis sair à tarde. BLANCHE Mas, Mitch você está sempre na fábrica, à tarde. MITCH No domingo de tarde, não. Eu convidei você para sair comigo algumas vezes, aos domingos, mas você sempre dava uma desculpa. Você nunca quer sair antes das seis, e assim mesmo para ir a algum lugar que não tenha muita luz. BLANCHE Deve haver algum significado obscuro em tudo isso? Não consigo compreender. MITCH O que significa é que eu nunca pude olhar bem para você, Blanche. Vamos acender a luz aqui. 188

BLANCHE (medrosamente) Luz? Que luz? Para quê? MITCH Essa que está com esse troço de papel. (Rasga a lanterni-nha de papel da lâmpada. Ela ofega, assustada BLANCHE Para que você fez isso? MITCH Para ver você bem, como você é! BLANCHE Você não está querendo insultar-me ! MITCH Não, só estou querendo ser realista. BLANCHE Não quero realismo. Eu quero magia. (Mitch ri.) Sim, sim, magia. É o que tento dar às pessoas. Não digo a verdade, digo o que deveria ser verdade. E se isso é pecado, que eu seja amaldiçoada para sempre. Não acenda a luz! (Mitch vai até o interruptor. Acende a luz e olha fixamente para ela. Ela solta um grito e cobre o rosto. Ele apaga a luz novamente.) MITCH (lenta e amargamente) Eu não me importo de que você seja mais velha do que eu pensava. Mas todo o resto. . . Meu Deus! Aquelas coisas que você falava sobre seus ideais serem antiquados, e toda aquela conversa fiada sobre o que você sofreu 189

durante todo o verão. Oh, eu sabia que você não tinha mais dezessete anos. Mas fui bastante estúpido para acreditar que você fosse direita. BLANCHE Quem lhe disse que eu não era. . . direita? Meu querido cunhado? E você acreditou? MITCH Primeiro eu o chamei de mentiroso. E depois procurei verificar o que havia de verdadeiro na história. Primeiro perguntei ao nosso vendedor que viaja para Laurel. E depois falei diretamente, pelo interurbano, com aquele comerciante. BLANCHE Quem é esse comerciante? MITCH Kiefaber. BLANCHE O comerciante Kiefaber, de Laurel! Conheço esse homem. Ele me perseguia. Eu o coloquei no seu lugar. E agora, para vingar-se, inventa histórias a meu respeito. MITCH Três pessoas, Kiefaber, Stanley e Shaw juraram-me! BLANCHE Três macacos do mesmo saco! E que saco cheio de buracos ! MITCH Você não se hospedava num hotel chamado Flamingo? 190

BLANCHE Flamingo? Não! Chamava-se Tarantula! Eu me hospedava num hotel chamado Tarantula Negra. MITCH (com ar de estúpido) Tarantula? BLANCHE Sim, Tarantula. É o nome de uma aranha muito grande. Era para lá que eu carregava as minhas vítimas. (Derrama mais uma dose no copo.) Sim, eu tive muitas inti-midades com estranhos. Depois da morte de Allan. . . as intimidades com estranhos me pareciam ser a única coisa capaz de encher meu coração vazio. Eu acho que era pânico, somente pânico, que me levava de um para outro, buscando proteção aqui, ali, até mesmo nos lugares . . . mais improváveis... até mesmo um rapaz de dezessete anos, mas alguém escreveu ao diretor da escola dizendo: "Essa mulher é moralmente incapaz para exer-cer sua função !" (Atira a cabeça para trás com uma risada convulsiva e soluçante. Repete então a afirmação do diretor, ofega e bebe.) Verdade? Sim, suponho, incapaz é a palavra. Então eu vim para cá. Não havia nenhum outro lugar para onde eu pudesse ir. Estava acabada. Você sabe o que é estar acabada? Minha juventude, de repente, tinha ido embora, por um cano de esgoto. E. . . foi então que encontrei você. Você disse que precisava de alguém. Eu também precisava de al-guém. Agradeci a Deus por me ter mandado você. Você parecia tão bondoso. Um abrigo na rocha do mundo, onde poderia me esconder. . . Mas acho que estava pedindo, desejando. . . demais. Kiefaber, Stanley e Shaw já tinham amarrado uma lata velha na cauda do papagaio. (Há uma pausa. Mitch olha para ela em silêncio.) 191

MITCH Você me mentiu, Blanche! BLANCHE Não, não diga que eu menti. MITCH Mentiras, mentiras, por dentro e por fora, tudo mentiras. BLANCHE Por dentro nunca, eu nunca menti no meu coração. . . (Uma vendedora vem do lado da esquina. É uma mulher mexicana cega, com um xale preto, carregando braçadas daquelas espalhafatosas flores de lata que os mexicanos das classes mais baixas exibem em funerais ou em ocasiões festivas. Ela está apregoando sua mercadoria de maneira quase inaudível. Seu vulto é só fracamente visível de fora do prédio.) A MULHER MEXICANA Flores. Flores. . . Flores para los muertos. Flores. Flores. BLANCHE' Há alguém lá fora. (Vai até a porta, abre-a e olha para a mulher mexicana.) A MULHER MEXICANA (está à porta e oferece a Blanche algumas de suas flores) Flores? Flores para los muertos? BLANCHE (assustada) 192

Não, não! Agora não. (Volta correndo para o apartamento, batendo a porta.) MULHER MEXICANA (vira-se e começa a descer a rua) Flores para los muertos. (A melodia da polca se eleva gradualmente.) BLANCHE (como se falasse para si mesma) Desmoronamentos, recriminações, arrependimentos... "Se você tivesse feito assim, não me teria custado tanto..." MULHER MEXICANA Coronas para los muertos. Coronas. . . BLANCHE Heranças! E outras coisas como travesseiros manchados de sangue. . . "A roupa de cima dele precisa ser mudada." Sim, mamãe. Mas não podíamos arranjar uma ne-grinha para fazer isso? Não, claro que não podíamos. Tudo tinha desaparecido, a não ser... MULHER MEXICANA Flores. BLANCHE A morte. . . Eu costumava sentar-me aqui e ela ali e a morte estava tão perto de nós quanto você está de mim agora. . . e nós não ousávamos sequer admitir que já tínhamos ouvido falar nela! MULHER MEXICANA Flores para los muertos, flores. . . flores. . . 193

BLANCHE O oposto da morte é o desejo. Você se admira? Como é possível que se admire? Não longe de Belle Rêve, antes de perdermos Belle Rêve, havia um acampamento onde exercitavam belos recrutas. Nas noites de sábado, eles iam à cidade, embebedar-se. . . A MULHER MEXICANA (ao longe) Coronas. . . BLANCHE ... e na volta, cambaleavam pelo meu jardim e chamavam. . . "Blanche! Blanche!" A velha surda, que restava, não suspeitava de nada. Mas, algumas vezes, eu me esgueirava lá para fora, atendendo aos seus chamados . . . Mais tarde, a patrulha os apanhava, um por um, como se fossem flores... ao longo do caminho para casa.. . (A mulher mexicana vira lentamente a esquina e desaparece com seus suaves pregões lamentosos. Blanche vai à penteadeira e inclina-se para a frente. Depois de um momento, Mitch se levanta e a segue resoluto. A melodia da polca desaparece. Ele põe as mãos na cintura dela e tenta virá-la.) BLANCHE Que é que você quer? MITCH (tentando desajeitadamente abraçá-la) O que eu estava querendo todo o verão. BLANCHE Então case comigo, Mitch ! 194 I

MITCH Acho que não quero mais casar com você. BLANCHE Não? MITCH (tirando as mãos da cintura dela) Você não é bastante limpa para entrar na casa de minha mãe. BLANCHE Então vá embora. (Ele olha fixamente para ela.) Vá embora daqui depressa, antes que eu comece a gritar fogo! (A garganta dela está quase sufocada de histeria.) Vá embora daqui depressa antes que eu comece a gritar fogo! (Ele ainda fica olhando fixamente para ela. Ela subitamente corre para a grande janela com seu retângulo azul pálido da suave luz de tarde de verão e grita desenfreadamente.) Fogo ! Fogo ! Fogo ! (Ofegante e assustado,Mitch se vira e sai pela porta da rua, desce desajeitadamente as escadas e desaparece na esquina do prédio. Blanche se retira da janela cambaleando e cai ajoelhada. O piano distante é lento e melancólico.)

CENA X Algumas horas mais tarde, na mesma noite. Blanche esteve bebendo continuamente desde que Mitch foi embora. Ela ar-rastou para o centro do quarto seu baú cheio de roupas, que permanece aberto, com vestidos floridos espalhados por cima. Enquanto ela bebia e tentatava arrumar a mala, começou a experimentar uma histérica sensação de libertação, se embandei-rou com um vestido de noite, de cetim branco, meio sujo e amassado, e calçou um par de chinelos cor de prata já gastos, com brilhantes engastados nos saltos. Agora ela está colocando na cabeça a tiara de fantasia, em frente ao espelho da penteadeira, e murmurando excitada, como se estivesse falando a um grupo de admiradores elegantes. BLANCHE Que tal se fôssemos nadar à luz da lua lá perto da pedreira? Se é que há alguém bastante sóbrio para guiar o carro! Ha, ha, é a melhor maneira de fazer a cabeça parar de tinir! Só que é preciso ter muito cuidado e só mergulhar onde a água for bastante funda. . . se a gente 197

bater com a cabeça numa pedra, só volta à tona no dia seguinte. . . (Trêmula, ela levanta o espelho de mão para fazer uma inspeção mais cuidadosa. Retém a respiração e atira o espelho com tanta violência que o vidro se quebra. Ela se lamenta um pouco e tenta se levantar. Stanley aparece na esquina do prédio. Ele ainda veste a camisa de seda de cor verde viva usada para jogar boliche. Enquanto ele contorna a esquina, ouve-se a música sincopada do piano rouco. Ela continua em surdina, durante toda a cena. Ele entra na cozinha, batendo a porta. En-quanto examina Blanche atentamente, ele dá um assovio não muito alto. Ele tomou alguns drinques a caminho de casa e trouxe pequenas garrafas de cerveja para casa.) BLANCHE Como está minha irmã? STANLEY Vai indo bem. BLANCHE E o nenê? STANLEY (sorrindo amavelmente) O nenê não vai chegar antes de amanhã, por isso me mandaram para casa dormir um pouco. BLANCHE Isso quer dizer que nós dois vamos ter que ficar aqui sozinhos? STANLEY É. Só eu e você, Blanche. A menos que você tenha alguém escondido embaixo da cama. Para que toda essa plumagem? 198

BLANCHE Ah ! é verdade. Você saiu antes da chegada do telegrama. STANLEY Chegou telegrama para você? BLANCHE É, eu recebi um telegrama de um velho admirador meu. STANLEY Boas notícias? BLANCHE? Acho que sim. Um convite. STANLEY Prá quê? Pro baile do Corpo de Bombeiros? BLANCHE (jogando a cabeça para trás) Um cruzeiro de iate pelas Caraíbas. STANLEY Não diga! BLANCHE Foi a maior surpresa da minha vida ! STANLEY Imagine! BLANCHE Foi como se tivesse de repente caído do céu. STANLEY De quem foi? 199

BLANCHE De um velho admirador meu. STANLEY Aquele que te deu as peles de raposa-branca? BLANCHE Shep Huntleigh. Foi meu namorado na universidade. Eu não o havia visto desde o Natal passado. De repente encontrei-me com ele em pleno Boulevard Biscayne. Agora, este telegrama,. . . convidando-me para um cruzeiro pelas Caraíbas. Meu problema são as roupas. Remexi minhas malas para ver se encontrava alguma coisa apropriada para os trópicos. STANLEY E encontrou essa resplandencente tiara de diamantes. . . BLANCHE Essa velha relíquia? Ha, ha. . . pura imitação. STANLEY Puxa! Pensei que fossem diamantes verdadeiros. (Desa-botoa a camisa.) BLANCHE De qualquer maneira vou me divertir muitíssimo. STANLEY Ha, ha, isso prova que a vida é cheia de surpresas! BLANCHE Justamente agora quando pensei que a minha sorte estivesse me abandonando... 200

STANLEY Entra em cena este milionário de Miami. BLANCHE Esse homem não é de Miami, é de Dallas. STANLEY De Dallas? BLANCHE É, de Dallas onde o ouro jorra da terra. STANLEY Bom, contando que ele seja de algum lugar. (Começa a tirar a camisa.) BLANCHE Você não poderia fechar a cortina antes de se despir? STANLEY (amavelmente) Por enquanto só vou tirar isso. (Rasga o saco que trouxe e tira uma pequena garrafa de cerveja.) Viu o abridor de garrafa? (Ela se dirige lentamente para a cômoda, onde fica com as mãos entrelaçadas.) Eu tinha um primo que podia abrir uma garrafa com os dentes. (Batendo a tampa da garrafa no canto da mesa) Era só para isso que ele prestava: era um abridor de garrafas humano. Um dia, numa festa de casamento, ele... arrebentou os dentes da frente. Depois disso ele ficou tão envergonhado que saía pela porta dos fundos toda a vez que chegavam visitas. (A tampa da cerveja salta e um jato de espuma se esparrama. Stanley ri, feliz, segurando a garrafa sobre a cabeça.) Ha, ha, ha, ha! Chuva do céu! (Estende a garrafa na direção dela.) Vamos acabar com as brigas se beber a nossa amizade? Hein? 201

BLANCHE Não, muito obrigada. STANLEY Bem, nós dois temos motivos para festejar hoje. Você pelo seu milionário do petróleo e eu pelo meu filho! (Vai até a cômoda no quarto, e agacha-se para retirar alguma coisa da gaveta do fundo.) BLANCHE (afastando-se) O que é que você está fazendo aí? STANLEY Tenho aqui uma coisa que só uso em ocasiões especiais. Um pijama de seda que usei na minha noite de núpcias. Quando o telefone tocar e alguém disser: "Seu filho nas-ceu", vou arrancá-lo do corpo e agitá-lo como uma ban-deira! (Agita no ar um paletó de pijama brilhante.) Acho que nós dois temos o direito de festejar e de encher a cara. (Volta à cozinha com o paletó no braço.) BLANCHE Quando eu penso no prazer divino que vai ser poder estar a sós de novo... me dá vontade de chorar de alegria. . . STANLEY Esse milionário de Dallas não vai interferir nessa sua so-lidão? BLANCHE Não vai ser esse tipo de coisa que o senhor está pen-sando. Esse homem é um cavalheiro e me respeita. (Me- 202

lhorando sua disposição, aumentando a intensidade até se tornar febril.) O que ele deseja é a minha companhia, mais nada! Ser muito rico, às vezes, deixa as pessoas solitárias. Uma mulher culta, inteligente, e de boa educa-ção pode enriquecer a vida de um homem. Beleza física é efêmera. Uma posse transitória. Mas a beleza do espírito e a ternura do coração — e eu tenho tudo isso — não se pode tirar, ao contrário, elas crescem. Crescem com os anos! Como é estranho que me digam que eu sou uma mulher frustada! Quando eu tenho todos esses tesouros enterrados no coração! (Um soluço sufocado a interrompe.) Mas tenho sido tola, atirando minhas pérolas aos porcos. STANLEY Porcos, hein? BLANCHE Sim, porcos, porcos! E quando eu digo porcos, não estou pensando apenas no senhor, mas também no seu amigo, o senhor Mitchell. Ele veio me ver hoje à noite. Teve a ousadia de me visitar em roupas de trabalho e repetir calúnias, histórias, venenos que ouviu do senhor. Mandei-o daqui para fora. STANLEY Mandou? BLANCHE Mas depois ele voltou! Voltou com uma caixa de rosas para pedir perdão. Há certas coisas imperdoáveis. Crueldade deliberada, por exemplo. E foi por isso que eu lhe disse:"Obrigada,meu amigo",mas foi tolice pensar que era possível nos adaptarmo-nos um ao outro. Nossos ca- 203

minhos são diferentes. Precisamos ser realistas sobre essas coisas. Portanto, adeus, meu amigo, não me guauxle rancor. . . Foi isso que eu lhe disse. STANLEY Isso foi antes ou depois de chegar o telegrama do milionário do Texas? BLANCHE Que telegrama? Oh, não, não, foi depois. Para ser franca. . . STANLEY Para ser franco não houve nenhum telegrama! BLANCHE Oh, oh! STANLEY Não há nenhum milionário! E Mitch não trouxe rosas porque eu sei onde ele está. . . BLANCHE Oh! STANLEY Não há nada. Só imaginação. BLANCHE Oh! STANLEY E olhe para você ! Olhe-se nessa fantasia de carnaval alugada por cinqüenta centavos, de algum trapaceiro. E com essa coroa maluca. Que rainha você pensa que é? 204

BLANCHE Oh, Deus! STANLEY Eu sabia quem você era desde o começo! Você não me enganou. Você entra aqui e enche o lugar de pó-de-arroz e perfume e cobre a lâmpada com uma lanterna de papel e pronto! O lugar se tranforma no Egito e você é a Rainha de Sabá. Sentada no seu trono e engolindo toda a minha bebida. Quer saber de uma coisa? Ha! Ha! Ouviu bem? Ha, ha, ha! (Entra no quarto.) BLANCHE Não entre aqui. (Pálidos reflexos aparecem nas paredes, em volta de Blanche. As sombras são de uma forma grotesca e ameaçadora. Ela retém a respiração, vai até o telefone e sacode o gancho. Stanley entra no banheiro e fecha a porta.) Telefonista! Telefonista! Interurbano . . . Quero uma ligação para Shep Huntleigh, em Dallas. Ele é tão conhecido que não preciso dar o endereço. Pergunte a qualquer pessoa que. . . Espere! Não, agora não dá para encontrar. Por favor. Compreenda. Eu ... Não. Não, espere! Um momento. Alguém está. . . Nada! Espere, por favor. . . (Põe o fone sobre a mesinha e entra cautelosamente na cozinha. A noite está cheia de vozes inumanas, que soam como gritos em uma floresta. As sombras e os reflexos pálidos movem-se sinuosamente como chamas ao longo dos espaços das paredes. Através da parede de trás dos aposentos, que se tornaram transparentes, pode-se ver a calçada. Uma prostituta rodeia um bêbado. Ele a persegue ao longo da calçada, alcança-a, e há uma luta. O apito de um policial termina a luta. Os vultos desaparecem. Alguns momen-tos mais tarde a mulher negra aparece no lado da esquina 205

com uma sacola de lantejoulas que a prostituta deixou cair na calçada. Ela está examinando, excitada, o conteúdo da sacola. Blanche aperta os nós dos dedos nos lábios e retorna lentamente ao telefone. Ela fala em um murmúrio rouco.) Telefonista! Telefonista! Esqueça o interurbano. Ligue-me com a Western. (Espera com ansiedade.) Western? Eu ... quero. . . tome nota deste tele-grama! "Circunstâncias desesperadoras. Ajude-me! Presa numa armadilha. Presa numa..." Oh!. . . (A porta do banheiro se abre e Stanley sai, vestindo o pijama de seda brilhante. Ele sorri maliciosamente para ela enquanto amarra acima da cintura o cinto com borlas. Ela ofega e se afasta do telefone. Ele olha fixamente para ela durante o tempo que se leva para se contar até dez. Então, um clique vindo do telefone torna-se audível, constante e estridente.) STANLEY Você deixou o telefone fora do gancho. (Vai até o telefone propositadamente e recoloca-o no gancho. Depois de o ter recolocado, ele a fita novamente, com a boca lentamente curva num sorriso malicioso, enquanto anda entre Blanche e a porta da rua. O piano blue, até então quase inaudível, começa a martelar mais alto. Seu som se transforma no rugido de uma locomotiva que se aproxima. Blanche se agacha, tampando as orelhas com as mãos até que ele se afasta.) 206

BLANCHE (recompondo-se finalmente) Deixe-me. . . deixe-me passar! STANLEY Passar? Claro. Pode passar. . . (Dá um passo para trás no sentido do vão da porta.) BLANCHE Não. Você fique. . . fique ali! (Indica uma posição mais distante.) STANLEY (sorrindo maliciosamente) Você tem espaço de sobra para passar por mim agora. BLANCHE Não com você aí! Mas eu tenho de sair de alguma forma! STANLEY Acha que eu vou interferir? Ha, ha! (O piano blue soa suavemente. Ela se volta, confusa, e faz um gesto desalentado. As vozes inumanas, como numa selva, au-mentam de intensidade. Ele dá um passo em direção a ela, mordendo a língua, que se espicha entre seus lábios.) STANLEY (suavemente) Pensando bem, talvez não seria mau . . . interferir . . . (Blanche se move para trás, através da porta, em direção ao quarto.) 207

BLANCHE Fique aí, não dê nem mais um passo, senão. . . STANLEY O quê? BLANCHE Vai acontecer uma coisa horrível! STANLEY Que papel você está representando agora? (Agora, ambos estão dentro do quarto.) BLANCHE Eu estou avisando. Não faça isso. Eu estou em perigo! (Ele dá outro passo. Ela quebra uma garrafa na mesa e o encara, agarrando o gargalo quebrado.) STANLEY Para que você fez isso? BLANCHE Para espetar essa garrafa na sua cara. STANLEY Você é bem capaz disso. BLANCHE Sou, sim !. . . E é o que vou fazer se... STANLEY Ah, então você quer violência? Muito bem, vamos ser violentos! 208

(Ele salta na direção dela, virando a mesa. Ela dá um grito e o golpeia com o gargalo da garrafa, mas ele a agarra pelo pulso.) Largue, vamos! Largue a garrafa, sua gata-do-mato! A gente tinha esse encontro desde o começo! (Ela geme. O gargalo da garrafa cai. Ela cai de joelhos. Ele apanha afigura inerte de Blanche e a carrega para a cama. O trom-pete e a bateria do Quatro Naipes soam alto.) 209

CENA XI Algumas semanas depois. Stella está fazendo as malas de Blanche. Pode-se ouvir o som de água correndo no banheiro. Os re-posteiros estão parcialmente abertos, mostrando os jogadores de pôquer — Stanley, Steve, Mitch e Pablo — que estão sentados em volta da mesa da cozinha. A atmosfera da cozinha agora é a mesma atmosfera desordenada e sombria da desastrosa noite de pôquer. O prédio está emoldurado pelo céu de turquesa. Stella está chorando enquanto arruma os vestidos floridos no baú aberto. Eunice desce os degraus, vindo de seu apartamento, e entra na cozinha. Há uma explosão de vozes que vem da mesa de pôquer. STANLEY Oba, puxei a carta que precisava e fechei! PABLO Maldita sea tu suerte! STANLEY Fale a 1íngua da gente, homem ! 211

PABLO Estou xingando a desgraçada da sua sorte. STANLEY (muitíssimo exaltado Sabe o que é sorte? Sorte é acreditar que se tem sorte. Por exemplo, em Salerno. Eu acreditei que tinha sorte. Pensava que de cada cinco, quatro iam morrer e eu não. . . e assim é que foi. . . É assim que a gente tem que fazer pra ficar no primei to lugar nessa corrida de ratos... a gente tem que acreditar na sorte. . . MITCH Você, você. . . se gaba. . . tudo da boca para fora. . . (Stella entra no dormitório e começa a dobrar um vestido.) STANLEY O que é que há com ele? EUNICE (andando em volta da mesa) Eu sempre disse que os homens não têm coração. Não têm sentimento. Mas isso também já é demais. Vocês são uns porcos. (Dirige-se, através dos reposteiros, para o quarto.) STANLEY O que há com ela? STELLA Como está o meu bebê? EUNICE Dormindo como um anjo. Toma. Eu te trouxe umas 212

uvas. (Põe as uvas numa cadeira e abaixa a voz.) E Blanche? STELL.A Tomando banho. EUNÍCE Corno vai ela? STELL.A Não quis comer nada, mas pediu um trago. EUNICE Que foi que você lhe disse? STELLA Eu... só lhe disse. . . que arranjamos um lugar no campo pra ela descansar. . . Na sua cabeça ela está confundindo o lugar com Shep Huntleigh. (Blanche abre discretamente a porta do banheiro.) BLANCHE Stella! STELLA Sim, Blanche? BLANCHE Se alguém telefonar enquanto eu estiver no banho, tome nota do número e diga que depois eu chamo, sim? STELLA Sim. 213

BLANCHE Stella, aquele meu vestido de seda, leve. . . o buclê. Veja se está muito amarrotado. Se não estiver eu vou usá-lo, com um alfinete de turquesa na lapela. (Fecha a porta. Stella volta-se para Eunice.) STELLA Não sei se fiz bem. EUNICE Que mais você podia fazer? STELLA Eu não podia acreditar na sua história e continuar a viver com Stanley. EUNICE Não pense mais nisto. A vida tem de continuar. Não importa o que aconteça, você tem de ir em frente. (A porta do banheiro se abre um pouco.) BLANCHE (olhando para fora) O caminho está livre? STELLA Sim, Blanche. (Para Eunice) Diga-lhe que está muito bonita. BLANCHE Por favor, feche a cortina antes que eu saia. STELLA Está fechada. 214

STANLEY Quantas? PABLO Duas. STEVE Três. (Blanche aparece na luz amarelada da porta. Ela está tragicamente radiante em seu roupão de cetim vermelho que delineia as linhas esculturais de seu corpo. A varsoviana aumenta audivelmente de intensidade enquanto Blanche entrar no quarto.) BLANCHE (com uma vivacidade ligeiramente histérica) Acabei de lavar o cabelo. É? BLANCHE Não tenho certeza se tirei o sabão. EUNICE Que cabelo bonito! BLANCHE (aceitando o elogio) é um problema. Ninguém me telefonou? Quem, Blanche? 215

BLANCHE Shep Huntleigh . . . STELLA Ainda não, meu bem . . . BLANCHE Estranho... Eu... (Ao som da voz de Blanche, o braço de Mitch que está segurando as cartas perde a firmeza, e seu olhar se dissolve no espaço. Stanley dá-lhe um tapinha no ombro.) STANLEY Hei, Mitch, acorde! (O som dessa nova voz choca Blanche. Ela faz um gesto de espanto, formando o nome dele com os lábios. Stella balança a cabeça e olha rapidamente em outra direção. Blanche fica bem quieta por alguns momentos — com o espelho de fundo de prata na mão e um olhar de triste perplexidade, como se toda a experiência humana se revelasse em seu rosto. Finalmente fala, mas com súbita histeria.) BLANCHE O que é que está acontecendo aqui? (Volta-se de Esteia para Eunice e de novo para Stella. Sua voz que se levanta penetra na concentração do jogo. Mitch abaixa 216

a cabeça, mas Stanley empurra sua cadeira para trás como se fosse levantar. Steve põe a mão em seu braço para impedi-lo de se levantar.) BLANCHE (continuando) O que aconteceu aqui? Eu quero que me expliquem o que aconteceu aqui. STELLA (angustiosamente) Fique quieta! Fique quieta! EI/NICE Fique quieta! Fique quieta, querida! STELLA Por favor, Blanche. BLANCHE Por que é que vocês estão, me olhando desse jeito? Há alguma coisa errada em mim? EI/NICE Você está maravilhosa, Blanche. Ela não está um encanto? STELLA Está. EUNICE Ouvi dizer que você vai fazer uma viagem. STELLA É, Blanche vai. Vai tirar uma férias. Estou morrendo de inveja. 217

BLANCHE Ajude-me a me vestir. STELLA (entregando-lhe o vestido) É este que você . . . BLANCHE Sim, este serve! Estou ansiosa por sair daqui. . . Este lugar é uma armadilha. EUNICE Que blusa bonita essa azul! STELLA É de cor lilás. BLANCHE Vocês duas estão enganadas. É azul Delia Robbia. O azul do manto da Virgem naqueles quadros antigos. Essas uvas foram lavadas? (Toca com os dedos os cachos de uvas que Eunice trouxe.) Essas uvas foram lavadas? EUNICE Hein? BLANCHE Lavadas. Eu perguntei se estas uvas foram lavadas? EUNICE São do Mercado Francês. BLANCHE Isso não significa que tenham sido lavadas. (Os sinos da catedral tocam.) Esses sinos da catedral são a única 218

coisa pura neste bairro. Bem, eu já me vou. Estou pronta e vou embora. EUNICE (murmurando) Ela vai sair antes que eles cheguem. STELLA Espere, Blanche. BLANCHE Não quero passar por aqueles homens. EUNICE Então espere até o jogo acabar. STELLA Sente-se, e. . . (Blanche se vira lentamente e de modo hesitante, e deixa que elas a façam sentar numa cadeira.) BLANCHE Chego a sentir o cheiro do mar. O resto da minha vida, vou viver no mar. E quando morrer, morrerei no mar. Sabem de que é que vou. morrer? (Arranca uma uva.) Morrerei por ter comido uma uva que não estava lavada, um dia, no meio do mar. Morrerei com a minha mão na mão de um jovem médico de bordo, um jovem com bigodinho muito louro e um grande relógio de prata no bolso. E todos dirão: "Pobre senhora, o quinino não faz mais efeito. Aquela uva que não estava lavada, transportou sua alma ao céu". (Ouvem-se os sinos da catedral.) E serei sepultada no mar . . . serei costurada dentro de 219

um saco branco e limpo e lançada ao mar, ao meio-dia, no calor do verão, e a água estará azul. . . Azul (de novo soam os sinos) como os olhos do meu primeiro amor! (Um médico e uma enfermeira aparece-rarn do lado da esquina e subiram os degraus até o alpendre, A gravidade de sua profissão é exagerada. — eles têm aquela indefectível aura de instituição estatal, com seu cínico desinteresse. O médico toca a campainha. O murmúrio do jogo é interrompido.) EUNICE (murmurando para Stella) Deve ser eles. (Stela aperta os punhos contra os lábio s.) BLANCHE (levantando-se lentamente) O que foi? EUNICE (afetando indiferença) Dá licença que eu vou ver quem está à porta. STELLA Sim. (Eunice entra na cozinha.) BLANCHE (com grande tensão) Acho que é para mim. (Um diálogo murmurado se desenvolve na porta.) 220

EUNICE (retornando, animadamente) Alguém veio procurar Blanche. BLANCHE Então é mesmo para mim! (Olha medrosamente de uma para outra e em seguida para os reposteiros. A varso-viana toca quase indistintamente.) É o cavalheiro que eu estava esperando de Dallas? EUNICE Acho que sim, Blanche. BLANCHE Ainda não acabei de me arrumar. STELLA Peça a ele que espere lá fora. BLANCHE Eu. . . (Eunice volta aos reposteiros. Tambores soam suavemente.) STELLA Tudo arrumado? Vamos, Blanche? BLANCHE Minhas peças de prata para toalete ainda estão fora. STELLA Ah! EUNICE (retornando) Eles estão esperando na frente da casa. 221

BLANCHE Eles? Quem são eles? EUNICE Há uma senhora com ele. BLANCHE Não posso imaginar quem possa ser essa "senhora"! Como ela esta vestida? EUNICE Com. . um tipo de... conjunto simples. BLANCHE Possivelmente ela é. . . (Sua voz se apaga nervosamente.) STELLA Podemos ir, Blanche? BLANCHE É preciso passar por aquela sala? STELLA Eu vou com você. BLANCHE Que tal estou? STELLA Linda, Blanche. EUNICE (confirmando) Uma beleza. (Blanche caminha medrosamente para os 222

reposteiros. Eunice os abre para ela. Blanche entra na cozinha.) BLANCHE (para os homens) Por favor, não se levantem. Estou apenas passando por aqui. (Dirige rapidamente para a porta da rua. Stella e Eunice a seguem. Os jogadores de pôquer ficam de pé, acanhados, em volta da mesa — todos, com exceção de Mitch, que permanece sentado, olhando para a mesa. Blanche sai em um pequeno alpendre ao lado da porta. Ela pára abruptamente e retém a respiração.) O MÉDICO Como vai a senhora? BLANCHE O senhor não é o cavalheiro que eu estava esperando. (Ofega subitamente e começa a voltar pela escada. Pára ao lado de Stella, que está em pé, perto da porta, e fala com um murmúrio cheio de medo.) Aquele homem não é Shep Huntleigh. (A varsoviana está tocando, distante. Stella olha para Blanche. Eunice está segurando o braço de Stella. Há um momento de silêncio — nenhum som além do que faz Stanley recolhendo as cartas. Blanche retém novamente a respiração e volta ao apartamento. Ela entra com um sorriso estranho, com olhos bem abertos e brilhantes. Assim que sua irmã passa por ela, Stella fecha os olhos e entrelaça com força as mãos. Eunice atira seus braços 223

ao redor dela, confortando-a. Em seguida, ela começa a voltar a seu apartamento. Blanche pára exatamente na porta. Mitch continua a olhar para suas mãos sobre a mesa, mas os outros homens olham curiosamente para ela. Por fim, ela começa a caminhar em volta da mesa, em direção ao quarto. Enquanto ela anda, Stanley subitamente empurra sua cadeira para trás e se levanta, como para bloquear a passagem dela. A enfermeira entra atrás dela no apartamento.) STANLEY Você esqueceu alguma coisa? BLANCHE (com voz aguda) Sim! Sim, esqueci uma coisa! (Passa rapidamente por ele e vai ao quarto. Pálidos reflexos aparecem nas paredes em sombras estranhas e sinuosas. A var-soviana é como que filtrada em uma estranha distorção, acompanhada pelos gritos e barulhos da floresta. Blanche agarra as costas de uma cadeira como para se defender.) STANLEY (em voz baixa) Doutor, é melhor o senhor entrar. O MÉDICO (em voz baixa, fazendo um gesto para a a enfermeira) Enfermeira, traga-a para fora. (A enfermeira avança de um lado e Stan-ley do outro. Despida de todas as outras propriedades mais suaves das mulheres, a enfer- 224

meira é uma figura particularmente sinistra, com seu vestido austero. Sua voz é forte, clara e átona como a de uma campainha de alarma.) A ENFERMEIRA Alô, Blanche! (A saudação é ecoada e reecoada por outras misteriosas vozes detrás das paredes, como se reverberasse através de um desfila-deiro de pedra.) STANLEY Ela diz que esqueceu alguma coisa. (O eco ressoa em murmúrios ameaçadores.) A ENFERMEIRA Não tem importância. STANLEY O que foi que você esqueceu, Blanche? BLANCHE Eu... eu... A ENFERMEIRA Não importa, podemos pegar mais tarde. STANLEY Claro, podemos mandar junto com a mala. BLANCHE (retirando-se em pânico) Eu não conheço vocês, não conheço vocês. Quero ficar sozinha, por favor! 225

A ENFERMEIRA Vamos, Blanche! ECOS (subindo e descendo, Vamos Blanche, vamos Blanche, vamos Blanche! STANLEY Você só deixou talco derramado e garrafas de perfume vazias, a não ser que você queira levar a lanterna de papel. Você quer a lanterna? (Vai até a penteadeira e apanha a lanterna de papel, separando-a da lâmpada, e a estende na direção dela. Ela grita como se a lanterna fosse ela mesma. A enfermeira avança ameaçadoramente para ela. Ela grita e tenta fugir à enfermeira. Todos os homens se levantam novamente. Stella sai correndo para o alpendre, com Eunice seguindo-a para confortá-la, simultaneamente com as confusas vozes dos homens na cozinha. Stella atira-se nos braços de Eunice no alpendre.) STELLA Oh! meu Deus, Eunice, ajude-me! Não deixe que façam isso com ela, não deixe que eles a machuquem. O que é que estão fazendo com ela? Que estão fazendo? (Tenta se libertar dos braços de Eunice.) EUNICE Não, querida, não, não, querida. Fique aqui. Não volta lá dentro. Fique comigo e não olhe. 226

STELLA Que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha? Oh, meu Deus, que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha? EUNICE A única coisa que você podia fazer. Ela não pode ficar aqui, e não havia outro lugar para ela ir. (Enquanto Stella e Eunice estão conversando no alpendre, as vozes dos homens na cozinha se sobrepõem às delas. Mitch está se dirigindo ao quarto. Stanley cruza o aposento para bloquear sua passagem. Stanley o empurra para o lado. Mitch arremete contra Stanley e o atinge. Stanley empurra Mitch. Mitch cai na mesa, soluçando. Durante as cenas anteriores, a enfermeira agarra o braço de Blanche e impede que ela escape. Blanche se volta com violência e arranha a enfermeira. A pesada mulher imobiliza os braços dela. Blanche solta um grito rouco e cai de joelhos.) A ENFERMEIRA Estas unhas precisam ser cortadas. (O médico entra no aposento, ela olha para ele.) Camisa de força, doutor? O MÉDICO Só se for necessário. (Tira o chapéu e agora se torna personalizado. Sua característica desumana desaparece. Sua voz é gentil e tranqüilizante, enquanto ele se dirige a Blanche e se agacha em frente a ela. Quando ele fala o nome dela, seu terror desaparece um pouco. Os pálidos reflexos desaparecem das paredes, os gritos 227

e ruídos inumanos desaparecem, e a própria voz rouca de Blanche se acalma.) O MÉDICO Senhorita Dubois. . . (Ela volta o rosto para ele e o fita com uma súplica desesperada. Ele sorri e em seguida fala para a enfermeira.) Não vai ser necessário. BLANCHE (debilmente) Peça a ela que me largue. O MÉDICO (para a enfermeira) Largue-a. (A enfermeira a solta. Blanche estende as mãos na direção do médico. Ele a atrai gentilmente e a levanta, amparando-a com seu braço, e a conduz através dos reposteiros.) BLANCHE (agarrando-se a seu braço) Seja o senhor quem for. . . eu sempre dependi da bondade dos estranhos. . . (Os jogadores de pôquer se afastam quando Blanche e o médico cruzam a cozinha até a porta da frente. Ela deixa que ele a conduza como se fosse cega. Quando eles saem no alpendre, Stella de onde está aga-chada, poucos degraus acima, nas escadas, grita o nome de sua irmã.) STELLA Blanche! Blanche, Blanche! (Blanche caminha sem se voltar, seguida 228

pelo médico e pela enfermeira. Eles dobram a esquina do prédio. Eunice desce até onde está Stella e coloca a criança em seus braços. Ela está envolta em um cobertor azul pálido. Stella aceita a criança, soluçando. Eunice continua a descer as escadas e entra na cozinha, onde os homens, com exceção de Stanley, estão retornando silenciosamente a seus lugares ao redor da mesa. Stanley saiu do alpendre e está em pé junto aos degraus, olhando para Stella.) STANLEY (um pouco hesitante) Stella? (Ela soluça com triste desolação. Há algo de voluptuoso em sua completa rendição ao choro, agora que sua irmã se foi.) STANLEY (sensualmente, acalmando-a) Ora, meu bem. Ora, amor. Ora, ora, amor. (Ajoelha-se ao lado dela e seus dedos encontram a abertura da blusa dela) Ora, ora, amor. Ora, amor. . . (O voluptuoso soluço e o murmúrio sensual desaparecem sob a crescente música do piano blue e do trompete em surdina.) STEVE Mão de sete cartas. CAI O PANO 229

ARTHUR MILLER (1915- ) VIDA E OBRA (Introdução a A Morte do Caixeiro-Viajante)

Não era sonho. Pela terceira vez seu nome cintilava no lumi-noso de um teatro da Broadway; a atraente, a implacável, a an-tropofágica Broadway — meta de todos os autores americanos de sua geração. Arthur Miller, o menino de Harlem, o jovem da Universidade de Michigan, o magro, o tímido, o desajeitado Miller ia estrear mais uma vez. O Teatro Morosco estava repleto naquela noite fria de 10 de fevereiro de 1949. Arthur Miller, muito tenso, recebia cumpri-mentos, abraços, acenos, sorrisos. Daria tudo certo, assegura-vam-lhe. Tudo saíra muito bem na pré-estréia, realizada em Filadélfia. Diante da temível Broadway, porém, Miller não estava certo de coisa alguma, a não ser de que gostava do título de sua peça — A Morte do Caixeiro-Viajante —, apesar de tantos o considerarem absurdo. Havia motivos para tanta apreensão. O espetáculo teria que agradar à toda-poderosa crítica nova-iorquina ou estaria conde-nado, em poucos dias, a uma retirada vergonhosa. Passeando os olhos pela platéia, o dramaturgo pensava na importância que teria para aquela multidão, vivendo no clima de prosperidade do após-guerra, a vida e a morte de um homem tão simples e insignificante como um caixeiro-viajante. O clima nos bastidores também era de preocupação. Elia Kazan, diretor do espetáculo, dava ordens impacientes ao pessoal das coxias. Do iluminador ao cenógrafo, do contra-regra ao figu-rinista, todos participavam da mesma expectativa. Ao terceiro sinal, os atores já estavam no palco. Miller viu Arthur Kennedy, Cameron Mitchell, Mildred Dunnock, apagados atrás das personagens de Biff, Happy e Linda. Fingindo que não estavam sendo vistos, os membros da família Loman existiam e estavam prontos a viver suas vidas na casa montada em cena. Quando a cortina se abriu e o caixeiro-viajante entrou em cena carregando duas pesadas malas, não foi o ator Lee J. Cobb que Miller viu, mas o próprio Willy Loman, que chegava de mais uma viagem, desesperançado e perdido. No momento em que o pano de boca se fechou, a Broadway ouviu um dos mais longos e entusiásticos aplausos de sua história. Os críticos saudaram A Morte do Caixeiro-Viajante como a "melhor e mais importante peça contemporânea americana". 233

"UM AUTOR ESCREVE COM OS OUVIDOS" Arthur Miller descobriu muito cedo que, por mais restrito que fosse o espaço de um homem em Nova York, ele não poderia se furtar ao contato com mundos diferentes do seu. Nova York é um grande arquipélago de raças e culturas, pequenas ilhas particulares de contornos definidos, que vivem praticamente à margem da cultura americana. Entre o Harlem e o Brooklín, onde viveu os primeiros dezenove anos de sua vida, Arthur Miller percebeu que havia, em cada uma daquelas numerosas ilhas de imigrados, diferentes hábitos, feições, sons e odores. A cidade ensinou-lhe muitas coisas, mas, principalmente, aguçou-lhe a audição. E como "um autor escreve com os ouvi-dos", segundo suas próprias palavras, aqueles anos vividos nos bairros pobres da cidade teriam enorme importância na construção de sua obra literária. Miller também fazia parte de uma daquelas ilhas espalhadas ao longo do Harlem, Brooklin e Bronx. Sua família era judia. Isadore Miller, seu pai, foi um daqueles pequenos industriais arruinados pela crise econômica de 1929. Com a falência, a família viu-se obrigada a mudar da casa confortável no East Side Manhattan, onde Arthur nascera a 17 de outubro de 1915, para uma zona mais modesta, no Harlem. Quando Arthur terminou o curso secundário, em 1932, todos os sonhos acalentados pelo velho Isadore em relação ao filho tinham desmoronado: a família não tinha condições de susten-tá-lo numa Universidade. Com o país mergulhado na grande depressão, Arthur Miller juntou-se aos milhares de desempregados à espera de uma possibilidade de colocação. Com alguma sorte, conseguiu seu primeiro emprego: chofer de caminhão. Depois tornou-se, consecutiva-mente, garçom, marinheiro e, finalmente, empacotador numa fábrica de autopeças. Em 1934, com a ajuda da National Youth Association (As-sociação Nacional da Juventude) e um emprego de redator no Michigan Daily, ingressa na Universidade de Michigan, para concretizar um velho sonho: um curso de dramaturgia. Nos quatro anos de escola, Arthur Miller consegue firmar junto aos professores e colegas a imagem de um dramaturgo pro-missor. Escreve algumas peças, ganha dois prêmios de quinhentos dólares e é convidado, no final de seu curso, para participar do 234

Não havia quem não se alegrasse com a companhia do bem-humorado Willy. Ele tinha tudo: bons amigos, uma mulher sensível e filhos que eram um sucesso na comunidade. 235

Federal Theatre Project (Projeto Federal de Teatro). A estabilidade oferecida por esse emprego deu-lhe condições para se casar, em 1940, com sua namorada da época da Universidade, Mary Slattery. Mas a tranqüilidade que desfruta nessa época é logo desfeita. Miller contrai uma doença pulmonar que o obriga a demitir-se do Projeto Federal de Teatro e a afastar-se, durante algum tempo, dos problemas do teatro americano. Os tempos eram difíceis: Mary trabalhava enquanto ele convalescia, sem ânimo para nada. Sem recursos para continuar o tratamento, segue para Nova York, onde imagina não ser difícil para um homem, mesmo doente, conseguir trabalho. O país acha-se empenhado no grande esforço de guerra e Miller acaba por dar a sua contribuição, em-pregando-se como ajustador no Arsenal da Marinha. Sentindo uma vontade irresistível de escrever, registrou esse tempo de guerra num roteiro para o cinema, Normal Situation (Situação Normal), publicado em 1944. O teatro também volta a entusiasmá-lo. Escreve um nova peça, O Homem que Teve Toda a Sorte (The Man Who Had Ali the Luck), porém sem muitas esperanças de vê-la montada. Mas criou coragem e procurou o diretor Joseph Fields. Para sua surpresa, Fields aceita o desafio e monta a peça no Forest Theatre da Broadway. A crítica considerou-a "inexperiente" e "didática". Quatro récitas depois, o es-petáculo era retirado de cartaz. Miller não tinha muito tempo para se abater com o fracasso. Os jornais e o rádio informavam a cada momento sobre a guerra. Como qualquer homem, ele sentia o peso de sua impotência diante da sorte de milhares de pessoas condenadas à morte. E, como sua única arma era a literatura, começou a escrever um romance de denúncia contra o anti-semitismo, Focus, publicado no final da guerra, em 1945. O COMPROMISSO Maio de 1945. Discursos, bandas, desfiles em carros aber-tos, toneladas de papel picado são lançados do alto dos edifí-cios para comemorar o fim da guerra. A América é a grande vencedora. Mas — e os mortos? Arthur Miller pergunta-se, diante dos soldados sobreviventes, quanta gente a guerra não teria enriquecido às custas do sacrifício de vidas humanas. 236

Cena de As Feiticeiras de Salém, uma alegoria sobre o abuso do poder e suas conseqüências na política cultural norte-americana. Com base nessa idéia, nasceu Todos Eram Meus Filhos (All My Sons, 1947), onde o autor denuncia a ação criminosa de um fornecedor de material bélico defeituoso, responsável pela morte de vários pilotos. A peça estreou em 1947, no Coronet Theatre da Broadway, sob a direção de Elia Kazan. É o seu primeiro grande sucesso, e a crítica passou a apontá-lo como a mais recente esperança do teatro americano, concedendo-lhe um prêmio importante — o do Círculo dos Críticos Teatrais de Nova York. Mas o jovem e promissor dramaturgo ganhou também, com Todos Eram Meus Filhos, o desconfortável rótulo de esquerdista. A peça é proibida na Europa — nas regiões ocupadas pelo Exército americano — e, dentro dos Estados Unidos, levanta-se uma campanha no sentido de dificultar sua encenação. Miller aceita a acusação. Prefere ser um autor incômodo, como Ibsen — seu modelo — o fora no século passado. "Nunca escreverei uma peça a que não goste de assistir" — declara aos jornalistas. E, para ele, escrever naquela época do após-guerra 237

era, na verdade, desmistificar um pouco os sonhos da América. Discreto e convincente como Ibsen, Miller envereda com se-gurança pelo drama social, colocando no centro da ação o con-flito do indivíduo face à coletividade. O grande público e a crítica parecem aceitar o desafio. O sucesso alcançado por A Morte do Caixeiro- Viajante (Death of a Salesman) é uma prova disso. A peça permanece durante meses em cartaz, concedendo ao seu autor os maiores prêmios do teatro americano: o do Círculo dos Críticos, o Antoinette Perry e o cobiçado Pulitzer. E um fato curioso: é a primeira peça a ser incluída na relação dos livros editados pelo popular Clube do Livro. Hollywood compra os direitos da filmagem e elencos do mundo inteiro disputam a encenação do texto. No mesmo ano, em 1949, A Morte do Caixeiro -Viajante estréia em Nova York e em Londres. Na versão inglesa, Paul Muni, veterano ator de cinema e teatro, interpreta o papel de Willy Loman. Dois anos depois, a peça é apresentada no Teatro Glória, no Rio de Janeiro, com Jaime Costa no papel principal. As montagens se multiplicam. Em 1952, a peça é encenada em Paris e no Teatro Nacional da Bélgica. O papel de Willy Lo-man é interpretado na França por atores importantes como Claude Dauphin e Jean Louis Barrault. A crítica do mundo in-teiro considera A Morte do Caixeiro- Viajante uma obra-prima. O sucesso estava ao lado de Arthur Miller. Por quanto tempo? A América entrava na década de cinqüenta sob o signo do medo. O comitê de atividades antiamericanas do senador Mc-Carthy estava disposto a deter todos que estivessem direta ou indiretamente envolvidos com atividades consideradas esquerdistas. Arthur Miller era um dos intelectuais situados na mira da comissão de investigações. Miller parecia ignorar as ameaças. Trabalhava na pesquisa para uma nova peça que terminaria em 1953, As Feiticeiras de Salém (The Crucible). Tratava se de um processo verídico contra alguns implicados em práticas demoníacas, ocorrido em 1692. A história deixava claro que, em qualquer tempo, a caça às feiticeiras permitia um tal abuso de poder por parte de quem o detinha, que os implicados viam-se privados das mais ínfimas condições de defesa. Apesar de muito remota no tempo, a alusão é clara e depressa percebida pela extrema direita. O cerco se fecha cada vez mais em torno do dramaturgo. Era só uma questão de tempo. 238

Willy Loman entra em cena: carrega suas malas e 34 anos de viagens sucessivas nos ombros. (Na foto, Jaime Costa.)

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Enquanto aguardava, Miller trabalhava em duas peças em um ato, Panorama Visto da Ponte (A View From The Bridge) e Lembrança de Duas Segundas-Feiras (A Memory of Two Mondays), montadas em 1955 no Coronet Theatre. Em Panorama Visto da Ponte ele coloca mais uma vez o tema da delação. A peça desenrola-se num bairro de Nova York, composto, na sua maioria, por italianos e seus descendentes; nela, talvez mais do que em qual-quer outra, o conhecimento do autor dos dialetos da cidade serviu admiravelmente à caracterização das personagens. ANTES E DEPOIS DA QUEDA Em 1956, Miller foi finalmente convocado a depor no comitê de atividades antiamericanas do senador McCarthy. O in-quérito se prolongou durante meses porque o acusado, de acordo com fontes oficiais, "era pouco cooperativo". O processo se arrastou até 1957, quando Miller, impassível, recebeu a notícia de sua condenação: trinta dias de prisão. Ele cumpriu a pena cercado de grande publicidade: acabara de se casar com a famosa atriz Marilyn Monroe. Fotos, entrevistas para jornais, rádio, cinema e televisão. Todos desejavam ouvir o notável casal. Alguns jornalistas chamavam-no de Pigmalião, e Marilyn, de Galatéia. Comentava-se que o marido dramaturgo transformaria MM, símbolo do sexo no ci-nema americano, numa atriz de verdade. Mas omitia-se que Marilyn já era uma atriz disposta a explorar suas possibilidades dramáticas quando Miller a conheceu, em 1955, no Actor's Studio. A verdade, porém, é que o resultado desse casamento foi uma grande catástrofe para ambos. Durante sete anos Miller não escreveu nada, a não ser um roteiro para o cinema, The Misfits (Os Desajustados), filmado, em 1961, por John Huston e interpretado por um trio admirável de atores do cinema americano: Marilyn Monroe, Clark Gable e Montgomery Clift. As filmagens foram realizadas no sudoeste dos Estados Unidos e Miller não as acompanhou até o fim. O casal já estava decidido a divorciar-se. Continuariam "bons amigos", afirmavam, mas estava tudo acabado. No início de 1962, Miller casa-se com a fotógrafa alemã Inge Morath. Em agosto, Marilyn suicida se em Hollywood. Embora não houvesse relação entre os dois fatos, o autor cairia em 240

Cena do filme baseado em A Morte do Caixeiro-Viajante. Dirigido por Laslo Benedek, Frederic Marchfoi um extraordinário Willy Loman. grande depressão Angustiado e confuso, recolhia dentro de si mesmo material para sua próxima peça, Depois da Queda (After the Fali), que estrearia em janeiro de 1964, no Lincoln Center de Nova York. A personagem feminina mais importante da peça é Maggie, cantora famosa que se liga a Quentin, um advogado bem suce-dido, numa relação dilacerante. Quentin, personagem e narrador, conta a história dessa relação e a sua própria história, fazendo desfilar seu passado em cena. Maggie está presente em sua memória como uma mulher ca-rente, que ele não soube compreender. Quentin sente-se miserável porque não consegue dar felicidade às suas parceiras, e, principalmente, porque não pôde impedir a destruição de Maggie. Quase destruído, ele afinal se apega a uma nova companheira, Holga, decidido a recomeçar mais uma vez. Com esse apelo de espe-rança, quase uma justificativa para continuar a viver, Quentin supera sua queda. Mas e a de Maggie? Quando o público do Lincoln Center se levantou para aplaudir, havia um nó em todas as gargantas: os espectadores reconheceram em Maggie a figura de Marilyn e em Quentin a do próprio Miller. 241

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O comportamento de Willy revela que o sonho americano de sucesso se transformou num grande pesadelo. Linda (Mildred Dunnock), Biff (Arthur Kennedy) e Happy (Cameron Mitchell) sofrem com o fracasso do pai. Os repórteres correram para entrevistar os intérpretes princi-pais, Jason Robards e Barbara Loden, referindo se à extrema semelhança com as personagens reais. Miller, ao lado da terceira esposa, apenas sorria. Meses mais tarde, numa entrevista à revista Life, diria que Maggie não era Marilyn Monroe, mas apenas a personagem de uma peça que tratava da repugnância do ser humano em encontrar, dentro de si mesmo, o germe de sua própria destruição. A crise pessoal parecia inteiramente superada. Miller voltava a escrever. Ainda em 1964, brinda a cena americana com uma nova peça, Beco sem Saída (Incident at Vichy), seu protesto moral contra o extermínio de milhares de judeus durante a Se-gunda Guerra Mundial. Miller levantava seu brado humanista, mas a crítica foi implacável: as personagens eram falsas, esque-máticas e comportavam-se de maneira absurda dentro da situa-ção que estavam vivendo. Os jornais anunciaram então que o melhor período dramático de Arthur Miller já estava encerrado. Sem se abater, Miller retomou o tema da classe média obce- 243

cada pela idéia do êxito individual. E escreveu O Preço (The Price), peça montada em 1968. Ainda desta vez a crítica não se entusiasmou. Alguma coisa estranha estava acontecendo e Miller sentia que teria de mudar para poder se reafirmar. A resposta viria com um grande fracasso: A Criação do Mundo e Outros Negócios (The Creation of the World and other Businesses), apresentada em 1972 na Broadway como uma comédia catastrófica. A crítica chamou-a de catástrofe cômica e aconselhou o autor a ser mais cuidadoso nos próximos trabalhos. Discretamente, Miller saiu de cena e transformou a "catástrofe" numa nova obra, uma comédia musical, Up From Para-dise. Na apresentação ao público, porém, resolveu inverter o processo. Desta vez não seria a Broadway a julgá-la, mas o seu ponto de partida, a Universidade de Michigan. Com grande parte do elenco constituído por atores estudantes, Miller descobre tam-bém a novidade das platéias jovens. Levada pelo próprio autor, que fazia o papel de narrador, a peça percorreu inúmeras universidades americanas. Em 1974, George C. Scott procura Arthur Miller. Ele quer reviver na Broadway, como protagonista e diretor, A Morte do Caixeiro- Viajante. Era um velho sonho do veterano ator. Assim, repentinamente, Miller volta a acontecer como nos velhos tempos. Os jornalistas dedicam páginas inteiras à sua obra, rememorando nostalgicamente a estréia da peça e a interpretação do grande Lee J. Cobb no papel de Willy Loman. Miller estava de volta. Vinte e cinco anos mais velho, mais calmo que na primeira vez, porém ainda guardando a mesma aparência desajeitada. Estava pronto a viver as emoções da segunda estréia e a colher mais uma vez o sucesso de A Morte do Caixeiro Viajante. WILLY LOMAN, UM HOMEM COMUM "Todo o mundo conhece Willy Loman", diz Miller no prefácio de A Morte do Caixeiro - Viajante. Todo o mundo conhece esse homem que corta a grama aos domingos, pinta a varanda na primavera e é um pouco carpinteiro, um pouco pedreiro, capaz de fazer qualquer reparo em sua casa. Como qualquer americano de classe média, Willy também acreditava nas receitas do sucesso, no poder de fazer amigos e 244

Maggie, personagem de Depois da Queda, é uma mulher que traz dentro de si o germe de sua própria destruição. (Maria Delia Costa e Paulo Autran.) influenciar pessoas, na possibilidade de realizar o mesmo trajeto percorrido por centenas de homens, que começaram do nada e que, por seu esforço pessoal, puderam alçar-se aos grandes escalões dos negócios e da política. O modelo de Willy foi bem modesto: Dave Singleman, um velho caixeiro viajante que conhecera na juventude. Aos 84 anos, seu prestígio era tal que nem precisava sair do quarto de hotel para realizar seus negócios. Ninguém foi mais estimado que Dave Singleman. Quando ele morreu — e teve a morte de um caixeiro-viajante, no carro de fumar de um trem que ia para Boston —, centenas de companheiros e clientes homenagearam-no com um grande funeral. Willy também desejou ser estimado como o velho Dave. E como o velho Dave escolheu ser caixeiro-viajante. Mas quando Willy Loman entra em cena, no início do primeiro ato, carre-gando em seus ombros o peso de 34 anos de viagens sucessivas. Percebe-se que ele não terá o sucesso de Dave Singleman. Em três décadas o país assistiu a grandes transformações e Willy é uma de suas vítimas passivas e inconscientes. O sistema 245

A memória de Willy é expressa cenicamente por meio de flashbacks, que permitem ao espectador tomar consciência do drama da família Loman. comercial tornou-se tão impessoal, que desapareceram os antigos vínculos de estima que uniam, no passado, comprador e vendedor. Willy vende cada vez menos e cada vez mais deseja empreender o caminho de volta à sua casa. Quer criar raízes, anco-rar, porque a cada viagem ele morre um pouco, porque a cada viagem ele se defronta com o fracasso. Willy está muito perto da loucura. Presente e passado se confundem dentro de sua mente, e, com isso, duas peças desenrolam-se diante dos espectadores: aquela que é dada pela torturante atualidade do protagonista, e a outra, que corresponde às suas evocações. Essa segunda peça, que parte da memória de Willy, é expressa cenicamente através de flashbacks, que permitem ao espectador tomar consciência do processo presente da vida da família Loman. Nessa permanente busca do tempo perdido, Willy Loman rememora a época em que era um homem vitorioso em todos os sentidos. Tinha um carro formidável, com o qual percorria toda a sua enorme clientela em mais de vinte Estados, vendendo não apenas mercadorias, mas também encanto, segurança, retidão e simpatia. Não havia companheiro ou cliente que não se 246

Nas fotos, cenas do espetáculo dirigido por George C. Scott em 1974 e interpretado por George C. Scott, Teresa Wright, J. Farentino e Harvey Keitel. alegrasse com a companhia do bem-humorado e bem-sucedido Willy Loman. Willy tinha tudo: Linda, sua mulher, era bonita e solícita. Os filhos, Biff e Happy, um sucesso; Biff principalmente, porque era o campeão do time de futebol do colégio. Mas, acima de tudo, Willy orgulhava-se de representar para a família e para a comunidade a imagem de um cidadão modelo. Sua meta estava quase cumprida e Loman não ambicionava muito mais que isso. Nem se deixou tampouco contaminar pela febre do ouro, que atraiu milhares de pessoas para o Alasca. Willy quis ficar porque pensava que era dono de seu destino. Mas o tempo em que Willy era um pequeno Dave está muito longe. Ele não carrega mais consigo a foto de Biff com o uniforme de sua equipe. Agora — e é terrível e penoso para ele confessar o fato — as pessoas riem dele. Os clientes antigos morreram, há muita gente nova nas estradas, e tudo lhe parece "limitado, seco, e não há oportunidade de se firmar uma amizade". Willy não aceita o próprio fracasso. Ele tem procurado a morte nos sucessivos desastres de automóvel que vem sofrendo, apesar dos esforços terríveis que faz para justificar sua existência. 247

Seu comportamento revela que o sonho americano de sucesso se transformou num grande pesadelo. Seus filhos também não conseguiram nada. Biff, o simpático ídolo da escola, abandonou o curso depois da reprovação num exame de matemática. Talvez Willy pudesse ter feito alguma coisa por ele. Mas onde estava Willy naquele momento? Estava num quarto de hotel em Boston com uma prostituta, quando o menino chegou para lhe pedir que fosse falar com seu professor. Talvez Willy pudesse deter a derrocada de Biff se estivesse sozinho e voltasse com o filho para casa. Mas sua imagem de pai reto e fiel caiu para Biff naquele quarto de hotel e nunca mais se recuperou. O descuido de Willy foi imperdoável e ficaria entre pai e filho para sempre. Biff irá atribuir a ele, ainda que injustamente, muito da sua insatisfação e desencontro com a vida. O jovem promissor tornou-se um andarilho, um cleptomaníaco, um pequeno marginal. Está de volta ao velho lar dos Loman porque é primavera e a cada renascer ele sente uma vontade imensa de voltar. Happy também não realizou nenhum sonho de Willy. É um funcionário medíocre e frustrado, voltado permanentemente para as mulheres e o álcool. Só Linda permanece a mesma. Mas diante da mulher, Willy sente-se em permanente dívida, porque também ela é vítima do seu fracasso, absorvendo todos os choques do malogro coletivo da família Loman. De tal forma é terrível para Willy admitir essa verdade que ele ainda sente forças para se apegar ao sonho absurdo de um grande negócio de artigos esportivos, que os filhos imaginam conseguir. Willy agarra-se a essa possibilidade como se fosse a última da família Loman. Apesar de tudo, Willy ainda tem algumas ilusões. Imagina poder conseguir, depois de 34 anos de vida dedicados a uma empresa, alguma reciprocidade, e procura Howard, seu patrão, para lhe pedir estabilidade. Willy não quer viajar mais e está certo de que, em troca de cinqüenta dólares por semana, Howard lhe arranjará um lugar em Nova York. Em vão Willy jogará o seu passado de lealdade e eficiência contra os argumentos de Howard. Seu passado só é importante para ele mesmo. Willy está velho e acabado e deve ser despedido. "Você não pode chupar uma laranja e jogar a casca fora, que um homem não é um pedaço de fruta", diz Willy a seu patrão. Mas Howard é surdo a seus apelos. 248

Willy não aceita o próprio fracasso: os clientes antigos morreram, há muita gente nova em seu trabalho e é difícil firmar novas amizades. 249

Depois de 34 anos de serviço, Willy Loman não tem nada. Nem estima, nem sucesso, nem cinqüenta dólares para pagar a última prestação do seguro de vida. É Charley, o medíocre, pai de Bernard, o apagado Bernard da classe de Biff, que se tornou um grande advogado, que lhe empresta o dinheiro para quitar a apólice. O último e irremediável golpe chega quando Willy percebe que o grande e sonhado negócio, capaz de redimir a família Loman, jamais acontecerá. E então ele não pode evitar ouvir de Biff toda a dura verdade sobre si mesmo: homens como ele valem apenas dez centavos a dúzia. "Não sou condutor de homens, Willy, nem você é. Você não foi senão um caixeiro-viajante traba-lhador que se reduziu a cinza como os outros ! Eu sou um homem de um dólar a hora, Willy! Tentei em sete lugares e não pude aumentá-lo." Willy não pode suportar mais nada. E parte para a sua última viagem à procura da morte, desta vez sabendo por quê. As últimas palavras da peça pertencem a Linda. Diante do túmulo de Willy ela conversa, como se ele a pudesse ouvir. Na-quele dia ela fizera o último pagamento da casa. "Estamos livres! Estamos livres!" Vivo, Willy não foi mais que um fruto esvaziado do seu sumo. Morto, ele representou para a família vinte mil dólares. Willy foi mais um homem que acreditou poder forjar o seu futuro. Não percebeu os limites impostos pela empresa, pelo mercado do qual dependia, pela insegurança de um sistema que não lhe oferecia nenhuma proteção, a não ser um amplo e complexo serviço de seguros, pelos quais ele mesmo teve que pagar. Quando o pano cai sobre a família Loman, aflora claramente que a intenção de Arthur Miller não foi a de contar a história de um homem singular, mas a de um personagem com o qual muitos homens poderiam se identificar. Ao empreender uma dramaturgia social com tal força e vi-gor, Arthur Miller colocara-se ao lado dos titãs da cena norte-americana: Eugene O'Neill (1888-1953) e Tennessee Williams (1914- ). E a nota de originalidade em Miller era exatamente esta: uma obra constantemente centrada nos aspectos sociais, aliada a uma permanente preocupação com a dimensão humana das personagens. O autor encarava o homem num contexto mais amplo do que ele e que, afinal, era o mesmo de todas as pessoas. Por isso, diferia da dramaturgia íntima e sensível de Tennessee 250

As últimas palavras da peça pertencem a Linda. Diante do túmulo de Willy ela conversa, como se ele a pudesse ouvir. Naquele dia ela fizera o último pagamento da casa: "Estamos livres! Estamos livres!" Williams e da sondagem profunda e metafísica da condição hu-mana, empreendida por Eugene O'Neill. Os recursos de Arthur Miller em A Morte do Caixeiro-Viajante não eram novos. Nem o flashback, que permitia a atualização do passado do protagonista, nem a deformação dos fatos pas-sados vistos através da ótica do iludido Willy Loman: o drama expressionista na segunda década do século XX já utilizava essa técnica em larga medida. O grande talento de Miller foi saber usar os recursos dis-poníveis num drama realista, onde a linguagem tem um papel pre-ponderante. Os elementos da família Loman falam como pessoas comuns, sem qualquer artifício ou complexidade, e, por isso, fá-Iam muito perto ao espectador. Os vigorosos diálogos, repletos de expressões correntes, são eivados de uma poesia áspera e viva. Esse extraordinário poder de comunicação concorreu para tornar A Morte do Caixeiro Viajante uma das peças mais significativas do século XX. 251

Arthur Miller A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE Tradução de Flávio Rangel Algumas conversas particulares em dois atos e um réquiem

PERSONAGENS WILLY LOMAN, caixeiro-viajante LINDA, sua mulher Biff, HAPPY (e seus filhos)CHARLEY, vizinho dos Loman BERNARD, filho de Charley TIO BEN, irmão de Willy HOWARD WAGNER, patrão de Willy A MULHER JENNY, secretária de Charley STANLEY, empregado do restaurante SENHORITA FORSYTHE eLETTA (jovens)

ATO I

Ouve-se o som de uma flauta. É uma melodia leve e delicada, que fala de relva, árvores e horizontes. Sobe o pano. Diante de nós está a casa do caixeiro-viajante. Uma sugestão de formas angulares e de torres que a cercam, pelos lados e por trás. Uma suave luz azul-celeste cai sobre a casa e sobre a frente do palco; as outras áreas são cobertas por uma luz alaranjada e áspera. A medida que a luz cresce, vemos um maciço bloco de prédios de apartamentos, como se estivessem esmagando a frágil casinha. O lugar sugere uma atmosfera de um sonho que emergisse da realidade. Mas a cozinha, ao centro, parece bastante real, pois há nela uma mesa, três cadeiras e uma geladeira. Mas é só. No fundo da cozinha, há uma porta com cortina que conduz à sala. À direita, num nível mais alto, um quarto de dormir, com uma cama de ferro e uma cadeira. Numa estante acima da cama existe um troféu esportivo, uma taça de prata. Aí, uma janela se abre para o prédio vizinho. Atrás da cozinha, num nível dois metros mais alto, está o quarto dos rapazes, por enquanto apenas sugerido. Vêem-se vagamente duas camas e, no fundo do quarto, uma água-furtada. (Este quarto está em cima da sala que não se vê.) À es-querda, uma escada em curva liga o quarto à cozinha. O cenário é transparente (no todo ou em parte). O telhado é unidimensional; acima e abaixo dele, vêem-se os prédios de apartamentos. Na frente da 259

casa existe um praticável que chega até o proscênio; essa área serve tanto como quintal de Willy como o local onde ele imagina suas cenas e também as cenas de cidade. Quando a ação se desenrola no presente, os atores devem respeitar as li-nhas imaginárias do cenário e entrar na casa apenas através da porta à esquerda. Mas, nas cenas do passado, estas convenções são quebradas, e os personagens entram ou saem de um quarto "através " das paredes. Willy Loman, o caixeiro-viajante, entra da direita, com duas grandes maletas de amostras. Ouve-se a flauta. Willy não se dá conta dela. Ele tem mais de sessenta anos e veste-se sobriamente. Seu cansaço é evidente, o que se nota pelo modo como caminha. Abre a porta, vai à cozinha, e abandona sua pesada carga, sentindo as palmas das mãos doloridas. No meio de um suspiro, deixa escapar uma palavra, que pode ser "Oh, meu Deus ". Fecha a porta e leva as maletas para a sala através da porta com cortina. Linda, sua mulher, faz um movimento na cama, à direita. Levanta-se e põe um roupão; escuta. E uma mulher naturalmente alegre, que reprime, com vontade de ferro, suas restrições ao compor lamento de Willy. Ela o ama muito e, mais do que isso, ela o admira, como se a natureza agitada de Willy, seu temperamento, seus sonhos grandiosos e suas pequenas misérias compusessem o painel das lembranças profundas das ânsias turbulentas que existem dentro dele, as quais ela compartilha, mas sem vivê-las em toda a sua extensão. LINDA (ouvindo os pequenos ruídos de Willy, chama com li-geira angústia) Willy! 260 A

WILLY Está tudo bem. Eu voltei. LINDA Por quê? O que houve? (Ligeira pausa.) Aconteceu alguma coisa, Willy? WILLY Não, nada. LINDA Você bateu com o carro? WILLY (um pouco irritado) Eu já disse que não aconteceu nada. Você não ouviu não? LINDA Você está se sentindo bem? WILLY Estou morto de cansaço. (A flauta sumiu. Ele se senta na cama ao lado dela, meio entorpecido.) Eu não consegui. Simples mente eu não consegui, Linda. LINDA (muito cuidadosa e delicadamente) Onde é que você andou o dia inteiro? Você está com uma cara horrível. WILLY Cheguei até um pouco além de Yonkers. Parei num bar pra tomar um café. Acho que foi o café. LINDA O quê? WILLY (depois de uma pausa) De repente eu não conseguia mais guiar o carro. Eu não con-trolava mais o carro, entende? 261

LINDA (querendo ajudar) Ah, deve ter sido essa direção de novo. Acho que o Ângelo não entende nada de Studebaker. WILLY Não, sou eu, sou eu. De repente percebo que estou indo a cem por hora, e não consigo me lembrar do que aconteceu há cinco minutos. Eu. . . eu acho que. . . não consigo mais me concen-trarem nada... LINDA Devem ser seus óculos novos. Você não gostou nunca desses óculos novos. WILLY Não, eu vejo bem. Voltei bem devagarinho, a quinze por hora. Demorei mais de quatro horas para chegar aqui. LINDA (resignada) Você tem que descansar, Willy. Você não pode continuar as sim. WILLY Mas eu acabei de voltar da Flórida. LINDA Mas não descansou a cabeça, querido. Essa cabeça trabalha muito e é a cabeça que a gente precisa descansar. WILLY Amanhã eu vou sair de manhã. Quem sabe eu me sinto melhor de manhã? (Linda está tirando os sapatos dele.) Ah, como me doem os pés. LINDA Você quer uma aspirina? Quer? Eu vou buscar para você. 262

WILLY (pensando) Eu estava lá guiando o carro... e até me sentia bem. Estava olhando a paisagem. Você pode imaginar isso? Um homem como eu, que passou sua vida inteira nas estradas, ainda olhando a paisagem? Mas é tão bonito aquilo, Linda, árvores por todo lado, e tão cheio de sol... Abri o pára-brisa e deixei o vento batendo no meu rosto... E de repente, eu saí da es trada! Eu estou lhe dizendo, eu esqueci completamente que estava guiando! Se eu tivesse virado para o outro lado, podia ter matado alguém. Voltei para a estrada, mas cinco minutos depois estava sonhando de novo, e quase que eu... (Aperta os olhos com os dedos.) Eu penso cada coisa, cada coisa tão estranha. . . LINDA Willy, meu querido. Fale com eles de novo. Não há razão para você não trabalhar aqui mesmo em Nova York. WILLY Eles não precisam de mim em Nova York. Sou o homem da Nova Inglaterra. É lá que eu sou importante. LINDA Mas você tem sessenta anos. Eles não podem querer que você continue viajando todas as semanas. WILLY Tenho que mandar um telegrama a Portland. Brown & Morri-son estão me esperando amanhã às dez da manhã para ver os artigos. Puxa, eu posso fazer uma boa venda! (Começa a colocar o paletó.) LINDA (tirando-lhe o paletó) Por que você não vai amanhã ao escritório e diz claramente a Howard que você quer trabalhar aqui em Nova York? Você se conforma demais com as coisas, meu amor. 263

WILLY Se o velho Wagner fosse vivo, hoje eu teria um lugar de diretor, e aqui em Nova York! Esse homem sim, era um príncipe, um homem de verdade. Mas esse menino, esse Howard, esse não sabe de nada. Quando eu resolvi ir para o norte pela primeira vez, a Companhia Wagner não sabia nem onde Ficava a Nova Inglaterra! LINDA Então, meu querido, por que você não diz tudo isso a Howard? WILLY (animado) Eu vou dizer. E isso mesmo, pronto: vou dizer tudo. Será que sobrou um pedaço de queijo? LINDA Eu vou fazer um sanduíche para você. WILLY Não, vá dormir. Vou tomar um pouco de leite. Leite me faz bem. Os meninos estão em casa? LINDA Estão dormindo. Happy levou Biff a uma festinha. WILLY (interessado) LINDA Foi tão bonito ver os dois fazendo a barba juntos no banheiro. E saindo juntos. Você não está sentindo? A casa inteira está cheirando a loção de barba. WILLY Pois é. A gente trabalha a vida inteira para comprar uma casa e, quando a casa é da gente, não há ninguém para morar nela. 264

LINDA Mas meu amor, a vida é assim mesmo. Sempre foi assim. A vida é uma derrota. WILLY Não, há pessoas... há pessoas que conseguem sucesso, Biff falou alguma coisa, depois que eu saí hoje de manhã? LINDA Você não devia ter criticado as atitudes de Biff, especialmente logo depois que ele chegou. Você não deve perder a calma com ele. WILLY Quem é que perdeu a calma com ele? Eu só perguntei se ele estava ganhando algum dinheiro. Isso é criticar? LINDA Mas, meu querido, como é que ele podia ter ganho algum di-nheiro? WILLY (preocupado e zangado) Ele tem uma tendência a ficar por baixo. Ficou uma pessoa esquisita, sempre irritado. Pediu desculpas depois que eu saí? LINDA Ele ficou abatido, Willy. Você sabe o quanto ele admira você. Eu acho que no dia em que Biff se encontrar, vocês dois vão ficar mais felizes e não vão brigar mais. WILLY Como é que ele pode encontrar a si mesmo numa fazenda? Isso lá é vida? Vai ser o que, vaqueiro? No começo, quando ele era mais moço, eu pensei: está certo, não há mal algum em um rapaz pular de emprego pra emprego até decidir o que quer. Mas isso já faz mais de dez anos e ele não ganha nem trinta e cinco dólares por semana! 265

LINDA Ele está procurando o caminho dele, Willy. WILLY Pois já devia ter achado. Não saber o que se quer da vida, com trinta e quatro anos, é uma desgraça! LINDA Psst. . . WILLY O problema é que ele é preguiçoso, isso sim ! LINDA Willy, por favor. . . WILLY Meu filho é um vagabundo preguiçoso ! LINDA Eles estão dormindo. Vá comer qualquer coisa, vá. WILLY Por que é que ele veio pra cá? Eu só queria saber o que é que ele veio fazer aqui. LINDA Não sei. Acho que ele ainda está desorientado, Willy. Acho que está muito desorientado. WILLY Biff Loman está desorientado. No maior país do mundo, um jovem com tanto. . . com tanto charme, está desorientado. E com a capacidade de trabalho que ele tem! Porque Biff tem uma coisa: ele não é preguiçoso. LINDA Claro que não. 266

WILLY (piedoso e decidido) Eu vou falar com ele amanhã de manhã. Uma conversa calma e tranqüila. Vou arranjar para ele um emprego de caixeiro-via-jante. Ele teria sucesso num instante! Meu Deus! Lembra como todo mundo vivia à volta dele no tempo do ginásio? Bastava ele sorrir para alguém e pronto! Todo mundo ficava radiante ! Quando ele andava pela rua. . . (Perde-se nos próprios pensamentos.) LINDA (procurando trazê-lo à realidade) Willy, querido, eu comprei hoje um tipo novo de queijo, sabe? Queijo batido. WILLY Suíço? LINDA Não, americano. WILLY Por que você compra queijo americano, quando sabe que eu só gosto de queijo suíço? LINDA Eu pensei que você gostasse de variar . . . WILLY Não quero variar nada! Quero queijo suíço ! Por que você vive me contrariando? LINDA (num sorriso meio falso) Queria fazer-lhe uma surpresa. WILLY Por que é que você não abre a janela? Pelo amor de Deus! 267

LINDA (com infinita paciência) Estão todas abertas, meu querido. WILLY O jeito que eles prenderam a gente aqui dentro. Janela e tijolo, tijolo e janela. LINDA Foi uma bobagem não termos comprado o terreno vizinho. WILLY A rua está cheia de carros. Não se respira um pingo de ar fresco por aqui. A grama não cresce mais e a gente não consegue plantar nem uma cenoura no quintal. Deviam fazer uma lei proibindo edifícios de apartamentos. Você se lembra daquelas duas árvores lindas que havia aqui? Lembra? Quando Biff e eu penduramos o balanço entre elas? LINDA Era como se a gente morasse a quilômetros de distância da cidade. WILLY Deviam botar na cadeia o construtor que derrubou essas árvo-res. Destruíram o bairro inteiro. (Perdido) Cada vez penso mais naqueles tempos, Linda. Nesta época do ano, havia lila-zes e glicínias. Depois, era a vez das peônias e dos narcisos. Como este quarto vivia perfumado! LINDA Bom, a verdade é que as pessoas têm que morar em algum lugar. WILLY Não é isso; é que agora há mais gente. LINDA Não, não é que haja mais gente, é que. . . 268

WILLY Há mais gente! É isso que está destruindo este país! Ninguém controla mais a população. A competição é terrível! Você não sente o mau cheiro que vem desse prédio daí? E do outro, ali do outro lado? Como é possível bater um queijo? (Na última frase de Willy, Biff e Happy levantam-se de suas camas e prestam atenção.) LINDA Vá provar o queijo. E não faça barulho. WILLY (virando-se para ela, com um sentimento de culpa) Você não está preocupada comigo, não é, meu bem? Biff O que é? HAPPY Escuta! LINDA É você que se preocupa demais. WILLY Você é a base na qual me apoio, Linda. LINDA Você tem que descansar, meu querido. Você se preocupa de-mais. WILLY Eu não vou mais brigar com ele. Se ele quiser voltar pro Texas, ele que vá. LINDA Ele vai encontrar o seu caminho. 269

WILLY Eu sei disso. Alguns homens só fazem sucesso mais tarde na vida. Como Thomas Edison, eu acho. Ou B. F. Goodrich. Um deles era surdo. (Dirige-se à porta.) Eu confio em Biff; aposto qualquer coisa nele. LINDA E, Wiily,. . . se domingo fizer um dia bonito, vamos passear um pouco. Podemos abrir o pára brisa, depois fazer um pique-nique. . . WILLY Não, os pára-brisas desses carros modernos não abrem. LINDA Mas você o abriu hoje. WILLY Eu? Eu não. (Pára.) Que coisa mais estranha! Mas não é nota vel? (Interrompe-se perplexo e alarmado. O som da flauta surge distante.) LINDA O que foi, querido? WILLY Mas é uma coisa notável. . . LINDA O que, meu bem? WILLY Eu estava pensando no Chevrolet. . . (Pequena pausa.) Mil no-vecentos e vinte e oito. . . quando eu tinha aquele Chevrolezi nho vermelho. . . (Pára.) Não é engraçado? Eu podia jurar que hoje eu estava guiando o Chevrolet. 270

LINDA Não tem nada de mais. Alguma coisa fez você se lembrar dele. WILLY É formidável. . . Você se lembra daquele tempo? Como Biff cuidava daquele carro? O homem da agência nem acreditou que o carro já tinha rodado mais de cem mil quilômetros! (Ba-lança a cabeça.) Heh ! (Para Linda) Pode ir dormindo, já volto já. (Sai do quarto.) HAPPY (a Biff) Meu Deus, acho que ele bateu com o carro de novo ! LINDA (falando com Willy) Cuidado com as escadas, querido! O queijo está na prateleira do meio! (Ela se volta, vai à cama, apanha o paletó dele e sai do quarto.) (A luz cresce no quarto dos rapazes. Sem que se possa vê-lo, ouve-se a voz de Willy murmurando "mais de cem mil quilômetros " e uma risadinha. Biff sai da cama, vem um pouco à frente e presta atenção. Biffé dois anos mais velho que seu irmão Happy. Tem boa aparência, mas está meio abatido e parece inseguro. Não teve muito sucesso, e seus sonhos são maiores e menos aceitáveis que os de Happy. Happy é alto e forte. Nele a sexualidade é como uma cor visível, ou como um aroma que muitas mulheres sentiram. Assim como seu irmão, ele está meio perdido, mas como nunca se permitiu encarar o fracasso cara a cara, está mais confuso, embora pareça mais contente.) HAPPY (saindo da cama) Se ele continua assim, vão acabar cassando a licença dele. Ele está me deixando nervoso, sabe, Biff. 271

Biff Está perdendo a visão. HAPPY Não, outro dia eu saí com ele no carro. Ele vê muito bem. É que ele se distrai, entende? Pára quando o sinal está verde e atravessa com o sinal vermelho. (Ri um pouco.) Biff Talvez seja daltòníco. HAPPY Não, que é isso? Ele distingue muito bem as cores. Você sabe disso. Biff (sentando-se na cama) Bom, vou tratar de dormir. HAPPY Você não está mais chateado com ele, está, Biff? Biff Acho que ele está bem. WILLY (abaixo deles, na sala) Sim senhor, cento e trinta mil quilômetros! Centro e trinta e três! Biff Você está fumando? HAPPY (apresentando um maço) Quer um? Biff (pegando um) Não consigo dormir com cheiro de sarro. 272

WILLY Como ele fazia aquele carro brilhar! HAPPY (muito emocionado) Não é bacana, Biff? Nós dois dormindo aqui de novo neste quarto? Nessas velhas camas? (Dá um tapa na cama.) Quanta conversa a gente já teve aqui? Toda a nossa vida. Biff É. Um montão de sonhos e projetos. HAPPY (numa risada forte, e masculina) Umas quinhentas mulheres gostariam de saber o que a gente conversou aqui. (Os dois riem um pouco.) Biff Lembra daquela tal Betsy não sei das quantas? Aquela gran-dona. . . como era o nome dela mesmo? HAPPY (penteando o cabelo) Aquela do cachorrinho? Biff Essa mesma. Fui eu que o levei lá, lembra? HAPPY Claro, foi a minha primeira vez. Rapaz, era uma festa! (Riem muito.) Você me ensinou tudo que eu sei sobre mulher. No duro mesmo. Biff Você era meio tímido. Especialmente com as garotas. HAPPY Ainda sou, Biff. Biff Ora, o que é isso. 273

HAPPY É sim, é que eu me controlo, só isso. Acho que eu fiquei menos tímido e você ficou mais. O que aconteceu, Biff? Cadê aquela alegria, aquela confiança que você tinha? (Bate no joelho de Biff. Este se levanta e caminha pelo quarto.) O que foi? Biff Por que o papai fica me gozando o tempo todo, hein? HAPPY Ele não goza você, ele ... Biff Tudo que eu digo ele recebe com um ar de gozação. Não posso nem chegar perto dele. HAPPY Ele só quer que você tenha sucesso, só isso. Há muito tempo que eu queria falar com você a respeito dele, Biff. Alguma coisa está acontecendo com ele. Ele anda falando sozinho. Biff Eu percebi hoje de manhã. Mas acho que ele sempre foi um pouco assim. HAPPY Mas não tanto como agora. Fiquei tão preocupado que mandei-o descansar na Flórida. E quer saber de uma coisa? A maior parte do tempo ele está falando com você. Biff Que é que ele diz de mim? HAPPY Não dá pra perceber. 274

Biff Que é que ele diz de mim? HAPPY Acho que é porque ele vê você assim, sem um emprego fixo, meio no ar... Biff Há outras coisas que o deprimem, Happy. HAPPY Como assim? Biff Nada, nada. Mas não jogue toda a culpa em mim. HAPPY Mas acho que se você começasse a trabalhar mesmo. . . quer dizer, você acha que tem algum futuro nessa fazenda? Biff Quer saber de uma coisa, Happy? Eu não sei o que quer dizer o futuro. Eu não sei o que é que eu deveria querer. HAPPY Como assim? Biff Depois que eu saí do ginásio, eu passei seis ou sete anos procu-rando encontrar a mim mesmo. Fui balconista, caixeiro-via jante, vendedor disso ou daquilo. E é uma vida sem sentido. Entrar naquele metrô num dia de sol. Devotar uma vida inteira a verificar o estoque, telefonar, vender ou comprar. Sofrer du-rante onze meses e meio num ano pra depois ter quinze dias de férias, quando tudo que você deseja é viver ao ar livre, sem camisa. E ser obrigado a passar pra trás o sujeito que está na tua frente. E é assim que se constrói um futuro. 275

HAPPY E você gosta dessa fazenda? Está contente lá? Biff (em crescente agitação) Happy, desde que eu saí de casa, antes da guerra, tive uns vinte ou trinta empregos diferentes, e só depois eu percebia que era tudo a mesma coisa. Cuidei de gado em Nebraska, andei por Dakota, Arizona, e agora o Texas. Acho que é por isso que agora eu voltei pra casa, porque eu percebi. Essa fazenda em que eu trabalho . . . agora lá é primavera. E eles têm uns quinze potrinhos novos. Acho que não há nada mais bonito ou com tanta ternura do que ver uma égua com seu potrinho que aca-bou de nascer. E agora está meio frio por lá. Está frio e é pri-mavera. E sempre que a primavera chega até mim, meu Deus do céu, eu tenho a impressão de que não estou caminhando pra lugar nenhum! Que vida é essa, ficar brincando com cavalos, ganhando vinte e oito dólares por semana? Eu tenho trinta e quatro anos de idade, devia estar cuidando de meu futuro. E é aí que eu volto correndo para casa. E agora que estou aqui, não sei o que fazer da minha vida. (Uma pausa.) Eu sem pre fiz questão de não desperdiçar a minha vida e, toda vez que eu venho pra cá, eu penso que é exatamente isso que eu estou fazendo. HAPPY Você é um poeta, Biff. Você é um idealista! Biff Não, eu sou é muito confuso. Acho que eu devia me casar, sei lá. Ser mais responsável. Acho que esse é o meu problema. Sou como uma criança. Não sou casado, não tenho um emprego fixo, eu sou. . . sou como um menino. E você, Happy? Você vai bem, não vai? Você está contente? HAPPY Eu? Eu não! 276

Biff Mas por quê? Você está ganhando dinheiro, não está? HAPPY (caminhando com energia) Minha única esperança é que o chefe da seção morra. E vamos supor que eu fique sendo o chefe da seção. Eu até que gosto dele, ele acaba de construir uma casa formidável em Long Is-land. Viveu lá dois meses, vendeu, e já está construindo outra. Depois que uma casa fica pronta, ele não consegue viver nela. E eu sei que é isso que aconteceria comigo. Eu não sei para que ou por que eu estou trabalhando. De vez em quando eu fico sentado no meu apartamento, sozinho. E penso no aluguel que eu pago. E é tudo uma loucura. Mas é tudo que eu sempre quis. Um apartamento, um carro, uma porção de garotas. E mesmo assim, eu me sinto solitário. Biff (com entusiasmo) Escute, por que você não vem comigo pro Texas? HAPPY Nós dois juntos, hein? Biff Claro, quem sabe a gente não podia comprar uma fazendola? Criar gado, usar os músculos. Gente como nós devia trabalhar ao ar livre. HAPPY (avidamente) "Os Irmãos Loman", hein? Que tal? Biff (cheio de afeição) Claro, a gente seria conhecido em toda a região! HAPPY (encantado) Eu vivo sonhando com isso, Biff. Às vezes eu tenho vontade de tirar o paletó naquela loja e dar umas porradas no chefe da seção. Eu sei que sou mais forte do que qualquer cara por 277

ali, sou capaz de correr mais, de saltar mais alto, e ainda assim tenho que ficar recebendo ordens daqueles cachorros filhos da puta, até um ponto em que eu não agüento mais ! Biff Escuta, rapaz, eu sei que se você viesse comigo eu ficaria feliz por lá. HAPPY (cheio de entusiasmo) Sabe o que é Biff, eu vivo rodeado de uma gente tão falsa, que até os meus ideais ficam menores. Biff Menino, nós dois juntos íamos apoiar um ao outro, íamos con-fiar um no outro. HAPPY Poxa, se eu ficasse do seu lado. . . Biff Happy, o problema é que nós dois não fomos feitos para ganhar dinheiro. Eu não sei como fazer isso. HAPPY Nem eu! Biff Então vamos embora! HAPPY O único problema é o seguinte: o que é que a gente pode fazer lá? Biff Mas veja o seu amigo. Constrói uma casa e não tem paz de espírito para viver nela.

HAPPY É, mas, quando ele entra na loja, todo mundo abre alas. São cinqüenta e dois mil dólares por ano que entram por aquela porta giratória, e mesmo assim eu tenho mais valor no meu dedo mindinho do que ele na cabeça. Biff Mas você acabou de dizer. . . HAPPY Eu tenho que mostrar pra esses chefes de seção, diretores, exe-cutivos, que Hap Loman vale mais do que eles. Eu quero entrar na loja do jeito que eles entram. Depois disso, eu vou com você. Eu juro que nós dois ainda vamos ficar juntos. Mas veja só as duas desta noite. Não eram espetaculares? Biff Eram. As melhores que eu tive em muitos anos. HAPPY Eu as consigo na hora que eu quero. Toda vez que estou cha-teado. O único problema é que é como jogar boliche, eu acho. Vou com uma, vou com outra, e não significam nada para mim. E você? Também tem uma porção? Biff Não. . . eu queria encontrar uma garota bacana. . . com alguma coisa por dentro. HAPPY É com isso que eu sonho. Biff Você? Que é isso ! Você não ia nem aparecer em casa. HAPPY Ia, sim ! Mas eu quero alguém de caráter, de substância. Que 279

nem mamãe, sabe? Você vai me achar um canalha quando eu lhe disser isso. Essa garota que ficou comigo hoje, a Charlotte, vai se casar no mês que vem. (Experimenta seu chapéu novo.) Biff Não brinca! HAPPY No duro! O sujeito tá na bica pra ser vice-presidente da em-presa. Eu não sei o que me dá, acho que é um senso de compe-tição muito desenvolvido, mas eu dei em cima dela, comi a menina e ela agora não larga do meu pé. E é o terceiro execu-tivo que eu passo pra trás. Não é esquisito? E ainda por cima, eu vou ao casamento deles ! (Com alguma indignação, mas rindo) É como essa questão de suborno. De vez em quando os fabricantes me oferecem uma nota de cem dólares pra fazer um pedido qualquer de mercadoria. Você sabe como eu sou honesto, mas é que nem essa garota. Eu fico até com raiva de mim mesmo. Porque eu não quero nada com ela, mas mesmo assim eu dou em cima, apanho. . . e no fundo eu gosto disso. Biff Vamos dormir. HAPPY No fim das contas, não decidimos nada, não é? Biff Acabei de ter uma idéia do que eu vou tentar. HAPPY O que é? Biff Lembra do Bill Oliver? 280

HAPPY Claro. Ele agora é importante. Você quer trabalhar pra ele de novo? Biff Não, mas quando eu saí de lá, ele me disse uma coisa. Botou a mão no meu ombro e disse: " Biff, se um dia você precisar de mim, me procure". HAPPY Eu me lembro. Isso é bom. Biff Acho que eu vou falar com ele. Eu acho que se arranjasse dez mil dólares, ou mesmo sete ou oito mil, eu poderia comprar uma bela fazendinha. HAPPY Aposto que ele vai ajudá-lo. Porque ele tinha a maior conside-ração por você, Biff. Aliás, todo mundo tem. Quem é que não gosta de você? Por isso é que eu digo pra você voltar pra cá. A gente racha o apartamento. E qualquer garota que você qui-ser, já sabe. Biff Não, se eu tivesse uma fazendinha eu faria aquilo que gosto e ainda seria alguém. Mas eu fico pensando: será que Oliver ainda acha que fui eu quem roubou aquelas bolas de basquete? HAPPY Ah, ele já deve ter se esquecido disso há muito tempo. Já faz quase dez anos. Você é muito sensível. E além do mais, ele não chegou a despedir você. Biff Mas acho que ele ia me despedir. Acho que foi por isso que eu pedi demissão antes. Eu nunca tive certeza se ele sabia ou 281

não. Mas a verdade é que ele tinha muita confiança em mim. Eu era o único que tinha a chave da loja. WILLY (embaixo) Você vai lavar o motor, Biff? HAPPY Pssiu ! ( Biff olha para Happy, que olha para baixo, prestando atenção. Willy está murmurando na sala.) Ouviu? (Prestam atenção. Willy ri alegremente.) Biff (zangado) Será que ele não percebe que mamãe pode escutar? WILLY Cuidado pra não sujar o suéter, Biff! (Uma expressão dolorosa perpassa no rosto de Biff.) HAPPY É horrível! Por isso é que eu queria que você ficasse em casa. Por favor! Você arranja um trabalho por aqui. Você tem que ficar por aqui, eu não sei mais o que fazer com ele. Está fi-cando, cada dia mais difícil. WILLY Como brilha esse carro ! Biff Mamãe está ouvindo! WILLY Não me diga, Biff, você vai sair com uma garota? Ótimo! HAPPY Vamos dormir. Mas você fala com ele amanhã, está bem? Biff (indo relutantemente para a cama) Com mamãe em casa ! 282

HAPPY (deitando-se) Você devia ter uma boa conversa com ele. (A luz do quarto deles começa a se apagar.) Biff (para si mesmo, já na cama) Esse velho estúpido, egoista. . . (A luz do quarto deles se apaga. Antes que tenham acabado de falar, percebe-se vagamente a forma de Willy, na cozinha às escuras. Ele abre a geladeira e retira de lá uma garrafa de leite. Os prédios de apartamentos desaparecem, e toda a casa e tudo que a rodeia se cobre de folhas. A música se insinua enquanto as folhas aparecem.) WILLY Mas cuidado com essas garotas, Biff. Só lhe digo isso. Cuidado. Não prometa nada. Nada de promessas. Porque uma garota sempre acredita naquilo que os homens dizem para ela e você é muito moço. Biff. Você é muito moço para falar a sério com uma garota. (Luz na cozinha. Enquanto fala, Willy vai fechando a porta da geladeira e vem até a mesa da cozinha. Põe leite num copo. Está totalmente imerso em seus pensamentos, sorrindo suave-mente.) Muito moço. Primeiro você tem que estudar. Depois que você estiver formado, vai haver um monte de garotas para um rapaz como você. (Sorri para uma das cadeiras.) Mas é mesmo? As garotas pagam para ir com você? (Ri.) Rapaz, você deve estar fazendo um sucesso! (Aos poucos, Willy vai se dirigindo fisicamente para um ponto no palco, falando através da parede da cozinha, e sua voz vai subindo de volume até o tom normal de conversa.) 283

Eu estava só pensando por que é que você limpa esse carro com tanto cuidado. Ah, não se esqueçam das calotas. As calo-tas devem ser limpas com camurça. Happy, para os vidros é melhor usar jornal. Mostra pra ele como é que se faz, Biff! Aprendeu, Happy? Faz uma almofada com o jornal. Isso! É isso mesmo, está muito bom. Muito bom, Happy. (Faz uma pausa, aprova com a cabeça durante alguns segundos, depois levanta a cabeça.) Biff, assim que a gente tiver tempo, temos que cortar esse ramo de árvore aí em cima da casa. Num dia de temporal ele pode cair em cima do telhado. Vou lhe ensinar como. A gente passa uma corda em volta dele, depois sobe lá com um serrote e acaba com ele. Quando vocês acabarem de limpar o carro, venham para cá que eu trouxe uma surpresa. Biff (fora de cena) O que é, papai? WILLY Não, primeiro acabem de limpar o carro. Nunca se deve aban-donar um trabalho antes de terminá-lo; nunca se esqueçam disso. (Olhando para "as grandes árvores') Biff, nessa última viagem eu vi uma rede linda lá em Albany. Na próxima vez eu vou comprar e depois a gente a instala aí entre essas duas árvores. Não é ótimo? A gente fica se balançando debaixo do arvoredo. . . (Os jovens Biff e Happy surgem do lugar para onde Willy eslava falando. Happy traz uns trapos e um balde de água. Biff, usando um blusão com um grande "S" costurado, traz uma bola de futebol.) Biff (apontando o carro) Que tal, papai? Não parece coisa de profissional? WILLY Formidável. Formidável, meninos. Lindo trabalho. Biff. 284

HAPPY Cadê a surpresa, papai? WILLY No banco de trás do carro. HAPPY Oba! (Sai correndo.) Biff O que é, papai? Diga-me, o que foi que você comprou? WILLY (brincando de lutar boxe com ele) Nada, nada. É uma coisa que eu quero que você tenha. Biff (vira e faz como se fosse sair) O que é, Hap? HAPPY (fora de cena) É um saco de boxe ! Biff Oh, papai! WILLY E tem a assinatura de Gene Tunney ! (Happy entra correndo no palco com o saco.) Biff Puxa, como é que você sabia que a gente queria isso? WILLY Bem, pra exercício não pode ser melhor. HAPPY (com as costas no chão e pedalando) Já reparou como eu estou perdendo peso, papai? 285

WILLY (a Happy) Pular corda também é muito bom. Biff Você já viu a bola de futebol que eu arranjei? WILLY (examinando a bola) Onde é que você arranjou isso? Biff O treinador disse que eu precisava praticar os passes. WILLY Ah, é? Então foi ele que lhe deu a bola? Biff Bem, eu tirei lá do vestiário. (Ri, cúmplice.) WILLY (rindo com ele do roubo) Mas você tem que devolver. HAPPY Eu lhe disse que ele não ia gostar. Biff (zangado) Tá bom, vou devolver! WILLY (interrompendo o início da discussão) Bom, ele tem que treinar com uma bola oficial, não é? (A Biff) O treinador vai até dar-lhe parabéns pela sua iniciativa. Biff Ah, ele vive me dando parabéns o tempo todo, papai. WILLY É porque ele gosta de você. Se fosse outra pessoa que tirasse 286

a bola, ia haver a maior confusão. Qual é a lição que a gente tira disso? Biff Onde é que você foi dessa vez, papai? Nós sentimos a sua falta. WILLY (satisfeito, põe um braço ao redor do ombro de cada rapaz e vem à frente) Sentiram a minha falta, hein? Biff O tempo todo. WILLY É mesmo? Bom, eu vou lhes contar um segredo, meninos. Mas não digam pra ninguém. Qualquer dia vou ter o meu próprio negócio e não vou mais sair de casa. HAPPY Como o tio Charley, não é? WILLY Maior que o tio Charley. Porque o tio Charley não é estimado. Quer dizer, ele é querido, mas não é muito querido. Biff Onde é que você foi dessa vez, papai? WILLY Eu entrei na estrada e segui para o norte. Fui até Providence. Encontrei o prefeito. Biff O prefeito de Providence ! WILLY Estava lá sentado no saguão do meu hotel. 287

Biff E o que foi que ele disse? WILLY Ele disse: "Bom dia!" e eu disse: "O senhor tem aqui uma bela cidade, prefeito". E aí ele tomou café comigo. Depois eu fui a Waterbury. Bela cidade. Tem lá um relógio grande, o famoso relógio de Waterbury. Vendi bastante por lá. Depois. Boston. Boston é o berço da Revolução. Bela cidade. Depois visitei umas outras cidades do Massachusetts, depois Portland, depois Bangor e daí pra casa! Biff Puxa, seria bacana se eu fosse com você uma vez, papai. WILLY No próximo verão. HAPPY No duro? WILLY Vamos nós três e eu vou mostrar todas as cidades. Os Estados Unidos estão cheios de belas cidades e pessoas agradáveis. E todo mundo me conhece, meus filhos; todo mundo me conhece em todos os lugares. As pessoas mais importantes. E quando vocês forem comigo, vão perceber que todas as portas se abrem para nós, por causa de uma coisa, meus filhos: eu tenho ami-gos. Posso estacionar em qualquer rua da Nova Inglaterra e os guardas tratam do meu carro como se fosse deles. No verão que vem, combinado? Biff E HAPPY (juntos) Combinado! WILLY Vamos levar roupa de banho. 288

HAPPY E nós carregamos os seus mostruários, papai! WILLY Isso vai ser fantástico. Eu, entrando pelas lojas de Boston, com meus filhos carregando meus mostruários ! Sensacional! ( Biff se movimenta, treinando uns passes.) WILLY Você está nervoso com esse jogo, Biff? Biff Se você for, não. WILLY Que é que se diz de você no colégio, agora que você é o capitão do time? HAPPY Há sempre um montão de garotas atrás dele. Biff (pegando a mão de Willy) Este sábado, papai, vou fazer um lindo gol em sua homenagem. WILLY (dando um beijo em Biff) Puxa, isso eu tenho que contar em Boston ! (Entra Bernard, de bombachas. É mais jovem que Biffe é um rapaz sério, leal e preocupado.) BERNARD Biff, onde é que você se meteu? Você tinha que estudar comigo hoje. WILLY Hei, olha só pro Bernard. Por que você está tão anêmico, ra-paz? 289

BERNARD Ele tem que estudar, tio Willy. O exame é na semana que vem. HAPPY (pulando à volta de Bernard e tocando-o) Vamos lutar um pouco de boxe, Bernard ! BERNARD Biff! (Afasta-se de Happy.) Escuta, Biff, eu ouvi o professor dizer que, se você não estudar matemática, ele vai reprová-lo e você não vai se formar. Eu ouvi! WILLY É melhor você ir estudar com ele, Biff. Vá, vá. BERNARD O professor disse! Biff Ah, papai! Você ainda não viu minhas chuteiras! (Levanta um pé para que Willy veja.) WILLY Puxa, como as letras estão bem feitas! BERNARD (limpando os óculos) Só porque está escrito "Universidade de Virginia" não quer dizer que vão dar o diploma a ele, tio Willy ! WILLY (zangado) Que conversa é essa? Ele tem bolsa pra três universidades e não vão dar o diploma a ele? BERNARD Mas eu ouvi o professor dizer. . . WILLY Não seja chato, Bernard. (Aos filhos) Olhem só que sujeitinho anêmico! 290

BERNARD Tá bem, eu espero você em casa, Biff. (Bernard sai. Os três riem.) WILLY Bernard não é muito querido, é? Biff Ele é querido, mas não é muito querido. HAPPY É isso mesmo, papai. WILLY É isso que eu digo. Bernard pode tirar as melhores notas no colégio, mas quando entrar no mundo dos negócios, vocês vão ficar cinco vezes na frente. É por isso que eu agradeço a Deus Todo-Poderoso vocês parecerem dois Adônis. Porque, no mundo dos negócios, o homem que tem boa aparência, o ho-mem que desperta interesse é o homem que faz sucesso. Sejam queridos e vocês nunca fracassarão. Vejam o meu caso, por exemplo. Eu nunca tenho que ficar numa fila para ver um com-prador. "Willy Loman está aqui", e pronto. Entro logo. Biff Você acabou com eles, papai? WILLY Deixei todo mundo besta em Providence e conquistei Boston. HAPPY (de costas, pedalando de novo) Eu estou perdendo peso, percebeu, papai? (Linda entra, como era antes, com uma fita no ca-belo, trazendo uma cesta de roupa.) 291

LINDA (com energia juvenil) Como vai, querido? WILLY Como vai, meu anjo? LINDA E o Chevrolet? WILLY Linda, o Chevrolet é o melhor carro que jamais se construiu. (Aos meninos) Desde quando sua mãe carrega a cesta de roupa? Biff Pegue desse lado, rapaz ! HAPPY Onde é pra pôr, mamãe? LINDA Pendurem no varal. E depois vá ver os seus amigos, Biff. O porão está cheio de meninos sem saber o que fazer. Biff O papai chegou, eles que esperem. WILLY (rindo satisfeito) É melhor você ir lá e dizer a eles o que fazer, Biff. Biff Acho que vou mandar que eles limpem o forno. WILLY Boa idéia. 292

Biff ("atravessa" a parede da cozinha, vai a uma porta do fundo e chama os amigos) Pessoal, todo mundo limpando o forno ! Eu já desço já. VOZES OK! Tá legal! Certo! Biff Vamos lá, Happy, segure aí. (Saem com a cesta.) LINDA Como obedecem! WILLY Bom, ele é um líder. Olhe, eu estava vendendo milhares de dó-lares, mas tive que voltar para casa. LINDA Claro, todo mundo vai ver esse jogo. Você vendeu alguma coisa? WILLY Vendi um bruto de quinhentos em Providence e setecentos em Boston. LINDA Não ! Espera um pouco, eu tenho um lápis. (Tira papel e lápis do bolso do avental.) Então, sua comissão é de... duzentos . . . Nossa ! Duzentos e doze dólares! WILLY Bom, eu ainda não calculei direito, mas. . . LINDA Quanto você fez? WILLY Bom, eu fiz... acho que uns cento e oitenta em Providence. 293

Não, não chegou a. . . mais ou menos duzentos dólares na via-gem toda. LINDA (sem vacilar) Duzentos bruto. Isso faz . . . (Calcula.) WILLY O problema é que três lojas estavam fechadas para balanço. Senão eu teria batido todos os recordes. LINDA Bom, são setenta dólares e pouco. Está muito bom. WILLY Quanto é que estamos devendo? LINDA Bom, primeiro tem dezesseis dólares da geladeira. . . WILLY Por que dezesseis? LINDA Rompeu-se a correia do ventilador; custou um dólar e oitenta. WILLY Mas essa geladeira é nova. . . LINDA O homem disse que é assim mesmo. Tem que trocar a correia de vez em quando. (Passam "através" da parede para a cozinha.) WILLY Tomara que eles não tenham enganado a gente. 294

LINDA É a geladeira mais anunciada de todas! WILLY Eu sei, é uma boa geladeira. Que mais? LINDA Nove dólares e sessenta para a máquina de lavar. E no dia quinze vence a prestação do aspirador. Três e meio. E faltam pagar vinte e um dólares do conserto do telhado. WILLY Acabaram-se as goteiras? LINDA Claro, eles fizeram um trabalho ótimo. E você ainda tem que pagar o carburador para Frank. WILLY Eu não vou pagar a esse sujeito! Essa porcaria de Chevrolet, deviam proibir a fabricação desse carro! LINDA Bom, a gente deve a ele três dólares e meio. Ao todo, é mais ou menos cento e vinte dólares até o dia quinze. WILLY Cento e vinte dólares ! Meu Deus, se os negócios não melhora-rem, eu não sei o que vou fazer ! LINDA Ora, na semana que vem você venderá mais. WILLY Ah, na semana que vem eu acabo com eles ! Eu vou a Hartford. 295

Sou muito querido em Hartford. Sabe qual é o problema, Linda? Acho que as pessoas não me levam a sério. (Vem para a frente.) LINDA Ora, o que é isso. WILLY Percebo assim que eu entro numa loja. Parece que eles estão rindo de mim. LINDA Mas por quê? Por que razào eles iriam rir de você? Não diga uma coisa dessas, Willy. (Willy vem ao proscênio. Linda entra na cozinha e começa a serzir meias.) WILLY Não sei por que razão, mas ninguém me liga. Ninguém presta atenção em mim. LINDA Mas você está indo tão bem, meu querido. Você está ganhando entre setenta e cem dólares toda semana. WILLY Mas tenho que trabalhar dez, doze horas por dia. Outros ho-mens . . . não sei... conseguem muito mais facilmente. Eu não sei porque. . . não consigo me controlar... eu falo de mais. Um homem deve falar pouco, ir direto ao assunto. O Charley, por exemplo. É um homem de poucas palavras, e todo mundo o respeita. LINDA Você não fala demais. Você é mais animado, só isso. 296

WILLY (sorrindo) Bom, eu penso: que diabo, a vida é curta, umas piadinhas não fazem mal a ninguém. (Para si mesmo) Eu brinco demais. (O sorriso desaparece.) LINDA Mas por quê? Você. . . WILLY Eu sou grosso. Acho que tenho um aspecto risível. Eu não lhe disse nada, mas pelo Natal, quando fui visitar F. H. Ste-warte. . . havia um vendedor lá na sala de espera, e quando eu ia entrando ouvi-o dizer alguma coisa como "cavalo marinho". Eu dei uma bofetada nele. Eu não admito uma coisa dessas. Não posso admitir. Mas as pessoas riem de mim. Eu sei disso. LINDA Meu querido . . . WILLY Eu tenho que superar isso. Eu sei que tenho que superar isso. Acho que eu me visto fora de moda. LINDA Willy, meu querido, você é o homem mais atraente do mundo... WILLY Não, Linda, eu... LINDA Para mim você é. (Pequena pausa.) O mais atraente. (Do escuro, ouve-se uma risada de mulher. Willy não se volta, mas a risada continua enquanto Linda fala.) 297

E os meninos, Willy. Poucos homens são tão queridos pelos filhos como você. (Ouve-se música, enquanto, atrás de uma cortina, à esquerda, vê-se vagamente uma mulher se vestindo.) WILLY (com grande sentimento) Você é a melhor mulher do mundo, Linda. Você é uma compa-nheira. As vezes, na estrada, eu tenho vontade de abraçá-la, de apertá-la, de beijá-la até a morte. (A risada agora é mais alta, e ele caminha para uma área iluminada, à esquerda, onde a mulher surgiu atrás da cortina e está de pé, pondo o chapéu, olhando para um "espelho "e rindo.) Porque eu me sinto tão sozinho — especialmente quando os negócios vão mal e eu não tenho ninguém para conversar. Eu fico pensando que eu nunca mais vou vender nada, que não vou conseguir montar um negócio para os meninos. (Ele fala enquanto a mulher continua rindo. Ela se observa diante do "espelho ".) Há tantas coisas eu eu queria conseguir. . . A MULHER A mim? Mas você não me conseguiu, Willy. Eu é que peguei você. WILLY (satisfeito) Ah, você me pegou? A MULHER (que tem a idade de Willy e é bastante bonita) Eu mesma. Eu ficava sentada naquela mesa vendo todo dia os vendedores entrando e saindo. Mas você tem tanto senso de humor ! E a gente se dá muito bem, não é? WILLY Claro, claro . . . (Abraça a mulher.) Por que é que você já vai? 298

A MULHER Já são duas horas. . . WILLY Não, fica aqui. (Atrai a mulher para si.) A MULHER . . . minhas irmãs vão ficar escandalizadas. Quando é que você vai voltar? WILLY Daqui a uns quinze dias. Você vem comigo de novo? A MULHER Claro que sim. Você me faz rir. E me faz bem. (Belisca o braço dele e o beija.) Você é maravilhoso. WILLY Quer dizer que foi você que me pegou, não é? A MULHER Claro. Porque você é tão carinhoso. E brincalhão. WILLY Bom, a gente se vê na próxima vez que eu vier a Boston. A MULHER E eu ponho você em contato com os compradores. WILLY (dando um tapinha nas nádegas dela) Saúde! A MULHER (dá-lhe um tapinha e ri) Você me mata, Willy! (Ele de repente a agarra e beija com paixão.) Você me mata. E obrigada pelas meias. Gosto muito de meias. Boa noite. 299

WILLY Boa noite. E cuida bem disso tudo! A MULHER Oh, Willy! (A mulher sai rindo muito e seu riso se confunde com a risada de Linda. A mulher desaparece no escuro; a área da cozinha se acende. Linda está sentada na mesa, mas agora está remendando umas meias de seda.) LINDA Você é mesmo, Willy. O homem mais atraente do mundo. Não há razão para você se sentir . . . WILLY (saindo da área da mulher e dirigindo se a Linda) Eu vou resolver tudo, Linda, eu ... LINDA Mas não há nada a resolver, querido. Você está indo muito bem, muito melhor que. . . WILLY (vendo as meias) O que é que você está fazendo? LINDA Estou remendando minhas meias. Custam tão caro. . . WILLY (zangado, tirando as meias dela) Não quero ver você remendando meias nesta casa! Joga isso fora! (Linda guarda as meias no bolso do avental.) BERNARD (entra correndo) Onde é que ele está? Se ele não estudar! 300

WILLY (vindo à frente do palco, muito agitado) Você passa as respostas para ele ! BERNARD Eu sempre faço isso nas provas, mas não num exame! Há fis-calização ! Posso até ser preso ! WILLY Onde é que ele está? Vou bater nele! Vou bater ! LINDA É melhor ele devolver essa bola que tirou, Willy! Isso não é bonito! WILLY Biff! Onde é que ele se meteu? Por que é que ele tirou essa bola? LINDA Ele é muito atrevido com as meninas, Willy. Todas as mães se queixam dele! WILLY Eu vou bater nele de chicote! BERNARD Está guiando o carro sem carteira! (Ouve-se a risada da mulher.) WILLY Cale a boca! LINDA As mães das meninas dizem . . . WILLY Cale a boca! 301

BERNARD (saindo) O professor disse que ele é muito convencido. WILLY Vá embora daqui! BERNARD Se ele não se corrige, vai ser reprovado em matemática! (Sai.) LINDA Ele tem razão, Willy, você precisa. . . WILLY (explodindo com ela) Não tem nada de errado com meu filho! Você quer que ele seja um verme igual a Bernard? Biff tem espírito, personalidade. . . (Enquanto ele fala, Linda, quase em lágrimas, sai para a sala. Willy está sozinho na cozinha, deprimido e com os olhos muito abertos. As folhas desapareceram. É noite novamente, e os prédios de apartamento surgem de novo.) Estou cheio disso. Cheio! O que é que ele roubou? Ele vai devolver, não vai? Por que é que ele está roubando? Que foi que eu fiz errado? Em toda a minha vida, eu só ensinei a ele o caminho do bem. (Happy, de pijama, desceu as escadas. Willy subitamente se apercebe da presença dele.) HAPPY Vamos agora, venha. WILLY (sentando-se na cadeira da mesa da cozinha) Por que é que ela tem que encerar o chão sozinha? Cada vez que encera o chão fica exausta. Ela sabe disso. HAPPY Psss. . Calma, papai. Por que você voltou hoje? 302

WILLY Fiquei morrendo de medo. Quase atropelei um garoto em Yon-kers. Meu Deus! Por que eu não fui para o Alaska com o meu irmão Ben daquela vez? Ben! Aquele homem era um gênio! Era o sucesso em pessoa! Que erro ! Ele me implorou que fosse com ele. HAPPY Bom, não adianta nada. . . WILLY Vocês, moleques! Era um homem que começou com a roupa do corpo e terminou com minas de diamantes! HAPPY Só gostaria de saber como ele conseguiu. WILLY Qual é o mistério? O homem sabia o que queria e pronto ! Con-seguiu ! Entrou no meio da selva e quando saiu, com vinte e um anos, estava rico! O mundo é uma ostra, mas não se que-bra uma ostra com punho de renda! HAPPY Papai, eu já disse que vou sustentar você. Não quero que você trabalhe mais. WILLY Você vai me sustentar, ganhando setenta dólares por semana? Com suas mulheres, seu carro, seu apartamento, e você vai me sustentar? Meu Deus do céu, hoje eu não consegui nem ir ali adiante! Onde é que vocês moleques estão com a cabeça? A casa está caindo! Eu não consigo mais guiar um carro ! (Charley apareceu na porta. É um homem corpulento, de fala lenta, lacônico e impassível. Em tudo o que diz, seja o que for, há uma nota de piedade. Tem um robe sobre o pijama e usa chine-los. Entra na cozinha.) 303

CHARLEY Tudo bem? HAPPY Tudo, Charley, tudo bem. WILLY O que é? CHARLEY Ouvi barulho. Pensei que tivesse acontecido alguma coisa. Será que não se pode fazer nada com essas paredes? Se alguém es-pirra aqui, na minha casa fica tudo voando. HAPPY Vamos pra cama, papai. Venha. (Charley faz um sinal para que Happy se vá.) WILLY Vá você, eu não estou cansado agora. (Happy sai.) (A Charley) Que é que você está fazendo de pé a essa hora? CHARLEY (sentando-se do outro lado da mesa, em frente a Willy) Não pude dormir. Estou com azia. WILLY É, você não sabe comer. CHARLEY Eu como com a boca. WILLY Nada, você é muito ignorante. Você devia se instruir sobre vi-taminas e coisas assim. CHARLEY Vamos jogar um pouco. Quem sabe você se cansa? 304

WILLY (hesitante) Está bem. Tem o baralho aí? CHARLEY (tirando um baralho do bolso) Tenho. Que é que têm as vitaminas? WILLY (embaralhando) Fortificam os ossos. Química. CHARLEY Bom, mas azia não tem osso. WILLY Que é que você sabe de química? Você não sabe nada de nada. CHARLEY Calma. WILLY Não fale de um assunto que você não conhece. (Estão jogando. Pausa.) CHARLEY Por que você está em casa? WILLY O carro. Enguiçou. CHARLEY Ah. (Pausa.) Eu gostaria de ir até a Califórnia. WILLY Sei. CHARLEY Quer um emprego? 305

WILLY Eu tenho um emprego. Você sabe disso. (Pausa.) Mas por que merda você está me oferecendo um emprego? CHARLEY Não se ofenda. WILLY Não me ofenda. CHARLEY Isso não tem sentido. Você não precisa continuar assim. WILLY Eu tenho um bom emprego. (Pausa.) Por que é que você vem aqui, hein? CHARLEY Você quer que eu vá embora? WILLY (depois de uma pausa, murcho) Eu não compreendo. Ele vai voltar de novo pro Texas. O que quer dizer isso? CHARLEY Deixe-o ir. WILLY Eu não tenho nada para dar a ele, Charley. Absolutamente nada. CHARLEY Ele não vai morrer de fome. Nenhum deles morre de fome. Esqueça esse rapaz. WILLY E o que terei então para recordar? 306

CHARLEY Você leva tudo muito a sério. Que vá pro inferno! Se a gente quebra uma garrafa ninguém devolve o depósito. WILLY Isso é fácil de você dizer. CHARLEY Não é fácil para eu dizer. WILLY Você viu o forro que eu pus no teto da sala? CHARLEY Vi, é uma beleza. Pra mim é um mistério. Como é que se põe um forro? WILLY O que importa? CHARLEY Bom, me explica. WILLY Você está querendo pôr um forro? CHARLEY Como é que eu posso pôr um forro? WILLY Então pra que é que está me enchendo com isso? CHARLEY Já se ofendeu de novo. WILLY Um homem que não sabe trabalhar com uma ferramenta não é um homem. Você é um chato. 307

CHARLEY Não me chame de chato, Willy. (Tio Ben, carregando uma maleta e um guarda-chuva, entra no palco, vindo do canto direito da casa. É um homem impassível, sessentão, de bigodes. Tem um ar autoritário. Está seguro a respeito de seu destino e há uma aura de lugares distantes que o envolve. Entra exatamente enquanto Willv fala.) WILLY Estou ficando muito cansado, Ben. (Ouve-se a música de Ben. Ele olha tudo à sua volta.) CHARLEY ótimo, jogue um pouco mais. Você vai dormir melhor. Você me chamou de Ben? (Ben olha para seu relógio.) WILLY É engraçado. Por um instante você me lembrou meu irmão Ben. BEN Tenho muito pouco tempo. (Passeia pelo lugar, inspecionando. Willy e Charley continuam jogando.) CHARLEY Você nunca mais ouviu falar dele? Desde aquele tempo? WILLY Linda não lhe contou? Há uns quinze dias recebemos da África uma carta da mulher dele. Ele morreu. .308

CHARLEY Ah. BEN (com um risinho) Então isso é que é o Brooklin ! CHARLEY Quem sabe você não vai receber uma parte da herança? WILLY Não, ele deixou sete filhos. Tive uma oportunidade única com esse homem . . . BEN Tenho que pegar o trem, William. Há muitos terrenos que eu tenho que ver no Alaska. WILLY Claro! Se eu tivesse ido com ele para o Alaska, tudo teria sido diferente. CHARLEY Ora, você ia morrer de frio por lá. WILLY Ora, não diga bobagens. BEN As oportunidades são imensas no Alaska, William. Não en-tendo como você não está lá. WILLY Eu sei, imensas. CHARLEY O quê? WILLY Foi o único homem que eu encontrei que sabia as respostas. 309

CHARLEY Quem? BEN Como vão vocês? WILLY (recolhendo uma aposta e sorrindo) Muito bem, muito bem. CHARLEY Você está com sorte hoje. BEN E mamãe? Mora com você? WILLY Não, ela já morreu há muito tempo. CHARLEY Quem? BEN Que pena ! Mamãe era uma senhora finíssima. WILLY (a Charley) O quê? BEN Tinha esperança de vê-la. CHARLEY Quem morreu? BEN E papai? Que fim levou? WILLY (enervado) Que conversa é essa, quem morreu? 310

CHARLEY (recolhendo a aposta) O que foi que você disse? BEN (olhando o relógio) William, já são oito e meia! WILLY (como que para sair da confusão, pega a mão de Char- ley) Quem ganhou fui eu ! CHARLEY Mas eu que baixei o ás... WILLY Se você não sabe jogar, aprenda! CHARLEY (levantando) Mas o ás era meu ! WILLY Já estou cheio! Cheio ! BEN Quando foi que mamãe morreu? WILLY Faz tempo. Você nunca soube jogar. CHARLEY (apanha as cartas e vai à porta) Está bem ! A próxima vez eu trago um baralho com cinco car-tas. WILLY Eu não jogo essa espécie de jogo ! CHARLEY (virando-se para ele) Você devia ter vergonha! 311

WILLY Ah,é? CHARLEY É sim! (Sai.) WILLY (batendo a porta atrás dele) Ignorantão! BEN (enquanto Willy vem a ele através da parede da cozinha) Então você é William. WILLY (apertando a mão de Ben) Ben! Estou esperando você há tanto tempo ! Qual é a resposta? Como foi que você conseguiu? BEN Ah, existe uma história atrás disso. (Linda entra no palco, como antigamente, carre-gando a cesta de roupa.) LINDA Esse é Ben? BEN (galantemente) Como está, minha querida? LINDA Onde você esteve estes anos todos? Willy sempre perguntava se você.... WILLY (afastando impacientemente Ben de Linda) Onde está papai? Você não foi com ele? Como é que você começou? BEN Bem, eu não sei o quanto você se lembra. . . 312

WILLY Ben, eu era um garotinho, eu tinha três ou quatro anos . . . BEN Três anos e onze meses. WILLY Que memória! BEN Tenho muitos negócios e nenhum livro. WILLY Eu lembro de mim sentado debaixo de um vagão em. . . era Nebraska? BEN Era na Dakota do Sul, e eu dei a você um ramo de flores. WILLY Eu me lembro de você caminhando numa larga estrada. BEN (rindo) Eu ia procurar papai no Alaska. WILLY E onde está ele? BEN Nessa ocasião eu tinha uma deficiente visão da geografia, Wil-Uam. Depois de alguns dias eu percebi que estava me dirigindo para o sul e, assim, em vez de Alaska, eu terminei na África. LINDA África! 313

WILLY A Costado Ouro! BEN Minas de diamante. LINDA Minas de diamante! BEN Isso, minha querida. Mas eu tenho muito pouco tempo . . . WILLY Não ! Meninos ! Meninos! (Aparecem os jovens Biffe Happy.) Prestem atenção: este é seu tio Ben, um grande homem ! Conte a eles, Ben! BEN Muito bem, meninos, quando eu tinha dezessete anos entrei na selva e, quando eu tinha vinte e um, saí dela. (Ri.) E estava podre de rico. WILLY (aos meninos) Estão vendo o que eu vivo dizendo? Tudo pode acontecer! BEN (olhando o relógio) Tenho encontros marcados. WILLY Não, Ben ! Por favor, fale de papai. Quero que meus filhos sai-bam de que estirpe descendem. Só me lembro de um homem com uma barba grande, eu estava no colo de mamãe, à volta de uma fogueira e se ouvia música. BEN A flauta. Papai tocava flauta. 314

WILLY É isso, a flauta, é isso mesmo ! (Ouve-se uma outra música.) BEN Papai era um grande homem, um homem de coração selvagem. Partíamos de Boston, ele botava a família toda dentro de um vagão e todo mundo viajava através do país: Ohio, Indiana. Michigan, Illinois e todos os Estados do leste. A gente parava nas cidades e vendia as flautas que ele ia construindo pelo ca-minho. Grande inventor, nosso pai. Com uma bugiganga ga-nhava mais dinheiro numa semana do que um homem como você pode ganhar a vida inteira. WILLY E exatamente assim que eu estou educando meus filhos, Ben. Inflexíveis e simpáticos. Homens de verdade. BEN É mesmo? (A Biff) Dê um soco aqui, menino. Com toda a força. (Mostra o estômago.) Biff Oh, não, senhor. BEN (tomando posição de boxe) Vamos, ataque. (Ri.) WILLY Vamos lá, Biff! Vá em frente ! Mostre a ele ! Biff OK! (Fecha os punhos e começa.) LINDA (a Willy) Por que é que ele tem de lutar, querido? 315

BEN (lutando com Biff) Bom menino, bom menino! WILLY Que tal, Ben ? HAPPY Dá uma esquerda nele, Biff! LINDA Por que estão lutando? BEN Bom menino! (Subitamente avança, dá uma rasteira em Biff derruba-o e coloca aponta do guarda-chuva no olho dele.) LINDA Cuidado! Biff Ei! BEN (batendo no joelho de Biff) Nunca jogue limpo com um estranho, menino. Desse jeito você nunca vai conseguir sair da selva. (Toma a mão de Linda e faz uma reverência.) Foi um prazer e uma honra conhecer você, Linda. LINDA (retirando a mão friamente, amedrontada) Boa viagem, Ben. BEN (a Willy) E boa sorte com o seu ... o que é que você faz mesmo? WILLY Sou caixeiro-viajante. 316

BEN Hum. Adeus. . . (Levanta a mão, dando adeus a todos.) WILLY Não, Ben, não quero que você pense. . . (Pega no braço de Ben para mostrar.) Isto é o Brooklin, mas aqui também se caça. BEN Sei. WILLY Aqui também há serpentes e coelhos... foi por isso que nós mudamos para cá. Ora, Biff pode derrubar qualquer dessas ár-vores num instantinho. Vão já à construção aí em frente e tra-gam um pouco de areia. Vamos reconstruir toda a varanda agora mesmo! Olhe só para isto, Ben ! Biff É pra já ! Vamos embora, Hap ! HAPPY (enquanto sai com Biff) Reparou como eu perdi peso, papai? (Charley entra de bombachas, antes que os rapazes saiam.) CHARLEY Escute, se eles roubarem mais alguma coisa daquele prédio, o vigia vai chamar a polícia! LINDA (para Willy) Não deixe Biff. . . (Ben ri ruidosamente.) 317

WILLY Você precisa ver a madeira que eles trouxeram pra casa semana passada. Uma dúzia de tábuas valendo um dinheirão. CHARLEY Olhe aqui, se aquele vigia. . . WILLY Eu tratei-os com rigor, mas o resultado é que esses dois não têm medo de nada. CHARLEY Willy, as cadeias estão cheias de gente que não tem medo de nada. BEN (dando um tapinha em Willy e rindo-se de Charley) E a Bolsa de Valores também ! WILLY (rindo com Ben) Cadê o resto das tuas calças? CHARLEY Foi minha mulher que comprou. WILLY Agora você só precisa de um clube de golfe e, depois, de uma caminha pra descansar do esforço. (A Ben) Grande atleta! Ele e o filho Bernard, juntos, não têm força pra pregar um prego! BERNARD (entrando) O vigia está perseguindo Biff! WILLY (zangado) Cale essa boca ! Ele não está roubando nada ! LINDA (alarmada, correndo e saindo) Onde é que ele está!? Biff! Biff! 318

WILLY (caminhando um pouco atrás dela) Não há nada de errado. O que há com você? BEN Esse menino tem nervo. WILLY (rindo) Oh, Biff tem nervos de aço ! CHARLEY Não sei o que é que há. O meu vendedor da Nova Inglaterra voltou de viagem sem vender nada. Está arrasado ! WILLY O importante é ter prestígio, Charley; eu tenho muito prestígio! CHARLEY (sarcástico) Parabéns. Passa lá em casa mais tarde pra gente jogar um pouco. Quero tirar um pouco desse dinheirão que você está ganhando. (Ri de Willy e sai.) WILLY (virando-se para Ben) Os negócios vão muito mal, vão cada vez pior. Mas pra mim não, claro. BEN Antes de voltar para a África, eu passo aqui novamente. WILLY (ansioso) Você não pode ficar aqui uns dias? Preciso tanto de você, Ben. Eu tenho uma boa posição aqui, mas é que papai foi embora quando eu ainda era menino, eu nunca pude falar com ele e... eu não me sinto muito seguro. BEN Eu vou perder meu trem. (Estão em pontos afastados do palco.) 319

WILLY Ben... os meus filhos. . . será que a gente não podia conver-sar? Eles são capazes de se atirar no fogo por mim, mas. . . BEN William, você está dando a eles uma educação primorosa ! São rapazes formidáveis, viris . . . WILLY (segurando-se às palavras dele) Que bom que você disse isso, Ben! Porque de vez em quando eu penso que não estou ensinando direito a eles . . . Ben, o que é que devo ensinar a eles? BEN (dando muito peso a cada palavra, e com uma espécie de viciosa audácia) William, quando eu entrei na selva eu tinha dezessete anos. Quando eu saí, tinha vinte e um. E estava rico ! (Sai, entrando na escuridão do lado direito da casa.) WILLY . . . estava rico! Esse espírito é que eu quero incutir neles! Eu estava certo ! Eu estava certo! Eu estava certo ! (Ben já foi embora, mas Willy continua falando com ele, enquanto Linda, de camisola e roupão, entra na cozinha, procura por Willy e vai depois à porta da casa, olha para fora e o vê. Vem até ele. Ele a olha.) LINDA Willy, querido! Willy! WILLY Eu estava certo! LINDA Você comeu o queijo? (Ele não consegue responder.) Já é muito tarde, meu bem. Venha dormir. 320

WILLY (olhando para cima) A gente precisa quebrar o pescoço para conseguir ver uma es-trela deste quintal. LINDA Vem! WILLY Que fim levou aquela corrente de relógio com um diamante? Lembra? Quando Ben voltou da África daquela vez? Ele não me deu uma corrente de relógio com um diamante? LINDA Você a penhorou, querido. Há uns doze ou treze anos. Para pagar o curso de rádio por correspondência de Biff. WILLY Aquela corrente era tão linda. Vou dar um passeio. LINDA Mas você está de chinelos. WILLY (começando a caminhar em volta da casa, pela esquerda) Eu tinha razão. Eu tinha razão! (Um pouco para Linda, enquanto sai, sacudindo a cabeça.) Que homem ! Aquele sim, valia a pena conversar com ele. Eu tinha razão ! LINDA (chamando) Mas você está de chinelos, Willy . . . (Willy quase já se foi quando Biff, de pijama, desce as escadas e entra na cozinha.) Biff Que é que ele está fazendo lá fora? LINDA Psst. 321

Biff Meu Deus, mamãe, há quanto tempo ele anda assim? LINDA Cuidado que ele pode escutar. Biff Mas o que é que que há com ele? LINDA De manhã passa. Biff Não se pode fazer nada? LINDA Oh, meu querido, você podia ter feito uma porção de coisas, mas não há mais nada a fazer, portanto vá dormir. (Happy desce as escadas e se senta nos degraus.) HAPPY Ele nunca falou tão alto assim, mamãe. LINDA Apareça por aqui mais vezes que você o ouvirá. (Senta-se na mesa e remenda o forro do paletó de Willy.) Biff Por que você nunca me escreveu contando isso, mamãe? LINDA E como é que eu podia? Você passou mais de três meses sem um endereço. 322

Biff Eu estava viajando. Mas você sabe que eu pensei em você o tempo todo. Você sabe disso, não sabe, mamãe? LINDA Eu sei, meu bem, eu sei. Mas ele gosta de receber uma carta. Apenas para saber que ainda existe uma possibilidade de al-guma coisa boa. Biff Ele não é assim o tempo todo, é? LINDA Ele piora quando você vem para casa. Biff Quando eu venho para cá? LINDA Quando você escreve dizendo que vem, ele fica todo alegre, fala do futuro, fica maravilhoso. Depois, à medida que vai che-gando o dia, ele vai ficando agitado, até que, quando você chega, ele só fica discutindo e parece zangado com você. Acho que isso é que o transtorna. . . ele não consegue se entender com você. Por que vocês têm tanto ódio? Por que isso? Biff (evasivo) Eu não tenho ódio dele, mamãe. LINDA Mas, assim que você abre a porta, os dois já estão brigando! Biff Não sei por quê. Eu quero mudar. Estou tentando, mamãe. LINDA Você vai ficar em casa desta vez? 323

Biff Não sei. Quero dar uma espiada por aí, ver como é que as coisas vão. LINDA Biff, você não pode passar a sua vida espiando como é que as coisas vão, não é? Biff É que eu não consigo me fixar em nada, mamãe. Não consigo me encontrar na vida. LINDA Biff, um homem não é um passarinho que vai e volta conforme a primavera. Biff Seu cabelo. . . (Toca o cabelo dela.) Seu cabelo ficou tão grisa-lho. .. LINDA Oh, é grisalho desde o seu tempo de ginásio. Só que eu parei de tingir, só isso. Biff Então tinja de novo, está bem? Não quero ver minha amiga parecendo uma velha. (Sorri.) LINDA Você é uma criancinha! Você acha que pode sumir por mais de um ano e. . . você precisa botar na cabeça que um dia des-ses, quando você bater na porta, vai encontrar gente estranha morando aqui. Biff Que é isso, mamãe. Você não tem nem sessenta anos. 324

LINDA E seu pai? Biff (sem entusiasmo) Eu falava dele também. HAPPY Ele admira papai. LINDA Biff, meu filho, se você não sente nada por seu pai, também não pode sentir por mim. Biff Claro que posso, mamãe. LINDA Não. Você não pode vir aqui só pra me visitar, porque eu amo seu pai. (Com uma ameaça de lágrimas, mas só uma ameaça.) Para mim ele é o melhor homem do mundo e eu não quero que ninguém o faça sentir-se triste, abatido ou indesejado. Você tem que se decidir agora, meu querido, porque não haverá mais contemplação. Ou bem ele é seu pai e você o respeita, ou eu não quero mais que você venha aqui. Eu sei que ele é difícil. . . ninguém sabe disso melhor do que eu... mas. . . WILLY (da esquerda, com uma risadinha) Ei, Biff! Biff (começando a sair) Mas o que é que há com ele? (Happy o segura.) LINDA Não chegue perto dele! Biff Chega de arranjar desculpas para ele! Ele nunca na vida ligou pra você! Nunca teve um tiquinho de respeito por você. 325

HAPPY Ele sempre teve o maior respeito por. . . Biff Ora, que merda você sabe disso? ! HAPPY (áspero) Não diga que ele é louco ! Biff Ele não tem é caráter! Charley não faria uma coisa dessas! Na sua própria casa! Ficar vomitando por aí o que tem nessa cabeça suja! HAPPY Charley nunca teve que enfrentar os problemas de papai. Biff Conheço gente mais angustiada que Willy Loman. Eu sei por-que vi! LINDA Então faça de Charley o seu pai, Biff. Não é possível, é? Eu não digo que ele seja um grande homem. Willy Loman jamais ganhou muito dinheiro. Seu nome nunca saiu nos jornais. Não é o melhor caráter que já viveu. Mas é um ser humano, e uma coisa terrível está acontecendo com ele. É preciso prestar aten-ção nele. Não se pode permitir que ele baixe à sepultura como um cachorro velho. É preciso, é necessário prestar atenção a uma pessoa assim. Você disse que ele era louco . . . Biff Eu não quis dizer. . . LINDA Não, muita gente acha que ele está desequilibrado. Mas não 326

se requer muita inteligência para perceber o que é que há com ele. O homem está exausto. HAPPY Claro! LINDA Um homem comum pode ficar tão cansado quanto um grande homem. Agora em março vai fazer trinta e seis anos que ele trabalha para essa companhia, para a qual ele abriu novos mer-cados em lugares de quem nunca ninguém tinha ouvido falar, e agora, na velhice, eles cortam o salário. HAPPY (indignado) Eu não sabia disso, mamãe! LINDA Você nunca perguntou, meu querido! Agora que você apanha em outro lugar o dinheiro de que precisa, você não se preocupa mais com ele. HAPPY Mas eu dei dinheiro a vocês no último . . . LINDA No último Natal. Cinqüenta dólares. Só para consertar o aque-cedor pagamos noventa e sete ! Há dois meses que seu pai tra-balha só ganhando comissão, como um principiante, como um desconhecido! Biff Esses canalhas ingratos! LINDA Serão piores que os próprios filhos dele? Quando ele era jovem e trazia novos negócios para a companhia, todo mundo vivia contente. Mas agora os seus velhos amigos, os velhos compra 327

dores que gostavam dele e sempre encontravam um jeito de arranjar um pedido, estão todos mortos ou aposentados. Ele costumava fazer seis, sete visitas diárias em Boston. Agora ele tira os mostruários do carro, traz de volta, tira de novo e está exausto. Agora, em vez de andar, ele fala. Dirige por mais de mil quilômetros, e quando chega a seu destino, ninguém mais o conhece e ninguém lhe dá as boas-vindas. E o que é que passa pela cabeça de um homem que viaja mais mil quilômetros voltando para casa, sem ter ganho um tostão? Por que é que não pode falar sozinho? Por quê? Se ele tem que pedir emprestado a Charley cinqüenta dólares toda semana e fingir para mim que é o pagamento dele? Até quando isso pode conti-nuar assim? Até quando? Você compreende agora por que eu sento aqui e espero? E você vem me dizer que ele não tem caráter! Um homem que trabalhou todos os dias de sua vida para você? Quando é que ele vai receber uma medalha por isso? O prêmio dele é este: chegar à idade de sessenta e três anos e ver os dois filhos que ele amou mais que a própria vida. . . um, mulherengo vulgar. . . HAPPY Mamãe! LINDA É o que você é, meu filho! (A Biff) E você? Que fim levou o amor que você tinha por ele? Vocês eram tão amigos! Só o jeito que vocês falavam ao telefone toda noite! Ele se sentia tão solitário até que pudesse voltar para casa e ver você! Biff Muito bem, mamãe. Eu vou viver aqui no meu quarto e arran-jar um emprego. Só não quero é conversa com ele, só isso. LINDA Não, Biff. Você não pode viver aqui e ficar brigando com ele o tempo todo. 328

Biff Ele me expulsou de casa, lembre-se disso. LINDA Por que ele fez isso? Nunca entendi por quê. Biff Por que eu sei que ele é um falso e ele não gosta que ninguém por perto saiba disso. LINDA Por que falso? Como assim? Biff A culpa não é só minha, não. É um assunto entre mim e ele, pronto. De agora em diante eu vou contribuir. Metade do meu salário é dele. E vai ficar tudo bem. Eu vou dormir. (Começa a subir as escadas.) LINDA Não vai ficar tudo bem. Biff (voltando-se da escada, furioso) Eu odeio esta cidade e vou ficar aqui. O que mais que você quer? LINDA Ele está morrendo, Biff. (Happy vira-se rapidamente para ela, chocado.) Biff (depois de uma pausa) Por que é que ele está morrendo? LINDA Ele está tentando se suicidar. Biff (horrorizado) Como? 324

LINDA Vivo em pânico. Biff Mas o que é isso? LINDA Lembra que eu lhe escrevi quando ele bateu com o carro de novo? Em fevereiro? Biff Sei. LINDA O inspetor da companhia de seguros veio aqui. Disse que eles tinham provas de que todos os acidentes do ano passado não eram. . . não eram . . . acidentes. HAPPY Como é que podem dizer uma coisa dessas? É mentira! LINDA Parece que há uma mulher. . . (Linda e Bijf falam ao mesmo tempo.) LINDA . . . e essa mulher. . . Biff Que mulher? LINDA O quê? Biff Nada. Continue. 330

LINDA O que foi que você disse? Biff Nada. Eu disse apenas "que mulher"? HAPPY Que é que tem ela? LINDA Parece que ela estava andando pela estrada e viu o carro dele. Disse que não estava correndo muito e que não derrapou. Disse que quando ele chegou naquela pontezinha, jogou o carro contra a mureta de propósito, e que só não morreu porque a profundidade da água era pequena. Biff Não, vai ver que ele dormiu na direção. LINDA Não acredito nisso. Biff Por quê? LINDA No mês passado. . . (Com grande dificuldade) Oh, meus filhos, é tão difícil para mim dizer isso ! Para vocês ele não passa de um velho estúpido, mas eu digo que ele é melhor que muitos outros. (Soluça e limpa os olhos.) Eu estava procurando um fusível. A luz da casa tinha se apagado e eu desci até o porão. E atrás da caixa de fusíveis, tinha caído o pedacinho de um tubo de borracha. HAPPY É mesmo? 331

LINDA Tem uma conexão na ponta. Percebi na hora. E é lógico que, na base do aquecedor, havia uma nova torneirinha no tubo de gás. HAPPY (zangado) Esse. . . bobo. Biff E você tirou o tubo? LINDA Tenho vergonha. . . Como é que eu vou falar nisso com ele? Todo dia eu desço e tiro o tubinho de borracha. Mas, quando ele chega em casa, eu ponho de novo no lugar. Como é que eu posso insultá-lo desse jeito? Eu não sei o que fazer. Vivo em pânico. Sei que pode parecer fora de moda, uma frase feita, mas ele dedicou sua vida inteira a vocês e vocês agora lhe dão as costas. (Inclina se na cadeira, chorando, o rosto entre as mãos.) Biff, juro por Deus! A vida dele está nas suas mãos! HAPPY (a Biff) Que é que você me diz desse palhaço? Biff (beijando a mãe) Está bem, mãezinha, está bem. Está tudo acertado agora. Eu tenho sido negligente. Eu sei disso, mamãe. Mas agora eu vou ficar aqui e juro que vou me corrigir. (Ajoelhando-se diante dela, cheio de remorso) É que. . . sabe, mãe, eu não me dou bem no mundo dos negócios. Não que eu não vá tentar. Eu vou tentar e vou conseguir. HAPPY Claro que vai. O seu problema é que você nunca se preocupou em agradar as pessoas. Biff Eu sei, eu... 332

HAPPY Como no tempo em que você trabalhava no Harrison's. Bob Harrison dizia que você era o máximo e aí você fazia uma besteira qualquer, como ficar assobiando o tempo inteiro no elevador. Biff (contra Happy) E daí? Eu gosto de assobiar de vez em quando. HAPPY Ninguém dá um cargo importante a um sujeito que assobia no elevador! LINDA Não discutam isso agora. HAPPY Como nos dias em que você saía no meio do expediente e ia nadar. Biff (com crescente ressentimento) Bom, você nunca sai? De vez em quando você sai, não sai? Num dia bonito? HAPPY Saio, mas eu me cuido pra ninguém perceber! LINDA Meninos! HAPPY Se eu vou dar uma escapada, o patrão pode chamar qualquer telefone da loja que todo mundo vai jurar pra ele que eu saí de lá naquele momento. É chato o que eu vou lhe dizer, Biff, mas no mundo dos negócios há muita gente que acha você biruta. 333

Biff Dane-se o mundo dos negócios ! HAPPY Tá bem, que se dane. Mas vê se você se cuida! LINDA Hap, Hap! Biff Não me importa o que eles acham! Eles riram de papai durante anos, e sabe por quê? Porque nós não temos nada com a porcaria desta cidade! A gente devia estar misturando ci-mento ao ar livre ou ser... carpinteiro. Um carpinteiro pode assobiar! (Willy surge na entrada da casa, à esquerda.) WILLY Até o seu avô era melhor que um carpinteiro. (Pausa. Eles o contemplam.) Você nunca ficou adulto. Bernard não assobia num elevador, isso eu lhe garanto. Biff (tentando levar na brincadeira) Mas você assobia, papai. WILLY Nunca na minha vida assobiei num elevador. E quem, no mundo dos negócios, acha que eu sou louco? Biff Eu estava só brincando, papai. Não precisa fazer um drama. WILLY Volte pro oeste ! Vá ser carpinteiro, vaqueiro, divirta-se ! LINDA Willy, ele só estava dizendo. . . 334

WILLY Eu ouvi o que ele disse ! HAPPY (tentando acalmar Willy) Escute aqui, papai. . . WILLY (continuando, em cima da frase de Happy) Eles riem de mim, hein? Vá ao Filene, vá ao Hub, vá ao Slat-tery, vá a Boston inteira! Pronuncie o nome de Willy Loman e veja o que acontece ! Um prestígio imenso ! Biff Está bem, papai. WILLY Imenso! Biff Está bem! WILLY Por que é que você vive me insultando? Biff Eu não disse nada. (A Linda) Eu disse alguma coisa? LINDA Ele não disse nada, Willy. WILLY (indo a porta da sala) Está bem, boa noite, boa noite. LINDA Willy, querido, ele acaba de decidir . . . WILLY (a Biff) Se amanhã você ficar cansado de não fazer nada, procure pintar o forro novo que eu pus no teto da saia. 335

Biff Amanhã eu vou sair bem cedo. HAPPY Ele vai falar com Bill Oliver, papai. WILLY (interessado) Oliver? Para quê? Biff (cauteloso, mas esforçando-se) Ele sempre disse que me ajudaria. Eu queria entrar num negó-cio, quem sabe se ele me apóia? LINDA Não é formidável? WILLY Não interrompa. Que é que tem isso de formidável? Há pelo menos cinqüenta pessoas em Nova York que o ajudariam. (A Biff) Artigos de esporte? Biff Acho que sim. Eu conheço alguma coisa do ramo e. . . WILLY Conhece alguma coisa do ramo! Você conhece artigos de es-porte mais do que ninguém ! Quanto é que ele vai lhe dar? Biff Não sei, eu ainda nem falei com ele, eu ... WILLY Então, que conversa é essa? Biff (ficando zangado) Bom, eu só disse que ia falar com ele, só isso. 336

WILLY (dando-lhe as costas) Ah, sei. Você já está de novo contando com o ovo no cu da galinha. Biff (saindo em direção à escada) Oh, merda, eu vou dormir ! WILLY E não diga palavrões nesta casa ! Biff (parando) Desde quando você ficou tão delicado? HAPPY (tentando parar a discussão) Esperem um pouco, escutem . . . WILLY Não fale assim comigo! Não admito isso! HAPPY (segurando Biff, grita) Espere um pouco! Tive uma idéia. Fácil de realizar. Venha cá, Biff, vamos conversar com a cabeça fria. A última vez que eu estive na Flórida, tive uma grande idéia para a venda de artigos de esporte. Agora pensei nela de novo. Você e eu, Biff, temos um estilo ... o estilo Lotnan. A gente treina uns quinze dias e faz umas exibições, compreende? WILLY É uma boa idéia. HAPPY Espere! Fazemos dois times de basquete, compreende? Dois times de pólo aquático! E jogamos um contra o outro. Vale um milhão de dólares em publicidade. Dois irmãos, compreende? Os Irmãos Loman. Anúncios em todas as avenidas, em todos os hotéis. E estandartes nas quadras, nos ringues: 337

"Os Irmãos Loman". Rapaz, você vai ver só como a gente vai vender artigos de esporte! WILLY Essa idéia vale um milhão ! LINDA É maravilhoso! Biff Bem, eu estou em forma. HAPPY E a beleza que existe nisso, Biff, não seria só uma coisa comer-cial. A gente estaria jogando de novo . . . Biff (entusiasmando-se) Puxa, isso é . . . WILLY Vale um milhão. HAPPY E você não ia se chatear com isso, Biff. Vai ser de novo a família, a velha honra, a camaradagem. E se você quiser dar uma escapadela pra nadar, você vai! Sem se preocupar com o canalha que quer passá-lo pra trás ! WILLY Conquistar o mundo ! Vocês dois juntos podem conquistar todo o mundo civilizado ! Biff Vou falar com Oliver amanhã. Happy, se a gente conseguir fazer isso . . . LINDA Acho que as coisas estão começando a... 338

WILLY (entusiasmado, a Linda) Mas pare de interromper! (A Biff) Mas não vá falar com Oli ver, vestindo roupa esporte. Biff Não, eu... WILLY Terno e gravata, e fale o menos possível. Sem contar piadas. Biff Ele gostava de mim. Sempre gostou de mim. LINDA Ele adorava você! WILLY (a Linda) Mas você quer parar! (A Biff) Entre bem sério. Você não vai pedir um emprego de continuo. Há muito dinheiro em jogo. Seja tranqüilo, educado, sério. Todo mundo gosta de um brin-calhão, mas ninguém lhe empresta dinheiro. HAPPY Eu também vou ver se me viro, Biff. Tenho certeza de que le-vanto algum. WILLY Prevejo um futuro brilhante para vocês, meninos. Acho que os problemas terminaram. Mas lembrem-se: se alguém começa grande, acaba grande. Peça quinze mil. Quanto é que você vai pedir? Biff Puxa, eu nem sei. WILLY E não diga "puxa". "Puxa" é uma palavra que só criança usa. 339

Um homem que está falando em quinze mil dólares não diz "puxa"'. Biff Acho que dez já é suficiente. WILLY Não seja modesto. Você sempre começou por baixo. Você já entra rindo; não demonstre preocupação. Conte logo uma ou duas piadas que é pro ambiente ficar mais leve. Não é o que se diz . . . é como se diz. O que conta é a personalidade. LINDA Oliver sempre teve Biff na mais alta conta. . . WILLY Você quer me deixar falar? Biff Não grite com ela, papai, por favor. WILLY (zangado) Eu estava falando, não estava? Biff Eu só estou lhe dizendo que não gosto de ver você gritando com ela o tempo todo, só isso. WILLY Quem é você pra mandar aqui nesta casa? LINDA Willy. . . WILLY (virando-se para ela) E não fique sempre do lado dele. merda ! 340

Biff (furioso) Pare de gritar com ela ! WILLY (subitamente se aprumando, abatido e culpado) Dê lembranças minhas a Bill Oliver. . . talvez ele se lembre de mim. (Sai pela porta da sala.) LINDA (em voz baixa) Por que essa discussão? ( Biff se afasta.) Você não viu como ele se sentiu bem, assim que você lhe deu uma esperança? (Di-rige-se a Biff.) Suba e diga boa noite a ele. Não deixe que ele durma desse jeito. HAPPY Vamos, Biff, não custa nada. LINDA Por favor, querido. É só dizer boa noite. É preciso tão pouco para fazê-lo feliz. (Sai pela porta da sala e fala para o quarto.) Seu pijama está pendurado no banheiro, Willy! HAPPY (olhando para onde Linda saiu) Que mulher! Quebraram o molde quando ela nasceu. Biff Ele não tem salário. Meu Deus, trabalhando por comissão ! HAPPY Bom, vamos falar a verdade; ele não é um grande vendedor. Mas você tem de admitir que, de vez em quando, ele é uma boa pessoa. Biff (decidido) Empreste-me dez dólares. Eu quero comprar umas gravatas no-vas. 341

HAPPY Eu o levo a uma loja que conheço. Coisa fina. E amanhã você pode usar uma das minhas camisas listradas. Biff Ela está de cabelos brancos. Mamãe envelheceu muito. Puxa, amanhã eu vou ver o Oliver e vou arrancar esse dinheiro dele. . . HAPPY Vamos subir. Diga isso a papai. Ele vai ficar animado. Vamos lá. Biff (confiante) Ó rapaz, eu com dez mil dólares! HAPPY (enquanto entram na sala) Assim é que se fala, Biff, é a primeira vez desde que você che-gou que eu ouço você falar assim ! (Já dentro da sala.) Você vai viver comigo, rapaz, e qualquer garota que você quiser. . . (Quase não se ouvem as últimas frases. Eles estão subindo as escadas para o quarto dos pais.) LINDA (entrando no quarto e falando com Willy que está no banheiro; ela está arrumando a cama para ele) Você já viu esse chuveiro? Fica pingando o tempo todo. WILLY (do banheiro) De repente tudo cai aos pedaços! Esses miseráveis desses bom-beiros deviam ir para a cadeia ! Eu acabei de instalar e já está tudo estragado. (As palavras se perdem.) LINDA Eu estava pensando se Oliver vai se lembrar dele. O que é que você acha? WILLY (saindo do banheiro, de pijama) Se vai se lembrar dele? Você ficou maluca? Se ele tivesse fi- 342

cado com Oliver, ele hoje estaria feito! Espere só o Oliver dar uma olhada nele! Você não sabe como são os rapazes de hoje. . . (Sentando-se na cama.) . . . zero, não valem nada. A melhor coisa que Biff fez foi andar por aí, conhecer o mundo. ( Biff e Happy entram no quarto. Ligeira pausa.) WILLY (olha para Biff; pausa) Gostei de ver, rapaz. HAPPY A gente veio dar boa-noite a você, companheiro. WILLY (a Biff) É. Dê um baile nele, Biff. Que é que você queria me dizer? Biff Está tudo bem, papai. Boa noite. (Vira-se para sair.) WILLY (sem poder resistir) E se alguma coisa cair da mesa dele enquanto você estiver lá. . . um embrulho, qualquer coisa. . . não se abaixe para apanhar. Eles têm contínuos para isso. LINDA Amanhã eu vou fazer um bom café . . . WILLY Quer me deixar acabar? (A Biff) Diga que você tinha um negó-cio no oeste. Não diga que trabalhou numa granja. Biff Está bem, papai. LINDA Acho que tudo . . . 343

WILLY (em cima da frase dela) E não se diminua. Nada menos que quinze mil dólares. Biff (incapaz de suportá-lo) Está bem. Boa noite, mamãe. (Começa a sair.) WILLY Porque você tem grandeza, Biff, não se esqueça disso. Você tem uma grandeza imensa. . . (Deita-se, exausto. Biff sai.) LINDA (a Biff) Durma bem, querido! HAPPY Eu vou me casar, mamãe. Queria lhe contar. LINDA Vá dormir, querido. HAPPY (saindo) Eu só queria lhe contar. WILLY Continue trabalhando bem. (Happy sai.) Meu Deus. . . lembra daquele jogo em Ebbets Field? O campeonato da cidade? LINDA Descanse. Quer que eu cante para você? WILLY Quero. Cante. (Linda cantarola suavemente uma canção de ni-nar.) Lembra quando o time entrou em campo? Ele era o mais alto. LINDA Lembro. Todo de dourado. 344

( Biff entra na cozinha escura, pega um cigarro e sai da casa. Desce o palco, fica embaixo de um foco de luz dourado. Fuma, olhando a noite.) WILLY Parecia um jovem deus. Hércules ... ou coisa parecida. E todo aquele sol, aquele sol em volta dele. Lembra quando ele acenou para mim? Lá do meio do campo, com os diretores de três colégios do lado dele? E os compradores que eu levei, e os aplausos, a gritaria quando ele apareceu. . . Loman, Loman, Loman ! Oh, meu Deus Todo-Poderoso, ele ainda há de ser grande. Uma estrela reluzente como essa não se extingue ja-mais! (A luz sobre Willy vai se extinguindo. O aquecedor de gás começa a brilhar através da parede da cozinha, perto da escada — uma chama azul entre espirais vermelhas.) LINDA (timidamente) Willy querido, que é que ele tem contra você? WILLY Estou tão cansado. Não quero falar mais. ( Biff volta à cozinha. Pára, olhando o aquecedor.) LINDA Você vai pedir a Howard que deixe você trabalhar na cidade. WILLY Amanhã de manhã, cedinho. Vai dar tudo certo. ( Biff remexe no aquecedor e retira um tubo de bor-racha. Fica horrorizado e olha para o quarto de Willy, ainda na penumbra e do qual cresce o de-sesperado e monótono cantarolar de Linda.) 345

WILLY (olhando a luz do luar que entra pela janela) Puxa, olha a lua caminhando entre os edifícios. . . ( Biff enrola o tubo a escada.) nas mãos e sobe rapidamente 346

ATO II

Ouve se uma música alegre e brilhante. O pano sobe enquanto a música termina. Willy, em mangas de camisa, está sentado à mesa da cozinha, com o chapéu no joelho. Linda lhe enche a xícara, quando pode. WILLY Café esplêndido. Vale uma refeição. LINDA Quer que eu lhe faça uns ovos? WILLY Não. Descanse um pouco. LINDA Você parece tão bem, querido. WILLY Dormi como uma pedra. Há meses que eu não dormia assim. Imagine só, dormir até dez da manhã numa terça-feira. Os me-ninos saíram bem cedinho, hein? LINDA Antes das oito. WILLY ótimo. LfNDA Foi tão bonito ver os dois saindo juntos. Você está sentindo o perfume da loção de barba? 349

WILLY (sorrindo) Mmmmm. . . LINDA Biff estava outro, hoje de manhã. Cheio de esperança. Não via a hora de se encontrar com Oliver. WILLY Ele vai mudar, nem há dúvida. Há certos homens que demoram pra acertar na vida, só isso. Como é que ele estava vestido? LINDA Com o terno azul. Ele fica tão bonito naquela roupa. Ele podia ser um... sei lá, qualquer coisa, com aquela roupa. (Willy se levanta. Linda segura o paletó dele.) WILLY Não há dúvida, a menor dúvida. Puxa, quando eu voltar pra casa hoje, vou comprar umas sementes. LINDA (rindo) Ótimo. Mas o sol não bate mais aqui. Acho que não cresce mais nada. WILLY Você vai ver só, menina, antes que tudo isso acabe, nós ainda vamos ter uma bela casinha no campo, e eu vou ter um pomar-zinho, vou criar umas galinhas . . . LINDA Você ainda vai fazer isso, querido. (Willy se afasta do paletó. Linda o segue.) WILLY E eles vão se casar e vão passar o fim de semana conosco. 350

Eu vou fazer uma casinha de hóspedes. Porque eu tenho ferra-mentas esplêndidas, eu só preciso é de um pouco de madeira e paz de espírito. LINDA (alegremente) Eu costurei o forro do paletó . . . WILLY Eu poderia construir duas casas de hóspedes, assim os dois poderiam vir. Ele já decidiu quanto é que ele vai pedir a Oli-ver? LINDA (enfiando o paletó nele) Ele não disse, mas acho que uns dez ou quinze. Você vai falar com Howard hoje? WILLY Vou. Vou ser simples e direto: ele tem que me tirar da estrada, pronto. LINDA E, Willy, não esqueça de pedir um adiantamento, porque temos que pagar o prêmio do seguro. Só falta essa prestação. WILLY Ê cento e quanto? LINDA Cento e oito dólares e sessenta e oito centavos. E nós não te-tnos tudo isso. WILLY E por que não temos? LINDA Bom, você teve que mandar o carro pra oficina . . . 351

WILLY Essa porcaria de Studebaker ! LINDA E ainda falta uma prestação da geladeira. . . WILLY Mas ela já quebrou de novo ! LINDA Ela é velha, querido. WILLY Eu falei que a gente devia comprar uma geladeira bem anun-ciada. Charley comprou uma General Electric há vinte anos e ela ainda funciona, esse filho da mãe. LINDA Mas, Willy. . . WILLY Quem é que já ouviu falar de uma geladeira Hastings? Pelo menos uma vez na vida eu gostaria de ter alguma coisa que não quebrasse antes de estar paga. Parece que eu estou apostando uma corrida! Mal acabei de pagar o carro e eleja não presta pra nada. A geladeira parte uma correia atrás da outra. Acho que eles calculam isso. Calculam de um jeito que. quando você acaba de pagar uma. já tem que comprar outra LINDA (abotoando o paletó que ele desabotoa) No total, uns duzentos dólares resolvem tudo. Mas isso inclui o último pagamento da hipoteca da casa. Depois desse paga-mento, Willy, a casa é nossa. WILLY Vinte e cinco anos ! 352

LINDA Biff tinha nove anos quando a gente comprou. WILLY Bom, isso é uma grande coisa. Pagar uma hipoteca de vinte e cinco anos . . . LINDA É um grande sucesso. WILLY Quanto cimento, quanta madeira eu pus nessa casa! Não se encontra nela uma fenda, cm lugar nenhum. LINDA Ela cumpriu sua missão. WILLY Que missão? Qualquer dia desses aparece aí um estranho, muda pra cá e acabou-se. Se pelo menos Biff quisesse viver aqui, se se casasse, tivesse filhos. . . (Começa a sair.) Até logo, estou atrasado. LINDA (lembrando de repente) Ah, esqueci. Você deve ir se encontrar com eles para jantar. WILLY Eu? LINDA No Restaurante Frank's. rua 48, esquina de Sexta Avenida. WILLY É mesmo? E você? LINDA Não, só vocês três. Vão oferecer-lhe um banquete ! 353

WILLY Mas é mesmo? De quem foi a idéia? LINDA Biff chegou pra mim de manhã e disse: "Mamãe, avise ao pa-pai que nós vamos oferecer a ele um banquete". Esteja lá às seis horas. Vocêe seus dois filhos vão jantar juntos. WILLY Puxa, isso sim! Menina, eu vou botar o Howard no bolso. Vou conseguir um adiantamento e vou voltar pra casa com um em-prego na cidade. Se vou ! Você vai ver só ! LINDA Isso, Willy, assim é que eu gosto ! WILLY Não vou nunca mais viver atrás de uma direção. LINDA As coisas estão mudando, Willy, eu sinto que estão ! WILLY Claro que estão. Até logo, estou atrasado. (Começa a sair de novo.) LINDA (chamando-o, enquanto corre à mesa para buscar um lenço) Está levando seus óculos? WILLY (procura, depois volta) Estou. LINDA (dá o lenço a ele) E o lenço. WILLY É, um lenço. 354

LINDA E a Sacarina? WILLY A Sacarina. LINDA Cuidado na escadaria do metrô. (Dá-lhe um beijo. Está com uma meia nas mãos e Willy percebe.) WILLY Você quer parar de remendar essas meias? Peto menos en-quanto eu estiver em casa? Deixa-me nervoso. Não sei por quê. Por favor. (Linda esconde a meia enquanto acompanha Willy pelo palco até a saída da casa.) LINDA Não se esqueça: Restaurante Frank's. WILLY (contempla o chão) Acho que beterraba é capaz de nascer aí. LINDA (rindo) Mas você já plantou tantas vezes. . . WILLY É verdade. Bem, veja se não trabalha muito hoje. (Desaparece à direita da casa.) LINDA Cuidado! (Enquanto Willy desaparece, Linda acena para ele. O telefone toca. Ela corre através do palco, entra na cozinha e atende.) 355

LINDA Alô? Oh, Biff, que bom que você chamou, eu acabei. . . Pois é, acabei cie dizer a ele. Ele vai. sim. Seis horas, no restaurante. Não esqueci. Escute, eu estava louca pra contar a você. Sabe aquele tubo de borracha de que eu falei? Que estava ligado ao aquecedor de gás? Pois é, eu finalmente resolvi descer ao porão hoje de manhã e tirá-lo de lá. Mas ele sumiu! Imagine! Ele mesmo o tirou, não está mais lá! (Ela presta atenção.) Quando? Ah, foi você que tirou. Não, nada, é que eu pensei que tivesse sido ele. Oh, não estou mais preocupada, meu bem, porque hoje ele saiu tão bem disposto, como antigamente ! Não tenho mais medo. Já falou com o senhor Oliver? Então espere mais um pouco. Veja se o impressiona bem, querido. Não transpire muito antes de falar com ele. E divirta-se no jantar com papai. Quem sabe ele também terá grandes novidades? Isso, um trabalho aqui mesmo em Nova York. E trate bem dele hoje, meu querido. Seja carinhoso com ele. Porque ele é um barco à procura de um porto. (Ela treme, de piedade e alegria.) Oh, isso é maravilhoso, Biff, você vai salvar a vida dele. Obrigada, meu bem. Quando ele entrar no restaurante, ponha o braço no ombro dele. E sorria para ele. Esse é o meu filho. . . Até logo, querido. Você levou seu pente? Até logo, Biff, querido. (No meio da fala dela, Howard Wagner, trinta e seis anos, gira uma pequena mesa com uma máquina de escrever, na qual existe um gravador, e o liga. Isto é à esquerda do cenário. A luz se apaga lentamente sobre Linda, enquanto cresce sobre ele. Howard está ocupado com os fios do gravador e apenas olha sobre os ombros quando Willy apa-rece.) WILLY Pst! Pst! HOWARD Alô, Willy, entre. 356

WILLY Queria ter uma conversinha rápida com você. Howard. HOWARD Desculpe fazer você esperar. Já falo com você já. já. WILLY O que é isso, Howard? HOWARD Você nunca viu um destes? É um gravador. WILLY Oh. Será que a gente poderia conversar um pouquinho? HOWARD Ele grava as coisas. Recebi ontem. Está me deixando louco, é a coisa mais sensacional que eu já vi na vida. Passei a noite inteira acordado com ele. WILLY Que é que você faz com ele? HOWARD Eu comprei pra fazer ditados, mas pode-se fazer o que quiser. Escuta só isto aqui. Gravei lá em casa, ontem à noite. Primeiro é minha filha. Veja só. (Aperta um botão e ouve-se uma canção assobiada.) Veja só como essa garota assobia. WILLY Parece de verdade, não? HOWARD Sete anos. Olha só a afinação. WILLY Ts, ts. Eu queria lhe pedir um favorzinho . . . 357

(Cessa o assobio e ouve-se a voz da filha de Ho-ward.) A FILHA "Agora você, papai!" HOWARD Ela é, louca por mim ! (Ouve-se a mesma canção com outro assobio.) Esse sou eu ! Ha! Ha! Ha! (Dá uma piscadela.) WILLY Você é muito bom ! (O assobio pára de novo. O gravador funciona em silêncio por algum tempo.) HOWARD Pssiu! Ouve isso agora, é meu filho. O FILHO "A capital do Alabama é Montgomery; a capital do Arizona é Phoenix; a capital do Arkansas é Little Rock; a capital da Califórnia é Sacramento . . ." (E assim por diante.) HOWARD (levantando a mão e mostrando os cinco dedos) Cinco anos, Willy! WILLY Puxa, ele pode ser um locutor esplêndido ! O FILHO (continuando) "... a capital. . ." HOWARD Tá vendo só? Em ordem alfabética! (A máquina pára de re-pente.) Espere um pouco. A empregada desligou a tomada. 358

WILLY Mas ê mesmo uma coisa . . . HOWARD St! Silêncio. O FILHO "Já são nove horas, hora Bulova. Devo ir dormir." WILLY Mas isso é . . . HOWARD Espere um pouco ! Agora vem minha mulher. VOZ DE HOWARD "Vá, diga alguma coisa." (Pausa.) "Você vai falar ou não vai?" A MULHER "Mas o que é que eu vou dizer?" VOZ DE HOWARD "Bom, fala. Está ligado." A MULHER (tímida, derrotada) "Alô ! (Silêncio.) Oh, Howard, eu não sei falar nessa coisa..." HOWARD (desligando a máquina) Essa era minha mulher. WILLY Mas é uma máquina esplêndida. Será que nós podemos. . . HOWARD Quer saber de uma coisa, Willy? Eu vou pegar minha câmara, minha serra-de-fita, tudo, e vou jogar tudo fora. Esta é a melhor diversão que eu já vi na vida. 359

WILLY Acho que eu vou comprar um pra mim. HOWARD Compre sim, custa só cento e cinqüenta dólares. Não se pode deixar de ter um. Por exemplo, você quer ouvir o Jack Benny; mas não está em casa na hora do programa. Você diz pra em-pregada ligar o rádio na hora do Jack Benny, e automatica-mente o gravador grava tudo . . . WILLY E quando a gente chegar em casa. . . HOWARD Você pode chegar em casa à meia-noite, à uma da manhã, a hora que for, você pega uma Coca-Cola, senta-se gostoso, liga o gravador e pronto! Você ouve o programa do Jack Benny no meio da madrugada! WILLY Já decidi; vou comprar um! Quantas vezes na estrada eu não penso o que estou perdendo no rádio ! HOWARD Você não tem rádio no carro? WILLY Bem, tenho, mas quem lembra de ligar o rádio do carro? HOWARD Escuta, você não devia estar em Boston? WILLY Sobre isso é que eu queria lhe falar, Howard. Você tem um minuto? (Pega uma cadeira dos bastidores.) HOWARD Que aconteceu? O que é que você está fazendo aqui? 360

WILLY Bem, eu... HOWARD Você não teve outro acidente, teve? WILLY Não, não, eu... HOWARD Puxa, fiquei preocupado. Qual é o problema? WILLY Bom, vou lhe dizer a verdade, Howard. Decidi não viajar mais. HOWARD Não vai mais viajar ! E o que é que vai fazer? WILLY Você se lembra da festa de Natal, aqui? Você disse que ia pen-sar num lugar para mim aqui na cidade. HOWARD Aqui na companhia? WILLY Claro. HOWARD Ah, é mesmo, eu me lembro, sim. Mas, não achei nada para você, Willy. WILLY Olhe, Howard, os meus filhos já estão adultos, eu não preciso de muito. Se pudesse levar pra casa . . . sessenta e cinco dóla-res por semana, eu já me arranjaria. 361

HOWARD Eu sei, Willy, mas olhe. . . WILLY Eu lhe explico por que, Howard. Falando francamente, e só aqui entre nós ... eu me sinto um pouco cansado. HOWARD Eu compreendo, Willy. Mas você é um caixeiro-viajante, e o que a companhia precisa é de caixeiros-viajantes. Aqui na loja nós só temos uma meia dúzia de vendedores. WILLY Howard, Deus sabe que nunca pedi favor a ninguém. Mas eu já trabalhava aqui quando seu pai ainda carregava você no colo. HOWARD Sei disso, Willy, mas. . . WILLY No dia em que você nasceu, seu pai, que descanse em paz, me perguntou o que é que eu achava do nome Howard. HOWARD Eu agradeço, Willy, mas não tenho um lugar para você. Se eu tivesse, colocaria você agora mesmo, mas não tenho mesmo. (Procura o isqueiro. Willy o apanha e dá a ele. Pausa.) WILLY (com raiva crescente) Howard, tudo que eu preciso para viver são apenas cinqüenta dólares por semana. HOWARD Mas onde é que eu vou botar você, rapaz? 362

WILLY Olhe aqui, não se trata de discutir se eu sei ou não sei vender, não é? HOWARD Claro, Willy, mas isso aqui é uma empresa. WILLY (desesperado) Deixe-me contar-lhe uma história, Howard. HOWARD Porque você tem que admitir: negócios são negócios. WILLY (zangado) Eu sei que negócios são negócios, mas escute um minutinho só. Você não entende a situação. Quando eu ainda era um menino — dezoito, dezenove anos — eu já era viajante. E eu ficava me perguntando se essa profissão tinha futuro. Porque naquela época eu andava pensando em ir para o Alaska. Houve três corridas de ouro no Alaska, e eu quase fui. HOWARD (sem interesse) Não diga. WILLY É mesmo, meu pai viveu muitos anos no Alaska. Era um ho-mem que gostava de aventuras. Na nossa família nós temos confiança em nós mesmos. Eu pensei que poderia ir com meu irmão mais velho e encontrar meu pai, e talvez ficar com ele lá no Alaska. E eu estava quase decidido a ir, quando conheci um caixeiro-viajante na Parker House. Chamava-se Davé Sin-gleman. Tinha oitenta e quatro anos e já tinha vendido merca-dorias em trinta e um Estados. O velho Dave subia pro quarto, compreende, botava os chinelos de veludo verde — nunca vou me esquecer disso —, pegava o telefone e chamava os compra-dores. E mesmo sem sair de seu quarto, com oitenta e quatro anos, ganhava a vida. Quando eu vi isso, percebi que a carreira 363

de um viajante era a maior carreira que um homem podia dese-jar. Por acaso há no mundo alguma coisa mais formidável do que uma pessoa com oitenta e quatro anos capaz de viajar por vinte, trinta cidades diferentes, e ser lembrado, amado e aju-dado por tantas pessoas diferentes? Sabe? Quando ele morreu — e por falar nisso, morreu a morte de um caixeiro-viajante, com seus chinelos de veludo verde, no vagão de fumar do trem Nova York—Nova Haven—Hartford, a caminho de Boston —, quando morreu, centenas de caixeiros-viajantes e de com-pradores foram a seus funerais. Durante meses falou-se dele em todos os trens. (Levanta-se. Howard nem olhou para ele.) Naquele tempo, esta profissão tinha personalidade. Havia res-peito, companheirismo e gratidão. Hoje, tudo é seco, agressivo. Não há chance para se cultivar a amizade. . . nem há mais personalidade. Entende o que eu digo? Ninguém me conhece mais. f. I. HOWARD (andando para a direita) É esse o problema, Willy. WILLY Se eu ganhasse quarenta dólares por semana. É só o que eu preciso, Howard. Quarenta dólares. HOWARD Mas, rapaz, eu não posso tirar leite da pedra, eu ... WILLY (agora já está desesperado) Howard, no ano que Al Smith foi candidato, seu pai me disse. . . HOWARD (começando a sair) Há gente me esperando, Willy. WILLY (impedindo que ele saia) Eu estou falando de seu pai! Foram feitas promessas aqui nesta mesa! Você não pode me dizer que há gente esperando, 364

Howard! Eu dei trinta e quatro anos da minha vida a esta com-panhia e agora não posso nem pagar o meu seguro! Um ser humano não é igual a uma laranja, que você chupa e joga o bagaço fora! (Depois de uma pausa.) Agora preste atenção. Seu pai. . . 1928 foi um grande ano para mim. Ganhei uma média de cento e setenta dólares por semana em comissões. HOWARD Ora, Willy, você nunca na vida . . . WILLY (dando um murro na mesa) Ganhei! Ganhei cento e setenta dólares por semana de comis-são, no ano de 1928 ! E seu pai chegou — ou melhor, eu estava aqui, no escritório ... foi bem aqui, nesta mesa —, pôs a mão no meu ombro . . . HOWARD (levantando-se) Você vai me desculpar, Willy, mas há gente me esperando. Controle-se. (Saindo) Eu volto já. (Com a saída de Howard, a luz sobre a cadeira dele fica muito forte e brilhante.) WILLY "Controle-se"? Mas o que foi que eu disse a ele? Meu Deus, eu estava gritando com ele! Como é que eu pude fazer uma coisa dessas? (Interrompe-se, olhando para a luz que ilumina e ocupa a cadeira. Aproxima-se da cadeira, ficando separado dela pela mesa.) Frank, Frank, não se lembra do que você me disse aquela vez? Como você pôs a mão no meu ombro, Frank, e. . . (Ele se inclina sobre a mesa e, quando pronuncia o nome do morto, acidentalmente bate no gravador e o liga. Ouve-se instantaneamente.) VOZ DO FILHO "... de Nova York é Albany. A capital de Ohio é Cincinatti. a capital de Rhode Island é . . ." (A recitação continua.) 365

WILLY (afastando-se apavorado e gritando) Ai! Howard ! Howard ! Howard ! HOWARD (entra correndo) O que foi? WILLY (apontando o gravador que continua com a voz infantil e anasalada, dizendo o nome das capitais) Desligue isso ! Desligue isso ! HOWARD (desligando) Escute, Willy . . . WILLY (apertando os dedos nos olhos) Preciso tomar um café. Vou buscar um café. (Willy começa a sair. Howard o detém.) HOWARD (enrolando os fios) Olhe aqui, Willy . . . WÍLLY Eu vou a Boston. HOWARD Willy, você não pode ir a Boston pela companhia. WILLY Por que não? HOWARD Eu não quero mais que você seja nosso representante. Há muito tempo que eu queria lhe dizer isso. WILLY Howard, você está me despedindo? 366

HOWARD Acho que você precisa de um bom descanso, Willy. WILLY Howard. . . HOWARD E quando você se sentir melhor, volte, e vamos ver o que se pode fazer. WILLY Mas eu preciso ganhar dinheiro, Howard. Eu não estou em condições de... HOWARD Onde é que estão seus filhos? Por que é que seus filhos não o ajudam? WILLY Eles estão trabalhando num projeto muito importante. 367 HOWARD Não é hora de falso orgulho, Willy. Procure seus filhos e diga a eles que você está cansado. Você tem dois filhos grandes, não tem? WILLY Claro, não tem dúvida, mas enquanto isso. . . HOWARD Está combinado então, não está? WILLY Está. Mas eu vou a Boston amanhã. HOWARD Não, não.

WILLY Não posso ser sustentado pelos meus filhos! Não sou aleijado ! HOWARD Escuta, rapaz, eu estou muito ocupado hoje. WILLY (segurando o braço de Howard) Howard, você tem que me deixar ir a Boston ! HOWARD (duro, mantendo o controle) Eu tenho uma fila de pessoas para atender. Willy. Sente-se aí por uns cinco minutos, acalme-se e depois vá pra casa, está bem? Eu preciso do escritório. (Começa a sair, depois se lem-bra do gravador e volta para apanhá-lo e empurra a mesa onde ele está.) Ah! Sim. Quando você puder, esta semana, passe aqui e devolva os mostruários. Você se sentirá melhor, Willy. volte e a gente conversa. Controle-se, rapaz, há muita gente aí fora. (Howard sai, levando a mesa consigo. Willy contempla o espaço, exausto. Ouve-se música — o tema de Ben — primeiro à distância, depois cada vez mais perto. Enquanto Willy fala, Ben entra da direita. Carrega uma maleta e um guarda-chuva.) WILLY Oh, Ben, como é que você conseguiu? Qual é a resposta? Você já fechou o negócio do Alaska? BEN Não demora muito, se você sabe o que faz. Uma pequena via-gem de negócios. Vou pegar o navio daqui a uma hora. Queria dizer adeus. WILLY Ben, eu preciso falar com você. 368

BEN (olhando o relógio) Não tenho tempo, William. WILLY (dirigindo-se a ele) Nada dá certo, Ben. Não sei o que fazer. BEN Preste atenção, William. Comprei uns bosques de boa madeira no Alaska e preciso de um homem para tomar conta deles para mim. WILLY Meu Deus, bosques, madeira! Eu e meus filhos naqueles espa-ços abertos! BEN Há um novo continente bem diante de você, William. Saia des-tas cidades, elas estão cheias de conversas, prazos, tribunais. Tenha coragem e você ganha uma fortuna lá. WILLY É isso, é isso ! Linda. Linda ! (Linda entra como antigamente, com a cesta.) LINDA Oh, você voltou? BEN Não tenho muito tempo. WILLY Não, espere! Linda, ele tem uma proposta para mim no Alaska! LINDA Mas você tem . . . (A Ben) E!e tem um bom emprego aqui. 369

WILLY Mas, menina, no Alaska eu poderia. . . LINDA Você está indo muito bem, Willy ! BEN (a Linda) Bem para que, minha querida? LINDA (com medo de Ben e zangada com ele) Não encha a cabeça dele! Bem para ser feliz aqui mesmo e agora mesmo! (A Willy enquanto Ben ri) Por que todos têm que conquistar o mundo? Você é estimado, os meninos o ado-ram e algum dia. . . (A Ben) ... o velho Wagner disse a ele outro dia que, se ele continua assim, vai ser sócio da firma, não disse, Willy? WILLY Disse, claro. Eu estou construindo alguma coisa nessa compa-nhia, Ben, e, se um homem está construindo, está no caminho certo, não está? BEN O que é que você está construindo? Mostre-me. Onde está? WILLY (hesitante) É verdade, Linda, não há nada. LINDA Por quê? (A Ben) Existe um homem que tem oitenta e quatro anos e. . . WILLY É verdade, Ben, é verdade. Quando eu olho para aquele homem eu digo: qual é o problema? BEN Ora! 370

WILLY É verdade, Ben! Ele chega numa cidade, pega o telefone e ga-nha a vida, e você sabe por quê? BEN (apanhando a maleta) Tenho que ir embora. WILLY (segurando Ben) Olha só pra esse garoto! ( Biff, com seu blusão de ginásio, entra carregando uma valise. Happy vem com ele, carregando as ombreiras, um capacete dourado e calças de futebol.) Sem ter um tostão, há três universidades implorando por ele, e daí pra frente o céu é o limite, porque não é o que você faz, Ben! É quem você conhece e o sorriso nos lábios! Contatos, Ben, contatos! Toda a riqueza do Alaska passa pelo restaurante do Hotel Comodoro, e aí é que está a maravilha, a grande maravilha deste país: é que aqui um homem pode terminar cheio de diamantes, desde que seja estimado, querido ! (Vira-se para Biff) Por isso é tão importante esse jogo de hoje. Porque haverá milhares de pessoas torcendo por você e apaixonadas por você! (A Ben, que começou de novo a sair) E Ben ! Quando ele entrar num escritório o nome dele vai tilintar como um sino e todas as portas se abrirão para ele! Eu já vi isso, Ben, já vi isso milhares de vezes! A gente não sente na mão como se fosse madeira, mas existe! BEN Adeus, Wíllíam. WILLY Estou certo, Ben? Diga-me se estou certo. Quero ouvir sua opi-nião. BEN Há um novo continente bem a sua frente, William. Você pode-ria sair dele rico. Rico ! (Sai.) 371

WILLY Nós vamos ficar ricos aqui mesmo! Ouviu, Ben? Nós vamos ficar ricos aqui! (Entra o jovem Bernard. Ouve-se a alegre música dos rapazes.) BERNARD Puxa, pensei que você já tivesse ido ! WILLY Por quê? Que horas são? BERNARD Mais de uma e meia! WILLY Vamos embora, todo mundo! A próxima parada é Ebbets Field ! Cadê os estandartes? (Corre "através" da parede da co-zinha e daí para a sala.) LINDA (a Biff) Você está levando cuecas limpas? Biff (que estava fazendo flexões) Estou pronto. BERNARD Biff, eu vou carregar seu capacete, não vou? HAPPY Não, eu é que vou carregar o capacete. BERNARD Oh, Biff, você prometeu. HAPPY Eu carrego o capacete. 3 72

BERNARD E como é que eu vou entrar no vestiário? LINDA Deixe-o carregar as ombreiras. (Põe o casaco e o chapéu na cozinha.) BERNARD Posso levar, Biff? Porque eu disse a todo mundo que eu ia entrar no vestiário. HAPPY Em Ebbets Field está a casa do clube. BERNARD A casa do clube, Biff! Biff (majestoso, depois de pequena pausa) Deixe-o carregar as ombreiras. HAPPY (enquanto dá as ombreiras a Bernard) Não fique longe de nós. (Willy entra com os estandartes.) WILLY (distribuindo os estandartes) Quando Biff entrar em campo, todo mundo agita os estandar-tes. (Happy e Bernard saem correndo.) Está pronto, rapaz? (A música acabou.) Biff Prontinho, papai. Todos os músculos estão prontos. WILLY (quase no fim do palco) Você compreende o que isto significa? 373 1

Biff Compreendo, papai. WILLY (apertando os músculos de Biff) Você hoje vai voltar pra casa como capitão do time vencedor do Campeonato Escolar da Cidade de Nova York. Biff Eu sei, papai. E não se esqueça: quando eu tirar o capacete, aquele gol vai ser pra você. WILLY Vamos embora! (Começa a sair, abraçado a Biff, quando Charley entra, como antigamente, de bombachas.) Não tenho lugar pra você, Charley ! CHARLEY Lugar? Pra quê? WILLY No carro. CHARLEY Você vai passear? Eu queria jogar um pouco de cassino. WILLY (furioso) Cassino ! (Incrédulo) Você não sabe que dia é hoje, não? LINDA Claro que sabe, Willy. Ele está brincando com você. WILLY Não há motivo pra brincar! CHARLEY Não sei não. Linda, o que é? 3 74

LINDA Ele vai jogar em Ebbets Field ! CHARLEY Beisebol com esse tempo? WILLY Não perca tempo com ele. Vamos, vamos! (Empurra-os para fora.) CHARLEY Espere um pouco, você não ouviu o rádio? WILLY O que é? CHARLEY Não ouviu, não? Ebbets Field explodiu. WILLY Vá à merda! (Charley ri. Willy empurra-os.) Vamos embora, vamos embora! Já estamos atrasados! CHARLEY É bola-ao-cesto ou vôlei, Biff? WILLY (o último a sair, virando-se para Charley) Não achei graça nisso, Charley. Hoje é o dia mais importante da vida dele. CHARLEY Oh, Willy, quando é que você vai crescer? WILLY E, não é? Pois quando esse jogo acabar, eu só quero ver qual de nós dois vai estar rindo. Eles vão chamar Biff de o novo Red Grange. Vinte e cinco mil dólares por ano. 375

CHARLEY (brincando) É mesmo? WILLY É mesmo. CHARLEY Bom, então desculpe, Willy. Mas, me diga só uma coisa. WILLY O que é? CHARLEY Quem é Red Grange? WILLY Venha cá, se você for homem ! Venha cá, quero ver! (Charley, rindo, balança a cabeça e sai pelo lado esquerdo do palco. Willy vai atrás dele. A música aumenta e se transforma num frenesi.) Quem é que você pensa que é, pensa que é melhor que os ou-tros? Você não sabe nada ! Seu bobão, ignorante, estúpido! Ve-nha cá, se for homem ! (A luz se acende à direita, sobre uma pequena mesa, na sala de recepção do escritório de Charley. Ouvem-se os ruídos do tráfego. Bernard, já maduro, senta-se assobiando. No chão, perto dele, estão um par de raquetes de tênis e uma sacola.) WILLY (fora de cena) Por que você está fugindo? Não fuja! Se tem que me dizer alguma coisa, diga na minha cara! Eu sei que você ri de mim. nas minhas costas. Pois, quando esse jogo acabar, eu só quero ver qual de nós dois vai estar rindo. Gol ! Gol! Oitenta mil pessoas ! Gol! Gol! 3 76

(Bernard é jovem, mas sério e responsável. Ou-ve-se a voz de Willy vindo agora da direita do palco. Bernard tira os pés de cima da mesa e escuta. Entra Jenny, secretária de seu pai.) JENNY (aborrecida) Escuta, Bernard, será que você podia ir até o hall? BERNARD Que barulho é esse? Quem é? JENNY O senhor Loman. Acaba de sair do elevador. BERNARD (levantando-se) Com quem ele está discutindo? JENNY Com ninguém. Ele está sozinho. Eu já não sei mais o que fazer com ele, e seu pai fica muito nervoso cada vez que ele vem aqui. Eu tenho que bater uma porção de cartas e seu pai está esperando para assinar. Será que você pode cuidar dele? WILLY (entrando) Gol! Gol! (Vê Jenny.) Jenny! Jenny, que bom ver você de novo ! Trabalhando muito? Ainda honesta? JENNY Vou bem. Como está o senhor? WILLY Já fui melhor. Jenny, já fui melhor! Ha! Ha! (Surpreende-se ao ver as raquetes.) BERNARD Alô, tio Willy. 377

WILLY (quase chocado) Bernard! Ora vejam só quem está aqui. (Aproxima-se rapida-mente de Bernard, com ar de culpado, e aperta calorosamente a mão dele.) BERNARD Como vai o senhor? Que prazer em vê-lo. WILLY Que é que você está fazendo aqui? BERNARD Dei um pulo aqui pra ver papai. Estirar um pouco as pernas até a hora do meu trem. Vou a Washington daqui a pouco. WILLY Ele está? BERNARD Está conversando com o contador. Mas sente-se. WILLY (sentando-se) Que é que você vai fazer em Washington? BERNARD Nada, é uma causa que eu tenho lá. WILLY Ah, é? (Indicando as raquetes) Você vai jogar tênis lá? BERNARD Vou ficar na casa de um amigo que tem uma quadra. WILLY Não diga. Uma quadra de tênis em casa. Aposto que é gente fina. 3 78

r BERNARD São muito simpáticos. Papai me disse que Biff está por aqui. WILLY (com um grande sorriso) Está sim. Está tratando de um assunto muito importante. BERNARD Que é que ele anda fazendo? WILLY Bom, ele andou fazendo umas coisas muito importantes lá no oeste. Mas decidiu se estabelecer aqui. Coisa grande. Nós va-mos jantar juntos. Disseram-me que você já é pai? BERNARD É. É o segundo filho. WILLY Dois filhos! Puxa vida. BERNARD Qual é o negócio de Biff? WILLY Bem, Bill Oliver. . . é muito importante no ramo de artigos de esporte... ele está precisando muito de Biff. Chamou-o lá do oeste. Interurbano, carta branca, tudo de primeira. . . Os seus amigos têm uma quadra de tênis em casa? BERNARD Você continua na mesma companhia, Willy? WILLY (depois de uma pausa) Estou. . . estou muito satisfeito de ver você tão bem encami-nhado, Bernard. Satisfeitíssimo. É uma coisa ótima ver um jo-vem assim . . . assim . . . É uma coisa muito boa para Biff. . . muito. . . (Interrompe-se e depois diz) Bernard. . . (Está tão emocionado que pára de novo.) 379

BERNARD O que é, Willy? WILLY (humilde e desamparado) Qual é o segredo? BERNARD Que segredo? WILLY Como é que você fez? Por que é que Biff nunca conseguiu? BERNARD Não sei, Willy. WILLY (confidencial, desesperado) Você era amigo dele, amigo de infância. Há uma coisa que eu não entendo. A vida dele acabou depois daquele jogo. De pois dos dezessete anos, não aconteceu mais nada de bom a ele. BERNARD Ele nunca se preparou para nada. WILLY Mas ele se preparou, sim. Depois do ginásio, ele fez uma por ção de cursos por correspondência: rádio, mecânica, televisão, Deus sabe o que, e nunca conseguiu nada. BERNARD (tirando os óculos) Willy, quer que eu fale francamente? WILLY (levanta-se, encara Bernard) Considero você um homem brilhante, Bernard. Dou muito va-lor a seu conselho. BERNARD Oh, ao diabo com o conselho, Willy. Eu não posso lhe dar .180

conselho algum. Há só uma coisa que eu sempre quis pergun-tar-lhe. Quando ele estava quase se formando, e o professor de matemática o reprovou . . . WILLY Aquele filho da mãe arruinou a vida dele . . . BERNARD Mas, Wílly, a única coisa que ele tinha que fazer era prestar p exame de segunda época. WILLY Eu sei, eu sei. BERNARD Você disse a ele que não prestasse o exame? WILLY Eu? Eu implorei que ele fizesse! Eu ordenei que ele fizesse! BERNARD E por que ele não fez? WILLY Por quê? Por quê! Bernard, essa pergunta tem torturado a mi-nha vida nos últimos quinze anos. Ele foi reprovado e abando-nou tudo e se abateu, como se tivesse sido golpeado por um martelo! BERNARD Calma, Willy. WILLY Deixe-me conversar com você ... Eu não tenho ninguém com quem conversar. Bernard, Bernard, a culpa foi minha? Você compreende? É uma coisa que fica martelando aqui na minha cabeça. Será que eu fiz algum mal a ele? Eu não tinha nada para dar a ele. 381

BERNARD Eu sei, estou indo. (Pega a garrafa.) Obrigado, papai. (Apanha as raquetes e a sacola.) Adeus. Willy, e não se preocupe com isso. Você sabe. "se da primeira vez não dá certo . . . " WILLY Eu sei. eu acredito nisso. BERNARD Mas às vezes, Willy, é melhor que um homem esqueça. WILLY Esqueça? BERNARD Isso. WILLY E se a gente não consegue esquecer? BERNARD (depois de uma pausa) Então acho que deve ser muito duro. (Estendendo a mão) Adeus, Willy. WILLY (apertando a mão dele) Adeus, garoto. CHARLEY (com um braço no ombro de Bernard) Que é que você me diz deste menino? Vai defender uma causa no Supremo Tribunal. BERNARD (protestando) Papai! WILLY (verdadeiramente chocado, sentido e feliz) Não ! No Supremo Tribunal! 384

BERNARD Tenho que ir correndo. Adeus, papai! CHARLEY Acabe com eles, Bernard ! (Bernard sai.) WILLY (enquanto Charley tira a carteira) O Supremo Tribunal! E ele nem me falou nisso ! CHARLEY (contando o dinheiro na mesa) Não tem que falar . . . tem que fazer. WILLY E você nunca disse o que é que ele tinha de fazer, não é? Você nunca teve maior interesse. CHARLEY Minha salvação é que eu nunca tive maior interesse em coisa nenhuma. Aqui tem algum dinheiro. . . cinqüenta dólares. Te-nho um contador me esperando. WILLY Escute, Charley. . . (Com dificuldade) Eu tenho que pagar meu seguro. Se você pudesse me arranjar... eu preciso de cento e dez dólares. (Charley não responde logo; pára de andar.) Eu podia sacar do meu banco, mas Linda ia perceber e. . . CHARLEY Sente-se, Willy. WILLY (andando em direção à cadeira) Eu estou tomando nota de tudo muito direitinho. Vou pagar tudo tintim por tintim. (Senta-se.) 385

CHARLEY Agora preste atenção, Willy. WILLY Quero que você saiba que eu aprecio . . . CHARLEY (sentando-se na mesa) Willy, o que é que há com você? Que é que se passa nessa cabeça? WILLY Por quê? Eu só estou . . . CHARLEY Eu lhe ofereci um emprego. Pago cinqüenta dólares por se-mana. E você não precisa viajar. WILLY Eu tenho um emprego. CHARLEY Sem salário? Que emprego é esse, sem salário? (Levanta-se.) Bem, rapaz, agora chega. Eu não sou um gênio, mas sei quando me ofendem. WILLY Mas quem o ofendeu? CHARLEY Por que é que você não quer trabalhar para mim? WILLY Mas o que é isso agora? Eu tenho um emprego. CHARLEY Então o que é que você vem fazer aqui toda semana? 386

WILLY (levantando-se) Bom, se você não quer que eu venha mais aqui. . . CHARLEY Eu estou lhe oferecendo um emprego. WILLY Não preciso do seu maldito emprego ! CHARLEY Oh, meu Deus, quando será que você vai crescer? WILLY (furioso) Oh, seu grande ignorante, se você repetir isso, eu lhe parto a cara! Não tenho medo de você, não ! (Está em posição de luta. Pausa.) CHARLEY (bondosamente, dirigindo-se para ele) De quanto é que você precisa, Willy? WILLY Charley, eu estou liquidado. Liquidado. Não sei o que fazer. Fui despedido. CHARLEY Howard despediu você? WILLY Aquele ranhento. Você já viu coisa igual? Fui eu que dei o nome que ele tem. Eu lhe dei o nome de Howard. CHARLEY Willy, quando é que você vai perceber que essas coisas não significam nada? Você deu a ele o nome de Howard, mas você não pode vender isso. A única coisa que se tem neste mundo é aquilo que se pode vender. O mais engraçado é que você é um vendedor e não sabe disso. 387

WILLY Acho que eu sempre quis pensar de outro modo. Sempre achei que, se um homem causasse boa impressão e fosse estimado, que nada. . . CHARLEY Por que é que as pessoas precisam gostar de você? Quem gos-tava de J. P. Morgan? Ele dava boa impressão? Numa sauna ele devia parecer um açougueiro. Mas, com os bolsos cheios, ele era muito querido. Agora escute, Willy, eu sei que você não gosta de mim, e eu não estou apaixonado por você, não. mas eu lhe ofereço um emprego porque. . . porque sim, ora! O que você me diz? WILLY Eu ... eu não posso trabalhar para você, Charley. CHARLEY Por que você tem ciúme de mim? WILLY Eu não posso trabalhar para você, só isso. Não me pergunte por quê. CHARLEY (zangado,pega mais algumas notas da carteira) Você teve ciúme de mim a vida inteira, seu bobão! Olhe aqui, pague seu seguro. (Põe o dinheiro na mão de Willy.) WILLY Eu estou tomando nota de tudo. CHARLEY Tenho que trabalhar. Tome cuidado com você. E pague o se-guro. WILLY (caminhando para a direita) É engraçado, sabe? Depois de todas as estradas, todos os trens.

todas as visitas, todos os anos e anos. a gente termina valendo mais morto do que vivo. CHARLEY Willy, morto ninguém vale nada. (Depois de pequena pausa.) Ouviu o que eu disse? (Willy permanece parado, sonhando.) CHARLEY Willy ! WILLY Quando você se encontrar com Bernard, peça desculpas por mim. Não queira discutir com ele. Ele é um ótimo rapaz. To-dos eles são ótimos rapazes, e todos vão fazer sucesso. Todo:-,. Algum dia todos vão jogar tênis juntos. Deseje-me boa sorte. Charley. Ele foi se encontrar com Bill Oliver hoje. CHARLEY Boa sorte. WILLY (quase chorando) Charley, você é o único amigo que eu tenho. Não é uma coisa notável? (Sai.) CHARLEY Meu Deus do céu! (Charley olha-o por um instante e depois sai pelo mesmo lugar. Todas as luzes se apagam. Ouve-se uma música roufenha e vê-se um resplendor avermelhado, à direita. Stanley, um jovem garçom, aparece carregando uma mesa, seguido por Happy, que carrega duas cadeiras.) 389

STANLEY (pondo a mesa no chão) Pode deixar, senhor Loman. Deixe que eu arrumo. (Vira-se, pega as cadeiras de Happy e as põe junto à mesa.) HAPPY (olhando à sua volta) Ah, aqui é melhor. STANLEY Claro, lá na frente o senhor estava no meio da barulheira. Quando o senhor quiser ficar tranqüilo, senhor Loman, é só me dizer e eu coloco o senhor aqui. Sabe, há uma porção de gente que não gosta dum lugar mais tranqüilo porque, quando vão jantar fora, querem ver um bocado de confusão porque eles estão com o saco cheio de ficar em casa o tempo todo. Mas o senhor eu conheço, o senhor não é cretino. Entende? HAPPY (sentando-se) Como é que vai a vida, Stanley? STANLEY É uma vida de cachorro. Eu só queria que o Exército tivesse me chamado durante a guerra. Quem sabe a essa hora eu já estivesse morto? HAPPY Meu irmão voltou, Stanley. STANLEY Ah, voltou, não é? Lá do oeste. HAPPY É, meu irmão é um grande fazendeiro, portanto, trate bem dele. E meu pai vem também. STANLEY Ah, seu pai também! 390

HAPPY Você tem aí uma boa lagosta? STANLEY Cem por cento. Enormes. HAPPY Quero com pinça e tudo. STANLEY Fique tranqüilo que eu não vou lhe dar siri. (Happy ri.) E vi-nho? Com lagosta um vinho branco vai bem. HAPPY Não. Você se lembra daquela receita que eu trouxe para você da Europa? Com champanha? STANLEY Claro. Ainda a tenho guardada na cozinha. Mas isso vai custar pelo menos um dólar cada taça. HAPPY Não há problema. STANLEY O que foi, ganhou na loteria? HAPPY Não, é pra celebrar uma coisa. Meu irmão. . . acho que ele fechou um grande negócio hoje. Acho que vamos trabalhar juntos. STANLEY Ótimo! Isso é que é bom. Porque um negócio em família, en-tende? . . . é melhor. HAPPY Também acho. 391

STANLEY Por que, qual é o problema? Se alguém rouba, está tudo em família. Entende? (Em voz baixa) Como o cara do bar aqui. O patrão já tá ficando maluco com a caixa registradora. O dinheiro entra, mas não sai. H APPY (levantando a mão) Shhh! STANLEY O que foi? HAPPY Você percebeu que eu não estava olhando pra lugar nenhum, não é? STANLEY É. HAPPY E meus olhos estão fechados. STANLEY Bom, mas qual é. . . HAPPY Vem mulher chegando. STANLEY (olhando para todos os lados) Não, não há ninguém . . . (Interrompe-se no momento exato em que entra uma moça vestida exageradamente, com uma pele, e senta-se na mesa vizinha. Ambos a seguem com o olhar.) STANLEY Puxa, como é que o senhor sabia? 392

HAPPY Acho que eu tenho radar. (Olhando diretamente para ela.) Oh . . . Stanley ! STANLEY Acho que é o seu tipo, senhor Loman. HAPPY Olha só aquela boca. Meu Deus. E os olhos ! STANLEY Puxa, o senhor é que leva a vida, senhor Loman. HAPPY Vá ver o que ela quer. STANLEY (indo à mesa da moça) A senhora quer ver o cardápio, madame? A MOÇA Estou esperando uma pessoa, mas acho que quero . . . HAPPY Por que é que você não traz. . . me desculpe, senhorita, mas eu sou vendedor de champanha, e gostaria que você experimen-tasse a minha marca. Traga uma champanha para ela, Stanley. A MOÇA Mas que coisa tão simpática. HAPPY Nem pense nisso. É dinheiro da companhia. (Ri.) A MOÇA É um artigo agradável de vender, não é? 393

HAPPY Como qualquer outro. Vendas são vendas, você sabe. A MOÇA É, acho que sim. HAPPY Você não vende nada, vende? A MOÇA Não, não vendo nada. HAPPY Você se incomoda com o elogio de um estranho? Você devia estar na capa das revistas. A MOÇA (olhando para ele, um pouco maliciosa) Já estive. (Stanley volta com uma garrafa de champanha.) HAPPY Que foi que eu lhe disse, Stanley? Está vendo? Ela é uma mo-delo. STANLEY Está na cara. HAPPY (à moça) Que revista? A MOÇA Uma porção. (Pega o drinque.) Obrigada. HAPPY Sabe o que dizem na França, não é? "Champanha é a bebida do espírito". . . Ei, Biff! 394

( Biff entra e senta-se com Happy.) Biff Oi, garoto. Desculpe o atraso. HAPPY Acabei de chegar. Aqui, a senhorita. . . ? A MOÇA Forsythe. HAPPY Senhorita Forsythe, este é meu irmão. Biff Papai chegou? HAPPY O nome dele é Biff. Você deve ter ouvido falar nele. Grande campeão de futebol. A MOÇA É mesmo? Que time? HAPPY Você entende de futebol? A MOÇA . Não. HAPPY Biff é o zagueiro dos Gigantes de Nova York. A MOÇA Puxa, que maravilha. (Bebe.) 395

HAPPY Saúde. A MOÇA Foi um prazer conhecer você. HAPPY Meu nome é Happy. Hap. O nome mesmo é Harold, mas em West Point eles me chamavam Happy. A MOÇA (agora impressionada mesmo) Ah, sei. Encantada! (Vira-se de perfil.) Biff Papai não vem? HAPPY Você quer ficar com ela? Biff Eu jamais conseguiria. HAPPY Houve tempo em que uma idéia assim nem lhe passaria pela cabeça, Biff. Cadê a velha confiança? Biff Eu acabei de ver Oliver. . . HAPPY Espere um pouco. Quero ver aquela velha confiança de novo. Está vendo? Ela está dando sopa. Biff Não, não. (Vira-se para olhar a moça.) 396

HAPPY Estou lhe dizendo. Espia só. (Virando-se para ela) Meu bem? (Ela se vira para ele.) Você está livre? A MOÇA Não, livre não estou. . . mas eu podia dar um telefonema. . . HAPPY Então telefone, tá? E veja se arranja uma amiga. Nós vamos ficar um pouco por aqui. Biff é um dos maiores jogadores do país. A MOÇA (levantando-se) Bem, eu gostei muito de conhecer vocês. HAPPY Volte logo. A MOÇA Vou ver. HAPPY Não veja, meu bem, volte no duro. (A moça sai. Stanley a segue, balançando a cabeça com grande admiração.) Mas não é uma vergonha? Uma moça bonita dessas? Por isso é que eu não quero me casar. Você não encontra uma moça decente em mil. Nova York está cheia delas, menino! Biff Escuta, Hap . . . HAPPY Eu lhe falei que ela estava dando sopa! Biff (estranhamente nervoso) Pare com isso, sim? Eu quero lhe dizer uma coisa. 397

HAPPY Você viu Oliver? Biff Vi. Agora escute, eu quero dizer umas coisas a papai e quero que você me ajude. HAPPY O quê? Ele vai readmiti-lo? Biff Você ficou maluco? O que é que você tem na cabeça? HAPPY Por quê? O que aconteceu? Biff (sem fôlego) Eu fiz uma coisa terrível hoje, Hap. Foi o dia mais estranho da minha vida. Eu estou paralisado até agora. HAPPY Ele não quis falar com você? Biff Eu esperei mais de seis horas por ele, entende? O dia inteiro. Minha visita foi anunciada sei lá quantas vezes. Tentei até dar em cima da secretária, pra ver se ela conseguia me fazer entrar. Tudo em vão. HAPPY É porque você não está mostrando a velha confiança, Biff. Ele se lembrava de você, não é? Biff (interrompendo Happy com um gesto) Finalmente, lá pelas cinco horas, ele saiu. Não se lembrava de mim nem nada. Senti-me um perfeito idiota, Hap. 398

HAPPY Você falou da minha idéia da Flórida? Biff Ele foi embora. Eu o vi por um minuto. Fiquei tão furioso que poderia destruir o escritório! Como é que passou pela minha cabeça que eu fui vendedor daquela firma? Eu mesmo cheguei a acreditar nisso! E aí ele me deu uma olhada. . . e eu com-preendi a mentira ridícula que tem sido a minha vida! Estamos vivendo num sonho há quinze anos. Lá eu era só um empre-gado na expedição. HAPPY Que é que você fez? Biff (com grande tensão) Ele foi embora. E a secretária saiu. Eu fiquei sozinho na sala de espera. Não sei o que me deu, Hap. De repente, eu estava dentro do escritório dele, paredes com painéis de madeira, etc. Não sei explicar. Hap, eu roubei a caneta dele. HAPPY Puxa, e ele pegou você? Biff Fugi. Eu desci correndo os onze andares. E vim correndo de lá até aqui. HAPPY Mas isso foi uma besteira. Por que é que você fez isso? Biff (agoniado) Eu não sei, eu só queria. . . tirar alguma coisa dele. Você tem que me ajudar, Hap, tenho que contar a papai. HAPPY Você ficou maluco? Pra quê? 399

Biff Happy, ele tem que compreender que eu não sou o tipo de pes-soa a quem os outros emprestam dinheiro. Ele pensa que eu o estou magoando de propósito e isso o deixa acabrunhado. HAPPY Pois é isso mesmo. Você tem que dizer a ele alguma coisa agradável. Biff Não posso. HAPPY Diga que você vai almoçar com Oliver amanhã. Biff E o que é que eu faço amanhã? HAPPY Amanhã você sai de casa, volta de noite e diz que Oliver está pensando no assunto. Ele fica pensando no assunto por uns quinze dias, a coisa toda vai sendo esquecida e ninguém fica triste. Biff Mas isso vai ser assim sempre! HAPPY Nada deixa papai tão feliz quanto uma esperança. (Willy entra.) Alô, campeão! WILLY Puxa, fazia anos que eu não vinha aqui! (Stanley veio atrás de Willy, trazendo uma cadeira para ele. Depois vai embora, mas Happy o detém.) 400

HAPPY Stanley! (Stanley pára, esperando o pedido.) Biff (indo a Willy, cheio de culpa, como a um inválido) Sente-se, papai. Você quer um drinque? WILLY Acho que é uma boa idéia. Biff Isso, vamos beber alguma coisa. WILLY Você parece preocupado. Biff N ... não. (A Stanley) Uísque pra todo mundo. Duplo. STANLEY Duplos. (Sai.) WILLY Vocês já tomaram alguns, não é? Biff limou dois. WILLY Muito bem, como é que foi, rapaz? (Sorrindo e assentindo com a cabeça) Tudo bem? Biff (respira e depois pega a mão de Willy) Papai. . . (Sorri, Willy também.) Hoje tive uma grande expe-riência. 401

HAPPY Notável, papai. WILLY É mesmo? O que aconteceu? Biff (meio alto, meio bêbado, como se estivesse nas nuvens) Eu vou lhe contar tudo tintim por tintim. Foi um dia muitc estranho. (Silêncio. Olha à sua volta, arruma-se o melhor que pode, mas a respiração continua quebrando o ritmo de sua fala.) Eu tive que esperar um tempão por ele e... WILLY Oliver? Biff É, Oliver. Para falar a verdade, tive que esperar o dia inteiro. E uma porção de fatos e lembranças da minha vida vieram a mim, papai. Quem foi, papai? Quem foi que disse que eu um dia fui vendedor para Oliver? WILLY Bom, você foi. Biff Não papai, eu trabalhava na expedição. WILLY Mas você praticamente. . . Biff (com determinação) Papai, eu não sei qual de nós disse, mas eu nunca fui um vende dor para Oliver. WILLY Mas que conversa é essa agora? 402

Biff Vamos enfrentar os fatos hoje, papai. Nós não vamos chegar a lugar nenhum com mentiras. Eu trabalhava na expedição. WILLY (zangado) Muito bem, agora escute aqui. . . Biff Por que é que você não me deixa acabar? WILLY Eu não estou interessado em histórias do passado nem em ne-nhuma besteira desse tipo, porque a casa está pegando fogo. E nós estamos bem no meio do incêndio. Eu fui despedido hoje. Biff (chocado) Mas como é possível? WILLY Fui despedido, e estou procurando uma boa notícia para dar a sua mãe, porque essa mulher tem esperado e tem sofrido. E o problema maior é que não restou nenhuma história na mi-nha cabeça. Portanto, não me venha com uma conferência sobre fatos e memórias, porque não me interessa. Que é que você tem a me dizer? (Stanley entra com três drinques. Eles esperam até que ele vá embora.) WILLY Você viu Oliver? Biff Meu Deus, papai! WILLY Você está dizendo que nem foi lá? 403

HAPPY Claro que ele foi lá, papai. Biff Fui. Eu o vi. Como é que eles despediram você? WILLY (na ponta da cadeira) Como é que ele o recebeu? Biff Mas eles não deixaram nem você trabalhar por comissão? WILLY Estou na rua. (Continuando) Ele o recebeu bem? HAPPY Claro, papai, muito bem! Biff (vencido) Bom, foi como se... WILLY E eu estava pensando se ele ia se lembrar de você! (A Happy) Imagine, o homem não o vê por dez, doze anos, e o recebe desse jeito! HAPPY Pois é! Biff (tentando voltar à carga) Escute, papai. . . WILLY Sabe por que ele se lembrou de você, não sabe? Porque você o impressionou bem naquele tempo. Biff Vamos falar com calma e nos restringir aos fatos, está bem? 404

WILLY Bom, o que aconteceu? É uma notícia ótima, Biff! Ele falou com você na sala de espera ou levou você ao escritório? Biff Bom, ele chegou, viu, e. . . WILLY (num largo sorriso) Que disse ele? Aposto que lhe deu um abraço. Biff Bom, ele... WILLY Ê um sujeito formidável. (A Happy) E é muito difícil falar com ele. HAPPY (concordando) Eu sei, eu sei. WILLY (a Biff) Foi lá que você tomou uns drinques? Biff É, ele me deu um ou dois. . . não! HAPPY (intervindo) Biff falou da minha idéia da Flórida. WILLY Não interrompa. (A Biff) Como é que ele reagiu à idéia da Flórida? Biff Papai, será que você pode me dar um minuto para eu explicar? 405

WILLY Estou esperando que você explique, desde que me sentei aqui. Como é que foi? Ele levou você ao escritório, e daí? Biff Bom ... eu falei. E... ele escutou, entende? WILLY É um homem que escuta o que se diz, é famoso por isso. Qual foi a resposta dele? Biff Ele disse que. . . (Interrompe-se subitamente, raivoso.) Papai, você não está me deixando dizer o que eu quero! WILLY (acusando, zangado) Você nem o viu, não é? Biff Eu vi, sim! WILLY E o que foi que você fez, você o insultou? Você o insultou, não foi? Biff Escute, quer deixar-me falar! Quer deixar-me falar? ! HAPPY Droga! WILLY Diga-me o que foi que houve ! Biff (para Happy) Eu não consigo falar com ele ! 406

(Ouve-se uma nota de pistom. A luz de folhas verdes envolve a casa, que tem um ar noturno e de sonho, o jovem Bernard entra e bate na porta da casa.) O JOVEM BERNARD (desesperado) Senhora Loman! Senhora Loman! HAPPY Diga a ele o que houve! Biff (a Happy) Cale a boca e me deixe em paz ! WILLY Não, não! Você tinha que chegar lá e ser reprovado em mate-mática ! Biff Que matemática? O que é isso agora? O JOVEM BERNARD Senhora Loman! Senhora Loman! (Linda aparece na casa, como antigamente.) WILLY (selvagemente) Matemática, matemática! Biff Calma, papai! O JOVEM BERNARD Senhora Loman! WILLY (furioso) Se você não tivesse sido reprovado em matemática, hoje você seria alguém! 407

Biff Olhe aqui, eu vou lhe contar o que houve e você vai me escu-tar! O JOVEM BERNARD Senhora Loman! Biff Eu esperei seis horas . . . HAPPY Mas o que é isso que você está dizendo? Biff Fiquei lá o tempo todo, mas ele não me recebia. Até que final-mente ele... (Continua sem ser ouvido, enquanto as luzes sobre o restaurante se apagam.) O JOVEM BERNARD Biff foi reprovado em matemática! LINDA Não! O JOVEM BERNARD É, sim ! Ele não vai se formar ! LINDA Mas ele tem que tirar o diploma. Tem que ir para a universi-dade ! Onde é que ele está? Biff! Biff! O JOVEM BERNARD Ele foi embora. Ele foi para a estação! LINDA Para a estação? Quer dizer que ele foi a Boston ! 408

O JOVEM BERNARD Tio Willy está em Boston? LINDA Oh, talvez Willy possa falar com o professor. Coitado de Biff, coitado dele! (As luzes da casa se apagam.) Biff (à mesa, agora audível, mostrando uma caneta de ouro que tem na mão) . . . portanto eu estou liquidado com Oliver, compreendeu? Você está me ouvindo? WILLY (perdido) Claro. Se você não tivesse sido reprovado. . . Biff Reprovado no quê? Que conversa é essa? WILLY Não jogue toda a culpa em mim! Eu não fui reprovado em matemática. . . Você foi! Que caneta? HAPPY Isso foi uma besteira, Biff, uma caneta dessas vale . . . WILLY (vendo a caneta pela primeira vez) Você apanhou a caneta de Oliver? Biff (fraquejando) Papai, acabei de explicar tudo a você. WILLY Você roubou a caneta de Bill Oliver ! Biff Não foi bem um roubo! É isso que eu estou lhe explicando! 409

HAPPY Ele estava com a caneta na mão, aí Oliver entrou, ele ficou nervoso e botou-a no bolso, só isso! WILLY Meu Deus, Biff! Biff Eu não tinha intenção, papai! VOZ DA TELEFONISTA Grande Hotel, boa noite! WILLY (gritando) Não estou no quarto! Biff (assustado) Papai, que foi? (Ele e Happy se levantam.) A TELEFONISTA Chamando o senhor Loman ! WILLY Pára com isso, eu não estou! Biff (horrorizado, fica de joelhos diante de Willy) Papai, eu vou conseguir, eu vou conseguir. (Willy tenta levan-tar-se. Biff o segura.) Fique sentado. WILLY Não, você não presta, você não presta pra nada. Biff Presto sim, papai, eu vou encontrar uma outra coisa, com-preende? Agora descanse. (Levanta o rosto de Willy.) Fale co-migo, papai. 410

A TELEFONISTA O senhor Loman não responde. Quer que vá procurá-lo? WILLY (tentando levantar-se, como se quisesse silenciar a telefonista) Não, não! HAPPY Ele vai conseguir alguma coisa, papai. WILLY Não, não . . . Biff (desesperadamente, de pé diante de Willy) Papai, escute ! Escute, papai! Eu estou lhe dizendo uma coisa boa. Oliver falou com o sócio dele sobre a idéia da Flórida, entende? Está me ouvindo? Ele falou com o sócio, e o sócio me disse. . . vai dar tudo certo, ouviu? Papai, me escute, ele disse que era só acertar a quantia. WILLY Então. . você conseguiu.' HAPPY Ele vai ser formidável, papai! WILLY (tentando levantar-se) Então você conseguiu, não foi? Você conseguiu! Você conse-guiu! Biff (agoniado, faz com que Willy se sente) Não, não. Escute, papai. Eu tenho um almoço marcado com eles amanhã. Estou lhe dizendo isso só para você saber que eu ainda impressiono bem as pessoas. E eu vou conseguir, num outro lugar, mas amanhã eu não posso ir, sabe? Willy Por que não? Você simplesmente . . . 411

Biff Mas a caneta, papai! WILLY Você devolve a ele e diz que foi uma distração! HAPPY Claro, vá ao almoço amanhã! Biff Mas eu não posso dizer que . . . WILLY Você estava fazendo palavras cruzadas, e, sem querer, pegou a caneta dele! Biff Escute, papai, há anos atrás eu já tirei aquelas bolas, e eu agora apareço com a caneta dele? Uma coisa liga com a outra, você não vê? Eu não posso olhar pra cara dele! Eu vou tentar noutro lugar! VOZ DO PAJEM Procurando o senhor Loman ! WILLY Você não quer ser nada na vida? Biff Papai, como é que eu posso voltar lá? WILLY Você não quer ser ninguém, é isso? Biff (agora raivoso porque Willy não dá crédito a sua simpa-tia) Não fale assim ! Você acha que foi fácil para mim ir até aquele 412

escritório depois do que eu tinha feito? Ninguém seria capaz de me carregar até lá! WILLY Então por que foi? Biff Por que fui? Por que fui! Mas olhe só para você! Olhe no que você se transformou ! (Fora, à esquerda, a mulher ri.) WILLY Biff, ou você vai a esse almoço amanhã ou ... Biff Não posso ir. Não tenho nenhum encontro marcado! HAPPY Biff, pelo amor . . . WILLY Você está se divertindo à minha custa? Biff Mas não é nada disso, pelo amor de Deus! WILLY (tenta golpear Biff e se afasta da mesa) Seu cafajeste ! Está se divertindo à minha custa! A MULHER Alguém está batendo à porta, Willy ! Biff Eu não presto, será que você não vê? 413

HAPPY (apartando os dois) Ei, vocês estão num restaurante! Vamos parar com isso! (As moças entram.) Alô, meninas, sentem-se. (Fora, à esquerda, a mulher ri.) SENHORITA FORSYTHE Vamos sentar um pouquinho. Esta é Letta. A MULHER Willy, você não vai se levantar? Biff (ignorando Willy) Como vai, tudo bem? Sente se. O que é que você bebe? FORSYTHE Letta não pode ficar muito tempo. LETTA Tenho que acordar cedo amanhã. Vou ser jurada no tribunal. Estou tão nervosa! Algum de vocês já foi do júri? Biff Não, mas já enfrentei um! (As moças riem.) Este é meu pai. LETTA Não é uma gracinha? Sente se aqui com a gente, papai. HAPPY Faça o sentar, Biff! Biff (dirigindo-se a Willy) Vamos lá, campeão, vamos tomar um pileque. Que vá tudo pro inferno. Vem, vamos sentar. (Willy quase se senta, graças à insistência de Biff.) 414

1 A MULHER (agora nervosa) Willy, você não vai atender à porta? ! (O chamado da mulher faz com que Willy se aprume. Tenta sair, aturdido.) Biff Ei, onde é que você vai? WILLY Abrir a porta. Biff A porta? WILLY O banheiro ... a porta. . . onde é a porta? Biff (conduzindo Willy para a esquerda) Siga em frente. (Willy se move pela esquerda.) A MULHER Willy, você vai se levantar, levantar, levantar, levantar? (Willy sai.) LETTA Foi muito simpático você trazer seu pai. FORSYTHE Ah, não é realmente o pai dele! Biff (da esquerda, diz a ela, ressentido) Senhorita Forsythe, você acaba de ver passar um príncipe. Um nobre príncipe atormentado. Um desprezado príncipe do traba- 415

lho. Um amigo, compreende? Um bom companheiro. Que ama seus filhos. LETTA Puxa, que bonito. HAPPY Bom, pessoal, qual é o programa? Estamos perdendo tempo. Venha pra cá, Biff. Junte-se a nós. Onde é que vocês querem ir? Biff Por que você não o ajuda? HAPPY Eu!? Biff Você não liga a mínima para ele, Hap? HAPPY Que papo é esse? Sou eu que . . . Biff Entendo muito bem. Você não dá a menor atenção a ele. (Tira o tubo de borracha do bolso e coloca na mesa, em frente a Happy.) Olhe o que eu achei no porão. Pelo amor de Deus! Como é que você permite uma coisa dessas? HAPPY Eu? Mas quem é que foi embora? Quem é que vive fugindo e. . . BIFF Ele não significa nada para você. Você poderia ajudá-lo. . eu não! Será que você não entende o que eu estou falando? Ele vai se suicidar, você ainda não percebeu? 416

HAPPY Se eu não percebi? Eu ! Biff Hap, pelo amor de Deus. . . ajude papai! Ajude-o . . . E ajude a mim! Ajude-me, ajude-me! Eu não suporto olhar o rosto dele! (Quase chorando, sai correndo pela direita.) HAPPY (começando a ir atrás dele) Onde é que você vai? FORSYTHE O que é que ele tem? HAPPY Vamos lá, meninas, vamos atrás dele! FORSYTHE (enquanto Happy a empurra) Olhe, eu não gostei do jeito dele, não ! HAPPY Está só um pouco nervoso, já passa logo. WILLY (de fora, à mulher) Não abra! Não abra! LETTA Você não prefere dizer a seu pai... HAPPY Esse aí não é meu pai, não. É um sujeito qualquer. Vamos lá, vamos alcançar Biff, e vamos fazer uma farra daquelas. Stanley, cadê a conta !? Stanley ! (Saem. Stanley olha à esquerda.) STANLEY (chamando Happy, indignado) Senhor Loman ! Senhor Loman ! 417

(Stanley pega uma cadeira e sai atrás deles. Fora, ouvem-se batidas numa porta, à esquerda. A mu-lher entra, rindo. Willy a segue. Ela usa um baby-doll prelo. Ele abotoa a camisa. Uma música sen-suai acompanha as falas.) WILLY Quer parar de rir? Quer parar? A MULHER Você não vai atender à porta? Ele vai acordar o hotel inteiro. WILLY Não estou esperando ninguém. A MULHER Por que você não toma mais um drinque, querido, e se relaxa um pouco? WILLY Estou tão solitário. A MULHER Sabe que você me conquistou, Willy? De agora em diante, toda vez que você chegar ao escritório, vou botar você imediata-mente em contato com os compradores. Você não vai ter que esperar mais. Você é fantástico, Willy. WILLY Obrigado. É bom que você diga isso. A MULHER Puxa. como você está deprimido! Por que está tão triste? Você é a pessoa mais triste e deprimida que eu já vi. (Ela ri. Ele a beija.) Venha para cá, venha! É bobagem vestir a roupa no meio da noite. (Ouvem-se batidas.) Você não vai abrir a porta? 418

WILLY Estão batendo na porta errada. A MULHER Nada, estão batendo aí. E ele nos ouviu conversando. Quem sabe o hotel está pegando fogo? WILLY (em crescente terror) E engano! A MULHER Então mande-o embora! WILLY Não há ninguém aí. A MULHER Estou ficando nervosa, Willy. Há alguém aí fora e isso me deixa nervosa. WILLY (afastando-a de si) Está bem, fique no banheiro e não saia de lá. Acho que nesta cidade é proibido receber mulheres nos hotéis, portanto não saia. Pode ser o novo porteiro. Pareceu me um cara chato. Não saia. É engano, não há incêndio nenhum. (Ouvem-se novamente as batidas. Ele se afasta um pouco dela e desaparece nos bastidores. A luz o acompanha e ele agora está frente a frente com o jovem Biff, que carrega uma maleta. Biff dá um passo a ele. A música pára.) Biff Por que você não respondeu? WILLY Biff! O que é que você está fazendo aqui em Boston? 419

Biff Por que você não respondeu? Estou batendo há mais de cinco minutos, chamei pelo telefone. . . WILLY Só agora que eu ouvi. Estava no banheiro, de porta fechada. Aconteceu alguma coisa lá em casa? Biff Papai... eu deixei você mal. WILLY Como assim? Biff Papai. . . WILLY Biff, que é que há? (Pondo o braço em tomo de Biff) Venha cá, vamos descer e tomar um copo de leite. . . Biff Papai, fui reprovado em matemática. WILLY Mas e a média do ano? Biff Não basta. Não vou tirar o diploma. WILLY Então Bernard não lhe deu as respostas? Biff Deu, ele tentou, mas só consegui sessenta e um . . . WILLY E eles não lhe dariam mais quatro pontos? 420

Biff O professor se recusa. Eu implorei a ele, papai, mas ele não quer me dar os quatro pontos. Você tem que falar com ele antes que o colégio feche. Porque se ele vir o tipo de homem que você é, e se você falar com ele do seu jeito, eu tenho a certeza de que ele me dará os pontos. Você fala com ele, papai? Ele gostará de você. Do seu jeito de falar. WILLY Claro que falarei. Vamos voltar imediatamente. Biff Oh, papai, que bom! Tenho a certeza de que ele vai mudar a nota! WILLY Desça e peça minha conta na portaria. Vá, já! Biff Sim, senhor! Sabe por que que ele me odeia, papai? Porque, um dia, ele estava atrasado e eu o imitei. Fui lá ao quadro-ne-gro e comecei a falar ciciado assim. WILLY (rindo) Foi? E o pessoal gostou? Biff Eles quase morreram de rir! WILLY Como é que você fez? Biff (ciciando) A raiz quadrada de sessenta e seis é. . . (Willy ri muito. Biff o acompanha.) E ele entrou bem na hora! (Willy ri e a mulher também, lá fora.) 421

WILLY (sem hesitar) Corre lá embaixo e. . . Biff Há alguém aí? WILLY Não, foi no outro quarto. (A mulher ri de novo.) Biff Há alguém aí no seu banheiro ! WILLY Não, é no quarto ao lado, estão dando uma festa. . . A MULHER (entra rindo) Posso entrar? Acho que há um bicho lá na banheira, Willy, está se mexendo. . . (Willy olha para Biff, que contempla a mulher, horrorizado e de boca aberta.) WILLY Ah. . . É melhor a senhora voltar para seu quarto. Já devem ter acabado a pintura. Estão pintando o quarto dela e ela me pediu para tomar um banho aqui. . . Vá, vá... (Empurra-a.) A MULHER (resistindo) Mas eu tenho que me vestir, Willy, eu não posso. . . WILLY Saia daqui! Vá embora, vá embora. . . (Tentando naturalidade) Esta é a senhorita Francis, Biff, é uma compradora. Es-tão pintando o quarto dela. Vá embora, senhorita Francis. vá embora . . . 422

A MULHER Mas as minhas roupas, não posso andar nua pelo corredor! WILLY (empurrando-a para fora do palco) Saia daqui! Vá embora, vá embora! ( Biff senta-se lentamente na maleta, enquanto a discussão prossegue lá fora.) A MULHER Cadê as minhas meias? Você me prometeu meias de seda, Willy! WILLY Não tenho meia nenhuma aqui! A MULHER Você me prometeu duas caixas de tamanho nove, sem costura, e agora eu as quero! WILLY Aqui, pronto, pega as tuas meias e vá embora daqui! A MULHER (entra carregando uma caixa de meias) Tomara que não haja ninguém no corredor. É só isso que eu espero. (A Biff) Você joga futebol ou beisebol? Biff Futebol. A MULHER (zangada e humilhada) É isso que jogam comigo. Boa noite. (Arranca suas roupas das mãos de Willy e sai.) WILLY (depois de uma pausa) Bem, é melhor irmos andando. Eu quero ir ao colégio amanhã bem cedinho. Tire minhas roupas do armário. Eu vou pegar 423 1

a mala. ( Biff não se mexe.) O que é que há? ( Biff permanece imóvel, as lágrimas correndo.) Ela é uma compradora. Traba-lha para J. H. Simmons. Mora aí no andar de baixo. Estão pintando o quarto dela. Você não pense que. . . (Interrompe-se. Depois de uma pausa) Escute aqui, meu filho, é só uma freguesa, ela vê as mercadorias no quarto dela e por isso. . . (Pausa. Assumindo o comando) Muito bem, pegue as minhas roupas. ( Biff não se mexe.) Agora pare de chorar e faça o que eu digo. Eu lhe dei uma ordem! É isso que você faz quando eu lhe dou uma ordem? Como é que se atreve a chorar! (Pondo o braço em volta de Biff) Escute, Biff, quando você crescer, você vai entender essas coisas. Você não deve. . . não deve dar uma importância exagerada a isso. Vou ver o seu professor amanhã bem cedo. Biff Não precisa. WILLY (agachando-se junto dele) Como não precisa? Ele vai dar-lhe os pontos que faltam, você vai ver. Biff Ele não vai ligar para você. WILLY Claro que vai! Você precisa desses pontos para entrar na Uni-versidade de Virgínia. Biff Eu não vou mais para lá. WILLY Hein? Se eu não conseguir que ele dê os pontos, você presta exame de segunda época. Você tem as férias todas . . . 424

Biff (rompendo em pranto) Papai. . . WILLY (afetado) Oh, meu filho. . . Biff Papai. . . WILLY Ela não significa nada para mim, Biff. Eu estava sozinho, es-tava muito sozinho. Biff Você. . . Você deu a ela as meias da mamãe! (As lágrimas explodem e ele se levanta para sair.) WILLY (segurando Biff) Eu lhe dei uma ordem ! Biff Não me toque, seu . . . mentiroso! WILLY Peça desculpas por isso ! Biff Seu farsante... seu farsantezinho vulgar! Farsante ! (Vencido, ele se vira rapidamente e sai chorando, levando a maleta. Willy permanece no chão, de joelhos.) WILLY Eu lhe dei uma ordem! Biff, volte aqui ou eu lhe darei uma surra! Volte aqui! Eu lhe darei uma surra! (Stanley surge rapidamente da direita e fica de pé em frente de Willy.) 425

WILLY (grita para Stanley) Eu lhe dei uma ordem . . . STANLEY Ei, vamos levantar, vamos levantar, senhor Loman. (Ajuda Willy a levantar-se.) Seus filhos foram com aquelas galinhas. Disseram que encontrarão o senhor em casa. (Um segundo garçom espia, a distância.) WILLY Mas nós íamos jantar juntos. . . (Ouve-se a música, o tema de Willy.) STANLEY Será que o senhor consegue? . . . WILLY Eu ... claro. Consigo, sim. (Repentinamente preocupado com suas roupas.) Eu ... eu estou bem? STANLEY Está, está muito bem. (Tira um fiapo da lapela de Willy.) WILLY Tome. . . aqui um dólar. STANLEY Oh, seu filho já me pagou. Está tudo certo. WILLY (pondo o dinheiro na mão de Stanley) Não, pegue. Você é um bom rapaz. STANLEY Mas não, o senhor não precisa. . . 426

WILLY Tome. . . aqui tem mais. Eu não preciso mais disso. (Depois de uma pausa.) Diga-me uma coisa... há alguma loja de se-mentes por aqui? STANLEY Sementes? O senhor diz sementes para se plantar? (Quando Willy se vira, Stanley põe de novo o dinheiro no bolso dele.) WILLY É. Cenouras, ervilhas . . . STANLEY Há uma loja de ferragens na Sexta Avenida, mas acho que agora já é um pouco tarde. WILLY (ansiosamente) Então é melhor eu correr. Preciso dessas sementes. (Começa a sair pela direita.) Preciso das sementes agora mesmo. Não tenho nada plantado. Nada no quintal. (Sai correndo, enquanto as luzes se apagam. Stanley o acompanha até a direita e o vê sair. O outro garçom esteve o tempo todo olhando Willy atentamente.) STANLEY (ao garçom) Que é que você está olhando? (O garçom apanha as cadeiras e sai pela direita. Stanley pega a mesa e o acompanha. A luz se apaga nesta área. Uma longa pausa. O som da flauta. A luz gradualmente cresce na cozinha, que está vazia. Happy aparece na porta da casa, seguido de Biff. Happy carrega um grande buquê de 427

rosas de talo longo. Entra na cozinha e procura por Linda. Como não a vê, ele se vira para Biff, que está do lado de fora da porta, e faz um gesto com as mãos como quem diz: acho que não está aqui. Olha para a sala e fica gelado. Lá dentro, sem ser vista, Linda está sentada, com o paletó de Willy sobre os joelhos. Ela se levanta numa atitude estranha e caminha até Happy, que volta de costas à cozinha, amedrontado.) HAPPY Ei, que é que você está fazendo de pé? (Linda não responde mas caminha para ele, implacavelmente.) Onde está papai? (Ele continua andando de costas para a direita e agora Linda é vista totalmente, na porta da sala.) Ele já está dormindo? LINDA Onde é que vocês estavam? HAPPY (tentando levar na brincadeira) Encontramos duas moças, mamãe, gente fina. Olha aqui, a gente trouxe umas flores para você. (Oferecendo-lhe as rosas) Ponha-as no seu quarto, mamãe. (Ela joga as flores no chão, aos pés de Biff. Happy entrou e fechou a porta atrás de si. Ela contempla Biff, em silêncio.) Mamãe, por que é que você fez isso? Eu lhe trouxe essas flores . . . LINDA (ignorando Happy, violentamente a Biff) Você não se importa que ele viva ou morra? HAPPY (indo à escada) Vamos subir, Biff. 428

Biff (com um traço de desgosto, a Happy) Vá embora, vá. (A Linda) Que quer dizer com viva ou morra? Ninguém está morrendo por aqui. LINDA Saiam da minha vista ! Saiam daqui! Biff Quero ver o chefe. LINDA Você não vai nem chegar perto dele. Biff Onde é que ele está? (Entra na sala e Linda o segue.) LINDA (gritando atrás de Biff) Você o convida para jantar, ele passa o dia inteiro esperando por isso. . . ( Biff aparece no quarto dos pais, dá uma espiada e sai). . . e aí você o abandona lá sozinho. Isso não se faz nem com um estranho ! HAPPY Mas por quê? Ele se divertiu conosco! Eu quero. . . (Linda surge de novo da cozinha). . . cair morto no dia em que eu abandonar meu pai! LINDA Vá embora daqui! HAPPY Escute um pouco, mamãe. . . LINDA Você não podia passar um dia sem essas mulheres? Você e as suas prostitutas! ( Biff entra de novo na cozinha.) 429

HAPPY Mamãe, a gente só foi atrás de Biff para ver se conseguia ani-má-lo um pouco! (A Biff) Rapaz, que noite você me arranjou ! LINDA Sumam daqui, vocês dois, e não voltem mais! Não quero mais ver vocês atormentando seu pai. Sumam daqui já, vão pegar suas coisas! (A Biff) Você pode dormir no apartamento dele! (Começa a apanhar as flores, mas desiste.) E tirem esse lixo daqui, não sou mais sua empregada! Tire isso daqui, seu vaga-bundo! (Happy vira as costas para ela, numa recusa. Biff caminha lentamente, ajoelha-se e apanha as flores.) LINDA Vocês são dois animais! Não existe um só ser humano que teria a crueldade de abandonar esse homem num restaurante! Biff (sem olhar para ela) Foi isso que ele disse? LINDA Ele nem precisou dizer nada. Estava tão humilhado quando chegou em casa, que entrou quase se arrastando. HAPPY Mas mamãe, ele se divertiu com a gente. . . Biff (cortando Happy violentamente) Cale a boca! (Sem mais uma palavra, Happy sobe.) LINDA Você ! Você nem sequer foi ver se ele estava bem ! 430

Biff (ainda no chão, em frente a Linda, com as flores na mão e com repugnância de si mesmo) Não. Não fui. Não fiz nada. Que é que você me diz disso, hein? Deixei ele falando sozinho num banheiro. LINDA Você é um miserável, um... Biff Agora você acertou. (Levanta-se e joga as flores na cesta de lixo.) Você está contemplando a escória do mundo ! LINDA Vá embora daqui! Biff Tenho que falar com o chefe, mamãe. Onde é que ele está? LINDA Você nem vai chegar perto dele. Vá embora desta casa! Biff (com absoluta determinação) Não, nós vamos ter uma conversa muito franca, ele e eu. LINDA Você não vai falar com ele! (Ouvem-se ruídos de fora da casa, à direita. Biff volta-se na direção do barulho.) LINDA (implorando subitamente) Quer fazer o favor de deixá-lo em paz? Biff Que é que ele está fazendo lá fora? LINDA Está cultivando o jardim. 431

Biff (em voz baixa) Agora? Meu Deus! ( Biff sai e Linda o segue. A luz se apaga sobre eles e cresce no meio do tablado, enquanto Willy entra nele. Ele carrega uma lanterna, uma enxada e uma porção de pacotes de sementes. Dá um golpe na ponta da enxada para deixá-la bem firme, e caminha para a esquerda, medindo as distâncias com o pé. Segura a lanterna para poder ler as instruções nos pacotes de sementes. Está debaixo do luar.) WILLY Cenouras. . . separadas um centímetro. Fileiras. . . cada trinta centímetros. (Mede.) Trinta centímetros. (Põe um pacote no chão e mede.) Beterrabas. (Põe no chão outro pacote e mede de novo.) Alface. (Lê o pacotinho e o põe no chão.) Trinta centímetros. . . (Interrompe-se quando Ben aparece à direita e lentamente dirige-se a ele.) É uma excelente proposta, ts, ts. Formidável. Esplêndida. Porque ela tem sofrido, Ben, essa mu-lher tem sofrido muito. Você me compreende? Porque um ho-mem não pode partir do jeito que chegou. Tem que deixar al-guma coisa. Não se pode, não se pode. (Ben dirige-se a ele como para interrompê-lo.) Você tem que ver todos os lados da questão, Ben. Não responda já. Lembre-se. É uma oferta garantida de vinte mil dólares. Agora escute, Ben, eu quero que você estude comigo todos os detalhes do assunto. Eu não tenho ninguém com quem conversar, Ben, e essa mulher tem sofrido muito, está me ouvindo? BEN (parado, de pé, considerando) Qual é a proposta? WILLY Vinte mil dólares na ficha. Garantidos, sem problema, en-tende? 432

BEN Cuidado para não fazer uma tolice. Eles podem não pagar a apólice. WILLY Eles não podem se atrever a isso. Trabalhei como um escravo para pagar pontualmente os prêmios. E agora eles não vão pa-gar? Impossível! BEN Há quem diga que isso é uma covardia, Willy. WILLY Por quê? É preciso mais coragem para ficar aqui o resto da minha vida sendo um zero à esquerda! BEN (cedendo) Esse é um ponto a pensar. (Caminha, pensando, depois se volta.) E vinte mil... é uma coisa que se pode pegar. Existe. WILLY (agora confiante, com energia crescente) Oh, Ben, aí é que está a beleza da coisa. Eu a vejo como se fosse um diamante, um diamante duro e áspero, brilhando na escuridão, e que eu posso apanhar e tocar com a minha mão. Não é simplesmente um ... encontro marcado, uma conversa tola que não leva a lugar algum. Uma coisa dessas muda tudo. Só porque ele pensa que eu não valho nada, Ben, ele procura me humilhar. Mas o meu enterro. . . (endireitando-se) Ben. meu enterro vai ser impressionante! Todos eles virão, do Maine, Massachusetts, Vermont, Nova Hampshire. Todos os velhos amigos, com aquelas chapas estranhas nos seus automó-veis . . . Esse menino vai levar um golpe, Ben, porque ele nunca percebeu... o quanto eu tenho de prestígio! Rhode Island, Nova York, Nova Jersey. . . Porque eu tenho um prestígio imenso, Ben, e ele vai ver isso com seus próprios olhos, de uma vez por todas. Ele vai ver só quem sou eu, Ben! Esse menino vai levar um choque ! 433

BEN (descendo para a ponta do jardim) Ele vai dizer que você foi um covarde. WILLY (repentinamente amedrontado) Não, não, isso seria terrível! BEN E um idiota completo. WILLY Não, não, ele não pode fazer uma coisa dessas! Não posso tolerar isso! (Fica abatido e desesperado.) BEN Ele vai odiar você, William. (Ouve-se a alegre música dos rapazes.) WILLY Oh, Ben, como é que se pode voltar aos bons tempos de antiga mente? Era tudo tão cheio de luz e de carinho, nós passeáva-mos de trenó no inverno e eu contemplava o rubor nas faces de meu filho! E havia sempre uma boa notícia chegando, e o futuro era tão cheio de esperança! E ele não me deixava nem carregar minhas maletas, quando eu voltava para casa, e como cuidava daquele carrinho vermelho! Limpava, limpava, até que ficasse brilhando! Por que, por que não posso dar alguma coisa a ele e conseguir que ele não me odeie? BEN Deixe-me pensar no assunto. (Espia o relógio.) Ainda tenho algum tempo. É uma proposta excelente, mas você não pode fazer papel de bobo. (Caminha para o fundo do palco e desaparece. Biff surge, vindo da esquerda.) 434

WILLY (subitamente cônscio da presença de Biff volta-se e olha para ele, e, muito confuso, começa a apanhar os pacotinhos de semente) Onde está essa droga de semente !? (Indignado) Não se enxerga nada aqui fora! Eles encaixotaram o quarteirão inteiro ! Biff Temos gente de todos os lados, ainda não percebeu? WILLY Estou ocupado. Não me aborreça. Biff (tomando a enxada de Willy) Vim lhe dizer adeus, papai. (Willy olha para ele, em silêncio, incapaz de se mover.) Não vou voltar nunca mais. WILLY Você não vai se encontrar com Oliver amanhã? Biff Não tenho encontro nenhum, papai. WILLY Ele pôs o braço no seu ombro e você não tem encontro ne-nhum? Biff Papai, compreenda isto de uma vez, está bem? Toda vez que eu fui embora, foi por causa de uma briga. Hoje eu compreendi uma coisa a respeito de mim mesmo e procurei explicar para você e eu... eu acho que não sou inteligente o bastante para fazer você entender. Não interessa de quem é a culpa, isso não importa. (Pega Willy pelo braço.) Vamos acabar com isso, está bem? Venha, vamos dizer à mamãe. (Gentilmente tenta condu-zir Willy para a esquerda.) 435

WILLY (gelado, imóvel, com voz culposa) Não, eu não quero vê-la. Biff Venha comigo ! (Puxa de novo e Willy resiste.) WILLY (muito nervoso) Não, não, eu não quero vê-la. BIFF (olha bem dentro dos olhos de Willy, como que procurando a resposta lá) Por que você não quer vê-la? WILLY (ainda mais agressivo) Quer me deixar em paz? Biff Mas por que você não quer vê-la? Você não quer que ela chame você de covarde, não é? A culpa não é sua, é minha, eu sou um vagabundo. Agora venha para dentro! (Willy tenta soltar-se dele.) Você ouviu o que eu disse? (Willy livra-se dele e entra sozinho na casa; Biff o segue.) LINDA (a Willy) Plantou as sementes, querido? Biff (na porta, a Linda) Já combinamos tudo, mamãe. Eu vou embora e não vou escre-ver mais. LINDA (caminhando para Willy, na cozinha) Acho que é a melhor solução, querido. Porque é inútil insistir, vocês nunca vão se entender. (Willy não responde.) 436

Biff Se alguém perguntar onde estou e o que estou fazendo, você não sabe nem se interessa. Assim você não se preocupa mais comigo e as coisas vão melhorar para você. Está bem? Combi-nado? (Willy está quieto e Biff vai até ele.) Vai me desejar boa sorte, campeão? (Estende a mão.) O que me diz? LINDA Aperte a mão dele, Willy. WILLY (virando-se para ela, muito dolorido) Não há necessidade de mencionar a caneta. Biff (gentilmente) Não tenho nenhum encontro, papai. WILLY (com um acesso de ira) Ele pôs o braço no seu ombro. . . ? Biff Papai, você nunca vai me ver como eu sou, o que adianta dis-cutir? Se eu descobrir petróleo eu lhe mando um cheque. En-quanto isso, esqueça que eu existo. WILLY (a Linda) Você vê quanto rancor? Biff Aperte aqui, papai. WILLY Não a minha mão. Biff Não queria ir embora assim. WILLY Mas é assim que você vai. Adeus. 437

( Biff olha para ele por um instante, depois vira-se bruscamente e vai para a escada.) WILLY ( Biff pára com o grito) Se você abandonar esta casa, quero que apodreça no inferno! Biff (virando-se) Mas o que é que você quer de mim? WILLY Quero que você saiba, nos trens, nas montanhas, nos vales, onde quer que você vá, que você destruiu a sua vida por ran-cor! Biff Não, não. WILLY Rancor, rancor, essa é a palavra! E quando você estiver intei-ramente na sarjeta, lembre-se disso ! Quando você estiver apo-drecendo por aí, no meio da rua, lembre-se disso e não ouse pôr a culpa em mim ! Biff Eu não estou pondo a culpa em você ! WILLY Isso você não vai jogar na minha cara, ouviu? (Happy desce a escada e pára no último degrau, olhando.) Biff Mas é isso mesmo que eu estou lhe dizendo ! WILLY (afundando numa cadeira, acusador) Você está querendo enterrar uma faca no meu peito, não pense que eu não percebi! 438

Biff Muito bem, seu farsante. Vamos pôr tudo em pratos limpos. (Tira do bolso o tubo de borracha e o põe em cima da mesa.) HAPPY Seu maluco. . . LINDA Biff! (Faz um gesto para pegar o tubo, mas Biff não deixa.) Biff Deixe isso aí! Não mexa! WILLY (sem olhar) O que é isso? Biff Você sabe muito bem o que é. WILLY (encurralado, tentando escapar) Eu nunca vi isso. Biff Viu, sim. Não foi o rato que levou isso para o porão. Que é que você pretendia com isso, bancar o herói? Isso era pra eu ficar com pena de você? WILLY Não sei o que é isso. Biff Ninguém vai sentir pena de você, entendeu? Ninguém ! WILLY (a Linda) Você vê quanto rancor? 439

Biff Você vai ouvir a verdade... o que você é e o que eu sou ! LINDA Pare com isso! WILLY Rancor! HAPPY (descendo em direção a Biff) Agora chega! Biff (a Happy) O homem não sabe quem somos nós! Agora ele vai saber! (A Willy) Nenhum de nós jamais disse a verdade nesta casa! HAPPY Nós sempre dissemos a verdade ! Biff (virando-se para ele) Você, seu grande palhaço ! Você é assistente da gerência? Você é um dos dois assistentes do assistente, não é? HAPPY Bem, eu praticamente . . . Biff Você praticamente é merda nenhuma! Nós todos somos. E eu estou cheio disso. (A Willy) Agora, Willy, preste atenção: este sou eu. WILLY Eu conheço você! Biff Você sabe por que eu não tive endereço durante três meses? Eu roubei um terno em {Cansas City e estava na cadeia. (A 440

Linda, que está soluçando) Pare de chorar. Não agüento mais isso. (Linda se afasta deles, cobrindo o rosto com as mãos.) WILLY E a culpa é minha? Biff E eu saí de todo bom emprego que tive desde que deixei o ginásio! WILLY E de quem é a culpa? Biff E eu nunca consegui nada na vida porque você me encheu a cabeça de vento e eu jamais suportei receber ordens de nin-guém ! Aí está de quem é a culpa! WILLY E eu ainda tenho que ouvir isso! LINDA Chega, Biff! Biff Já está na hora de ouvir isso! Eu tinha que ser o patrão e o dono por quinze dias, e estou cheio disso! WILLY Então enforque-se ! Vá, rancoroso, enforque-se ! Biff Não! Ninguém vai se enforcar, Willy ! Hoje eu desci onze an-dares correndo, com uma caneta na mão. E de repente eu parei. 441

ouviu? E no meio daquele prédio, ouviu bem? Eu parei no meio daquele prédio e eu vi... o céu. E vi as coisas que eu amo neste mundo. O trabalho e a comida e o tempo de sentar e fumar um cigarro. Olhei para a caneta e me perguntei: por que é que eu estou roubando isto? Por que estou tentando ser uma coisa que eu não quero ser? O que é que eu estou fazendo num escritório, como um idiota, quando tudo que eu quero está lá fora, esperando por mim no minuto em que eu disser que eu sei quem eu sou? Por que não posso dizer isso, Willy? (Tenta fazer com que Willy olhe para ele, mas Willy o repele e anda para a esquerda.) WILLY (com ódio, ameaçador) As portas de sua vida estão abertas de par em par! Biff Papai, eu sou um zero à esquerda, e você também ! WILLY (virando-se para Bijf,furioso e sem controle) Eu não sou um zero à esquerda! Eu sou Willy Loman, e você é Biff Loman! (Biff avança para Willy, mas é contido por Happv. Na sua fúria, Biff parece que vai bater no pai.) Biff Eu não sou um grande homem, Willy, e você também não. Você nunca passou de um homem que trabalhou duro a vida inteira e terminou na lata de lixo, como todos os outros! E eu, Willy, eu sou um assalariado de um dólar por hora! Tentei em sete Estados e não consegui mais. Um dólar por hora! Será que você compreende o que eu digo? Eu já não trago prêmios para casa e você tem que se acostumar com isso! WILLY (diretamente a Biff) Vingativo, rancoroso! 442

( Biff livra-se. de Happv. Willv, com medo, vai subir a escada. Biffo agarra.) Biff (no auge da fúria) Papai, eu não sou nada! Eu não sou nada, papai! Será que você não compreende isso? Não há mais nenhum rancor. Eu só sou o que eu sou, nada mais. (A fúria de Biff se extinguiu. Ele cai, soluçando, e se apóia em Willy, que procura o rosto de seu filho.) WILLY (atônito) O que é isso? O que é isso? (A Linda) Por que ele está cho-rando? Biff (chorando, alquebrado) Você quer me deixar ir embora, pelo amor de Deus? Você quer abandonar esse sonho inútil antes que aconteça o pior? (Lu-tando para se conter, ele se levanta e vai à escada.) Eu vou embora de manhã. Leve-o. . . leve-o para a cama. (Exausto, Biff sobe a escada e vai para seu quarto.) WILLY (depois de uma longa pausa, atônito e reconfortado) Mas não é. . . não é uma coisa notável? Biff. . . Ele gosta de mim ! LINDA Ele ama você, Willy ! HAPPY (muito comovido) Sempre amou, papai. WILLY Oh, Biff! (Com os olhos muito abertos) Ele chorou! Chorou 443

para mim! (Está afogado de carinho, e agora grita sua pro-messa.) Esse menino. . . esse menino vai ser formidável! (Ben aparece na luz da cozinha.) BEN Excepcional. . . com vinte mil dólares atrás dele. LINDA (percebendo os vertiginosos pensamentos de Willy, com muito cuidado) Agora venha dormir, Willy. Já está tudo acertado. WILLY (achando difícil não sair correndo da casa) Isso. Vamos dormir. Vamos. Vá dormir, Hap. BEN E só um grande homem é que se impõe numa selva. (O tema de Ben surge, em tons temíveis.) HAPPY (com o braço à volta de Linda) Eu vou me casar, papai, não se esqueça. Vou mudar em tudo. Vou ser chefe do meu departamento, antes do fim do ano. Você vai ver, mamãe. (Beija-a.) BEN A selva é escura, mas está cheia de diamantes, Willy. (Willy se volta e anda, prestando atenção em Ben.) LINDA Seja bom. Vocês são dois bons meninos; procedam como tal. Só isso. HAPPY Boa noite, papai. (Sobe.) 444

LINDA (a Willy) Vamos, querido. BEN (com mais força) É preciso entrar nela para extrair um diamante. WILLY (a Linda, enquanto caminha lentamente em direção à porta da cozinha) Quero me acalmar um pouco, Linda. Deixe-me ficar sozinho um instante. LINDA (quase revelando seu temor) Quero você lá em cima. WILLY (tomando-a nos braços) Daqui a pouquinho, Linda. Agora eu não vou conseguir dormir. Vá você, você está muito cansada. (Ele a beija.) BEN Não é conversa fiada. Um diamante é uma coisa tangível. WILLY Vá, meu bem. Eu subo já. LINDA Acho que foi o melhor jeito, Willy. WILLY Claro, o melhor. BEN O melhor! WILLY O único jeito. Tudo vai ser. . . suba, menina, vá dormir. Você parece tão cansada. 445

LINDA Venha logo. WILLY Dois minutos. (Linda entra na sala, e depois reaparece em seu quarto. Willy sai pela porta da cozinha.) Ele me ama. (Maravilhado.) Sempre me amou. Não é notável? Ben, ele vai me adorar, agora. BEN (prometendo) Lá é escuro, mas está cheio de diamantes. WILLY Você já imaginou esse rapaz maravilhoso, com vinte mil dóla-res no bolso? LINDA (chamando do quarto) Willy ! Suba, meu bem. WILLY (para o lado da cozinha) Já vou, já vou! É uma coisa inteligente, você percebe, não é, meu amor? Até Ben concorda. Eu tenho que ir, meu amor. Adeus. (Indo para Ben, quase dançando) Já pensou? Assim que o correio chegar, ele estará de novo na frente de Bernard ! BEN Um negócio perfeito em todos os sentidos. WILLY Você viu como ele chorou para mim? Oh, se eu pudesse bei-já-lo, Ben ! BEN O tempo, William, o tempo ! 446

WILLY Oh, Ben, eu sempre soube que mais cedo ou mais tarde nós íamos nos entender, Biff e eu ! BEN (olhando o relógio) O navio. Vamos chegar atrasados. (Lentamente, desaparece na escuridão.) WILLY (virando-se para a casa, como num lamento) Agora, menino, quando o jogo começar, eu quero ver você cor-rendo na frente de todos, e quando você atirar em gol, atire forte, meu filho, porque isso é muito importante. (Gira sobre si mesmo e contempla a platéia.) Há muita gente importante prestando atenção em você, e a primeira coisa é. . . (De re-pente, percebendo que está sozinho) Ben! Ben, onde eu. . . ? (Procurando) Ben, como é que eu . . . ? LINDA (chamando) Willy, você não vai subir? WILLY (num murmúrio de temor e como que para acalmá-la) Sh! (Vira-se como que para achar o seu caminho; ruídos, vozes e rostos parecem estar girando sobre ele e ele parece es-pancálos, gritando) Sh ! Sh ! (É interrompido pela chegada da música, que cresce em intensidade, até quase se transformar num grito. Ele se movimenta para cima e para baixo na ponta dos pés, e sai correndo em volta da casa.) Shhh ! LINDA Willy? (Não há resposta. Linda espera. Biff se levanta da cama. Está ainda vestido. Happy também se levanta e senta na cama. Biff, de pé, presta atenção.) LINDA (com visível medo) Willy, responda! Willy! 447

(Ouve-se o som de um carro dando partida e cor rendo a toda a velocidade.) LINDA Não! Biff (correndo pela escada abaixo) Papai! (À medida que a velocidade do carro aumenta, a música se transforma num frenesi de sons, e depois muda para o suave pulsar de uma simples corda de celo. Biff lentamente volta para seu quarto. Ele e Happy, gravemente, põem os paletós. Linda sai lentamente de seu quarto. A música se transformou numa marcha fúnebre. As folhas do dia aparecem sobre todo o espaço. Charley e Ber-nard, sobriamente vestidos, aparecem e batem na porta da cozinha, Biff e Happy lentamente descem para a cozinha, enquanto Charley e Bernard entram. Todos param quando Linda, vestida de luto e com um pequeno buquê de rosas, vem da porta da sala para a cozinha. Ela vai a Charley e toma-lhe o braço. Agora todos caminham na direção do público, através da "parede"da cozinha. No limite do palco. Linda deixa as flores no chão, ajoelha-se e senta-se sobre os calcanhares. Todos contem piam a tumba.) 448

RÉQUIEM

CHARLEY Já está escurecendo, Linda. (Ela não reage. Olha para a tumba.) Biff Vamos, mamãe? Você precisa descansar. Eles já vão fechar o cemitério. (Ela não se mexe. Pausa.) HAPPY (profundamente ressentido) Ele não tinha o direito de fazer isso. Não havia necessidade. Nós o teríamos ajudado. CHARLEY (murmurando) Humm. . . Biff Vamos, mamãe. LINDA Por que não veio ninguém? CHARLEY Foi um enterro muito digno. LINDA Mas onde estão todos aqueles que ele conheceu? Quem sabe eles o culparam? 451

CHARLEY Não. É um mundo cruel, Linda. Ninguém o culpou. LINDA Não compreendo. Principalmente agora. Pela primeira vez em trinta e cinco anos, estava tudo pago. Ele só precisava de um pequeno salário. Até o dentista estava pago. CHARLEY Homem algum precisa apenas de um pequeno salário. LINDA Não compreendo. Biff Houve muitos dias felizes. Quando ele voltava de uma viagem; ou aos domingos, quando ele construía a varanda; terminando o porão, fazendo o novo alpendre; quando construiu o outro banheiro ou quando fez a garage. Sabe de uma coisa, Charley, existe mais de meu pai ali naquela varanda do que em todas as vendas que ele fez. CHARLEY É. Ele era um homem feliz com uma pá cheia de cimento. LINDA Era tão maravilhoso com suas mãos. Biff Teve os sonhos errados. Todos errados. HAPPY (quase pronto a brigar com Biff) Não diga isso! Biff Ele nunca soube quem ele era. 452

CHARLEY (detendo o movimento e a resposta de Happy; a Biff) Que ninguém acuse este homem. Você não compreende. Willy era um caixeiro-viajante. E para um caixeiro-viajante, não há terra firme na vida. Ele não coloca uma rosca num parafuso. Não diz qual é a lei nem receita um remédio. É um homem solto no espaço, cavalgando num sorriso e num sapato brilhante. E se eles não devolvem o sorriso. . . é um terremoto. E quando surgem algumas manchas no chapéu, está liquidado. Que ninguém acuse este homem. Um caixeiro-viajante precisa sonhar, rapaz. Faz parte de sua vida. Biff Charley, o homem não sabia quem era. HAPPY (furioso) Não diga isso! Biff Por que você não vem comigo, Happy? HAPPY Eu não sou destruído assim tão facilmente. Vou ficar nesta ci-dade e vou vencer essa canalha! (Olha para Biff, decidido.) Os Irmãos Loman! Biff Eu sei quem sou, rapaz. HAPPY Muito bem. Eu vou mostrar a você e a todos que Willy Loman não morreu em vão. Ele teve um sonho digno. O único sonho que vale a pena ter. . . ser o número um. Ele lutou por isso aqui, e é aqui que eu vou triunfar em nome dele. Biff (com um olhar desesperançado a Happy, dirige-se a sua mãe) Vamos, mamãe. 453

LINDA Eu vou daqui a um minuto. Vá indo, Charley. (Ele hesita.) Só quero um minuto. Eu nunca pude dizer adeus a ele. (Charley se distancia, seguido de Happy. Biff se afasta um pouco e fica parado, à esquerda de Linda. Ela fica sentada, concentrando-se. A flauta começa a tocar e continua durante a fala de Linda.) LINDA Perdoe-me, meu querido, eu não consigo chorar. Não sei por que, mas não consigo chorar. Não entendo. Por que é que você fez isso? Ajude-me, Willy, eu não consigo chorar. Parece que você só foi fazer mais uma viagem. E eu fico esperando você. Willy, meu querido. Não consigo chorar. Por que é que você fez isso? Eu procuro a resposta e não consigo encontrar, Willy. Hoje eu fiz o último pagamento da casa. Hoje, querido. E não haverá ninguém nela. (Um soluço sobe a sua garganta.) Não estamos devendo nada a ninguém. Estamos livres de obriga-ções. (Soluçando mais aliviada.) Estamos livres. . . ( Biff vem lentamente para ela.) Estamos livres. . . livres. . . Biff a ajuda a levantar-se e caminha para a direita, abraçado a ela. Linda soluça silenciosa mente. Bernard e Charley vêm a eles e os acompanham, seguidos de Happy, apenas a música da flauta permanece no palco que se vai escurecendo, à medida que se iluminam os ásperos perfis dos prédios de apartamentos, enquanto CAI O PANO 454

ÍNDICE Vida e obra de Tennessee Williams (Introdução) ......... 5 UM BONDE CHAMADO DESEJO ........................ 23 Personagens ..................................................... 25 CENAI .......................................................... 27 CENA II ......................................................... 59 CENA III ........................................................ 79 CENA IV ........................................................ 107 CENA V ......................................................... 125 CENA VI ........................................................ 141 CENA VII ....................................................... 159 CENA VIII ...................................................... 173 CENA IX ........................................................ 183 CENAX ......................................................... 197 CENA XI ........................................................ 211 Vida e obra de Arthur Miller (Introdução) ................. 231 A MORTE DO CA1XE1RO-VIAJANTE ................... 253 Personagens ..................................................... 255 ATOI ............................................................ 257 ATOII ........................................................... 347 RÉQUIEM ...................................................... 449

ABRIL CULTURAL Editor e Diretor: VICTOR CIVITA Diretores: Edgard de Sílvio Faria. Richard Civita. Roberto Civita DIVISÃO DE FASCÍCULOS E LIVROS Diretor-Gerente: Roger Karman Diretor do Grupo de Publicações: Roberto Martins Silveira CONSELHO EDITORIAL Diretor: José Américo Motta Pessanha Editor-Chefe: Paschoal Miguel Forte Secretário Editorial: Remberto Francisco Kuhnen Serviços Editoriais Auxiliares: Marlene de Fátima Alves Merajo Diretor de Arte: Eduardo Barreto Filho Chefe de Arte: Gerson Reis Jr. Assistentes de Arte: Rosângela Lopes Lourenço e Satikc Arikita DEPARTAMENTO COMERCIAL Gerente de Produto: José Ricardo Calil Assistentes: Denise Maria Mozol. Henrique Miguel DAngelo Rossi ILUSTRAÇÃO DAS GUARDAS: Cenas das primeiras montagens de Um Bonde Chamado Desejo (1947) e A Morte do Caixeiro-Viajante (1949). ambas dirigidas por Elia Kazan. CAPA: Neusa Japiassú Composto e impresso nas oficinas da Abril S.A. Cultura/ e Industrial, caixa postal 2372. São Paulo