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v. 38, n. 2, pp. 139-147, maio/ago. 2007 PSICO PSICO Ψ Ψ Musicoterapia e saúde mental: relato de uma experimentação rizomática Raquel Siqueira da Silva Marcia Moraes Universidade Federal Fluminense (UFF) RESUMO Este artigo tem o objetivo de relatar uma experiência profissional na área de Musicoterapia no contexto da Reforma Psiquiátrica. A experiência teve seu início numa instituição manicomial na cidade de Volta Redon- da, no Rio de Janeiro e, em seguida, passou a ser realizada num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O trabalho musicoterápico teve como um de seus desdobramentos a criação de um grupo musical com os usuários dos serviços do CAPS. Utilizamos algumas noções da filosofia da diferença de Deleuze-Guattari para refletir sobre esta experimentação. Consideramos a Musicoterapia como um saber mestiço, híbrido e concluímos indicando que a experiência com o grupo musical nos permitiu refletir sobre algumas das for- mas de atuação e intervenção da Musicoterapia. Palavras chave: Musicoterapia; rizoma; saúde mental. ABSTRACT Music therapy and mental health: Report of an rhizomatic experience This paper has the aim to report a music therapy professional experience in the context of Psychiatric Reform. The experience began in a psychiatric institution situated at Volta Redonda, in the state of Rio de Janeiro and, later, it was transfered to a Psychosocial Support Center (CAPS). Music therapy working had as one of its consequences the creation of musical groupe with the CAPS services users. We based this paper with some notions from Deleuze-Guattari difference philosophy in order to reflect about this experience. We consider music therapy as an hybrid knowledge and we conclude to indicate that this musical groupe experience allowed us to think about some ways of acting with music therapy. Key words: Music therapy; rhizoma; mental health. INTRODUÇÃO Este artigo tem o objetivo de relatar uma experiên- cia profissional na área de Musicoterapia. A experiên- cia que relataremos neste trabalho teve início na Casa de Saúde Volta Redonda (CSVR) onde uma de nós tra- balhava como musicoterapeuta. Neste contexto, nosso trabalho era desenvolvido com os usuários de serviços de saúde mental ainda em internação psiquiátrica. No campo da Reforma Psiquiátrica, o poder públi- co municipal interveio na CSVR, um dos efeitos deste encontro foi a criação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Usina de Sonhos. Neste contexto foi possível desenvolver um trabalho musicoterápico que foi além das condições asilares e construiu uma trajetória ousada. No âmbito do CAPS nosso trabalho musicoterápico levou à formação de um grupo – o Mágicos do Som 1 – que pretendia criar um funciona- mento em que a voz do usuário de serviços de saúde mental pudesse ser ouvida sem preconceitos. Neste artigo apresentamos a trajetória desta expe- riência e nos perguntamos de que modo o grupo musi- cal Mágicos do Som nos leva a repensar as práticas em Musicoterapia no campo da saúde mental. A MUSICOTERAPIA NA CASA DE SAÚDE VOLTA REDONDA – O SOM NO ESPAÇO-TEMPO DO MANICÔMIO A Casa de Saúde Volta Redonda (CSVR), locali- zada em município de mesmo nome no sul do Estado do Rio de Janeiro, é uma clínica psiquiátrica privada que desde abril de 1994 está sob intervenção da pre- feitura municipal. Esta intervenção ocorreu em função de várias precariedades no atendimento ao usuário e irregularidades com os funcionários. Com o lema “Em

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v. 38, n. 2, pp. 139-147, maio/ago. 2007PSICOPSICOΨΨ

Musicoterapia e saúde mental:relato de uma experimentação rizomática

Raquel Siqueira da SilvaMarcia Moraes

Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMOEste artigo tem o objetivo de relatar uma experiência profissional na área de Musicoterapia no contexto daReforma Psiquiátrica. A experiência teve seu início numa instituição manicomial na cidade de Volta Redon-da, no Rio de Janeiro e, em seguida, passou a ser realizada num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Otrabalho musicoterápico teve como um de seus desdobramentos a criação de um grupo musical com osusuários dos serviços do CAPS. Utilizamos algumas noções da filosofia da diferença de Deleuze-Guattaripara refletir sobre esta experimentação. Consideramos a Musicoterapia como um saber mestiço, híbrido econcluímos indicando que a experiência com o grupo musical nos permitiu refletir sobre algumas das for-mas de atuação e intervenção da Musicoterapia.Palavras chave: Musicoterapia; rizoma; saúde mental.

ABSTRACTMusic therapy and mental health: Report of an rhizomatic experienceThis paper has the aim to report a music therapy professional experience in the context of Psychiatric Reform.The experience began in a psychiatric institution situated at Volta Redonda, in the state of Rio de Janeiroand, later, it was transfered to a Psychosocial Support Center (CAPS). Music therapy working had as one ofits consequences the creation of musical groupe with the CAPS services users. We based this paper withsome notions from Deleuze-Guattari difference philosophy in order to reflect about this experience. Weconsider music therapy as an hybrid knowledge and we conclude to indicate that this musical groupeexperience allowed us to think about some ways of acting with music therapy.Key words: Music therapy; rhizoma; mental health.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem o objetivo de relatar uma experiên-cia profissional na área de Musicoterapia. A experiên-cia que relataremos neste trabalho teve início na Casade Saúde Volta Redonda (CSVR) onde uma de nós tra-balhava como musicoterapeuta. Neste contexto, nossotrabalho era desenvolvido com os usuários de serviçosde saúde mental ainda em internação psiquiátrica.

No campo da Reforma Psiquiátrica, o poder públi-co municipal interveio na CSVR, um dos efeitos desteencontro foi a criação do Centro de AtençãoPsicossocial (CAPS) Usina de Sonhos. Neste contextofoi possível desenvolver um trabalho musicoterápicoque foi além das condições asilares e construiu umatrajetória ousada. No âmbito do CAPS nosso trabalhomusicoterápico levou à formação de um grupo – oMágicos do Som1 – que pretendia criar um funciona-

mento em que a voz do usuário de serviços de saúdemental pudesse ser ouvida sem preconceitos.

Neste artigo apresentamos a trajetória desta expe-riência e nos perguntamos de que modo o grupo musi-cal Mágicos do Som nos leva a repensar as práticasem Musicoterapia no campo da saúde mental.

A MUSICOTERAPIA NA CASA DESAÚDE VOLTA REDONDA – O SOM NO

ESPAÇO-TEMPO DO MANICÔMIOA Casa de Saúde Volta Redonda (CSVR), locali-

zada em município de mesmo nome no sul do Estadodo Rio de Janeiro, é uma clínica psiquiátrica privadaque desde abril de 1994 está sob intervenção da pre-feitura municipal. Esta intervenção ocorreu em funçãode várias precariedades no atendimento ao usuário eirregularidades com os funcionários. Com o lema “Em

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Defesa da Vida”, a Secretaria Municipal de Saúde con-tratou vários profissionais para promoverem a Refor-ma Psiquiátrica neste município. O slogan inicial pro-pagado era “Saúde não se vende, loucura não se pren-de”. A ousada proposta da equipe técnica, formadapor psicólogos, assistentes sociais, musicoterapeuta,psiquiatras, enfermeiros e oficineiros2 era a de “des-construir” o manicômio.

Havia uma atmosfera de grande otimismo paramudar as forças instituídas e territorializadas do hos-pício. As práticas de isolamento nas enfermarias fo-ram invadidas por olhares e intervenções atentas daequipe que propunha dissolver a dinâmica cronificadado funcionamento manicomial. O discurso da luta anti-manicomial ecoou em todos os espaços de discussões,era o pulsar de uma empreitada que atravessaria nos-sos modos de trabalhar e de pensar a saúde mental.Mais do que um investimento do poder público muni-cipal, era uma aposta nas possibilidades de produçãode outras subjetividades, diferentes daquelas que alipredominavam: a do louco marginalizado, excluído, osem razão.

O primeiro projeto de musicoterapia da CSVR,escrito em abril de 1995, apresentava os objetivos de:“ propiciar a integração entre usuários e os assistentesatravés da música; facilitar a auto-expressão criativa,através do sonoro-musical; promover a abertura doscanais de comunicação através de técnicas musico-terápicas”. O grupo musicoterápico começou a acon-tecer na sala de Terapia Ocupacional. Antes de ingres-sar no grupo o usuário era entrevistado com a fichamusicoterápica, uma espécie de anamnese sonoro-musical preenchida pelo musicoterapeuta, com váriosdados de sua história sonoro-musical, isto é recorrenteem atendimentos musicoterápicos tradicionais.

Muitos componentes que posteriormente partici-pariam do grupo musical Mágicos do Som freqüenta-vam este grupo de musicoterapia na CSVR durantesuas internações. A técnica musicoterápica mais utili-zada era a re-criação musical, que consiste num fazersonoro-musical livre, sem a exigência de estética mu-sical específica. O cantar como exercício de re-criar amúsica e o dançar coletivamente são freqüentes noemprego desta técnica.

Ao mesmo tempo em que forças propulsoras detransformação do modelo manicomial (as linhas defuga) atuavam, práticas cronificadoras (linhas rígidas,visíveis e de abolição) atravessavam o tempo e o espa-ço. O espaço era manicomial, um prédio de hospício.

Ainda havia uma ação calcada numa cisão entredentro e fora, provavelmente produzida por umadicotomia visível das velhas práticas manicomiais quena CSVR foram encontradas. Afirmar esta discussãofora do espaço asilar era um movimento que se acredi-

tava desestabilizar o lugar instituído da loucura. Porque prendê-los? Neste processo de desterritoriali-zação, essa linha de fuga pleiteava já a dissolvência domodelo manicomial para uma rede substitutiva deatendimento ao usuário de serviço de saúde mental. Apretensão não era criar serviços que complementassemo atendimento asilar, mas prescindi-lo totalmente.

As linhas mais observáveis eram as duras, extensi-vas, visíveis. Conviviam as linhas que demarcavam aforça dos instituídos da loucura com as linhas que sepretendiam de fuga, mas que também se apresentavamde forma identitária, conscientizadora... Mas haviaespaços-tempos onde as intensidades pulsavam. Asassembléias foram uns dos espaços em que posterior-mente pudemos identificar como dos mais propulso-res de discussões que fragilizavam os enrijecimen-tos instituídos e institucionais. Eram assembléias dasquais participavam todos os funcionários e todos osusuários. Os segmentos, os serviços, as atuações pro-fissionais, as queixas, os elogios etc., enfim todo o fun-cionamento da CSVR era problematizado. A Assem-bléia era uma rede de conexões3 ocupando um espaçode forma densa, mobilizando as formas e forças. As-sembléia era o momento em que as vozes eramouvidas, mas não somente as alucinatórias, ou ascronificadas das posições hierárquicas, eram as vozescujos efeitos se produziam nas práticas quotidianas.Era uma tensão e reflexão, um contraponto numa ins-tituição que

os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na re-petitividade sem história , num eterno presente queé em si a imagem cinza de uma morte sem desfe-cho (Pelbart, 1993, p.20).

Pelbart (1989 e 1993) escreve sobre uma invençãoda loucura na qual se produziu historicamente umaloucura inútil, capturada, impotente, cheia de manei-rismos e revestida de uma segregação implícita, estasegregação também produzida. Outros espaços naCSVR flexibilizavam este lugar, produziam mudançasde posição, insistência, resistência. Vozes, vontades,devires.

Tanto as assembléias quanto as sessões de musi-coterapia eram tempos ocupados por espaços diferen-ciados e, concomitante, espaços ocupados por temposnão aprisionados e isto era uma resistência. Porqueneste “lá” (local e tempo) encontravam-se falas quese ouviam, sons que poderiam ser manifestos semasilamento, fontes sonoras que escapavam de grades etranspassavam os muros. Espaços e tempos de discus-sões, de propostas, de acordos respeitosos a cadavoz, a todas e aos silêncios. Era possível sentir estaorquestração e pretender ocupar outros espaços comesta lógica inclusiva. Práticas homogeneizadoras e

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disciplinarizantes são recorrentes na história da saúdemental, contrariá-las é resistir e produzir diferenças.Acolher a diferença é resistir ao despotismo da predo-minância. Nas palavras de Pelbart:

Recusar a homogeneização sutil mas despótica emque incorremos às vezes, sem querer, nos disposi-tivos que montamos quando o subordinamos a ummodelo único, ou a uma dimensão predominante.(Pelbart, 1993, p. 23)

A forma do grupo de musicoterapia alcançou osobjetivos propostos pelo projeto inicial, mas ainda es-tava na forma, era possível improvisar, expressar, to-car, cantar, dançar, mas estávamos ali no espaço asilar,compreendidos nesta linha de abolição, era uma fugalogo capturada. Os usuários de serviços de saúde men-tal, internados na CSVR, saíam da sessão e voltavampara a enfermaria. Aquilo era incômodo, estranha-mento, revolta, captura e submissão.

“Não é inútil lembrar que o tempo da criação artís-tica ou do pensamento também exige algo dessa or-dem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e aforma brotem a partir do informe e do indecidido”.(Pelbart, 1993, p.36 ). A idéia do grupo musical nãosurgiu no manicômio. Os internos despotencializados,medicados, sonolentos, compartilhavam daquele mo-mento. Assim se expressavam e eram ouvidos.

A primeira coisa que chama a atenção de um visi-tante num hospital psiquiátrico é essa lentificação,esse ritmo específico, esse regime temporal dife-renciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dospsicofármacos, às vezes à lentidão burocrática dasgrandes instituições... (Pelbart, 1993, pp. 39-40)

A experimentação do trabalho musicoterápico pre-tendia produzir intensidades naquelas vidas tão parali-sadas, medicadas, rotineiras, com poucas perspectivase surpresas, rotinas cortadas por crises logo abafadas.Embora as aparências de sonolência e lentidão esti-vessem mais visíveis, nem a internação, nem a crise,nem a medicação continuariam da mesma forma portodo o tempo; esta era uma esperança, apostar nosdevires, embora muitas vezes imperceptíveis. Os rit-mos não se aglomeram nem se decompõem, eles coe-xistem, se misturam no tempo, a música se dá no tem-po e atravessa espaços. A única forma de reter a músi-ca de um momento é na memória, este é um legado. Eaquelas pessoas internadas guardavam algo em suasmemórias. Apreciar as histórias contadas nas sessões,sem se preocupar com sentidos ou verdades era umexercício no tempo, como ocorre na música. Emboraas linhas de fuga, de desterritorialização fossem rapi-damente capturadas pela máquina manicomial, as en-grenagens apresentavam falhas propulsoras de devires.

Questionar se o louco seria capaz de escapar a suahistória seria um falso problema, ele está o tempo todoproduzindo linhas de fuga, seja em seu fazer artístico,seja em sua alucinação ou delírio. São escapes, dis-rupturas, acontecimentos muitas vezes não comparti-lhados ou abafados pelos dispositivos institucionais einstitucionalizados de apreensão de possibilidades dediferir. Quanto à discussão filosófico-histórica sobreloucura; embora esta não seja um invariante histórico,Pelbart sublinha que ao mesmo tempo que criamosuma identidade para o louco, tornâmo-lo inofensivo,inoperante no seu processo de desterritorialização.

O que escapa à história não é o eterno, mas o queNietzsche chamou de intempestivo ou inatural,Foucault de atual, Deleuze de devir, ou aconteci-mento. (Pelbart, 1993, p.83). [E mais adiante o au-tor pergunta:]: “Será que a libertação do louco nãocorresponde, no fundo, a uma estratégia de homo-geneização do social? (Pelbart, 1993, p.104).Presenciamos uma tentativa homogeneizadora, um

despertar de aforismos intelectuais que engendram umsaber despótico sobre a loucura, trata-se de uma sufo-cação de devires, provavelmente aspirada pela apro-priação indébita do que lhe é fortuito, a desrazão. Masem ritornelos existenciais4 sempre há um espaço-tem-po para criar novas formas. Onde pensamos não ha-ver espaço podemos criá-lo, mas não com um saberhomogeneizante, talvez com um não-saber calcado noque há de mais simples e, no entanto, mais complexo,a experimentação. Experimentar, experienciar, presen-ciar, presentificar; estamos falando de conviver, mis-turar-se, confundir-se heterogeneamente e descobrirdiferenças antes impensadas. Outras formas de criardiferenças, produzi-las, ou simplesmente deixar queelas brotem rizomaticamente como erva proibida, aomesmo tempo desejada e reprimida. Sempre há tantasforças em sintonia, tantas pragas de coerção, mas aestranheza da desrazão permite escapar a esta clausurada inconsistência.

Pelbart (1993, p. 95) afirma que a modernidadecapturou o estranho, domesticou-o. Ele sublinha a im-portância do Pensamento do Fora que seria a expe-riência que se dá no Desconhecido. O autor acrescentaque “o Pensamento do Fora é aquele que se expõe àsforças do fora que transforma a Força em intensidade”(Pelbart, 1993, p. 96). O poder despótico da razão emnossa cultura ocidental e o enclausuramento dos lou-cos a partir do século XVII nos remete a várias ques-tões sobre o porquê da insistência do modelo mani-comial, ainda que este modelo tenha se mostrado im-procedente para muitos autores. Pelbart lembra que“enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, opensamento racional trancafiava a desrazão e ainda

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afirma que “é preciso recusar o império da Razão”(Pelbart, 1993, pp. 106-107). Para isto, precisaremosmudar muitas coisas. Os trabalhadores, usuários, mili-tantes, familiares, todos os que estão direta ou indi-retamente envolvidos com a saúde mental, podem sebeneficiar com esta discussão, posto que a escravidãoem relação à lógica racionalista não leva apenas aoenclausuramento do louco, mas a outros aprisiona-mentos.

Pelbart em duas de suas obras (1989 e 1993)aprofunda a discussão do Fora em relação à loucura eà desrazão.

Enquanto a desrazão era afetiva, imaginária eatemporal, a loucura será temporal, histórica e so-cial. É assim que no próprio momento em que adesrazão é silenciada, a loucura é exibida de for-ma organizada e explícita, no escândalo de suasformas e, por trás das grades, numa distância pro-tegida. (Pelbart, 1989, p.60)Não foi possível enclausurar a desrazão, esta não

configura uma antítese à razão. Podemos chamar deFora uma experiência-limite que tangencia os limites,mas se encontra no entre . Blanchot ( apud Pelbart, p.98) chama de O Fora o que está exposto às forças nãovisíveis, a relação com o estranho, a alteridade. Domesmo modo não é possível enclausurar a música, ain-da que ela possa ter uma estrutura, uma melodia, umaharmonização, um ritmo, algo sempre pode escapar.Quando se produzia um som, por exemplo, nas ses-sões de musicoterapia da CSVR , articulavam-se co-nexões cujos efeitos abriam linhas. Nesse movimentonão existia um certo ou errado, não havia exigênciaestética, existiam possibilidades estéticas, éticas e po-líticas, forças e formas. Deleuze afirma que “Nas ar-tes, tanto na pintura como em música, não se trata dereproduzir ou inventar formas, mas de captar forças...”e complementa que “ a tarefa da música- diria Klee- éa de tornar sonoras forças insonoras... por exemplo oTempo, que é invisível e insonoro...” (Deleuze apudPelbart, 1989, p.103) Que forças insonoras foramtangenciadas por este trabalho musicoterápico? As for-ças não são visíveis, embora não deixem de ser per-ceptíveis. As formas podem ser visíveis.

As sessões de musicoterapia na CSVR, juntamen-te com o dispositivo de assembléia, ocuparam um lu-gar em potência de vida naquele manicômio. Os movi-mentos de construção/produção de formas e suasdesconstruções reverberaram no CAPS Usina deSonhos.

Quando a arte se coloca à disposição das forças deum modo específico, ela entra em contato, através doestremecimento daí resultante, com um fora do quadroe um fora da arte- com o Fora. Fora e forças são... tan-

to para a Experiência como para a Arte... duas facesda mesma moeda. (Pelbart, 1989, p.107)

Produziu-se nas sessões um som louco, diferentedo som do louco, com todas as possibilidades de trans-gressões de ordem estética, várias matizes sonoras,uma loucura desarrazoada e alegre, uma experimenta-ção não marcada pelos muros manicomiais que impu-tam à desrazão. Para se estar fora é preciso se implicarnestas possibilidades criativas que a arte, a paixãoe a loucura proporcionam, experiência-limite, limiarde desterritorialização. Processos de territorialização,desterritorialização e reterritorialização são propulso-res da dança existencial do ritornelo. Podemos nosconsiderar não loucos, mas não precisamos abandonaras possibilidades da desrazão.

Poderíamos dizer que a viagem musical propostaseria uma viagem para algo diferente da loucura ins-tituída, um entre, uma possibilidade de diferir. Umaabertura para o Fora é, não necessariamente a loucuraaprisionada pela história, mas sim uma desrazão des-territorializante da loucura instituída. A loucura não éa única manifestação da desrazão, a loucura seria ape-nas uma clausura do Fora. Pelbart (1989) fala de umaliberação da desrazão como uma importante modifica-ção nas modalidades de relação com o Fora. “A loucu-ra é, com efeito, uma viagem para Fora, um vagar noaberto”(Pelbart, 1989, p. 138).

Esta discussão profícua entre desrazão, loucura eFora remete às forças que engendram os dispositivosde libertação do louco de tantas clausuras, diremos queeste movimento na Reforma Psiquiátrica assume o an-damento musical de allegro ma non tropo, um anda-mento vibrante, porém ainda lento.

O MUSICOTERAPEUTA-MESTIÇO ECARTÓGRAFO SONORO

O lugar de musicoterapeuta tradicional, o lugar deterapeuta, de psicóloga, passaram por uma estranhezana experimentação do Mágicos do Som. Não mais sa-beríamos em alguns momentos que lugar estávamosocupando, estávamos caminhando no entre das posi-ções, num u-topos, um não lugar. Era uma mistura,existia uma relação respeitosa entre nós, mas não hie-rárquica e/ou segregadora.

Pouco em equilíbrio, e também raramente emdesequilíbrio, sempre desviado do lugar, errante,sem moradia fixa. Caracteriza-o o não lugar, sim,o alargamento, portanto a liberdade ou, melhorainda, o desaprumo... (Serres, 1993, p. 20)Com o trabalho com o grupo musical Mágicos do

Som podemos dizer que ocupávamos o não-lugar, istoé, o lugar do limiar, do entre cujo sentido não é o de

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falar pelos outros ou de estar no lugar dos outros. Aproposta era a de que os usuários de serviços de saúdemental pudessem ocupar os lugares que eles escolhes-sem, conquistando seus interesses. Esta também era, eainda é, uma prerrogativa da Luta Antimanicomial. Senós nos propuséssemos a ocupar o lugar do usuárioestaríamos construindo uma relação manicomial esufocando a voz do usuário, ao invés de promover ocontrário.

Ele, o lugar mestiço, se semeia no tempo e no es-paço. No meio da janela que atravessa, o corposabe que passou para fora, que acaba de entrar emoutro mundo (Serres, 1993, p. 18).O lugar mestiço que ocupamos com o Mágicos do

Som deu-se a partir de nossos encontros. Mestiço por-que permaneceu num entre. A experiência de estar nes-te lugar provoca uma sensação de que este é o limiarque se ocupa em todas as experiências profissionaisde um terapeuta. “Toda evolução e todo aprendizadoexigem a passagem pelo lugar mestiço” (Serres, 1993,p. 19).

Na produção do Mágicos do Som os lugares nãoestavam dados ou já constituídos, ocupávamos luga-res mestiços, funcionávamos de modo rizomático, semque houvesse um centro unificador do qual partissemas decisões. Nas palavras de Serres:

... o lugar mestiço, em torno do qual bate o ritmo evibra a música. (p.31) Onde soa o centro do pia-no? Em torno do terceiro lá? Ouça o xis ou o ixeda escala ascendente da esquerda para a direita, eencontre, nas proximidades de algum meio, a cas-cata de notas escorrendo do alto para o baixo; es-cute a quimera e o ponto de encaixe. Neste ponto,vernal, jaz a encruzilhada... (Serres, 1993, p. 25)A experiência do Mágicos do Som e tantas outras,

incitam a acreditar que possamos fazer algo mais,criar coletivamente novos modos de trabalhar. “... nadaaprendi sem que tenha partido, nem ensinei ninguémsem convidá-lo a deixar o ninho ... Quem não se mexenada aprende” (Serres, 1993, p. 14).

O Mágicos do Som partiu, partiu de si enquantousuários, do manicômio, do lugar, do tempo enclausu-rado. O grupo se mexeu e detonou um aprendizado,multiplicidade, intensidade.

Esquece sua própria terra, sobe, viaja, vagueia,conhece, observa, inventa, pensa. Não repete mais.Eu penso ou eu amo, portanto eu não sou; eu pen-so ou eu amo, portanto eu não sou eu; eu penso oueu amo, portanto eu não estou mais aí. Zarpei doser-aí. (Serres, 1993, p. 39).Aprendizagem mestiça, aprendizagem de um lugar

que se move, de relações que se movem, de instituídos

que se movem. Uma rede móvel construída em cadacontato, em cada aproximação e afastamento. A apren-dizagem do Mágicos do Som abriu no corpo da mu-sicoterapia um lugar de mestiçagens. Mestiçagens coma estética da música, com outras estéticas, mestiçagensdo setting musicoterápico.

Eis o novo. Não mais ingenuamente oposta ao dia,como a ignorância ao conhecimento – que belachance é o ritmo nictemeral para aquelas simples ecruéis divisões entre o erro e a verdade, a ciência eos sonhos, o obscurantismo e o progresso... (Ser-res, 1993, p. 53).

MESTIÇAGEM – HÍBRIDOS-ACTANTESEvocamos um tema já problematizado por Chagas

(2001), quando discute a Musicoterapia como profis-são híbrida, na complexidade do exercício de uma prá-tica profissional entre fenômenos de hibridação e depurificação. A Musicoterapia está na tentativa de seestabelecer enquanto categoria profissional dentreoutras já existentes na contemporaneidade, o desafiode práticas que navegam entre a modernidade e acontemporaneidade. Os humanos e, ao mesmo tempo,não humanos presentes na produção do grupo musicalem questão compõem a rede de actantes. Híbridosou actantes constituem os nós dessa rede, que atravésdos encontros, dos agenciamentos das multiplicidades,configuram os engendramentos do “modelo de acopla-mento ou hibridação, em que se parece apostar numaespécie de estrutura ou funcionalidade híbrida” (Pe-dro, 2003, p.167 ). Cada actante, uma construção aber-ta, se transformava com as produções dos agencia-mentos na história, ao mesmo tempo contínua e des-contínua do grupo Mágicos do Som.

... pensar a partir dos coletivos, do que nos ligaaos não-humanos, tem por objetivo estratégicoabrir espaço para que possamos problematizar nos-sa própria constituição – enquanto sujeitos, en-quanto humanos – e transformação, na medida emque somos transformados por aquilo que aprende-mos (Pedro, 2003, p. 175-176).Serres nos esclarece sobre o campo de possibilida-

des nas multiplicidade destes processos de mestiça-gens quando afirma que “estamos imersos numa espé-cie de “oceano de possíveis”, cujo alcance e direçãonão podemos saber de antemão, e no qual estamosaprendendo a navegar” (apud Pedro, 2003, p. 177).

O MÁGICOS DO SOMNo CAPS Usina de Sonhos um grupo processa

rizomaticamente criação e contágio, inventando cole-

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tivamente um modo de operar seus sonhos e suamusicalidade. “A música nunca deixou de fazer pas-sar suas linhas de fuga, como outras tantas ‘multiplici-dades de transformação’... ” (Deleuze e Guattari, 2004,p.21). O grupo musical Mágicos do Som pode ser con-cebido como uma composição contemporânea; quenão totaliza, heterogênea, deixando passar suas linhasde fuga, tentando desterritorializar o instituído da lou-cura. Desterritorialização como um movimento quederiva do território, mas que harmoniza com este, umarepetição da diferença no ritornelo.

Há uma função desterritorializante da música, quelhe permite transversalizar, e atravessar diversosmodos de subjetivação, ou diferentes ‘mundospróprios’ – esta é uma das funções da arte comoum todo. Mas esta qualidade, a música a tem emmaior grau. (Rauter, 1998, p.162).Composição que opera um caminhar no entre,

passagens, rupturas, criação, estado de coisas e fuga.Como uma fuga musical, melodias que criam movi-mentos, escapam e harmonizam. Dissonâncias nãodicotômicas, sem binarismos, ritmo assimétrico.

O desejo de criar um grupo musical emergiu emmeio aos encontros dos usuários deste CAPS com assessões de Musicoterapia, com os instrumentos musi-cais, com as práticas de assembléias em que todos po-deriam expor suas idéias e estas eram compartilhadas.Este desejo de criar um grupo musical foi se agencian-do com uma busca coletiva de levar adiante ideais deafirmação de uma potência de vida em detrimento auma visão segregadora e impotente direcionada ausuários de serviços de saúde mental. “O agencia-mento é a liga do desejo na produção de mundos. Elepõe, em cena, os funcionamentos e os movimentosarborescentes e rizomáticos do desejo nesta produção”(Neves, 2002, p.112). O Mágicos do Som desejavaromper com o instituído da loucura, esse era o sonho,constituir-se como qualquer grupo musical fora daconstrução da loucura. Eles queriam um outro lugar, ode músicos. Eles acreditaram nessa ousadia e constru-íram coletivamente uma dinâmica de funcionamento,engendrando possibilidades de expansão de territóriosexistenciais. Seguindo o fluxo molar, o “plano dasegmentaridade dura, do visível, dos processos consti-tuídos...” (Neves, 2002, p.45), podemos dizer que ogrupo musical foi se constituindo a partir de váriosagenciamentos: com o poder instituído do CAPS, como Poder Público Municipal e o apoio para gravar umCD, para fazer um vídeo-clipe da música de trabalho ecom os recursos para apresentações em vários municí-pios. Estes agenciamentos produziram de um lado avisibilidade do grupo através da mídia local e de outrolado, o apoio de mais pessoas da comunidade. No seu

caminhar o funcionamento do Mágicos do Som pro-duziu uma dinâmica onde todos os envolvidos fugiamdo lugar instituído, era uma composição louco-músi-co, um devir músico no louco e um devir louco nomúsico. “Não há um termo do qual se parta, nem umao qual se chegue ou ao qual se deva chegar... Pois àmedida que alguém se transforma, aquilo em que elese transforma muda tanto quanto ele próprio” (Deleuzee Parnet, 1998, p.8). Uma transição em movimento,um caminhar no entre, um híbrido que expressava suamúsica e ampliava sua voz e seus sonhos, um concertode intensidades, musicalmente interagindo em propul-são de contágio. O fluxo molecular com suas “linhasflexíveis, devir... operando aberturas para um campode multiplicidades” (Neves, 2002, p.45). Cada som dosinstrumentos, cada opinião nas discussões, cada criseconstituía-se num repensar, refazer, refletir as práticas.Cada ator fazendo conexão com os outros. As regraseram construídas na experiência, a partir de acordoscoletivos após discussões. Uma experimentação de“processualidade onde a variação é contínua e as rela-ções são produzidas por conexões de fluxos intensivose heterogêneos” (Neves, 2002, p. 46).

RIZOMA – COMPOSIÇÃO MICROPOLÍTICAE SUAS RESSONÂNCIAS

A música não se detém no espaço. A música acon-tece no tempo, ela se constitui em sons e silênciosconcomitantes. Assim também se constituem os doisplanos indissociáveis, o plano molar e o molecular,estes são “dois modos de recortar a realidade” eles seatravessam o tempo todo e correspondem ao queRolnik chama “duas formas de individuação, duasespécies de multiplicidades, ... duas políticas” (Rolnikapud Neves, 2002, p. 45). O molar corresponderia aoplano das formalizações, “plano da segmentaridadedura, do visível, dos processos constituídos” ... e omolecular ao plano das intensidades, “plano da forma-lização do desejo, do invisível, ... nele temos a predo-minância das linhas flexíveis-fluxos, devir” (Rolnikapud Neves, 2002, p.45).

O plano macropolítico ressoa/afina-se com o mo-lar assim como o platô micropolítico ressoa/afina-secom o molecular e ambos podem ser audíveis numaharmonia contemporânea sem que as dissonâncias se-jam consideradas desafinação. Como um acorde coma sétima nota, a dissonância é constitutiva.

Na ocasião em que o grupo Musical Mágicos doSom começou a funcionar, neste contexto, em confor-midade com os ideais da Reforma Psiquiátrica, erarecorrente a discussão acerca da necessidade dereinserção social dos usuários de saúde mental atravésde dispositivos como a música. As idéias de reabilita-

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ção psicossocial estiveram presentes de modo mar-cante na literatura sobre saúde mental no Brasil.

No entanto, algumas discussões teóricas problema-tizam a concepção binária (incluído × excluído) pre-sente neste campo e propõem um modo de pensar asaúde mental longe das dicotomias, cartografando asforças que engendram o funcionamento dessa máqui-na, incitando forças propulsoras de disrupção do insti-tuído da loucura para o escape da linha de fuga dadesrazão. Conceber a pertinência da desrazão se cons-titui numa necessidade ao lidar com a loucura. Corte-fluxo, variações intensivas, diferença produzindo di-ferença. Talvez seja possível afirmar que no grupomusical Mágicos do Som ocorreu um movimento nosentido da reinserção psicossocial. Porém, é precisosalientar que este movimento não seguiu um roteiropreviamente estabelecido, ao contrário ele foi produ-zido de modo imanente e não dicotômico. Os binômiosterapeuta-cliente, normal-anormal foram se desconfi-gurando e se constituíram num funcionamento rizo-mático.

Funcionamento rizomático: improvisaçãotonal e atonal ao mesmo tempo

Um rizoma é feito de platôs, mas há composiçõestonais, há dimensões, mas sem totalizações. As linhasconstitutivas do rizoma podem ser tanto de segmen-taridade, de estratificações, onde o estado de coisasforma constructos visíveis, quanto de fuga ou dedesterritorialização, as quais abrem brechas às forçasdo caos. Um movimento do ritornelo. Há entradas porqualquer parte do rizoma e as saídas sempre são múlti-plas. Porque rizoma é um rio que rói suas margens eganha velocidade pelo meio (Deleuze e Guattari, 2004,p. 37). Ele “procede por variação, expansão, conquis-ta, captura, picada” (Deleuze e Guattari, 2004, p. 32).Um rizoma é um sistema a-centrado que rejeita qual-quer modelo estrutural, não hierarquizado, mas podese propagar de forma fascista, o enrijecimento da for-ma ou uma priorização de um dos elementos do terri-tório, ou mesmo a idéia de uma estrutura profunda elideranças apoteóticas podem produzir um rizoma defuncionamento fascista. Torna-se necessário que aheterogeneidade não sucumba a uma idéia de homo-geneização, tentativa de um acorde perfeito maioridealizado. “O rizoma é o método do antimétodo, eseus ‘princípios’ constitutivos são regras de prudênciaa respeito de todo vestígio ou de toda reintrodução daárvore e do Uno no pensamento” (Zourabichvili, 2004,p.99). Há que se caminhar sob os cuidados da prudên-cia nas construções coletivas, olhar atento sob as len-tes polidas pela ética. Remeter-se a ética como umalanterna numa estrada ao caminhar. Porque funcionarrizomaticamente é construir o caminho no caminhar, o

próprio caminhante como parte do caminho (pensa-mento taoísta). As dicotomias, dualismos, binarismossão dispensáveis no funcionamento rizomático. A gra-ma brota e se espalha pelo meio. “As multiplicidadessão rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidadesarborescentes” (Deleuze e Guattari, 2004, p.17).

A idéia de multiplicidade substantiva, diferente daidéia de múltiplo adjetivado, nos remete a pensar orizoma com inexistência de unidade que sirva de pivô,ou estrutura, ou divisão a priori entre sujeito e objeto.Formam-se dimensões que se agenciam e mudam denatureza. “Um agenciamento é precisamente este cres-cimento das dimensões numa multiplicidade que mudanecessariamente de natureza à medida que ela aumen-ta suas conexões” (idem, p. 17).

Bruno Latour (1994), antropólogo francês, faz usoda noção de rizoma quando lança as bases da teoriaator-rede. O autor trabalha com a noção de rede e su-blinha a importância da articulação entre humanos enão humanos na produção de efeitos em rede. Subjeti-vidade e objetividade são para o autor efeitos das arti-culações entre humanos e não humanos. Uma rede éum plano de conexões, de agenciamentos no qual asdiferenças se produzem. Na construção do Mágicosdo Som, os actantes usuários de saúde mental co-nectaram-se com a música, com os instrumentos musi-cais, com os poderes instituídos... e esta rede compôsuma música contemporânea por esses agenciamentos/conexões. Em cada um desses actantes conectados,novas perspectivas, novos funcionamentos foram en-gendrados.

“Como multiplicidade substantiva que comportatermos heterogêneos, o agenciamento estabelece entreos termos relações diferenciais imanentes, de modoque um termo da relação não se torna outro, se o outrojá não se tornou outra coisa” (Neves, 2002, p.112). Nogrupo musical Mágicos do Som, as lideranças, os pa-péis, as funções, todas as formas apresentavam varia-ções ao longo do percurso. A cada apresentação musi-cal fazíamos uma reflexão sob todos os aspectos des-ta. Utilizando música, palavras e sons, compartilháva-mos as diferenças, sem idealizações, apenas pela pos-sibilidade de estarmos nessa convivência de formaprazerosa, sem nos perguntarmos quem era o terapeutae quem era o cliente, ou quem era o normal e quemnão o era. Transformávamos a nossa forma de atuar,de conviver, de pensar e de interagir. Na multiplicidadenão há necessidade de unidade. Não há necessidadede divisão entre uno e múltiplo.

Um rizoma não cessaria de conectar cadeiassemióticas, organizações de poder, ocorrências queremetem às artes, às ciências, às lutas sociais(Deleuze e Guattari, 2004, p.15-16).

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O SOM DO RITORNELO5

Um caldeirão caótico musical configurava as ses-sões de musicoterapia no CAPs Usina de Sonhos, uti-lizávamos predominantemente a técnica de re-criaçãomusical, na qual as regras estéticas da música não sãopriorizadas e a expressão sonoro-musical brota con-forme o pulsar da musicalidade. O desafio de produziro grupo musical Mágicos do Som, um desvio que dife-renciava a relação com a música; uma organizaçãodessa musicalidade expressiva caótica para umaformatação estética que permitisse a expressão musi-cal para apresentações em público. Uma ordenação vi-sível da musicalidade emergente. Em discussões cole-tivas, acordou-se que o grupo se propunha a tentarmodificar a idéia estigmatizada sobre os usuários de ser-viços de saúde mental, eles gostariam de apresentar aopúblico seu ideário contra o preconceito que identifica-vam nas suas relações com as outras pessoas ditas nor-mais. Neste contexto, surgiu a primeira música, que du-rante todo o período que estivemos juntos foi repetida emtodas as apresentações. Samba composto e cantado porRegina Serrão,6 componente do grupo. A música de tra-balho do primeiro CD – intitulado Saúde Musical – erauma música protesto, manifesto, expressão e apelo.

Esta não foi a única música composta pelos com-ponentes do grupo, mas era a mais executada nas apre-sentações e se repetia como uma marca que expressa-va o ideário do grupo. Na letra desta música busca-seuma aceitação, mas seria a aceitação de uma diferen-ça? Uma tentativa de igualdade “somos bem pareci-dos...” ou um protesto contra os fluxos de segregaçãoao usuário de serviço de saúde mental? Esta composi-ção sintetiza sem homogeneizar a idéia, sem fechar,uma voz, várias vozes, uma polifonia. Como a própriamúsica incita “ você não tem o direito de me quereraprisionado”, um exercício de buscar o significado damúsica nos parece enfraquecedor de sua potência, nãobuscamos uma representação.

O grupo surgiu no contexto da luta antimani-comial, uma luta que não se detém em acabar com osmuros dos hospícios, mas acabar com o enclausu-ramento da desrazão, acabar com o instituído da ver-dade sobre a loucura e acabar com a lógica antagônicaque propõe uma segregação sobre uma forma de pen-sar a realidade e de vivê-la que não seja uniforme,formatada, extensiva.

Deleuze e Guattari buscam na música o conceitode ritornelo para pensar o fenômeno de territoria-lização. O ritornelo pode ser definido como: todo con-junto de matérias de expressão que traça um território,e que se desenvolve em motivos territoriais, em pai-sagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais,ópticos, etc.). Num sentido restrito, falamos de ritor-

nelo quando o agenciamento é sonoro ou ‘dominado’pelo som. (Deleuze e Guattari, 1997, p.132).

Ritornelo é o retorno. Em teoria musical, tem afunção de repetição. É um símbolo que demarca deter-minado trecho que deverá ser repetido, sendo necessá-rios dois sinais para fazer essa delimitação na partitu-ra (de abertura e fechamento do trecho). Ele facilita aescrita musical por não ser necessário que se reescre-va a parte que se quer repetir. Mas a repetição no fazermusical não acontece de forma absoluta, posto que acada repetição, novos componentes musicais e inter-pretativos são expressos. Como já escrito anteriormen-te, essa repetição expressada na música Preconceito,marcava ao mesmo tempo uma sonata e uma fuga, umasonata que propunha uma forma previsível e uma fugaque incitava uma mudança de lugar, um deslocamen-to. De louco e músico todos nós temos um pouco, é oque diz o ditado popular, mas quando o músico e olouco se instauram num híbrido e se expressa confor-me lhe convém, as noções de diferença e igualdade,ou a heterogeneidade da proposta toma uma certaousadia. Repetia-se este canto como num ritual, era amarca do grupo, este canto, este cantar, este encantar.

MOVIMENTOS DO RITORNELOO ritornelo possui três movimentos: territoria-

lização, desterritorialização e reterritorialização. Eleos torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Asforças do caos se organizam, cria-se uma ordem, umtraço de ordenação de um espaço-tempo. Mas estaordem não é homogênea, há algo de desorganização.O território abriga em si forças cósmicas de abertura.Em algum momento insurge a improvisação, o lançar-se, no qual as forças presentes movimentam-se des-territorializando as antes instituídas. Forças de trans-formação. Cria-se, modifica-se a ordem acessando asforças do caos. Mas este movimento de desconstrução,em algum espaço-tempo, reterritorializa-se. Forçascentrífugas e centrípetas redimensionam e propõemoutra organização, ou melhor, outro arranjo, que não émais o anterior, mas contém algo dele.

O ritornelo é o próprio princípio gerador de movi-mento, através das composições de forças dos fluxosdesejantes. O ritornelo não é outra coisa senão ummovimento de retorno da diferença. O desejo manifes-ta-se em ciclos, em ondas, com velocidades e intensi-dades diferentes. O ritornelo é o desejo que flui. “Asforças da desordem (as do caos), as forças terrestres(que implicam uma marcação territorial) e as forçascósmicas; tudo isso se afronta e concorre no ritornelo”(Deleuze e Guattari, 1997, p.118). Nesse pulsar de ummanifesto, ouve-se uma sonoridade impune, um pro-testo que seduz. Um canto de pássaro que marca seu

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território e é conhecido por este canto. Não há um dizersobre a loucura que a totalize e quanto a arte, há o escape,o escape da desrazão, talvez, por vezes, aprisionada oucontida em formas de produção de subjetividade capi-talista. Cantar a diferença, repetir a diferença, brincarcom a diferença, desejar a diferença, produzir a dife-rença, diferenciar a produção... esta foi a ciranda naconstrução do grupo musical Mágicos do Som.

CONCLUSÃOO grupo musical Mágicos do Som produziu um

diferencial nas práticas muscoterápicas tradicionais.Voltou-se sobre os muros manicomiais na busca desubstituí-los por outras formas de atuação, ampliou osetting ou criou outros settings. Uma dinâmica de fun-cionamento que acreditamos permite-nos inventar no-vos modos de trabalhar em Musicoterapia, apostandonos coletivos heterogêneos e nas linhas que forem sedesenhando a partir das experimentações. Expandir aclínica musicoterápica ou produzir desvios a partir defluxos inesperados, construindo settings além de con-sultórios de saúde mental. Uma clínica no espaço davida ou um espaço de vida na clínica.

A construção mestiça da música, a nossa experi-mentação mestiça no grupo, permitiram-nos uma mis-tura capaz de transgressões e ousadias. Desvios, pos-sibilidades de lidar com os grupos sem a segmen-taridade das hierarquias enrijecidas dos modelosmanicomiais. Um dos efeitos da produção do Mágicosdo Som para as práticas musicoterápicas foi a apostanos encontros das multiplicidades e nas produções demais mestiçagens como artifício para o diferir comopotência de vida. Potência de criação, possibilidadesde inventar modos de trabalhar, criar modos de estar eatuar no mundo, convivendo com as produções hete-rogêneas. E que não se restrinja este modo de pensarà relação dos usuários dos serviços de saúde mentalapenas em suas comunidades. Que estes e outros mo-dos de trabalhar possam ser utilizados em outras arti-culações, outros agenciamentos, outros encontros demultiplicidades substantivadas que somos nós. A pro-pulsão Mágicos do Som ainda reverbera. O pulso ain-da pulsa.

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Notas:1 Várias pessoas compuseram o grupo musical Mágicos do Som no período

de 1997 à 2003, são eles: José Antônio Pátio Filho, Maria Lúcia Jacinto,Regina Lúcia Serrão, Jorge Luiz Silva, Josias Moraes, Hélio Cirineu, Se-bastião Venâncio, Rosiléia Cândido, Marco Antônio da Costa Marques,Carlos Nilson Mendes, Wanderley Brasil, Gilmar, Aridéia, Rinaldo, MárciaFerreira, Marco Aurélio, Sônia Maria, Vera Gonçalves. E também DonaCida, Jurema e Fernanda (familiares) e Raquel Siqueira (musicoterapeuta).

2 Os profissionais de nível médio que desenvolviam oficinas artesanais eramchamados de oficineiros.

3 Conforme Moraes (1998) a noção de rede “não remete a nenhuma entidadefixa, mas a fluxos, circulações, alianças, movimentos. A noção de rede deatores não é redutível a um ator sozinho nem a uma rede. Ela é composta deséries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agen-ciados. Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionaisatores da sociologia, uma categoria que exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode ser confundida com umtipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeita-mente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam elasnaturais, sejam sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identida-de e suas mútuas relações, trazendo novos elementos para a rede. Nestesentido, uma rede de atores é simultaneamente um ator cuja atividade con-siste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede que é capaz deredefinir e transformar seus componentes”.

4 Abordaremos este conceito mais adiante, aqui referimo-nos à Deleuze quan-do escreve: “Lembremo-nos a idéia de Nietzsche: o eterno retorno comopequena cantilena, como ritornelo”. (1997, p. 159-160)

5 Agradecemos a Rosana Saldanha Silva cuja parceria permitiu que escrevês-semos este trecho do artigo que versa sobre o conceito de ritornelo.

6 Preconceito: Autora: Regina Serrão. Preconceito é besteira/Seja de raça oude cor/Seja de perto ou de longe/O que vale é o amor/Essa idéia afasta,separa, ignora/Causa dor e sofrimento/Só o sabe quem o sente/Dói bastantedentro da gente/ Não somos perigosos/Muito menos desumanos/Temos di-reito à vida/Temos direito ao amor/Podemos parecer diferentes/Podem nosachar esquisitos/Com paciência mostramos/Que somos bem parecidos/Oamor é uma virtude/Preconceito um pecado/Você não tem o direito/De mequerer aprisionado.

Autoras:Raquel Siqueira da Silva – Psicóloga. Especialista em Musicoterapia peloConservatório Brasileiro de Música. Coordenadora do curso de graduação emMusicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música. Mestranda no Progra-ma de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.Marcia Moraes – Doutora em Psicologia Clínica, PUC-SP. Professora do Pro-grama de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.E-mail: [email protected]

Endereço para correspondência:RAQUEL SIQUEIRA DA SILVAConservatório Brasileiro de Música – Centro UniversitárioAv. Graça Aranha, 57, 12º andar – CentroCEP: 20030-002, Rio de Janeiro, RJ, BrasilFones: (21) 9631-9409 / (21) 2610-0827E-mail: [email protected]