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CONVIVÊNCIA E VIOLÊNCIA ESCOLAR: A DIREÇÃO E A GESTÃO DA ESCOLA PÚBLICA Danilo de Carvalho Silva Orientadora: Adriana Marcondes Machado RESUMO: Este trabalho sistematiza e discute cenas relatadas por diretores de escolas públicas e temas relacionados à gestão escolar, tais como: acordos e pactos entre educadores, o excesso de intervenção jurídica no campo educacional, as políticas públicas e o modo como os atores escolares têm vivenciado suas implementações, a crise da autoridade docente, avaliação dos processos escolares, e como a crítica da psicologia tem, na relação com a educação, produzido outras práticas, contribuindo assim para a análise dos processos escolares.

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CONVIVÊNCIA E VIOLÊNCIA ESCOLAR: A DIREÇÃO E A GESTÃO DA ESCOLA PÚBLICA

Danilo de Carvalho Silva

Orientadora: Adriana Marcondes Machado

RESUMO: Este trabalho sistematiza e discute cenas relatadas por diretores de escolas

públicas e temas relacionados à gestão escolar, tais como: acordos e pactos entre

educadores, o excesso de intervenção jurídica no campo educacional, as políticas

públicas e o modo como os atores escolares têm vivenciado suas implementações, a

crise da autoridade docente, avaliação dos processos escolares, e como a crítica da

psicologia tem, na relação com a educação, produzido outras práticas, contribuindo

assim para a análise dos processos escolares.

PALAVRAS-CHAVE: escola, violência, gestão, convivência, indisciplina

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1. Introdução

Em 2011 foi criado pela Secretaria Municipal de Educação um projeto de

formação de diretores de escolas públicas a respeito do tema: “Convivência Escolar”.

Frente a esta proposta, a coordenadora dos supervisores de educação lotados na

Diretoria de Educação da Região do Butantã (DRE-Butantã), que conta com cerca de 20

supervisores, solicitou a participação do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de

Psicologia da USP para auxiliar na compreensão e na criação de estratégias para

enfrentar o que se toma como violência escolar, propondo um trabalho em que os

supervisores atuassem junto aos diretores, em vez de apenas atuarem como avaliadores

do trabalho dos diretores.

Este convite recebido pelo Serviço de Psicologia Escolar nos convoca a pensar

sobre a participação da psicologia na escola, indagando relações e práticas sociais que

tendem a se repetir, e que se legitimam enquanto se repetem (BLEGER, 1985). Assim,

nos casos em que o fracasso escolar já se instalou, esta postura crítica sobre as relações

e práticas cotidianas contribui para compreender como alunos e professores estão se

constituindo nesse processo, rompendo com aquilo que, instituído, se repete, abrindo a

possibilidade de escrever outras histórias com aqueles que participam da composição do

universo escolar, por mais graves que sejam as dificuldades econômicas, intelectuais ou

afetivas por que passam, por exemplo, algumas crianças (MEIRA, 2003).

As situações de violência do cotidiano escolar têm produzido cenas como a de

alunos que não querem mais ir à escola por sofrerem aquilo que atualmente vem sendo

chamado de bullying e de professores que constantemente faltam às aulas e solicitam

que sejam abonadas. Diante das inúmeras dificuldades da atividade docente, os diretores

relataram, por exemplo, que é comum aos professores pedirem a presença do diretor

para conseguirem se acalmar em momentos de maior desgaste.

Muitas vezes, o principal sofrimento dos diretores se deve ao fato de suas ações

serem tomadas como intransigentes ou autoritárias, mas, diante de constantes mudanças

no elenco de professores, por exemplo, elaborar ações democráticas é um desafio ainda

maior, necessitando, por isso, de novas estratégias e alianças.

Num total de seis encontros, realizados mensalmente entre abril e novembro de

2011, os encontros formativos constituíram-se como espaço precioso de formação onde

o cuidar e o educar materializaram sua expressão. Desses encontros retirei algumas

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cenas com o intuito de compartilhar com esses diretores algumas reflexões que fiz

durante a participação nos encontros.

Portanto, o objetivo deste trabalho é sistematizar e discutir alguns temas caros a

gestão escolar a partir de cenas relatadas e da participação nos encontros, contribuindo,

assim, para a análise das relações escolares na atualidade.

1. Acordos e pactos

Durante os encontros, chamaram à atenção os constantes questionamentos sobre

quais eram os objetivos daquele tipo de formação, já que sua programação não contava

com palestras sobre um modo de exercer a direção escolar, mas tinha como ponto de

partida as diversas experiências de direção escolar vividas por aqueles diretores.

A partir dessa troca de experiências, ao longo dos encontros, foi possível contar

e pensar sobre os momentos de conflito e sobre quais eram os procedimentos que cada

escola realizava, conquistando, assim, outros referenciais para esses momentos, nos

quais os diretores, comumente convocados a julgar sobre os acontecimentos urgentes,

passam a elaborar estratégias de gestão junto aos outros educadores que compõem a

escola.

No relato reflexivo1 do dia 24 de agosto de 2011, lido no encontro do dia 28 de

setembro, houve o relato de como este tema apareceu naquele encontro:

Depois dos diretores se concentrarem na sala de leitura da escola, o encontro

começou com a leitura do relato feito por um dos diretores no encontro do mês

passado. Após a leitura do relato, cada diretor pedia o “bastão da fala”,

naquela ocasião, um totem símbolo de um orixá africano, para que assim

tivessem direito a voz.

Na leitura do relato a brincadeira com as metáforas do poema “Verdade”, de

Carlos Drummond de Andrade, já trazia o anseio por um referencial externo

que prescrevesse qual atitude certa deveria ser tomada no momento do conflito:

“A porta da verdade, dizia, estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa

por vez”.

1 Em cada encontro, um dos diretores se prontificava a escrever um relatório, apresentando suas reflexões e percepções do encontro. Este relato era lido, em voz alta, no encontro seguinte.

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Mas a questão sobre qual seria a atitude certa, a ser tomada em momento de

conflito, ganhava uma dimensão muito maior ao tratarmos da educação, pois se

a receita do bolo da vovó tantas vezes descreve o passo a passo de onde se quer

chegar, quando tentamos fazê-lo, parece que a vovó se esqueceu de nos contar o

segredo para deixa-lo tão saboroso. A pergunta passava então a ser: o que nos

garante o sabor do bolo?

Assim, surge a preocupação com a formação, uma preocupação que parece

emergir do sentimento de constante despreparo frente às situações do cotidiano

escolar.

Refletindo sobre uma concepção crítica em Psicologia, Marisa Eugênio Mellilo

Meira (2003) comenta que as dificuldades, ao serem socializadas, contribuem para tirar

os trabalhadores da alienação em relação ao próprio trabalho. Segundo Meira, o

envolvimento com a construção de relações recíprocas de respeito, cooperação e

solidariedade acontecem quando a adoção de medidas coercitivas de controle e punição

é evitada. Com isso, torna-se possível romper com situações em que prevalece ora o

autoritarismo, ora o abandono da autoridade dos professores, nas quais predominam,

muitas vezes, climas defensivos, nos quais alunos e professores se sentem ameaçados

(MEIRA, 2003).

Um dos exemplos citados que ilustra este tema é o das constantes faltas de

professores, que seguiu a leitura do relatório do dia 24 de agosto, quando os diretores

discutiam sobre os problemas relacionados à comunicação entre os atores escolares.

Esta questão foi citada pelos diretores como um dos acontecimentos que mais geraram

atritos na relação com os professores. Como a lei deixa como prerrogativa para o diretor

aceitar ou não a justificativa do professor para que sua falta seja abonada, o julgamento

desta justificativa se torna individual, responsabilizando apenas o diretor pela decisão

sobre sua aceitação.

Isso tem levado alguns diretores a elaborar acordos coletivos a fim de sanar esta

dificuldade. Uma das diretoras comentou, inclusive, que a elaboração desses acordos se

tornou mais fácil por conta dos funcionários já trabalharem na escola há um longo

tempo, já que em escolas com constantes trocas de professores o desgaste é muito

maior, em função da necessidade dos acordos serem retomados, havendo o constante

sentimento de que não há história e de que tudo está começando outra vez. Assim, para

que acordos contribuíssem na redução das faltas eles passaram a ser registrados em atas

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assinadas pelos professores. Deste modo, quando um professor alegava que havia

esquecido, retomava-se o que foi assinado em ata.

No entanto, tais acordos têm sido instituídos em função de atender as demandas

mais urgentes, silenciando, muitas vezes, a questão que os trouxeram a tona. Por esse

motivo, com o estabelecimento da política dos professores de módulo, que substituem

os professores efetivos quando faltam, a luta pela presença dos professores ficou

enfraquecida, pois se com os acordos foi possível reduzir as faltas, com a

implementação desta política as faltas dos professores deixaram de ser uma demanda

urgente, de modo que, a discussão sobre o abono e a justificativa das faltas foi deixada

de lado em nome de outras urgências.

Essa urgência na resolução do conflito, decorrente da necessidade de

cumprimento das obrigações que dizem respeito ao ano letivo, soma-se a uma política

em que docentes que cumprem excessiva carga horária de trabalho. Por isso, a

instituição desses acordos e pactos têm, em muitos casos, ofuscado os motivos que tem

levado muitos professores a faltar e recorrer ao abono.

Houve quem comentasse, por exemplo, que os abonos, as justificativas e a

necessidade do professor se ausentar por questões relacionadas à insatisfação no

trabalho são elementos presentes na questão das faltas dos professores. No encontro do

dia 28 de setembro de 2011 os diretores apresentaram algumas hipóteses sobre o que

tem provocado tantas faltas:

A - Eu tenho um ensaio de resposta. Eu acho que essa oferta de, vamos chamar assim...

do abono... funciona mais ou menos como propaganda na televisão: você não tem

necessidade de tomar Coca-Cola, mas a televisão te cria uma necessidade de tomar

Coca-Cola. Então, você não tem necessariamente a precisão da falta, mas já que ela

está ali e eu tenho o direito de...

B - É tipo um direito hoje em dia o abono...

C - Eu não sei se tem isso. Pode ser que em algumas situações...

A - Eu estou me referindo, me desculpa a discordância, especificamente nos casos em

que a pessoa diz: “Eu não vou deixar nenhuma falta para a prefeitura!”.

C - Nesses casos é! Aí sim fica patente isso. Eu acho que em algumas condições, em

algumas situações o oficio de magistério é altamente estressante. Não há como negar!

Até porque você... você não chega simplesmente numa sala de aula e constrói conteúdo,

saberes e ponto final. Se assim fosse seria... não sei, talvez fosse maravilhoso (risos), se

assim fosse, mas não é assim que acontece. A gente quando entra em uma sala de aula,

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além de se preocupar com conhecimento, com a cultura, com o saber, demanda outras

coisas, e muitas outras coisas, e que fogem desse âmbito do que seria o papel da escola,

vão sendo agregados outros papéis que vão fazendo com que a função do magistério

seja extremamente desgastante, extremamente estressante, mas nem por isso

extremamente interessante, mas isso desgasta e às vezes o professor fala assim: “Deixa

eu respirar um pouquinho, vou abonar hoje!” É uma tábua de salvação também, de vez

em quando.

Nestes encontros, portanto, houve a tematização das divergências entre os

profissionais que trabalham nas escolas, tornando-se uma forma de ruptura com esse

funcionamento que prioriza o atendimento de urgências, trazendo novas percepções

sobre os entraves do trabalho na escola.

Ainda neste encontro, a discussão e o questionamento a respeito da própria

função dos supervisores, por exemplo, foram apontados como um saldo positivo

daqueles encontros. Um dos diretores comentou que a presença dos supervisores era

fundamental ao proporcionar outro ponto de vista e contribuir no encontro de novas

ações para o enfrentamento de casos de indisciplina e violência.

Entre os diretores, houve quem comentasse sobre o desconhecimento das

atribuições de um supervisor, comentando sobre a necessidade de um eixo de trabalho

que orientasse o trabalho da equipe de supervisores, de modo que o estilo de cada um se

volte para os interesses comuns em relação à atuação na escola.

Os diretores comentaram que o supervisor que dialoga e escuta ajuda a pensar

em ações para as questões da escola, amparando o diretor em seu trabalho. Vemos

algumas vezes, nos grupos de educadores, falas como: “cada professor faz do seu jeito,

cada um é diferente do outro”. No entanto, a tarefa de ensinar e de aprender se constitui

coletivamente quando a defesa das singularidades está atrelada a diretrizes e princípios

comuns. Machado (2003) argumenta que o trabalho em equipe, conquistado quando há

a contribuição de toda a comunidade na formação de seus alunos, implica em um

processo de diferenciação que fica abortado quando defendemos as diferenças sem

compreender que o convívio com elas implica uma luta, incomoda, exige embates e

mudanças.

2. Judicialização dos Processos Educativos

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O encontro do mês de outubro tinha como proposta a apresentação das cenas de

duas escolas que respondiam a Inquérito Policial por denúncia daquilo que tem sido

intitulado bullying. A proposta da discussão dessas cenas era analisar o processo para se

pensar em formas de agir na prevenção de alguns acontecimentos que causaram grande

desgaste nas escolas.

A supervisora convidou um dos diretores para que narrasse sobre o suposto caso

de bullying que havia extrapolado os muros da escola, parando no Ministério Público.

Assim, no encontro do dia 26 de outubro de 2011, um dos diretores trouxe em

seu relato reflexivo a cena narrada no encontro anterior:

(...) [o professor] narrou o caso de uma aluna de treze anos que, após longa ausência

às aulas teve os responsáveis convocados para regularizar a situação. O padrasto

relatou que a aluna não queria ir para a escola porque sofria bullying por parte dos

colegas. Acusações posteriormente descartadas a partir de conversas com professores

e alunos supostamente envolvidos nos atos. O padrasto teve, por parte da escola,

garantias de que a aluna não seria importunada e teria condições de frequentar as

aulas com segurança. Ele volta para casa com o compromisso de fazer a enteada

retornar às aulas. No dia seguinte, porém, a aluna foi levada para o pronto-socorro do

Hospital Universitário da USP, onde se detectou que ela estava em coma alcoólico. A

menina foi medicada e, após seu restabelecimento, alegou que tomara grande dose de

vinho porque não queria voltar para a escola, pois era vítima de bullying. Percebendo

que a aluna não retornou às aulas, a direção da escola agendou reunião no Conselho

Tutelar, com a presença da supervisão escolar. Neste encontro, a escola é informada

de que o Conselho Tutelar havia recebido relatório do Serviço Social do Hospital

Universitário. O mesmo relatório foi encaminhado à Vara da Infância e da Juventude.

[O diretor] relata que até hoje a escola não recebeu cópia do relatório ou qualquer

telefonema. Conta que, mesmo após se provar que são infundadas as denúncias, a

aluna continua fora da escola e passa por atendimento psicológico na USP. Relata

também que, chegou a agendar um encontro com a família e a própria aluna, e neste

encontro, a menina foi convencida a voltar para a escola. No dia seguinte a aluna volta

às aulas e é recebida com aplausos e cartas de amizade. Porém, no dia seguinte a

aluna não retorna mais à escola e afirma que todos os colegas são falsos. Diante do

impasse, a escola propõe transferência para outra escola de modo que a aluna não seja

prejudicada nos estudos. Oferece ajuda da supervisão para conseguir a vaga. Porém,

em novo encontro, a aluna relatou não querer mais estudar. E os responsáveis que

atuam na escola pareciam discordar da legislação que obriga as crianças a estudar.

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Já a outra cena falava sobre o caso de uma aluna nova da escola, da 4ª série, cujo

apelido de “pena torta”, dado pelos colegas, levou a família a cobrar providências sobre

o caso, encaminhado ao Ministério Público (M.P.).

Após o intervalo, ouvimos a narrativa de um caso que foi encaminhado ao Ministério

Público. Tratava-se de uma aluna nova da escola, da 4ª série, apelidada de “pena

torta” pelos colegas. A família veio cobrar providências sobre o caso. Os funcionários

da escola vigiaram de perto e, ao que se sabe, não houve mais provocações à menina.

Mesmo assim, a escola recebeu uma correspondência do Ministério Público, na qual se

acusavam os professores de negligentes. A mãe da menina foi a responsável pela

denúncia. A professora, excelente profissional, ficou extremamente abalada. A família

informa que fez a queixa porque desejava transferir a menina para outra escola. O caso

ganhou repercussão na imprensa e a escola teve que se explicar junto ao Ministério

Público.

Chrispino e Chrispino (2008, p. 11), em artigo sobre a judicialização das

relações escolares, apontam para o período de consolidação de direitos sociais e

individuais. Estes direitos, quando não cumpridos, têm sido buscados apenas no espaço

da Justiça, daí a denominação do fenômeno como judicialização, que tem atravessado

diversas relações institucionais como a relação entre família e escola.

(...) A judicialização das relações escolares se dá no mesmo momento em que

percebemos a judicialização da política (quando o Poder Judiciário é chamado para

interpretar a fidelidade partidária), a judicialização da saúde (quando a Justiça manda

que sejam entregues pelo Poder Público os remédios para doentes crônicos, ou

transplantados, etc.) e a judicialização das políticas públicas.

Traçando uma investigação histórica sobre a disputa pelo poder de dominação,

Foucault (2003) encontra nas formas de julgamento grego duas formas de saber quem

estava errado e quem estava certo em relação à violação do direito do outro: o litígio ou

contestação e a disputa.

Na disputa, por meio do confronto um lançava ao outro o desafio: “és capaz de

jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo?”, e então o culpado se calava.

Em Édipo, a retórica das contestações surge na figura da testemunha, como aquela que,

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pela lembrança, enuncia a verdade, representando para Foucault, uma conquista da

democracia, pois o direito de testemunhar é o direito de opor a verdade sem poder do

escravo, ao poder sem verdade do senhor. Conclui-se, assim, que, “por trás de todo

saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é a luta pelo poder. O poder político

não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2003, p. 51).

A partir dessa ótica, podemos analisar o embate existente entre educadores e

alunos e entre escola e família nas pressuposições de que a menina de 13 anos deveria

querer estudar e a de que a mãe da cena seguinte deveria ter procurado diretamente a

escola, pois tanto a menina de treze anos só passou a receber algum tipo de atenção

quando o seu sofrimento se conectou a ideia de bullying, quanto à mãe só conseguiu ser

atendida em sua demanda por transferência de escola mediante acusação da escola no

Ministério Público.

Nesse sentido, o projeto de formação de diretores tem se mostrado uma pausa

importante na ruptura da rotina escolar, rompendo com uma ordem que excede naquilo

que vem de fora. Vivemos uma educação escolar que insiste em vincular a

aprendizagem à relação entre idade e série e a constante necessidade de avaliação, por

exemplo, dificultando a aproximação e o diálogo entre alunos e professores.

Do mesmo modo, a psicóloga Giovanna Marafon (2009) aponta que “a própria

dinâmica da escola centra as decisões numa só figura, tal qual um juiz: seja uma

orientadora pedagógica ou, o que é mais comum, o diretor”. Enquanto isso, os

professores reclamam da desautorização provocada pelos diretores ao mandarem os

alunos encaminhados para a diretoria de volta para a sala de aula.

Portanto, a ordem que tem imperado na escola, ao privilegiar o cumprimento das

obrigações burocráticas, sustenta uma relação competitiva entre professores e diretores

e entre escola e família. Isso, pois a burocracia concentra o poder de dominação e

controle, como discutido por Antônio Ozaí da Silva (1999):

A fusão de um saber, constantemente acumulado e renovado pela própria

natureza da instituição escolar, com as técnicas disciplinador-burocráticas

herdados dos presídios avultam os efeitos da concentração do poder de

dominação e controle. (SILVA, 1999)

A burocracia, portanto, está a serviço do imperativo de uma ordem cujo sentido

externo visa controlar os acontecimentos. Para que uma escola funcione são necessários

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alguns parâmetros como, por exemplo, horário de entrada e saída dos profissionais que

nela trabalham. No entanto, observamos que muitos dos seus aparatos servem para

manter o aluno sob constante vigilância, como é o caso dos diários de classe, boletins

individuais, a disposição das carteiras em sala de aula, culto à obediência, dentre outros.

“Como salienta Tragtenberg: ‘na escola, ser observado, olhado, contado detalhadamente

passa a ser um meio de controle, de dominação, um método para documentar

individualidades’” (TRAGTENBERG, 1985, p.40, apud SILVA, 1999).

Quando o esforço dos profissionais que atuam na escola se volta exclusivamente

para a sustentação dessa estrutura de dominação e controle, o resultado são as

constantes cobranças entre os próprios profissionais e entre a escola e as famílias,

imperando uma ordem jurídica em detrimento do caráter educacional, já que em vez

daquilo que produz o conflito ser abordado como parte necessária para que a

aprendizagem ocorra, tudo se volta à manutenção de uma ordem, buscando em um

terceiro, seja ele o representante do Ministério Público ou o diretor, alguém responsável

por vigiar quem está cumprindo a ordem e punir os que não estão cumprindo, em vez de

se questionar o sentido da ordem que foi estabelecida.

Um exemplo que ilustra como o mero cumprimento burocrático atrapalha no

exercício dos processos educativos é o da avaliação. Em muitos casos a prova, utilizada

como recurso pedagógico para verificar certo tipo de aprendizagem, torna-se fim em si

mesma quando se justifica o ensino de um conteúdo em razão de cair na prova.

Deste modo, a ruptura com os procedimentos meramente burocráticos, como os

anteriormente citados, contribui no resgate do objetivo principal da escola: a produção e

transmissão do conhecimento, gerando mudanças nos modos de relação estabelecidos

pelo cotidiano escolar, para que o diálogo possa então ocorrer sem que seja necessário

recorrer ao poder judiciário.

3. Democratização do Ensino e as Políticas Públicas no Cotidiano Escolar

No encontro do dia 26 de outubro de 2011, um dos diretores contou a história de

uma menina que havia parado de ir à escola, alegando ter sido agredida por brincadeiras

de amigos. Contava ter apanhado e ter sido amarrada, além de ter o cabelo cortado.

Intrigado, o diretor comentou que mesmo depois de conversar com as partes

envolvidas, cujas histórias apresentavam outras versões, como o relato de que a menina

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teria permitido cortar seu cabelo, ela continuava se recusando em ir à escola, tornando

vão o trabalho para trazê-la de volta.

Em meio à angústia da cena relatada, o tema da Progressão Continuada veio à

tona, alegando-se que sem a reprovação não há como fazer o aluno estudar, pois ele

avança de série sem que seja preciso corresponder aos sistemas avaliativos, ao contrário

da época em que estudavam na escola, onde quem não estudava era simplesmente

reprovado.

Diante dessas colocações, uma das diretoras levantou uma questão fundamental

frente à política de Progressão Continuada: o que fazer em relação ao que se apresenta

como dificuldade de aprendizagem?

a. Indisciplina Escolar e a Função Social da Escola

O relato da cena protagonizada pela menina de 13 anos, que não queria mais ir à

escola por sofrer bullying, reflete a existência de dificuldades do cotidiano escolar que

têm aparecido tanto no aprendizado dos alunos quanto no trabalho dos professores, de

modo que, enquanto há alunos que não querem mais ir à escola, há professores que

sentem a necessidade de recorrer às constantes faltas e solicitações de abono para dar

conta das tarefas implicadas nesse cotidiano.

Principal tema abordado por professores, quando tratam das dificuldades de

realização do trabalho docente em sala de aula, a indisciplina escolar tem sido

apresentada por professores e diretores como comportamentos que atrapalham o

andamento das aulas, prejudicando o exercício da profissão docente.

No encontro do dia 28 de setembro de 2011 o tema da indisciplina foi abordado

e um dos diretores convocou seus colegas a pensarem sobre a indisciplina em

comparação com a infração citando o seguinte exemplo:

Citando o exemplo de quatro alunos que combinaram por fogo no mato ao redor

da escola, para que, assim, não tivessem aula, o diretor levantou a seguinte

questão: “trata-se de um ato de indisciplina ou infração?”. Nisso, alguns

diretores opinaram dizendo que era infração, enquanto outros disseram que se

tratava de indisciplina.

O diretor, por sua vez, seguiu respondendo que o ocorrido foi tratado como

indisciplina, pois os alunos foram pegos antes de conseguirem executar o

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planejado. Assim, houve um trabalho pedagógico conversando com os alunos

sobre o que aconteceu e chamando seus pais.

Assim, a angústia provocada por situações como essa, imergem professores e

diretores em tamanha perplexidade que dificulta a ampliação da análise para além do

imediatismo do ocorrido.

Diante desse imediatismo, boa parte das hipóteses levantadas por educadores

como possíveis causas dessa indisciplina, restringe-se a tentativa de explicar à

indisciplina escolar como consequência de uma

estruturação escolar no passado, problemas psicológicos e sociais, a

permissividade da família, o desinteresse pela escola, o apelo de outros meios

de informação, etc. (AQUINO, 1997)

No entanto, quando fazemos uma pausa para refletir sobre o que os atores

escolares esperam dos alunos, muitas vezes, encontramos a cobrança por um aluno

idealizado, em que apenas quando se está quieto é que se supõe que esteja atento e

interessado, tal como estereotipado na fala de uma professora transcrita por Freller

(2001):

“Eu, quando escolhi ser professora, imaginava que iria encontrar aquele aluno

que os olhos brilham quando a gente fala, que é caprichoso, traz um lanche

embrulhado no papel alumínio, o caderno encapadinho. Encontrei tudo

diferente, não sei dar aula para aluno que só quer bagunçar e não tem

interesse”, recorda M., professora de quinta e sexta séries.

Ainda que esta seja uma fala um tanto quanto estereotipada e que muitos

professores afirmem que não se trata de exigir que o aluno fique quieto a todo o

momento, mas que precisam de um mínimo de atenção para ministrar suas aulas, e que

atenção e foco só se alcançariam pela quietude no momento em que explicam o

conteúdo, esta fala nos ajuda a analisar o que está em jogo na indisciplina escolar e que

estratégias podem ser evocadas para o enfrentamento das dificuldades que a provocam.

Isso, pois muitos professores tem vislumbrado, nostalgicamente, um passado em

que os alunos eram diferentes, e que “o aluno de hoje em dia é menos respeitador do

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que o aluno de antes, e que, na verdade, a escola atual teria se tornado muito

permissiva” (AQUINO, 1997), principalmente após a implementação da política de

Progressão Continuada, pois o aluno não estudaria por não haver a possibilidade de ser

reprovado (VIEGAS, 2007).

Deste modo, a decorrência das hipóteses explicativas sugeridas pelos professores

tem sido a não responsabilização da escola e a reafirmação das dificuldades do processo

de escolarização como incapacidades do aluno, reforçando os encaminhamentos para

psicólogos e psicopedagogos, culpando, muitas vezes, as famílias e insistindo na

prerrogativa de que para ser professor é preciso antes ser “um pouco pai, um pouco

amigo” (AQUINO, 1997), condicionando a aprendizagem a uma suposta necessidade do

aluno se portar de uma determinada forma para, só quando ele estiver pronto, a aula

poder ser dada.

Assim, precisamos datar que a escola em que muitos dos professores estudaram

e a qual se referem saudosamente é anterior aos anos 70 e se tratava de uma escola

elitista, muitas delas militares ou religiosas, uma escola para poucos, na qual as

constantes reprovações produziam altos índices de evasão escolar, tornando a escola

seletiva, onde a quietude dos alunos não eram reflexos de disposição e interesse pelo

conhecimento, mas das constantes ameaças e castigos, traços de uma cultura

militarizada impregnada no cotidiano escolar dos tempos da ditadura militar.

Com a abertura democrática e a luta por outra escola, temos os alunos de hoje

como fruto de outras coordenadas históricas, de modo que, as queixas escolares em

relação à indisciplina anunciam a demanda por outro tipo de vínculo e relação, menos

disciplinar e moralizante e mais próxima e compreensiva dos alunos (AQUINO, 1997).

Para estabelecermos outro tipo de relação na escola e, mais especificamente, em sala de

aula, precisamos compreender um pouco sobre a história da crise do Ensino Público no

Brasil e como tais queixas se produzem nesse contexto de crise.

b. História da Crise Escolar no Brasil

A escola pública brasileira esta sustentada em torno do ideário da formação do

Estado-nacional, um modelo que propõe, de forma muitas vezes autoritária, a

homogeneização das diversidades encontradas sob o mesmo limite geográfico como

unidade nacional (BEISIEGEL, 1992).

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Esta homogeneização, presente na escola pública desde os tempos da Primeira

República, quando surgiram os primeiros projetos de alfabetização de adultos e

ampliação do Ensino Público para as classes pobres (BEISIEGEL, 1992), intencionava

adequar essas pessoas a ordem vigente, para que, qualificadas, passassem a contribuir

para o desenvolvimento nacional. Como principal evidência deste processo, temos a

proposta de branqueamento do povo brasileiro pelo incentivo à vinda de imigrantes

europeus para trabalharem nas fábricas e lavouras do país.

A ideia de desenvolvimento nacional está atrelada ao avanço do capitalismo por

meio do progresso tecnológico, de tal modo, que até hoje ouvimos que o

desenvolvimento sólido e independente do país será seguido pelo progresso tecnológico.

Assim, a formação escolar ficou voltada exclusivamente para a formação de mão-de-

obra qualificada.

Tal formação foi sustentada sob a presença massiva de um Estado autoritário,

cujo expoente na América Latina foi à ditadura militar, e o que se viu, por sua vez, ao

contrário da promessa da independência e do desenvolvimento sólido, foi à sustentação

da exploração do país por grandes empresas estrangeiras e a manutenção do domínio

oligárquico do país (PATTO, 1990). Portanto, não cabia à escola vislumbrar outros

destinos a seus pupilos, senão o de servir a exploração do capitalismo industrial,

relegando ao abandono completo aqueles que não se adequavam e aceitavam o modelo

imposto.

A promoção da política liberal pelo desenvolvimento nacional a partir do capital

externo, reduzindo os impostos para a entrada de indústrias estrangeiras, também

reduziu paulatinamente os investimentos em escolas públicas, o que ampliou o rol de

escolas particulares, cujo ensino passa a tomar a disputa pelo vestibular como principal

meta para a conquista de maior público de alunos, sustentando assim, uma educação

elitista e tecnicista.

A importância deste tema no enfrentamento da indisciplina escolar se deve ao

fato de, até os dias de hoje, nos depararmos com a sociedade brasileira evocando a

educação escolar como panaceia para todos os males do país. Esse ideário gera

inúmeros sofrimentos aos professores, coordenadores e diretores que, sob a espada de

Dâmocles2, lutam diariamente por uma educação que contribua com o desenvolvimento

2 Dâmocles: na narrativa da mitologia grega, era um cortesão da corte de Dionísio que amava viver, mas tinha sempre sobre si uma espada presa unicamente por um único fio que, a qualquer momento, poderia romper-se e trespassar seu corpo.

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nacional, sem perceber o quanto este ideário tem prejudicado o próprio

desenvolvimento da educação quando sujeita educadores e alunos a um único objetivo.

c. Democratização do Ensino e a Política de Progressão Continuada

O que hoje recebe o nome de “Progressão Continuada” é semelhante à proposta

de “Promoção Automática”, apresentada no início do século XX como medida para

resolver o problema do analfabetismo. Como não era interesse do governo dispender

gastos para aumentar o número de vagas nas escolas, à proposta viria como solução

economicamente viável para o problema da evasão escolar e da exclusão de crianças e

jovens da escola (VIÉGAS, 2007).

Substituindo o sistema de reprovação por ciclos, a Progressão Continuada é uma

política cuja implementação elucida duas das principais visões que prevalecem em

relação à educação. Se, por um lado, ela surge com a proposta de responsabilizar a

escola, em vez de culpar o aluno por não aprender, já que a reprovação culpa o aluno ao

desconsiderar os aspectos seletivos do próprio sistema educacional, por outro lado, ela

foi utilizada como mero recurso economicamente viável para aumentar os índices de

crianças e jovens na escola sem aumentar efetivamente o número de vagas, tendo em

vista que não há mais reprovação.

Os professores, no entanto, reclamam que este sistema tem contribuído para

piorar a qualidade do ensino, pois não foram acompanhados de uma política de aumento

salarial, de limitação de trabalho em apenas uma escola para a formação de uma equipe

pedagógica e da redução de alunos por sala de aula. Reclama-se que tais reivindicações

não foram implementadas por conta da “Progressão Continuada” não ter sido

acompanhada por uma política de organização curricular mais próxima de professores e

alunos, já que as diferentes gestões públicas apresentavam diferentes propostas

ideológicas em relação à educação pública.

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d. Quando a Ordem Distancia, a Desobediência Aproxima

O advento da Progressão Continuada e a luta pela ampliação do acesso ao ensino

formal trouxeram a tona uma série de questões sobre a serviço do que está a nossa

educação e sobre o que a escola tem proposto para o futuro das crianças e jovens.

Esses questionamentos, no entanto, se produzem por acontecimentos como a

cena da menina de treze anos que, segundo o diretor, não queria mais ir à escola. Diante

desta cena duas questões emergiram em relação à função da escola. Uma questionava

sobre como fazer as crianças estudarem sem a reprovação, a outra questionava sobre o

que fazer em relação ao que se apresenta como dificuldade de aprendizagem.

O excesso de responsabilidades que se concentraram nas mãos de professores e

diretores junto à angústia e o desgaste dificultam a elaboração de outras compreensões

do que tem acontecido em nome de um funcionamento, tantas vezes, automático. Deste

modo, mesmo reconhecendo os impactos da política educacional no processo de

escolarização dos alunos, os professores supõem que a origem última deles reside nas

dificuldades de aprendizagem dos alunos, o que poderia ser detectado e curado apenas

fora da escola, já que frente ao desgaste das inúmeras dificuldades no trabalho, é próprio

localizar nos alunos questões atravessadas pelas condições apresentadas (VIÉGAS,

2007).

Assim, a conquista do acesso à escola tem se concretizado mediante ao enorme

desgaste na realização da função docente, trazendo muitas consequências nefastas.

Questionamentos como os que foram feitos pelos diretores e o sentimento de

sufocamento por terem que cumprir a obrigatoriedade da presença da menina na escola,

em meio a tantas outras obrigações do cotidiano escolar, revelam o conflito entre a

insistência de uma suposta necessidade de disciplinar para educar em meio ao esforço

dos educadores por outro projeto educacional.

No entanto, se antes este seria, provavelmente, mais um caso de evasão escolar,

hoje existe, de algum modo, a necessidade de se buscar outras formas de compreensão

do que tem acontecido, para além de uma possível exclusão por inadequação.

Como podemos perceber a aluna não estava conseguindo investir na mesma

direção que a escola propunha, o que não significa, portanto, que ela não queria estudar.

Como na maioria das vezes, contudo, estar na escola exige estar atrelado a sua proposta

ideológica, essa discordância se conectou com uma possível saída, que no caso das

crianças e jovens tem sido o que se convencionou denominar como bullying.

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Por outro lado, existiu o esforço da escola para convencer a menina a voltar a

estudar, esforço que para o diretor parecia vão, já que não atingia o objetivo de fazê-la

voltar à escola. Esse esforço, por sua vez, nos permite perceber que, caso a menina fosse

convencida e voltasse a estudar, provavelmente tudo voltaria às mesmas condições

anteriores aos acontecimentos relatados, por isso a sua sensação de que tudo o que

fizeram era falso, pois todo o esforço parecia se resumir ao seu mero retorno à escola,

ou seja, a uma necessidade da escola de cumprir uma obrigação sem que houvesse

qualquer mudança na relação com a menina.

Assim, podemos perceber que, a recusa em ir à escola aliada a obrigatoriedade

de lhe fazer estudar mantinha uma forma de suporte ao seu sofrimento. Apesar de

ninguém conseguir explicar porque a menina continuava se recusando em ir à escola,

talvez a principal pergunta fosse “por que os profissionais docentes acreditam que uma

criança deve ir à escola?”, pois se os profissionais docentes concordam que uma criança

precisa ir a escola, então como garantir que aquele suporte dado à menina no momento

da crise continue existindo após seu retorno à escola.

Podemos perceber, portanto, que o amparo do aluno pelo percurso do

aprendizado é uma das condições necessárias à realização da atividade docente. Esta e

outras condições, quando deixadas de lado, seja por conta do excesso de alunos em sala

de aula, da priorização do cumprimento burocrático, da carga horária excessiva de

trabalho e tantos outros impeditivos à atividade docente, resultam em alunos que

passam pela escola sem aprender e são sentidas pelos atores escolares como necessidade

do retorno da reprovação para fazer os alunos estudarem.

Quando aprendemos a andar de bicicleta sem rodinhas, por exemplo, é comum

contarmos com um adulto atrás, segurando o banco até que consigamos nos equilibrar e

pedalar. Assim, aquele corpo desengonçado, que balança o guidão para todos os lados,

vai aos poucos se equilibrando, ainda que, apavorados, continuemos a chamar quem nos

segura, pedindo a todo o momento para não soltar, até que o coração bate mais forte

quando não ouvimos mais aquela voz em nossos ouvidos e só nos resta, então, pedalar e

andar.

Vale destacar que, aprender a andar de bicicleta é legal porque nos permite ir

para lugares que queríamos e até então não podíamos. Portanto, para garantirmos que os

alunos aprendam sem a reprovação precisamos buscar para onde eles gostariam de ir e

como podemos lhes ajudar a chegar lá, o que necessita de outra relação entre

educadores e alunos.

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4. Considerações Finais

Patto (1984 e 1990) analisou como o fracasso do sistema escolar produziu

demandas patológicas que compreenderam as dificuldades do processo de

aprendizagem como sendo apenas do aluno, e que retiraram das características e

condições de ensino a responsabilidade pela conquista da aprendizagem, denunciando a

produção de saberes e práticas que isentam o sistema político e social da

responsabilidade pela produção das desigualdades sociais.

Em uma sociedade em que prevalecem valores individuais, é comum aos

educadores tanto culparem os alunos por não se esforçarem, quanto sentir como um

fracasso pessoal ver um aluno não aprendendo. Deste modo, a compreensão da demanda

escolar passa pela atenção e acolhimento das condições que vivem os atores escolares

que tem contribuído na produção das dificuldades de aprendizagem.

Nos encontros realizados, através do relato e da reflexão sobre cenas do

cotidiano escolar, foi possível pensar quais são as tensões e contradições vividas na

escola, tais como as descritas ao longo deste trabalho.

Machado (2003) afirma que trabalhar essas tensões e contradições exige a

ruptura com a ideia de que o que tem acontecido nas escolas é um acidente que não

deveria acontecer. A articulação de propostas em coletivo e a elaboração de ações para

o enfrentamento das dificuldades, que impedem o exercício das atividades educativas,

acontecem quando são apresentadas as diferentes determinações que produzem esses

acontecimentos.

Portanto, a análise dos processos escolares deixa de ser posta sob a ótica de

critérios individuais, como “o professor chato” ou “o aluno sem jeito”, e passa a ser

pautada pelas resultantes histórico-sociais que produzem a relação entre professor e

aluno, já que as nossas escolhas e decisões são influenciadas pelas condições e

expectativas do contexto em que vivemos.

É comum que psicólogos, diante de queixas escolares de alunos com dificuldade

de aprendizagem, ouçam relatos de que a criança não aprende, pois não tem a

capacidade de seguir ou obedecer a limites e regras, o que tem em muitos casos,

resultado em medicalização.

Vimos aqui que as situações de conflitos, violência e intolerância, em sua

maioria, agrupadas em torno do conceito de indisciplina, revelam a urgência de

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refletirmos sobre as condições necessárias para a ocorrência do aprendizado, afinal, as

ações das crianças e jovens demonstram que elas estão sempre em busca de quem as

acompanhe e oriente nos caminhos da experiência do aprendizado.

Um bom exemplo disso se encontra quando, num jogo ou brincadeira infantil,

alguém não cumpre aquilo que foi acordado previamente entre os participantes,

e este assim considerado “desviante” ou infrator é severamente punido ou

mesmo expulso do jogo. (...) um “governo” infantil é nitidamente despótico,

porque não prevê jurisprudência, prerrogativas, maleabilidade. (AQUINO,

1998)

Como na síntese de uma das diretoras, depois de um longo e intenso trabalho,

com duração de dois anos, realizado na escola que dirigia, uma das que mais sofriam

com cenas de violência, foi possível encontrar, na mudança de relação com as famílias

que compunham a escola, um novo clima de trabalho.

Esses encontros, portanto, têm possibilitado a reflexão conjunta de situações que

são comuns no território das escolas públicas de São Paulo. Refletem uma estrutura

perversa, que não prioriza aquilo que os professores nos ensinaram a valorizar: o estudo,

o tempo, a discussão, o vínculo. Nesse contexto, a luta tem sido intensa e está presente

na disposição que têm para fazer parte desses encontros optativos.

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