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FACULDADE PADRE JOÃO BAGOZZI
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Aparecida Maria de Oliveira e
Gottlann Barbosa Venzke Habith.
— DEZ/2012 —
TRADUÇÕES BILÍNGUES DA VIDA
E OBRA DE
CLAUDE-ADRIEN HELVÉTIUS.
(1715-1771)
Orientador: Prof.: Sidney Reinaldo da Silva
2
Agradecimentos especiais aos professores Sidney Reinaldo da
Silva e Osmar Ponchirolli pelos incentivos, à http://books.google.com
pela disponibilização dos livros utilizados e à Faculdade Padre João
Bagozzi, para que possamos estar à altura de seu prestígio.
Conteúdo.
'Ensaio sobre a vida e obras de Helvétius' por Saint-Lambert (1818) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3
'Os progressos da razão na busca da verdade' por Helvétius — livro completo: (1775)
'Os progressos da razão na busca da verdade'- - - - - - - - - - 79
'Discurso entre um deísta e um ateu' por Helvétius - - - - - - - 216
'O verdadeiro significado do sistema da natureza' por Helvétius (1852) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - -- 221
'Ensaio sobre o direito e as leis políticas do governo' por Helvétius (1818) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - 295
'A felicidade', poema em seis cantos por Helvétius — livro completo: (1772)
'Prefácio ou ensaio sobre a vida e obras de Helvétius' - - - - 308
'A felicidade'- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 428
Fragmento de uma epístola sobre 'O amor próprio'. -. - - - - 530
Fragmento de uma epístola sobre 'O luxo' - - - - - - - - - - - - - 534
Fragmento de uma epístola sobre 'A superstição' - - - - - - - 536
Censura da Faculdade de teologia de Paris contra o livro que tem por título 'Do espírito' - - - - - - - - - - - - - 547
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Durante muito tempo acreditou-se que este 'Ensaio sobre
a vida e as obras de Helvétius' tinha sido encontrado nos papeis
de Duclos. Mas Saint-Lambert tem-se declarado o autor e o tem
colocado em seus 'Trabalhos Filosóficos', como uma
homenagem prestada à amizade e ao mérito.
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ENSAIO
SOBRE
A VIDA E OS TRABALHOS DE HELVÉTIUS
POR SAINT-LAMBERT
Claude-Adrien Helvétius nasceu em Paris no mês de
janeiro de 1715, de Jean-Adrien Helvétius e de Gabrielle
d’Armancourt. A família dos Helvétius por causa da perseguição
sofrida no Palatinado na época reforma, se estabeleceu na
Holanda, onde numerosos membros tiveram honrosos
empregos.
O bisavô de Helvétius foi o principal médico do exército e
mereceu, pelos serviços prestados à República, várias
medalhas.
O filho deste ilustre homem, ainda muito jovem, se
estabelece em Paris. Conhecido aí como o 'Médico holandês',
tornou a ipecacuanha conhecida em toda a França. Ele havia
aprendido o uso desta raiz com um de seus parentes,
governador da Batávia e serviu-se dela com bastante sucesso
em Paris e dentro do exército. Luis XIV, de onde as graças eram
tão frequentes como devem ser as graças dos reis, lhe deu título
de nobreza e o cargo de inspetor-geral dos hospitais. Morreu em
Paris em 1727, lamentado pelos pobres e gente de bem.
Um de seus filhos, herdeiro de seus talentos, cultivou
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como ele, a medicina com glória. Era jovem ainda quando salvou
o rei de uma doença perigosa adquirida aos sete anos de idade.
Posteriormente foi o médico principal da rainha da qual merecia
a confiança e as bondades. Em Versalhes, foi amigo de todas as
casas em que era médico. Tratava em sua própria casa grande
número de pobres e visitava com constância aqueles que não
podiam sair das suas.
Amava muito a esposa, que era bela e dedicada a ele e a
todos os seus deveres. Amaram ternamente o filho e se
ocuparam em conjunto de sua educação e do cuidado de tornar
sua infância feliz. Helvétius não tinha ainda cinco anos quando o
confiaram ao senhor Lambert, homem sábio e sensível, que vive
ainda e chora seu aluno.
Não havia trabalho que a vontade de agradar a tal
preceptor não fizesse o discípulo assumir. Ele teve em boa hora
o gosto pela leitura. É verdade que no começo ele só gostava
dos contos de fadas e de livros onde reinava o prodigioso. Mas
logo associou a eles La Fontaine e Despréaux, cujos trabalhos
encantam os homens de gosto, mas não deveriam agradar às
crianças.
O jovem Helvétius foi para um colégio interno logo que leu
a 'Ilíada' e 'Uma História de Alexandre'. Essas duas leituras
mudaram seu caráter. De tímido, tornou-se expansivo. O gosto
pelo estudo foi suspenso por algum tempo. Queria entrar para o
serviço militar e só respirava a guerra.
De início o despotismo dos regentes, suas ameaças e
coações o revoltaram. As tarefas pormenorizadas que lhe
sobrecarregavam o aborreciam. Ele fez apenas medíocres
progressos.
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Mas, iniciada a aula de retórica, o seu regente, Padre Porée, se
percebeu que ele era sensível a elogios e, elogiando os seus
primeiros esforços, lhe fez fazer outros ainda maiores. Nessa
época os exageros de linguagem estavam em moda no colégio.
O Padre Porée encontrou nos de Helvétius mais ideias e
imagens do que nos dos outros discípulos. A partir daí ele lhe dá
uma educação particular. Lia com ele os melhores autores
antigos e modernos e lhe fazia observar as perfeições e as
imperfeições. Esse padre não escrevia com primor, mas tinha
excelentes princípios de literatura. Era um bom mestre e um
mau modelo. Ele tinha, sobretudo, o talento de conhecer o
alcance do espírito e o caráter de seus alunos e a França lhe
deve muito pelo grande homem e genialidade que ele adivinhou
e apressou.
A primeira experiência de glória aumentou o seu amor por
ela. O jovem Helvétius, elogiado nos exercícios públicos do
colégio, queria triunfar em tudo em que pudesse ser louvado.
Antes ele detestava a dança e a esgrima, depois se sobressaiu
nas duas artes. Inclusive dançou uma ópera no papel e máscara
de Javillier1, na qual obteve muitos aplausos.
Sua competição se estendia a tudo, mas jamais tomou o
caráter de inveja. Ele amava seus concorrentes e havia obtido
sua confiança. Eles acreditavam em sua discrição nas pequenas
artes que a que a severidade dos mestres e a necessidade de
prazer tornam tão comuns entre os jovens.
Helvétius tomou conhecimento do livro 'O entendimento
humano' quando ainda estava no colégio. Esse livro fez uma
revolução em suas ideias. Tornou-se um discípulo fervoroso de
1 Avant Noverre, os dançarinos desta ópera estão mascarados.
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Locke como Aristóteles deve ter sido de Platão, ajuntando
descobertas àquelas de seu mestre.
Ele levou ao estudo do direito o espírito filosófico que
Locke lhe havia inspirado. Desde então ele procurou as relações
das leis com a natureza e a felicidade dos homens.
Seu pai, cuja fortuna era medíocre e que havia incorrido
no desagrado do cardeal de Fleury pela sua amizade com o
senhor Le Duc, o destinou às finanças como a uma profissão
que poderia lhe enriquecer e ainda deixar-lhe tempo para o uso
de seus talentos. Ele lhe enviou para a casa do seu tio materno,
o senhor d’Armancourt, que era diretor de fazendas em Caen.
Lá, Helvétius ocupou-se de literatura e da filosofia, mais que de
finanças e mais ocupado de mulheres que de literatura e da
filosofia. Porém, aprendeu em pouco tempo e quase sem
esforço, tudo o que deveria saber um financista.
Ele tinha vinte e três anos quando a rainha Maria
Leckzinska, que gostava do senhor e da senhora Helvétius,
obtém para o filho deles o cargo de arrematante de impostos
régios. Inicialmente Helvétius só teve o título e meio cargo, mas
o senhor Orri logo lhe deu o cargo inteiro. Foi-lhe dado cem mil
escudos de renda. Seus pais emprestaram-lhe os fundos que
um arrematante de impostos régios deveria antecipar ao rei, com
a condição de que Helvétius pagasse o empréstimo e os
encargos com os lucros do seu posto.
Duas paixões que podiam arruinar o financista mais
opulento: o amor das mulheres e o desejo de fazer o bem. Mas
ele era organizado e probo. Em meio a tantas diversões, soube
usufruir sabiamente. De início, destinou dois terços de suas
rendas ao reembolso de
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seus fundos, ficando o restante destinado às despesas que a
sua idade e nobreza do seu coração lhe faziam necessárias.
Ao sair da infância, Helvétius havia procurado se ligar a
escritores famosos. Marivaux2 era um desses. Esse escritor
espirituoso, sensível e eloquente em seus romances, era
agradável na conversação. Digno dos amigos pela delicadeza de
alma e pureza dos costumes. Helvétius instituiu-lhe uma pensão
de dois mil francos. Marivaux, embora um excelente homem, era
temperamental e tornava-se rabugento nas discussões. Era um
dos muitos amigos, mas a partir do momento da instituição da
pensão, tornou-se um dos amigos pelo qual Helvétius
dispensava mais atenção e consideração.
O filho de Saurin da Academia de Ciências não havia
produzido ainda nenhuma obra que lhe tornasse conhecido, mas
era conhecido dos letrados como um espírito entendido, justo e
profundo, de virtude, gosto e amplos conhecimentos. Mas, para
subsistir, tinha apenas um emprego que não convinha ao seu
caráter. Também recebeu de Helvétius uma pensão de mil
escudos que lhe valeu a independência, o tempo necessário de
cultivar as letras e o prazer de sentir e tornar público que devia
sua felicidade ao amigo. Esse digno amigo, quando Saurin quis
se casar, o presenteou com os fundos da pensão que lhe havia
feito.
Helvétius procurava em tudo o mérito, para amá-lo e
2 Durante uma discussão, Marivaux, tendo-se levantado, não cumprimenta
seu amigo. Logo que parte, Helvétius se contenta em dizer: 'Como eu teria lhe respondido, se eu não lhe tivesse obrigado a aceitar meus favores!'
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o socorrer. Qualquer que sejam os cuidados feitos para
esconder os benefícios, podemos apresentar uma lista de
homens conhecidos obsequiados por ele. Mas cremos faltar à
sua memória se ousarmos nomear aqueles que têm a fraqueza
de ruborizar-se de seus socorros.
Por essa época Fontenelle estava à testa do império das
letras. A extensão de luzes, filosofia saudável, sabedoria de
conduta, variedade de talentos, a alegria de espírito e facilidade
de relacionamento social, tornavam Fontenelle agradável a
muitos e a diversos grupos sociais. Sua indiferença mesmo era
útil à sua consideração. Os inimigos de seus amigos, seguros de
não serem seus inimigos, lhe viam com prazer. Ainda tinha o
mérito de homem de idade e de ter visto o século brilhante com
que nosso século ama entreter-se. Sua memória estava cheia de
anedotas interessantes que ele tornava ainda mais interessantes
pela maneira de contá-las. Seus contos e suas brincadeiras
faziam pensar. As mulheres, os homens da corte, os artistas, os
poetas e os filósofos amavam sua conversação.
Helvétius o cortejava. Ia a ele como um discípulo que vem
modestamente propor suas dúvidas. Era com ele que gostava de
falar de Hobbes e de Locke. Acima de tudo aprendeu com
Fontenelle o talento, hoje muito negligenciado, de exprimir com
clareza as ideias.
Montesquieu era então apenas o autor das 'Cartas
persas'. Mas nessa obra frívola na aparência e na conversação,
Helvétius percebeu o guia dos legisladores. Por seu turno
Montesquieu adivinha que o homem será um dia o seu amigo.
"Eu não sei se Helvétius conhece sua
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superioridade, mas eu sinto que é um homem acima dos outros",
disse ele uma ocasião.
'La Henriade', poema épico de um gênero totalmente
novo, de tragédias que igualam aquelas de nossos grandes
mestres. A 'História de Carlos XII', tão superior a todas as
histórias contadas na França, das composições passageiras que
fazem esquecer essa multidão de insignificâncias agradáveis tão
comuns no século de Luis XIV. Uma filosofia evidente espalhada
em diversos gêneros, muito talento e muitas formas de mérito
atraíram sobre Voltaire os olhares da França e da Europa.
Ninguém excitou como ele admiração e inveja. O público não
rendido pela reverberação dos literatos invejosos e os jovens
que procuram de boa fé o prazer ou os modelos eram seus
admiradores. O resto, pouco mais ou menos, compunha o
número de seus inimigos. O amor pelas letras, a arte de louvar
da qual fez muito uso, a civilidade e a vontade de agradar não
puderam acalmar a fúria da inveja. Procurou se esconder no
isolamento de Cirey. Helvétius foi-lhe procurar aí. Confiou-lhe
seus segredos mais íntimos, isto é, o projeto e os dois primeiros
cantos do poema 'Da Felicidade'. Achou um crítico melhor
esclarecido do que todos os que ele havia consultado até
momento e um amigo ardoroso por sua glória.
Nota-se pelas numerosas cartas de Voltaire, quanto esse
grande homem estava impressionado pelo talento de Helvétius.
Diz-lhe ele: "Vosso primeiro canto, é repleto de ousadias da
razão acima da vossa idade e mais ainda dos nossos indolentes
escritores que rimam pelos seus livreiros e que se restringem
sob o compasso de um censor real
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invejoso ou tímido. Miseráveis pássaros a que se cortaram as
asas e querem se levantar e tombam quebrando as pernas! Vós
tendes um talento másculo e eu gosto mais de vossas faltas
sublimes que das medíocres belezas com que eles querem nos
enfadar‖.
Em outras ocasiões Voltaire dá a Helvétius conselhos
excelentes e que reproduzimos porque podem ser úteis a
qualquer um que queira escrever em versos.
"Eu vos direi em favor do progresso que tal bela arte pode
fazer em suas mãos: Temei em conseguindo o grande saltar ao
gigantesco. Exponha apenas imagens verdadeiras. Utilizeis
sempre da palavra correta. Quereis vós uma pequena regra
infalível? Aqui está: Quando um pensamento é exato e distinto é
necessário ver se a maneira como é expresso em verso será
belo em prosa e se o verso, despido da rima e da cesura, vos
parece carregado de uma palavra supérflua. Se há na
construção a menor falta. Se uma conjunção está esquecida.
Enfim, se a palavra mais apropriada não foi colocada em seu
lugar, conclua que vosso diamante não está bem engastado".
Em outra carta Voltaire repreende Helvétius que lhe havia
falado mal de Boileau. Diz ele: "Eu convenho convosco que ele
não é um poeta sublime, mas ele tem feito muito bem o que
queria fazer. Ele tem colocado a razão em versos harmoniosos e
cheios de imagens. É claro, consequente, fácil e feliz em suas
expressões. Não se eleva muito, mas também não cai e, além
do mais, seus assuntos
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não comportam essa elevação que os vossos são suscetíveis.
Vós sentistes o vosso talento como ele tem sentido o seu. Sois
filósofo; vedes tudo ampliado. Vosso pincel é forte e arrojado. A
natureza vos tem dotado, digo-vos com a maior sinceridade,
muito acima de Despréaux. Mas esses talentos, por maiores que
sejam, não serão nada sem os seus. Portanto, vos recomendo
com ênfase esta arte de escrever que Despréaux bem conheceu
e bem ensinou, esse respeito pela língua, esta sucessão de
ideias, essas ligações, essa arte fácil com que conduz seu leitor
e esse natural que é o fruto da genialidade. Mande-me, meu
caro amigo, qualquer coisa assim, bem trabalhada, como só vós
podeis com rigor imaginar".
Homens de boa agudeza intelectual, mas cujas ideias não
eram muito extensas, volta e meia diziam a Helvétius que a
metafísica e principalmente a filosofia não podiam ser tratadas
em versos. Ele não acreditava, mas algumas vezes duvidava.
Voltaire tranquilizou-o.
Disse-lhe ele: ―Não duvideis que a sublime filosofia possa
muito bem falar a linguagem dos versos. Ela é algumas vezes
poética na prosa do Padre Mallebranche. Por que não
terminaríeis vós o que Mallebranche esboçou? Ele era um poeta
pela metade e vós um poeta por inteiro‖.
Voltaire tinha razão. Lucrécio junto aos romanos e Pope
junto aos ingleses fizeram dois poemas filosóficos e, todavia,
admiráveis?
Homens pouco esclarecidos e amigos, talvez invejosos,
repetiam a Helvétius que ele devia
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empregar seu tempo a outros estudos que não fossem a poesia
e a filosofia. Voltaire escreveu-lhe: ―Continueis a encher vossa
alma com conhecimentos de todas as artes e de todas as
virtudes. Não tenhais medo de honrar o Parnaso com os vossos
talentos. Eles vos honrarão sem dúvida porque não
negligenciareis jamais vossos deveres. As funções do vosso
cargo não são difíceis para uma alma como a vossa? Esse
trabalho se faz como a organização da dispensa de vossa casa
ou no livro de controle de despenseiro. O que! Para ser
arrematante dos impostos régios não se terá liberdade de
pensar? Ah! Ático era arrematante de impostos régios. Os
cavalheiros romanos eram arrematantes de impostos régios.
Continue então Ático‖.
Ático continua. Era usual que a companhia dos
arrematantes mandasse para as províncias os arrematantes
mais jovens. Eles se obrigam a se instruírem em diferentes tipos
de rendas, a controlar os empregados locais e a implementar as
ordens de serviço. Nessas visitas de inspeção, Helvétius
percorre continuamente a Champagne, as duas Borgonhas e
Bordéus e em parte nenhuma tomou como norma de ação dar
sempre razão aos empregados da companhia e estarem sempre
os contribuintes errados. Não recebia dinheiro de confiscos e
muitas vezes compensou os infelizes arruinados pelas afrontas
dos prepostos. De início a companhia não aprovava tanta
grandeza de alma, mas como Helvétius fazia as belas ações
com o seu próprio dinheiro, os arrematantes concordaram tolerar
esta conduta.
Não raro teve a coragem de ser o intermediário do povo
junto à própria companhia e ao ministro. Empregou-se nas
salinas de Lorena e do
16
Franco Condado certa máquina chamada "graduação" que
diminuía o consumo de lenha, mas também a qualidade do sal.
Helvétius propôs a destruição a máquina ou a diminuição do
preço do sal. É fácil deduzir que nada obteve.
Ele chegou a Bordéus quando passava a vigorar uma
nova legislação sobre dos vinhos, que alarmou a cidade e a
província. Escreveu à companhia contra o novo direito e
indignou-se com as respostas. Escapou-lhe um dia dizer a
alguns vinicultores de Bordéus: ―Enquanto apenas se
lastimarem, não se concordará com a vossa demanda. Fazei-
vos temer. Vós podeis juntar mais de dez mil. Ataqueis os
nossos empregados. Eles não são duzentos. Colocar-me-ei à
frente deles e nós nos defenderemos, mas enfim vós nos
batereis e ser-vos-á feita justiça‖.
Por felicidade, o conselho do jovem Helvétius não foi
seguido. Mas de retorno a Paris, Helvétius apoiou tão bem as
queixas dos bordelenses que conseguiu a extinção do imposto.
Fez mais. Reprimiu a avidez dos subalternos. Indicou os
meios de diminuir o seu número. Propôs dar maiores valores às
terras de domínio do Estado e assim se fez útil tanto à
companhia dos arrematantes quanto à nação. Seus serviços não
impediram de ter alguns desgostos. Trabalhando com pessoas
de pequeno espírito, propôs grandes objetivos e falou de
humanidade a homens endurecidos pela idade e pelo dinheiro.
Os infelizes consolados por ele, o trato com pessoas de letras,
seus estudos e suas amantes o faziam mal suportar as
inconveniências do serviço. Seu pai, que lhe havia feito um
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arrematante de impostos régios, não o pode jamais fazê-lo
financista. Helvétius já havia reembolsado o empréstimo inicial e,
malgrado suas despesas com prazeres e obras de beneficência,
se encontrava muito rico. Comprou terras e concebeu o projeto
de se demitir da função de arrematante para se dedicar
inteiramente às letras e à filosofia. Mas lhe faltava uma esposa
que pudesse amar e que fosse feliz no retiro em que viveriam.
Em casa de senhora Graffigni, autora do lindo romance
'Cartas peruvianas', Helvétius viu a senhorita de Ligniville e foi
tocado pela beleza e adornos do espírito. Mas antes de esposá-
la quis conhecê-la. Ele a via com frequência sem lhe falar de
suas intenções e do gosto que tinha por ela. Finalmente, após
um ano observando-a, concluiu ser a senhorita de Ligneville de a
alma nobre, sem orgulho, que suportava sua má sorte com
dignidade e que tinha coragem, bondade e simplicidade.
Acreditando que partilharia de seu recolhimento lhe fez a
proposta. Ela foi aceita3.
3A senhora Helvétius, nascida em 1719 no castelo de Ligneville em Lorena,
tinha vinte e um irmãos e irmãs. Como digna esposa de um filósofo com o qual partilhava intenções
beneficientes, tinha a necessidade de aliviar a indigência. A seus olhos a riqueza era apenas um meio de reparar as injustiças da natureza. Sua bondade se estendia até para com os animais, aos quais ela se comprazia de prodigalizar cuidados diários. Como o inverno multiplica suas necessidades assim como dos homens, sua solicitude a arrancava da cama cedo pela manhã e ela corria dar comida para uma multidão de pássaros que retornavam todos os dias à sua varanda. (Veja em 'Conselhos para minha filha' o lindo conto 'dos Pássaros da senhora Helvétius').
Após ter perdido seu marido ela fixou sua residência em Auteuil, nome caro à filosofia e a todas as qualidades do espírito e do
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Assim,4 antes de se casar, quis se demitir do emprego de
arrematante de impostos.
Helvétius, para satisfação de seu pai, comprou o cargo de
mordomo da rainha. Contudo, não era mais bem feito para a
corte que para as finanças. Foi muito sensível às bondades da
rainha. Esta princesa amava pessoas de espírito e tratou bem
Helvétius, que não teve de início tantos inimigos quanto
merecesse. Foram perdoadas durante muito tempo suas luzes e
suas virtudes. Seu cargo não exigia muito serviço e lhe deixava
o emprego do seu tempo.
Casou-se no mês de julho de 1751 e partiu imediatamente
para suas terras de Voré. Levou consigo dois secretários,
mesmo que desnecessários já que não era mais arrematante de
impostos régios. Porém, ele lhes era necessário. Um deles,
chamado Baudot, era rabugento, mordaz e irrequieto. Sob o
pretexto de que tinha conhecido Helvétius desde criança, se
permitia tratá-lo sempre como um preceptor brutal trata uma
criança. Um dos prazeres de Baudot era discutir com o patrão a
conduta, o espírito, o caráter e os trabalhos do indulgente
patrão. A discussão sempre terminava na mais violenta sátira.
Helvétius o escutava com paciência e, por vezes, em o
deixando, dizia à senhora Helvétius: ―Mas, é possível que eu
tenha todos os defeitos e todos os erros que o Baudot me
encontra?
4coração continuou a atrair tudo o que havia na França de homens célebres. Deste
número constavam Franlin e Turgot, que, inclusive, lhe propuseram casamento. Mas a viúva de Helvétius havia-lhe amado tão apaixonadamente para se decidir a contrair um segundo casamento. 4 Bonaparte após o seu retorno do Egito foi visitá-la em seu retiro. Passeando
em seu jardim com o ambicioso conquistador, lhe diz ela: “Vós não sabeis quanto se pode achar de felicidade em três arpentes de terra”.
Ela morreu dia doze de agosto de 1800 e deixou duas filhas casadas: A mais velha com o senhor conde de Meun, pai do senhor par da França de igual nome e a mais jovem com senhor conde de Audlaw.
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Não, sem dúvida. Mas enfim, eu tenho alguns. E quem é que os
dirá se eu não conservar Baudot?‖.
Em suas terras, Helvétius se ocupava apenas dos seus
trabalhos, da felicidade dos vassalos, da sua e da senhora
Helvétius. Ele poderia dizer como milorde Bolingbroke em uma
de suas cartas a Swift: ―Eu tenho por minha mulher o amor que
outrora tive por todas as do seu sexo‖.
Fazia dois anos que interrompera o trabalho do poema 'A
Felicidade'. Esse trabalho havia-lhe conduzido a pesquisas
sobre o homem. Desde as suas primeiras meditações tinha
vislumbrado novas verdades. Estas verdades tornaram-se mais
claras e o conduziram a outras. E ele estava inteiramente
entregue à filosofia quando, em 1765, perdeu o pai. Eu só
acrescentarei uma palavra ao que já disse desse ilustre médico.
Ele conhecia perfeitamente o seu filho, isto é: que tinha muito
saber e inteligência e que era sem preconceitos. Ele viu com
prazer esse filho sacrificar uma grande fortuna na esperança de
fama. Helvétius lamentou muito tão excelente pai. Recusou
recolher a sucessão e a deixou ficar inteiramente com a mãe.
Após longos debates, obteve que ela conservasse a maior parte.
A morte do pai foi a primeira desventura que até então ocorreu
em sua feliz vida e suspendeu suas ocupações. Ele as retomou
logo que teve forças e, enfim, em 1758, ele entrega o livro 'Do
espírito', que passo a analisar.
20
Análise do livro 'Do Espírito'.
Primeiro discurso:
Helvétius começa examinando o que se entende pela
palavra 'espírito': É tanto a faculdade de pensar quanto a
somatória das ideias e de conhecimentos existentes na cabeça
de um homem.
Essas ideias são adquiridas pela impressão dos objetos
exteriores sobre os sentidos. Elas se conservam pela memória
que é apenas a primeira impressão continuada, porém
enfraquecida. Essa faculdade natural de adquirir ideias pelos
sentidos e de conservá-las pela memória nos daria apenas
conhecimentos limitados e nos deixaria sem habilidades, sem
costumes e sem civilização, se a natureza nos houvesse
conformado como a maior parte dos animais. É à flexibilidade
das nossas mãos que devemos nossa destreza, e sem essa
habilidade, ocupados com a própria defesa nas florestas e
disputando a subsistência, teríamos apenas formado sociedades
fracas e desumanas.
Os objetos de que os sentidos transmitem ideias tem
relações entre eles e conosco. O espírito humano constrói o
conhecimento com essas relações. Aí está sua potência e
limites. Chama-se julgamento a percepção dessas relações.
Julgar é sentir.
A cor que eu chamo de vermelha age sobre meus olhos
de maneira distinta da cor que eu nomeio de amarela. A ideia
desta diferença é um julgamento. Esse julgamento é uma
sensação composta de sensações recebidas em ato ou
conservadas na memória. De igual modo as noções de força, de
potência, de justiça, de virtude, etc., quando se as
21
analisa se reduzem a quadros colocados na imaginação ou na
memória.
Tudo no homem se reduz, portanto a sentir.
O homem está sujeito a erros. Eles têm três causas: as
paixões, a ignorância e o abuso das palavras.
As paixões nos enganam porque nos fazem observar os
objetos de um único modo. A ambição faz o príncipe fixar sua
atenção no brilho da vitória e no esplendor da vitória. Ele
esquece as inconstâncias da fortuna e as desgraças da guerra.
O medo mostra fantasmas e não deixa a verdade
apresentar-se. O amor é fértil em ilusões. ―Vós não mais me
amais, disse a senhorita de Caumont à Poncet. Acreditais
menos no que eu digo do que no que vedes‖.
A ignorância é a causa de erros em questões difíceis. É
por falta de conhecimentos que a questão do luxo é discutida há
tanto tempo sem ser esclarecida. Grandes homens têm feito
dela apologia, outros sátira.
Em relação ao abuso das palavras, terceira causa de
erros, Helvétius se remete a Locke e não diz uma palavra em
favor daqueles que não querem recorrer ao filósofo inglês. É
necessário ver que os falsos sentidos dados às palavras
'espaço', 'matéria', 'infinito', 'amor-próprio' e 'liberdade' têm sido a
origem de muitos erros na metafísica e na moral. Matéria é
apenas a coleção das propriedades comuns a todos os corpos.
Espaço é apenas o nada ou o vazio. A palavra 'infinito'
apresenta apenas a ideia de falta de limites. O amor-próprio,
gravado em nós pela natureza, é um sentimento que se torna
virtuoso ou vicioso, segundo a diferença de gosto, de paixões
22
e de circunstâncias. A liberdade do homem consiste no exercício
voluntário de suas faculdades.
Segundo discurso:
Passemos ao segundo discurso.
Conforme sejam as ideias novas, úteis ou agradáveis, o
espírito tem maior ou menor estima pública. Não se ganha a
nossa estima pela quantidade e extensão das ideias. É a relação
que elas têm com a nossa felicidade que nos força a lhas
conceder o nosso respeito. Desse modo, é o reconhecimento ou
a vingança que louva ou despreza.
As ideias mais estimáveis são as que agradam as nossas
inclinações. É sobre a vida de Alexandre que trata o primeiro
livro para Carlos XII. É por uma bela mulher que o poeta pinta o
amor. É por interesse próprio que adotamos ou rejeitamos a
opinião dos demais.
É verdade, mas é raro existir na a terra filósofos que se
conduzem por amor da verdade, que estimam preferencialmente
as ideias brilhantes. Porém, são em tão pequeno número que
não é necessário levar em conta. O restante dos homens estima
apenas as ideias que lisonjeiam sua opinião ou seu interesse.
Um tolo só tem amigos tolos. Augusto, Luís XIV e o grande
Condé viviam com gente de espírito. Sob um monarca estúpido,
disse a rainha Cristina, toda a sua corte é ou virá a ser estúpida.
Quando a reputação de um homem ou de um trabalho se
estabelece, é comum nós o louvarmos sem estima. Não temos
por ele uma estima sentida, mas uma estima de palavra. Assim
é a estima geral por Homero, que todo mundo louva e que só é
lido por homens letrados.
Todo homem estima apenas a sua própria imagem nos
outros, ou o que pode ser-lhe útil porque, por natureza, tem de si
a mais alta ideia.
23
O faquir e o sibarita se desprezam, assim como a mulher
recatada e a provocante. O filósofo que viva no meio de jovens
será imbecil e o ridículo da sociedade. Separadamente, o
magistrado, o militar e o negociante, acreditam firmemente ser o
seu espírito o mais estimável.
Assim a sociedade nacional se divide em pequenas
sociedades, que, segundo suas ocupações, classe e estado,
estimam a espécie de espírito com que mantêm relações.
Na corte, estimam-se os homens de maneiras elegantes,
embora sejam em sua maior parte frívolos, ineptos e ignorantes.
Enquanto as pequenas sociedades estimam apenas o
espírito que é o mais próximo ao seu, já o público só concede
sua estima ao espírito que é útil ao bem público.
Em decorrência desta verdade, o espírito que triunfa nas
pequenas sociedades raramente triunfa junto ao público.
Tal homem ou tal obra, pelo contrário, fazem honra à
nação, mas não obtêm êxito nas sociedades particulares.
Se o público não considera o espírito medíocre é porque
ele não é útil nunca. Se porventura algum espírito medíocre
tornar-se general ou ministro, ele será reverenciado porque teve
a ventura de tornar-se útil. Além do que, é costume ter-se
indulgência para com os grandes. Não se exige da comédia
italiana os mesmos talentos que da comédia francesa.
Entre a morte de altos funcionários e de artistas, os
últimos são os mais enaltecidos porque a posteridade usufruirá
de seus trabalhos, ao passo que os primeiros só são úteis ao
seu tempo.
Certos espíritos célebres em um lugar ou
24
em um século, não o são em outros séculos ou em outros
lugares. Os sofistas e os teólogos, tão ilustres outrora, recolhem
o desprezo dos séculos esclarecidos. As farsas de Scarron
fizeram sucesso antes do tempo de Molière.
Existem ideias que agradam em todos os lugares e em
todos os tempos: umas são instrutivas e outras agradáveis.
Existem das duas em Homero, Virgílio, Cornélio, Tasso e Milton,
que não são limitados à expressão de uma nação ou de um
século, mas pintam a humanidade. Poucos homens são
insensíveis à harmonia e aos quadros de grandes objetos. Os
quadros voluptuosos que chamam à memória os prazeres dos
sentidos e, sobretudo, os do amor, estão igualmente no gosto de
todos os povos. Os filósofos que descobrem verdades úteis têm
a estima de todos os séculos e, em todos os séculos, amam-se
os poetas que fazem a virtude ser amada.
Mas o que é a virtude? Com esse nome se nomeia as
ações úteis nas pequenas sociedades. Um homem que esconde
do rigor das leis um parente culpado passa por virtuoso nessas
sociedades.
Um ministro que recuse amigos, parentes e cortesãos
para em seus lugares preferir um homem de mérito e o bem do
estado, deve ter na corte a reputação de um homem duro, inútil
e desonesto.
Na corte chama-se prudência a falsidade, loucura a
coragem de dizer a verdade. Dá-se aí o título de bom ao príncipe
que prodigaliza os recursos do Estado, o nome de amável ao
príncipe que concede aos seus favoritos ou à sua amante,
cargos importantes à felicidade da nação.
Como então saber se alguém é virtuoso? Guiais todas as
vossas ações ao bem do maior
25
número? Então sois virtuosos. Sim, a virtude é unicamente o
hábito de dirigir as ações ao bem geral. É em consideração a
este ponto de vista que se pode formar ideias nítidas e precisas
das quais os moralistas não obtiveram a posse até o momento
presente.
Uns, à frente dos quais se encontra Platão, só recitaram
engenhosos devaneios. A virtude, segundo eles, é ideia de
ordem, de harmonia, do bem essencial. Outros, à testa dos
quais está Montaigne, sustentam que as leis da virtude são
arbitrárias porque observam que uma ação viciosa ao norte é
com frequência virtuosa ao sul. Os primeiros, por não terem
consultado a história, vagueiam num labirinto de palavras. Os
segundos, por não terem meditado sobre a história, pensam que
o capricho decidiu sobre a bondade e a maldade das ações
humanas.
O amor da virtude é então unicamente o desejo da
felicidade geral. As ações virtuosas são aquelas que contribuem
a esta felicidade. Os povos, por mais atrasados que sejam, em
seus costumes mais singulares, sempre têm em vista
unicamente a sua felicidade. E se, em certos países e lugares se
honram ações que nos parecem culpáveis, é que nesses países,
essas ações são úteis. O furto feito com habilidade era louvado
em Esparta, porque nesta república toda militarizada e onde não
havia espírito de propriedade, a vigilância e a destreza eram
qualidades úteis. Na China, onde a população é excessiva, é
permitido ao pai enjeitar ou matar os filhos. Esta lei, tão cruel na
aparência, evita um mal maior e é, por consequência, útil. Enfim,
em todos os lugares, é a utilidade que torna as ações criminosas
ou virtuosas.
Mas em todos os lugares se liga a ideia de virtude
26
a ações que não podem produzir bem algum. É verdade. Mas é
que se está persuadido que essas ações produzem um bem,
seja para esse mundo, seja para o outro. Eu chamo de virtudes
preconceito a esses hábitos e ações que necessitam ser
eliminadas.
Esses hábitos fundamentam-se na preferência dada a
sociedades particulares em detrimento da sociedade geral. É
isso que as torna viciosas.
Que bem faz ao mundo e à pátria a severidade dos
monges e dos faquires? De que utilidade pode ser a loucura dos
indianos que se fazem devorar pelos crocodilos?
Trata-se de crimes de preconceito como se trata de
virtudes de preconceito.
Eu chamo de crimes de preconceito as ações
condenáveis pela opinião, embora não prejudiquem ninguém.
Que mal faz um brâmane que toma por esposa uma virgem ou
um homem que come um pedaço de carne de vaca em vez de
uma porção de batatas?
As virtudes de preconceito são por vezes costumes
cruéis, como o costume dos Giagues5 de esmagar crianças em
um pilão para compor uma pasta que, segundo os sacerdotes,
os torne invulneráveis.
Há poucos povos que não tenham pelos crimes de
preconceito mais horror que pelas ações mais nocivas à
sociedade e mais estima pelas práticas minuciosas e
indiferentes que pelas ações úteis à nação.
Da existência de virtudes reais e virtudes de preconceito
segue-se que há nos povos duas espécies de corrupção: uma
política e outra religiosa. Esta última pode não ser criminal
quando ela se alia ao amor do bem público, aos talentos e às
verdadeiras virtudes.
5 Ver Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers,
"Jagas, Giagas ou Giagues", page 8.433. (N.T.).
27
A corrupção política prepara, ao contrário, a queda dos
impérios. O povo é corrompido e logo os particulares separam
os seus interesses do interesse geral.
Às vezes, esta corrupção se une à outra. Então os
moralistas ignorantes as confundem. Mas elas com frequência
encontram-se separadas. A corrupção religiosa é, não raro,
apenas o amor do prazer e é inspirada pela natureza que ela
satisfaz sem a aviltar. Já a corrupção política é o efeito do modo
de governar.
É dentro da legislação e da administração dos impérios
que é necessário procurar a causa dos vícios e das virtudes dos
homens.
As recitações dos moralistas só satisfazem a sua vaidade
e não produz nenhum bem. Seus discursos afrontosos não
podem mudar nossos sentimentos. Nossos sentimentos são
efeito da natureza e das leis.
É preciso condenar menos o luxo, que pode ser
necessário a um grande Estado e a arte da cortesia, a que os
homens devem suas artes, gosto e virtudes políticas do que a
instituição que faz do homem um frouxo, um escravo, um
velhaco ou um tolo.
É típico de moralistas hipócritas, ver com indiferença os
males que conduzem sua pátria à ruína e se enfurecer contra
qualquer excesso de prazer.
Depois de colocados os princípios acima, pode se fazer
um catecismo em que os preceitos estarão claros, verdadeiros e
invariáveis. O povo, instruído por ele, não será contaminado por
vícios políticos e nem por virtudes de preconceito. E o legislador,
mais esclarecido, fará apenas leis úteis. E as leis serão
respeitadas.
28
A inexecução das leis prova sempre a inépcia do
legislador. A recompensa, a punição, a glória e a infâmia são as
quatro divindades que podem inspirar as virtudes e criar homens
ilustres de todos os tipos.
Para aperfeiçoar a moral, os legisladores dispõem de dois
recursos: um é unir os interesses particulares ao interesse geral;
o outro é de apressar o progresso do espírito. Mas, para acelerar
esse progresso, é preciso saber se o espírito é um dom da
natureza ou efeito da educação.
Esse é o assunto do terceiro discurso.
Todos os homens têm os sentidos suficientemente bons
para a percepção das mesmas relações nos objetos. Possuem
as mesmas necessidades e teriam a mesma memória, se eles
tivessem a mesma atenção.
Todos os homens bem constituídos são capazes de
atenção. Todos aprendem sua língua. Todos aprendem a ler e
compreendem ao menos as primeiras proposições de Euclides.
É suficiente para elevarem-se às mais importantes idéias,
contanto que esforcem a atenção. E para fazer esforço é
necessário ter paixão.
São as paixões que fecundam o espírito e o elevam a
grandes ideias. São elas que formaram e conduziram Licurgo,
Alexandre, Epaminondas, etc. São elas que inspiram os grandes
projetos, os meios extraordinários e as palavras sublimes, que
são arrebatamentos de almas fortemente passionais.
Tornamo-nos estúpidos na ausência das paixões.
Por vezes os príncipes mostram espírito para o
despotismo, Mas, uma vez que seus desejos estão saciados,
não têm mais coragem de se arrancarem às
29
delícias da ociosidade e se embrutecem em suas grandezas.
Mas todos os homens são capazes do mesmo grau de
paixão?
A origem das paixões está na sensibilidade física, no
amor do prazer e no medo da dor, que movimentam igualmente
todos os homens.
O avaro, em se privando de tudo, se propõe a assegurar
os meios do usufruto dos prazeres e da ausência dos males. O
ambicioso tem o mesmo intento na procura das procurar as
grandezas. O amor da glória e da virtude é apenas o desejo de
desfrutar as vantagens que a glória e a virtude acarretam.
Todos os homens são capazes do mesmo grau paixão.
Todos podem amar doidamente a glória e a virtude. Então, todos
têm a potência de se elevar às maiores ideias e de fazer coisas
excepcionais, Nascidos iguais, os homens tornam-se diferentes
pelas leis e pela educação. Esta, a educação, deve preparar à
obediência e ao respeito para com as leis. Contudo, é muito
negligenciada. Para saber o que ela pode fazer nos espíritos é
importante determinar de maneira precisa as ideias que se
assentam aos diversos nomes dados ao espírito. É o que nos
vamos apreciar no quarto discurso.
O nome de gênio é dado apenas aos espíritos inventores.
Sua invenção se apóia nos detalhes ou no fundamento das
coisas. É o trabalho provocado pelas paixões e, sobretudo, pela
paixão da glória que impele a alma à intensa meditação e faz
descobrir novas verdades e novas combinações. Os objetos que
rodeiam o gênio e as circunstâncias onde ele se encontra
colocado determinam e limitam a sua genialidade.
A imaginação é a invenção de imagens, como o
30
espírito é a invenção de ideias. Ela brilha nas descrições, nos
quadros. As pinturas são ou grandes ou voluptuosas.
O sentimento é a alma da poesia. O autor que está dela
privado, está sempre aquém ou além da natureza. Aquele que
tem apenas espírito está sempre afastado da simplicidade.
O espírito é apenas um conjunto de novas ideias que não
é suficientemente extenso, nem importante para merecer o
nome de genialidade. Assim Maquiavel e Montesquieu são
gênios. La Rochefoucauld e La Bruyère são homens de espírito.
O talento é uma aptidão a um só gênero, dentro do qual
resulta apenas uma invenção medíocre.
O espírito é fino quando percebe pequenas coisas e as dá
à existência.
O espírito é forte quando produz ideias próprias a causar
fortes impressões.
Ele é luminoso quando produz claramente as ideias
abstratas.
É extenso quando discerne um conjunto e vê nele
relações afastadas.
É penetrante e profundo quando vê tudo nos objetos.
O belo espírito tem mais escolhas de palavras e rodeios
de frases do que tem de ideias.
O espírito do século, o espírito do mundo é frívolo e se
ocupa de coisas pequenas. Se por acaso se ocupa de grandes
homens ou de obras célebres, é para rebaixá-los. É o deus da
zombaria que considera com um riso maligno e um olho
zombeteiro o Panteão, a igreja de São Pedro, o júpiter de Fídias.
A genialidade e o espírito são efeitos da força ou da
vivacidade das paixões. O bom senso é efeito de
31
sua moderação e se restringe quase ao espírito de conduta.
Mas é natural, dizem, das pessoas parecerem insensíveis
às paixões da virtude e da glória. É culpa do clima? É do modo
de governar?
Em suas repúblicas Horácio Cocles e Leônidas só podiam
ser heróis. Nessas repúblicas, os homens pouco apaixonados
não eram os melhores cidadãos.
As repúblicas se corrompem quando as honras e os
prazeres estão atrelados ao poder e à tirania, Os mesmos
homens que teriam sido Cipiões e Camilos serão Mários e
Catilinas.
A consideração é uma glória atenuada. Quando ela está
unida à autoridade faz aduladores e intrigantes. O dinheiro torna-
se mais venerado que a virtude. Vêem-se aos Cincinatos e
Catões sucederem-se Crassos e Sejanos. A mais alta virtude e o
vício mais odioso são ambos, efeito do prazer que encontramos
aos nos entregarmos a um ou a outro.
Todos os homens possuem um desejo secreto de ser
déspota, porque todo homem tem, uns mais outros menos, o
desejo de se fazer servir dos outros para a sua felicidade.
Nem sempre é preciso talentos e coragem para
estabelecer uma tirania. Só é necessário um atrevimento comum
e vícios. O príncipe começa por dividir as classes de cidadãos,
por espalhar anarquia e por fazer desejar a uma parte da nação
o descrédito da outra parte. Faz em seguida brilhar a espada do
poder, coloca as virtudes no rol dos crimes, multiplica os
32
delatores, ordena a sufocação das informações e exila os
Sênecas e os Traseias.
Porém, os déspotas dão aos militares, que lhe são
sempre devotados, o sentimento de força e acabam sendo suas
vítimas.
A história dos imperadores de Roma e de Constantinopla,
dos sultões dos turcos, dos czares, etc., são provas desta
verdade. O homem mais culpado de lesa-majestade é, por
conseguinte, aquele que aconselha o príncipe o uso de
excessos e de não ter limites no uso de sua autoridade.
Os déspotas, senhores absolutos dos povos que não
ousam censurá-los, não têm interesse em se tornarem
esclarecidos. Seus ministros, colocados por intriga, não têm
conhecimento de justiça e de administração e ideia alguma de
virtude. Por conseguinte, a corrupção do povo sustenta a
ignorância e a inépcia dos príncipes e seus ministros.
Só há virtude nas sociedades onde a legislação une o
interesse particular ao interesse geral. Nos povos em que o
poder é repartido entre o povo, os grandes e os reis, a
necessidade das diversas classes de se ocuparem dos assuntos
importantes e a liberdade de tudo pensar e tudo dizer, dão às
almas força e nobreza.
Uma pequena cidade na Grécia produziu grandes homens
e as mais belas ações que todos os ricos e vastos impérios do
Oriente.
A força das paixões é proporcional às recompensas que
lhe são correlacionadas. As pilhas de ouro do México e do Peru,
exaltando a avareza dos espanhóis, lhes têm feito fazer
prodígios. Os discípulos de Maomé e de Odin, na esperança de
possuírem as huris ou as valquírias, não se importavam
33
com a morte. Em todo lugar onde as letras resultam em
consideração e sucesso, elas são cultivadas com êxito.
O bom senso, que é efeito das paixões fracas, não cria,
não inventa, não muda e nem esclarece. Quando tudo está em
ordem, ele preenche bem os lugares importantes. Se for
necessário combater abusos, o bom senso é inepto.
Somente gênios inspirados por fortes paixões fundam ou
recuperam os impérios.
O gosto é o conhecimento do que agrada a todos os
homens ou a um determinado povo. Adquire-se o gosto deste
último tipo pelo hábito de comparar os julgamentos e se adquire
o gosto do primeiro tipo, que é o verdadeiro gosto, pelo
conhecimento profundo da humanidade.
Para se ter êxito nas artes, nas ciências e nos negócios,
primeiro é necessário se persuadir de que não há excelência
simultânea em todos os gêneros. Newton não é reputado entre
os poetas, nem Milton entre os geômetras.
Há talentos exclusivos. Há certas qualidades e mesmo, se
atrevo dizer, certas virtudes particulares exclusivas para
determinados talentos. A ignorância desta verdade é a causa de
mil injustiças. Elogia-se a moderação do filósofo e ao mesmo
tempo se lastima sua pouca emotividade, não se apercebendo
que ele deve o talento da observação à tranquilidade de sua
alma. Pretende-se que o homem excepcional seja sempre sábio,
mas se esquece que a genialidade é a força da paixão,
raramente compatível com a sabedoria.
Pode-se saber por três sinais, se acaso se nasceu para
realizar grandes feitos: 1º. Se muito se ama a glória para
sacrificar todas as outras paixões;
34
2º. Se ardentemente se admira as belas ações ou os trabalhos
consagrados pelo apoio de todos os tempos; 3º. Se
verdadeiramente se ama os grandes homens do seu tempo.
Após essas ideias sobre as diferentes espécies de
talentos, o autor termina como ele havia prometido, falando da
ciência da educação. Que ela é o conhecimento dos meios
próprios para formar corpos robustos, espíritos esclarecidos e
almas virtuosas. Esses meios dependem absolutamente do
governo. Sob um mau governo, a natureza e a educação não
podem produzir homens esclarecidos e virtuosos, porque esses
homens sempre querem a felicidade própria e, debaixo do jugo
das tiranias, a luz e a virtude não conduzem de maneira alguma
à felicidade.
Está aí um extrato fiel do livro 'Do Espírito'. Não é próprio
da obra humana e do homem serem vistos maior e melhor
observados nos detalhes. Tem-se dito de Descartes que ele
criou o homem. Pode-se dizer de Helvétius que ele o conheceu.
Foi o primeiro que fundou a moral sobre a base inquebrantável
do interesse pessoal. Helvétius é um dos filósofos que mais tem
esclarecido esse assunto e colocado em xeque os sistemas que
nos escondem de nós mesmos e nos dão ideias falsas de
virtude. Seu livro é a produção de uma alma verdadeiramente
tocada pelos infortúnios que afligem as grandes sociedades.
Nenhuma pessoa fez sentir melhor sobre que princípios é
preciso estabelecer um governo e os inconvenientes de toda
constituição política onde as vantagens de um pequeno número
são preferidas à felicidade do maior número. Sólon disse;
―Atenienses, vós estareis tão convencidos de que é do vosso
interesse seguir minhas leis, que não sereis tentados a
transgredi-las‖.
Eis o que devem dizer todos os legisladores
35
e o que Helvétius receita a eles. Seu livro tem ainda uma
vantagem que o coloca acima de muitos outros. É o estilo
sempre claro e nobre. Quando o autor fala de uma verdade nova
ou abstrata, ele é simples e preciso. Acostumado o vosso
espírito a essas novas ideias, seu estilo torna-se majestoso,
forte e gracioso. Tendo-vos apresentado uma dessas verdades
particularmente interessantes aos homens, ele a abrilhanta com
as riquezas de sua imaginação. E essa imaginação, sempre
submissa à filosofia, a embeleza sem a desencaminhar. Ela
serve apenas para tornar as verdades mais sensíveis e, por
assim dizer, mais evidentes. É com essa mesma intenção que
ele espalha no seu livro tantos contos agradáveis e
interessantes. Seus contos são apologias e se ele os não tem
poupado, é preciso se lembrar que ele escreveu na França e
que ele falava a um povo ainda criança.
Logo que esta obra apareceu em Paris, os verdadeiros
filósofos a apreciaram. Os pequenos moralistas ficaram
enciumados, a alta sociedade, enquanto aguardava que fosse
julgado, comentava depreciativamente e os hipócritas se
alarmavam e com razão. Uma mulher famosa por seu espírito
prendado e firmeza de caráter (senhora Du Deffant) disse a
respeito de Helvétius: ―É um homem que disse o segredo de
todos‖.
Os teólogos prepararam um plano de perseguição que
fizerem anteceder por críticas absurdas. Disseram no "Jornal
cristão" e em enfáticas pastorais: ―Que o prejudicial livro 'Do
Espírito' era um vapor saído do abismo. Que o autor era um leão
que atacava a virtude à viva força. Uma serpente que caçava por
emboscada. Que ele colocava o homem no nível das bestas,
36
sem respeito por Orígenes que disse expressamente que o
homem opera pela razão e os animais por instinto. Que o autor
estava errado ao falar de legislação visto que se acha nos
Evangelhos tudo o que é preciso saber disso. Que não há nada
nos livros sagrados, nem nos Santos Padres da igreja do que
está contido no livro 'Do Espírito'. Que o amor da glória e o amor
da pátria devem ser condenados como paixões, porque todas as
paixões são frutos do pecado‖.
Outros teólogos de igual clareza e lucidez disseram: ―Que
a filosofia dos enciclopedistas e de Helvétius espalhavam um
odor de morte que infectaria toda a posteridade e que era uma
planta maldita que sufocaria de tempos em tempos o bom grão
semeado no campo do pai de família‖.
De início Helvétius recebeu todas essas críticas com
tranquilidade. Ele nem mesmo pensou em responder a
acusações tão vagas e absurdas. Como faria isto? Como provar,
disse Pascal, que não se está à porta do inferno? Ele ficou um
pouco apreensivo quando foi ameaçado de censura pela
Sorbona. Ele a viu aparecer e só achou-a ridícula. Uma
sequência de algumas das proposições condenadas por esta
faculdade justificará bem o desprezo de Helvétius.
―A sensibilidade física produz as nossas ideias. Ou, o que
é o mesmo; nossas ideias nos vêm através dos sentidos‖.
―O desejo de nossa própria felicidade é suficiente para
nos conduzir à virtude‖.
―É por boas leis que se produzem homens virtuosos‖.
"A dor e o prazer fazem os homens pensar e agir".
37
―É preciso tratar a moral como as outras ciências e fazer
uma moral como uma física experimental‖.
―É à maneira diferente pela qual o desejo de felicidade se
modifica que se devem os vícios e as virtudes‖.
―Os homens não são maus, apenas submissos aos seus
interesses‖.
―As ações virtuosas são as ações úteis ao público‖.
―De todos os prazeres dos sentidos, o amor é o mais
arrebatador‖.
―É preciso lamentar menos a maldade dos homens do que
a ignorância dos legisladores, que têm colocado sempre em
oposição o interesse particular ao interesse geral‖.
―Um tolo produz tolices como uma planta selvagem
produz frutos amargos, etc. etc.‖.
Depois do aparecimento dessa censura, alguns padres e
o jesuíta chamado Neuville, pregaram em Paris e na corte contra
o livro 'Do Espírito'.
O ódio dos molinistas e dos jansenistas estava então em
plena ebulição. Essas duas facções se acusavam
reciprocamente de trair os interesses da religião e, para se
justificar, uns e outros se excitavam com grande fervor contra os
filósofos. Os jansenistas tinham mais crédito no parlamento e os
molinistas em Versalhes. Os jansenistas queriam fazer queimar
o autor do livro e os jesuítas, perseguindo-o, queriam se fazer
honrados na corte.
É necessário lhes fazer justiça. Muitos dentre eles eram
amigos de Helvétius, tanto quanto podem os jesuítas ser
amigos. Ele havia tratado sua ordem com deferência e,
38
na sua obra, onde ele gracejava de tantos pregadores e
doutores, não havia citado um único jesuíta. Esses padres eram-
lhe gratos por isto e no começo falaram do seu livro com
moderação. Deram-lhe mesmo alguns elogios. Mas os
jansenistas, declarando-se perseguidores de Helvétius,
estimularam a rivalidade dos jesuítas contra ele. A 'Gazeta
Eclesiástica' se desprendeu contra Helvétius. Berthier não podia
se calar com decência. Afinal, estando o parlamento prestes a
atuar severamente no caso, os jesuítas sentiam-se humilhados
de não terem participado da maquinação.
Um deles, amigo a vinte anos de Helvétius (e esta
qualidade me impedirá de nomeá-lo), imaginou que seria uma
honra infinita a si mesmo e à sua ordem, se pudesse fazer um
filósofo retratar-se. Tramou uma intriga contra o seu amigo
benfeitor e a executou com a diligência e a perfídia afetuosa de
um padre da corte.
De início, propôs a Helvétius a assinatura de uma
pequena retratação, que devia, dizia ele, lhe reconduzir às
bondades da rainha e lhe preservar dos furores jansenistas.
Helvétius consentiu em repetir num escrito particular o que ele
havia dito no seu prefácio do seu livro. ―Que se, contra a sua
expectativa, alguns dos princípios não fossem concordes ao
interesse do gênero humano, ele declarava já, antecipadamente,
os reprovar e que, sem garantir a verdade de nenhuma de suas
máximas, ele só garantia a retidão e a pureza das suas
intenções‖.
O jesuíta de início, se fez valer de ter obtido uma espécie
de retratação, mas queria outra mais precisa, mais detalhada e
sobretudo humilhante. Ele sugeriu à rainha a vontade de exigi-la.
Mostrou a Helvétius a necessidade de se resolver a fazê-la e
não obteve resultado. Escreveu então à senhora
39
Helvétius para assustá-la, mas ele escreveu a uma mulher
corajosa e determinada a viver com seu marido e crianças no
exílio. Conseguiu melhor intento junto à mãe de Helvétius. Ela foi
persuadida que seu filho devia à rainha o que esta princesa lhe
exigia. Ela insistiu com Helvétius e afligiu por muito tempo o seu
coração, sem poder abalá-lo.
Ele acreditava ter-se expressado no livro com
conveniência e reserva suficiente para colocá-lo ao abrigo da
censura. E mais: havia se submetido a todas as formalidades
jurídicas. Havia tido um censor real, de quem ele acatara os
julgamentos. Como então poderia ser culpado? Mesmo quando
seu livro tornou-se repreensível, só se poderia culpar o censor.
Porém, era isso que ele mais temia. Não podia suportar a ideia
que ia ser a causa da desgraça, talvez mesmo da perda de um
homem estimável. Assim, para salvá-lo, ele assinou o que se
queriam6.
Assim, por ter demonstrado que a única maneira de tornar
os homens virtuosos e felizes era combinando o interesse
particular com o interesse geral, Helvétius foi tratado como
Galileu o foi por ter demonstrado o movimento da terra. Galileu,
após ter pedido perdão de joelho, disse em se levantando, "E
però si muove". A posteridade tem sido de sua opinião. Do
mesmo modo, quanto mais ela se esclareça, mais pensará como
Helvétius.
Bem se crê que a sua submissão não apaziguou
6 Voltaire escreveu ao S. Lefebvre La Roche a respeito desta retratação: “Foi-
me falado de uma retratação. Aí eu só sinto a honra a quem se fez isto: honra e glória ao perseguido nessas espécies de tirania!”
40
os padres. Ele recebeu ordem de se desfazer do cargo e o
senhor Tercier, seu censor, foi destituído do cargo de primeiro
funcionário de assuntos estrangeiros. Esses rigores foram
trabalho dos jesuítas. Os jansenistas queriam ir mais longe. O
parlamento, que com certeza não entendeu o livro 'Do Espírito',
ia processar o senhor Tercier e Helvétius, quando uma decisão
do conselho que se restringia a suprimir o livro, salvou o autor e
o censor.
Enquanto uma seita de teólogos usufruía o prazer de
humilhar Helvétius e a outra se deleitava na esperança de fazê-
lo queimar, os jornalistas franceses misturavam suas vozes com
as de seus tigres. Trataram o livro 'Do Espírito' como eles tratam
todo trabalho que se eleva acima da mediocridade. Suas críticas
foram repetidas e são ainda pelos homens de boa fé, que só têm
em comum com os jornalistas o fato de não entenderem
Helvétius.
Acusaram-no de ter dito o que os antigos já tinham dito
antes dele. Sem dúvida, várias verdades que se encontram no
seu livro se acham também nos antigos, mas lá, elas são
esparsas e isoladas, sem que se apercebam as relações que há
entre elas. Em Helvétius, ao contrário, elas estão ligadas, elas
se apóiam e formam o sistema do homem.
Esta verdade, "todas as nossas ideias nos vêm dos
sentidos", se encontra em Aristóteles e em Epicuro, mas é só em
Locke que ela é desenvolvida, demonstrada e fundamenta o
conhecimento do espírito humano. Por consequência, é a Locke
que ela pertence.
"O que é vício ao norte é virtude ao sul", está em
Montaigne como em Helvétius, mas em
41
Montaigne, esta verdade é dada como um fenômeno do qual se
ignora a causa. Em Helvétius a causa é consignada. As
verdades pertencem menos àqueles que as proferem como
simples asserções do que àqueles que as demonstram, as
desenvolvem, as ligam a outras verdades e as tornam mais
fecundas.
Acusa-se Helvétius de falta de método. E se fez a mesma
censura a Montesquieu. Essas reprovações só puderam ter sido
feitas por homens que, por falta de atenção e de capacidade,
não compreenderam o conjunto dos livros 'Do Espírito' e 'O
Espírito das Leis'. A sequência de ideias escapa em
Montesquieu porque ele é obrigado a omitir frequentemente as
intermediárias, mas este encadeamento não deixa de existir. Ela
escapa em Helvétius porque as ideias intermediárias, sendo ou
muito novas ou muito importantes, ele desenvolve-as, estende-
as e embeleza-as. Sendo o espírito, surpreendido por
numerosos detalhes, perde de vista a sequência das ideias
principais, mas essas sequências, nem por isso, estão menos
em sua obra.
Atreveu-se a dizer que Helvétius reduziu a nada todas as
virtudes7 porque fez do interesse o móbil de todas as ações.
Mas o que Helvétius entende pela palavra 'interesse'? O amor
do prazer, a aversão à dor. A que se reduz então o
7 Em geral o que resta na cabeça das pessoas é que esse livro ('O Espírito')
contem princípios perigosos. Que vulgaridade! Em primeiro lugar e na maior parte do tempo, não se quer compreender a verdadeira significação dos termos. Em segundo lugar, não depende de nenhum livro por mais inspirado que seja, de corromper a moral, como infelizmente não depende de nenhum filósofo, por mais falador e eloquente que possa ser, de aperfeiçoá-la. O governo e a legislação têm com exclusividade esse poder e é depois de sua ação e reação que a moral pública assume seu exato nível de sabedoria ou de corrupção. Os livros não fazem nada. (Grimm, Correspondance littéraire, janvier 1772).
42
que ele diz? A esta verdade eterna que, seja na virtude, seja nos
prazeres, o desejo de nossa felicidade é sempre o nosso móbil.
Acusaram-lhe também de favorecer a corrupção dos
costumes e a libertinagem porque ele fala do entusiasmo da
virtude e da glória que o amor das mulheres tem com frequência
inspirado junto aos espartanos, aos samnitas e junto aos nossos
ancestrais. Entretanto se vê nos princípios de Helvétius que, se
a liberdade reinava junto a um povo, as mulheres eram aí muito
pouco estimadas para que o desejo de lhes agradar viesse a ser
um motor possante e que, quando os prazeres são comuns ou
fáceis, não se os compra nem por trabalhos e nem por perigos.
Reprova-se em Helvétius ter falado friamente das virtudes
privadas e úteis apenas nos pequenos grupos sociais. Não é
que ele não sentisse a estima que lhes é devida. Ele as possuía
todas, mas elas são menos seu objeto que as virtudes que
contribuem à felicidade e à glória das nações. E mais, quando os
prazeres são comuns ou fáceis, não se os compra nem por
trabalhos nem por perigos.
O que o comum dos leitores menos perdoou em Helvétius
é ter ele pretendido que todos os homens nascem com a mesma
disposição ao espírito e que não havia homem a quem a
educação e o trabalho não pudessem elevar ao nível de gênio.
Segundo ele só a educação é que distingue os homens. A
natureza os tem feito iguais. Ele não leva em conta as diferenças
de temperamento e de constituição física. Supõe que o órgão
interior que recebe as sensações é o mesmo em todas as
cabeças, recebe essas sensações da mesma maneira, opera em
todos com a mesma facilidade e enfim, que é somente as
circunstâncias e a
43
educação que fizeram Newton geômetra, Homero poeta, Rafael
pintor e tal crítico um tolo. Ele emprega toda sua força para
estabelecer esta opinião, mas, infelizmente, até o presente não
tem conseguido. Mas dos esforços que fez para prová-la, resulta
a evidência de uma grande verdade. Que para desenvolver e
formar os nossos talentos e qualidades, nós contamos muito
com a natureza, mas não o suficiente com a educação. A
máxima de Locke, que nós nascemos discípulos dos objetos que
nos rodeiam, é proclamada por Helvétius. Além do que, se
acontecer de um homem não nascer com as mesmas
disposições dos outros homens, todos em conjunto são
reputados iguais. O legislador que comanda vinte milhões de
homens deve ver em todos as mesmas faculdades. E suas leis,
como aquelas da natureza, devem ser gerais. Não devem
escolher pessoas para inspirar unicamente nelas a virtude ou a
genialidade. Cabe ao filósofo, que observa os homens em
detalhe, ver as diferenças que a natureza colocou entre eles.
Mas essas diferenças desaparecem aos olhos do legislador.
Sem me deter mais nas críticas feitas contra um dos
melhores trabalhos deste século, direi que ele foi condenado em
Roma pela Inquisição, mas que esta condenação, solicitada pelo
clero francês, não teve nenhum efeito na Itália. Lá o livro foi
traduzido, admirado e reimpresso. Vários homens revestidos das
principais dignidades da Igreja, e entre outros, o cardeal
Passionei, apressaram-se em escrever ao autor para lhe
agradecer o prazer que lhes havia dado. Outro cardeal, que nós
não nomeamos porque ainda é vivo, lhe comunicou "que não se
concebia em Roma a tolice e a maldade dos padres franceses".
44
Todos os jornais da Itália o cobriram de elogios. Um disse,
falando do livro: ―Questa è un opera che all’umanità apporterà
infallibilmente un gran vantaggio‖. Outro diz do autor: ―Il grande
autore deé rallegrarsi, essendo sicuro della gratitudine e della
stima che per lui avranno i veri dotti e quelli che ben
comprendono le di lui grande idee‖.
O sucesso foi o mesmo na Inglaterra. Traduzido em
Londres, se fez aí numerosas edições no primeiro ano. Na
Escócia, Hume e Robertson falaram como de um trabalho
superior. Vários poetas ingleses o comemoraram. Não houve
críticas nesta ilha esclarecida a não ser por um pequeno número
de partidários da filosofia de Platão, que lá se conserva
embelezada e tornada sedutora pelo milorde Shaftesbury.
Na Alemanha, logo de início apareceram duas edições do
livro de Helvétius. O famoso Gottscheid colocou no frontispício
de uma dessas traduções um prefácio em que ele diz que ―se o
livro 'Do Espírito' foi condenado na França e num país que crê
na infalibilidade do papa, ele deve fazer sucesso entre os
protestantes e nos países onde os homens conservam seus
direitos‖. Ele acrescenta que ―o autor vem destruir vários
preconceitos funestos à sua pátria e esclarece o mundo sobre os
princípios da moral e da legislação‖.
Seu livro foi lido com avidez em todas as cortes da
Alemanha e recebido com os mesmos arrebatamentos na
Suécia e mesmo na Rússia. A rainha da Suécia disse a um
homem que ela honrava com a sua confiança: ―Como eu
gostaria de conversar com Helvétius! Queria ao menos que ele
soubesse do prazer que me tem dado. Escreva-lhe de minha
parte o quanto eu o admiro‖.
45
O embaixador francês em Petersburgo lhe escreveu: ―Ao
chegar encontrei o espírito russo tão ocupado com o vosso
quanto todo o resto da Europa. É com grande prazer que me
encarrego de ser o intérprete das pessoas esclarecidas desta
nação. Eu tomo a liberdade de engrandecer as vossas
qualidades junto a eles. Eu devo como cidadão e como ministro,
conhecer e fazer conhecido tudo o que honra minha pátria‖.
É pequeno número de franceses cujos apoios merecem
ser contados, mencionando com elogio em seus trabalhos o livro
'Do Espírito' e ou defendendo com calor nas conversas. Voltaire
deu a Helvétius os testemunhos mais carinhosos de sua estima.
Parecem vossos versos de Apolo feitos pela mão.
Tereis apenas meu reconhecimento por fruto.
Vosso livro é ditado por íntegra e reta razão,
Partais depressa e deixeis na França tudo.
Voltaire lhe oferece um amparo. Ele lhe consola, apóia,
encoraja, deseja e propõe de viver em inteira independência,
onde possa fazer uso de seu amor pela verdade, da eloquência
e da genialidade. Ao mesmo tempo ele escreve a outras
pessoas que é o partidário mais zeloso de Helvétius. Que a
França é bem ridícula porque, logo que aparece uma verdade
entre nós, todo mundo fica alarmado como se os ingleses
estivessem nos invadindo. Na Inglaterra, acrescenta ele, o livro
'Do Espírito' só tem feito discípulos e amigos para o autor
porque, em lugar de hipócritas e pequenos importantes, os
ingleses têm filósofos que nos instruem e marinheiros que nos
castigam nas orelhas. Voltaire convida, sobretudo, os seus
46
compatriotas a imitarem os ingleses na nobre liberdade de
pensar e no profundo desprezo pelas frivolidades de escola.
Assegura que há muito tempo não tem visto um só homem de
sociedade que, sobre as coisas essenciais, não pense como
Helvétius.
Tantas aprovações ilustres, edições do livro 'Do Espírito'
que se sucederam rapidamente, seu sucesso em todas as
nações: Testemunhos que o autor podia estar convicto de ter
feito um livro útil ao gênero humano. Sinais evidentes do
reconhecimento universal. Assim, o doce sentimento de sua
glória sarou logo as feridas que a intriga e a inveja tinham feito
em Helvétius. Ele tornou-se mais feliz como jamais foi.
Ele passava a maior parte do ano em suas terras em
Voré. Bom marido e bom pai, contente de sua esposa e de suas
crianças, lá saboreava os prazeres da vida doméstica. A
felicidade desta família era percebida até mesmo por aqueles
que estavam menos preparados para a sentirem. Uma senhora
da sociedade disse, falando deles: ―Essa gente não pronuncia
como nós as palavras 'meu marido, minha esposa, minhas
crianças'‖.
Helvétius tinha se preparado desde há muito tempo para
outra espécie de felicidade. Logo que ele tomou posse de suas
terras em Voré, ele se entregou a seu caráter de beneficência.
Nesta terra havia um fidalgo de nome Senhor de
Vasseconcelle. Ele possuía apenas uma pequena propriedade
foreira e há muito tempo não fazia os devidos pagamentos ao
senhorio. Helvétius, comprando a terra, comprou também os
direitos sobre as somas que eram devidas à Voré. Os
administradores, para mostrarem serviço ao novo senhor, não
47
deixaram de exigir com rigor tudo o que lhe era devido. Fazia
poucos dias que ele havia chegado, quando lhe foi anunciado o
senhor de Vasseconcelle. Este conta ao senhor Helvétius que a
situação de seus negócios não lhe havia permitido de pagar o
foro que devia à Voré já há alguns anos e que no momento não
estava em condição de acertar tudo, mas se comprometia para
dali em diante pagar exatamente o ano corrente e os atrasados
de um ano. Acrescentou que se lhe fosse exigido mais e se
continuasse os procedimentos de cobrança, estaria arruinado
irremediavelmente. Ele pediu a Helvétius que desse ordem aos
administradores de cessassem os procedimentos de execução.
―Eu sei, lhe diz o filósofo, que você é um homem de sociedade e
que não é rico. Daqui para diante, você me pagará como puder.
Eis aqui um papel que deve impedir os meus administradores de
lhe importunarem‖. Ele lhe deu uma quitação geral. O senhor de
Vasseconcelle se joga seus joelhos gritando: ―Ah! Senhor, vós
salvais a vida de minha esposa e de cinco crianças‖. Helvétius o
ergue abraçando-o. Fala-lhe com o interesse mais nobre e terno
e lhe faz aceitar uma pensão de mil libras para criar os filhos.
Outros homens de sociedade ou vizinhos, ou vassalos do
senhor Helvétius, recorreram a ele em suas necessidades.
Muitos respondiam processos. Alguns, que suspensa a guerra,
tinham um rebanho a refazer ou equipamentos a recuperar e
outros que tinham crianças a educar ou um bem em desordem
podiam contar com a ajuda do senhor de Voré. Entre todos os
homens desta condição, que lhe deviam obrigações, nomeamos
apenas MM. De L'Étang, que não quis jamais calar os benefícios
que ele recebeu de Helvétius.
48
Se os seus rendeiros tiveram alguma perda ou se o ano
não fora fecundo, lhes perdoava as dívidas e com frequência
lhes dava dinheiro. Ele fixou em suas terras um cirurgião,
homem de valor. Montou uma farmácia bem abastecida para
distribuição de remédios a todos que necessitassem. Quando
um camponês caia doente, recebia carne, vinho etc., tudo o que
convinha ao seu estado. E Helvétius ia visitá-lo com frequência,
consolando e se preocupando que tivesse bons cuidados e que
fosse bem servido. Algumas vezes lhe servia ele mesmo. Tinha
uma maneira bem segura de terminar quaisquer processos:
Pagava de imediato o preço da coisa contestada.
Ele era amigo zeloso e atencioso de pequeno número de
camponeses que mostravam bons costumes e bondade.
Gostava de ter à mesa homens idosos e senhoras muito velhas
que tinham toda a rudeza de sua idade, mas que eram justas e
praticavam o bem.
Com frequência fazia os seus amigos desfrutarem um
espetáculo deleitoso. O da sua chegada à campanha. Mulheres,
velhos e crianças vinham rodeá-lo, abraçá-lo, soltando gritos e
derramando lágrimas de alegria. À sua partida, seu coche era
seguido, por muito tempo, por uma multidão de vassalos ou de
vizinhos.
Ele estimulava o trabalho em suas terras. E queria
provocar a industrialização de Voré porque só assim se podia
dar aos habitantes a suficiência que lhes era recusada pela
esterilidade do solo. Tentou implantar uma fábrica de rendas
d’Alençon, mas até o momento não obteve sucesso. Foi mais
feliz num
49
outro empreendimento. Após ter sido enganado por agentes
infiéis, ou pouco inteligentes, finalmente estabeleceu uma fábrica
que emprega mão de obra não especializada, que faz dia a dia,
novos progressos.
Passava todas as manhãs a meditar e escrever. O resto
do dia procurava distração. Amava a caça e para torná-la mais
agradável, não imaginava aumentar as caçadas. É verdade que
não gostava de vê-la destruída nem pelos outros e nem por ele
próprio. Entretanto, estava cercado de caçadores ilegais.
Estabeleceu severas proibições, mas os guardas, que o
conheciam, não levavam à risca o estabelecido. Um dia, um
camponês veio caçar justamente debaixo das janelas do castelo.
Helvétius ficou irritado e ordenou que este homem fosse vigiado
de perto e preso na primeira ocasião. No dia seguinte,
trouxeram-lhe o culpado. Helvétius, muito irado, se levanta e
dirige apressadamente ao caçador que dois guardas seguravam
no pátio do castelo. Após o ter olhado um momento disse: ―Meu
amigo, você procedeu mal comigo. Se tinha necessidade de
caçar, por que não me pediu autorização? Eu lhe teria dado‖.
Em seguida às essas palavras, ordenou que o libertassem e lhe
devolvessem o que havia caçado.
Entretanto a senhora Helvétius, indignada com o
atrevimento dos caçadores, assegurou ao marido que caso não
houvesse punição, continuariam a caçar em suas propriedades.
Ele concordou e prometeu usar de rigor. Ordenou aos guardas
que multassem e desarmassem qualquer um que atirasse em
suas terras. Poucos dias após as novas ordens, prenderam um
camponês que caçava. Tomaram-lhe a espingarda e
conduziram-no à prisão, de onde não saiu até ter quitado a
multa. Helvétius, informado deste
50
acontecimento, vai procurar o aldeão, receando incorrer nas
censuras da senhora Helvétius. Após obter a promessa do
caçador de que não falaria do que iria se passar entre eles,
pagou-lhe o preço da arma e lhe deu o dinheiro correspondente
à soma da multa e das custas totais do processo. A senhora
Helvétius, por seu lado, não estava tranquila. Disse às suas
filhas: ―Eu sou a causa desse pobre homem estar arruinado. Eu
estimulei vosso pai a fazer punir os caçadores ilegais‖. Ela se fez
conduzir à morada daquele caçador, interroga a quanto monta a
soma da multa e das custas e o preço da arma de fogo. Paga
tudo. O camponês recebeu o dinheiro sem faltar ao acordo com
Helvétius8
No mesmo ano, quando retornava à Paris, lhe ocorreu um
pequeno incidente que prova que sua filosofia e sua bondade
não o abandonariam jamais. Sua carruagem foi parada numa
rua por uma charrete carregada de lenha que podia ser desviada
facilmente e deixar livre a rua. Mas não se fazia nada disso.
Helvétius, impaciente, chamou de tratante o condutor. ―Tem
razão, lhe diz o aldeão. eu sou um velhaco e o senhor um
homem de sociedade, visto que eu estou a pé e o senhor de
Helvétius, vos peço perdão.
Mas, tu vieste me ensinar uma excelente lição que devo pagar‖.
Entrega-lhe seis francos e fez sua gente ajudar o carroceiro a
realocar a charrete.
Depois de passar sete ou oito meses em suas
8 Esse caráter de beneficência do generoso filósofo de Voré e de sua digna
esposa foi o assunto de duas comédias, uma intitulada 'Helvétius em Voré' representada no ano VI e a outra, sob o título de 'Uma Peculiaridade de Helvétius', representada no ano IX.
51
terras, tornava a trazer a família para Paris onde vivia em
razoável isolamento com alguns amigos de variadas condições,
que lhe convinham por suas luzes do saber e costumes.
Somente dava um dia por semana para as relações sociais.
Nesse dia, sua casa era um lugar de encontro da maioria dos
homens de mérito da nação e de muitos estrangeiros: príncipes,
ministros, filósofos, grandes senhores e literatos, ansiavam por
conhecer Helvétius.
Tal gênero de vida tão delicioso só foi interrompido por
duas viagens agradáveis. Helvétius queria ver a Inglaterra e
conhecer esta famosa nação a quem a Europa deve tanto as
luzes. Queria ver o efeito das boas leis e de uma vigilante
administração. Partiu para Londres em de março de 1764. Foi
recebido pelo rei, por altos funcionários e sábios, como devia ser
um homem ilustre cuja reputação sempre o antecede. Viu as
terras do país. Não as achou melhor cultivadas que as da
França, mas encontrou os camponeses mais felizes. Reparou no
povo do interior da Inglaterra muita humanidade e nada daquela
arrogância que, certas vezes, os estrangeiros reprovam nos
habitantes de Londres.
Atravessando uma vila da província de Yorkshire, um
carregador desajeitado o derruba. Os vidros da liteira
estilhaçaram-se e o carregador muito machucado, soltava gritos.
Helvétius, que os estilhaços de vidro haviam machucado, saindo
de sua cadeira, as mãos sangrando, só se ocupava do
carregador. Alguns camponeses que tinham acorrido para lhes
socorrer, observaram esse traço de humanidade que lhe fizeram
notar outros. Num instante, Helvétius foi cercado por todos os
habitantes da
52
vila. Todos se apressaram em lhe oferecer suas casas, seus
cavalos, mantimentos, enfim, socorros de toda espécie. Muitos,
mesmo os mais ricos, queriam lhe servir de carregadores.
Observou nos ingleses um amor extremo por suas
crianças. O que nós chamamos na França de espírito de
sociedade lhes é quase desconhecido, mas eles desfrutam
muito dos prazeres da vida doméstica. O espírito de sociedade
reúne em Paris homens que tem necessidades de entretimentos
frívolos. O espírito de sociedade congrega os ingleses para se
ocuparem dos interesses de Estado e da prosperidade da sua
pátria. Eles não procuram distrações porque eles têm prazeres
sólidos. Vê-se pouco na Inglaterra desse riso, mais
frequentemente sinal de tolice que de expressão de felicidade.
Mas se vê bem-estar e um sábio emprego do tempo. Vê-se um
povo sério, ocupado e contente. Helvétius, ao sair desse país
onde não tinha visto a humanidade humilhada e sofrida,
derramou lágrimas.
Consentiu, no ano seguinte, às solicitações do rei da
Prússia (Frederico II) e de diversos príncipes, que desde há
muito tempo lhe convidavam a fazer uma viagem para a
Alemanha. Depois que se ficou sabendo que podia se
determinar a viajar, as insistências tornaram-se mais vivas e
assim, partiu no fim do inverno de 1765. Estava com pressa de
seguir para Berlin e de ver um grande homem. O rei da Prússia
queria lhe hospedar e não permitiu que tivesse outra mesa a não
ser a sua. Ele o entreteve com frequência e teve por sua pessoa
e por seu caráter a estima que já tinha por seu espírito. Helvétius
foi acolhido com a mesma consideração junto a diversos
príncipes da Alemanha e, sobretudo, em Gotha.
Ele observou em todas as cortes e nas nobrezas alemãs
a filosofia,
53
o amor, a ordem e a humanidade. Resulta deste espírito que,
sob o domínio de vários príncipes, a maioria dos quais déspotas,
o povo não é miserável. Por essa época Helvétius tinha ainda
receio de ser perseguido na França. Todos os príncipes da
Alemanha se ofereceram a lhe enviar uma autorização de asilo.
Todos queriam lhe reter. Ele ficou muito agradecido a todos.
Entretanto, se a perseguição contra ele fosse renovada, a
Inglaterra seria o país que ele escolheria para asilar-se.
Apesar do medo, retornou à França. Havia-se dissolvida a
ordem dos jesuítas. Esta sociedade de intrigantes, esta eterna
cabala à qual se congregavam só ambiciosos sem mérito, esta
sociedade funesta aos costumes e aos progressos das luzes,
não foi proscrita pelos filósofos. Estes destruíram a ordem, mas
trataram bem os indivíduos. O parlamento, por causa da maioria
dos jansenistas, tratou a ordem como ela merecia, mas os
indivíduos com barbárie.
Helvétius tomou conhecimento que aquele jesuíta que
tinha abusado de sua confiança e traído sua amizade9, aquele
jesuíta que lhe havia feito perder as bondades da rainha e posto
contra ele os hipócritas da corte, estava confinado numa aldeia
onde sofria a mais extrema pobreza. Procurou um dos amigos
deste infeliz e lhe deu cinquenta luíses. ―Leve-os, lhe diz, ao
padre ***, mas não lhe diga que vieram de mim. Ele me ofendeu
e será para ele uma humilhação receber meus socorros‖.
Helvétius, em seu isolamento em Voré, se ocupava em
desenvolver e provar os princípios do livro 'Do Espírito', mas não
queria publicar mais nada.
Inicialmente trabalhou em lhes justificar e responder
9 Este jesuíta é o padre Berthier ou, segundo Collé, o padre Pleix.
54
as críticas, mas quando o trabalho ficou pronto, as críticas
estavam esquecidas. Renunciando então a este projeto, achou
melhor seguir suas primeiras ideias e formar um plano geral da
educação. É o objeto do seu livro 'Do Homem' de que ele
mesmo deu a seguinte análise.
Análise do livro Do Homem.
Seção I
Após ter na exposição deste trabalho dito uma palavra
sobre a sua importância, da ignorância onde se acha os
verdadeiros princípios da educação e, enfim, da aridez desse
assunto e dificuldade de tratá-lo, ele examina na seção I, ―se a
educação necessariamente diferente dos diversos homens não é
a causa desta desigualdade dos espíritos que até o presente
momento foi atribuída à desigual perfeição dos órgãos‖.
A esse respeito, o autor pergunta em que idade começa a
educação do homem e quem são seus professores.
Observa que o homem é discípulo de todos os objetos
que o rodeiam, de todas as posições onde o acaso o coloca e de
todos as acidentes que lhe acontecem;
Que esses objetos, essas posições e esses acidentes não
são exatamente os mesmos para todos e que assim, ninguém
recebe as mesmas instruções;
Que na suposição impossível dos homens terem os
mesmos objetos sob os olhos, esses
55
objetos não lhes impressionariam no instante preciso que suas
almas estivessem na mesma situação. Esses objetos não
estimulariam por consequência, as mesmas ideias e que assim,
a pretendida uniformidade da instrução recebida, seja nos
colégios, seja na casa paterna é uma suposição cuja
impossibilidade está provada pelos fatos e pelas influências do
acaso, independente da influência que os mestres têm na
educação das crianças e dos adolescentes.
Colocados esses dados, passa a considerar a extrema
extensão do acaso e examina:
Se os homens ilustres não lhe devem com frequência
seus gostos por determinados gêneros de estudo e, por
consequência, seus talentos e seus sucessos nesses mesmos
gêneros;
Se a ciência da educação pode ser aperfeiçoada sem
restringir os limites do império do acaso;
Se as contradições atuais percebidas em todos os
princípios de educação não se espalham ao império desse
mesmo acaso;
Se essas contradições de que dá alguns exemplos, não
devem ser olhadas como um efeito da oposição que se encontra
entre o sistema religioso e o sistema da felicidade pública;
Se as religiões podem ser tornadas menos destrutivas à
felicidade nacional e fundamentadas sobre princípios mais
conformes ao interesse geral;
Quais são esses princípios;
Se for possível que um príncipe esclarecido os
estabeleça.
Se, entre as falsas religiões, há algumas cujos cultos
tenham sido menos contrários à felicidade das sociedades e, por
consequência, à perfeição da ciência da educação:
56
Se depois desses exames e na suposição de que todos
os homens têm uma mesma aptidão ao espírito, a diferença em
sua educação não deve produzir uma diferença em suas ideias e
em seus talentos. De onde se segue que a diversidade atual dos
espíritos não pode ser olhada nos homens comumente bem
organizados, como uma prova demonstrativa de sua desigual
aptidão ao espírito.
Seção II
Ele examina na seção II:
"Se todos os homens comumente bem organizados não
terão igual aptidão ao espírito".
Ele convém de início que todas as nossas ideias nos vêm
através dos sentidos. Que, em consequência, deve-se olhar o
espírito como um puro efeito, ou da agudez maior ou menor dos
cinco sentidos, ou de uma causa oculta ou não determinada à
que se tem vagamente dado o nome de organização;
Que para provar a falsidade desta opinião é necessário
recorrer à experiência, fazer uma ideia limpa da palavra espírito,
distingui-la de alma e, feita esta distinção, observar:
Sobre quais objetos o espírito age;
Como ele age;
Se todas essas operações não se reduzem à observação
das semelhanças e das diferenças, das conveniências e das
inconveniências que os objetos têm entre si e conosco e se, por
consequência, todos os julgamentos determinados sobre os
objetos físicos não serão puras sensações;
Se não acontece o mesmo com os julgamentos
determinados sobre as ideias a que se dão os nomes de
abstratas, coletivas, etc.;
Se, em todos os casos, julgar e comparar não será
57
outra coisa que ver alternativamente, isto é, sentir;
Se acaso podemos experimentar a impressão dos objetos
sem, entretanto, compará-los entre si.
Se a sua comparação não supõe o interesse de compará-
los.
Se esse interesse não será a causa única e ignorada de
todas as nossas ideias, ações, aflições, prazeres e, enfim, da
nossa sociabilidade.
A respeito disso ele observa que este interesse tem, em
última análise, sua origem na sensibilidade física. Que essa
sensibilidade é, por consequência, o único princípio das ideias e
das ações humanas;
Que não há motivo razoável para rejeitar esta opinião;
Que com esta opinião uma vez demonstrada e
reconhecida como verdade, deve-se necessariamente olhar a
diversidade dos espíritos como efeito:
Ou da diversidade de extensão da memória;
Ou da maior ou menor perfeição dos cinco sentidos;
Que, neste caso, não é a grande memória e nem a
exagerada agudeza dos sentidos que produz e deve produzir um
grande espírito;
Que a respeito da agudeza dos sentidos, os homens
comumente bem organizados só diferem em suas sensações em
graduações mínimas;
Que esta ligeira diferença não muda em nada a relação
de suas sensações entre elas; Que esta diferença, por
consequência, não tem nenhuma influência sobre seu espírito,
que só é e só pode ser o conhecimento das verdadeiras
relações dos objetos entre eles.
Causa da diferença das opiniões dos homens.
Que esta diferença é o efeito da significação
58
incerta e vaga de alguns termos, tais como as palavras 'bom',
'interesse' e 'virtude'.
Que estando as palavras precisamente definidas e suas
definições consignadas em dicionário, todas as proposições de
moral, política e metafísica, tornam-se também suscetíveis de
demonstração como as verdades geométricas.
Que a partir do momento que se ligar ideias iguais a
palavras iguais, todos os espíritos adotarão os mesmos
princípios e extrairão as mesmas consequências;
Que é impossível, visto que os objetos se apresentam a
todos com as mesmas relações, que em se comparando esses
objetos entre si, os homens (seja no mundo físico como prova a
geometria, seja no mundo intelectual como prova a metafísica)
não alcancem os mesmos resultados;
Que a verdade dessa proposição se prova pela
semelhança dos contos de fada, filosóficos e religiosos de todos
os países e pela uniformidade dos embustes empregados em
toda parte pelos ministros das falsas religiões para aumentar e
conservar sua autoridade sobre o povo.
De todos esses fatos resulta que a agudeza maior ou
menor dos sentidos não muda em nada a proporção na qual os
objetos nos atingem. Todos os homens comumente bem
organizados têm igual aptidão ao espírito.
Para multiplicar as provas desta importante verdade, o
autor a demonstra ainda, dentro desta mesma seção, por outro
encadeamento de proposições. É preciso ver que as mais
sublimes ideias, uma vez simplificadas, são segundo o
testemunho de todos os
59
filósofos, redutíveis a esta clara proposição: "o branco é branco,
o negro é negro";
Que todas as verdades desta espécie estão à livre
disposição de todos os espíritos. Que não há então nenhuma,
por grande e geral que seja, que, claramente apresentada e livre
da obscuridade das palavras, não possa ser igualmente
apreendida por todos os homens comumente bem organizados.
Ora, poder igualmente atingir às mais altas verdades é ter igual
aptidão ao espírito. Esta é a conclusão da segunda seção.
Seção III
O objeto da seção III é a pesquisa das causas a que se
pode atribuir à desigualdade dos espíritos.
Essas causas se reduzem a duas:
Uma é o desejo desigual que os homens têm de se
esclarecer;
A outra, a diversidade das posições onde a sorte os
coloca, diversidade de que resulta essa de sua instrução e de
suas ideias. Para fazer sentir que é só a essas duas causas que
se deve imputar e a diferença e desigualdade dos espíritos, o
autor prova que a maior parte de nossas descobertas são dons
do acaso;
Que os mesmos dons não são concedidos a todos;
Que, entretanto, essa repartição não é tão desigual
quanto se imagina;
Que a esse respeito é menos a sorte que nos falta do que
nós é que faltamos à sorte;
Que na verdade todos os homens comumente bem
organizados têm iguais espíritos em potência, mas esta potência
é morta quando ela não é colocada em ação por uma paixão
como a do amor da estima, da glória, etc.;
Que os homens só devem a tais
60
paixões a atenção necessária à fecundação das ideias que o
acaso lhes oferece;
Que sem as paixões o seu espírito pode se assim for
desejado, ser considerado como uma máquina perfeita, mas da
qual o movimento foi suspenso até que as paixões lhe sejam
devolvidas.
Do exposto se deve concluir que a desigualdade de
espírito nos homens é o produto do acaso e da diferente
vivacidade das suas paixões. Mas tais paixões serão neles o
efeito da força dos seus temperamentos? É o que Helvétius
examina na seção IV.
Seção IV
Ele demonstra:
Que os homens comumente bem organizados são
suscetíveis do mesmo grau de paixão.
Que sua força diferente é sempre o efeito da diferença
das posições onde a sorte os coloca;
Que o caráter original de cada homem (como observa
Pascal) é apenas o produto de seus primeiros hábitos; Que o
homem nasce sem ideias, sem paixões e sem outras
necessidades que as da fome e da sede, por consequência sem
caráter; Que ele muda frequentemente sem mudar de
organização; Que essas mudanças independentes da agudeza
maior ou menor dos seus sentidos, ocorrem depois das
mudanças sobrevindas em sua posição e ideias.
Que a diversidade dos caracteres depende unicamente da
maneira diferente de como se modifica nos homens o
sentimento de amor deles mesmos.
Que esse sentimento, efeito necessário da sensibilidade
física, é comum a todos e dá origem ao amor do poder;
Que esse desejo produz a inveja, o amor das
61
riquezas, da glória, da consideração, da justiça, da virtude, da
intolerância e de todas as paixões factícias das quais os
diversos nomes só designam as diversas aplicações do amor do
poder.
Provada esta verdade o autor mostra em uma curta
genealogia das paixões, que se o amor do poder é apenas um
puro efeito da sensibilidade física e se todos os homens
comumente bem organizados são sensíveis, todos por
consequência são suscetíveis de experimentar a apropriada
paixão para colocar em ação a igual aptidão de espírito que eles
possuem.
Mas essas paixões podem inflamar-se vivamente em
todos? O que se pode garantir é que o amor da glória pode se
exaltar no homem ao mesmo grau de força que o sentimento do
amor de si mesmo. É que a força desse sentimento é em todos
os homens mais do que suficiente para lhes dar o grau de
atenção que exige a descoberta das mais altas verdades. É que
o espírito humano é, em consequência, suscetível de
perfectibilidade. E que enfim, nos homens comumente bem
organizados, a diversidade dos talentos só pode ser um puro
efeito da diferença de sua educação, dentro da qual esta
compreendida aquela das posições onde o acaso os coloca.
Seção V
Na seção V o autor se propõe de mostrar os erros e as
contradições daqueles que, sobre esta questão, adotam
princípios diferentes dos seus e que reportam à desigual
perfeição dos órgãos dos sentidos a inegável superioridade dos
espíritos.
Ninguém tem sobre esta matéria escrito melhor que
Rousseau, mas sempre contrário a ele mesmo, algumas vezes
olhando o espírito e o caráter como o efeito da
62
diversidade dos temperamentos e outras vezes adotando a
opinião contrária.
Helvétius mostra que dessas contradições a esse respeito
resulta:
Que a virtude, a humanidade, o espírito e os talentos, são
aquisições;
Que a bondade não é dom inato do homem;
Que as necessidades físicas são sementes de crueldade
no homem.
Que a humanidade é, por consequência, sempre o
produto ou do medo, ou da educação.
Que Rousseau, depois das primeiras contradições, cai
sem cessar em novas; Que ele acredita alternadamente que a
educação é útil e inútil.
Do feliz uso que se pode fazer na instrução pública de
algumas ideias de Rousseau.
Que depois deste autor, não é necessário crer serem a
infância e a primeira juventude sem discernimento.
Das pretensas vantagens da idade madura sobre a
adolescência; Que elas são nulas.
Dos elogios dados por Rousseau à ignorância; Dos
motivos que o tem determinado a se fazer o seu apologista.
Que as luzes jamais têm contribuído para a corrupção dos
costumes; Que o próprio Rousseau não acreditava nisso.
Das causas da decadência dos impérios; Que entre essas
causas não é permitido citar a perfeição das artes e das
ciências;
E que a cultura delas atrasa a ruína de um império
despótico.
Seção VI
Na seção VI o autor considera os diversos males
produzidos pela ignorância.
63
Ele prova que a ignorância não destrói a indolência;
Que ela não assegura a fidelidade dos súditos;
Que ela julga sem exame as questões mais importantes.
Citando a questão do luxo, por exemplo:
Ele prova que não se pode resolver esta questão sem
comparar uma infinidade de objetos entre si;
Sem primeiro ligar ideias claras à palavra "luxo" e sem
examinar em seguida:
Se o luxo não será útil e necessário e se ele supõe
sempre a intemperança em uma nação.
Da causa do luxo: Se o luxo não será ele mesmo o efeito
de calamidades públicas de que se acusa ser ele o autor;
Se para conhecer a verdadeira causa do luxo, não é
necessário remontar à formação das sociedades e seguir os
efeitos da grande multiplicação dos homens.
Observar se esta multiplicação não produz entre eles uma
divisão de interesses e esta divisão uma repartição muito
desigual das riquezas nacionais.
Dos efeitos produzidos por ela e pela repartição muito
desigual de dinheiro e da sua introdução no império.
Dos bens e dos males que ela aí ocasiona.
Das causas da grande desigualdade das fortunas.
Dos meios de se opor ao acúmulo muito rápido das
riquezas nas mesmas mãos.
Dos países onde o dinheiro não tem circulação.
Quais são nesses países os princípios produtivos da
virtude.
Dos países onde o dinheiro tem circulação.
64
Que o dinheiro aí se torna o objeto comum do desejo dos
homens e o princípio produtivo de suas ações e virtudes.
Do momento quanto, semelhantes aos mares, as riquezas
abandonam determinados países.
Do estado em que fica então uma nação.
Do estúpido entorpecimento que sucede a perda das
riquezas.
Dos diversos princípios de atividade das nações.
Do dinheiro considerado como um desses princípios.
Dos maus que ocasiona o amor pelo dinheiro.
Se no estado atual da Europa, o magistrado esclarecido
deve desejar o pronto enfraquecimento de tal princípio de
atividade.
Que não é no luxo, mas em sua causa produtora que se
deve procurar o princípio destruidor dos impérios.
Se é possível usar muita atenção no exame de questões
desta espécie.
Se em tais questões os julgamentos precipitados da
ignorância não levam com frequência uma nação às maiores
infelicidades.
Se, consequentemente a isto que eu disse não se deve
odiar e desprezar os protetores da ignorância e, em geral, a
todos aqueles que se opondo aos progressos do espírito
humano, prejudicam a perfeição da legislação e, por
consequência, a felicidade pública, que dependente
exclusivamente da boa qualidade das leis.
Seção VII
Percebe-se na seção VII que é a excelência das leis e
não, como pretendem alguns, a pureza do culto religioso que
pode garantir a felicidade e a tranquilidade dos cidadãos.
Da pouca influência das religiões nas virtudes e na
felicidade das nações.
65
Do espírito religioso destrutivo do espírito legislativo.
Que uma religião verdadeiramente útil obrigaria os
cidadãos a se esclarecerem.
Que os homens não agem em conformidade com a sua
crença, mas segundo a vantagem pessoal.
Que muitas consequências nos seus espíritos tornam a
religião papista prejudicial.
Que no geral os princípios especulativos têm pouca
influência na conduta dos homens; Que eles obedecem apenas
às leis dos seus países e a seus interesses.
Que nada prova melhor o prodigioso poder da legislação
do que o governo dos jesuítas.
Que ele tem fornecido a esses religiosos meios de fazer
tremer os reis e de executar os maiores atentados.
Dos grandes atentados:
Que esses atentados podem ser igualmente inspirados
pelas paixões da glória, da ambição e do fanatismo;
Do modo de distinguir a espécie de paixão que os
comanda;
Do momento quando o interesse dos jesuítas lhes ordena
os grandes atentados;
Qual a seita na França que poderia se opor às suas
empreitadas;
Que só o jansenismo poderia destruir os jesuítas.
Que sem os jesuítas não se teria nunca conhecido todo o
poder da legislação.
Que, para levá-la à perfeição, é necessário, ou como São
Bento fazer uma ordem religiosa, ou como Rômulo e Penn,
fundar um império ou uma colônia.
66
Que em qualquer outro caso, o gênio legislativo
constrangido pelos costumes e preconceitos já estabelecidos
não pode levantar vôo e nem ditar as leis perfeitas cujas
instituições acarretem às nações a maior felicidade possível.
Que para resolver o problema da felicidade pública seria
necessário preliminarmente conhecer em que constitui
essencialmente a felicidade do homem.
Seção VIII
Helvétius demonstra na seção VIII em que consiste a
felicidade do indivíduo e por consequência a felicidade nacional,
necessariamente composta de todas as felicidades particulares.
Que para resolver o problema político é preciso examinar
se, em todas as condições, os homens podem ser igualmente
felizes, isto é, preencher de uma maneira igualmente agradável
todos os instantes de seus dias.
Do emprego do tempo:
Que este emprego é com pouca diferença o mesmo em
todas as profissões.
Que se os impérios são povoados apenas por infelizes,
isto é efeito da imperfeição das leis e da distribuição muito
desigual das riquezas.
Que se podem dar mais facilidades aos cidadãos; Que
esta facilidade moderaria neles o desejo excessivo de riquezas.
Dos diversos motivos que atualmente justificam esses
desejos.
Que entre esses motivos um dos mais fortes é o medo do
aborrecimento.
Que a doença do aborrecimento é mais comum e cruel do
que imagina
Da influência do aborrecimento sobre os costumes dos
povos e a forma de governá-los.
67
Da religião e de suas cerimônias consideradas como
remédios contra o aborrecimento.
Que o único remédio para esse mal são as sensações
vivas e distintas.
Daí decorre o nosso amor pela eloquência, a poesia e
todas essas artes recreativas de que o objetivo é excitar essas
espécies de sensações.
Prova detalhada desta verdade.
Das artes recreativas: De sua impressão sobre o rico
ocioso; Que elas não podem arrancá-lo do seu enfado.
Que ricos são em geral os mais enfadados porque eles
são passivos em quase todos os seus prazeres.
Que os prazeres passivos são em geral os mais curtos e
custosos.
Que em consequência, é no rico que se faz sentir mais
vivamente a necessidade das riquezas.
Que ele gostaria de sempre ser movido sem se dar ao
trabalho de mover-se.
Que ele não tem motivo para subtrair-se a uma
ociosidade à que uma fortuna medíocre sustenta
necessariamente em outros homens.
Da associação das ideias de felicidade e riqueza na nossa
memória; Que esta associação é efeito da educação.
Que uma educação diferente produziria um efeito
contrário.
Que então, sem serem igualmente ricos e poderosos, os
cidadãos serão e poderão mesmo acreditar serem igualmente
felizes.
Da utilidade distante desses princípios.
Que uma vez convencido desta verdade, não se deve
mais olhar a infelicidade como inerente à natureza das
sociedades, mas como um acidente
68
ocasionado pela imperfeição de sua legislação.
Seção IX
Na seção IX o autor trata da possibilidade de indicar um
bom plano de legislação.
Dos obstáculos que a ignorância coloca em sua
publicação;
Do ridículo que ela lança sobre toda ideia nova e todo
estudo aprofundado da moral e da política;
Da repulsa do ignorante por toda reforma;
Da dificuldade de se fazer boas leis;
Das primeiras perguntas a se fazer a esse respeito.
As recompensas de qualquer espécie que forem, mesmo
luxos de prazer, não corromperão jamais os costumes.
Do luxo de prazer. Que todo prazer concedido pelo
reconhecimento público faz amar a virtude, faz respeitar as leis,
cuja derrogação, como alguns pretendem, não é jamais efeito da
inconstância do espírito humano.
Das verdadeiras causas das mudanças sobrevindas nas
leis dos povos.
Que essas mudanças têm sua origem na imperfeição das
próprias leis e na negligência dos administradores, que não
sabem conter a ambição das nações vizinhas pelo terror das
armas e a ambição dos seus concidadãos pela sabedoria dos
regulamentos, e que então, educados em preconceitos nocivos
favorecem a ignorância das verdades cuja revelação asseguraria
a felicidade pública.
Que a revelação da verdade não é jamais funesta àquele
que a diz.
Que seu conhecimento, útil às nações, não perturba
jamais a paz.
Que uma das mais fortes provas desta asserção
69
é a lentidão com que a verdade se propaga.
Dos governos.
Que em um governo, a bondade do príncipe jamais está,
como se acredita, ligada à infelicidade do povo.
Que se deve a verdade aos homens.
Que a obrigação de dizê-la supõe a livre uso dos meios
de descobri-la.
Que, cerceadas desta liberdade, as nações corrompem-
se na ignorância.
Dos males que produz a indiferença pela verdade.
Que o legislador, como alguns pretendem, nunca é
forçado a sacrificar a felicidade da geração presente à felicidade
da geração futura.
Que tal suposição é absurda.
Que se deve tanto mais incentivar os homens à procura
da verdade, quanto por indiferença a ela, mais eles julgam uma
opinião verdadeira ou falsa segundo o interesse que eles têm na
sua verdade ou falsidade.
Que este interesse lhes fará negar a necessidade da
verdade das demonstrações geométricas.
Que este interesse lhes fará estimarem em si a crueldade
que detestam nos outros.
Que este interesse lhes faz respeitar o crime.
Que este interesse faz os santos.
Que este interesse prova aos grandes a superioridade de
sua espécie sobre os outros homens.
Que este interesse faz honrar o vício num protetor.
Que o interesse do poderoso tem maior peso que a
verdade nas opiniões gerais.
Que um interesse secreto esconde sempre dos
parlamentares a adequação da moral dos jesuítas e do papismo.
Que o interesse faz negar diariamente esta
70
máxima: ―Não faça a outrem o que não gostarias que te
fizessem‖.
Que ela esconde do conhecimento dos bons e honestos
padres não só os maus produzidos pelo catolicismo como
também os progressos de uma seita intolerante, porque ela é
ambiciosa e regicida, já que é intolerante.
Dos meios empregados pela igreja para se avassalar das
nações.
Da ocasião em que a igreja católica deixa em repouso
suas pretensões.
Da ocasião em que ela as faz reviver.
Das pretensões da igreja provadas pelo direito.
Dessas mesmas pretensões provadas pelos fatos.
Dos meios de dominar a ambição eclesiástica.
Que só o tolerantismo pode contê-la. Pode em
esclarecendo os espíritos, assegurar a felicidade e a
tranquilidade do povo cujo caráter é suscetível de todas as
formas que lhe dão as leis, o governo e, sobretudo a educação
pública.
Seção X
A seção X trata do poder da educação, dos meios de
aperfeiçoá-la; Dos obstáculos que se opõem aos progressos
desta ciência.
Da facilidade com que, uma vez levantados esses
obstáculos, determinar-se-á o plano de uma excelente
educação.
A educação pode tudo.
Os príncipes são como os particulares, o produto de suas
instruções.
O autor dá uma ideia geral da educação física do homem.
Ele expõe em que momento e em que circunstância o
homem é suscetível de uma educação moral.
71
Quais são os obstáculos que se opõe à perfeição desta
parte da educação.
O interesse do padre é o primeiro obstáculo.
A imperfeição da maior parte dos governos é o segundo
obstáculo.
Toda reforma importante na parte moral da educação
pressupõe outra reforma nas leis e na forma do governo.
Feita esta reforma e uma vez levantados os obstáculos
que se opõem aos progressos da instrução, o problema da
melhor educação possível se resolve.
O objetivo do autor, nessa conclusão, é provar a analogia
de suas opiniões com as de Locke;
De fazer sentir toda a importância e extensão do princípio
da sensibilidade física;
De responder à censura de materialismo e de impiedade;
De mostrar todo o absurdo de tais acusações e a
impossibilidade de qualquer moralista esclarecido de escapar a
esse respeito das censuras eclesiásticas.
Este trabalho é a sequência do livro 'Do Espírito'. É o
mesmo fundo de verdades, com mais desenvolvimentos talvez,
com mais aprofundamentos nos princípios e extensão nas
consequências. Seu intento não sendo de publicá-lo em vida,
não teve tempo de dar à sua composição o mesmo grau de
perfeição que tem o seu livro 'Do Espírito'. A violência da
perseguição havia diminuído muito o seu amor pela glória. Só o
desejo de ser útil postumamente ainda o animava. Sua bela
alma estava sensivelmente tocada pelo bem que devia
72
produzir um dia seus escritos, mas ele não queria dar ao público
mais nada.
Via a filosofia, perseguida por cabalas poderosas, formar
poucos discípulos e nenhum protetor. Ele ficava aflito, mas não
espantado. Dizia ―A verdade, que nunca pode prejudicar o
gênero humano, nem mesmo as grandes sociedades que
chamamos de nações, é com frequência oposta aos interesses
do pequeno número de homens que estão à frente dos povos. Aí
vocês têm grandes corporações repletas de espírito corporativo.
Elas usurpam continuamente uns aos outros e todos contra a
pátria. São como uma grande família onde os mais velhos
querem excluir os mais novos da partilha. Como será recebido
nessas corporações um filósofo que venha dizer-lhes: Acima de
tudo, sede cidadãos! Realizeis com dedicação as vossas
obrigações. Conservai os vossos direitos sem os aumentar‖? Lá,
ministros com espírito limitado e arrogante, incapazes de ver os
abusos que são introduzidos e os que estão contidos na
constituição do Estado. São conduzidos pela rotina e as
seguem. Eles não têm o hábito da meditação: irão eles o
possuir? Isto é o que é necessário, entretanto, para corrigir
esses abusos que a filosofia vem lhes mostrar. Eles possuem
fantasias, projetos para seus favoritos e parentes. Crêem vocês,
que possam escutar sem impaciência, que eles só devem ter em
vista o bem do Estado? Que hão de desejar? De não sofrerem
contradição. E para isso o que é necessário fazer? Suprimir da
autoridade todas as limitações, retirar toda a sua solidez. Mas
esses abusos que os ministros respeitam ou toleram, a quem
são prejudiciais? À pátria, que é apenas um
73
nome inútil. A quem podem ser úteis? Aos grandes. Julgue o
que os grandes pensarão de um grupo de homens que lhes
demandem serem moderados e justos. O príncipe e os grandes
estão cercados de padres, que, nos séculos de ignorância,
reinaram sobre príncipes e povos. Se o mundo se esclarecer
serão menos respeitados e os ver-se-á como homens em geral
perigosos. Pode-se imaginar com que fúria eles difamam a
filosofia? Se deve se espantar que sejam bem recebidos nas
cortes onde dizem: Deus vos tem dado o poder e a nós ele nos
encarrega de ensinar os povos. Em vez de vos fatigar em fazer
boas leis e em dar o exemplo de amor pela pátria obrigai as
nações a crer em nós e deixai conosco. É mais cômodo.
―Vejam a cobiça dos homens do meu velho Estado, dos
cortesãos e de outros. Essas pessoas deixarão que se decida
em paz que suas fortunas nem sempre são legítimas e que eles
fazem um odioso uso delas? Poderão consentir que se lhes
façam ruborizar dessas riquezas que são o alimento de seu
orgulho? Vocês percebem que a filosofia deve ser perseguida
nos palácios e até nas cabanas pelas classes da sociedade que,
ao menos por enquanto, determinam a opinião pública? E diante
de quem a filosofia há de se defender? O que são seus juízes?
Tolos. Mas, dirão vocês, há na nação escritores estimáveis que,
sem ser do número dos filósofos, adotam seus princípios, com
que se adornam e os reproduzem. Eu respondo que há poucos.
Os homens que têm apenas espírito são os rivais humilhados
dos homens que possuem genialidade e os detestam. Vocês
contariam
74
mais de um belo espírito entre os difamadores de Descartes e
de Cornélio e, bem perto de nós, entre aqueles de Voltaire, de
Montesquieu, de Buffon e de Fontenelle. A filosofia reduz o belo
espírito, os pequenos talentos, a seu justo valor e assim, o
interesse deles é unir suas vozes às dos homens frívolos e
corrompidos contra toda liberdade de pensar. Sabem vocês por
que a filosofia é honrada e feliz na Inglaterra depois da
revolução? É que na Inglaterra o interesse geral e o interesse
particular não estão opostos. É que lá reina o amor da ordem e
da pátria. Se a honra verdadeira, se o espírito de cidadania e se
as verdadeiras virtudes não renascessem nas nações onde a
filosofia é perseguida, lá ela teria a devida consideração. Se
essas nações, ao contrário, caírem no despotismo e, por
consequência, se corromperem cada vez mais, a filosofia estará
proscrita para sempre nelas".
Foi depois dessas ideias que Helvétius retornou ao seu
primeiro talento e se ocupou apenas do seu poema 'Da
Felicidade'. Esse talento que ele havia deixado sem fazer uso,
não estava enfraquecido. Pode-se julgar pelo sexto canto e por
uma parte do quarto, que ele compôs no verão passado. Ele
pensava trabalhar ainda vários anos nesta obra e só entregar
quando seus amigos e ele estivessem contentes. E a que grau
de perfeição não o teria levado!
Observa-se no começo de 1771, algumas mudanças no
seu humor e nos seus gostos. Não se achava mais nele a
ordinária serenidade. Das conversações que tanto tinha amado,
gostava menos. Tanto o fatigava o exercício que quase não ia
mais caçar. Essa mudança não alarmou sua família e seus
amigos. Estava-se bem longe de
75
olhá-la como um sinal de decadência. Atribuía-se a causas
morais. Esses últimos anos foram de desgraças públicas às
quais Helvétius era muito sensível. A desordem das finanças e a
mudança de constituição do Estado aumentaram a consternação
geral. Um grande número de suicídios no reino e na capital é
tristes provas desta consternação. Os maus físicos aumentaram
ainda mais. As colheitas não foram abundantes. Enquanto a
penúria durou, as esmolas de Helvétius não permitiram que seus
vassalos sofressem. Prolongou nesses anos infelizes a sua
permanência na aldeia que se lhe tornara tão cara pela
necessidade que tinha dele. Além de que, em Paris, o
espetáculo de uma miséria que não podia aliviar, lhe tornava
triste a sua permanência. Porém, fazia grandes bens. Todos os
dias se introduziam nele, com bastante mistério, algumas novas
finalidades em sua generosidade. Com frequência, na presença
delas, dizia a seu criado de quarto: ―Cavalheiro, eu vos proíbo de
falar disso, mesmo após a minha morte‖.
Algumas vezes aconteceu dele estender suas
liberalidades a sujeitos muito maus. E, em se lhe fazendo
censuras, dizia: ―Se eu fosse rei eu os corrigiria, mas sou
apenas rico e eles pobres. Devo lhes socorrer‖.
Sua boa constituição e uma saúde raramente alterada lhe
prometiam uma longa vida. Entretanto, dia a dia, sentia que
perdia as forças. Um ataque de gota que se localizava na
cabeça e no peito, lhe tirou primeiro a consciência e logo da
vida.
No dia 26 de dezembro de 1771 foi arrancado de sua
família
76
e de seus amigos, dos infortunados e da filosofia.
Poucos homens foram tratados pela natureza tão bem
quanto Helvétius. Ele havia recebido a beleza, a saúde e a
genialidade. Em sua mocidade, era muito bem apessoado. Seus
traços eram nobres e regulares. Seus olhos exprimiam o que
dominava em seu caráter, isto é, a doçura e a benevolência10.
Tinha uma alma corajosa e naturalmente voltada contra a
injustiça e a opressão.
Nenhuma pessoa poderia estar mais convencida do que
ele que para ter sucesso em tudo, é preciso apenas querer
fortemente. Havia sido um bom dançarino, hábil na esgrima,
atirador habilidoso, financista esclarecido, bom poeta e grande
filósofo, desde que havia desejado ser. Havia amado muitas
mulheres, mas sem paixão e arrasto dos sentidos. Não tinha nas
amizades uma preferência exclusiva. Tinha nelas mais
procedimentos que ternura. Seus amigos, em suas dificuldades,
lhe achavam sensível porque ele era bom. No curso ordinário da
vida, eles lhe foram pouco necessários. Com frequência, sua
conversação era a de um homem cheio de ideias e, às vezes, as
possuía num mundo que não era digno delas.
10
Se a expressão homem cortês não existisse na língua francesa, teria sido necessário inventá-la para Helvétius. Ele era o seu protótipo: Justo, indulgente, sem mau humor, sem amargura e de uma grande uniformidade no trato social, ele tinha todas as virtudes da sociedade e as tinha em parte da ideia que havia adquirido sobre a natureza humana. Não lhe parecia mais razoável se zangar com um homem mau que a gente encontra pelo caminho do que com uma pedra de calçamento fora do lugar. O hábito que ele havia contraído de generalizar as ideias e de só ver os grandes resultados, em lhe tornando algumas vezes indiferente ao bem, o havia tornado também o mais tolerante dos homens. Mas esta tolerância só se estendia aos vícios particulares da sociedade, porque para os autores dos males públicos ele os enforcaria ou os queimaria sem misericórdia. (Grimm, Correspondance littéraire, janvier 1772).
77
Gostava muito de debates e propunha paradoxos para vê-los
serem debatidos. Gostava de provocar o pensamento naqueles
que acreditava capazes e dizia ir com eles à caça de ideias.
Tinha o maior respeito pelo amor-próprio dos outros e mostrava
tão pouco a superioridade que tinha que muitos homens de
espírito que o viam frequentemente, passavam muito tempo sem
percebê-la. Temia a intimidade dos grandes. À primeira vista,
tinha com eles o ar de embaraço e de contrariedade. Amou a
glória passionalmente e esta foi a única paixão que
experimentou. Lhe fez amar o trabalho, mas não lhe inspirou os
seus favores. Ninguém os tem escondido com mais cuidado. Ele
não deu a seus prazeres o tempo que dedicou ao estudo e, na
sua própria juventude, quando se retirava ao seu escritório, só
os infelizes eram permitidos de lhe interromper.
Nota. Neste ensaio sobre os trabalhos de Helvétius,
Saint-Lambert só mencionou as três obras principais: o livro 'Do
Espírito', aquele 'Do Homem' e o 'Poema da Felicidade'. Nós
devemos posteriormente ao senhor François de Neufchâteau o
conhecimento de uma epístola 'O Orgulho e a Indolência do
Espírito', da qual Helvétius havia submetido a Voltaire três lições
sucessivas. E o 'Magasin Encyclopédique' (1814) publicou uma
epístola 'O Amor do Estudo', endereçada à senhora Du Châtelet
por um aluno de Voltaire, com notas do mestre. Essas duas
peças são evidentemente de Helvétius. 'Os Progressos da
Razão na busca da Verdade', publicados pela primeira vez numa
edição de Londres em 1777 e 'O Ensaio sobre o Direito e as Leis
Políticas do Governo', inserida no ano IV na 'A Dezena
Filosófica', tem-lhe sido
78
atribuídos. Acha-se aí, com efeito, os mesmos princípios e a
mesma força de estilo. Entretanto não se pode afirmar que
sejam realmente dele.
O senhor Pierre Didot juntou à edição dos 'Obras de
Montesquieu' que ele publicou em 1795 as notas que Helvétius
havia feito nas margens de um exemplar do 'Espírito das Leis'.
O senhor Firmin Didot possui um exemplar precioso dos
'Obras de Voltaire', que, além das adições e correções feitas
pela mão do próprio Voltaire, está cheio de notas a lápis da mão
de Helvétius. A edição é aquela de Amsterdã 1739 e só forma
quatro volumes in-8º. No primeiro volume que contém 'La
Henriade', acham-se na margem muitos traços a lápis, mas não
se tem a chave do sistema que Helvétius usava para distinguir
essas marcas, que estão quase sempre nas ideias mais
salientes e sobre os mais belos versos. Por vezes as críticas
estão claras, mas em sua maior parte estão ilegíveis. Vê-se,
pelos traços a lápis na margem da tragédia de 'Brutus', no
segundo tomo, a admiração que Helvétius possuía pelos
grandes sentimentos desenvolvidos nesta peça. 'A Morte de
César', no terceiro volume, dá lugar à mesma observação. As
primeiras e as últimas folhas de cada um dos volumes estão
escritas a lápis pela mão de Helvétius, mas a muito custo pode-
se decifrar algumas linhas.
Essas notas e reparos, do mais vivo interesse quando
juntas aos trabalhos a que se reportam, não representam nada
se forem impressas separadamente.
F I M
80
OS PROGRESSOS
DA
RAZÃO
NA BUSCA DA VERDADE.
PROPOSTA PRELIMINAR.
Antes de querer pesquisar a origem das coisas é preciso
ter coragem e força de espírito necessária, estar isento de
preconceitos e ter unicamente a razão por guia e a verdade por
objeto.
O homem sábio não acusará de temerário quem ousar
sustentar que, enquanto os efeitos são visíveis aos nossos
olhos, já as suas causas estão sempre em uma obscuridade
impenetrável. Quem tem assistido à formação das essências?
Quem tem colocado limites no espírito humano? Quem tem
medido os seus limites? A Inteligência suprema pela qual tudo
existe, não pode fazer as inteligências serem incapazes de
conhecer o que é? Não terá ela harmonizado a atividade do
espírito humano à imensa variedade dos fenômenos naturais? E
se os conhecimentos que o espírito adquire não são a seu
respeito, mais do que novas maneiras de ser, porque não
poderão elas ser tão diversificadas como é a matéria revestida
com a ajuda do movimento? Aquele que
81
faz tantas coisas dignas de serem vistas e conhecidas, não terá
os olhos bastante penetrantes para ver e o espírito também
bastante penetrante para compreender?
Se os olhos vêem, os ouvidos escutam e as outras
faculdades são suas próprias funções, sem terem necessidades
de algum preceito, o entendimento pode bem raciocinar,
procurar a verdade, encontrá-la e julgar sem a ajuda de
nenhuma ciência
Sirvamo-nos pois dos nossos olhos e do nosso
entendimento. Vejamos por nós mesmos. Pensemos por nós
mesmos. E não nos envergonhemos de procurar a verdade.
82
OS
PROGRESSOS DA RAZÃO
NA BUSCA DA VERDADE.
Na minha infância fui criado nos preconceitos da época.
Todo homem que não reflete passa a vida inteira com os
mesmos preconceitos. Esses preconceitos são os obstáculos
mais funestos ao conhecimento dos homens. Contaminados de
paixões, de tal ou qual espécie, sejam elas devoção,
libertinagem, ódio, amor, orgulho, ciúme ou curiosidade, eles
não vêem praticamente nada em seu estado natural. O objeto
está sempre disfarçado com a cor intermediária pela qual é ele é
percebido.
Para remediar esses inconvenientes é necessário esperar
que a disposição dos órgãos seja mudada, que seja
restabelecida dentro de um justo equilíbrio e então, a percepção
se fará de uma maneira toda diferente, assim como a
determinação do juízo.
Refletindo e estudando a mim mesmo, tive a felicidade de
me desfazer de todos os preconceitos e de vencê-los.
Reconheci que aquilo
83
que se chama de natureza pode apenas conter a inteligência e a
matéria. Esta inteligência é o único objeto que nós devemos
reconhecer como o verdadeiro Deus e é a única de quem toda a
natureza depende. É esta Inteligência suprema que dá o
movimento e a vida a toda matéria. Não há um átomo desta
matéria que não dependa desta Inteligência infinita, que tudo
governa e rege. Todos os indivíduos da natureza são obra de
sua onipotência.
O que chamamos de matéria é apenas a soma de todos
os seres. Estes seres e esta inteligência não tiveram começo
algum. E por conseguinte são eternas. Há uma força inerente a
esses seres que lhes faz essencialmente ativos, móveis e
capazes de produzir todos os efeitos que vemos. Esta força
inerente só pode ser produzida por esta Inteligência que preside
a natureza toda. É ela que produz o movimento. É pelo
movimento que tudo se forma, cresce, se altera e se destrói. É o
movimento que altera o aspecto dos seres, que lhes acresce e
remove qualidades e que faz com que, após haverem ocupado
determinada grau ou ordem, cada um deles seja forçado por
uma continuação de sua natureza, sair para ocupar outro grau
ou ordem e contribuir ao nascimento, conservação e composição
de outros seres totalmente
84
diferentes em espécie, essência e hierarquia.
Todos os indivíduos da natureza são compostos somente
de átomos. Cada átomo tem sua alma particular e distinta de
todos os outros átomos. Então, todo indivíduo é composto de
tantas almas quantos átomos possuir. Por conseguinte, só pode
estar no primeiro átomo da composição da minha
individualidade, a residência da minha alma ou do 'eu mesmo',
pois todos os outros átomos são acréscimos que serão
separados quando da minha dissolução.
Todos os seres ou átomos que compõem a matéria são
dotados de uma porção de inteligência proporcional à
quantidade de suas espécies. Elas possuem tudo desta
inteligência até um determinado grau, uns mais, outros menos.
De sorte que cada ser tem a sua porção de inteligência ao
mesmo grau.
Este pequeno átomo ou germe de onde provém o começo
da nossa existência atual, esta pequena máquina assim tão
completa na sua pequenez que é o corpo dele, (pois que este
aqui é apenas o mesmo átomo desenvolvido por ingestão de
matéria alheia), não poderá sobreviver à dissolução de tudo o
que houver recebido de acidental depois da concepção?
Ora, visto que esse pequeno corpo primitivo, onde tem
residido a individualidade da nossa máquina, subsista durante
infinitos tempos, submetendo-se a
85
revoluções, passando sucessivamente pelos corpos dos nossos
antepassados, não será tal fato um grande preconceito para a
sua imortalidade? Despojado de toda matéria estranha que
tenha recebido no seio de sua mãe pela comunicação do sangue
e depois do nascimento pela nutrição, ele pode resistir às
tentativas da morte e pode viver eternamente como tem
subsistido antes, independentemente de todos esses recursos...
E também por que pensaríamos que esta máquina primitiva,
estando destituída de tudo que lhe seja estranho não pensaria e
não teria sensações? Deve-se crer que sem certo volume de
matéria, não se pode pensar e nem ser sensível? A força desta
pequena máquina será débil e minúscula. Mas qual não será a
sua força se ela é inesgotável? E o que é necessário para lhe
dar esta força? Uma simples vontade da Inteligência suprema.
Vocês me afirmarão que não se lembram de haver
pensado e tido sensações enquanto estavam fechados nos
corpos de vossos antepassados. Mas vocês ignoram que a
memória depende de certos traços do cérebro. Que esses traços
são para o socorro dos espíritos animais e que não tendo então
os mesmos órgãos, nem os mesmos espíritos animais e nem as
mesmas fibras que possuem agora, vocês não devem ficar
surpresos de não se lembrarem dos
86
pensamentos e das sensações que tiveram a cem anos dentro
dos corpos de vossos bisavôs. Agora vocês pensam por
sensações totalmente diferentes das que pensarão nos séculos
futuros, pois as sensações não serão mais as mesmas que
possuem hoje em dia.
O que se chama de universo compreende o espaço
infinito dentro do que estão colocados todos os seres. O sol, a
lua, as estrelas, todos os globos e todos os planetas são todos
animais compostos de átomos, que vivem e se nutrem à custa
das substâncias uns dos outros neste espaço infinito. Esses aí
contendo outros e aí se vai de grau em grau até o infinito.
A experiência nos demonstra esta verdade sem
possibilidade de dúvida. Somos animais que vivem e se nutrem
da substância deste animal que chamamos terra e no que
estamos colocados. De nossa parte estamos repletos de outros
animais muito menores e sem comparação conosco. Como são
os vermes e toda sorte de parasitas e insetos que habitam
dentro e à superfície do nosso corpo. Estes aqui são ainda a
terra de outros animais mais imperceptíveis. Nossa carne, nosso
sangue, nosso espírito e toda nossa substância são somente um
tecido de pequenos animais, que vivem e se nutrem a expensas
e da substância uns dos outros, nos emprestam
87
o movimento que eles tem, se deixam conduzir à nossa vontade
e nos conduzem. E que produzem enfim, todos juntos, esta ação
que chamamos vida.
Pois o que chamamos matéria, é só um composto de
germes ou pequenos animais. Por quantas mudanças não
deverá ter passado esse germe ou pequeno animal humano,
antes de transformar-se em semente e encontrar uma matriz
conveniente para lhe produzir e fazê-lo um homem? Quantos
milhões de vezes esse germe, caminhando ao propósito de
produzir este homem, não terá servido a produção de toda a
sorte de indivíduos tanto do reino animal quanto do reino
vegetal, por faltarem-lhe mais ou menos átomos para chegar ao
seu intento? E isso acontece com tudo o que se produz. E nada
se faz e se produz sem que o primeiro começo não seja um
germe. Quantos milhões de anos uma quantidade prodigiosa de
germes não deve ainda esperar, antes de poder se produzir sob
as suas formas naturais, porque lhe tem faltado encontrar a
matéria própria ao seu desenvolvimento? Porque a quantidade
de germes é inesgotável. Tudo o que é, sente e vegeta. E após
cada germe ter chegado ao seu termo ou ao seu mais alto
período, ele desce e retorna ao seu estado original para uma vez
mais realizar tudo de novo.
88
Tudo vêm da Inteligência suprema.
Nós não podemos nos dar as ideias. Admitamos que os
objetos não possam nos dar por eles mesmos. Pois como
poderia um pedaço de matéria ter em si a virtude de produzir em
mim um pensamento? Então a Inteligência eterna que produz
tudo, produz também as ideias, de qualquer maneira que possa
ser.
Mas o que é uma ideia? O que é uma sensação, uma
vontade, etc.? Sou eu apercebendo, eu sentindo, eu querendo.
Sabe-se enfim que não há mais um ser real chamado
ideia, um ser real chamado movimento, mas há corpos movidos.
Do mesmo modo, não há um ser particular chamado memória,
imaginação ou julgamento, mas nós é que se lembramos, nós é
que imaginamos ou nós é que julgamos. Tudo isto é de uma
verdade incontestável.
Agora, como o ser Inteligente e todo poderoso produz
todos esses modos nos seres organizados? Ele coloca dois
entes dentro de um grão de trigo para que um faça o outro
germinar? Há dois entes dentro do cervo para que um faça o
outro correr? Não; sem dúvida. O grão de trigo é dotado de
faculdade de vegetar e o cervo de correr.
O que é a faculdade de vegetar? É movimento dentro da
matéria. O que é esta faculdade
89
de correr? É arranjo de músculos que, presos a ossos,
conduzem para frente outros ossos presos a outros músculos.
É evidentemente uma matemática geral que dirige toda a
natureza e opera todas as produções. O vôo dos pássaros, o
nado dos peixes e a corrida dos quadrúpedes são efeitos
demonstrados de regras do movimento continuado.
A formação, a nutrição, o crescimento e o definhamento
dos animais são da mesma forma efeitos de leis matemáticas
úteis?
Mecanismos de sentidos.
Vocês explicam por essas leis como um animal se põe a
procurar o seu alimento. Vocês devem então presumir que há
outra lei pela qual ele tem a ideia de alimento, sem o que não irá
procurá-lo.
A Inteligência suprema tem feito depender da Mecânica,
todas as ações do animal. Por isso a Inteligência tem feito
depender da Mecânica as sensações que causam essas ações.
Há dentro do órgão da audição um artifício bem sensível.
É uma hélice em espiral que leva as ondulações do ar em
direção a uma concha em forma de funil. O ar prensado dentro
deste funil entra nos ossos pétreos dentro do labirinto, no
vestíbulo, em uma pequena concha chamada caracol. Ele vai
tocar no tambor ligeiramente apoiado no martelo, a bigorna e o
estribo, os quais
90
tocam ligeiramente, esticando ou relaxando as fibras do tambor.
Este artifício de tantos órgãos e de outros ainda, leva os
sons até o cerebelo, faz entrar os acordes da música sem os
confundir e aí introduz as palavras que são o correio dos
pensamentos, de que restam por vezes lembranças que duram
toda vida.
Uma indústria, não menos maravilhosa lança nos nossos
olhos, sem os ferir, raios de luz refletida dos objetos, raios esses
tão soltos e finos, que parecem que não há coisa alguma entre
eles e o nada. Raios tão rápidos que um piscar de olhos não
acompanha sua velocidade. Eles desenham na retina quadros
nos quais aplicam cores. Traçam uma imagem nítida de um
paraíso celestial.
Eis aí instrumentos que produzem evidentemente efeitos
determinados e muito diferentes, agindo nos princípios dos
nervos. De sorte que é impossível entender pelo órgão da vista e
de ver pelo ouvido.
O autor da natureza terá colocado com uma arte tão
divina esses instrumentos maravilhosos, terá colocado relações
tão impressionantes entre os olhos e a luz, entre o ar e as
orelhas, para que haja ainda necessidade de se completar o seu
trabalho por outros meios? A natureza age sempre pelos
caminhos mais curtos. A complicação dos procedimentos é uma
impotência, a multiplicidade dos recursos é uma fraqueza.
91
Tudo o que está preparado para a vista e para o ouvido
está também para os outros sentidos, com uma arte tão
maravilhosa quanto industriosa. O Ser supremo não seria um
mau artesão se o animal formado por ele para ver e entender
não pudesse, entretanto, ver e nem entender se não se lhe
metesse um terceiro personagem interno para fazer só essas
funções? A Inteligência suprema não pode dar de uma só vez as
sensações após nos ter dado os instrumentos admiráveis da
sensação?
A Inteligência suprema fez isso, convenhamos, em todos
os animais. Nenhuma pessoa por mais boba que seja, imagina
que dentro de uma lebre ou de um galgo, esteja escondido um
ser que veja, escuta, cheira e que age por ele.
Uma multidão incontável de animais goza de seus
sentidos por leis universais. E essas leis são comuns a eles e a
nós. Eu encontro um urso em uma floresta. Ele escutou a minha
voz e eu escutei o seu rosnado. Ele me viu com os seus olhos,
como eu o vi com os meus. Ele tem o instinto de me devorar,
como eu tenho o instinto de me defender ou de fugir. Alguém irá
me dizer: Espera. Há apenas a necessidade dos órgãos do urso,
mas para você é outra coisa. Não são os seus olhos que vêm,
não são as suas orelhas que escutam. Não é o trabalho dos
seus órgãos que lhe dispor a evitar
92
ou a combater. É preciso consultar uma pequena pessoa que
está dentro do seu cerebelo, sem a qual você não poderá ver e
nem escutar este urso, nem o evitar e nem se defender.
O mecanismo de nossas ideias.
Por certo, se os órgãos dados pela Inteligência universal
aos animais lhes são suficientes, não há razão alguma para se
atrever a crer que os nossos não sejam E que além da
Inteligência universal, nós precisemos de um terceiro para
operar.
Se há casos em que esse terceiro é útil, não é absurdo
não admiti-lo em outros casos? Admite-se que nós fazemos uma
infinidade de movimentos sem o concurso desse terceiro.
Nossos olhos se fecham rapidamente a um súbito e imprevisto
clarão de luz. Nossos braços e nossas pernas se colocam em
equilíbrio, pelo medo de uma queda. Mil outras operações
demonstram ao menos que um terceiro não preside sempre a
ação dos nossos órgãos.
Examinemos todos os autômatos nos quais a estrutura
interna é um pouco parecida com a nossa. Há neles como em
nós poucos nervos do terceiro par e alguns dos outros pares,
que se inserem dentro dos músculos que servem os sentidos e
que trabalham no laboratório químico das vísceras, agindo
independente da vontade. É admirável, sem dúvida, que seja
dado a todos os animais a virtude de imprimir movimentos a
todos os músculos que
93
servem para lhes fazer marchar, apertar, estender, mexer as
patas ou braços, as garras ou dedos, comer, etc. E que nenhum
animal seja o mestre da menor ação do coração, do fígado, dos
intestinos, da circulação do sangue, que circula por todo o corpo
cinco vezes por hora, no caso do homem.
Mas se entende bem quando se diz que há no homem um
pequeno ser que comanda os pés e as mãos e que não pode
comandar o coração, o estômago, o fígado e o pâncreas? E este
pequeno ser não existe no elefante e no macaco que fazem uso
dos seus membros exteriores como nós e que são escravos de
suas vísceras como nós?
E vai-se mais adiante. Diz-se: Não há nenhuma relação
entre os corpos e uma sensação. São coisas inteiramente
diferentes. Então, será em vão que a Inteligência suprema terá
disposta a luz para penetrar nos nossos olhos e nos fazer ver. E
as partículas elásticas do ar para entrar nos nossos ouvidos e
nos fazer escutar, se a Inteligência não tiver colocado no nosso
cérebro um ser capaz de receber essas sensações? Este ser,
diz alguém, deve ser simples. Ele é puro, intangível, está em um
lugar sem ocupar espaço. Não pode ser tocado, mas recebe
impressões. Não tem absolutamente nada de material, mas é
afetado continuamente pela matéria.
94
Então outro diz: Esse pequeno personagem que não
ocupa lugar algum, estando colocado no nosso cérebro, não
pode na verdade ter por ele mesmo alguma sensação e alguma
ideia pelos próprios objetos. O Ser inteligente então rompeu esta
barreira que o separa da matéria e quis que ele tivesse
sensações e ideias a propósito dela. A Inteligência suprema quis
que ele vivesse quando a nossa retina estiver pintada e que ele
escute quando nosso tímpano for tocado. É verdade que todos
os animais recebem suas sensações sem o socorro desse
pequeno ser. Mas é preciso dar um ao homem. É mais nobre. O
homem combina mais ideias que os outros animais. É preciso
então que ele tenha suas ideias e sensações de maneira
diferente da deles.
Se assim é, senhores, por que o bom autor da natureza
teve tanto trabalho? Se este pequeno ser que vocês alojam no
cerebelo não pode por sua natureza ver e escutar, se não há
nenhuma proporção entre os objetos e ele, não será preciso olho
e nem ouvido, tambor, martelo, bigorna, córnea, úvea, humor
vítreo e retina. Tudo isto será absolutamente inútil.
Desde que este pequeno personagem não tenha
conexão, analogia ou proporção alguma com algum arranjo da
matéria, essa disposição é inteiramente supérflua. Bastava que
o Ser supremo dissesse: "Tu terás o sentimento da visão, da
audição, do gosto, do odor e
95
do tato, sem necessidade de qualquer instrumento ou órgão".
A opinião de que há dentro do cérebro humano um ser,
um personagem estranho que não existe nos outros cérebros é
então sujeita a muitas dificuldades. Ela contradiz toda analogia.
Multiplica os seres sem necessidade. Torna todo o artifício do
corpo humano um trabalho vão e enganoso.
A Inteligência suprema faz tudo.
É certo que nós não podemos nos dar nenhuma
sensação. Nem mesmo podemos imaginar além daquelas que
nós temos experimentado. Que todas as academias da Europa
proponham um prêmio para aquele que imaginar um novo
sentido, jamais alguém o ganhará. Não podemos então
simplesmente nada por nós mesmos, havendo um ser invisível e
intangível dentro do nosso cerebelo, ou não havendo. E é
preciso concordar que, em todos os sistemas, o Autor da
natureza deu tudo o que nós temos, órgãos, sensações e as
ideias que são a continuação delas.
Visto que assim estamos sob a mão da Inteligência
suprema, Mallebranche, em que pesem todos os seus erros, tem
então razão de dizer filosoficamente que nós estamos em Deus
e que vemos tudo em Deus, como São Paulo
96
disse na linguagem da teologia e Aratos e Caton disseram na
moral.
Que podemos, portanto, entender por estas palavras, ver
"tudo em Deus"? Ou essas são palavras vazias de sentido ou
significam que a Inteligência suprema nos dá todas as nossas
ideias.
O que quer dizer, receber ideias? Se não somos nós que
as formamos quando as recebemos, então é a Inteligência
suprema que as forma, do mesmo modo que se não somos nós
que formamos o movimento, é a Inteligência. Logo, tudo é ação
desta Inteligência suprema sobre os seres.
Como tudo é ação da Inteligência suprema.
Há dentro da natureza apenas um princípio universal,
eterno e agente e não pode existir dois porque, ou eles seriam
semelhantes ou seriam diferentes. Se diferentes, eles se
destruiriam. Se semelhantes, é como se houvesse apenas um. A
unidade de propósito no grande tudo infinitamente variado
anuncia um só princípio. Este princípio deve agir sobre todos os
seres ou ele não é mais um princípio universal.
Se ele age sobre todos os seres, age sobre todos os
modos de cada ser. Não há, por conseguinte, um só modo, uma
só ideia, que não seja o efeito imediato de uma causa universal
sempre presente.
Esta causa universal produziu o sol e
97
os astros imediatamente. Seria de estranhar que ela não
produzisse em nós, imediatamente, a percepção do sol e dos
astros.
Como não se pode duvidar que tudo é efeito desta causa,
quando esses efeitos começaram a agir? Esta causa universal é
necessariamente agente porque ela age, pois a ação é seu
atributo, porque todos os seus atributos são necessários. Porque
se não fossem necessários, ela não os teria.
Então ela sempre agiu. É também impossível conceber
que o Ser eterno essencialmente agente por sua natureza, tenha
estado inativo por uma eternidade, tal como é impossível
conceber um ser luminoso sem luz.
Uma causa sem efeito é uma quimera, um absurdo, assim
também como um efeito sem causa. Houve pois eternamente e
haverá sempre efeitos desta causa universal.
Seus efeitos não podem vir do nada. Logo, eles são
emanações eternas desta causa eterna.
Por conseguinte, a matéria do universo pertence à
Inteligência suprema tanto quanto as idéias e as idéias tanto
quanto a matéria.
Dizer que alguma coisa esta fora dela, é dizer que existe
alguma coisa fora do infinito.
Sendo a Inteligência suprema o Princípio universal de
todas as coisas, todas as coisas existem nela e para ela.
98
A Inteligência suprema inseparável de toda a natureza.
Não é necessário inferir disso que ela toca sem cessar os
seus trabalhos por vontades e ações particulares. Nós fazemos
sempre a Inteligência suprema à nossa imagem. Ora nós a
representamos como um Déspota dentro do seu palácio,
ordenando a escravos, ora como um trabalhador ocupado com
as rodas da sua máquina. Mas um homem que faz uso da razão
pode conceber de modo diferente a Inteligência suprema, como
um Princípio sempre agente e sempre presente a si. Se ele foi
princípio uma vez, é então princípio sempre, pois não pode
mudar de natureza. A comparação do sol e da luz com a
Inteligência suprema e suas produções, é sem dúvida
infinitamente imperfeita, mas enfim, ela nos dá uma idéia,
mesmo que tênue e deficiente, de uma causa sempre
subsistente e de efeitos sempre subsistentes.
Enfim, eu apenas pronuncio o nome da Inteligência
suprema como um papagaio ou como um imbecil, se eu não
tiver a ideia de uma causa necessária, imensa, agente, presente
a todos os efeitos, em todo o lugar, em todo tempo.
Eu não posso me opor às objeções feitas a Espinosa. Foi
dito dele que ele fazia o seu Deus inteligente e bruto, que seu
Deus era apenas uma
99
contradição perpétua. Mas aqui nós não fazemos da Inteligência
suprema a universalidade das coisas. Nós dizemos que a
universalidade das coisas emana dele. E para nos servir ainda
da insuficiente comparação do sol e dos seus raios luminosos,
dizemos que um raio de luz lançado do globo solar e absorvido
na mais infecta cloaca, não pode causar sujeira alguma nesse
astro. Essa cloaca não impede que o sol vivifique toda a
natureza do nosso globo.
Podem nos contrapor também que esses raios são tirados
da substância do sol, que são algumas das emanações e que as
produções da Inteligência suprema são emanações dela mesma.
Assim nós recairíamos no receio de dar uma falsa idéia desta
Inteligência suprema e de compô-la em partes desunidas, de
partes que se combatem. Nós responderemos o que já temos
respondido. Que a nossa comparação é muito imperfeita e serve
apenas para formar uma tênue idéia de uma coisa que não pode
ser representada por imagens. Poderíamos dizer, além disso,
que um raio de luz ao penetrar no sangue, não se mistura com
ele e aí conserva sua essência indivisível. Mas é melhor declarar
que a luz mais pura não pode representar a Inteligência
suprema. A luz emana do sol e tudo emana da
100
Inteligência suprema. Nós não sabemos como. Apenas podemos
conceber o Ser supremo como o Ser necessário do qual tudo
emana. O povo o olha como um Déspota que tem porteiros na
antecâmara do seu palácio.
Acreditamos que todas as imagens com que se tem
representado esse Princípio inteligente, universal,
necessariamente existente por si mesmo e necessariamente
agente na vastidão imensa são ainda mais errôneas que as
comparações tiradas do sol e dos seus raios. Ele é pintado,
sobre os ventos, assentado nas nuvens, cercado de raios e
trovões, falando aos elementos e refreando os mares: Tudo isso
é expressão da nossa pequenez. É na verdade ridículo colocar
num nevoeiro, a meio caminho do nosso pequeno globo, o
Princípio eterno de todos os milhões de globos que rolam pela
imensidão. Nossos raios e trovões que são vistos e ouvidos a
quatro ou cinco léguas ao redor, quando muito, são pequenos
efeitos físicos, perdidos no grande todo. E é este grande todo
que é necessário considerar quando se fala de Inteligência
suprema.
Só pode ser a mesma virtude que penetra do nosso
sistema planetário aos outros sistemas planetários, que estão
mil e mil vezes mais longe de nós que o nosso globo está de
Saturno. As mesmas leis eternas governam
101
todos os astros, porque se as forças centrípetas e centrífugas
dominam o nosso mundo, elas também dominam os mundos
vizinhos e assim em todo o universo. A luz do nosso sol e a de
Sirius deve ser a mesma, deve ter a mesma tenuidade, a mesma
rapidez, a mesma força, escapar igualmente em linha reta em
todas as direções e agir igualmente na razão direta ao quadrado
da distância.
Embora a luzes das estrelas que são outros sois venha a
nós num determinado tempo, a luz do nosso sol também vai até
elas reciprocamente num determinado tempo. Visto que esses
raios luminosos, esses raios de luz do nosso sol se refratem,
não há dúvida que os raios dos outros sois que dardejam nos
seus planetas se refratem precisamente da mesma maneira,
caso os meios onde eles se encontrem sejam os mesmos.
Já que esta refração é necessária à vista, é de se deduzir
que haja nesses planetas seres com a faculdade de ver. Não é
provável que o bom uso da luz seja perdido nesses outros
globos. Pois se o instrumento lá está, o uso do instrumento
também deve estar lá. Partamos sempre desses dois princípios:
Que nada é inútil. E que as grandes leis da natureza são as
mesmas em todos os lugares. Assim, esses sois incontáveis e
acesos no espaço clareiam incontáveis planetas. Seus raios
102
operam lá como no nosso globo. Portanto, lá animais desfrutam
a vida.
A luz é de todos os entes, ou de todos os modos do
grande Ser, aquele que nos dá a idéia mais extensa da
Divindade, tão clara quanto possa representar.
Com efeito, após ter visto os recursos da vida animal do
nosso globo, nós não sabemos se os habitantes dos outros
mundos têm órgãos iguais. Depois de conhecer a gravidade, a
elasticidade e outras características da nossa atmosfera,
ignoramos se os planetas que giram em torno de Sírius ou de
Aldebarã, têm uma atmosfera igual à nossa. Nosso mar salgado
não nos mostra que existem mares nesses outros planetas. Mas
a luz se apresenta por toda parte. Nossas noites são iluminadas
por uma multidão de sois. É a luz que de um canto desta
pequena esfera em que o homem rasteja, mantém uma
correspondência contínua com todos esses universos. Saturno
nos vê e nos vemos Saturno. Sirius que é apercebido pelos
nossos olhos, pode também nos descobrir. Ele descobre
certamente o nosso sol, embora haja entre um e outro uma
distância que uma bala de canhão, que percorre cem toesas por
segundo, não pode transpor em quatro mil anos.
A luz é realmente um mensageiro rápido que percorre o
grande todo, de mundo a mundo. Tem algumas propriedades da
matéria e
103
propriedades superiores. E se alguma coisa pode fornecer uma
tênue idéia inicial, uma noção imperfeita do Ser supremo, é a
luz. Ela está por tudo como ele e age por tudo como ele.
Resulta disso, parece-me, de todas essas idéias, que há
uma Inteligência eterna e onipotente de onde decorrem, em
todos os tempos, todos os seres e todas as maneiras de ser do
universo.
Sei que sou tão necessariamente limitado quanto o
grande Ser é necessariamente imenso. É isso tudo o que me
mostra o pequeno raio de luz emanado em mim, do sol das
mentes.
Reflexões sobre o homem.
A origem dos erros em que o homem caiu, na ocasião em
que se considerou como objeto de reflexão, é proveniente dele
ter acreditado mover-se por vontade própria. Não refletiu que as
partes de todos os corpos, os primeiros elementos que os
compõem, são os mesmos e produzem, só pela diversidade do
seu arranjo, os diferentes corpos que vemos. Acreditou agir
sempre pela própria energia em suas ações e nas vontades que
lhe são os motivos. Ser independente das leis gerais da
natureza e dos objetos, que malgrado e por vezes sem o homem
saber, esta natureza age sobre ele.
104
Se acaso se observasse atentamente, teria reconhecido que
todos esses movimentos são apenas espontâneos. Teria
reconhecido que o seu nascimento depende de causas
inteiramente fora de seu poder; Que é sem a sua concordância
que ele entra no sistema onde ocupa um lugar e que depois de
nascido, até o momento de sua morte, ele é continuamente
modificado por causas que, à sua revelia, influenciam sua
máquina, modificam o seu ser e regulam a sua conduta. A
menor reflexão não será suficiente para provar que os sólidos e
os fluidos de que o seu corpo é composto e que o mecanismo
escondido que ele crê ser independente de causas anteriores,
estão perpetuamente sob as influências dessas causas e
estarão, sem elas, totalmente incapacitados de agir?
Não vê o homem que seu temperamento não depende de
si, que suas paixões são efeitos necessários desse
temperamento e que suas vontades e ações são determinadas
por essas paixões e pelas opiniões que ele não se deu? Seu
sangue mais ou menos abundante ou aquecido, seus nervos e
fibras mais ou menos tensos ou relaxados e suas disposições
duráveis ou passageiras não decidem a cada instante suas
idéias, seus pensamentos, seus desejos, suas crenças e seus
movimentos, sejam eles visíveis ou invisíveis? E o estado em
que ele se encontra não depende necessariamente
105
do ar diversamente modificado, dos alimentos de que se nutre,
de combinações secretas que ocorrem nele mesmo e que
conservam a ordem, ou introduzem a desordem em sua
máquina? Numa palavra. Tudo deveria ter convencido o homem
que ele é, em cada instante da sua vida, um instrumento passivo
nas mãos da necessidade.
No mundo onde tudo é ligado, onde todas as causas
estão encadeadas umas nas outras pela Inteligência que preside
toda a natureza, não pode haver energia ou força independente
e isolada. É, portanto, sempre esta Inteligência agente na
natureza que marca para o homem cada um dos pontos da linha
que ele deve descrever. É ela quem elabora e combina os
elementos de que ele deve ser composto. É ela que lhe dá o seu
ser, sua tendência e sua maneira particular de agir. É ela que lhe
desenvolve, que lhe faz crescer e que lhe conserva por um
tempo, durante o qual ele é forçado a cumprir sua tarefa. É ela
que coloca no seu caminho os objetos e acontecimentos que lhe
modificam de uma maneira ora agradável e ora perniciosa. É ela
que, lhe dando sentimento, lhe coloca em situação de escolher
os objetos e os meios mais propícios à sua conservação. É ela
que, após lhe ter fornecido a sua carreira, o conduz à sua
dissolução e lhe faz também suportar a lei geral e constante de
que nada é isento. É assim que, pelo movimento ela faz o
homem nascer, o sustem
106
por um tempo e enfim o dissolve, ou o obriga a entrar no seio
duma natureza que logo o reproduzirá espalhado sob uma
infinidade de novas formas, das quais cada uma de suas partes
percorrerá do mesmo modo os diferentes períodos, tão
necessariamente quanto tudo houver percorrido aqueles de sua
existência precedente.
Portanto, não nos surpreendemos que o homem encontre
tantos obstáculos no momento em que quer perceber o seu ser
e a sua maneira de agir e que imagine de si estranhas hipóteses
para explicar o jogo escondido da sua máquina e que ele veja
seu movimento de uma maneira que lhe parece diferente
daquela dos outros seres da natureza. Ele bem vê que seu
corpo e suas diferentes partes se mexem, mas com frequência,
ele não pode ver o que os leva à ação. Acredita então ter dentro
de si um princípio motor, distinto da sua máquina, que dá
secretamente o impulso às suas molas, se move por sua própria
energia e age segundo leis totalmente diferentes daquelas que
regem os movimentos de todos os outros seres. O homem tem a
consciência de certos movimentos internos que se lhe fazem
sentir, mas como conceber que esses movimentos invisíveis
possam com freqüência produzir efeitos tão evidentes? Como
compreender que uma idéia fugitiva, um ato imperceptível do
pensamento possa frequentemente trazer a confusão e a
discórdia em todo o seu ser? Em uma
107
palavra: Acredita perceber em si mesmo uma substância
distinta, dotada de uma força secreta em que ele supõe
qualidades inteiramente diferentes daquelas de seus próprios
órgãos. Ele não presta atenção que a causa primeira que faz
uma pedra cair ou seu braço se mover, é talvez tão difícil de
conceber ou de explicar quanto aquela do movimento interno de
que o pensamento e a vontade são efeitos. Desta maneira, pela
falta de meditação sobre a inteligência que rege todos os
movimentos da natureza, de ver esta natureza sob o seu
verdadeiro ponto de vista e de notar a conformidade e a
simultaneidade dos movimentos desse pretenso motor e desses
do seu corpo, ou dos seus órgãos materiais, ele julgou que isto
era, não somente um ser a parte, mas ainda de uma natureza
diferente de todos os seres naturais, de uma essência mais
simples e que não tinha nada de comum com aquilo que ele via.
É daí que vieram sucessivamente as noções de
espiritualidade, imaterialidade, imortalidade e todas as palavras
vagas que se tem inventado pouco a pouco, à força de sutilizar
para marcar os atributos da substância desconhecida que o
homem acreditava encerrado em si mesmo e que julgava ser o
princípio escondido de suas ações visíveis. Para coroar a
hipótese audaciosa feita dessa força motriz, foi suposto que,
diferentemente de todos os outros seres
108
e do corpo que lhe serve de invólucro, ela não devia se sujeitar à
dissolução, que sua perfeita simplicidade a impedia de poder se
decompor ou mudar de forma. Em uma palavra, que ela estava
por sua essência isenta das mudanças que os corpos se viam
sujeitos, assim como todos os outros seres compostos de que a
natureza está repleta.
Portanto, o homem tornou-se duplicado. Ele se vê como
um todo composto pela montagem inconcebível de duas
matérias diferentes e que não têm analogia alguma entre elas.
Ele distingue duas substâncias em si mesmo. Uma
visivelmente submissa às influências dos seres grosseiros e
compostos, de matéria grosseira e inerte foi chamada de corpo.
A outra que se diz simples, duma essência pura, foi nomeada
alma ou espírito e as funções dela foram chamadas de
espirituais e intelectuais. O homem considerado relativamente as
primeiras foi chamado de homem físico. E quando se o
considera relativamente às últimas, é distinguido ou designado
sob o nome de homem moral.
Essas distinções adotadas hoje em dia pela maior parte
dos filósofos estão fundadas em suposições gratuitas. Os
homens sempre acreditaram remediar a ignorância das coisas,
inventando palavras em que eles não podem ligar um verdadeiro
sentido. Imagina-se que se conhecia a matéria, todas as
109
suas propriedades, faculdades, causas e diferentes
combinações porque se entrevia nela algumas qualidades
essenciais. Na realidade, apenas se fez obscurecer as tênues
idéias que se pode formar dela, associando uma substancia
muito menos inteligente que ela própria. É assim que os
especuladores, criando palavras e multiplicando os seres, só se
fizeram mergulhar em embaraços que queriam evitar e colocar
obstáculos ao progresso dos conhecimentos. Desde que os
fatos lhe faltaram, se valeram de conjecturas que logo foram
transformadas por eles em realidade. E a sua imaginação que a
experiência não guia mais, se introduziu sem retorno, no labirinto
de um mundo ideal e intelectual, que só ela havia gerado. E foi
logo impossível de tirá-la daí e colocá-la no bom caminho, onde
está apenas a experiência que lhe pode dar a direção. A
experiência mostra que dentro de nós mesmos, assim como
dentro de todos os objetos que agem sobre nós, há apenas a
matéria dotada pela Inteligência suprema das propriedades que
lhe foram dadas. Enfim, o homem é um todo organizado,
composto de diferentes partes de matéria, igual a todas as
outras composições da natureza. Obedece a leis gerais e
conhecidas, assim como leis ou maneiras de agir que lhe são
sabidas e particulares.
Assim, quando nos perguntarem o que é
110
o homem, nós diremos que é um ser material, organizado ou
formado de maneira a sentir, a pensar e a ser modificado de
uma maneira somente a ele próprio, à sua organização, em
combinações particulares que se encontram anexadas nele. E
se nos perguntarem qual a origem que nós damos aos seres da
espécie humana? Nós diremos que, igual a todos os outros
seres, o homem é uma produção da natureza que lhe monta de
uma maneira específica e se encontra submetido às mesmas
leis e que difere em outros aspectos e segue leis particulares,
determinadas pela diversidade da sua formação. E se
perguntarem de onde o homem tem vindo? Nós responderemos
que a experiência não nos tem dado a resposta desta questão
porque não podemos penetrar nos segredos da Inteligência
infinita e que esta pergunta não nos pode interessar
verdadeiramente. Para nós é suficiente saber que o homem
existe e que ele é constituído de maneira a produzir os efeitos
que nós vemos ser ele suscetível.
Mas, se disserem: O homem sempre existiu? A espécie
humana foi produzida desde toda a eternidade? Tem tido em
todos os tempos homens iguais a nós e sempre terá? Houve um
primeiro homem de que todos os outros são descendentes? As
espécies sem começo serão também sem fim? Essas espécies
são indestrutíveis ou passam como os
111
indivíduos? O homem tem sido sempre o que ele é, ou bem
antes de vir ao estado em que nós o vemos, foi obrigado passar
por uma infinidade de desenvolvimentos sucessivos? O homem
pode enfim se gabar de ter chegado a um estado fixo, ou a
espécie humana deve ainda mudar? Se o homem é um produto
da natureza, alguém perguntará se nós cremos que esta
natureza pode produzir novos seres e pode fazer desaparecer
espécies antigas. Pois dentro dessas suposições quer-se saber
por que a natureza não produz novos seres e novas espécies
sob os nossos olhos?
Parece que podemos pegar sobre todas essas questões,
indiferentes à realidade da coisa, o partido que nós quisermos. À
falta da experiência, é a uma hipótese que se fixa a curiosidade,
que se lança sempre para além dos limites prescritos ao nosso
espírito. Observado isso, o contemplador da natureza dirá que
ele não vê nenhuma contradição em supor que a espécie
humana, tal como é hoje em dia, tenha sido produzida ou dentro
do tempo ou desde toda eternidade. Ele não vê vantagem em
supor que esta espécie tenha chegado por diferentes passagens
de desenvolvimentos sucessivos ao estado em que nós a
vemos. A matéria é eterna e necessária, mas suas combinações
e suas formas são passageiras e contingentes. E o homem é ele
outra coisa que matéria combinada, em que a forma varia a todo
instante?
112
Entretanto algumas reflexões parecem favorecer ou dar
como mais provável a hipótese que o homem é uma produção
feita dentro do tempo, particular ao globo que habitamos. Que,
por conseqüência, não pode datar da formação desse globo e
que é resultado de leis particulares que o dirigem. A existência é
essencial ao universo, ou à montagem total de matérias
essencialmente diversas das que nós temos, mas as
combinações e as formas não lhe são essenciais. Observado
isso, qualquer que seja a matéria que compõem a nossa terra,
ela sempre existiu. Esta terra não teve sempre a sua forma e
suas propriedades atuais. Talvez esta terra seja uma massa
destacada dentro do tempo de algum outro corpo celeste e que,
consequentemente, esteve assim apta a produzir seres em tudo
diferentes do que nós agora aqui encontramos, visto que então
sua posição e sua natureza deviam propiciar produções
diferentes das que nos oferece hoje em dia.
As plantas, os animais e os homens, qualquer que seja a
suposição que se adote, podem ser olhados como produções
inerentes ao nosso globo e que lhe são próprias, na posição ou
nas circunstâncias onde ele se encontra atualmente. Essas
produções mudarão se o nosso globo, por qualquer revolução,
vier a trocar de lugar. O que parece fortificar esta hipótese é o
fato de que no nosso globo,
113
todas as produções variam em razão dos seus diferentes climas.
Os homens, os animais, os vegetais e os minerais não são os
mesmos em toda a parte, Eles variam algumas vezes de
maneira muito sensível a uma distância pouco considerável.
Enfim, os homens variam em diferentes climas pela cor, talhe,
formação, força, laboriosidade, coragem e pelas faculdades de
espírito. Mas o que constitui o clima? É a diferente posição das
partes do mesmo globo relativamente ao sol, posição que é
suficiente para ocasionar uma variedade sensível nas suas
produções.
Pode-se então conjecturar com bastante fundamento, que
se por qualquer acidente, o nosso globo viesse a se deslocar,
todas as suas produções seriam forçadas a mudar, visto que as
causas não seriam mais as mesmas, ou não agindo mais da
mesma maneira, os efeitos deveriam necessariamente mudar.
Transportemos em imaginação um homem do nosso planeta
para Saturno. Bem cedo seu peito será rasgado por um ar muito
rarefeito, seus membros serão congelados pelo frio e ele
morrerá pela falta de elementos análogos à sua existência atual.
Transportemos outro homem para Mercúrio e o excesso de calor
irá destruí-lo bem cedo.
Assim tudo parece nos autorizar a conjecturar que a
espécie humana é uma produção própria
114
do nosso globo, da posição onde ele se encontra e que se essa
posição vier a mudar, a espécie humana mudará ou será forçada
a desaparecer, visto que aí não terá o que lhe possa coordenar
com o todo, que não somente lhe dá a idéia de ordem, mas
ainda lhe faz dizer que tudo está bem, embora não seja tudo
como podia ser e embora tudo seja o que necessariamente é.
Estas reflexões parecem contrariar as ideias daqueles
que queriam conjecturar que os outros globos são habitados
como o nosso por seres semelhantes a nós. Mas se os lapões
diferem de uma maneira tão marcante dos hotentotes, que
diferença nós não devemos supor entre um habitante do nosso
globo com um habitante de Saturno ou Venus?
Qualquer que seja o caso, se nos obrigam a remontar por
imaginação à origem das coisas e ao berço do gênero humano,
nós diremos que é provável que o homem seja um efeito
necessário do desenvolvimento do nosso globo, ou um dos
resultados das qualidades, das propriedades e da energia de
que ele foi suscetível na presente posição. Que ele tenha
nascido macho e fêmea, que a sua existência seja coordenada
com a desse globo e que enquanto esta coordenação subsistir, a
espécie humana se conservará e se propagará desde a
impulsão e as leis primitivas que o têm previamente feito nascer.
Se esta
115
coordenação vier a mudar, ou se a terra deslocada da sua
posição, cessar de receber a mesma impulsão ou influência da
parte das causas que agem atualmente sobre ela e que lhe
fornecem sua energia, a espécie humana mudará para fazer
frente a seres novos, próprios a se coordenarem com o estado
que sucederá a este, que nós vemos atualmente subsistir.
Oh homem! Nunca conceberás que tu és efêmero? Tudo
muda no universo. A natureza não engloba nenhuma forma
constante. E tu pretendes que a tua espécie não pode
desaparecer e deve ser excetuada da lei geral que ordena que
tudo se altere. Tu, que na tua tolice tomas arrogantemente o
título de rei da natureza! Tu que medes a terra e os céus! Para ti,
para quem tua vaidade imagina que tudo foi feito, porque tu tens
uma pequena porção de inteligência! É necessário apenas um
ligeiro acidente, como um deslocamento de um átomo, para te
fazer perecer, para te degradar, para te roubar esta pequena
porção de inteligência em que pareces te fiar.
Se forem rejeitadas todas as conjecturas precedentes e
afirmado que a natureza age por uma soma de leis imutáveis e
gerais; Se acreditado que o homem, os quadrúpedes, os peixes,
os insetos e as plantas existem por toda a eternidade e
permanecem eternamente como são; Se desejado que desde
toda a eternidade os astros brilhem no firmamento; E se
116
dito que não é preciso mais demandar porque o homem é tal
como ele é e porque a natureza é tal como nós a vemos ou
porque o mundo existe, nós não nos oporemos. E qualquer que
seja o sistema que se adote, ele responderá talvez igualmente
bem às dificuldades que nos embaraça. E consideradas de perto
se verá que essas dificuldades são na verdade apenas
insignificâncias que nós colocamos antes da experiência. Não é
dado ao homem saber tudo. Não lhe é dado conhecer sua
origem, nem lhe é dado penetrar nas essências das coisas e
remontar aos primeiros princípios. Mas lhe é dado possuir a
razão, a boa fé e convir ingenuamente que se ignora aquilo que
não se pode saber. E de não substituir por palavras ininteligíveis
e suposições absurdas as suas incertezas. Assim, àqueles que
para resolver as dificuldades, pretendem ser a espécie humana
descendente de um primeiro homem e de uma primeira mulher
criados pela Divindade, nós respondemos que estamos muito
convencidos da natureza e da Inteligência suprema e que não
temos nenhuma idéia da criação. Porém bem da sua formação,
visto que a matéria é eterna e que se servir de palavras como
alma e criação, é dizer em outros termos, que se ignora a
energia da Inteligência suprema sobre a natureza e que nós não
sabermos nada como ela pode produzir os homens que nós
vemos.
117
Desde toda a eternidade, a Inteligência suprema tem
conhecido a matéria. É contraditório dizer que se conhece uma
coisa que não existe. Assim, a matéria deve ser eterna.
Inventou-se a palavra 'alma' para expressar debilmente os
recursos da nossa vida, como a vegetação é uma palavra que é
usada para significar a maneira inexplicável pela qual a suprema
Inteligência faz que a planta tire os sucos da terra. Todos os
animais se movem e esta força de se mover, chama-se força
ativa. Mas não há um ser distinto que seja esta força. Esta força
então deve vir de onde? Temos paixões, memória e razão. Mas
essas paixões, esta memória e esta razão não são sem dúvida
coisas à parte. Não são seres que existem em nós. Não são
pequenas pessoas que têm uma existência particular, são
palavras genéricas inventadas para fixar nossas idéias. A alma
que significa a nossa memória, nossa razão e nossas paixões,
não é então mais do que uma palavra. Quem faz o movimento
na natureza? É a Inteligência suprema. Quem faz vegetar as
plantas? É esta Inteligência. Quem faz o pensamento no
homem? É esta Inteligência suprema.
Por mais que a alma humana fosse uma pequena pessoa
encerrada dentro do nosso corpo que dirige os movimentos e as
idéias, isso não marcaria no eterno Artisão da natureza
118
uma impotência e um artifício indígno dele? Então ele não teria
sido capaz de fazer robôs que tivessem em si o dom do
movimento e do pensamento? Vocês ousariam negar que a
Inteligência suprema tenha o poder de animar o ser pouco
conhecido que chamamos matéria? Por que então se serviria ele
de outro agente para animá-lo?
E tem mais. Que será desta alma que vocês dão tão
livremente ao nosso corpo? De onde ela virá? Seria necessário
que a Inteligência suprema estivesse continuamente à espreita
do acasalamento de homens e mulheres. Que ela
cuidadosamente marcasse o momento em que o germe deixa o
corpo do homem e entra no corpo da mulher. E então
rapidamente enviasse uma alma para esse germe? E se este
germe morre, o que será dessa alma? Ela terá sido criada
desnecessariamente, ou ela vai esperar outra ocasião?
Eis que vos confesso uma estranha ocupação para o
Mestre da natureza. Mas não somente é preciso que preste uma
atenção contínua na copulação da espécie humana. É preciso
ainda que ele faça o mesmo com todos os animais, porque eles
têm como nós memória, idéias e paixões e se uma alma é
necessária para formar esses sentimentos, memória, ideias e
paixões, é necessário que a Inteligência suprema trabalhe
continuamente forjando almas para todos os animais da
natureza.
119
Que idéia posso fazer de um Artesão de tantos milhões de
globos, que será obrigado a fazer continuamente cravilhas
invisíveis para perpetuar sua obra? Visto que sou animado pela
própria Inteligência suprema, para que me serveria esta alma?
Eis uma pequena parte das razões que podem me fazer
duvidar da sua existência.
Não somos nós que nos damos idéias, nós as temos
quase sempre, apesar de nós mesmos. Nós as temos quando
estamos dormindo. Tudo se faz em nós sem que nos
intrometamos. A alma pedirá educadamente ao sangue e aos
fluídos animais: "corram, por favor, desta maneira para me
agradar". Eles circularão sempre como a Inteligência suprema
lhes receitou. É melhor eu ser a máquina desta inteligência que
me é demonstrada, que ser a máquina de uma alma que eu
duvido.
O homem é um todo composto por montagem de muitas
partes de espécies diferentes, que estão sujeitas
irrevogavelmente às leis inflexíveis do mecanismo universal:
Partes sólidas, partes fluídas, partes duras, partes moles,
alavancas de todos os gêneros, roldanas, tubos, glândulas,
licores e espíritos (animais)11. Tudo isso forma um todo, que por
algumas de suas partes, torna-se capaz de sentimentos e
conhecimento, como um pêndulo torna-se capaz de fazer soar a
hora.
11
Segundo a fisiologia antiga substâncias muito sutis que levavam a vida do coração e do cérebro ao resto do corpo; espíritos vitais. N.T
120
A estrutura, a ligação, a conveniência, os usos e os
efeitos dessas diferentes partes, são bem dignos de nossa
curiosidade e deveriam ser um dos principais estudos nos
primeiros anos da nossa vida.
Mas o que deve sobretudo chamar a nossa atenção para
tema em questão é o nosso cérebro, pois o cérebro é a sede dos
sentimentos e dos conhecimentos.
Como os olhos são o órgão da visão, de modo que sem
os olhos não vemos nada, de forma semelhante, nós só
pensamos pela parte inferior do cérebro, onde todos os nervos
terminam, ou, o que é a mesma coisa, de onde todos os nervos
se originam e de onde vão se distribuir pelos sentidos. De modo
que esta parte do cérebro é o nosso sentido interno. Podemos
lhe comparar de alguma forma, com uma aranha, que no reduto
onde ela permanece estacionada, é avisada pelos fios da sua
teia, dos vários movimentos que ocorrem em qualquer um dos
fios e que são levados até ela.
Esta parte do cérebro é o que comumente se chama de
alma, nome a que o vulgo dá uma significação bem diferente,
porque ele olha a alma como uma substancia diferente do corpo
e como o princípio de todas as operações de um animal vivo.
Mas a palavra alma é um termo abstrato e metafísico, que não
tem mais realidade em si em comparação ao o resto do corpo,
que a palavra 'visão' tem em relação aos olhos e a palavra
''audição' em relação aos ouvidos.
121
É inútil procurar em nós um ser estranho ao nosso corpo,
que seja o princípio das nossas operações. Elas são o resultado
da montagem e do concurso de todas as diferentes partes do
próprio corpo, dependendo das leis do mecanismo universal. É
esta montagem que forma o animal vivo.
Nós apenas conhecemos os diversos seres que estão no
mundo pelo sentimento dos efeitos que vemos que estes seres
produzem em nós. Eu vejo um determinado corpo e sinto que
ele excita em mim a sensação de calor e luz. Digo então que ele
é quente, luminoso e diferente do gelo e de outros corpos
sólidos que também vejo, mas que não me fazem sentir nem
calor e nem luz. Eu sinto que sou capaz de sentimento e de
pensamento. Assim eu afirmo que tenho a propriedade de sentir
e pensar. Eu tenho um corpo organizado como resultado de
diferentes elaborações e diversos movimentos que ocorrem
sobretudo no cérebro. Eu sinto que eu sou afetado por
sentimentos e pensamentos. Por isso eu reconheço em mim a
propriedade de sentir e pensar. E eu digo que sou um corpo
organizado que sente e pensa de acordo com as diferentes
impressões que se fazem no órgão do pensamento que é o
sentido interior.
Toda coisa é considerada ser no estado onde se
encontra, até que uma razão legítima nos obrige a olhar de
forma diferente. Ora, eu não tenho nenhum
122
motivo razoável que me obrige transferir para outro ser que me é
desconhecido, uma propriedade que encontro tão intimamente
ligada ao meu corpo.
O que faz imaginar uma substância diferente do corpo e
capaz apenas de pensar é o hábito pelo qual os homens
atribuem propriedades apenas aos seres em que eles vêem que
estas propriedades estão reunidas. Eles não percebem esta
ligação e essa ignorância lhes é imputada. E melhor que
permanecer indeterminada, eles imaginam um ser que é o
substrato desta propriedade desconhecida. É assim que durante
a noite, quando o vulgo escuta qualquer barulho sem ver o corpo
que o causa, atribui ou a um espírito ou a qualquer outro ser
quimérico. Desta maneira, como se pensa sem saber que o
pensamento é uma propriedade do corpo vivo e organizado, se
imagina um ser de que a gente não conhece nada, para fazer o
substrato do pensamento.
As diferentes maneiras pelas quais se pensa segundo os
diversos estados onde o corpo se encontra são o que prova por
completo que nós não temos necessidade de recorrer a um ser
estranho e ideal para reconhecer o que pensa em nós,
Há o estado de vigília e o estado de sono; o estado de
saúde e o estado de doença; estado da paixão e estado
tranquilo e raro da razão; estado da loucura,
123
da mania, da melancolia, da alegria e da aflição; a natureza e a
qualidade dos alimentos, o clima mesmo e a temperatura do ar,
tudo isso influi no pensamento.
Nós ficamos exaustos depois de pensar por muito tempo
e sem parar em qualquer assunto que exige atenção. E como a
aplicação da nossa capacidade de pensar influi sobre o resto do
corpo, nós sentimos também que o trabalho manual afeta a
faculdade de pensar. E que depois de um trabalho penoso,
precisamos de descanso, a fim de não perturbar as operações
das partes internas do nosso corpo, que fornecem novas
energias ao órgão do pensamento.
As diferentes fases da vida trazem também mudanças em
nossa maneira de pensar. Vemos esta faculdade crescer com o
corpo, se fortificar se enfraquecer com ele e, finalmente, se
perder com as outras propriedades de nossos órgãos.
A constituição ou a qualidade da pasta de que cada
homem foi formado, também produz diferenças na maneira de
pensar.
Ou, se fosse apenas o cérebro que pensasse e o
pensamento fosse uma propriedade (ou, como querem alguns
Autores, a essência, outra substância de que o conceito, como
eles querem, exclui toda a corporeidade) como o que
acontecesse no corpo poderia influenciar o pensamento? A
essência do círculo pode influenciar a
124
essência do quadrado? Cada ser é como ele é em si mesmo,
independente de outro ser pelo menos quanto à sua propriedade
essencial. O corpo não tem necessidade de espírito para ser
extenso. O mesmo acontece se o espírito fosse uma substância
cuja propriedade essencial fosse pensar. Pensaríamos como e
quando nós quiséssemos. E nós não somos os mestres nem dos
nossos pensamentos e nem das nossas sensações. Se nossa
alma tivesse por ela mesma esta propriedade de sentir e pensar,
os vários estados do corpo e as várias elaborações que aí
acontecem, não afetariam o exercício desta propriedade
essencial do espírito, pelo menos até ao ponto em que sentimos
que estes estados influenciam, sobretudo durante o sono, na
doença, na embriaguez, na loucura, etc.
Tudo isso, dizem, vem apenas em virtude da união que o
Ser supremo estabeleceu entre o corpo e a alma.
Mas ainda um golpe: a união das duas substâncias não
vai produzir uma mudança no que elas têm de essenciais.
Esta palavra 'união' é aqui apenas um termo metafísico,
tirado de montagem, ou junção de corpos, mas nada parecido
pode ser encontrado entre duas substâncias que não tenham
entre si qualquer relação.
Além do mais, para sustentar que duas substâncias estão
unidas, não deveríamos perceber antes
125
bem distintamente estas duas substâncias? Se a existência
particular de cada uma dessas duas substâncias não nos é
conhecida, como podemos garantir com certeza que elas estão
unidas? Ora, eu apenas percebo e sei o meu corpo, em que
descubro pelo sentimento, a propriedade de pensar e ser
suscetível a alegrias, tristezas, prazeres e dores.
Além de que, os Doutores afirmam que há pouca ligação
entre sua suposta substância pensante e a substância extensa.
Eles asseguram tão afirmativamente que a idéia de uma exclui a
idéia da outra, que eu não posso entender como na hipótese
deles, se possa admitir esta união e sustentar que ela consiste
num comércio recíproco entre a alma e o corpo. O comércio
recíproco entre a alma e o corpo de um louco, de um doente, de
um apoplético, de um homem embriagado, de um homem que
dorme! Não é isso o que os Jurisconsultos chamam de uma
sociedade leonina, onde os benefícios estão apenas de um
lado?
Além disso, o comércio recíproco não faria a união, ele a
suporia. E que união pode-se conceber entre duas substâncias,
que, como eles pretendem, são tão diferentes que o conceito de
uma exclui o conceito da outra?
Mas podemos duvidar desta união, dizem os Doutores?
Já que sentimos tão indubitavelmente que o que pensa em nós
age na nossa substância extensa.
126
Eu respondo que esse sentimento interior não prova a existência
e nem a união de duas substâncias diferentes, em que uma
delas é totalmente desconhecida para mim. Esse sentimento
serve unicamente para provar que o pensamento é uma
propriedade dos corpos vivos, cujos órgãos atingiram certo
ponto de consistência. Sinto tão indubitavelmente que o meu
corpo organizado é vivo, que acho que estou convencido de ser
o pensamento uma propriedade que a Inteligência suprema me
deu e que eu apenas a tenho porque sou um corpo organizado e
vivo.
Embora nós só conheçamos as propriedades dos seres
pelos sentimentos que os próprios seres nos dão, posso eu
duvidar do meu corpo, visto que ele é vivo e tem a propriedade
de pensar que eu sinto tão intimamente ser um efeito da
continuação do meu corpo?
Não serve para nada dizer que o cérebro e os espíritos
animais, não passando de corpos e de substâncias extensas,
não podem pensar e nem fazer pensar. Nossa própria
experiência, fundada no sentimento interior, destrói esta objeção
vulgar.
É verdade que como nós somente sabemos pelos
sentidos e que os nossos sentidos não são tão perspicazes para
perceberem como o pensamento resulta de todas as operações
que ocorrem no nosso cérebro, nós não sabermos
127
como o nosso cérebro tem a propriedade de pensar. Mas tudo o
que podemos concluir dessa falta de luz, é unicamente a nossa
ignorância sobre o detalhe do como e não a impossibilidade de
um fato de que temos consciência.
O homem cego de nascença não conhece como os
corpos em que só descobre qualidades tácteis podem excitar
impressões da luz e de cor, de que não tem e não pode ter
nenhuma idéia. Mas se negar estas propriedades porque elas
lhe são desconhecidas e porque não as compreende na idéia
que faz de corpos, seria ele bem razoável se afirmasse que o
que não conhece não poderia ser?
Esses doutores estão ainda mais errados do que este
cego, porque mesmo com uma pancada na cabeça, nós não
poderíamos duvidar do que não pensamos. Nossos próprios
sentimentos e reflexões nos têm dado da idéia da luz e das
cores. Uma vez que um número infinito de fatos nos faz
descobrir no cérebro a propriedade de pensar, propriedade essa
cujo exercício depende dos sentidos e de todas as operações
que ocorrem no corpo.
Mas o pensamento, diz alguém, não está encerrado na
idéia de extensão. Isso ocorre porque os olhos e os outros
sentidos não os podem descobrir ali, como os sentidos do cego
de nascença não descobrem a luz ou as cores.
A idéia que nós temos da extensão é apenas uma idéia
metafísica; a extensão é apenas
128
um termo arbitrário: Não há ser real que seja a extensão. Esta
palavra só marca uma idéia geral, tirada de todas as
propriedades dos objetos que afetam nossos sentidos e as quais
nos dão um substrato comum, que nós chamamos extensão.
Assim, a figura é um termo abstrato que marca a visão do nosso
espírito, que concebe em geral esta maneira de ser dos corpos,
entendendo que eles têm uma forma exterior, sem parar em
nenhuma forma particular. Portanto neste sentido, não há ser
que seja a figura em geral. Acontece o mesmo com a extensão.
Ela é apenas o substrato comum que nós imaginamos de todas
as propriedades sensíveis que afetam os nossos sentidos. Ora,
o pensamento sendo interior não podendo afetar os sentidos
externos. Ele não pode jamais ser considerado como tendo o
mesmo fundamento das propriedades sensíveis e, nem por
consequência, estar contido na idéia da extensão. O que não
tem parte na causa da idéia, não pode entrar na compreensão
dessa mesma idéia.
Além de que, os objetos de um sentido não são os objetos
de outro sentido. A visão pode não sentir os sabores, os cheiros,
os sons e nem as qualidades tácteis e os outros sentidos não
podem ver os objetos. Ora, a propriedade que o cérebro tem que
pensar é exercida apenas no interior da caixa óssea da cabeça,
de onde parte todos os nervos que vão formar os órgãos dos
sentidos.
129
Esta propriedade de pensar não pode ser percebida por nenhum
sentido externo. Não é então mais objeto dos sentidos que as
cores não são para o gosto ou do cheiro. Esta propriedade é
apreendida apenas pelo sentido interior, guiada pela reflexão.
Mas ela não envia luz aos olhos, nem vibração do ar aos
ouvidos, nem sais aos órgãos do sabor, etc. Assim, não pode
ser percebida pelos sentidos e nem estar encerrada na idéia de
extensão.
Obtenham um sentido a mais, que possa se refletir sobre
si mesmo e vocês descobrirão como o cérebro pensa e muitas
outras propriedades mais, as quais até lá, serão sempre tão
desconhecidas quanto os satélites de Saturno e de Júpiter eram
para os astrônomos antes da descoberta do telescópio.
Os nossos conhecimentos são limitados. Os dos animais
são ainda mais. Os seres inanimados não têm nenhum. Existem
matérias pesadas e leves. Há corpos sólidos e corpos fluídos
que estão sempre em movimento, como éter e o fogo estão
todos contidos no nosso estado. Reconheçamos as vantagens
que a Inteligência suprema nos deu, mas não procuremos nos
enobrecer com títulos fantasiosos.
Para ter o direito de excluir de todo ser extenso a
propriedade de pensar, é necessário conhecer exatamente todas
as propriedades que pode haver
130
em tal ser, mas apenas conhecemos nele aquelas que os
nossos sentidos podem descobrir. E por que recusaríamos, além
disso, aquela que a nossa consciência nos faz sentir? Por que
imaginaríamos um ser de que não temos nenhuma idéia para lhe
dar, apenas por suposição, a propriedade única de pensar? Ser
ideal, cuja união quimérica com o corpo, implica tanto
impossibilidade quanto contradição. Por que recorrer ao milagre,
quando só há de sentir para reconhecer que tudo que não está
em contradição está sob o poder da Inteligência suprema?
Eu sei que tenho um cérebro e o que for que aí tenha de
mais importante para se conhecer nas partes delicadas que o
compõem, escapa mesmo aos melhores microscópios. No
entanto, como a anatomia me ensina que é lá que todos os
sentidos terminam e que então, sei por consciência que é lá
onde eu penso, julgo, imagino, lembro etc., eu infiro que penso,
julgo, imagino e me recordo por um cérebro vivificado por
espíritos animais. É um sentido a mais, ou melhor, é o centro de
todos os sentidos e relativamente a que os espíritos animais têm
a mesma função que os raios de luz têm com os olhos, as
vibrações do ar com os órgãos da audição, o sal com o gosto e
as várias partículas dos corpos odorantes com o órgão do
cheiro. Em uma palavra, eu sou como eu me encontro, tal como
eu me
131
sinto. Eu não imagino tendo em mim um ser que não conheço,
um ser de natureza diferente da minha e de mim mesmo e um
ser de que sinto que a propriedade que se lhe atribui de pensar,
que faz, dizem, toda a sua essência, é apenas uma propriedade
de mim mesmo. Enfim, um ser que se ele for tal como dizem,
não passa de um acidente absoluto e sem relação alguma com o
meu corpo. Eu sinto que logo que meu corpo para de obedecer
às ordens dos órgãos do pensamento e da vontade, ele
simplesmente segue os movimentos do seu próprio mecanismo.
Ou, como nós já temos dito, ele segue as leis invariáveis do
mecanismo universal. Mecanismo a que todos os sentidos estão
sujeitos, mesmo aquele do pensamento. Assim, bem longe desta
pretensa substância que chamamos alma comandar, ela de fato
obedece. E é de se admirar que, enquanto se experimenta a
cada momento a sua impotência e subordinação, enquanto se
reconhece que ela não pode se presentear com o menor prazer
ou excluir a mais leve dor, nem acelerar a digestão, purificar o
sangue, remover qualquer obstrução, sarar a mais ligeira doença
e nem retificar nos insensatos o exercício da sua pretendida
faculdade essencial de pensar, estabelece-se um comércio
recíproco entre a alma e o corpo. E se define a alma como uma
substância dotada de razão e disposta de tal sorte
132
que ela governa o corpo? Não é ela nem mesmo governada por
si mesmo, ao ponto de cessar de ser, quando o corpo perde o
seu mecanismo.
Da organização.
Toda a matéria é vivente. Há apenas matéria viva no
sistema material. A matéria não poderia perder sua vida nem
sua organização. Logo que um todo orgânico e vivo se dissolve
em outros corpos orgânicos e vivos não há mais matéria morta
após esta dissolução que não houvesse antes. É um composto
vivo que se decompõe em outros compostos vivos sem que
jamais haja a menor parcela de matéria que morra em todas
essas composições ou decomposições. A passagem da matéria
do estado de vida ao estado de morte e o seu retorno do estado
de morte ao estado de vida não pode ter lugar. A vida sendo
essencial à matéria, esta permanece sempre viva. Ela muda
somente de forma e de combinação. Os germes considerados
como modelos ou formas morrem. Mas considerados como
matéria orgânica não morrem. Isso quer dizer que não há
nenhuma destruição na natureza, mas uma contínua
metamorfose.
Ora bem, Livremo-nos dessas ideias de matéria morta,
bruta e inorgânica. Acreditemos que é um péssimo raciocínio
dizer que não há vida onde não percebemos nada. É o primeiro
passo para se chegar ao conhecimento de tudo.
133
A experiência diária nos demonstra um instinto ou uma
inteligência dentro de cada partícula de matéria. Um grão de
semente jogado na terra que lhe é própria e conveniente escolhe
desta terra o que lhe convém à sua substância e crescimento. É
então visível que esse grão deve ser dotado de uma espécie de
inteligência capaz de fazê-lo agir. A falta de desenvolvimento
dentro dos germes suspende as funções, mas não destrói nem
uns e nem os outros. Os germes conservam todo o fundamento
do aparelho orgânico do corpo no qual resultará. O princípio que
nele está unido tem o mesmo fundamento das operações que
ele produzirá na ocasião e à medida do desenvolvimento do
germe. Tem a faculdade de pensar, querer, sentir, se mover e de
se lembrar. Mas o sujeito que deve lhe fazer isso para ele
exercer, não tem ainda adquirido os meios necessários. (Uma
geração nova apenas deve ser olhada como a manifestação de
um corpo que existia sob uma forma imperceptível). Não há
nada de inútil na natureza. Se houvesse uma só inutilidade, seria
mais provável que o acaso tenha presidido à sua formação do
que ele ter sido feito pelo Autor de uma inteligência perfeita.
Porque é mais singular que uma Inteligência infinita agisse sem
intento, do que seria admirável que um princípio cego se
conformasse à ordem por puro acidente. Mas toda coisa tem sua
destinação.
A organização é uma qualidade essencial à
134
matéria, qualidade tão essencial quanto à extensão. Ela é a
base das faculdades comuns a todos os seres, que são as da
nutrição, crescimento e geração. Pode-se dividir quebrar ou
picar os seres orgânicos, só se destruirá a forma e a estrutura
total sem destruir a organização das partes. Nós não os
podemos destruir porque são matéria e como matéria eles
permanecem orgânicos, em qualquer estado que seja e
conservam as faculdades de nutrição, crescimento e geração,
para desenvolvê-las quando as circunstâncias forem favoráveis.
A organização é uma qualidade essencial à
Tudo que morre não faz mais que trocar de forma. Não há
um grão de substância que seja destruída porque toda a matéria
é viva e imperecível.
Os animais, as plantas e os minerais são todos
modificações de matéria organizada. Todos participam da
mesma essência, sem ter outras distinções entre eles do que a
medida pela qual eles participam das propriedades dessa
essência.
Nada perece na natureza. O homem e tudo o que respira,
após ser despojados do invólucro grosseiro, esta espécie de
máscara que lhes envolve e os cobre e que, cessando de serem
homens, ou animais, ou insetos, ou qualquer outra forma
composta, subsistirão vivos dentro da sua primeira forma e
adejarão nos ares até que se lhes apareça
135
ocasiões favoráveis a lhes fazerem reaparecer sob outras
formas.
O homem faz parte do universo. A parte tem relações com
o todo. O universo é um sistema imenso de relações. Essas
relações são determinadas reciprocamente umas pelas outras.
Dentro de tal sistema não pode haver arbitrariedade. Cada
estado de um ser qualquer é determinado naturalmente pelo
estado antecedente. Caso contrário o estado subsequente não
teria a causa de sua existência.
Um corpo vivo que se dissolve, não morre por isso. Mas
cada uma das partes leva consigo a sua vida e sua alma, logo
que ele se corrompe.
Todo montagem de matéria pensa e o pensamento que
subsiste nessa montagem, subsiste sob outras modificações nas
partes desunidas, após a dissipação do conjunto.
Do movimento.
É o movimento que dá o peso à matéria porque ela por si
mesma não é pesada nem leve. O movimento é o princípio
conhecido da gravitação dos corpos. A vegetação é efeito do
movimento, como a geração e a vida dos corpos organizados
são produzidos e conservados pelo movimento. É ao movimento
que se faz necessário atribuir todos os fenômenos. E graças aos
limites do espírito humano, tudo é fenômeno para nós.
136
Não há movimento sem direção. Porque o movimento
sem direção será um movimento simultâneo para todos os lados,
o que é contraditório. A direção é uma determinação em direção
a um lado, em vez de outro. Esta direção só pode ser efeito de
uma Inteligência. A existência do movimento prova então a
existência de uma Inteligência.
Assim, todo movimento, suas leis e seus efeitos são o
trabalho de um Ser livre, infinitamente poderoso e inteligente.
Se uma Inteligência suprema não governasse a matéria e
o movimento, tudo estaria em confusão. Ora, nós vemos que em
tudo o que sai da matéria, há arranjo e ordem. Por
consequência, uma potência infinita deve presidi-la.
Se a atividade deve entrar na definição de matéria, ela
deve também exprimir aí a essência. Com efeito, é certo que
uma definição para ser boa, deve conter todas as propriedades
da coisa definida, ou essas propriedades devem dela decorrer.
Sem isso a definição não é suficiente para distinguir a coisa e
ela será confusa e incompleta. Dito isto, me parece que até aqui
não se definiu perfeitamente a matéria ao dizer que ela é
extensa. Eis a razão pela qual não se olhou os efeitos que o
movimento produz nela como essenciais a ela, mas como
acidentais e de uma natureza diferente, visto que se não os tem
compreendido na sua definição.
137
Ao passo que se dentro da definição de matéria nós fizermos
entrar a atividade com a extensão e a solidez12, como assim
disse o senhor Locke, se verá que todos os seus efeitos
decorrem naturalmente daí e nós não seremos mais obrigados a
recorrer a alguma outra causa para explicá-los assim como as
consequências da extensão.
Supondo que é um erro dizer que o movimento seja
estranho à matéria, concordar-se-á que todas as definições que
se dão por ordinário, estando fundadas sobre esta definição,
contribuíram bastante para fortificar este erro no espírito dos
homens. Por isso, eles estão acostumados a privar a matéria de
movimento e fizeram desta ideia um princípio que acreditaram
ser evidente e que jamais ousaram revogar em suas dúvidas.
Além disso, acontece que aqueles que têm o propósito de
introduzir opiniões falsas e que julgam acertado fortificar seus
intentos, ou aqueles que por sua atração à fama e aqueles que
querem manter sua autoridade sustentando opiniões absurdas e
já estabelecidas, colocam como inegociável que não se dispute
sobre princípios. Além do que eles dão para os princípios todas
as máximas que julgam úteis a seus próprios pontos de vista. De
qualquer modo, se o movimento é essencial à matéria, é
essencial também fazê-la entrar na definição de matéria.
Concordo que antes de fazer tal
12
Solidez = impenetrabilidade. Ver página 192
138
definição de matéria, é preciso começar por provar claramente
que a atividade lhe é necessária. É o que eu me proponho a
fazer no decorrer deste escrito e tentarei provar a definição por
mim demandada pelas razões que trarei para provar que dentro
da natureza, toda matéria, assim como que todas as suas
partículas estiveram sempre em movimento e não podem jamais
dele serem privadas. Que as moléculas que estão encerradas no
centro das rochas mais duras e maiores, no centro de uma barra
de ferro ou de um lingote de ouro, estão em uma atividade
constante como as moléculas do fogo, do ar e da água, embora
em graus diversos e determinações diferentes, iguais que estão
os últimos comparados entre eles. Com efeito, esta ação interna
lhes é igualmente natural a todos, assim como a todas as outras
classes de matéria que se encontram no universo, embora seus
movimentos específicos sejam muito variáveis, o que vem das
diferentes maneiras que eles se afetam uns aos outros. Mas é
tempo de procurar uma nova definição de matéria assim que nós
tivermos feito ver evidentemente que o movimento lhe é
essencial.
Sustento que a matéria não pode ser concebida sem uma
ação que lhe seja própria ou sem qualquer efeito desta ação. E
persisto em sustentar que a matéria não pode mais ser
concebida sem movimento como igualmente não pode ser sem
extensão e que
139
uma de suas propriedades é tão inseparável quanto a outra. Se
alguém quiser tentar me dar a ideia de matéria sem ação, é
necessário para isso, que faça qualquer coisa que seja privada
de toda cor, figura, leveza, peso, que não seja áspera ou lisa,
nem doce e amarga, ou quente e fria. Numa palavra, um ser
privado de todas as qualidades sensíveis, destituído de partes,
de proporções e de todas as relações. Visto que todas essas
coisas dependem imediatamente do movimento, assim como as
formas dos seres corporais, suas gerações, sucessões,
corrupções, combinações infinitas, transposições e os arranjos
de suas partes que são indubitavelmente os efeitos naturais do
movimento, ou melhor, que são o próprio movimento designado
sob esses diversos nomes e sob essas determinações.
A divisibilidade da matéria que é em geral reconhecida é
ainda uma prova convincente de que não se pode concebê-la
sem movimento, pois é só o movimento que a divide e a
diversifica. Por conseguinte, o movimento é necessário assim
como a extensão na ideia de divisibilidade. Donde é necessário
concluir que o movimento é tão essencial à matéria quanto a
extensão. Com efeito, como poder conceber que a matéria seja
uma
140
substância ou qualquer coisa, a não ser que ela tenha ação?
Como a matéria poderá ser o sujeito de acidentes, segundo o
que se diz na sua definição vulgar, pois todos os acidentes são
apenas diferentes determinações da ação dentro da matéria,
diversificadas segundo suas colocações em relação aos nossos
sentidos, mas, que realmente não são distintas da nossa
imaginação ou da coisa mesma dentro da qual nós dizemos que
os acidentes existem? A redondeza não difere em nada do corpo
redondo e o mesmo acontece com todas as outras figuras. Na
verdade, a redondeza não é o nome de um ente real. É somente
uma palavra usada para exprimir a maneira de ser particular de
determinado corpo. O calor e o frio, os sons, odores e as cores
não são nem mesmo as maneiras de ser ou de posturas das
coisas. São apenas nomes que nós damos às maneiras com
que afetam nossa imaginação, pois a maior parte das coisas é
concebida por nós relativamente ao nosso próprio corpo e não
relativamente à sua verdadeira natureza. Eis aí porque algo que
é doce para um, parece amargo a outro. O que dá prazer a um
homem sadio é doloroso a um doente. Entretanto, os órgãos
sendo quase iguais em todos os homens, são
consequentemente afetados da mesma maneira, embora
tenham diferenças mais ou menos acentuadas. Mas essas
141
diferenças, assim como todas as outras que se vê na matéria,
sendo devidas a mudanças diversas ou a essas coisas mesmas,
são apenas conceitos de diferentes movimentos. E então eu
creio poder ousadamente afirmar que a matéria não é jamais
concebida senão como agente e eu conto provar que ela é
assim mesmo dentro do que se chama repouso.
Isso colocado, que se prive se acaso se puder, a matéria
do movimento, ao que eu adivinharei antecipadamente a ideia
que se terá. Ela será a mesma daquela que se pretendeu nos
dar os que tentaram antigamente defini-la. Segundo eles a
matéria primeira é "neque quid, neque quale, neque quantun,
neque quidquam eorum quibus ens denominatur". O que, em
muitas palavras, significa que a matéria não é absolutamente
nada.
Entretanto pretende-se que a extensão da matéria seja
mais fácil de descobrir, mesmo não sendo evidente por si
mesma. Mas se diz que não acontece o mesmo com a sua
atividade. Não posso estar de acordo com isto e sustento que
uma das suas propriedades é tão fácil de descobrir quanto a
outra e que ela não pode ser desprezada ou revogada na dúvida
a não ser por aqueles que só julgam pelas aparências, pelos
hábitos e pela autoridade, sem dignar-se consultar a própria
razão. Seguindo este método de raciocinar, eles podem nos
provar que a lua é apenas do tamanho de um queijo, porque
como o
142
vulgo não crê que haja a extensão quando não se discerne um
objeto visível, também muitas pessoas ficarão chocadas de
serem colocadas no grupo do vulgo em muitas outras coisas, por
concordarem entretanto com o vulgo na crença que não há ação
quando não se percebe nenhum movimento local e determinado.
A experiência nos convence que a multidão de adversários não
prova nada contra a verdade de uma proposição qualquer. As
coisas mais claras e mais simples têm sido grandes mistérios
por séculos inteiros. Entretanto, não é surpreendente que não se
encontre nada onde não se tem procurado. Por pouca paciência
que vocês tenham, me lisonjeia lhes mostrar o que tem
conduzido todas as seitas de filósofos, assim como o vulgo, a
crer na matéria inerte ou desprovida de atividade. Entretanto,
inúmeros filósofos se aperceberam do movimento da matéria,
mas cegados pelos preconceitos de infância, têm atribuído tal
movimento a toda sorte de causas, menos à verdadeira, o que
lhes têm frequentemente forçados a imaginar ridículas e bizarras
hipóteses.
Eu sei que inúmeros sábios filósofos sustentam a
existência do vazio, ideia essa que parece fundada sobre a
inatividade da matéria. A que eu acrescento que alguns desses
filósofos negam junto com os epicuristas que o vazio tenha uma
extensão real e pretendem que ele não é nada, enquanto
143
outros fazem disso uma substância extensa que não tem,
segundo eles, nem corpo e nem espírito. Essas noções fazem
despontar uma infinidade de disputas sobre a natureza do
espaço. A crença do vazio é uma das consequências errôneas e
inumeráveis que resultam da definição de matéria somente pela
sua extensão, na qual ela é suposta desprovida de ação e na
qual se crê ser ela dividida em partes reais independentes umas
das outras. Depois de semelhantes suposições, é impossível
não se concluir que deverá haver o vazio e é semelhantemente
impossível de não concluir uma multidão de absurdos. O que
nós chamamos de partes dentro da matéria, é apenas, como se
pode provar, maneiras diferentes de se conceber as suas
afeições, distinções e modificações. Assim essas partes são
imaginárias ou relativas e não são reais e absolutamente
divididas. A água como tal, pode ser produzida, dividida,
corrompida, aumentada e diminuída, mas não quando ela é
considerada como matéria.
Para evitar todos esses equívocos, é a propósito que
advirto que por corpo eu entendo certas modificações da matéria
que o espírito concebe sendo outros sistemas limitados ou
qualidades abstraídas mentalmente, mas que não são realmente
separados da extensão do universo. Nós dizemos então que um
corpo é maior ou menor, que
144
outro está quebrado ou dissolvido, etc., logo que ele
experimenta mudanças diversas em suas modificações. Mas nós
não podemos dizer propriamente que as matérias são maiores
ou menores que outras porque só há uma espécie de matéria no
universo e se ela é infinitamente extensa e não pode ter partes
absolutas independentes umas das outras, visto que as partes
ou moléculas são apenas concebidas como eu disse a pouco
que os corpos eram.
Tem-se inventado uma infinidade de palavras para ajudar
a nossa imaginação. Elas servem como os andaimes aos
construtores, mas que devem ser suprimidos quando o edifício
for acabado. É preciso se guardar bem de tomá-los por pilastras
ou fundamentos. Desta espécie são, por exemplo, as palavras
'grande' e 'pequeno' que são apenas comparações que o nosso
espírito faz e não nomes de seres reais. Um homem é
relativamente grande em relação à sua criança e pequeno
comparado a um elefante e a criança é grande se for comparada
ao seu pássaro, etc. Essas palavras e outras da mesma espécie
são úteis quando se as aplica convenientemente. Mas abusa-se
com frequência delas e de fatos relativos, designando modos e
fazendo-os realidades, seres positivos e absolutos. Tal é o
abuso que se faz das palavras 'corpo', 'partes', 'partículas',
'qualquer coisa', 'certo ser', etc.. Assim pode ser no uso normal
da vida, mas não
145
deve ser admitido nas especulações filosóficas.
Outros filósofos só admitem haver na natureza partes
normais e relativas e não partes reais e positivas. Entretanto,
não obstante suas sutilezas, não podem alegar nenhuma prova
contra a existência de um vazio que seus adversários não
possam facilmente destruir, visto que todos eles concordam na
suposição de ser a matéria desprovida de ação. Os que estão
afeitos à filosofia sabem que as dificuldades são iguais dos dois
lados, o que tem feito muita gente crer que a coisa é por sua
natureza inexplicável. Neste caso eles se apegam, como
frequentemente se tem injustamente feito, a seu próprio
entendimento que não é satisfatório e não às suposições
precárias que se têm elaborado de lado a lado e que eles não
notaram.
Não há nada de mais certo do que em duas afirmações
contraditórias uma ser sempre verdadeira, enquanto a outra
sempre falsa. Assim, seja o que for que haja o vazio ou que tudo
seja pleno, servindo-se de suas impróprias expressões, embora
seja evidente que a verdade deve se encontrar dentro de uma
das duas proposições, nenhum dos dois partidos foi capaz de
demonstrar qual é a verdadeira, porque todos os dois partem de
um princípio falso do qual só pode resultar falsidades e
absurdos.
146
Mas se vocês ficarem convencidos, como logo eu espero fazer-
lhes ficar, de que a matéria é ativa assim como a extensão,
todas as dificuldades sobre o vazio desaparecerão nesse
assunto. Com efeito, como as quantidades particulares e
limitadas que nós nomeamos corpos são somente modificações
diversas da extensão geral da matéria que a todas encerra e que
não podem aumentar ou diminuir, de igual modo, todos os
movimentos locais e particulares da matéria são somente
determinações diversas de sua ação geral, que os dirige para
um lado ou outro à ajuda de tal ou qual causa e de tal ou qual
maneira, sem que esses movimentos aumentem ou diminuam a
ação total.
Em todos os tratados que se tem feito sobre as leis
ordinárias do movimento, encontram-se diferentes graus de
movimento que um corpo perde ou adquire. Essas leis têm por
objeto a quantidade de ação dos corpos particulares uns sobre
os outros e não a ação da matéria em geral. Assim também as
quantidades particulares de matéria são medidas por outras
quantidades menores e não pela extensão do todo. Os
matemáticos calculam a quantidade e as proporções do
movimento logo que vêem os corpos agirem uns sobre os
outros, sem se embaraçarem com as razões físicas que eles
deixam para os filósofos explicarem. Esses aqui as explicariam
bem melhor se começassem por estudar os fatos e as
observações
147
dos matemáticos, como Newton tem muito bem observado.
Não há dentro da matéria atributo inseparável que não
tenha um número infinito de modificações que lhe sejam tão
próprias quanto a extensão. A ação e a solidez estão nesse
caso. Contudo é necessário que todos os atributos concorram à
produção dos modos particulares a cada um, porque eles só são
a mesma matéria considerada sob pontos de vista diferentes.
Assim, dizendo como tem dito uma multidão de filósofos, que se
não houvesse o vazio, não haveria lugar onde o corpo C
pudesse se colocar e nenhum espaço livre para o corpo B
empurrar o corpo C. Assim discorrendo, eu digo que não ter
espaço é apenas uma das ideias grosseiras do povo. É supor
que os pontos B e C, assim como todos ou a grande parte dos
pontos que os cerca, sãos realmente fixos e dentro de um
repouso absoluto. Mas um verdadeiro filósofo não faz
concessões aos erros da maioria. E se eu chegar a provar que a
ação é natural, essencial, intrínseca e necessária à matéria, ver-
se-á logo que essas objeções não têm qualquer força e que os
exemplos que se nos contrapõem de círculos formados por
bolas contínuas, de um peixe prestes a se mover na água, etc.,
não provam nada, visto que todas estas coisas supõem tanto um
repouso absoluto quanto a geração de movimento, o que
6
148
é precisamente questão em discussão aqui. Se ela puder ser
provada, não haverá argumento sólido para responder ao que se
usa para estabelecer o vazio.
Eu já fiz pressentir alguma coisa sobre o abuso de
palavras na filosofia. Nós temos uma prova particular disso em
alguns termos úteis inventados pelos matemáticos, mas mal
entendidos e pervertidos por outros e com frequência mal
aplicados pelos próprios matemáticos. Isso não pode deixar de
acontecer quando se toma noções abstratas por seres reais e
dos quais se faz a seguir a base da construção de hipóteses. É
assim que linhas, superfícies e pontos matemáticos têm sido
considerados como coisas realmente existentes, do que se tem
tirado uma infinidade de falsas conclusões. Dizer, por exemplo,
que a extensão é composta de pontos, é dizer que o
comprimento e a altura são formados por algo que não é
comprido, largo, alto ou por qualquer medida de quantidade.
É assim que a palavra 'infinito' tem causado grandes
confusões que fizeram nascer uma multidão de erros e
equívocos. Tem-se representado o número infinito como se
unidades pudessem se juntar a mais unidades num processo
sem fim e daí, por decorrência, resultou que existe realmente um
número infinito. É assim que se fez um tempo infinito, se fez o
pensamento de um homem infinito, imaginou-se
7
149
linhas assíntotas e várias outras progressões sem fim, que só
são infinitas relativamente às operações do nosso espírito, sem
ser nelas mesmas. Porque o que é realmente infinito, deverá
existir atualmente como tal em vez daquilo que só é
potencialmente infinito, que não existe positivamente.
Mas não há palavra que tenha sido mais mal aplicada e
que por consequência, tenha dado lugar a muitas disputas do
que a palavra 'espaço', que é apenas uma noção abstrata, como
se verá em seguida, ou que é apenas uma relação que um ser
tem com outros seres que estão a uma distância dele, sem levar
em conta as coisas que se acham entre eles, embora essas
coisas tenham uma existência real. Assim o lugar é ou a posição
relativa que um corpo tem com outros corpos que o rodeiam, ou
o lugar que esse corpo preenche com seu próprio volume, de
onde se concebe que os outros corpos estão excluídos. São só
puras abstrações, visto que a capacidade não difere em nada do
corpo contido. De igual modo, a distância é a medida entre dois
corpos quaisquer sem levar em conta as coisas das quais a
extensão é assim medida. Entretanto, como os matemáticos
tiveram a necessidade de presumir um espaço sem matéria, do
mesmo modo que eles presumiram uma duração sem seres,
pontos sem quantidades, etc., os filósofos, que não têm podido
sem isto exprimir a razão da geração do
150
movimento na matéria que eles representavam como inerte,
imaginaram um espaço real distinto da matéria que eles
consideraram como extenso, incorpóreo, imóvel, homogêneo,
indivisível e infinito.
Se a matéria é ela mesma essencialmente ativa, não se
tem necessidade de recorrer a esta invenção para lhe obter o
movimento e não é necessário procurar a geração do
movimento.
Se a matéria é infinita, ela não pode ter partes separadas
que se movem independentemente umas das outras em linhas
retas ou em linhas curvas, não obstante essas modificações que
nós distinguimos pelo nome de corpos particulares e divisíveis.
A matéria deve igualmente ser homogênea, se ela possui
ação por ela mesma, como também extensão e solidez, sem ser
dividida em partes.
Se a matéria é infinita, o universo não deve ter movimento
local, pois fora de si ele não pode ter pontos fixos nos quais
possa ser sucessivamente aplicado, nem algum lugar por onde
possa passar.
Bem sei que combato uma opinião aceita universalmente
e que mesmo em referência ao que eu digo sobre o espaço,
tenho contra mim o maior homem do universo. Mas ele não
perde nada da sua glória, mesmo que se
151
tenha enganado neste caso, visto que as demonstrações e as
descobertas que o seu livro contém, não ficarão menos
verdadeiras. Por mim, não posso admitir um espaço absoluto
distinto da matéria que o liga ou o coloca, ou que eu então
admita um tempo absoluto distinto das coisas das quais se
considera a duração. Entretanto é de se pensar que não
somente o senhor Newton acreditou nestas coisas, mas ainda as
colocou em um mesmo nível. ―O tempo e os espaços, diz ele,
são os seus próprios lugares, assim como de todos os seres.
Todos os seres estão colocados dentro do tempo, quanto à
ordem de sucessão e dentro do espaço quanto à ordem da
situação, É da essência deles serem lugares e é absurdo dizer
que os lugares primitivos se movem. Assim esses lugares são
absolutos e as simples transferências desses lugares são
movimentos absolutos‖ (veja seus princípios matemáticos,
página 7.)
Estou persuadido que essas palavras são suscetíveis de
serem interpretadas de uma maneira favorável à minha opinião,
mas prefiro de lhes relatar no sentido que elas têm usualmente,
visto sobre tudo que como eu já disse acima, isto não deverá
manchar em nada o trabalho desse grande homem.
A respeito do que se alega em favor da inatividade da
matéria como também da existência do vazio, dizendo que um
corpo é ou mais pesado ou mais
152
leve que outro de igual volume, é necessário supor que o peso
ou a leveza não são puras relações de comparações de algumas
situações ou de algumas pressões exteriores. É preciso que se
os olhe como seres reais, como qualidades absolutas e
inerentes, sentimento que é presentemente rejeitado por todo
mundo e que é contrário às noções que se tem na mecânica.
Não será difícil provar, mesmo para pessoas de uma capacidade
ordinária, que não se pode ter peso ou leveza num suposto caos
e que essas qualidades dependem unicamente da fábrica ou do
mecanismo do universo. Diga-se, são consequências
necessárias do mundo atualmente existente, efeitos necessários
de seu arranjo presente, mas não atributos da matéria, visto que
o mesmo corpo torna-se alternativamente pesado ou leve, de
acordo com sua posição entre outros corpos e ademais, como é
bem conhecido, que muitos seres não se acham às vezes no
estado de pesados e nem no estado de leveza. Querer imaginar
que alguma parte da matéria tenha por ela mesma o peso e a
leveza porque se vê os seus efeitos na fábrica do universo, ou
querer deduzir seus efeitos das leis comuns da gravitação, é não
somente supor que a matéria é igualmente afetada em todo
lugar, mas ainda é supor que as rodas, as molas
153
e as correntes de um relógio possam, estando separadas,
produzir os mesmo movimentos que elas produzem quando
juntas.
Entretanto, é segundo essas suposições evidentemente
falsas que os filósofos, nos sistemas que imaginaram sobre a
formação do universo, inventaram a fábula dos quatro elementos
que vieram se colocar por si mesmos segundo seus diferentes
graus de peso e leveza. Segundo eles a terra se colocou no
lugar mais baixo ou no centro, as águas vieram em seguida, o ar
e o fogo ocuparam a região superior. Todos os povos e todas as
seitas estiveram fixados supersticiosamente nessas ideias de
caos primitivo, noção tão informe quanto complicada como o
próprio nome parece enunciar. E em tudo se fundamenta em
suposições não somente arbitrárias, mas inteiramente
quiméricas e falsas. Tais são as ideias grosseiras que se fez do
número e da incomponibilidade dos quatro elementos, tirados
dos corpos mais compostos do universo. Tal é a leveza ou o
peso das moléculas da matéria, tal é a separação do se chama
germes dos seres, separação que, dizem, não poderia ser feita
sem esta leveza e este peso e que, segundo essas condições,
não se poderia executar sem o socorro de um Arquiteto todo
poderoso que nem sempre pode o que
154
se fazia necessário, ou a quem se tem fornecido instrumentos
tão ruins e mal inventados que eles provam a fraqueza de
julgamento daqueles que formaram o mundo segundo seu
próprio modelo.
Em uma palavra: É segundo uma suposição tão precária que se
decidiu que ele fez um tempo onde a matéria esteve em
desordem, sem nos dizer quanto esse tempo durou e nem a
causa desta confusão. Isto pode nos provar de resto quão pouco
se deve contar com o consentimento universal, ou quanto é
necessário se defender dos erros epidêmicos que se espalham
sob o nome imponente de consentimento universal.
Mas não nos envolvamos nessas digressões, embora elas
se apresentem muito naturais. Concorda-se que a maior parte
dos corpos atualmente está em movimento e se diz que isso não
prova que eles estiveram sempre assim e que não há outros que
estejam em repouso absoluto. Concordo que, qualquer que seja
a verdade, semelhante consequência não se segue
necessariamente. Entretanto, antes de continuar, não será fora
de propósito ver até onde se pode estender este movimento
atual de que há geral concordância. Embora a matéria do
universo seja igual em todos os lugares, entretanto, em relação
a essas diferentes modificações, costuma-se concebê-la como
dividida em uma infinidade de sistemas particulares ou de
turbilhões de matéria. Esses sistemas ou turbilhões se
subdividem ainda em outros
155
maiores ou menores que dependem uns dos outros, como cada
um deles depende em tudo do seu centro, tecidos, formas e da
sua coerência. Nosso sol, por exemplo, é o centro de um desses
grandes sistemas que encerram grande número de outros
menores em seu raio de ação, do mesmo modo que todos os
planetas que se movem ao redor dele. Esses sistemas são
subdivididos em outros menores, mas dependentes como os
satélites de Júpiter dependem dele, ou como a lua depende da
terra. O nosso globo é subdividido em atmosfera, terra, água,
etc. Estes aqui se subdividem ainda em homens, quadrúpedes,
pássaros, plantas, árvores, peixes, metais, vermes, insetos,
pedras, metais e numa infinidade de outros seres diferentes.
Como todos esses seres são ligados ou dependem uns dos
outros, do mesmo modo, para me servir de uma linguagem
ordinária, a matéria deles é refundida uma na outra. Com efeito,
não somente, a terra, o ar, a água e o fogo estão intimamente
unidos e combinados, mas por uma contínua mudança eles são
transformados uns nos outros. A terra torna-se água, a água
transforma-se em ar, o ar se converte em matéria etérea e em
seguida elas servem para formar combinações inúmeras e
infinitas. Os animais que nós destruímos contribuem à nossa
conservação. Até mesmo o que nos destrói faz-nos contribuir à
conservação
156
dos outros seres. Nós tornamo-nos erva, plantas, água, ar ou
outras substâncias que servem para produzir outros homens,
outros animais, os quais a seu turno, se transformam em pedra,
madeira, metais, minerais ou em novos animais, ou ainda,
muitos se tornam partes desses seres ou de muitos outros, visto
que os animais e os vegetais se consomem e se devoram uns
aos outros. Tanto isso é verdade que cada ser vive pela
destruição de outro.
Todas as partes do universo estão continuamente num
movimento que produz e destrói. Os sistemas maiores têm seus
movimentos contínuos de igual modo que as menores
moléculas. Os globos colocados nos centros dos turbilhões
giram em seus próprios eixos e cada molécula do turbilhão
gravita em torno do seu centro. Qualquer que seja a ideia
lisonjeira que nós tenhamos de nós mesmos, nossos corpos não
diferem em nada dos corpos dos outros seres. Como eles,
nossos corpos crescem ou diminuem pela nutrição e secreções,
pelo crescimento, transpiração e por muitos outros meios, pelos
quais nós incorporamos à nossa substância parte de outros
corpos dos quais recebemos qualquer coisa em troca. Resulta
disso que nós não somos hoje o que éramos ontem e que nós
não seremos amanhã o que nos somos hoje. Enquanto
estivermos vivos, nós estaremos
157
num fluxo e refluxo perpétuo e quando nós estivermos no estado
de dissolução total de nosso sistema, o qual chega pela nossa
morte, nós nos tornaremos parte de uma infinidade de outros
seres que se apropriarão de nossos despojos. Nossos
cadáveres se misturarão em parte com a poeira e as águas da
terra, uma porção se evaporará no ar, onde flutuará ao vento em
diferentes lugares. Elas se misturarão e se incorporarão a uma
infinidade de seres.
Nenhuma parte da matéria está ligada a uma figura ou
forma. Todas mudam perpetuamente. É de se dizer que,
estando num movimento contínuo, elas são divididas, usadas,
trituradas e dissolvidas por outras substâncias que tomam sua
forma e trocam assim sem cessar de forma. A terra, o ar, o fogo
e a água, o ferro, a madeira, o mármore, as plantas e os animais
são rarefeitos ou condensados, liquefeitos, congelados,
dissolvidos ou coagulados, são em uma palavra mudados por
uma infinidade de movimentos uns nos outros. Toda a superfície
da terra nos mostra sempre essas mudanças. Não há ser que
permaneça o mesmo durante uma hora seguida. Ora, todas
essas mudanças são apenas mudanças de diferentes espécies,
são indubitavelmente os efeitos de uma ação universal. Mas as
mudanças das partes não produzem nenhuma mudança no
universo porque é evidente que as alterações, as sucessões, as
revoluções e as transmutações incessantes da
158
matéria não podem aumentar ou diminuir a soma deste universo,
tanto quanto o alfabeto não perde uma letra malgrado as
combinações infinitas que se fazem numa língua. Com efeito,
tão logo um ser deixe uma forma, ele assume imediatamente
outra. Ele sai, por assim dizer, de cena dentro de um
determinado traje para reaparecer logo em seguida sob um novo
disfarce o que produz na natureza uma juventude e um vigor
perpétuo que não é jamais seguido de declínio e de decrepitude,
como têm imaginado tolamente alguns homens que não
consultam a experiência e a razão. O universo, assim como
todas as suas partes, permanece sempre o mesmo.
Os grandes sistemas do universo estão subdivididos em
sistemas menores de matéria. Os indivíduos que compõem
esses sistemas menores perecem na verdade, sem, no entanto,
serem aniquilados. Conservam por algum tempo sua forma em
razão da força ou da fraqueza de suas disposições, estrutura ou
constituições. É o que chamamos de período ou tempo de
duração de determinado ser. Entretanto, quando certa
constituição é destruída antes de ter atingido seu período
normal, por movimentos mais possantes partidos de seres que o
rodeiam, nós damos a essa mudança o nome de acidente ou de
violência, como quando um jovem homem é assassinado e
então dizemos que ele foi morto por
159
acidente, que pereceu por uma morte violenta ou que morreu
antes do tempo.
As espécies se perpetuam pela propagação, não obstante
o declínio e a destruição dos indivíduos. A morte do nosso corpo
é apenas a matéria que vai se revestir de qualquer outra forma
nova, semelhante às impressões da cera que podem variar, mas
com ela permanecendo sempre a mesma. E dentro da realidade
nossa morte é a mesma coisa que nosso o nascimento. Com
efeito, morrer é apenas cessar de ser o que nós éramos
anteriormente e nascer é começar a ser o que nós não éramos
até agora.
Antes de encerrar este assunto, devo observar que,
considerando as inúmeras gerações que se sucedem no nosso
globo e que são, por suas mortes, incorporadas à massa
comum, dispersadas e combinadas com outras partes, e, em se
juntando a esse fluxo de matéria que a transpiração faz
incessantemente sair dos corpos dos homens enquanto eles
vivem, assim como o alimento que eles comem diariamente, a
inspiração do ar e as adições contínuas de matéria que
aumentam o seu volume; considerando, digo eu, essas coisas,
parece provável que não há sobre a superfície da terra inteira
uma única molécula de matéria que não tenha feito parte do
homem. Esse raciocínio aplicável à nossa espécie é igualmente
verdadeiro relativamente a toda ordem de animais,
160
vegetais e de seres, visto que todos foram dissolvidos e
transformados uns nos outros pelas mudanças incessantes, de
sorte que nada é mais correto do que dizer que todo ser material
é todas as coisas e que todas as coisas se reduzem a uma só.
Os efeitos sensíveis que vemos nos forçam então a
reconhecer um movimento contínuo nos seres. Concorda-se que
as partículas de ar, água, fogo, de matéria etérea e de vapores,
estão em ação perpétua. Reconhece-se ainda o movimento dos
corpúsculos imperceptíveis que emanam de todos os corpos
grandes e visíveis, que por suas massas, figuras, número e
movimentos agem sobre os nossos sentidos e produzem em nós
as sensações e as ideias que temos das cores, odores, sabores
e do quente, frio, etc. Mas ao mesmo tempo, apela-se aos
nossos sentidos para pretender que existem corpos em repouso
absoluto. Cita-se, por exemplo, as rochas, o ferro, o ouro, o
chumbo, as madeiras de construção e outros corpos que não
mudam de lugar sem o concurso de uma força externa. Eu
respondo que é a razão e não os sentidos, que deve guiar o
nosso julgamento nestes assuntos. Os nossos sentidos não
podem nos enganar desde que apelemos à razão em nosso
socorro. Quando os sentidos estiverem unidos à razão, eu não
colocarei
161
dificuldades à decisão da questão.
É preciso então que se distinga sempre entre a energia
interna ou a ação essencial de toda a matéria, sem a qual ela
não pode ser suscetível de qualquer alteração ou divisão e os
movimentos locais exteriores ou as mudanças de lugar que são
apenas mudanças particulares da ação essencial que é o
sujeito. Os movimentos particulares, sendo determinados por
outros movimentos mais possantes que lhes fazem diretos ou
circulares, rápidos ou lentos, ou continuados ou interrompidos,
de acordo com o movimento dos outros corpos que lhes
encontram, que lhes seguem ou que lhes cercam. Não há
nenhuma parte da matéria que não tenha uma energia interna
que lhe seja própria. Mas ela é assim determinada pelas partes
que a avizinham conforme a sua determinação particular seja
mais forte ou mais fraca, cedível ou resistente. Essas partes por
seu turno continuam a ser variadas de outra maneira pela mais
próxima. É desta maneira que todos os seres continuam a
mudar sem cessar por um movimento que julgo perpétuo. Mas
como há concordância geral de que todos os movimentos locais
que se possam imaginar são acidentes que aumentam, alteram,
diminuem e aniquilam, sem que o sujeito que eles modificam ou
no qual existem se destrua, esse sujeito não pode ser
considerado imaginário, uma noção puramente abstrata. Ele
deve ser qualquer coisa de real e de positivo.
162
A extensão não pode ser esse sujeito porque as ideias de
variedade, de alteração e de movimento não decorrem
necessariamente da ideia de extensão. Assim, como disse ainda
a pouco, é necessário que seja a ação, visto que todos esses
movimentos são apenas modificações diversas da ação, do
mesmo modo que todos os corpos particulares ou quantidades
são apenas modificações diversas da extensão. Eu falarei
oportunamente da solidez ou da impenetrabilidade e farei ver a
maneira que esses três atributos essenciais ou essas três
propriedades são inseparáveis e cooperam em conjunto.
Mas não nos esqueçamos de que temos apelado aos
nossos sentidos. O vulgo crê que as estrelas não são maiores
do que uma lâmpada normal, que o sol e a lua têm somente, em
média, um pé de diâmetro. É a nossa razão que nos induziu a
calcular a distância que existe entre os nossos olhos e esses
corpos e medir a sua massa real a tal distância. Não é ainda a
razão que nos ensina a distinguir as estrelas fixas dos planetas e
que nos induz a conceber os movimentos destes que são muito
diferentes dos que os sentidos nos mostram? Eu não falo de um
bastão reto que parece curvo dentro da água e nem das cores
que se vê na garganta de um pombo. Eu não falo também do
calor e do frio, do
163
sabor e dos odores que não existem nas coisas mesmas que
nós distinguimos pelos nomes que exprimem as sensações que
se excitam em nós. Eu me atenho ao assunto que trato. O
movimento local não é por ele mesmo frequentemente lento, que
os nossos sentidos não podem apercebê-lo? Nós não vemos um
corpo passar sucessivamente de um lugar para outro embora ele
não cesse de se mover e nós, no final, ficamos convencidos
pelos efeitos indubitáveis e pelos intervalos visíveis que ele
deixa. Não temos nós os exemplos na agulha de um relógio e na
sombra de um quadrante solar? Acontece o mesmo com os
movimentos que são muito rápidos, nos quais nós não vemos
distintamente as sucessões, como na passagem de uma bala de
fuzil. Etc.
Se nós julgarmos o corpo do homem ou de qualquer outro
animal pela sua superfície exterior, ele parecerá não ter mais
movimento local interno que o chumbo, o ouro ou uma pedra.
Nós não induziríamos um juízo mais sensato de uma árvore ou
de uma planta. Entretanto, se todas as partes da árvore não
estivessem em movimento, ela não poderia crescer e nem
definhar. Os conhecimentos que se têm de anatomia juntos com
a experiência diária não permitem duvidar que todas as partes
dos animais não estejam num movimento contínuo, assim como
as das plantas.
164
Elas crescem, diminuem, transpiram, se dissolvem, fenecem, se
corrompem, engordam ou emagrecem, se aquecem ou se
esfriam, mesmo quando o homem ou o animal está em repouso
ou dormindo ou mesmo que a árvore não se desloque do seu
lugar. Ninguém ignora hoje em dia a circulação do sangue e da
seiva. O ferro, a pedra, o ouro e o chumbo não são menos
desprovidos de movimento interno que os corpos que nós
nomeamos de fluidos. Sem isso eles não sofreriam as mudanças
que o ar, o fogo e a água lhes fazem suportar. Mas, embora
esses corpos tenham saídos de um estado precedente para
tomar as formas que nós os vemos ter atualmente, embora as
mudanças que eles suportam em sua figura façam ver
claramente que suas partes estão em um movimento contínuo,
as causas que lhes envolvem não lhes fazem trocar de forma ou
de situação de maneira bem marcada para se mostrar aos
nossos sentidos. Esta é a causa porque inúmeras pessoas
crêem que esses corpos não têm nenhum movimento e
nenhuma determinação particular.
No entanto esses corpos, mesmo ao permanecerem num
mesmo lugar, experimentam uma ação real. Os esforços e a
resistência de uma de suas partes, estando iguais durante certo
tempo, aos movimentos determinantes dos corpos vizinhos que
agem sobre eles e os impedem de
165
passar certos limites. Isso é fácil de compreender se acaso se
lembrar do que eu já disse das determinações sucessivas e
inúmeras do movimento, do qual este aqui é uma espécie que se
denomina repouso, para distingui-lo daquele onde ele está em
movimento local e visível.
Um corpo que desce ou tomba por seu próprio peso ou
por uma impulsão mais forte que lhe foi comunicada por outros
corpos, tendo mais força que os corpos que lhe cedem no trajeto
percorrido, não está menos em ação quando estiver parado. Ele
ficará apenas impedido de avançar mais adiante pela resistência
mais forte que lhe opõem a terra. Ele não pode retornar para
cima por causa da pressão igual dos corpos que estão atrás
dele. Um navio a vela não está sem ação quando a força do
vento que lhe faz ir em direção à embocadura de um rio é igual à
força da maré que torna a subir ou que o puxa para a nascente
do rio. Com efeito, se uma dessas forças se sobressai sobre a
outra, o navio se deslocará, mas, durante todo esse tempo o
navio estará apenas privado de uma espécie de movimento, mas
não de todo esforço ou ação. O ferro, o chumbo ou o ouro não
estão mais privados de ação. As mudanças que eles suportam,
sejam por seus movimentos internos, seja da parte dos
movimentos dos corpos vizinhos, cujo efeito é de usá-los,
dissolvê-los,
166
segurá-los, diminuí-los, alterar suas formas, etc., devem nos
convencer dessa verdade.
Assim, visto que o repouso é somente certa determinação
do movimento dos corpos, uma ação real pela qual eles resistem
a dois movimentos iguais, é evidente que o que se denomina de
repouso, é somente um estado relativo, que se tem em relação a
outros corpos que mudam sensivelmente de lugar.
Mas o povo, tomando o movimento local por um ser real
como faz em todas as outras relações, tem olhado o repouso
como uma privação ou acreditado que o movimento é ativo e o
repouso passivo, relativamente ao corpo que lhe deu sua última
determinação, tal como ele é ativo relativamente ao corpo que
lhe determina em seguida. É removendo dessas palavras a
significação relativa para lhes atribuir uma absoluta, que se deu
lugar à maior parte dos erros e das discussões levantados sobre
este assunto.
No entanto os mais hábeis geômetras e os grandes
filósofos, embora tenham suposto o movimento acidental ou
estranho e o repouso essencial à matéria, não deixaram de
reconhecer que todas as suas partes estão atualmente em
movimento. Foram forçados a isto pelo poder irresistível da
experiência e da razão. Eles convieram que os corpos
167
encerrados no seio da terra suportam movimentos e mudanças
contínuas como os que nós vemos à sua superfície. É o que nos
provam os bancos ou leitos de pedras que se formam, os metais
e os minerais que se produzem diariamente e todos os
fenômenos do mundo subterrâneo. Reconhecem que é pelo
movimento que se explica tudo o que acontece na natureza. Que
é pela ação recíproca dos corpos, de uns sobre os outros, que
eles sempre seguem as leis da mecânica. É assim que nos dão
razão de todas as variedades que a natureza nos apresenta. É
assim que nos explicam as qualidades sensíveis e primitivas, as
formas, as combinações, as modificações e as mudanças da
matéria. Dessa maneira são feitas as ideias mais claras do
movimento local, considerando os pontos de onde um corpo
parte e em direção aos quais ele tende, não como dentro de um
repouso absoluto, mas somente como dentro de um estado de
repouso relativo ao movimento desses mesmos corpos. Embora
o grande Newton seja considerado um partidário de um espaço
extenso, incorpóreo, ele não deixa de dizer que pode ser que
não haja um só corpo em repouso absoluto, que pode ser que
não haja um centro corporal imóvel que se possa encontrar na
natureza. Eis como se exprime em determinado lugar. ―O vulgo
atribui a resistência aos corpos em repouso e a
168
impulsão aos corpos que se movem. Mas o movimento e o
repouso, da maneira como se os concebe usualmente, são
apenas relativamente distintos um do outro e os seres que
vulgarmente se crê em repouso, não estão de fato assim‖. (veja
Princípios matemáticos, página 7). É assim que fala este homem
tão justamente admirado, que penetrou com seus olhos a
natureza, mais longe do que qualquer outro ou dentro do estado
atual da matéria. Com efeito, toda a física está compreendida
sob o título 'Do Movimento dos Corpos' que ele deu ao primeiro
livro dos seus princípios.
Creio poder ousadamente concluir de tudo o que precede
que a ação é da essência da matéria, pois é esta ação que é
realmente o sujeito de todas as modificações que são
designadas pelos nomes de movimentos locais, mudanças,
diferenças ou de variedade. E acima de tudo, porque o repouso
absoluto, sobre o qual se fundamentou a crença na inércia ou na
atividade da matéria, é uma pura quimera.
Este erro vulgar que fez supor um repouso absoluto foi
ocasionado pelas aparências que apresentam os corpos
pesados, duros e com massa. Vendo que esses corpos não
mudavam de direção, mas que era necessário para lhes fazer
mudar, determinações ou forças muito grandes, das quais os
efeitos batiam forte nos sentidos, concluiu-se que havia um
repouso absoluto e
169
que todos os corpos permaneceriam em estado de repouso sem
um motor externo, que se concebeu como não material, visto
que todos os corpos eram matéria e que o que era natural às
partes devia ser natural ao todo. Pelo menos os filósofos tiraram
essas induções da noção de repouso de que estavam imbuídos
desde a infância e em consultando apenas os seus sentidos.
Com efeito, ninguém nasce teólogo, filósofo ou político. Assim,
inicialmente, todo mundo está no nível do vulgo e recebe as
mesmas impressões ou os mesmos preconceitos que ele. E
ainda que um homem chegue a se desembaraçar da maior parte
dos erros, entretanto, se dá entrada em seu espírito a algum
princípio sem o devido exame, qualquer luz que tenha daí em
diante, acabará por cair em inúmeros absurdos que decorrem
desse princípio não examinado.
Porque então não há repouso absoluto nos exemplos que
se tem apresentado e por que, ao contrário, todas as partes da
matéria estão em um movimento absoluto, não se deve se
colocar ao lado desses filósofos que são os mais supersticiosos
e menos perspicazes. Não se deve partir desses raciocínios
oriundos de um erro vulgar, mas vendo que todas as partes da
matéria estão sempre em movimento. Deve-se ainda concluir
que o movimento lhe é tão essencial quanto, pela mesma razão
se crê que a extensão
170
é de sua essência, pois que toda parte de matéria é extensa.
Esses dois casos são os mesmos e a razão o provará aos que
renunciarem aos preconceitos
É por isso que me omiti de falar dos movimentos relativos
dos corpos que se supõem em repouso. Só os indicarei aqui a
fim de lembrar que ao mesmo tempo esses movimentos não
cessam de ser absolutos. Todos os seres que se encontram no
nosso globo terrestre participam do seu movimento contínuo. E o
mesmo acontece com os seres que estão em outros planetas,
visto que o movimento do todo é apenas a soma total do
movimento das partes. Isso é evidente por si mesmo e se
demonstra ainda pela força proporcional que é necessária, seja
para imprimir uma nova direção ou determinação a um corpo,
seja para parar a direção já recebida por esse corpo, porque
uma não pode ser menor que a outra. Embora todas as partes
imagináveis de uma bola em movimento estejam em repouso,
umas relativamente às outras ou relativamente ao lugar que elas
ocupam dentro da bola, entretanto ninguém dirá que todas as
partes não estejam realmente em movimento, como fazendo
parte da bola e relativamente aos corpos que estão fora dela. É
assim que um passageiro participa do movimento de um navio
em movimento. Embora esse passageiro pareça estar em
repouso relativamente
171
ao lugar onde se acha colocado ou às outras partes do navio,
que, não obstante o movimento do todo, permanecem à mesma
distância que ele e nas mesmas posições relativas a ele.
Disse ainda apenas uma palavra de passagem sobre a
força centrípeta pela qual todos os corpos da terra tendem em
direção ao seu centro, do mesmo modo que todos os corpos
tendem ao centro dos seus movimentos. Também não tenho dito
da força centrífuga pela qual os corpos se esforçam por se
afastarem do centro numa linha reta, se eles não estiverem de
outra maneira determinados por uma causa mais forte. É assim
que uma pedra rodeada por uma funda é retida em sua órbita
pelo couro da atiradeira. enquanto os cordões, estando tensos
pelo movimento da pedra, são contraídos ou apertados do lado
desta pedra pelos esforços que ela faz para escapar em linha
reta a cada ponto do círculo que ela descreve. Os cordões são
igualmente estendidos e contraídos contra a mão do homem,
donde se segue que o centro se aproxima tanto da pedra quanto
a pedra se aproxima do centro, o que por muitas razões não
chega nunca. Efeitos bem evidentes dependem dessas forças à
medida que elas estão perto de serem iguais ou à proporção que
uma é mais forte que a outra. É porque a força centrípeta sendo
muito maior que a força centrífuga das partes da terra engloba
nelas
172
a atmosfera, vê-se a razão que impede a terra de perder alguma
de suas matérias e porque ela mantém sempre o mesmo volume
ou tem sempre as mesmas dimensões, visto que a força
centrípeta da gravidade que retém os diferentes corpos em suas
órbitas, ser bem mais forte que a força centrífuga dos
movimentos pela qual eles procuram se evadir seguindo uma
tangente.
Qualquer natureza que seja as causas dessas forças, elas
fornecem as provas incontestáveis do movimento contínuo que
eu sustento existir em todos os seres. Mas não direi mais nada
do que já disse acima por medo de me engajar numa disputa
sobre a natureza da gravidade e ser obrigado a pesquisar se o
peso dos corpos é sempre proporcional à quantidade de matéria
que eles contêm. Isto é, se há mais matéria e mais peso em um
pé cúbico de chumbo que em um pé cúbico de cortiça,
sentimento que sei ser sustentado por filósofos muito hábeis, ou
se a mesma quantidade de matéria está contida em iguais
dimensões de mercúrio, ouro, prata, ferro, chumbo, terra, água e
de ar, embora seus pesos específicos sejam diferentes. Isto vem
em parte das pressões exteriores e em parte das estruturas
internas ou das modificações que dão às suas matérias comuns,
as formas diversas que constituem suas espécies e que as
distinguem de seus pesos, como elas
173
são distinguidas por suas figuras, cores, gostos, odores ou suas
outras qualidades devidas às suas disposições particulares, à
ação de outros corpos ou à nossa própria imaginação e
sentidos.
Tal é o meu sentimento, sobre qualquer razão que se
funde, acrescido ao fato que se a gravidade é um atributo
essencial da matéria e não um modo particular, as mesmas
coisas serão igualmente pesadas em todos os lugares e em
todas as circunstâncias, do mesmo modo que elas são
igualmente sólidas e extensas em qualquer parte. Elas não
variarão na aceleração e no retardamento de suas quedas a
distâncias variáveis do centro.
Assim segundo eu, a gravidade não prova a existência do
vácuo que é somente um dos numerosos modos da ação, de
qualquer forma que esta determinação aconteça, a que não
examinaremos quanto à sua presença visto que ninguém lhe
nega a existência. Também não prova que as quantidades e as
proporções do movimento são devidas à gravidade ou à ação
dos corpos particulares a esse respeito e que se deve calculá-
los após os fatos e as observações, qualquer que seja a
natureza de suas causas físicas. Pela mesma razão, não falarei
da atração dos planetas, de suas gravidades, de seus modos de
agir uns sobre os outros, visto que é certo pelas influências do
sol, pelo fluxo e refluxo das marés
174
ocasionados pela lua e por muitas outras provas que os planetas
se afetam muito sensivelmente em razão das suas massas,
figuras, distâncias e de suas posições.
As opiniões daqueles que estão persuadidos que o
movimento é acidental à matéria, que ela tem partes atualmente
independentes e separadas e que existe o vazio ou um espaço
incorporal, não são os únicos erros que a noção de um repouso
absoluto tem originado. Com efeito, filósofos menos
supersticiosos e que têm mais atentamente considerado a
natureza das coisas ensinaram que toda a matéria era animada
e que as moléculas de ar, água, madeira, ferro e pedra,
usufruíam da vida como o homem e os animais ou como a
massa inteira. Foram naturalmente conduzidos a esta ideia
porque lhes foram ensinado que a matéria era essencialmente
inerte, preconceito de que eles não estavam desembaraçados.
Entretanto, como eles viam com a ajuda da experiência que a
matéria, assim como todas as suas partes, estava num
movimento contínuo e como acreditavam igualmente que a vida
era uma coisa distinta do corpo vivo e organizado, concluíram
que a causa desse movimento era algum ser intimamente unido
à matéria, de qualquer maneira ela fosse modificada, e da qual
era inseparável. Esses filósofos vivificantes se
175
dividiram em diferentes classes, porque foi necessário um
grande número de expedientes para dar ao erro as aparências
da verdade. Alguns, em meio aos quais devemos colocar os
estóicos, olhavam esta vida como a alma do universo, co-
extensa com a matéria, disseminada no todo e penetrando em
todas as suas partes, como essencialmente corporal embora
infinitamente mais sutil que os outros corpos, que foram
supostos por demais grosseiros em relação a ela.
Já a alma universal dos platônicos era imaterial ou
somente puro espírito. Outros, entre os quais se encontram
Estratão de Lâmpsaco e os modernos hilozoístas, ensinaram
que as moléculas da matéria tinham vida e consequentemente
pensamento até certo grau, ou uma percepção direta sem
nenhuma reflexão. A essas moléculas, Heráclito entre os antigos
e Espinosa entre os modernos, juntaram a inteligência ou atos
refletidos, sem jamais se incomodar de levantar as dificuldades
que se apresentavam contra um sistema tão pouco fundado. E
sem mesmo de se dar ao trabalho de fazer ver como, mesmo
em harmonizando esta consciência à matéria, as diferentes
moléculas que raciocinam podiam conciliar-se para formar um
mesmo corpo ou sistema de seres, ou se separar e se juntar tão
regularmente em certas ocasiões sem terem de disputar entre
elas sobre os melhores e os piores lugares que elas
176
deviam ocupar ou sobre a companhia que se associasse com
elas. Eles não nos disseram porque o homem, embora composto
de partes dotadas de sentimento e inteligência, encontra
portando em si mesmo esta faculdade que somente exerce seu
poder em um único lugar.
A ideia da vida plástica adotada por outros filósofos não é
menos romanesca. Segundo o doutor Cudworth, que a fez
reviver, ela não é material. É uma espécie de espírito de ordem
inferior, desprovido de sentimento e de pensamento e que,
entretanto, é dotado de uma energia que lhe faz realizar as
funções da vida. Esses partidários das formas plásticas parecem
somente diferir dos hilozoístas pelas palavras, se bem que
sustentem sentimentos muito opostos, que são sem dúvida por
temor das consequências absurdas ou odiosas que alguém
poderia tirar de suas opiniões. Alguns eles como os jansenistas
e os calvinistas, que, embora certamente da mesma opinião
sobre o dogma da predestinação (não obstante suas sutis
diferenças) não deixam de se censurem reciprocamente.
Mas todas essas hipóteses são visivelmente artifícios ou
prestidigitações de que eles se servem para explicar o
movimento atual da matéria inerte, para evitar fazer a Divindade
intervir a cada instante e para não fazê-la a autora indistinta de
todas as ações,
177
submetendo-a a uma necessidade absoluta e inevitável.
Eis o que eu tinha a dizer daqueles que recorreram a um
motor externo para mover a matéria. Quanto àqueles que a
consideraram como inerte e desprovida de ação por sua
natureza, mas não assinalaram a causa de seu movimento,
como fizeram Anaxímenes e alguns outros antigos filósofos e
aqueles que, como Espinosa entre os modernos, não disseram a
causa do pensamento e nem do movimento da matéria, sua
opinião é tão pouco razoável que é inútil expô-la e ela foi sempre
objeto de triunfo para os estóicos, espiritualistas e os partidários
das formas plásticas.
Mas o erro mais universal que se produziu pela falsa
suposição da inércia da matéria é aquele que quer persuadir que
existe um espaço infinito, extenso e, entretanto, incorporal.
Como se fundou três grandes sistemas baseados neste espaço
substancial que tiveram por defensores homens muito célebres e
de reconhecido mérito, vou expor a história desta opinião, como
fiz com as das outras, embora eu pudesse me dispensar,
sobretudo após ter provado que a matéria é essencialmente
ativa e que seu movimento geral é o sujeito imediato de todas as
determinações moventes, do mesmo modo que a extensão é o
sujeito imediato de todas as formas e quantidades. Com
178
efeito, foi ainda para explicar a produção do movimento na
matéria inerte, que se imaginou principalmente este espaço
como o lugar da sua ação. Mas a matéria, não sendo ativa e não
tendo necessidade que o movimento lhe seja continuamente
transmitido por um agente exterior, pode-se banir o espaço da
filosofia como um ser inútil e quimérico. Todo mundo concorda
que a extensão é infinita visto que ela só pode ser limitada pela
extensão. As demonstrações desse princípio são tão conhecidas
universalmente e adotadas para que eu tenha necessidade de
repeti-las. A matéria não é menos infinita quando se a concebe
como uma substância extensa porque não se podem imaginar
limites a que não se possa acrescentar ainda extensão ao
infinito. Assim, se ela não é atualmente infinita, sua qualidade de
ser finita deve vir de outra causa que não seja da sua extensão.
Aqueles que, de acordo com princípios filosóficos,
acreditaram que a matéria era finita imaginaram que ela era
inativa, divisível em partes separadas e independentes umas
das outras, entre as quais existiam interstícios. Eles pensaram
que essas partes eram pesadas ou leves por elas mesmas e que
tinham figuras diversas e graus variados de movimentos quando
eram forçadas a sair do estado natural de repouso. Isso
179
os levou necessariamente a supor extensões infinitas, ao
mesmo tempo em que admitiam outra extensão infinita. Nesse
caso eles não puderam se abster de fazer essas extensões
diferentes em outros aspectos: uma como imóvel, penetrável,
indivisível, invariável, homogênea, incorpórea e encerrando tudo
e a outra como móvel, impenetrável, divisível, variável,
heterogênea, corpórea e contida. Uma designa o espaço infinito
e a outra os corpos particulares.
Mas toda esta distinção é fundada na suposição da coisa
em questão e na significação equívoca de palavras como 'lugar',
'tudo', 'partes', 'partículas', 'divisibilidade', etc. Assim, após ter
considerado como certo que a matéria fosse finita e dividida em
partes, que ela tinha necessidade de receber o movimento de
fora e que agisse em lugares vazios, esses filósofos fizeram este
círculo dentro de outro círculo ou imaginaram uma extensão que
penetra em outra extensão, como se os modos pudessem ser
penetrados pelo seu sujeito.
Mas todas essas suposições não sendo, como já tenho
dito, mais que consequências da suposição geral de que matéria
era desprovida de ação e tendo ao contrário provado que o
movimento lhe é essencial, não há razão para não se acreditar
que a matéria seja infinita e que, como o nada não tem
propriedades, a extensão que todo o mundo concorda em
180
reconhecer como infinita convém a esse sujeito que é infinito
nele mesmo e que é modificado ao infinito pelo seu movimento,
sua extensão e seus atributos inseparáveis.
Eu poderia parar por aqui, mas para colocar o assunto em
toda a sua extensão e fora de toda disputa, vou mostrar que
tudo aquilo que se atribui ao espaço e aos corpos como suas
diferenças essenciais, pertencem seguramente à matéria infinita.
Porque reconheço que essas propriedades têm uma existência
real e embora elas sejam opostas em aparência, são apenas
afeições do mesmo sujeito, considerado sob pontos de vista
diversos. Quando se concebe os corpos como finitos, móveis e
divisíveis, em repouso, pesados ou leves, de diferentes formas e
em situações variadas, nós separamos por abstração as
modificações do sujeito, ou, se acaso se preferir, separamos as
partes do todo e imaginamos os limites próprios de certas
porções da matéria que as separam e as distinguem de todo o
resto. É daí que vem originalmente a noção de vazio. Mas
quando consideramos o espaço infinito como impenetrável,
imóvel, indivisível, como o lugar que recebe todos os corpos
onde eles ficam contidos e se movem, ao passo que ele mesmo
é privado de forma, isento de mudança, neste caso nós
separamos por abstração
181
o sujeito infinito das modificações finitas, isto é, de todas as suas
partes.
Apliquemos agora esta doutrina a exemplos particulares.
Visto que nada pode ser acrescentado ao infinito e nem dele ser
retirado, o universo não pode aumentar ou diminuir, visto não
existir lugar fora dele em que se possa colocar o que se tenha
retirado dele e nem de onde se possa pegar o que se quiser
acrescentar. Consequentemente, ele é imutável e indivisível.
Assim é sem figura, pois que não tem limites. É imenso já que
nenhuma quantidade infinita, em qualquer frequência com que
se a repita, pode igualar ou medir sua extensão. É por isso que
quando dizemos que o espaço encerra tudo, falamos da matéria
infinita para distinguir o todo das partes que, entretanto, não
diferem em nada realmente do todo. Quando nós separamos por
abstração a extensão da matéria e das suas outras
propriedades, nós fazemos a mesma coisa do que quando nós
dizemos que o espaço é incorporal, visto que, nesse caso,
consideramos somente o que os geômetras consideram, ou
seja: pontos, linhas e superfícies. Quando dizemos que ele é
um, nós queremos designar que é infinito e indivisível, porque há
apenas um universo, embora haja incontáveis mundos. Quando
dizemos que ele é o lugar de todas as coisas nós indicamos que
ele
182
é o sujeito de suas próprias modificações, movimentos, figuras,
etc. Quando dizemos que é homogêneo queremos anunciar que
a matéria é sempre a mesma, por mais variadas que sejam as
suas modificações. Finalmente, quando dizemos que corpos
finitos somente podem ser a menos que não existam, nós
entendemos por isso sua existência relativa, visto que a sua
própria solidez ou sua maneira de ser relativamente aos outros
seres, é o que se chama de o seu lugar, abstração feita do
universo de onde são partes, e onde participam de uma maneira
finita e limitada do movimento, solidez e da extensão infinita,
porque a matéria infinita é espaço e o lugar real, assim como o
sujeito real de suas próprias modificações e de suas porções.
O que foi dito deve fazer sentir como a noção de um
espaço absoluto se formou. Ela veio em parte de suposições
gratuitas, tais como são aquelas de que a matéria é finita, que
ela é inerte e que ela pode ser dividida e em parte da suposição
que se fez da abstração da extensão, que é a propriedade mais
evidente da matéria, sem prestar atenção às suas outras
propriedades ou à conexão absoluta delas dentro do mesmo
sujeito, embora cada uma possa ser abstraída mentalmente das
outras, o que, em numerosas ocasiões, é de uma grande
utilidade para os geômetras. Mas não é necessário jamais
183
tomar essas abstrações por realidades e nem as fazer existir
fora do sujeito do qual mentalmente se as tenha separado, nem
as colocar num outro sujeito incerto ou desconhecido. A matéria
é com frequência considerada abstração feita do movimento, do
mesmo modo que o movimento é com frequência considerado
abstração feita da matéria, a extensão abstração feita do
movimento, da solidez, etc. Cada uma dessas propriedades
pode ser considerada em separado das outras, embora na
realidade o movimento da matéria dependa da solidez e da sua
extensão e embora esses atributos sejam inseparáveis um dos
outros. Mas aqueles que sustentam a existência de um espaço
infinito, após considerarem a matéria abstração feita da
extensão, distinguiram a extensão geral da extensão particular
da matéria de tal ou qual corpo, como se a última fosse qualquer
coisa acrescentada a primeira e, embora eles não pudessem
assinalar o sujeito da primeira extensão e nem dizer se era uma
substância não corporal e nem espiritual, ou se era uma nova
espécie de nada dotado, entretanto, das propriedades do ser.
Além disso, muitos deles quiseram passar a extensão
geral pelo próprio Ser supremo ou ao menos por uma ideia
incompleta da Divindade, como se pode ver no 'Tratado do
espaço real' do senhor. Ralphson, onde se constata, segundo as
autoridades que alega, não ser ele
184
o primeiro inventor desta noção e nem o único a sustentá-la hoje
em dia. Eu só duvido que a maior parte desses senhores
acredite firmemente na existência da Inteligência suprema e
quero caridosamente crer em tudo, mas me parece que, à força
de sutilezas, eles reduziram a nada ou ao menos fizeram do
universo ou da natureza o único Deus, do que não gostariam
definitivamente de concordar. Mas a bondade de suas intenções
deve lhes desculpar junto a pessoas equânimes e impedir que
se os acuse de ateísmo. Entretanto o erro deles foi percebido
pelos ateus, que, eles mesmos e outros se deram a zombar
como se pode ver nesses quatro versos de um poema, onde
após ter chicanado algumas outras noções da Divindade, eles
ridicularizam este espaço incorporal infinito com boa razão.
―Outros, é dito, de que a cabeça se faz de noções sublimes,
provam com sagacidade que o espaço é nada: Então está
provado o mesmo de ti‖. Essa gente, sem pensar, reencontrou a
verdade. Com efeito, a ideia de uma extensão que penetra outra
extensão pareceu ridícula a muita gente, aliás, muito afastadas
do ateísmo ou da irreligião. Eles poderiam perguntar onde reside
a inteligência, a razão, a sabedoria de um espaço extenso, se é
no todo ou em qualquer uma de suas partes. Quando eu falo de
185
partes é para me acomodar às ideias ordinárias, porque o infinito
não pode ter partes. Mas se, como um dos interlocutores dos
'Diálogos de Cícero', se pretendessem que o todo ou qualquer
das partes possui inteligência, além de não se poder concordar
com eles que a inteligência das partes pertence de alguma
forma à sua extensão, nós poderíamos ainda lhes opor com
outro interlocutor de Cícero, que pelo mesmo raciocínio o todo
deve ser um cortesão, um músico, um dançarino e um filósofo,
visto que muitas das partes o são. Mas isto são sofismas de
parte a parte, visto que é confundir os modos variáveis com as
propriedades essenciais ou os efeitos verdadeiros com causas
imaginárias, estranhas ou pouco proporcionais a esses efeitos.
Após ver que o movimento é essencial à matéria,
descobre-se que os argumentos daqueles que sustentam a
existência do espaço absoluto, são antes comparações e
similitudes do que argumentações, que não provam nada do que
aí querem conceber e que em geral são de petições de
princípios. Eu posso supor com eles que Deus dividiu toda a
matéria do universo em duas esferas iguais, que se estiverem a
certa distância uma da outra, se encontrará entre elas um
espaço ou um vazio que se pode medir, ou que se elas se
tocarem em um único ponto como os corpos
186
esféricos perfeitos devem fazer, haverá um espaço que não será
consistente com os outros pontos da sua circunferência. Mas
não é supor ao mesmo tempo a matéria finita e supor este
espaço que se pretende provar e, por alguma outra razão que eu
percebo, não é isto a simples consideração da gravidade? Eu
bem posso com o senhor Locke conceber o movimento de um
só corpo sem que outro lhe suceda imediatamente para pegar o
seu lugar, mas isto acontecerá em se fazendo abstração desse
corpo único ou em impedindo minha atenção de ter por objeto
aqueles que lhe sucedem realmente. Eu posso com ele
conceber dois corpos colocados a certa distância que se
aproximam um do outro sem deslocar nenhum outro corpo até
que eles venham se encontrar. Mas isto acontecerá em se
fazendo abstração de tudo o que eles deslocarem. Porque,
como o senhor Locke o diz muito bem ele mesmo, do que se
observa que uma coisa pode ser de tal modo não se segue que
ela exista nesse estado, sem o que encheríamos o mundo de
quimeras, de centauros e de monstros que jamais existiram. Mas
estou de acordo que por essas espécies de exemplos eu
entendo muito bem a ideia daqueles que sustentam a existência
do espaço ou do vazio que era absurdo de negar para os
cartesianos, assim como é imperdoável a eles disputarem contra
uma coisa de que confessam não ter ideia alguma.
187
O senhor Locke disse tudo o que se podia dizer a esse respeito
no seu 'Ensaio sobre o entendimento humano' e, sobretudo no
capítulo 13 do segundo livro, onde entre outras, ele se exprime
assim: ―Se o corpo não é suposto infinito, o que creio que
ninguém não afirmará, eu posso conceber à extremidade da
matéria um homem que poderá estender a mão para além do
seu corpo‖. Esse filósofo não pode ignorar que muita gente,
antes dele nascer, sustentou a infinidade da matéria e eu não
sou o único que a sustento no seu tempo. Mas, embora se
possam conceber por abstração esses limites imaginários,
contudo eu não posso encontrar uma boa razão para me
persuadir que a extensão que o senhor Locke reconhece ser
infinita, possa existir em algum lugar fora da matéria. Digo que
bem longe de se encontrar em tudo o que já se escreveu sobre
esse assunto alguma argumentação decisiva, ou capaz de ao
menos de balançar as minhas, eu vejo apenas suposições que
eu já destruí, sem falar das dificuldades insuperáveis que
resultam dessas extremidades fictícias, quando se trata de
examinar sua consistência e figura e de saber se qualquer coisa
pode se separar, o que vem dessas frações ou partes separadas
e uma infinidade de outros problemas inexplicáveis.
Posso agora, para contentar o senhor Locke, considerar
as partes divididas, porém eu nego que a continuidade da
matéria infinita possa ser
188
alguma vez rompida ou separada por algumas superfícies
distinguidas por espaços vazios intermediários. Porque, como já
disse, somente abstraímos o que nós chamamos de partes, só
considerando da extensão o que é necessário para o nosso caso
e distinguindo essas partes, não por divisões reais do todo, mas
pelas modificações da cor, da forma, do movimento, etc., do
mesmo modo que nós consideramos o calor do sol sem prestar
atenção à sua luz.
O senhor Locke diz ainda que aqueles que afirmam a
impossibilidade da existência do espaço sem matéria são não
somente forçados a fazer os corpos infinitos, mas devem negar
ainda que a Inteligência suprema tenha o poder de destruir
alguma parte da matéria. É certo que eles fazem a matéria
infinita, mas se nega o que ele acrescenta sobre a destruição de
suas partes, porque não se pode demonstrar que a Inteligência
suprema tenha revelado alguma vez que teve de aniquilar
alguma parte da matéria. Este não será mais um argumento por
um espaço real do que dizer que a Inteligência suprema tem o
poder de destruir porções da matéria, ou sustentar que o mundo
acabará em três dias, só porque se concorda e se concebe que
é possível ao Ser supremo destruir dentro de um tempo tão
curto.
Não vejo porque o senhor Locke diz no
189
mesmo lugar, que aqueles que sustentam a infinidade da
matéria devem ser restringidos de declarar a sua opinião. Eu
não sei o que se lucrará restringindo aqueles que sustentam a
existência de um espaço infinito ou de qualquer outro ser infinito,
porque a palavra se aplica a muitos outros sujeitos. O que
impediu Descartes de afirmar claramente que a matéria fosse
infinita e que o determinou a se contentar em dizê-la indefinida,
é que estava de um lado seguro de que a extensão era infinita,
enquanto que do outro dizia que a matéria era inerte em si
mesma e realmente divisível, o que fazia com que não pudesse
demonstrar a sua infinidade, embora se possa provar muito bem
pelos seus escritos que ele positivamente a afirmou.
Quanto às dificuldades que os teólogos possam opor
contra esse princípio, elas são de muito pouco peso e mostram
que há homens que têm muito pouco de filosofia e bastante de
zelo e entusiasmo. Por mim, não creio que os teólogos
moderados do nosso século tenham vontade de fazer reviver os
sofismas sutis de seus ignorantes antecessores. Mas peço que
seja lembrado que embora eu não seja da mesma opinião do
senhor Locke sobre o espaço, eu tenho toda a consideração que
devo por seu excelente trabalho sobre 'O entendimento
humano', e que julgo como o mais próprio para guiar o raciocínio
de maneira exata, conveniente e
190
inteligível em toda sorte de assuntos. Não é por afetação que me
declaro aqui contra o sentimento desse grande homem, mas,
sabendo o caso que se deve fazer da sua autoridade, acredito
dever separar os preconceitos que ele possa fazer nascer contra
a infinidade da matéria, contra o movimento que é de sua
essência ou contra todas as induções que se possa tirar desses
princípios.
Ouso então me lisonjear que tudo o que disse convencerá
que o movimento deve entrar na definição da matéria, assim
como a sua extensão e solidez. Se alguém me pedir a definição
do movimento em si mesmo, direi que nem eu e ninguém
podemos fornecê-la. Não é porque não o conheçamos o
suficiente para isso. Ao contrário, o conhecemos muito melhor
que muitas coisas que se podem definir. As ideias simples tais
como as do movimento, extensão, cor, som, etc., são evidentes
por elas mesmas, embora não se as possa definir. Mas as
palavras que designam as ideias complexas, isto é, um conjunto
de ideias evidentes considerado como uma única coisa são os
verdadeiros objetos da definição, porque os diferentes termos
que representam essas ideias, quando estão reunidos, mostram
a ligação, a possibilidade e a compreensão do todo. É assim que
todas as palavras do universo não poderiam explicar o que é o
azul e nem
191
dar uma ideia clara a quem não tenha nunca visto essa cor. Se a
gente supor que a mesma pessoa não tenha jamais visto o ouro,
embora conheça outros metais muito bem, ela estará em
condições de fazer uma ideia distinta, quando se lhe disser que
é um metal amarelo, pesado, maleável, fusível e determinável ao
fogo, etc. Assim, quando se define as palavras que designam
ideias simples, nós não devemos tomar essas palavras pelos
sujeitos das ideias, porque os termos sinônimos não explicam a
natureza de uma coisa. Eles só nos fazem explicar os sentidos
da palavra de uma maneira mais inteligível. É por isso que os
termos como 'passagem', 'translação' e 'aplicação sucessiva' são
apenas palavras diferentes para designar o movimento e não
são mais definições do que aquela quando Aristóteles diz que, "é
a ação de um ser que tem o poder de avançar desde que tenha
o poder". Mas todos os movimentos locais particulares podem
ser definidos pelas linhas que eles descrevem e pelas causas
que determinam o curso ou os graus de seus movimentos.
Pode-se dizer a mesma coisa da extensão geral da
matéria e das suas determinações particulares, da medida, da
figuras, etc. A solidez da matéria é igualmente uma ideia intuitiva
ou não definível. Mas eu não tomo aqui a solidez no sentido dos
geômetras, eu não a entendo por toda a quantidade alinhada
192
nas três dimensões. Mas a tomo no sentido do senhor Locke
que substituiu o termo positivo 'solidez' pelo termo negativo
'impenetrabilidade' para designar a resistência que se encontra
em todo corpo, no momento em que impede outro de se colocar
no lugar que ocupa, antes de tê-lo abandonado. É assim que
uma gota de água igualmente prensada por todos os lados é um
obstáculo invencível à reunião dos corpos mais fortes do
universo enquanto suas partes não forem afastadas. É assim
que um pedaço de madeira impede nossas mãos de se
juntarem, quaisquer que sejam os esforços que façamos para
tanto. A mesma coisa é também verdade para todos os corpos
macios ou fluidos, quanto para os corpos mais duros ou mais
firmes, mais pesados ou os mais leves e para o ar quanto para o
ouro e os diamantes, como observa muito bem o senhor Locke
que usa de tanta exatidão em tudo e que distingue a palavra
empregada para designar uma propriedade inseparável da
matéria de sua acepção comum, quando se serve da palavra
'sólido' no lugar da palavra 'duro', dentro de que sentido ele
designa a coesão das partes de todo corpo difícil de separar, ao
passo que, no sentido filosófico, é uma repleção ou uma
exclusão total de todos os outros corpos. E eis aí o sentido que
eu lhe concedo em todo esse escrito.
Não pretendo dizer que a matéria não tenha outras
propriedades essenciais além da
193
extensão, da solidez e da ação. Mas estou persuadido que, se
houver atenção conveniente nessas três propriedades, pode-se
explicar uma infinidade de fenômenos de uma maneira bem
mais clara do que se tem feito até o momento presente. Mas é
necessário esperar fazer somente algumas descobertas na
física, quando se requererá fazer abstração de uma dessas
propriedades, ou daquela que sozinha pode completar a
essência da matéria, porque é certo que dentro da matéria esses
atributos podem ser separados apenas mentalmente.
Eu nego, por exemplo, que a extensão esgote a ideia de
matéria, pois ela não contém as ideias de solidez e de
movimento. Pode ser bem verdade que a matéria seja extensa,
ainda que ela não seja unicamente extensa, mas ainda ativa e
sólida. Mas, visto que na consideração pura dessas ideias, uma
não supõe as outras e, embora cada uma delas tenha certos
modos que se concebe lhe pertencer como própria e
imediatamente, entretanto, elas estão ligadas na natureza de tal
modo, que uma não pode existir sem a outra e todas concorrem
necessariamente à produção desses modos que são próprios de
cada uma delas.
A extensão é o sujeito imediato de todas as divisões,
figuras e porções de matéria, mas é a ação que produz essas
mudanças e elas não poderiam ser distinguidas sem a solidez. A
ação é a causa imediata
194
de todos os movimentos locais, mudanças e de todas as
variedades que vemos na matéria. Mas a extensão é o sujeito e
a medida de suas distâncias. E é da solidez que depende a
resistência, a impulsão e a produção dos corpos e, entretanto, é
a ação que lhes produz dentro da extensão.
Assim a solidez, a extensão e a ação são três ideias
distintas sem serem três seres diferentes. São maneiras
diferentes de se considerar a mesma matéria.
Mas retornando disso ao assunto particular que estamos
tratando, distinguir-se-á facilmente agora a verdadeira força
motriz desta ação essencial à matéria e que a força comunicada
aos corpos particulares é alguma determinação ou direção da
ação geral. Porque, nesse sentido, é indubitável que nada pode
se mover, isto é, se determinar por si mesmo, até que seja
determinado por algum outro ser. Assim a matéria sendo ativa, a
direção dada a esta ação, em qualquer parte que seja,
continuará a ser para sempre dela própria, pois não pode haver
efeitos sem causa e, que por consequência, esta direção deverá
ser mudada por uma força superior e aquela por outra e assim
sucessivamente, uma não cessando de agir até que outra
comece, assim como uma forma não é jamais destruída na
195
matéria, a não ser para dar lugar à outra. Desse modo cada
movimento é sempre sucedido por outro movimento e jamais por
um repouso absoluto, do mesmo modo que em cada parte da
matéria a interrupção da figura será a interrupção de tudo, o que
é impossível,
Essas determinações do movimento nas partes da
matéria sólida e extensa são o que chamamos de fenômenos da
natureza, aos quais damos nomes e atribuímos aplicações,
perfeições e imperfeições, segundo a maneira que eles afetam
os nossos sentidos ou causam prazer ou dor ao nosso corpo e
contribuem à nossa conservação ou à nossa destruição.
Entretanto, não lhes damos sempre determinações tiradas de
suas causas reais ou das maneiras pelas quais elas se
produzem umas às outras, tais como a elasticidade, dureza,
moleza, fluidez, quantidade, figuras e as relações dos corpos
particulares. Ao contrário, com frequência não atribuímos várias
determinações do movimento a nenhuma causa em absoluto,
como nós fazemos nos movimentos espontâneos dos animais,
porque, mesmo quando esses movimentos são acompanhados
de pensamento, todavia, se são considerados como
movimentos, eles têm causas físicas. É assim quando um cão
corre atrás de uma lebre: O que acontece é que o objeto
196
exterior age com toda a força impulsiva ou atrativa sobre os
nervos, que são ordenados com os músculos, as juntas e as
outras partes, de maneira a produzir os diversos movimentos no
mecanismo animal. Qualquer um que tem ideia da ação dos
corpos uns sobre os outros por seu contato imediato, ou pelas
moléculas imperceptíveis que deles procedem incessantemente
e que a esse conhecimento junta aquele das leis da mecânica,
da hidrostática e da anatomia, estará convencido que todos os
movimentos pelos quais o homem se assenta, fica de pé, se
deita, se levanta, anda e corre, etc., têm por princípio
determinações próprias, materiais e proporcionais aos seus
efeitos.
O senhor Newton, no prefácio dos seus 'Princípios
matemáticos', após ter falado da gravidade, da elasticidade, da
resistência, da impulsão, da atração e da maneira como ele
explica o sistema do mundo por essas noções, diz "Eu bem
desejaria que se pudesse com a ajuda dos princípios da
mecânica, explicar igualmente os outros fenômenos da natureza,
porque muitas coisas me fazem suspeitar que elas possam
depender em muito de algumas forças que, colocadas em ação
por causas ainda desconhecidas, fazem com que os corpos
sejam impelidos uns contra os outros e se unam para formar
figuras regulares ou se distanciem e
197
fujam uns dos outros. Mas sendo essas forças desconhecidas,
os filósofos tentaram em vão explicar a natureza". Nenhuma
pessoa no mundo está na condição desse grande homem, de
descobrir a natureza dessas forças e figuras particulares e de
reduzi-las a um sistema. Quanto à força geral ou à força motriz
de toda a matéria, ouso me lisonjear de haver neste escrito
contribuído a lhe fazer conhecida.
Não se pode dar nenhuma razão porque a Inteligência
suprema não teria dado a atividade à matéria do mesmo modo
que deu a extensão. Uma das duas propriedades não é mais
impossível que a outra, Não é preciso necessariamente que esta
Inteligência suprema dirija sem cessar todos os movimentos?
Pode-se de outra maneira dar a razão da formação das plantas
e dos animais que pela extensão da matéria? O homem está em
estado de poder provar, sem a potência desta Inteligência
suprema, que a ação ou a reação dos corpos e de todas as
moléculas da matéria umas sobre as outras tenha alguma vez
podido produzir o mecanismo admirável dessas plantas e
animais? Todos os conhecimentos profundos da mecânica não
servirão para nada. Todos os encontros fortuitos dos átomos,
todos os golpes do acaso que se possam imaginar não podem
mais dar às partes do universo a ordem que nós vemos nele,
198
que os caracteres de imprensa jogados confusamente
cem mil milhões de vezes não produzirão poemas como o
'Eneida' de Virgílio ou como a 'Ilíada' de Homero.
A respeito da infinidade da matéria, ela faz somente
excluir, como fazem todas as pessoas sensatas, um Deus
extenso e corporal, mas não uma Inteligência suprema e
imaterial.
Um homem isento de todos os preconceitos deve estar
convencido de todas essas verdades e por consequência, pode
viver com tranquilidade sem outro embaraço que o cuidado de
conservar a sua saúde e cultivar a razão. É a ocupação mais
agradável que ele pode ter durante o curso da sua vida. Ele se
aprova a si mesmo comparando a tranquilidade interior que goza
com as inquietudes, perturbações e o medo que atormentam os
outros e aos quais, segundo eles mesmos, a morte não deverá
colocar fim. Ele se vê pelo uso da sua razão tranquilo contra os
falsos fantasmas e as quimeras que infestam sem descanso a
maior parte dos mortais. Contente de que lhe é permitido
conhecer e das descobertas que faz a cada dia, ele não se crê
interessado em sondar as profundezas impenetráveis. Não é
como um animal estúpido arrastado por uma autoridade
superior. Contente e livre de sua sorte, aguarda sua morte sem
tremer
199
como um fim inevitável que o Autor da natureza fixou a todos os
seres. Esta morte não pode amedrontar todo homem que sabe
que a sua sorte está nas mãos de uma Inteligência infinitamente
perfeita, de quem a bondade, a sabedoria e a justiça não podem
ser misturadas com alguma imperfeição e nem jamais se
desmentirem.
Qualidades do verdadeiro filósofo.
O verdadeiro filósofo é uma máquina humana como
qualquer outro homem, mas é uma máquina que por sua
constituição mecânica reflete sobre os seus movimentos. Os
outros homens são determinados a agir sem sentir e sem
conhecer as causas que os fazem mover, sem mesmo imaginar
que elas existam.
O filósofo ao contrário desenreda suas causas tanto
quanto ele é em si e mesmo e com frequência as prevê e se
abandona a elas com confiança. É um relógio que se monta por
assim dizer, algumas vezes por si mesmo. Desse modo evita os
objetos que podem lhe causar paixões que não convêm ao seu
bem estar e nem a um ser razoável e procura aqueles que
podem provocar nele as afeições convenientes ao estado onde
ele se encontra.
A razão é para o filósofo o que a graça é para o cristão.
No sistema
200
de Santo Agostinho a graça determina o cristão a agir
voluntariamente. A razão determina o filósofo sem lhe suprimir o
gosto voluntário.
Os outros homens são levados por suas paixões sem que
as suas ações sejam precedidas pela reflexão. São homens que
andam nas trevas, ao passo que o filósofo, mesmo em suas
próprias paixões, só age depois da reflexão. Ela caminha na
noite, mas é precedido de um archote.
O filósofo forma seus princípios sobre uma infinidade de
observações particulares, enquanto o povo adota o princípio
sem pensar nas observações que o produziram. Ele acredita que
a máxima existe, por assim dizer, por ela mesma, mas o filósofo
forma a máxima a partir de sua fonte. Ele examina a origem, ele
conhece valor dela e só faz dela o uso que lhe convém.
Deste conhecimento que os princípios só nascem das
observações particulares, o filósofo, concebendo a estima pela
ciência dos fatos, ama se instruir dos detalhes e de tudo o que
não se advinha. Assim ele considera como uma máxima contra o
progresso das luzes do espírito se limitar à simples meditação e
a crer que o homem apenas tira a verdade do seu próprio
âmago.
Certos metafísicos dizem, evitai as impressões dos
sentidos, deixai aos historiadores o
201
conhecimento dos fatos históricos e aos gramáticos os
linguísticos.
Nós filósofos, ao contrário, estamos persuadidos que
todos os nossos conhecimentos nos vêm dos sentidos, que
somos feitos apenas de regras oriundas da uniformidade das
impressões sensíveis e que nós estamos no término das luzes
quando os nossos sentidos não são suficientemente sutis e nem
suficientemente fortes para nos abastecer. Convencidos que a
origem dos nossos conhecimentos está inteiramente fora de nós,
eles nos estimulam a fazer uma ampla provisão de ideias em
nos confiando às impressões exteriores dos objetos e em nos
tornando discípulos que consultam e escutam e não em mestres
que decidem e que impõem silêncio. Querem que estudemos a
impressão precisa que cada objeto faz em nós e que nós
evitemos confundi-la com aquela que outro objeto tiver causado.
Daí a certeza e os limites dos conhecimentos humanos.
Certeza quando se sente que se recebeu de fora a impressão
própria e precisa que cada julgamento supõe, porque todo
julgamento discerne e sente a impressão exterior que lhe é
particular. E os limites são quando não se sabe receber
impressões, seja pela natureza do objeto ou pela fraqueza dos
nossos órgãos. Aumentai, se possível, a potência dos órgãos e
aumentareis os
202
conhecimentos. Foi apenas depois da descoberta dos
telescópios e dos microscópios que se fizeram tantos progressos
na astronomia e na física.
É também para aumentar o número dos nossos
conhecimentos e das nossas ideias que nós filósofos estudamos
os homens de outros tempos e os de hoje em dia.
Submetei-vos como as abelhas do mundo passado e do
mundo presente, nos dizem eles. Retornai logo à vossa colméia
para produzir o vosso mel.
O filósofo se aplica ao conhecimento do universo e de si
próprio, mas tal como o olho não pode se observar, o filósofo
sabe que ele também não pode se conhecer perfeitamente, visto
que não pode receber nenhuma impressão exterior de dentro de
si próprio e que apenas conhecemos por impressões
semelhantes.
Este pensamento não lhe aflige porque ele se toma tal
como é e não tal como parece à imaginação que possa ser.
Ademais, esta ignorância não é para ele razão de julgar-se
composto de duas substâncias opostas. Assim, como não se
conhece perfeitamente, ele diz que não conhece como pensa,
mas como sente que pensa, Reconhece que sua substância é
capaz de pensar da mesma
203
maneira que ela é capaz de escutar e ver.
O pensamento é para o homem um sentido como o da
audição e da vista, dependendo igualmente de uma constituição
orgânica. Só o ar é capaz de produzir os sons, só o fogo pode
excitar o calor, só os olhos podem ver, só os ouvidos podem
escutar e só a substância do cérebro é suscetível de
pensamentos.
Se os homens têm tanto trabalho para unir a ideia do
pensamento com a ideia da extensão é que nunca viram a
extensão pensar. Eles são neste ponto como um cego de
nascimento é a respeito das cores e um surdo de nascença a
respeito dos sons. Eles não poderão unir essas ideias com a
extensão que eles tateiam porque nunca viram essa união. A
verdade não é para o filósofo uma dona que corrompe a sua
imaginação e que crê se encontrar em toda parte. Ele se
contenta em poder se desembaraçar onde ele pode a perceber.
Não a confunde com a verossimilhança. Toma por verdade o
que é verdade, por falso o que é falso, por duvidoso o que é
duvidoso e por verossímil o que é verossímil. Ele faz mais e está
aqui uma grande perfeição do filósofo: é que logo que não tenha
o motivo próprio para o julgamento, ele o faz permanecer
indeterminado.
Cada julgamento, como já se observou, supõe um motivo
exterior que lhe deva excitar.
204
O filósofo sente qual deve ser o motivo próprio do julgamento
que ele deve usar. Se acaso falta o motivo, ele não julga,
aguarda. E se consola quando vê que aguardou inutilmente.
O mundo está cheio de pessoas de espírito e de muito
espírito que julgam sempre, sempre advinham, porque é de
adivinhar do que de julgar sem sentir que se tem o motivo
próprio do julgamento. Ignoram o alcance do espírito humano,
acreditam que ele pode conhecer tudo. Assim eles encontram a
humilhação de não proferir julgamentos e imaginam que o
espírito consiste em julgar. O filósofo ao contrário, está contente
consigo mesmo quando suspende a faculdade de se determinar,
como se estivesse determinado antes de haver sentido o motivo
próprio da decisão. Assim ele julga e fala menos, mas julga mais
sadiamente e fala melhor. Não evita os traços vivos que se
apresentam naturalmente ao espírito por uma pronta montagem
de ideias, que com frequência a gente se admira de tê-las unido.
É nesta pronta ligação que consiste o que comumente se chama
espírito. Mas é também o que ele menos olha. Ele prefere a
esse brilho o cuidado de distinguir bem as ideias e de conhecer
o justo alcance e a ligação precisa, de evitar se deixar enganar
ao levar longe demais as relações particulares que as ideias
205
têm entre elas. É este discernimento que consiste o que se
chama julgamento e acuidade de espírito.
A esta acuidade se junta ainda à flexibilidade e a clareza.
O filósofo não está a tal ponto ligado a um sistema que não sinta
toda a força das objeções. A maior parte dos homens está de tal
sorte entregue às suas opiniões que não se dá ao trabalho de
considerar as opiniões dos outros.
O filósofo compreende o sentimento que rejeita com o
mesmo alcance e a mesma clareza que entende aquele que ele
adota.
O espírito filosófico é então um espírito de observação e
de acuidade que relaciona tudo aos seus verdadeiros princípios.
Mas não é só o espírito que o filósofo cultiva. Ele leva longe sua
atenção e seus cuidados.
O homem não é um monstro que deve apenas viver nos
abismos do mar ou no fundo de uma floresta. As suas
necessidades de vida lhe impõem o comércio necessário com os
outros e, em qualquer estado em que ele se encontre, suas
necessidades e seu bem estar o levam a viver em sociedade.
Assim a razão exige que ele conheça, estude as
qualidades sociais e que trabalhe para adquiri-las. É
impressionante como os homens se apegam tão pouco a tudo o
que é
206
prático e que se afogueiem tão vivamente com especulações
inúteis. Olhai as desordens que tantas diferenças heréticas têm
causado. Elas versam sempre sobre teorias. Algumas vezes se
trata do número de pessoas da Trindade. Outras vezes de suas
emanações. Outras do número de sacramentos e de suas
virtudes. E outras da natureza da graça. Quantas guerras,
quantas discórdias por quimeras!
Os filósofos estão sujeitos às mesmas quimeras. Quantas
disputas nas escolas! Quantos livros sobre questões sem
importância! Uma palavra as decidirá ou fará ver que são
indissolúveis.
Uma seita famosa hoje em dia, reprova nas pessoas de
erudição a negligência do estudo do seu próprio espírito, por
carregar sua memória de fatos e de pesquisas sobre a
antiguidade. E nós reprovamos uns e outros de negligenciar
tornarem-se mais amáveis e de não entrarem de maneira
alguma na sociedade.
Nosso filósofo não se crê exilado no mundo. Não se crê
estar num país inimigo. Ele quer gozar com sábia economia os
bens que a natureza lhe oferece. Quer encontrar prazer com os
outros e para encontrar ele se esforça. Assim procura a
concordância com aqueles com que a sorte ou a sua própria
escolha lhe faz viver e procura ao mesmo tempo o que lhe
convém. É um
207
homem que quer agradar e se tornar útil.
A maior parte das pessoas importantes a quem as
dissipações não deixam suficiente tempo para meditar é cruel
com aqueles que eles não acreditam serem seus iguais.
Os filósofos comuns que meditam muito, ou melhor, que
meditam mal, o fazem com todas as pessoas. Eles fogem dos
homens e todos os homens os evitam.
Mas o nosso filósofo que se reparte entre o retiro e trato
social dos homens é pleno de humanidade. É o carreteiro de
Terêncio que sente que é homem e que só a humanidade
interessa à boa ou má fortuna do seu próximo.
Será inútil observar aqui o quanto o filósofo é orgulhoso
de tudo o que se denomina honra e probidade. Eis aí o seu
verdadeiro assunto.
A sociedade civil é por assim dizer a única divindade que
ele reconhece enquanto está na terra. Ele a adula com sua
probidade, com uma atenção precisa em seus deveres e com
um desejo sincero de não ser um membro inútil e incômodo.
O sentimento de probidade entra tanto na constituição
mecânica do filósofo como nas luzes do espírito. Quanto mais
esclarecido, mais encontraremos nele a probidade. Ao contrário,
onde reina o fanatismo e a superstição, reinam as paixões, a
violência, etc. 'É Madalena que ama o mundo e Madalena que
ama a Deus;
208
é sempre Madalena que ama com violência".
Ora, o que faz o homem honesto não é o agir pelo amor
ou pelo ódio, pela esperança ou pelo medo, é o agir pelo espírito
de ordem ou de razão. Tal é o temperamento do filósofo, Ora,
não há muito com que contar com as virtudes do temperamento.
Confiai vosso vinho mais àquele que não o ama naturalmente do
que àquele que toma todos os dias novas resoluções de não
mais se embriagar.
O devoto é um homem honesto apenas pela paixão. Ora,
as paixões não asseguram nada. Além do que o devoto, eu me
atrevo dizer, não tem o hábito de ser honesto em relação a
Deus, porque ele tem o hábito de não seguir exatamente sua
regra.
A religião é tão pouco proporcional à humanidade que o
mais justo comete infidelidades a Deus sete vezes por dia, isto
é, várias vezes. As frequentes confissões dos mais piedosos nos
fazem vez dentro dos seus corações. Segundo a maneira deles
pensarem, uma vicissitude contínua entre o bem e o mal. Isso é
suficiente para se crer culpado por existir.
Este combate eterno em que o homem sucumbe tão
frequentemente forma nele o hábito de imolar a virtude ao vício.
Ele se familiariza em seguir sua tendência e a praticar as faltas
na esperança de se reabilitar pelo arrependimento. Quando
209
se é tão frequentemente infiel a Deus, a gente, insensivelmente,
se dispõe a ser também aos homens.
Ademais, o presente tem sempre mais força sobre o
espírito do homem que o futuro, que o amor próprio faz sempre
olhar de um ponto de vista muito distante. O supersticioso se
deleita sempre em remediar suas faltas, de evitar as penas e de
merecer as recompensas. Também a experiência faz ver de
maneira suficiente que o freio da religião é bem fraco, malgrado
a quantidade de sermões e práticas religiosas. O povo é sempre
o mesmo. A natureza é mais forte que as quimeras. E parece
que ela é zelosa de seus direitos. Ela se retira com frequência
das cadeias onde a cega superstição a quer tolamente prender.
Só o filósofo que sabe o que fazer com ela. Comanda-a pela
razão.
Examinem todos contra os quais a justiça humana é
obrigada a se servir da sua espada. Vocês encontrarão ou
temperamentos ardentes ou espíritos pouco esclarecidos, mas
sempre supersticiosos ou ignorantes. As paixões tranquilas do
filósofo podem muito bem o levar à volúpia, mas jamais ao
crime. Sua razão cultivada o guia e não o conduz jamais à
desordem.
A superstição faz sentir somente de maneira fraca quanto
importa aos homens em relação ao seu interesse presente,
seguir as leis da sociedade. Ela condena mesmo aqueles que
não as
210
seguem por esse mesmo motivo, que ela chama com desprezo
de motivo humano. O ilusório é para ela bem mais perfeito que o
natural. Assim suas exortações só operam como deve operar
uma quimera. Elas atormentam, elas apavoram, mas, quando a
vivacidade das imagens que elas produzem diminui, quando o
fogo passageiro das imagens é extinto, o homem permanece
sem luz, abandonado às fraquezas do seu temperamento.
Nosso sábio, não temendo nada após a morte, parece
perder um motivo a mais de ser um homem honesto durante a
vida. Mas ele ganha aí em consistência, por assim dizer, e de
vivacidade no motivo que o faz agir, motivo tanto mais forte
quanto mais for puramente humano e natural. O motivo é a
própria satisfação que ele encontra de estar contente consigo
mesmo e seguindo as regras da probidade. Motivo que o
supersticioso só tem imperfeitamente, porque tudo o que há de
bom nele só é imaginário. A esse motivo se reporta ainda outro
motivo bem forte. É o próprio interesse do sábio; um interesse
presente e real.
Separai por um momento o filósofo do homem de
sociedade. Que lhe resta? A sociedade civil, seu único amparo
aqui em baixo, o abandona. Eis ele privado das mais doces
satisfações da vida. Eis ele banido sem retorno do
211
comércio com pessoas de bem. Assim lhe importa bem mais que
ao resto dos homens, dispor todos os seus esforços para só
produzir efeitos conformes à ideia de homem de sociedade. Não
acrediteis que porque ninguém tem os olhos nele, ele se
abandonará a uma ação contrária à probidade. Não, esta ação
não é conforme a disposição mecânica do sábio. Ele é parecido,
por assim dizer, com o fermento da ordem e da regra. É repleto
de ideias do bem da sociedade civil. Conhece seus princípios
bem melhor que os outros homens. O crime acharia nele muita
oposição, haveria muitas ideias naturais e muitas ideias
adquiridas a destruir. Sua faculdade de agir é por assim dizer,
como uma corda de instrumento musical montada num
determinado tom. Ela não será capaz de produzir um som
diferente. Ele teme sair do tom, de não estar em concordância
consigo mesmo.
Ademais, em todas as ações que os homens praticam,
eles só procuram a sua própria satisfação atual. É o bem, ou
melhor, o atrativo presente, segundo a disposição mecânica em
que se encontram que os fazem agir. Ou porque quereis vós que
em vista do filósofo não esperar castigos e nem recompensas
depois dessa vida, deixando a Providência agir, ele deve
encontrar um atrativo presente que o leve a matar ou a vos
enganar? Não está ele, ao contrário, mais disposto
212
pelas suas reflexões, a encontrar mais atrativos e prazer de viver
convosco, a atrair vossa confiança e vossa estima e a saldar
seus deveres de amizade e de reconhecimento? Esses
sentimentos não estão no íntimo do homem independentemente
de todas as crenças sobre o futuro? A ideia do homem avesso à
sociedade é tão oposta à ideia do filósofo quanto à ideia de
estúpido. E a experiência faz ver todos os dias que quanto mais
se tenha de razão e de luz, mais se é bom, sábio e apropriado
para o comércio da vida.
Entrarei voluntariamente em mais um importante detalhe.
Sente-se bastante quanto a república deve tirar mais utilidade
daqueles que, elevados aos grandes cargos, estão cheios de
ideias de ordem e de bem público e de tudo o que se denomina
de humanidade. É preciso desejar que se exclua de lá todos
aqueles que por sua educação estão cheios de outros
sentimentos.
O verdadeiro filósofo é então um homem honesto que age
em tudo pela razão e que junta, a um espírito de reflexão e de
exatidão, os hábitos morais e as qualidades sociais.
O verdadeiro filósofo sente que é alguma coisa existente.
Ora, essa alguma coisa que ele sente, só pode saber através da
inteligência, pois sem ela, nada se pode conceber. Esta
inteligência é então a única necessária e
213
tudo o que não é ela, lhe é contingente. É então a primeira
causa e a única fonte de tudo o que existe. Esta inteligência não
pode ter tido um começo, pelo que então é eterna e infinita.
Como Inteligência tem necessidade somente de si mesma para
existir e é certamente a sua própria causa. Já que é a sua
própria causa e que nada pode existir sem ela, ela é também a
causa de tudo o que existe, porque é da essência do efeito
haver uma causa. Por consequência a Inteligência é a causa
necessária, tanto de si como de tudo o que existe ou que pode
existir.
O filósofo não pode duvidar que a substância inteligente
não seja determinada, visto que ela é a causa geral dela mesma
e de tudo o que existe. Ele não pode duvidar que esta causa
inteligente não seja livre, já que ela é a própria causa de existir e
de agir.
O filósofo denomina de contingente o que pode ser e não
ser, em cujo sentido é evidente que a substância inteligente e
suas ações não podem ser extensas, porque sua natureza e
suas consequências são igualmente necessárias e
determinadas.
O filósofo chama de necessário tudo que é determinado e,
nesse sentido, a substância inteligente é necessária, sendo
determinada por ela mesma. E os seres particulares são
também
214
necessários, embora determinados por suas causas. Mas há
outra espécie de necessidade que é aquela da natureza, como é
a caso da substância cuja existência é necessária em
decorrência de sua própria definição e, que por consequência,
não convém a outros seres particulares que podem ser
concebidos como não existentes.
Há igualmente outra espécie de determinação que
consiste, dentro dos limites prescritos à existência dos seres
particulares, em extensão, conformação dos órgãos, percepções
ou em conhecimentos. Mas esta espécie de determinação
limitada é oposta à ideia geral e se restringe aos indivíduos.
Isto colocado, o filósofo conclui que a ação da substância
inteligente é eterna, livre, infinita e necessária como a sua
natureza porque, de outro modo, a sua ação não dependeria
dela. Ela teria outra causa que não ela mesma, contra a
definição que o filósofo concebe como sua própria causa de
existir e de agir.
E igualmente de lá se segue que ela é toda poderosa, isto
é, que pode fazer tudo o que é possível, o que não é permitido
aos entes limitados ou a um entendimento finito. Dizendo em
uma linguagem mais ampla, ela pode fazer tudo o que possa ser
consequência de seus atributos infinitos. Ora, da infinidade dos
atributos segue a infinidade das consequências.
215
Portanto, a substância inteligente, ou o ser absoluto, é infinito
em sua ação e consequentemente onipotente.
A esta enumeração dos atributos da substância
inteligente, mais especificamente àquela que o filósofo concebe
sob o nome de causa absoluta e onipotente, não é difícil de
reconhecer o Ser supremo que o filósofo concebe como Ser
absolutamente infinito. Substância dotada de uma infinidade de
atributos ou mais reconhecida pela infinidade de propriedades,
das quais cada uma exprime infinitamente sua essência eterna e
infinita.
F I M
216
D I S C U R S O
ENTRE UM DEÍSTA E UM ATEU.
O ateu.
O nosso debate se reduz em saber se a natureza eterna
age com sabedoria e desígnio ou se ela toma todas as espécies
de formas por uma cega necessidade. Não nos ofusquemos com
os preconceitos vulgares. Um filósofo só deve crer logo que é
forçado por uma evidência completa. Eu somente raciocino
sobre o que eu vejo e só vejo na natureza toda uma matéria
imensa e uma força infinita. Esta matéria agente é eterna. Ora,
em um tempo infinito uma força toda poderosa deve dar
necessariamente todas as espécies de formas a uma matéria
imensa. Ela tem tido outras espécies diferentes das que nós
vemos hoje em dia e ela ainda terá novas no futuro. Tudo
mudou, tudo muda e tudo mudará. Eis aí o círculo eterno no qual
rolam os átomos.
O deísta.
Aí está um sofisma e não uma prova. Você só vê,
segundo você próprio diz, em toda a natureza uma força infinita
e uma matéria imensa. Eu concordo, mas, seguir-se daí que a
força infinita seja uma propriedade da matéria? A matéria é
eterna, acrescenta você, isso pode ser porque a força infinita é
sempre operante, ela tem podido
217
produzir o tempo todo, mas disso você conclui que ela seja a
única substância existente? Eu concordarei ainda que a força
toda poderosa possa dar num tempo infinito, todas as
variedades de formas à matéria imensa, mas é isso uma prova
de que essa força age por uma necessidade cega e sem
intenção? Admito seus princípios, mas negarei, entretanto, suas
consequências que me parecem absolutamente falsas. E eis
aqui a razão.
A ideia que nós temos da matéria não contêm a ideia de
força. Ela não cessa de ser matéria quando está em perfeito
repouso e não se transforma em movimento logo que perde
esse repouso. Disso eu concluo que não é ativa por ela mesma
e, consequentemente, que a força infinita não é uma de suas
propriedades.
Além disso, percebo em mim e em vários seres que me
rodeiam um princípio comparador que sente, raciocina e julga.
Ora, é um absurdo supor que uma matéria, sem sentimento e
sem pensamento, possa sentir e tornar-se inteligente em
mudando de lugar ou de figura. Não há nenhuma ligação entre
essas ideias. É verdade que a vivacidade dos nossos
sentimentos depende frequentemente do movimento dos nossos
humores, isso prova que o espírito e o corpo podem estar
unidos, mas de modo algum que sejam um. Daí eu concluo que
existe na natureza outra substância além da matéria
218
e que, por consequência, deve haver uma Inteligência soberana
extremamente superior à minha alma, à sua e a de todos os
outros homens.
Para saber se há tal Inteligência eu percorro todas as
maravilhas do universo. Observo a constância e a regularidade
das suas leis, a fecundidade e a variedade de suas produções, a
ligação e a conveniência das suas partes, a conformação dos
animais, a estrutura das plantas, a ordem dos elementos e a
revolução dos astros. Então, não posso mais duvidar que tudo
seja efeito de um desígnio, de uma arte e de uma sabedoria
suprema. Disso eu concluo que a força infinita que você
reconhece na natureza é uma Inteligência soberana e
onipotente.
Um olhar superficial nesses prodígios pode deixar o
espírito na hesitação, mas logo que se entra no santuário da
natureza, logo que se estudam a fundo seus segredos, não
podemos vacilar. Eu não vejo como os ateus podem resistir à
força dessas provas.
Após lhe ter exposto as razões que me fazem crer, peço-
lhe que me apresente as razões que lhe possam fazer duvidar.
O ateu.
Um ser infinitamente sábio e poderoso deve ter toda sorte
de perfeições. Sua bondade e justiça devem igualar sua
sabedoria e potência. Entretanto, o universo está cheio de
imperfeições e
219
vícios. Eu vejo em toda parte seres infelizes e maldosos. Ora,
não posso conceber como os sofrimentos e os crimes podem
começar ou subsistir sob o império de um Ser soberanamente
bom, sábio e potente. A ideia de uma causa infinitamente
perfeita me parece incompatível com seres tão contrários à sua
natureza produtora. Eis a razão das minhas dúvidas.
O deísta.
Quê! Negará você o que vê claramente por que não vê
mais longe? A menor luz nos leva a crença, mas a maior
obscuridade não é razão para a negação. Nesse crepúsculo da
vida humana, as luzes do espírito são bastante fracas para nos
mostrar as primeiras verdades com perfeita clareza. Só se as faz
entrever de longe e por um pequeno e ocasional raio de luz que
é suficiente para nos conduzir. E é uma evidência que dissipa
todas as nuvens. Você rejeitará as provas mais convincentes de
uma Inteligência soberana porque você não vê as razões
secretas de sua conduta? Você nega a sabedoria eterna porque
não concebe como o mal pode subsistir sob o seu império. Isto
lá é raciocinar? Uma coisa não existe porque você não a vê. Eis
a que se reduzem todas as suas dificuldades.
O desejo de tudo penetrar e de tudo explicar, de tudo
ajustar às nossas ideias imperfeitas é
220
de longe a mais perigosa doença do espírito humano. O mais
sublime esforço da nossa razão é de se calar diante da razão
soberana. Deixemos à Inteligência suprema o cuidado de
justificar um dia os caminhos incompreensíveis da sua
providência. Nosso orgulho e nossa impaciência fazem com que
não queiramos esperar esse desenlace. Nós queremos
antecipar a luz e nós a perdemos de vista.
A verdadeira felicidade sem a ideia de uma Inteligência
onipotente é uma contradição. O homem, longe de poder
procurar por si mesmo a sua própria felicidade, só pode ser
miserável, imperfeito, fraco e limitado, agitado por mil desejos
bem acima de seu poder. Como se poderia lisonjear-se de ser
feliz sem o socorro de um Ser infinitamente sábio para aclarar o
nosso espírito, todo poderoso para as nossas fraquezas e
infinitamente perfeito para suprir às nossas imperfeições! Se tal
Ser não existisse, o homem seria o mais infeliz de todos os
seres que existem sobre a terra. Porque ele leva consigo as
sementes da sua miséria, o que não acontece com os outros
animais.
F I M
221
O
VERDADEIRO SIGNIFICADO
DO
SISTEMA DA NATUREZA
TRADUZIDO DO FRANCÊS
DE
HELVÉTIUS
— 1852 —
http://books.google.com
222
CONTEÚDOS
Prefácio do Tradutor. Prefácio Carlile Introdução capítulo I. Da natureza Capítulo II. Do movimento e sua origem Capítulo III. Da matéria e seu movimento. Capítulo IV. Leis do movimento comuns a todos os seres ─ atração e repulsão ─ necessidade. Capítulo V. Da ordem e desordem ─ inteligência e acaso. Capítulo VI. Do homem ─ suas distinções física e moral ─ sua origem. Capítulo VII. Da alma e sua espiritualidade Capítulo VIIII. Das faculdades intelectuais ─ todas derivadas da sensação. Capítulo IX. Diversidade das faculdades intelectuais ─ elas dependem, como as qualidades morais, das causas físicas. ─ princípios naturais da sociedade, morais e políticos. Capítulo X. A mente não tira ideias de si própria ─ nós não temos ideias inatas. Capítulo XI. Do sistema da liberdade do homem. Capítulo XII. Exame das opiniões que defendem que o sistema da necessidade é perigoso. Capítulo XIIII. Da imortalidade da alma ─ o dogma do futuro estado ─ o medo da morte. Capítulo XIV. Da educação ─ moralidade e leis suficientes para restringir o homem ─ desejo de imortalidade ─ suicídio. Capítulo XV. Do interesse do homem, ou das ideias que ele
223
CONTEÚDOS
forma da felicidade ─ sem virtude ele não pode ser feliz. Capítulo XVI. As opiniões errôneas concebidas pelo homem sobre a felicidade são a verdadeira causa da sua miséria Capítulo XVII. Origem das nossas ideias a respeito da divindade. Capítulo XVIIII. Da mitologia e teologia. Capítulo XIX. Opiniões teológicas absurdas e extraordinárias. Capítulo XX. Exame das provas do Dr. Clarke sobre a existência de uma divindade. Capítulo XXI. Exame das provas da existência de uma divindade. Capítulo XXII. Do deísmo, otimismo e causas finais. Capítulo XXIII. Exame das supostas vantagens que resultam para o homem das noções de uma divindade, ou sua influência sobre os princípios morais, ciência política, o bem estar das nações e dos indivíduos. Capítulo XXIV. As opiniões religiosas não podem ser o fundamento da moralidade. ― paralelo entre a religião e a moralidade natural. ― a religião impede o progresso da mente. Capítulo XXV. Das ideias que são dadas da divindade, o homem não pode concluir nada ― seu absurdo e inutilidade. Capítulo XXVI. Apologia para os sentimentos contidos nesta obra. Capítulo XXVII. O ateísmo é compatível com uma moralidade saudável? Capítulo XXVIII. Os motivos que levam ao ateísmo ― pode este sistema ser perigoso? Capítulo XXIX. Resumo do sistema da natureza.
224
PREFÁCIO DO TRADUTOR.
Numa época de alarme como o presente, quando
princípios subversivos à nossa existência como nação são
publicamente sustentados e engenhosamente publicados, torna-
se dever de todo bom homem apontar esta perigosa tendência
para seus camaradas cidadãos, especialmente quando as mais
insidiosas astúcias são empregadas para a sua propagação.
Pela energia dos nossos tribunais e o ativo zelo dos mais
prejudicados, mostrados ultimamente com vigor, talvez além da
lei, os ataques abertos dos sediciosos contra nossa feliz
constituição têm sido completamente frustrados. Mas a vigilância
não deve cessar com o desaparecimento do perigo. Embora
aparentemente derrotados, os nossos inimigos não têm ainda
abandonado suas hostis intenções. Eles estão ainda ativamente
ocupados e esperam apenas uma oportunidade para
continuarem em frente com aquela força adicional que sua
astúcia e intrigas podem ter obtido para sua causa.
O principal meio que eles agora usam para levar os seus
sórdidos esquemas a efeito é a extirpação da nossa mais santa
fé. Um expediente que executam diligentemente com todos os
talentos para o mal nos quais são tão famosos. Eles sabem ser
o altar o grande baluarte do trono. E a erradicação da religião
das mentes de seus compatriotas, eles consideram como a
garantia do sucesso de suas tentativas contra a constituição.
Portanto, a imprensa extravasa publicações e o teatro ataca com
suas exibições, direta ou
225
indiretamente, certas doutrinas da religião estabelecida. O
afrouxamento da moral e a desatenção para os deveres da
adoração, tão perceptíveis nas maneiras dos tempos atuais,
autorizam a preocupação de que os esforços da anarquia não
têm conjuntamente sido improdutivos.
Os meios que eles usam para atingir seus objetivos não
são menos perversos do que engenhosos. Com as palavras "paz
universal", "benevolência" e "tolerância" perpetuamente em suas
bocas, eles encontram homens que lhes dão crédito por essas
virtudes. De início, aparentando a mais sagrada consideração
para as doutrinas fundamentais da cristandade, eles visam
apenas reformar e reconciliar com a razão alguns dos
aparentemente contraditórios dogmas. Encorajados pelo
sucesso, eles recorrem com frequência ao ataque das mais
fundamentais doutrinas da revelação, tentando, para usar suas
próprias palavras, reconciliá-las com a razão. Daí para o deísmo
ou para a negação de toda revelação, o passo é curto. Pela
influência de tais artimanhas, nós vemos, em consequência, a
causa de a impiedade prevalecer mesmo onde a religião de
Jesus florescia antigamente em sua grande pureza.
Não é minha intenção traçar a conspiração contra a
religião através de todos os diferentes estágios do seu
progresso. Assumindo alternadamente milhares de diferentes
disfarces, ela parece evitar com frequência a mais escrupulosa
investigação. Mas onde quer que achemos discussões
favorecidas sobre religião, descobertas de pretensas incorreções
no texto bíblico, cismas e divisões da estabelecida igreja
nacional, vemos uma extraordinária afetação de santidade por
homens cujas vidas são uma sátira a toda piedade. Então nós
podemos estar seguros, os desígnios da anarquia já tem feito
progressos.
Embora nossos inimigos não tenham ainda pensado ser
prudente fazer uma aberta confissão de ateísmo, é evidente que
este é o último passo de sua impiedosa carreira.
226
Que isto é sua religião, (se o que aniquila toda a divindade pode
ser assim chamado), é um fato que qualquer evidência adicional
não pode ser mais clara. Os escritos de Robinson e Barruel, na
verdade, têm estabelecido completamente este ponto que bons
homens agora concebem só uma opinião a esse respeito.
Colocar o povo da Grã-Bretanha em guarda contra
aqueles que desejam roubar a sua religião e mergulhá-los nos
horrores da anarquia e da impiedade, foi o motivo que inspirou o
tradutor a apresentar este tratado ao público. É um compêndio
escrito por Helvétius do ―Sistema da Natureza‖. Um trabalho
publicado sob o nome de Mirabaud, posto que seja uma bem
conhecida produção de Diderot, assistido por Robinet e outros
discípulos da escola francesa da infidelidade. Ele contem quase
tudo que pode ser dito a favor do ateísmo e permite uma
completa visão daquele sistema que os sediciosos desejam
colocar no lugar da santa religião de Jesus. Vai, acredita-se,
produzir os mais felizes efeitos naqueles que tenham sido
arrastados nos laços da impiedade, embora ainda
desprevenidos de até onde isto pode levá-los, visto que pode
incitar em suas mentes uma comparação entre as doutrinas do
ateísmo e da Cristandade. Desse exame, eles necessariamente
acharão inumeráveis motivos para determiná-los a retornar para
essa religião que é a única a dar segurança no presente e
felicidade no futuro. Expondo também as falácias do deísmo e
todos os outros sistemas não fundados na revelação, pode ter o
efeito de trazer para o grêmio da igreja muitos bons homens que
foram pervertidos do seu dever por aquelas pretensões de paz,
virtude e benevolência assumidas pelos livre-pensadores, que
operam sobre os mais afáveis sentimentos da natureza humana
como meio de fazer prosélitos para sua causa.
227
Pensadores superficiais podem argumentar que esta publicação
pode aumentar o verdadeiro mal que o tradutor deseja combater.
Para ele não há motivo de preocupação. É fazer um mau elogio
ao conhecido bom senso dos britânicos supor que fracas
argumentações e negligentes declamações, contidas mesmo no
melhor trabalho ateu, seja capaz de influenciar ou perverter seus
julgamentos. A exposição do erro é a sua revelação: assim
pensava São Paulo e os principais padres da igreja primitiva,
cuja autoridade não será prontamente questionada.
O tradutor tem adicionado neste tratado algumas notas de
alguns dos mais competentes escritores do ateísmo, para que
seus correligionários não tenham a desculpa de dizer que a sua
causa foi injustamente submetida ao julgamento público.
Possa este trabalho ter o efeito de trazer de volta ao
menos um prosélito da impiedade para a santa religião do seu
país. O grato conhecimento desta redenção individual irá
consolar o tradutor pela desgraça e ódio com que está seguro de
ser alvo por parte dos amigos da anarquia pelo que ele fez
expondo o seu monstruoso sistema para o público em geral em
uma tradução inglesa.
228
PREFÁCIO CARLILE
O pequeno trabalho que segue é um compêndio do que é
chamado ―Sistema da Natureza de Mirabaud‖. E aqueles que
não podem se permitir comprar o original acharão este
igualmente instrutivo e importante. É toda a parte essencial, é
todo ouro, Não há sentença a mais ou a menos. É um desiderato
para acompanhar o original ―Sistema da Natureza‖ como um
livro texto, mas um ainda maior desiderato para aqueles que não
podem se permitir comprar alguma das existentes edições
originais.
Este trabalho foi primeiro impresso em Glasgow em 1799,
mas o tradutor achou necessário juntar algumas poucas páginas
de sedução no seu próprio trabalho, de modo a desviar as
perseguições cristãs. O presente editor não tem medo nem
escrúpulo de colocar avante tal trabalho em sua pura e
manifesta forma. Ele está completamente orgulhoso de ser
chamado deísta, materialista ou ateu, como queiram preferir os
idólatras, tanto que seja diferenciado deles.
Um puro código de ética só pode ser fundado apenas em
um sistema descrente de todo poder espiritual ou sobrenatural.
Chame isso de ateísmo, materialismo ou o que você desejar. A
moralidade não tem outra fundamentação. Nós sabemos que
existe a matéria em movimento. Podemos percebê-la
fisicamente. Porém, fora das nossas percepções não temos
nenhum conhecimento distinto. Assim, não temos nenhum
conhecimento de poder espiritual ou sobrenatural, porque não os
percebemos e nem a necessidade de suas existências.
As notas anexadas a este trabalho foram selecionadas e
adicionadas pelo tradutor e como elas são boas, o editor achou
por bem deixá-las passar.
Os filósofos e os filantropistas dispostos a
229
distribuir este pequeno trabalho gratuitamente e os vendedores
podem ficar certos de que não há receio dele ser perseguido. O
editor está preparado para uma grande procura e lisonjeia-se de
ser capaz de despachar grandes tiragens. Este trabalho deve
ser chamado 'Manual do Filósofo' ou 'Remédio para a pior de
todas as doenças humanas – Superstição'. O editor o colocará
contra todos os milhões de opúsculos religiosos editados pelas
tipografias ou que possam vir a ser daqui para frente. Deixem os
padres e os fanáticos publicarem um tratado que refute os
conteúdos deste pequeno livro e nunca mais terão a
necessidade de escrever ou imprimir alguma coisa, seja mentira
ou verdade.
230
SISTEMA DA NATUREZA
INTRODUÇÃO
O homem, infortunadamente para si mesmo, deseja
superar os limites da sua esfera e se transportar para além do
mundo visível. Negligencia a experiência e se alimenta de
suposições. Desde cedo predisposto por ardilosos homens
contra a razão, ele negligencia o seu cultivo. Pretendendo
conhecer seu destino em outro mundo, fica desatento para a sua
felicidade no mundo presente.
O objetivo do autor é chamar o homem à razão tornando-
a querida para ele, ─ para dissipar as nuvens que obscurecem o
caminho da sua felicidade, ─ oferecer reflexões úteis para sua
paz e conforto e favorável ao aperfeiçoamento mental.
Longe de querer destruir os deveres da moralidade, é desejo do
autor lhes dar uma dupla força e estabelecê-los no altar da
virtude, que é a única que merece a veneração da humanidade.
CAPÍTULO I.
DA NATUREZA
O homem é obra da natureza e sujeito às suas leis, das
quais não pode se libertar e nem mesmo, ultrapassar em
pensamento. Como ser formado pela natureza, ele não está
além do grande todo de que é parte. Entidades supostas serem
superiores ou distintas da natureza são meras quimeras, das
quais nenhuma ideia real pode ser formada.
231
O homem é um ser puramente físico. O homem moral é somente
o homem físico considerado de determinado ponto de vista. Sua
organização é trabalho da natureza. Suas ações visíveis e os
movimentos invisíveis são igualmente efeitos naturais e
consequências do seu mecanismo. Suas invenções são efeitos
de sua essência. Suas ideias provêm da mesma causa. A arte é
apenas a natureza agindo por instrumentos que ela mesma fez
para si. Tudo é impulso da natureza.
É para o físico e para a experiência que o homem deve
redirecionar todas as investigações. A natureza age por leis
simples. Quando nós abandonamos a experiência, a imaginação
nos extravia. É por falta de experiência que os homens têm
formado ideias erradas sobre a matéria [NOTA A].
A indolência é gratificada seguindo exemplos, hábitos e
autoridades, ao contrário da experiência que exige atividade ou
razão e esta requer reflexão. Por consequência, aversão a todas
as coisas que se desviam das regras ordinárias e um implícito
respeito pelas instituições antigas: ─ a credulidade procede da
experiência. Consultando a experiência e contemplando o
universo nós achamos apenas matéria e movimento.
CAPÍTULO II
DO MOVIMENTO E SUA ORIGEM
É o movimento que sozinho forma as conexões entre
nossos órgãos e os objetos externos e internos.
A causa é um ser que coloca outro ser em movimento, ou
que produz uma mudança que um corpo efetua sobre outro por
meio do movimento.
232
Nós só conhecemos o modo pelo qual um corpo age em nós
pela mudança que ele produz.
É só através da ação que podemos julgar os movimentos
interiores como os pensamentos e outros sentimentos: Quando
vemos um homem fugindo, concluímos que ele está com medo.
O movimento dos corpos é a consequência necessária de
sua essência. Todo ser tem leis de movimento peculiares a si
mesmo.
Todos os corpos do universo estão em movimento. A
ação é essencial à matéria. Todos os seres nascem, crescem,
diminuem e finalmente perecem. Metais, minerais, etc. estão
todos em ação. As pedras que estão no chão agem sobre ele
pela pressão. O nosso sentido do olfato age sobre as
emanações provenientes de corpos mais compactos.
O movimento é imanente à natureza que é um grande
todo, fora do que não há existência e lhe é essencial. A matéria
move-se por sua própria energia e possui propriedades de
acordo com as quais age.
Atribuindo o movimento da matéria a uma causa, nós
devemos supor que a própria matéria veio a existir: uma coisa
impossível. Uma vez que ela não pode ser aniquilada, como
podemos imaginar que ela teve um começo?
De onde a matéria procede? Ela sempre existiu. Qual é a
causa original do seu movimento? A matéria sempre esteve em
movimento, como o movimento é uma consequência da sua
existência e a existência supõe sempre propriedades no corpo
existente. Desde que a matéria possui propriedades, sua
maneira de agir necessariamente decorre da sua forma de
existência. Logo, um corpo pesado deve cair.
233
CAPÍTULO III
DA MATÉRIA E SEU MOVIMENTO.
As mudanças, as formas e as modificações da matéria
procedem apenas do movimento. Pelo movimento cada corpo na
natureza é formado, mudado, aumentado, diminuído e destruído.
O movimento produz uma perpétua transmigração, troca e
circulação das partículas de matéria. Estas partículas separam-
se para formar novos corpos. Um corpo alimenta outros corpos e
eles, na sequência, devolvem à massa geral os elementos que
tinham emprestado. As estrelas são produzidas pela
combinação de matéria e estes corpos maravilhosos, que o
homem em sua transitória existência, aprecia por apenas um
instante, irão um dia, talvez, serem dissipados pelo movimento.
CAPÍTULO IV
LEIS DO MOVIMENTO COMUNS A TODOS OS SERES ─
ATRAÇÃO E REPULSÃO ─ NECESSIDADE.
Nós consideramos os efeitos como naturais quando nós
vemos a sua causa agente. Quando nós vemos um efeito
extraordinário, de que a causa é desconhecida, nós recorremos
à imaginação, que cria quimeras.
O fim visível de todos os movimentos dos corpos é a
preservação da sua forma atual de existência, atraindo o que é
favorável e repelindo o que lhe é prejudicial. Desde o início da
existência nós experimentamos movimentos peculiares a uma
determinada essência.
Cada causa produz um efeito e não
234
pode haver um efeito sem uma causa. Se cada movimento,
portanto, está imputado a uma causa e essas causas são
determinadas pela sua natureza, essência e propriedades, nós
devemos concluir que elas são todas necessárias e que cada
ser da natureza, em suas dadas propriedades e circunstâncias,
pode apenas agir do modo como age. A necessidade é a
infalível e constante ligação das causas com os seus efeitos e
esse irresistível poder, necessidade universal, é somente a
consequência da natureza das coisas, em virtude de que o todo
age por leis imutáveis. [NOTA B].
CAPÍTULO V
DA ORDEM E DESORDEM ─ INTELIGÊNCIA E ACASO.
A observação dos movimentos regulares da natureza
produz na mente humana a ideia de ordem. Esta palavra
expressa apenas uma coisa relativa a nós mesmos. A ideia de
ordem ou de desordem não é prova de suas existências na
natureza, visto que nela cada coisa é necessária. Desordem em
relação a um ser é nada mais que a sua passagem para uma
nova ordem ou forma de existência. Assim aos nossos olhos, a
morte é a maior de todas as desordens, mas a morte apenas
muda a nossa essência. Nós não estamos menos submetidos às
leis do movimento.
O poder de agir segundo um fim é chamado de
inteligência e esse fim nós conhecemos que o ser possui porque
nós lhe o atribuímos. Nós negamos a sua existência em seres
cuja forma de ação é diferente das nossas.
Quando nós não percebemos a conexão de certos efeitos
com suas causas, nós os atribuímos ao
235
acaso. Quando nós vemos ou pensamos que vemos o que é
chamado de ordem, nós a imputamos a uma inteligência, uma
qualidade emprestada de nós mesmos e da particular forma com
que somos afetados.
Um ser inteligente pensa, deseja e age para chegar a um
fim. Para esse propósito, órgãos e um fim similar ao nosso é
necessário. Eles seriam necessários, acima de tudo, para uma
suposta inteligência que governe a natureza. Assim, sem órgãos
não pode haver ideias, intuição, pensamento, desejo, plano ou
ação. A matéria quando combinada de uma determinada
maneira pressupõe ação, inteligência e vida. [NOTA C].
CAPÍTULO VI
DO HOMEM ─ SUAS DISTINÇÕES FÍSICA E MORAL ─ SUA
ORIGEM.
O homem está sempre sujeito a necessidades ─ Seu
temperamento é independente dele, mas influencia suas
paixões: ─ seu sangue, mais ou menos abundante ou quente,
seus nervos mais ou menos relaxados, os alimentos com os
quais ele se alimenta. Tudo age sobre ele e o influencia.
O homem é um todo organizado, composto de diferentes
matérias as quais agem de acordo com suas respectivas
propriedades. A dificuldade de descobrir as causas de seus
movimentos e ideias produziu a divisão da sua essência em
duas naturezas. Ele inventou palavras porque desconhece as
coisas.
O homem, como toda outra coisa, é produção da
natureza. Qual é sua origem? Nós carecemos de experiência
para responder a questão.
Tem ele sempre existido, ou é uma produção instantânea
da natureza? Ambos os casos são
236
possíveis. A matéria é eterna, mas suas formas e combinações
são transitórias. É provável que tenha sido produzido num
determinado período do nosso globo, em que ele varia, como as
outras de suas produções, de acordo com as variações do clima.
Sem dúvida, foi feito macho e fêmea e existirá enquanto o globo
permanecer no presente estado. Quando o globo mudar, a
espécie humana deverá dar lugar a novos seres capazes de
incorporarem em si próprios as novas qualidades que o globo
então estiver possuindo.
Quando somos incapazes de julgar sobre a produção do
homem, falar em Deus e da criação é apenas confissão da
nossa ignorância da energia da natureza.
O homem não tem o direito de crer que é um ser
privilegiado na natureza. Ele está sujeito às mesmas vicissitudes
das outras produções. A ideia da excelência humana é
simplesmente fundada na parcialidade que o homem sente por
si mesmo.
CAPÍTULO VII
DA ALMA E SUA ESPIRITUALIDADE
O que é chamado de alma move-se conosco. Ora, o
movimento é uma propriedade da matéria. A alma também se
mostra material nos invencíveis obstáculos que ela encontra por
parte do corpo. Se a alma causa o movimento do meu braço
quando não há obstáculo no caminho, isto cessa quando o braço
é pressionado para baixo por um grande peso. Então, aqui é
uma massa de matéria que extingue um impulso dado por uma
causa espiritual que, não sendo conectada com a matéria, não
deveria encontrar resistência nela.
O movimento supõe extensão e solidez no corpo que é
movido. Quando nós atribuímos uma ação a uma causa,
237
nós devemos então considerar esta causa como sendo material.
Quando eu ando adiante, eu não deixo minha alma para
trás. Por conseguinte, a alma possui uma qualidade em comum
com o corpo e peculiar à matéria. A alma constitui uma parte do
corpo e experimenta todas as suas vicissitudes, passando pelo
estado infantil e de debilidade, partilhando de seus prazeres e
dores e com o corpo exibindo marcas de embotamento,
debilidade e morte. Em resumo, é apenas o corpo visto em
relação a algumas de suas funções.
Quer espécie de substância é esta que não pode ser vista
e nem sentida? Um ser imaterial, mas agindo sobre a matéria!
Como pode o corpo encerrar um ser fugidio, que ilude todos os
sentidos?
CAPÍTULO VIII
DAS FACULDADES INTELECTUAIS ─ TODAS DERIVADAS
DA SENSAÇÃO.
Sensação é um modo do ser afetado, peculiar a certos
órgãos dos corpos animados, ocasionado pela presença de um
objeto material. A sensibilidade é o resultado de um arranjo
peculiar aos animais. Os órgãos comunicam entre as
impressões sensíveis.
Cada sensação é um choque dado nos órgãos. A
percepção é aquele choque comunicado ao cérebro. Uma ideia
é a imagem do objeto que ocasionou a sensação e a percepção.
Em vista disso, se os nossos órgãos não se moverem, nós não
podemos ter percepções e nem ideias.
A memória produz imaginações. Formamos um quadro
das coisas que nós temos visto, e, pela imaginação,
transportamo-nos para aquilo que não vemos.
20
238
As paixões são movimentos da vontade determinada
pelos objetos que agem sobre ela, de acordo com a nossa forma
atual de existência.
As faculdades intelectuais atribuídas à alma são
modificações imputadas aos objetos que golpeiam os sentidos.
Logo, uma tremedeira nos membros, quando o cérebro é
afetado pelo movimento, chama-se medo. [NOTE D].
CAPÍTULO IX.
DIVERSIDADE DAS FACULDADES INTELECTUAIS ─ ELAS
DEPENDEM, COMO AS QUALIDADES MORAIS, DAS
CAUSAS FÍSICAS. ─ PRINCÍPIOS NATURAIS DA
SOCIEDADE, MORAIS E POLÍTICOS.
O temperamento decide as qualidades morais. Nós o
herdamos da natureza e dos nossos pais. Suas diferentes
espécies são determinadas pelo ar que respiramos, clima que
habitamos, educação e pelas ideias que esta inspira.
Fazendo a mente espiritual, nós lhe administramos
remédios impróprios. A constituição que pode ser mudada,
corrigida ou modificada, deveria ser o único objeto da nossa
atenção.
O gênio é um efeito da sensibilidade física. É a faculdade
possuída por alguns seres humanos de apreender de relance o
todo e as suas diferentes partes.
Pela experiência nós prevemos os efeitos ainda não
sentidos. Daí a prudência e a previsão. A razão é a natureza
modificada pela experiência.
A finalidade última do homem é a preservação própria e
tornar sua existência feliz. A experiência mostra-lhe a
necessidade que ele tem dos outros para conseguir o seu
objetivo e mostra os meios de torná-los
239
favoráveis a seus desígnios. Ele vê o que é agradável ou
desagradável neles e estas experiências lhe dão a ideia de
justiça, etc. Nem a virtude e nem o vício são fundados em
convenções, mas repousam unicamente em relações
subsistentes entre todos os seres humanos.
Os deveres mútuos dos homens nascem da necessidade
de empregar todos os meios que tendam ao fim proposto pela
natureza. É pela promoção da felicidade dos outros homens que
nós os engajamos na promoção da nossa.
A política poderia ser a arte de direcionar as paixões
humanas ao bem da sociedade. As leis não deveriam ter outro
objetivo que a direção de suas ações para o mesmo objetivo.
A felicidade é o objetivo comum de todas as paixões.
Estas são legítimas e naturais e não podem ser chamadas de
boas ou ruins, salvo quando afetam outros homens. Para
direcionar as paixões à virtude, é necessário mostrar à
humanidade as vantagens resultantes dessas práticas.
CAPÍTULO X.
A MENTE NÃO TIRA IDEIAS DE SI PROPRIA ─ NÓS NÃO
TEMOS IDEIAS INATAS.
Se podemos só formar ideias dos objetos materiais, como
pode a causa das ideias ser presumida como imaterial?
Para isso, os sonhos são colocados como uma objeção,
mas no sono o cérebro está repleto com uma multidão de ideias
que foi recebida quando em vigília: A memória sempre produz
imaginações. A causa dos sonhos deve ser física, porque eles
com frequência procedem da comida, humores e fermentações,
diferentes do estado saudável do homem.
240
As ideias imaginadas como inatas são aquelas que são
familiares e, por assim dizer, incorporadas em nós, mas é
sempre através da mediação dos sentidos que nós as
adquirimos. Elas são o efeito da educação, do exemplo e do
hábito. Tais são as ideias formadas de Deus que evidentemente
procede das descrições dadas dele.
Nossas ideias morais são frutos só da experiência. Os
sentimentos de afeição paternal e filial são o resultado da
reflexão e do habito.
O homem adquire todas as suas noções e ideias. As
palavras "inteligência", "ordem", "virtude", "desgosto", "dor" e
"prazer são, para mim, vazias de sentido, a menos que eu as
compare com outros objetos. O julgamento pressupõe
sensibilidade e o julgamento em si mesmo é fruto de
comparação.
CAPÍTULO XI.
DO SISTEMA DA LIBERDADE DO HOMEM.
O homem é um ser físico, sujeito à natureza e
consequentemente, à necessidade. Nascida sem o nosso
consentimento, a nossa organização é independente de nós e as
nossas ideias nos vêm involuntariamente. A ação é a sequência
de um impulso comunicado por um objeto sensível.
Eu estou sedento e vejo um poço ─ Posso eu mesmo me
impedir de beber água dele? Mas se me contarem que a água
está envenenada, eu me abstenho de beber. Será dito que neste
caso eu sou livre? A sede necessariamente determina-me a
beber. A descoberta do veneno necessariamente determina-me
a não beber. O segundo motivo é mais forte que o primeiro e eu
me abstenho de beber. Mas um homem imprudente,
241
diz-se, beberá. Neste caso, o primeiro impulso pode ser o mais
forte. Em qualquer dos dois casos a ação é necessária. Ele, que
bebe, é um louco, mas as ações dos loucos não são menos
necessárias que as dos outros homens.
Um libertino pode ser persuadido a mudar sua conduta.
Esta circunstância não prova que ele é livre, mas apenas que
motivos suficientes podem ser encontrados para contrapor o
efeito daqueles que anteriormente agiam sobre ele.
Uma escolha de maneira alguma prova a liberdade, visto
que a hesitação só acaba quando a vontade é determinada por
suficientes motivos. E o homem não pode impedir os motivos de
agirem sobre a sua vontade. Quer ele se impedir de desejar
possuir o que pensa ser desejável? Não, mas dizemos, ele pode
resistir o desejo pela reflexão sobre as suas consequências. Mas
tem ele o poder de reflexão? As ações humanas não são nunca
livres. Elas procedem necessariamente da constituição e das
ideias recebidas, fortalecidas pelo exemplo, educação e
experiência. O motivo que determina o homem está sempre
além do seu poder.
Não obstante o sistema da liberdade humana, os homens
têm universalmente fundado seus sistemas apenas na
necessidade. Se os motivos forem pensados como incapazes de
influenciar a vontade, porque fazer uso da moralidade,
educação, legislação e mesmo da religião? Nós estabelecemos
instituições para influenciar a vontade: A prova clara da nossa
convicção que eles devem agir sobre ela. Estas instituições são
necessidades demonstradas ao homem.
A necessidade que governa o mundo físico governa
também o mundo moral, onde cada coisa é também sujeita à
mesma lei.
242
CAPÍTULO XII.
EXAME DAS OPINIÕES QUE DEFENDEM QUE O SISTEMA
DA NECESSIDADE É PERIGOSO.
Se as ações dos homens são necessárias, com que
direito, é perguntado, são os crimes punidos, visto que as ações
involuntárias nunca são objetos de punição?
A sociedade é uma reunião de seres sensíveis suscetíveis
de razão, que amam o prazer e odeiam a dor. Nada mais é
necessário para engajar sua cooperação ao bem-estar geral. A
necessidade é calculada para impressionar todos os homens.
Os maus são loucos, contra os quais, os outros têm o direito de
defenderem-se. Loucura é um estado involuntário e necessário,
entretanto os loucos são confinados. Mas a sociedade não deve
excitar desejos e depois puni-los. Os ladrões são com frequência
aqueles que a sociedade privou dos meios de subsistência.
Atribuindo tudo à necessidade, dizem-nos, as ideias de
justo e injusto, de bom e mal são destruídas. Não. Embora o
homem aja por necessidade, suas ações são justas e boas em
relação à sociedade cujo bem-estar ele promove. Todo homem é
sensível, de maneira que é compelido a amar determinado modo
de conduta em seu vizinho. As ideias de prazer e dor, vício e
virtude são fundadas na nossa própria essência.
O fatalismo não estimula o crime e nem abafa o remorso,
sempre sentido pelos maus. Embora possam ter por muito
tempo escapado da censura e da punição, eles não estão afinal
das contas, melhor satisfeitos consigo mesmos. No meio de
perpétuas aflições, lutas e agitações, não podem encontrar
repouso ou felicidade. Todo crime custa-lhes amargos tormentos
e noites sem sono. O sistema da fatalidade estabelece a
moralidade demonstrando a sua necessidade.
A fatalidade, é dito, desencoraja o homem, paralisa sua
243
mente e quebra os laços que o unem à sociedade. Mas a posse
da sensibilidade depende de mim mesmo? Meus sentimentos
são necessários e fundados na natureza. Embora eu saiba que
todos os homens devem morrer, sou eu nesse caso, menos
afetado pela morte de uma esposa, de um filho, de um pai ou de
um amigo?
O fatalismo deve inspirar no homem uma útil submissão e
resignação ao seu destino. A opinião de que tudo é necessário o
tornará tolerante. Lamentará e perdoará seus companheiros
humanos. Ele será humilde e modesto, sabendo que tem
recebido todas as coisas que possui.
O fatalismo, é dito, rebaixa o homem a uma mera
máquina. Tal linguagem é invenção da ignorância a respeito do
que constitui a verdadeira dignidade. Toda máquina é valiosa
quando executa bem as funções para as quais foi destinada. A
natureza é apenas uma máquina, de que a espécie humana
perfaz uma parte. Seja a alma mortal ou imortal, nós não
admiramos menos a grandeza e a excelência de um Sócrates.
A opinião do fatalismo é vantajosa ao homem. Previne
inúteis remorsos de perturbar a mente. Ensina-lhe a
conveniência de usufruir com moderação, visto que o sofrimento
sempre acompanha o excesso. Ele seguirá os caminhos da
virtude, desde que todas as coisas mostrem-lhe a necessidade
dele se tornar estimável pelos outros e contente consigo mesmo.
244
CAPÍTULO XIII.
DA IMORTALIDADE DA ALMA ─ O DOGMA DO FUTURO
ESTADO ─ O MEDO DA MORTE.
A alma, passo a passo, segue os diferentes estados do
corpo. Com o corpo ela vem à existência, é delicada na infância,
partilha dos prazeres e das dores, seus estados de saúde e de
doença, atividade ou depressão. Com o corpo, fica adormecida
ou acordada. E ainda se a presume imortal!
A natureza inspira ao homem o amor da existência e o
desejo de sua continuação produz a crença da imortalidade da
alma. Supondo que o desejo de imortalidade seja natural, é ele
uma prova de sua realidade? Nós desejamos a imortalidade do
corpo e esse desejo é frustrado. Por que não seria o desejo da
imortalidade da alma também frustrado? A alma é apenas o
princípio da sensibilidade. Pensar, sofrer e desfrutar é sentir.
Então, quando o corpo cessa de viver, ela não pode mais
exercer a sensibilidade. Onde não existem os sentidos, lá não
pode haver ideias. Se a alma percebe apenas por meio dos
órgãos, como então é possível ela sentir depois da dissolução
deles?
Dizem-nos do divino poder, mas o divino poder não pode
fazer uma coisa existir e não existir ao mesmo tempo. Não pode
fazer a alma pensar sem os meios necessários para adquirir os
pensamentos.
A destruição do seu corpo sempre alarma o homem, não
obstante a opinião da imortalidade da alma. Uma prova segura
que ele é mais afetado pela presente realidade do que pela
esperança de um distante futuro.
A verdadeira ideia da morte é revoltante para o homem,
todavia ele faz tudo o que está em seu poder para torná-la mais
horrenda. É um período que nos entrega sem defesa
245
aos indescritíveis horrores de um déspota impiedoso. Isto,
dizem, é o mais forte muro contra as desordens humanas. Mas
que efeito tem essas ideias produzidas naqueles que são ou ao
menos pretendem ser persuadidos de sua verdade? A maioria
da humanidade raramente pensa nelas. Nunca, quando
apressados pelas paixões, preconceitos ou exemplos. Se elas
produzem algum efeito, é só naqueles a quem elas são
necessárias em apressar para o bem e reter do mal. Elas
enchem os corações dos bons homens de terror, mas não têm a
menor influência sobre os maus.
Homens maus podem ser encontrados entre os infiéis,
mas infidelidade de modo algum implica maldade. Pelo contrário,
o homem que pensa e medita, melhor conhece os motivos para
ser bom do que aquele que se permite ser conduzido cegamente
pelos motivos dos outros. O homem que não espera outro
estado de existência é o mais interessado em prolongar a sua
vida e se fazer querido pelos seus companheiros homens no
único estado de existência que lhe é familiar. O dogma de um
estado futuro destrói a nossa felicidade nesta vida. Nós
afundamos em calamidade e permanecemos no erro, na
esperança de ser feliz daqui por diante.
O estado presente tem servido como modelo do futuro.
Nós sentimos prazer e dor, logo céu e inferno. Um corpo é
necessário para usufruir das delícias celestes, então o dogma de
uma ressurreição.
Mas de onde surgiu a ideia do inferno? Porque, como
uma pessoa doente que se agarra mesmo a uma miserável
existência, o homem prefere uma vida de sofrimento à
aniquilação, que ele considera e maior das calamidades. Além
disso, esta noção é confirmada pela ideia da divina misericórdia.
Por uma feliz inconsistência os homens não se desviaram
em
246
suas condutas dessas insolentes ideias, porque os terrores
imputados a um futuro estado são tão fortes que eles afundariam
em brutalidade e o mundo se tornaria um deserto.
Embora este dogma possa operar sobre as paixões, nós
vemos menos homens maus entre aqueles que são os mais
firmemente persuadidos desta verdade? Os homens que
pensam ser restringidos por esses terrores, imputam a eles
efeitos só atribuíveis a motivos presentes, tais como timidez e
apreensão das consequências de uma má ação praticada. Pode
o medo de um distante futuro coibir o homem em quem uma
imediata punição não produz efeito?
A própria religião destrói o efeito desses terrores. A
remissão dos pecados estimula o homem mau até o seu último
momento. Este dogma é consequentemente, oposto ao anterior.
Os inspiradores desses terrores admitem serem eles
ineficazes. Os sacerdotes estão continuamente lamentando que
o homem esteja sempre apressado com as suas viciosas
inclinações. Em resumo, para um homem tímido que é
restringido por esses terrores, há milhões a quem tornam
ferozes, imprestáveis e maus e desviam dos seus deveres para
com a sociedade, a que eles estão continuamente
atormentando.
CAPÍTULO XIV.
DA EDUCAÇÃO ─ MORALIDADE E LEIS SUFICIENTES
PARA RESTRINGIR O HOMEM ─ DESEJO DE
IMORTALIDADE ─ SUICÍDIO.
Deixe-nos não procurar motivos para agir neste mundo
num distante futuro. É à experiência e à verdade
247
que devemos recorrer, providenciando remédios para os males
que ocorrem na nossa espécie. Ai também deve ser procurado
aqueles motivos que dão ao coração inclinações úteis à
sociedade.
A educação, acima de tudo, dá à mente hábitos úteis ao
indivíduo e à sociedade. Os homens não têm necessidade de
recompensas celestiais e nem de punições sobrenaturais.
Um governo firme não precisa de fábulas em seu apoio.
Presentes, recompensas e punições são mais eficazes do que
aquelas do futuro e apenas elas devem ser empregadas. O
homem é em toda a parte um escravo e consequentemente,
vazio de honra: baixo, interesseiro e dissimulado. Existem os
vícios dos governos. O homem é em qualquer lugar enganado e
impedido de cultivar a sua razão. Consequentemente é estúpido
e não razoável. Em todo lugar ele vê vícios e crimes serem
honrados e então conclui que a prática do vício leva à felicidade
e a da virtude leva ao sacrifício para si mesmo. Em toda parte
ele é miserável e compelido a ofender o seu próximo que podia
fazer feliz. O céu está além da sua vista e a terra prende sua
atenção. Aqui ele deseja em todos os eventos ser feliz. Se a
humanidade fosse mais feliz e melhor governada, não haveria
necessidade de lançar mão à fraude para governá-los.
Motivar o homem a ver este estado como o único capaz
de torná-lo feliz, limitar suas esperanças para esta vida em vez
de entretê-lo com histórias sobre o futuro. Mostrar-lhe o efeito
das suas ações sobre os seus vizinhos, excitar sua operosidade,
recompensar seus talentos, fazê-lo ativo, laborioso, benevolente
e virtuoso, ensiná-lo a estimar a afeição dos seus
contemporâneos e deixá-lo conhecer as consequências do ódio
deles.
Ainda que grande possa ser o medo da morte, desgostos,
aflições mentais e desgraças motivam em nós
248
algumas vezes a considerá-la como um refúgio da injustiça
humana.
O suicídio tem sido diversamente considerado. Alguns
imaginam que o homem não tem direito de quebrar o contrato
pelo qual ele entrou na sociedade. Mas examinando as
conexões que subsistem entre o homem e a natureza, eles não
acharão nada de voluntário por uma parte e nem de recíproca da
outra. A vontade do homem não teve participação na sua vinda
ao mundo e ele vai embora daí contra a sua inclinação. Todas
essas ações são compulsórias. Ele pode apenas amar a
existência na condição de que ela lhe faça feliz.
Examinando o contrato do homem com a sociedade, nós
devemos encontrar que ele é condicional e recíproco e supõe
mútuas vantagens para as partes contratantes. A conveniência é
o vínculo da conexão. Está quebrado? O homem desde esse
momento torna-se livre. Poderíamos nós censurar o homem que,
achando-se destituído dos meios de subsistência na cidade,
retira-se para o campo? Aquele que morre, apenas retira-se para
a solidão.
A diferença de opinião sobre isto como também em outros
assuntos é necessária. O suicídio lhe dirá que nesta situação,
sua conduta poderia ser precisamente similar. Mas para estar na
situação do outro, nós devemos possuir sua organização,
constituição e paixões. Ser, em resumo ele mesmo, colocado
nas mesmas circunstâncias e excitado pelos mesmos motivos.
Essas máximas podem ser consideradas perigosas, mas
máximas sozinhas não levam os homens a adotar resoluções
extremas. É uma constituição estimulada pelo desgosto, uma
organização defeituosa, um desarranjo da máquina. Em uma
palavra: a necessidade. A morte é o recurso de que a virtude
oprimida nunca deveria ser despojada.
249
CAPÍTULO XV.
DO INTERESSE DO HOMEM, OU DAS IDEIAS QUE ELE
FORMA DA FELICIDADE ─ SEM VIRTUDE ELE NÃO PODE
SER FELIZ.
O interesse é o objeto a que cada homem, de acordo com
a sua constituição, prende a felicidade. A mesma felicidade não
é apropriada a todos os homens, porque cada homem depende
de sua particular organização. Então pode ser fácil conceber que
em seres com tais diferenças particulares, o que constitui o
prazer de um homem, pode ser indiferente, ou mesmo
desgostoso para outro. Nenhum homem pode decidir o que
constituirá a felicidade do seu próximo.
Compelidos, entretanto, a julgar as ações pelos seus
efeitos em nós mesmos, aprovamos o interesse que as anima,
de acordo com a vantagem que produzem na espécie humana.
Então, admiramos o valor, a generosidade, os talentos e a
virtude. É da natureza do homem amar a si mesmo, preservar
sua existência e torná-la feliz. A experiência e a razão logo o
convencem que não pode sozinho controlar os meios de
alcançar a felicidade. Ele vê outros seres humanos engajados no
mesmo objetivo, mas capazes de assisti-lo na obtenção do seu
desejado objeto. Percebe que eles favorecerão os seus
propósitos somente na medida em que os seus coincidam com
os interesses deles mesmos. Concluirá então, que para
assegurar a sua própria felicidade, deve granjear a amizade, a
aprovação e a assistência deles e fazê-los encontrar vantagens
em promover os seus objetivos. A procura dessas vantagens
para a humanidade constitui a virtude. O homem sábio encontra
nisto o seu interesse de ser virtuoso. Virtude é nada mais do que
a arte de fazer um homem feliz contribuindo
250
para a felicidade dos outros. O mérito e a virtude estão fundados
na natureza e nas carências do homem.
O homem virtuoso é sempre feliz. Em cada face ele lê o
direito que adquiriu sobre o coração do outro. O vício é
compelido a se render à virtude, cuja superioridade ele
embaraçadamente reconhece. Pode um homem virtuoso
algumas vezes fatigar-se no desdém e na obscuridade, mas a
justiça de sua causa lhe traz consolação da injustiça humana.
Esta consolação é negada para os malvados cujos corações
estão cheios de ansiedade, vergonha e remorso.
CAPÍTULO XVI.
AS OPINIÕES ERRÔNEAS CONCEBIDAS PELO HOMEM
SOBRE A FELICIDADE SÃO A VERDADEIRA CAUSA DA
SUA MISÉRIA
Nada pode ser mais inútil do que declamações de uma
sombria filosofia contra o amor do poder, da grandeza, das
riquezas ou do prazer. Toda coisa que promete vantagens é um
natural objeto de desejo.
A autoridade paternal, aquelas de hierarquia, riquezas,
gênios e talentos são fundados sobre essas vantagens. É
apenas por conta das vantagens que elas produzem que as
ciências são estimáveis. Os reis, os ricos e os grandes homens
podem nos enganar pela exibição e esplendor, mas é apenas
pelos seus benefícios que eles têm poder legítimo sobre nós.
A experiência nos ensina que as calamidades da
humanidade tiveram origem nas opiniões religiosas. A ignorância
das causas naturais criou deuses e a impostura os fez terríveis.
O homem vivia infeliz porque lhe foi dito que Deus o tinha
condenado à miséria. Ele nunca teve vontade de quebrar as
suas
251
correntes, porque foi ensinado que a estupidez, a renúncia à
razão, a brutalidade mental e a humilhação espiritual eram os
meios de obter a felicidade eterna. Os reis, transformados pelos
homens em deuses, pareciam herdar o direito de governar. E a
política tornou-se a arte fatal de sacrificar a felicidade de todos
ao capricho de um indivíduo.
A mesma cegueira impregnou a ciência da moralidade.
Em vez de fundá-la na natureza do homem e as relações que
subsistem entre ele e seus companheiros, ou sobre os deveres
resultantes daquelas relações, a religião estabeleceu uma
imaginária conexão entre o homem e seres invisíveis. Os
deuses, sempre pintados como tiranos tornaram-se o modelo da
conduta humana. Quando o homem ofendia o seu próximo,
pensava que tinha ofendido a Deus e acreditava que podia
pacificá-lo com presentes e humildade. A religião corrompeu a
moralidade e as expiações de piedade completaram sua
destruição. Os remédios religiosos eram desgostosos às paixões
humanas porque impróprios à natureza do homem. Mas eles
eram chamados de divinos. A virtude parecia odiosa ao homem
porque era representada para ele como inimiga do prazer. Na
observância dos seus deveres, ele nada via senão o sacrifício de
todas as coisas agradáveis. E os motivos reais da persuasão de
tais sacrifícios nunca lhe eram mostrados. O presente prevalece
sobre o futuro, o visível sobre o invisível. O homem tornou-se
mal porque o que lhe era contado é que para usufruir a
felicidade era necessário que assim fosse.
Devotos melancólicos acham que os objetos dos desejos
humanos são incapazes de satisfazer o coração e rebaixam-nos
como perniciosos e abomináveis. Cegos médicos que tomam o
estado natural do homem por doença! Proíba o homem de amar
e desejar e você o arranca do seu ser! Mande-o odiar-se e
desprezar-se e você lhe retira os mais fortes motivos para a
virtude.
252
A despeito das nossas queixas contra a sorte há muitos homens
felizes no mundo. Também se acha no mundo soberanos
ambiciosos em fazer nações felizes. Elevadas almas que
encorajam o gênio, socorrem a indigência e desejam atrair a
admiração.
A pobreza em si mesmo não é excluída da felicidade. O
homem pobre, habituado ao trabalho, conhece as doçuras do
repouso. Com limitado conhecimento e poucas ideias, ele tem,
todavia poucos desejos.
A soma total do bom excede a do mal. Não há felicidade
no atacado, posto que bastante no varejo. No total do curso da
vida de um homem poucos dias são de total infelicidade. O
hábito alivia o peso das tristezas e aflições suspensas são
prazeres. Cada carência, no momento de sua gratificação, torna-
se um prazer. A falta de dor e de doença é um estado feliz que
nós usufruímos sem perceber. A esperança ajuda-nos a suportar
as calamidades. Em resumo, o homem que pensa ser o mais
infeliz, não vê a aproximação da morte sem terror, a menos que
o desespero tenha, a seus olhos, desfigurado o todo da
natureza. Quando a natureza nos nega qualquer prazer, ela
deixa aberta uma porta para a nossa partida. E por que não
faríamos nós uso disto? É porque nós ainda achamos um prazer
na existência.
CAPÍTULO XVII.
ORIGEM DAS NOSSAS IDEIAS A RESPEITO DA DIVINDADE.
O mal é necessário ao homem, visto que sem ele não se
saberia o que é o bem. Sem o mal o homem não teria escolha,
vontade, paixões, inclinações e nem poderia ter motivos para
amar
253
ou odiar. Ele então seria um autômato e não mais um homem.
O mal que vê no universo sugere ao homem a ideia da
divindade. A multidão de males, tais como as pragas, as fomes,
terremotos, as inundações e conflagrações o aterrorizam. Mas
que ideias ele formaria da causa que produz tais efeitos? O
homem nunca imaginou a natureza como a causa das
calamidades que o tem afligido. Não achando agente na terra,
capaz de produzir tais efeitos, ele direcionou sua atenção para o
céu, residência imaginada de seres cuja inimizade destruía sua
felicidade neste mundo.
O terror era sempre associado com a ideia desses
poderosos seres.
A partir dos objetos conhecidos os homens julgam os
desconhecidos. Para toda causa desconhecida que atuava
sobre ele o homem deu uma vontade, inteligência e paixões
similares às suas. Ele mesmo influenciado por submissão e
presentes, empregou-os para ganhar os favores da divindade.
Os negócios relativos a essas oferendas foram confiados
a homens idosos e muita cerimônia foi usada para executá-los.
As cerimônias continuaram e tornaram-se costumes. Daí,
portanto, a introdução no mundo da religião e da classe
sacerdotal.
A mente do homem (cuja essência é trabalhar
incessantemente objetos desconhecidos para atribuir-lhes
consequências que não serão examinadas friamente mais tarde)
logo modificou esses sistemas.
Por uma necessária consequência dessas opiniões, a
natureza foi logo despida de todo poder. O homem não podia
conceber a possibilidade de a natureza permitir o seu
sofrimento, igualmente sujeita ela própria a um poder inimigo da
sua felicidade e interessado em puni-lo e afligi-lo.
254
CAPÍTULO XVIII.
DA MITOLOGIA E TEOLOGIA.
Originalmente o homem venerava a natureza. Falava-se
alegoricamente de todas as coisas e todas as partes da natureza
eram personificadas. Daí um Saturno, Júpiter, Apolo, etc. O povo
não percebia que era a natureza e suas partes que alegorizava.
A origem de onde esses deuses foram tirados foi logo
esquecida. Um ser incompreensível foi formado do poder da
natureza e convidado a se mover. Assim a natureza separou-se
de si mesma e foi considerada como uma massa inanimada,
incapaz de ação.
Foi necessário atribuir qualidades a esse poder motriz.
Este ser, ou posteriormente, espírito, inteligência, ser incorporal,
isto é, substância diferente de qualquer uma que conhecemos,
não era vista por ninguém. Os homens só podiam atribuir-lhe as
suas próprias qualidades. O que eles chamavam de perfeições
humanas, foi o modelo em miniatura da perfeição da Divindade.
Mas por outro lado, em vista das calamidades e
desordens a que o mundo estava tão sujeito, por que não
atribuir-lhe malícia, imprudência e capricho? Esta dificuldade foi
então removida criando inimigos para ela. Esta é a origem dos
anjos rebeldes. Não obstante seu poder, ela não pode subjugá-
los. Ela foi compreendida estar na mesma situação em relação
aos homens que o ofendiam.
Tendo então, em sua própria opinião, dado conta
satisfatoriamente da miséria humana, outra dificuldade ocorreu.
Não podia ser negado, que os homens justos eram por vezes
incluídos nas punições de Deus.
Foi então dito que por causa do pecado humano
255
Deus podia vingar-se no inocente, como aqueles príncipes maus
que proporcionam uma punição maior em vista da grandeza e
poder da parte ofendida do que a magnitude e realidade da
ofensa. Os piores homens e os piores governos tirânicos têm
sido os modelos de uma divindade e de sua divina
administração.
CAPÍTULO XIX.
OPINIÕES TEOLÓGICAS ABSURDAS E EXTRAORDINÁRIAS.
Dizem para nós que Deus é bom, mas Deus é o autor de
todas as coisas. Todas as calamidades que afligem a
humanidade devem, é claro, ser atribuídas a ele. Bom e mal
supõe dois princípios: Se há um só, ele deve alternadamente ser
bom e mau.
Deus, dizem os teólogos, é justo e o mal é um castigo
para as injúrias que os homens tem feito a ele. Para haver
ofensa supõem-se a existência de conexões entre o ofensor e
parte ofendida. Ofender é causar dor, mas como pode uma fraca
criatura como o homem, que recebe sua própria existência de
Deus, agir contra um poder infinito que nunca consente com o
pecado ou a desordem?
A justiça supõe a disposição de dar a cada indivíduo o
que lhe é devido, mas nos é dito que Deus não nos deve nada e
que, sem prejuízo à sua equidade, pode jogar o trabalho de sua
mão num abismo de miséria. São ditos que os males são
apenas temporários: seguramente então, eles são injustos
durante certo tempo. Deus castiga seus amigos para o bem
deles, mas se Deus é bom, pode permitir que sofram, mesmo
por um momento? Se Deus é onisciente, por que tentar os
amigos
256
de quem sabe não haver nada a temer? Se onipotente, por que se perturba com pequenas intrigas levantadas contra si?
Qual bom homem não deseja tornar seus colegas felizes?
Porque Deus não faz o homem feliz? Nenhum homem tem razão
de estar contente com o seu quinhão. O que pode ser dito disso
tudo? Os julgamentos de Deus são impenetráveis. Neste caso
como podem os homens pretender raciocinar sobre ele? Desde
que imperscrutável com que fundamento pode uma única virtude
ser-lhe atribuída? Que ideia nós podemos formar de uma justiça
que não apresenta semelhança com a do homem?
É dito que sua justiça é balanceada com sua misericórdia,
mas sua misericórdia derroga a sua justiça. Se imutável, pode
ele por um momento alterar seus desígnios?
Deus, dizem os padres, criou o mundo para sua própria glória. Mas, já superior a tudo, estava faltando alguma coisa à sua glória? O amor da glória é o desejo de ser diferenciado para melhor entre nossos iguais. Se Deus é suscetível disto, por que permite qualquer um abusar de seus favores? Ou por que os seus favores são insuficientes para nos fazer agir de acordo com os seus desejos? Porque me tem feito um agente livre. Mas por que me conceder uma liberdade que sabe que eu vou abusar?
Em consequência desta liberdade, os homens serão
eternamente punidos no outro mundo pelas faltas que eles
cometeram nesta vida. Mas por que punir eternamente as faltas
de um momento? O que pensaríamos de um rei que punisse
eternamente um de seus súditos, que num momento de
embriaguez tivesse ofendido o seu orgulho, sem, entretanto
fazer-lhe alguma injúria real e houvesse ele mesmo o
alcoolizado? Consideraríamos nós o monarca como todo
poderoso se ele fosse obrigado a permitir que todos os seus
súditos, com exceção de poucos amigos fieis, insultassem suas
leis e mesmo sua própria pessoa e contrariassem-lhe em todas
as medidas?
257
É dito que as qualidades de Deus são tão diferentes das
qualidades do homem e tão eminentes, que nenhuma
semelhança qualquer que seja subsiste entre elas. Mas, neste
caso como podemos formar alguma ideia delas? Por que então
a teologia ousa anunciá-las?
Mas Deus tem falado e se fez conhecido ao homem.
Quando e para quem? Onde estão esses divinos oráculos? Em
absurdas e contraditórias compilações onde o Deus da
sabedoria fala uma obscura, insidiosa e boba linguagem, onde o
Deus da benevolência é cruel e sanguinário, onde o Deus da
justiça é injusto, parcial e ordena iniquidades e onde o Deus da
misericórdia decreta a mais horrenda punição para as vítimas da
sua cólera.
As relações subsistentes entre Deus e o homem apenas
podem ser fundadas em qualidades morais. Mas se o homem é
ignorante dessas qualidades, como podem elas servir de modelo
à sua conduta? Como é possível a ele imitá-las?
Não há proporção entre Deus e o homem e onde falta
proporção, não pode haver relações. Se Deus é incorpóreo,
como pode ele agir sobre os corpos? Como podem os corpos
agir sobre ele, fazendo-lhe ofensas, perturbando seu repouso e
excitando sua cólera? Se o oleiro estiver desgostoso com a má
aparência das vasilhas que fabricou, a quem ele culpará senão a
si próprio?
Se Deus não deve nada ao homem, o homem deve-lhe
igualmente pouco. As relações devem ser recíprocas e os
deveres fundados em mútuas necessidades. Se estas não têm
valor para Deus, ele não deve nada por elas e o homem não
pode ofendê-lo. A autoridade de Deus pode ser apenas fundada
sobre o bem que ele outorga aos homens. E seus deveres
devem repousar apenas sobre os favores que eles esperam
dele. Se Deus não deve a felicidade ao homem, toda relação
entre eles está aniquilada.
258
41
Como podemos reconciliar as qualidades imputadas a
Deus com seus atributos metafísicos? Como pode um puro
espírito agir como homem, um ser corpóreo? Um puro espírito
não pode ouvir nossas preces e nem ser sensibilizado com as
nossas misérias. Se imutável, ele não pode mudar. Se toda a
natureza sem ser Deus, pode existir em ligação com ele, ele não
pode ser infinito. Se ele ou consente ou não pode impedir os
males e as desordens do mundo, ele não pode ser onipotente.
Ele não pode estar em todo lugar, se ele não está no homem
quando o homem comete pecado, ou sai dele no momento da
perpetração.
Uma revelação provaria a malícia na Divindade. Ela
supõe que a Divindade tem por muito tempo negado ao homem
um conhecimento necessário à sua felicidade. Se esta revelação
é feita só a um pequeno número, caracteriza uma parcialidade
inconsistente com a sua justiça. A revelação destruiria a
imutabilidade de Deus porque supõe que ele tenha feito num
período que desejou não fazer em outro. Que espécie de
revelação é essa, que não pode ser entendida? Se apenas um
homem for incapaz de entendê-la, essa circunstância sozinha é
suficiente para condenar Deus por injustiça.
CAPÍTULO XX.
EXAME DAS PROVAS DO DR. CLARKE SOBRE A
EXISTÊNCIA DE UMA DIVINDADE.
É dito que todos os homens acreditam na existência de
uma divindade e a voz da natureza, sozinha, é suficiente como
prova. Esta é uma ideia inata.
Mas o que prova essa ideia ser adquirida é a natureza da
opinião que varia de época em época e de nação a nação. Que
isto é infundado é
259
42
evidente pelo fato de que os homens têm aperfeiçoado cada ciência que possui um propósito real, enquanto a ciência de Deus tem estado sempre quase no mesmo estado. Não há assunto sobre o qual os homens mantenham tal variedade de opiniões.
Admitindo-se que cada nação tenha uma forma de adoração, esta circunstância de maneira alguma prova a existência de Deus. A universalidade de uma opinião não prova a sua verdade. Todas as nações não têm acreditado na existência de feitiçaria e de visagens? Antes de Copérnico, todos os homens não acreditavam que a terra era imóvel e que o sol girava em torno dela?
As ideias de Deus e de suas qualidades são fundadas apenas nas opiniões de nossos pais, infundidas em nós pela educação, pelos hábitos contraídos na infância e fortalecidas pelo exemplo e pela autoridade. Daí a opinião que todos os homens nascem com uma ideia da Divindade. Nós retemos essas ideias sem nunca ter refletido sobre elas.
O Dr. Clarke tem alegado os mais fortes argumentos que até agora foram trazidos em suporte da existência de uma Divindade. Suas proposições podem ser reduzidas nas seguintes:
1: ―Alguma coisa tem existido desde toda eternidade‖. Sim, mas o que é ela? Por que não a matéria em vez do espírito? Quando uma coisa existe, a existência deve ser essencial para ela. Aquilo que não pode ser aniquilado necessariamente existe: tal é a matéria. A matéria então sempre existiu.
2: ―Um ser independente e imutável tem existido desde toda eternidade‖.
Em primeiro lugar o que é este ser? É ele independente de sua própria essência? Não, porque ele não pode fazer os seres que produziu agirem de modo não coerente com as propriedades das suas produções. Um corpo apenas depende de outro, até onde ele deve sua existência
260
e sua forma de ação a este. Apenas a esse título pode a matéria
ser dependente. Mas a matéria é eterna e não pode dever sua
existência a outro ser. E, se é eterna e auto-existente, é evidente
que, em virtude dessas qualidades, contem dentro de si todas as
coisas indispensáveis para a ação. A matéria sendo eterna, não
tem necessidade de um criador.
É este ser imutável? Não, como tal, um ser não poderia
desejar e nem produzir ações sucessivas. Se este ser criou a
matéria, houve um tempo em que foi resolvido que a matéria não
deveria existir e outro tempo em que foi resolvido que ela
deveria. Este ser, portanto, não pode ser imutável.
3: ―Este ser eterno, imutável e independente é auto-
existente‖. Mas visto que a matéria é eterna, por que não
poderia ela ser auto-existente?
4: ―A essência de um ser auto-existente é
incompreensível‖. Verdade e tal é a essência da matéria.
5: ―Um ser necessariamente auto-existente é
necessariamente eterno‖. Mas teria aquela propriedade em
comum com a matéria. Por que então separar este ser do
universo?
6: ―O ser auto-existente deve ser infinito e presente em
todos os lugares‖. Infinito! Que seja, mas nós não temos razão
para pensar que a matéria seja finita. Presente em todos os
lugares! Não, a matéria certamente ocupa uma parte do espaço
e daquela parte, ao menos, a Divindade deve ser excluída.
7: ―O ser necessariamente auto-existente deve ser um".
Sim, se nada pode existir fora ele, mas pode alguém negar a
existência do universo?
8: ―O ser auto-existente é necessariamente inteligente‖.
Mas a inteligência é uma qualidade humana. Pensamentos e
sentidos são necessários para se ter inteligência. Um ser que
tem sentidos é material e não pode ser puro espírito. Mas este
ser, este grande todo,
261
44
possui uma particular inteligência que o coloca em movimento?
Desde que a natureza contenha seres inteligentes, por que
despi-la de inteligência?
9: ―O ser auto-existente é um agente livre‖. Mas Deus não
tem dificuldade em executar seus planos? Deseja ele a
continuação do mal ou não o pode impedir? Nesse caso ele, ou
permite o mal, ou não é livre. Deus só pode agir de acordo com
as leis da sua essência. Sua vontade é determinada pela
sabedoria e pelas qualidades que lhe são atribuídas: ele não é
livre.
10: ―A causa suprema de todas as coisas possui infinito
poder‖. Mas se o homem é livre para cometer pecado o que
acontece com o poder infinito de Deus?
11: ―O autor de todas as coisas é necessariamente sábio‖.
Se ele é o autor de todas as coisas, é autor de muitas coisas
que consideramos tolas.
12: ―A causa suprema necessariamente possui todas as
perfeições morais‖. A ideia de perfeição é abstrata. É relativa ao
nosso modo de perceber que a coisa pareça perfeita para nós.
Quando nos machucamos em seus trabalhos e forçados a
lamentar os males que sofremos, julgamos Deus perfeito? É ele
assim a respeito de seus trabalhos, onde geralmente vemos
confusão misturada com ordem?
Se for alegado que nós não podemos conhecer Deus e
que nada de positivo pode ser dito sobre ele, nós bem podemos
estar autorizados a duvidar da sua existência. Se
incompreensível, podemos nós ser censurados de não
compreendê-lo?
É dito para nós que o senso comum e a razão são
suficientes para demonstrar a sua existência. Mas também nos
dizem que nesses assuntos a razão é uma guia infiel. A
convicção, além disso, é sempre o efeito da evidência e da
demonstração.
262
CAPÍTULO XXI.
EXAME DAS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE UMA DIVINDADE.
Nenhuma variedade, é dito, pode surgir da cega
necessidade física, que deve sempre ser uniforme e que a
variedade que nós vemos ao nosso redor pode proceder apenas
da vontade e das ideias de um ser necessariamente existente.
Por que esta variedade não surgiria de causas naturais da
automática matéria, cujo movimento junta e combina vários e
análogos elementos? Não é um pão de forma produzido pela
combinação de farinha, fermento e água? Necessidade cega é o
nome que nós damos a um poder com cuja energia nos é
desconhecido.
Mas, é dito, que os movimentos regulares e a admirável
ordem do universo e os benefícios concedidos diariamente ao
homem, anunciam sabedoria e inteligência. Esses movimentos
são efeitos necessários das leis da natureza que nós chamamos
de boas ou de ruins dependendo de como eles nos afetam.
É alegado que os animais são uma prova da poderosa
causa que os criou. O poder da natureza não pode ser duvidado.
São os animais, pela harmonia de suas partes, trabalho de um
ser invisível? Eles estão continuamente mudando e finalmente
morrem. Se Deus não pode formá-los de outro modo, ele não é
livre e nem poderoso. Se ele muda de ideia ele não é imutável.
Se ele permite que as máquinas que criou sensíveis
experimentem tristeza, é destituído de bondade. E se não pode
fazer seu trabalho mais durável é deficiente em habilidade.
O homem que pensa ser ele o principal trabalho na
natureza prova ou a malícia ou a incapacidade do seu pretenso
autor. Sua máquina é mais sujeita a desarranjos do que a dos
outros seres. Quem, na
263
perda de um objeto amado não preferiria ser um animal ou uma
pedra do que ser humano? Melhor ser uma rocha inanimada do
que um devoto tremendo debaixo do jugo do seu Deus e
prevendo ainda maiores tormentos num estado futuro de
existência.
É possível, perguntam os teólogos, conceber um universo
sem um criador que cuide da sua obra? Mostre uma estátua ou
um relógio a um selvagem que nunca os tenha visto e ele
concluirá rapidamente ser o trabalho de um habilidoso artista.
1: A natureza é muito poderosa e laboriosa, mas estamos
pouco familiarizados com a maneira pela qual ela tanto forma
uma pedra ou um mineral, como um cérebro organizado como o
de Newton. A natureza pode fazer todas as coisas e a existência
de qualquer coisa prova por si mesma ser uma das suas
produções. Deixe-nos não concluir que os trabalhos que mais
nos espantam não são da sua produção.
2: O selvagem para quem o relógio foi mostrado, ou terá
ideia da operosidade humana ou não. Se tiver, considerará
imediatamente ser a produção de ser da sua própria espécie. Se
não, nunca pensará ser o trabalho de um ser como ele próprio.
Em consequência, atribuirá isso a um gênio ou espírito, isto é, a
um desconhecido poder que ele supõe capaz de produzir efeitos
para além dos efeitos produzidos pelos humanos. Com isso o
selvagem provará apenas sua ignorância do que o homem é
capaz de executar.
3: Abrindo e examinando o relógio, o selvagem perceberá
que isto deve ser um trabalho do homem. Perceberá
imediatamente sua diferença dos trabalhos presentes na
natureza, a qual ele nunca viu produzir rodas de um metal
polido. Mas nunca irá supor que um trabalho material seja a
produção de ser imaterial. Investigando o mundo, nós vemos a
causa material de seus fenômenos e a esta causa é a
264
natureza, cuja energia é conhecida daqueles que a estudam.
Não nos aleguem que nós, desse modo, atribuímos a tudo
causas cegas e a um concurso fortuito dos átomos. Nós
chamamos essas causas de cegas quando delas somos
ignorantes. Atribuímos os efeitos ao acaso quando nós não
percebemos a ligação que os conecta às suas causas. A
natureza não é uma causa cega e nem age pelo acaso. Todas
as suas produções são necessárias e sempre o efeito de leis
fixas. Aí pode haver a ignorância da nossa parte, mas as
palavras "Espírito", "Deus", "Inteligência", não irão remediar, mas
apenas aumentar a ignorância.
Esta é uma resposta suficiente para a eterna objeção feita
pelos partidários da natureza de atribuírem tudo à contingência.
O acaso é uma palavra vazia de sentido e somente expõe a
ignorância daqueles que a usam. Dizem para nós que o trabalho
regular não pode ser formado pela combinação do acaso, que
um poema épico, como a Ilíada, nunca pode ser produzido pelas
letras lançadas juntas aleatoriamente. Certamente que não. É a
natureza que combina, de acordo com leis fixas, uma cabeça
organizada capaz de produzir tal trabalho. A natureza dá tal
temperamento e organização a um cérebro que, formada a
cabeça como a de Homero e colocada nas mesmas
circunstâncias, deve necessariamente produzir um poema igual
à Ilíada, a menos que seja negado que as mesmas causas
produzem os mesmos efeitos.
Tudo é efeito da combinação da matéria. As mais
admiráveis de suas produções que contemplamos são apenas
os efeitos naturais de suas partes diferentemente arranjadas.
[NOTA E].
265
CAPÍTULO XXII.
DO DEÍSMO, OTIMISMO E CAUSAS FINAIS.
Admitindo a existência de um Deus e mesmo supondo-o
possuir intenções e inteligência, o que resulta para a
humanidade? Que conexão pode subsistir entre nós e tal ser?
Os bons ou maus efeitos procedentes da sua onipotência e
providência poderão ser outros que os da sua sabedoria, justiça
e eternos decretos? Podemos supor que ele mudará os seus
planos a nosso respeito? Vencido pelas nossas preces, fará o
fogo parar de queimar ou impedirá uma construção que desaba,
de esmagar aqueles que passam em baixo? O que podemos
perguntar a esse Deus, se ele é compelido a dar um livre curso
aos eventos que ele próprio ordenou? A oposição de nossa
parte seria loucura.
Por que privar-me de meu Deus, diz o feliz entusiasta,
que me favorece e a quem eu vejo como um benevolente
soberano que me protege? Por que, diz o infortunado homem,
privar-me do meu Deus cuja consoladora ideia seca minhas
lágrimas?
Eu respondo perguntando-lhes onde eles acham a
bondade que atribuem a Deus? Para cada ser humano feliz
quantos desgraçados não vemos? É ele bom para todos os
homens? Quantas calamidades nós não vemos diariamente
enquanto ele é surdo às nossas preces? Todo homem, por
conseguinte, deve julgar sobre a Divindade, de acordo como é
afetado pelas circunstâncias.
Julgando todas as coisas boas no mundo, onde o bom
está necessariamente acompanhado do mal, os otimistas
parecem ter renunciado a evidência dos sentidos. O bom é, de
acordo com eles, a finalidade do todo. Mas o todo não pode ter
uma finalidade. Se tivesse, cessaria de ser o todo.
266
Deus, dizem alguns homens, sabe como nos beneficiar
pelos males que nos permite sofrer nesta vida. Mas, como eles
sabem disto? Visto que nos tem tratado mal nesta vida, que
segurança nós temos de um melhor tratamento num futuro
estado? O que de bom é possível resultar de pragas e fomes
que devastam a terra? É necessário criar outro mundo para
justificar a Divindade da culpa pelas calamidades que nos faz
sofrer no presente.
Alguns homens supõem que a Divindade, depois de criar
a matéria do nada, abandonou-a para sempre ao seu primeiro
impulso. Estes homens apenas querem um Deus para produzir a
matéria e o supõem viver em completa indiferença ao destino da
sua obra. Semelhante Deus é um ser completamente inútil para
o homem.
Outros têm imaginado obrigações para serem devidas
pelo homem ao seu Criador. Outros supõem que, em
consequência da sua justiça, ele recompensará e punirá. Fazem
do seu Deus um homem. Mas estes atributos contradizem um ao
outro porque, supondo ser ele o autor de todas as coisas, deve
consequentemente ser o autor do bem e mal. Nós podemos
acreditar igualmente em tudo.
É nos perguntado, Gostaria você de depender da cega
natureza do que de um bom, sábio e inteligente ser?
Objeção 1: O nosso interesse não determina a realidade
das coisas. 2: Este ser tão supereminentemente sábio e bom é
apresentado para nós como um tirano tolo. E seria melhor para o
homem depender da cega natureza do que de semelhante ser.
3: A natureza, quando bem estudada, nos ensina os meios de
sermos felizes, tanto quanto a nossa essência nos permita. Ela
nos informa os meios apropriados de alcançar a felicidade.
267
CAPÍTULO XXIII.
EXAME DAS SUPOSTAS VANTAGENS QUE RESULTAM PARA O HOMEM DAS NOÇÕES DE UMA DIVINDADE, OU
SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS PRINCÍPIOS MORAIS, CIÊNCIA POLÍTICA, O BEM ESTAR DAS NAÇÕES E DOS
INDIVÍDUOS.
Originalmente a moralidade, tendo somente por objeto a auto-preservação do homem e seu bem estar na sociedade, nada teve com os sistemas religiosos. O homem, de sua própria mente, determinou os motivos para moderar suas paixões, resistir às viciosas inclinações e tornar-se útil e estimável a todos de quem constantemente achou-se em necessidade.
Os sistemas que pintam Deus como um tirano não podem tomá-lo como objeto de imitação para o homem. Eles descrevem-no como ciumento, vingativo e interesseiro. Nesses sistemas a religião divide os homens. Eles disputam e perseguem-se uns aos outros e nunca censuram a si próprios pelos crimes cometidos em nome de Deus.
O mesmo espírito impregna a religião. Lá nós não ouvimos nada a não ser sobre vítimas. E mesmo o puro espírito dos cristãos tem que ter o seu próprio filho assassinado para aplacar sua fúria.
O homem requer uma moralidade fundada sobre a natureza e a experiência.
Achamos virtude real entre os padres? São esses homens, tão firmemente persuadidos da existência de Deus, menos viciados no deboche e na intemperança? Examinando sua conduta, estamos aptos a pensar que estão desenganados de suas opiniões sobre a Divindade.
Faz sentido a ideia de uma recompensa e castigo como imposição divina àqueles príncipes, que derivam seu poder, como eles pretendem da própria Divindade? São aqueles monarcas maus e sem remorsos, que espalham
268
destruição ao seu redor, ateus? Eles chamam a Divindade por
testemunha no mesmo momento em que estão para violar seus
juramentos.
Os sistemas religiosos têm melhorado a moral do povo? A
religião, na opinião deles, substitui tudo. Seus ministros
contentes em dar suporte a dogmas e ritos, úteis a seu próprio
poder, multiplicam as enfadonhas cerimônias com a intenção de
tirar proveito, pelas transgressões de seus escravos a elas. Olhe
o trabalho da religião e da classe sacerdotal como uma venda de
favores dos céus! As palavras sem significado, "impiedade",
"blasfêmia", "sacrilégio" e "heresia", foram inventadas pelos
padres e esses pretensos crimes têm sido punidos com as
maiores severidades.
Qual deve ser o destino da juventude com tais
preceptores? Desde a infância a mente humana é envenenada
com noções incompreensíveis e perturbada por fantasmas que o
gênio é constrangido a uma mecânica devoção e o homem
completamente predisposto contra a razão e a verdade.
A religião forma os cidadãos, pais e maridos? Ela é
colocada acima de tudo. Ao fanático é dito que ele deve
obedecer a Deus e não ao homem. Em consequência, quando
ele pensa estar agindo pela causa celeste, ele se rebelará contra
o seu país e abandonará sua família.
Onde a educação se dirige para assuntos úteis,
incalculáveis benefícios podem resultar daí para a humanidade.
Não obstante a sua educação religiosa quantos homens estão
sujeitos a hábitos criminosos. A despeito de um inferno tão
tórrido até mesmo na descrição, que multidão de abandonados
criminosos enche as nossas cidades. Esses homens podiam
recuar com horror daquele que expressa alguma dúvida da
existência de Deus. Do templo onde sacrifícios foram feitos,
oráculos divinos proferidos e o vício denunciado em nome do
céu, todo homem retorna aos seus antigos procedimentos
criminosos.
269
Os ladrões condenados e assassinos são ambos ateus ou
descrentes? Esses desgraçados acreditam em Deus. Eles
ouviram continuamente falar dele e nem lhes é desconhecida a
punição que ele destinou aos crimes. Mas um escondido Deus e
uma distante punição são insuficientes para reprimir crimes que
os castigos presentes e certos nem sempre impedem.
O homem que tremeria no ato de cometer o menor crime
na presença de todos, não hesita um momento quando ele
imagina a si mesmo visto apenas por Deus. Tão fraca é a ideia
da divindade quando oposta às paixões humanas.
O mais religioso pai, quando aconselha seu filho, lhe fala
de um Deus vingativo? Sua constituição destruída pela
depravação, sua fortuna arruinada pelo jogo e o desprezo da
sociedade: estes são os temas que ele emprega.
A ideia de um Deus é desnecessária e contrária a uma
saudável moralidade. Ela não consegue a felicidade da
sociedade e nem a dos indivíduos. Os homens que sempre se
ocupam com fantasmas, vivem em perpétuo terror. Eles
negligenciam seus mais importantes assuntos e passam uma
miserável existência em gemidos, orações e expiações
Eles imaginam que satisfazem a Deus se sujeitando a
todo mal. Que proveito a sociedade deduz das noções lúgubres
desses loucos piedosos. Eles são ou misantropos sem serventia
para si próprios e para o mundo ou fanáticos que perturbam a
paz das nações. Se as ideias religiosas consolam uns poucos
entusiastas tímidos e pacatos, elas tornam miseráveis durante a
vida milhões de outros, infinitamente mais consistentes com
seus princípios. O homem que pode estar tranquilo debaixo de
um terrível Deus deve ser um ser destituído de razão.
270
CAPÍTULO XXIV.
AS PONIÕES RELIGIOSAS NÃO PODEM SER O
FUNDAMENTO DA MORALIDADE. ― PARALELO ENTRE A
RELIGIÃO E A MORALIDADE NATURAL. ― A RELIGIÃO
IMPEDE O PROGRESSO DA MENTE.
Opiniões arbitrárias e inconsistentes, noções
contraditórias, especulações abstratas e ininteligíveis
especulações não podem nunca servir como fundamentação da
moralidade, que deve repousar sobre princípios claros e
evidentes, deduzidos da natureza do homem e fundados sobre a
experiência e a razão. A moralidade é sempre uniforme e nunca
segue a imaginação, as paixões ou interesses do homem. Ela
deve ser estável e igual para todos os homens, nunca variando
com o tempo e o lugar. A moralidade, sendo a ciência dos
deveres do homem que vive em sociedade, deve ser fundada
nos sentimentos inerentes à nossa natureza. Em uma palavra,
sua base deve ser a necessidade.
A teologia está errada supondo que carências mútuas, o
desejo de felicidade e os evidentes interesses das sociedades e
dos indivíduos são motivos insuficientes para influenciar o
homem. Os ministros da religião sujeitam a moralidade às
paixões humanas fazendo-a fluir de Deus. Eles construíram a
moralidade sobre o nada ao fundarem-na sobre uma quimera.
As ideias concebidas de Deus, devido aos diferentes
pontos de vista nos quais ele é olhado, variam com a fantasia de
cada homem, de tempos em tempos e de um país para outro.
Compare a moralidade da religião com a da natureza e
elas serão achadas essencialmente diferentes. A natureza
convida os homens a amarem-se uns aos outros, a preservarem
a sua existência e aumentarem a sua felicidade. A religião
ordena-os a amar um terrível Deus, a odiar-se a si mesmo e
sacrificar suas mais preciosas
271
alegrias da alma a um medonho ídolo. A natureza convida o
homem a consultar sua razão: A religião lhe diz que a razão é
uma guia falível. A natureza convida-o procurar pela verdade: A
religião lhe proíbe toda investigação. A natureza convida o
homem a ser sociável e amar seus vizinhos: A religião ordena-
lhe fugir da sociedade e se sequestrar do mundo. A natureza
aprecia a delicadeza e a afeição para com o marido: A religião
considera o matrimônio como um estado de impureza e
corrupção. A natureza convida o homem mau a resistir às suas
tendências vergonhosas como destrutivas à felicidade: A
religião, enquanto proíbe o crime, promete perdão ao criminoso
pela sua humilhação perante os seus ministros, pelos sacrifícios,
ofertas, cerimônias e preces.
A mente humana pervertida pela religião tem dificilmente
avançado um único passo em direção ao aperfeiçoamento. A
lógica tem sido regularmente empregada para provar os mais
palpáveis absurdos. A teologia tem inspirado reis com falsas
ideias de seus direitos, dizendo-lhes que o seu poder procede de
Deus. As leis tornaram-se sujeitas aos caprichos da religião. A
Física, a Anatomia e a História Natural estavam autorizadas a
olharem apenas com os olhos da superstição. Os mais claros
fatos eram refeitos quando inconsistentes com as hipóteses
religiosas.
Questões da filosofia natural, esclarecidas afirmando-se
que fenômenos tais como os vulcões e as enchentes são prova
da indignação Divina? Em vez de atribuir as guerras e as fomes
à cólera de Deus, não seria mais proveitoso mostrar aos homens
que elas procedem de seu próprio desatino e da tirania de seus
príncipes? Os homens então teriam procurado um remédio para
seus males e um melhor governo. A experiência convenceria o
homem da ineficácia dos jejuns, preces, sacrifícios e procissões,
que nunca produziram nada de bom.
272
CAPÍTULO XXV.
DAS IDEIAS QUE SÃO DADAS DA DIVINDADE, O HOMEM NÃO PODE CONCLUIR NADA ― SEU ABSURDO E
INUTILIDADE.
Supondo a existência de uma inteligência como aquela apresentada pela Teologia, deve ser reconhecido que nenhum homem tem até agora correspondeu aos desejos da providência. Deus deseja ser conhecido dos homens, mas até mesmo os teólogos não podem formar alguma ideia dele. Admitindo que eles tenham formado uma ideia, que seu ser e atributos são evidentes para eles, o resto da humanidade goza das mesmas vantagens?
Poucos homens são capazes de uma constante e profunda meditação. As pessoas comuns de ambos os sexos, condenados a trabalhar para a subsistência, nunca refletem. As pessoas da alta sociedade, as mulheres e as pessoas jovens de ambos os sexos, ocupadas apenas com suas paixões e prazeres, pensam tão pouco quanto o vulgo. Não há talvez dez homens em um milhão que tenham seriamente perguntado a si mesmos, o que entendem por Deus. E ainda menos pessoas podem ser achadas que tenham feito um problema da existência da divindade. Todavia a convicção supõe evidência, que sozinha produz a certeza. Quem são os homens que estão convencidos da existência de Deus? Nações inteiras cultuam Deus na autoridade de seus pais e de seus padres. Confidência, autoridade e hábito estão no lugar da convicção e da prova. Tudo repousa sobre a autoridade. A razão e a investigação estão universalmente proibidas.
A convicção da existência de um Deus, tão importante para todos os homens, é reservada apenas aos padres e aos inspirados? Achamos nós entre eles a mesma unanimidade que com aqueles ocupados em estudar o conhecimento das artes úteis? Se Deus deseja
273
ser conhecido de todos os homens, por que não se mostra para o mundo todo em uma menos equívoca e mais convincente maneira do que tem feito até aqui, nessas relações que parecem acusá-lo de parcialidade? As fábulas e as metamorfoses são os únicos meios de que ele pode dispor? Por que não ter seu nome, atributos e vontade escritos em caracteres legíveis a todos os homens?
Pela imputação de qualidades contraditórias nele, os teólogos têm colocado seu Deus em uma situação em que ele não pode agir. Admitindo que ele exista com tais extraordinárias e contraditórias qualidades, nós não podemos reconciliar com o senso comum e nem com a razão, a conduta e a adoração prescrita em relação a ele.
Se infinitamente bom, por que temê-lo? Se infinitamente sábio, por que nos interessamos pela nossa sorte? Se onisciente, por que contar-lhe as nossas necessidades ou fatigá-lo com as nossas súplicas? Se ele está em todos os lugares, por que construir templos para ele? Se senhor de tudo, por que fazer-lhe sacrifícios e oferendas? Se justo, de onde nasceu a crença que punirá o homem que ele próprio criou fraco e delicado? Se onipotente, como pode ser ofendido e contrariado? Se razoável, por que se zangar com uma criatura cega como o homem? Se imutável, por que pretendemos mudar seus decretos? E se inconcebível, por que se atrever a formar alguma ideia dele?
Mas se, de outro modo, ele é irascível, vingativo e mal, nós não estamos obrigados a oferecer-lhe nossas orações. Se um tirano, como podemos nós amá-lo? Como pode um senhor ser amado pelos seus escravos a quem permite ofendê-lo ou que possa ter o prazer de puni-los? Se todo poderoso, como pode o homem fugir de sua cólera? Se imutável, como pode o homem escapar a seu destino?
Então, de qualquer ponto de vista que considerarmos Deus, nós não poderemos render-lhe preces e adoração.
Mesmo admitindo a existência de uma divindade, cheia de
274
equidade, razão e benevolência, o que poderia um virtuoso ateu
temer se inesperadamente se encontrasse na presença de um
ser, de que, durante a vida, tivesse tido dele uma opinião
errônea e o negligenciado?
Oh Deus, ele poderia dizer, inconcebível ser que não
pude descobrir. Perdão, que o limitado entendimento que me
deste foi inadequado à tua descoberta. Como eu poderia
descobrir a tua espiritual essência só com a ajuda dos sentidos?
Eu não poderia submeter minha mente ao jugo dos homens, que
confessadamente, não mais esclarecidos do que eu, concordam
somente entre eles em convidar-me a renunciar a razão que tu
me deste. Mas, oh Deus, se tu amas tuas criaturas, eu também
os tenho amado. Se a virtude te agrada, meu coração sempre a
honrou. Eu tenho consolado o aflito e nunca devorei a comida do
pobre. Eu tenho sido sempre justo, generoso e compassivo.
A despeito da razão, os homens são frequentemente
trazidos de volta aos preconceitos da infância pelas doenças.
Isto é muito comum no caso das pessoas doentes. À
aproximação da morte, eles tremem porque a máquina está
enfraquecida. Estando o cérebro incapaz de executar suas
funções, eles caem em delírios. Os nossos sistemas
experimentam as mudanças do nosso corpo.
275
CAPÍTULO XXVI.
APOLOGIA PARA OS SENTIMENTOS CONTIDOS NESTA OBRA.
Os homens tremem ao próprio nome de ateísmo. Mas o
que é um ateu? O homem que traz de volta a humanidade à
razão e a experiência, destruindo preconceitos prejudiciais à sua
felicidade. Que não tem necessidade de recorrer a poderes
sobrenaturais para explicar os fenômenos da natureza.
É loucura, dizem os teólogos, supor movimentos
incompreensíveis na natureza. É loucura preferir o conhecido ao
desconhecido? Consultar a experiência e a evidência dos
nossos sentidos? Dirigirmo-nos à razão e preferir seus oráculos
à decisão dos sofistas que se confessam mesmo ignorar o Deus
que anunciam?
Quando vemos padres tão zangados com opiniões ateus,
nós não deveríamos suspeitar da justiça de sua causa? Tiranos
espirituais! São vocês que tem difamado a Divindade, sujando-o
com o sangue dos desgraçados! Vocês são os verdadeiros
ímpios. A impiedade consiste em insultar o Deus em quem se
acredita. Aquele que não acredita em Deus, não pode injuriá-lo e
não pode naturalmente ser ímpio.
De outro modo, se a piedade consiste em servir o seu
país, sendo útil aos próximos e observando as leis da natureza,
um ateu é piedoso, honesto e virtuoso quando sua conduta é
regulada pelas leis que a razão e a virtude lhe prescrevem.
Dizem-nos que os homens que têm motivo para esperar
uma felicidade futura nunca caem no ateísmo. Sozinhos, os
interesses das paixões e o medo da punição fazem ateus. Mas
os homens cujo empenho em esclarecer a razão, que estampam
cada ideia de virtude,
276
não estão contados entre os rejeitam a existência de um estado
futuro por medo de seus castigos.
É verdade que o número de ateus é incalculável porque o
entusiasmo tem ofuscado a mente humana e o progresso do
erro tem sido tão grande que poucos homens têm a coragem de
pesquisar a verdade. Se, por ateus são significados aqueles
que, guiados pela experiência e evidência dos seus sentidos,
não vêem nada na natureza senão o que realmente existe, se
por ateus são significados os filósofos naturais que pensam que
todas as coisas podem ser julgadas pelas leis do movimento
sem ter que recorrer a um poder quimérico e se por ateus são
significados aqueles que não conhecem o que um espírito é e
rejeitam um fantasma cujas qualidades contrárias apenas
perturbam a humanidade: Sem dúvida, há muitos ateus e o
número deles seria maior, se o conhecimento da física e a
saudável razão fossem mais disseminados no geral.
Um ateu não acredita na existência de um Deus. Nenhum
homem pode ter certeza da existência de um ser inconcebível
em que qualidades inconsistentes são ditas estar unidas. Neste
sentido, muitos teólogos poderiam ser ateus, como também
aqueles seres crédulos, que se prostram diante de um ser, do
qual eles não têm outra ideia, a não ser aquela dada a eles por
homens que declaradamente não compreendem nada dele
também.
277
CAPÍTULO XXVII.
O ATEÍSMO É COMPATÍVEL COM UMA MORALIDADE SAUDÁVEL?
Embora o ateu negue a existência de um Deus, não nega
a sua própria existência e nem a dos outros homens. Ele não
pode negar a existência de relações que subsistem entre os
homens e nem os deveres que necessariamente resultam
dessas relações. Não pode duvidar da existência da moralidade
ou da ciência das relações que subsistem entre os homens que
vivem em sociedade. Embora possa algumas vezes parecer
esquecer os princípios morais, daí não decorre que eles não
existam. Ele pode agir sem consistência com os seus princípios,
mas o infiel filosófico não é tanto objeto de temor quanto um
entusiástico padre. Embora o ateu não creia na existência de um
Deus, pode ser pensado que se permitirá excessos perigosos e
se sujeitar a punições?
Se os homens poderiam ser mais felizes sob um príncipe
ateu do que sob um tirano crente que continuamente presenteia
os sacerdotes? Não deveríamos temer querelas religiosas do
último? Não deveria o nome de Deus, de que o monarca
aproveita-se, algumas vezes servir como desculpa para as
perseguições do tirano? Não esperaria ele ao menos achar na
religião o perdão para os seus crimes?
Muita inconveniência pode surgir fazendo a moralidade
depender da existência de um Deus. Quando as mentes
corruptas descobrem a falsidade dessas suposições, pensarão
que a virtude em si mesma, como uma divindade, é uma mera
quimera e não verão razão de praticá-la na vida. Portanto, é
como seres que vivem em sociedade que estamos ligados pela
moralidade. Nossos deveres devem sempre ser os mesmos,
quer um Deus exista ou não.
Se alguns ateus negam a existência do bem e
278
do mal, isto apenas prova a própria ignorância deles. Um
sentimento natural compele o homem amar o prazer odiar a dor.
Pergunte ao homem que nega a existência da virtude ou do
vício, se ele ficaria indiferente ao ser roubado, caluniado, traído
ou insultado? Sua resposta provará que ele faz uma distinção
entre as ações dos homens, que as distinções de bem e mal não
dependem das convenções humanas e de ideias sobre
divindade e não dependem de recompensas ou punições de um
futuro estado de existência.
O ateu, acreditando apenas na vida presente, pelo menos
deseja viver feliz. O Ateísmo, diz Bacon, torna o homem
prudente enquanto limita sua visão para esta vida. Os homens
acostumados ao estudo e à meditação nunca são maus
cidadãos.
Alguns homens, desenganados eles mesmos em assuntos
religiosos, pretextam que a religião é útil para o povo, visto que
sem isto, ele não poderia ser governado. Mas a religião tem uma
influência útil nos costumes populares? Ela escraviza sem fazer
obedientes. Ela faz idiotas, cuja única virtude consiste na cega
submissão às inúteis e bobas cerimônias, para as quais mais
consequências estão ligadas do que à virtude real ou à pura
moralidade. As crianças ficam amedrontadas por terrores
imaginários apenas por um momento. É somente mostrando aos
homens a verdade que eles podem apreciar o valor da virtude e
achar motivos para cultivá-la.
É principalmente entre as nações onde a superstição,
ajudada pela autoridade, faz seu pesado jugo ser sentido e
abusa imprudentemente de seu poder, que o número de ateus é
considerável. A opressão infunde energia na mente e ocasiona
uma rigorosa investigação das causas dos seus males. A
calamidade é um poderoso incentivo, estimulando a mente para
o lado da verdade.
279
CAPÍTULO XXVIII.
OS MOTIVOS QUE LEVAM AO ATEÍSMO ― PODE ESTE
SISTEMA SER PERIGOSO?
Que interesse, somos perguntados, podem ter os homens
de negar a existência de Deus? Mas não são as tiranias
exercidas em seu nome e a servidão em que os homens gemem
sob os padres, motivos suficientes à determinação do exame
das pretensões de uma classe que ocasiona tanto mal ao
mundo? Pode haver motivo mais forte do que o incessante medo
excitado pela crença em um ser que se irrita com os nossos
mais secretos pensamentos, a quem nós podemos ofender sem
querer, que nunca está contente conosco, que dá ao homem
más inclinações, que pode puni-lo por elas e que eternamente
pune os crimes de um momento?
O deísta nos dirá que apenas pintamos a superstição.
Mas tal suposição nunca provará a existência de uma divindade.
Se o Deus da superstição é um ser desagradável, o Teísmo
deve ser sempre inconsistente e impossível.
O devoto corrompido acha na religião mil pretextos para
ser mal. O ateu não tem um disfarce para cobrir sua vingança e
fúria.
Nenhum ateu sensível pensa que as ações cruéis
causadas pela religião são capazes de justificação. Se o ateu é
um homem mal, ele sabe quando está cometendo algo errado.
Nem Deus e nem seus sacerdotes podem então persuadi-lo que
agiu apropriadamente.
A indecente e criminal conduta de seus ministros, dizem
alguns homens, não prova nada contra a religião. Não pode a
mesma coisa ser dita de um ateu com bons princípios e uma
péssima prática? O Ateísmo, é dito, destrói a força das
promessas, mas o perjúrio é
280
bastante comum nessas nações que se vangloriam de sua
piedade. São os mais santos reis fiéis às suas promessas?
Algumas vezes a própria religião não concede a dispensa delas,
especialmente quando o perjúrio é benéfico à santa causa? Os
criminosos se abstêm de juramentos quando necessário à sua
justificação? As promessas são bobas formalidades que nem se
impõem aos vilões e nem acrescentam nada aos compromissos
dos homens bons.
Tem sido perguntado se já existiu um povo que não tenha
tido alguma ideia de Deus e se poderia existir uma nação ateia.
Um tímido e ignorante animal como o homem
necessariamente torna-se supersticiosos sob calamidades. Ou
ele próprio cria um Deus ou toma o que lhe é oferecido por
outro. Mas o selvagem não extrai a mesma conclusão da
existência de seus deuses que o cidadão civilizado. Uma nação
de selvagens se contenta com uma rude adoração e nunca
raciocina sobre a Divindade. Apenas nos Estados civilizados é
que os homens sutilizam essas ideias.
Uma numerosa sociedade sem religião, moralidade,
governo, leis ou princípios, sem dúvida alguma não pode existir,
visto que isto seria apenas um agrupamento de homens
mutuamente dispostos a se ofenderem. Mas, apesar de todas as
religiões do mundo, não estão as sociedades humanas quase
nesse estado? Uma sociedade de ateus, governada por boas
leis cujas recompensas estimulem a virtude e cujas punições
detenham os crimes, poderia ser infinitamente mais virtuosa do
que essas sociedades religiosas, nas quais todas as coisas
tendem a perturbar a mente e a depravar o coração.
Nós não podemos esperar remover de uma nação inteira
suas ideias religiosas, porque elas foram inculcadas desde a
mais tenra infância. Mas o vulgo, em longo prazo, pode colher
vantagens de trabalhos que a princípio não faz ideia.
281
O Ateísmo, tendo a verdade do seu lado, irá gradualmente
insinuar-se na mente e tornar-se familiar ao homem.
CAPÍTULO XXIX.
RESUMO DO SISTEMA DA NATUREZA.
Oh tu, diz a Natureza, que de acordo com o impulso que
eu te dei, tende a todo instante para a felicidade, não resistas à
minha soberana lei. Trabalhe para a tua felicidade. Desfrute sem
medo. Seja feliz.
Retorna, oh devoto, à natureza. Ela irá banir do teu
coração os terrores que estão te esmagando. Cessa de
contemplar o futuro. Vive para ti mesmo e para os teus
próximos. Eu aprovo os teus prazeres enquanto eles não
machucarem a ti e nem aos outros que eu tenho tornado
necessários à tua felicidade.
Deixa o teu interesse pela humanidade no destino do teu
próximo. Considere que, como ele, tu podes um dia ser
miserável. Seca as lágrimas da desolada virtude e da inocência
ofendida. Deixa o moderado fervor da amizade e a estima de
uma companhia amada fazerem com que esqueças as dores da
vida.
Sê justo, visto que a equidade sustenta a raça humana.
Sê bom porque a bondade ganha qualquer coração. Sê
indulgente porque tu vives entre seres fracos como tu mesmo.
Sê modesto porque o orgulho machuca o amor próprio de todo
ser humano. Perdoa as injustiças porque a vingança eterniza o
ódio. Faze o bem a quem te injuria que tu te podes mostrar
maior que ele e ganhar a sua amizade. Sê moderado,
temperado e casto porque a voluptuosidade, a intemperança e
282
o excesso destroem teu ser e te tornam desprezível.
Sou eu que puno os crimes deste mundo. O homem
malvado pode escapar às leis humanas, mas da minha ele não
pode nunca fugir. Abandona-te para a intemperança e o homem
não te punirá, mas eu te punirei encurtando tua existência. Se
dedicado ao vício, tu perecerás debaixo dos teus fatais hábitos.
Príncipes, cujo poder ultrapassa as leis humanas, tremem sob
mim. Eu os puno infundindo-lhes a suspeita e o terror em suas
mentes. Olhe no coração desses criminosos cujos semblantes
sorridentes escondem uma alma angustiada. Vê o avaro
cobiçoso, desfigurado e emagrecido, gemendo debaixo da
riqueza adquirida com o sacrifício de si mesmo. Observe o
sibarita voluptuoso entortar-se sob uma alquebrada constituição.
Vê o ódio mútuo e desdenhoso que subsiste entre um casal
adúltero! A mentira desposada de toda confiança. O gelado
coração da ingratidão que nenhum ato de amabilidade pode
dissolver. A alma pétrea do monstro que, à vista do
desafortunado, nunca o suavizou. A vingança alimentando em
seu peito víboras roedoras que a consomem! Inveje, se tu te
atreves, o sono do assassino, do iníquo juiz ou do opressor
cujos sofás estão rodeados pelos archotes das fúrias. Mas não!
A humanidade te obriga a partilhar dos seus merecidos
tormentos. Comparando-te com eles e achando o teu peito o
domicílio constante da paz, tu acharás um motivo de auto-
congratulação. Finalmente, Observe o decreto do destino cheio
de abundância. Ele deseja que a virtude nunca seja deixada de
sem recompensas, mas o crime será sempre a sua própria
punição.
283
NOTAS.
NOTA A. ― CAPÍTULO I.
Os homens têm caído em mil erros, ao atribuir existência
distinta de nós mesmos aos objetos de nossas percepções
interiores, da mesma maneira como nós as concebemos em
separado. Em consequência, tornou-se importante examinar a
natureza das distinções que subsistem nesses objetos.
Algumas dessas são tão distintas das outras que elas não
podem existir juntas. A superfície de um corpo não pode, ao
mesmo tempo, ser branco e preto em todas as suas partes. E
nem pode um corpo ser mais ou menos extenso que outro das
mesmas dimensões. Deste modo, duas ideias distintas
necessariamente excluem uma à outra, desde que a existência
de uma delas necessariamente infira a não existência da outra e
consequentemente, sua própria separada e independente
existência. Esta classe eu chamo de real ou de existências
exclusivas.
Mas há outra classe que, em oposição à anterior, eu
chamo de fictícias ou de existências imaginárias. Enquanto um
corpo está passando de uma cor ou forma para outra, nós
sucessivamente experimentamos diferentes sensações, mas é
evidente que nós permanecemos o mesmo, sendo apenas o
corpo que muda de cor ou de forma. Mas o corpo não é a sua
cor e nem a sua forma, visto que ele pode existir sem eles e
ainda assim ser o mesmo corpo. Nem é a forma ou figura de um
corpo sua cor, movimento, extensão ou dureza, porque essas
qualidades são distintas umas das outras e nenhuma delas pode
existir separa e independe do resto. Mas como elas podem
existir juntas,
284
elas não são distintas como aquelas que não podem existir
juntas ao mesmo tempo. Elas não podem ter uma separada e
distinta existência dos corpos de que são propriedades. O
mesmo poder pelo que o corpo branco existe é aquele pelo qual
sua brancura também existe. O que nós chamamos de brancura
não pode existir por si mesmo, separado de um corpo. Esta é a
distinção entre coisas capazes de serem separadas, embora
achadas unidas e que, embora excitando em nós diferentes
impressões, podem, todavia, ser consideradas separadamente e
tornarem-se distintos objetos de percepção. Esta classe de
objetos imaginários ou fictícios, existindo apenas em nossa
própria mente, não devem ser confundidos com a primeira
classe de objetos que tem uma real, exclusiva e independente
existência própria.
Inumeráveis erros têm surgido pela confusão dessas
distinções. Nas matemáticas, por exemplo, nós ouvimos, a todo
o momento, sobre pontos e linhas, ou extensões sem
comprimento e superfícies tendo comprimento e largura sem
profundidade, embora os próprios geômetras confessem que tais
corpos não existem e nem podem existir senão na mente,
enquanto cada corpo na natureza é verdadeiramente extenso
em todos os sentidos. Materialistas inexperientes têm caído em
grossos absurdos por tomarem como reais e com distintas
existências as diferentes propriedades da extensão,
separadamente consideradas pelos matemáticos. Desse modo
eles formam um mundo de átomos ou de pequenos corpos sem
volume e extensão, todavia possuindo infinita dureza e uma
grande variedade de formas. Corpos como esses podem apenas
existir nas mentes dos atomistas.
Se mesmo homens competentes podem ser
desajeitadamente enganados não distinguindo entre a existência
real de corpos externos e a existência fictícia de percepções
existentes somente na mente, não é de se admirar que uma
multidão de erros possa nascer,
285
em se comparando não só aquelas percepções em si mesmas,
mas mesmo nas suas mútuas relações umas com as outras.
Eu não digo que as sensações possam existir separadas
de nós mesmos. Os sentimentos de prazer e dor, embora não
distintos de quem os sente, certamente são da minha mente que
os percebe, reflete e compara-os com outras sensações. Como
o sentimento da real existência é mais claro que o imaginário ou
fictício, nós imaginamos, que uma similar distinção existe entre
todos os objetos que a mente concebe. Portanto, as operações
da mente e suas diferentes propriedades têm sido consideradas
como seres reais, como tantas entidades que tendo existências
reais em si mesmas e adquirido assim uma existência física que
não possuem por si mesmas. Em consequência, nossa mente
tem sido diferenciada de nós mesmos como a parte é do seu
todo. A própria mente tem sido separada da alma ou daquilo que
anima, daquilo que nos faz viver. Uma distinção tem sido feita na
mente entre o entendimento e a vontade. Em outras palavras,
entre aquilo que percebe e aquilo que deseja e aquilo que
deseja e aquilo que não deseja. As nossas percepções têm sido
discriminadas de nós mesmos e umas das outras. Assim são os
pensamentos, ideias, etc. que não são nada senão a própria
faculdade de percepção vista em relação a algumas de suas
funções. Tudo isto, entretanto, são apenas modificações da
nossa essência e não mais distintas delas mesmas e nem de
nós do que a extensão, a solidez, a forma, a cor, o movimento
ou repouso são distintos do corpo a que pertencem. Mas,
distinções absolutas têm sido feitas entre elas e têm sido
consideradas como tantas pequenas entidades das quais nós
formamos uma montagem. De acordo, entretanto, com esses
filósofos, nós somos compostos de milhares de pequenos
corpos, tão distintos uns dos outros como as
286
69
diferentes árvores de uma floresta, cada um dos quais existe por
um particular e independente poder!
Com relação às coisas realmente distintas de nós, não
apenas suas propriedades, mas mesmo as relações dessas
propriedades têm sido diferenciadas delas mesmas e umas das
outras e para estas uma real existência tem sido dada. Foi
observado que os corpos agem, batem e se repelem uns aos
outros e, em consequência de suas ações e reações, mudanças
são produzidas neles. Quando, por exemplo, eu ponho minha
mão no fogo, eu sinto o que é chamado de calor. Neste caso, o
fogo é a causa e o calor é o efeito. Para abreviar a linguagem,
foram inventados termos gerais aplicados a ideias particulares
de natureza similar. O corpo que produz a mudança em outro foi
chamado de causa e o corpo que sofre a mudança de efeito.
Como esses termos produzem na mente alguma ideia de
existência, ação, reação e mudança, o hábito de usá-los faz os
homens acreditarem que eles têm uma clara e distinta
percepção deles. Pelo contínuo uso dessas palavras, os homens
finalmente acreditaram que aí pode existir uma causa, sem uma
substância e sem um corpo. A causa, embora distinta de toda
matéria, sem ação ou reação, mas capaz de produzir todo
presumível efeito.
287
NOTA B. ― CAPÍTULO IV.
As mudanças são produzidas nos corpos pelas suas
ações e reações uns sobre os outros. O mesmo corpo que agora
no presente é uma causa foi previamente um efeito. Ou, em
outras palavras: o corpo que produz uma mudança em outro, por
ação sobre ele, passou ele mesmo por uma mudança pela ação
de outro corpo. Um corpo pode, em relação a outros, ser ao
mesmo tempo causa e efeito. Enquanto eu empurro um corpo
com um bastão, o movimento do bastão que é o efeito do meu
impulso, é a causa da progressão do corpo que é empurrado. A
palavra "causa" apenas denota a percepção da mudança que
um corpo produz em outro, considerado em relação ao corpo
que produz isso. E a palavra "efeito" significa nada mais que a
percepção da mesma mudança considerada relativamente ao
corpo que sofre isso. O absurdo da suposição da existência de
causas independentes e absolutas que não são e nem podem
ser efeitos, deve parecer óbvio em toda compreensão imparcial.
A progressão infinita de corpos que têm estado em
sucessão, causa e efeito, logo fatigou os homens desejosos de
descobrir a causa geral para todos os efeitos particulares. Todos
eles de uma vez, por conseguinte, subiram à primeira causa
imaginada ser universal em relação à que todas as causas
particulares são efeitos, embora não ela mesma o efeito de
alguma causa. A única ideia que eles podem apresentar dela é
que produziu todas as coisas, não somente a forma de suas
existências, mas mesmo suas próprias existências. Ela não é, de
acordo com eles, nem um corpo e nem um ser como os seres
particulares. Em uma palavra, ela é a causa universal. E isto é
tudo o que eles podem dizer sobre ela.
Do que foi dito (vide NOTA A) deve
288
parecer que esta causa universal é somente uma quimera, um
mero fantasma. No máximo ser um imaginário e fictício existente
apenas nas mentes daqueles que pensam isto. De qualquer
maneira, é o destino dos gregos, do Deus dos filósofos, judeus e
cristãos e do Benevolente Espírito da nova seita parisiense dos
teofilantropistas, a única seita que já tentou fundar a adoração
sobre princípios que sustentam alguma semelhança com a
moralidade, a razão e o senso comum.
Aqueles que, sem o conhecimento desta causa universal,
se contentam com causas particulares, as têm diferenciados
geralmente das substâncias materiais. Vendo a mesma
mudança frequentemente produzida por diferentes ações ou
causas, conceberam a existência de causas particulares
distintas dos corpos sensíveis. Alguns têm lhas atribuído
inteligência e vontade: daí deuses, demônios, gênios e espíritos
bons e maus. Outros, que não podem conceber a existência de
um modo de ação diferente do seu próprio modo, têm imaginado
certas virtudes procedentes da influência dos astros, da sorte e
mil outros obscuros e ininteligíveis termos que não significam
nada mais que cegas e necessárias causas.
289
NOTA C. ― CAPÍTULO V.
Entre os inumeráveis erros nos quais os homens estão
continuamente caindo pela confusão de objetos fictícios com
objetos reais, está o de supor a existência de um infinito poder,
causa, sabedoria ou inteligência e de apenas considerar as
propriedades da sabedoria, poder e inteligência nos seres que
eles vêem. O termo "infinito" é totalmente incompatível com a
existência de qualquer coisa finita, positiva ou real. Em outras
palavras: esse termo carrega consigo a impossibilidade de uma
existência real. Aqueles que chamam um poder, quantidade ou
número de infinito, falam de alguma coisa indeterminada de que
nenhuma justa ideia pode ser formada, pois por mais que a ideia
possa ser extensa, ela deve caber precisamente na coisa
representada. Um número infinito, por exemplo, não pode ser
concebido e nem expresso. Admitindo por um momento a
existência de tal número, é necessário perguntar se certa parte,
por exemplo, a metade não lhe pode ser retirada. Esta metade é
finita e pode ser contada e expressa. Mas a dobrando, nós
fazemos uma soma igual ao número infinito, que poderá então
ser determinado e para o qual uma unidade pode ser ao menos
adicionada. Esta soma então será maior do que era antes, maior
do que o número infinito, ou daquele de que nada pode ser
adicionado. Todavia, nós fizemos uma adição nele! Ele é, por
conseguinte, ao mesmo tempo infinito e finito e, em decorrência,
possui propriedades exclusivas de um e de outro. Nós podemos
de igual modo, conceber a existência de um corpo branco que
não é branco, ou em outras palavras: uma mera quimera. Tudo o
que nós podemos dizer disso é que isso não existe e nem pode
existir.
O que foi dito de um número infinito igualmente se aplica
a uma causa infinita, inteligência ou poder. Como há diferentes
graus de causação da inteligência e do poder, esses graus
devem ser considerados
290
como unidades, a soma dos quais expressará a quantidade do
poder e da inteligência de tais causas. Uma infinidade de poder,
ação ou inteligência, a que nada possa ser adicionada e nem
concebida, é impossível, nunca existiu e nunca pode existir.
NOTA D. ― CAPÍTULO VIII.
O homem nasce com uma disposição para conhecer, ou
para sentir e receber impressões da ação de outros corpos
sobre ele. Essas impressões são chamadas sensações,
percepções ou ideias. Estas impressões deixam traços ou
vestígios de si mesmas que são algumas vezes excitados na
ausência dos objetos que as ocasionaram. Esta é a faculdade da
memória ou dos sentimentos, por meio do que o homem tem
conhecimento das antigas impressões, acompanhadas pela
percepção da distinção entre o tempo que recebeu e aquele em
que delas se relembra.
Toda impressão produz uma sensação agradável ou
desagradável. Quando vigorosas, nós as chamamos de prazer
ou dor. Quando fracas, de satisfação, bem-estar, desconforto ou
mal-estar. O primeiro desses sentimentos nos impele para os
objetos e nos faz esforçarmo-nos para juntar e prendê-las a nós,
para aumentar e prolongar as forças das sensações e para
renovar e tornar a chamá-las quando elas cessam. Nós amamos
os objetos que produzem tais sensações e somos felizes em
possuí-los. Nós procuramos e desejamos sua posse e somos
miseráveis quando as perdemos. O sentimento de dor nos induz
a fugir e escapar dos objetos que produzem isso, a temer, odiar
e detestar sua presença.
291
Nós somos assim constituídos para amar o prazer e odiar a dor.
E esta lei, gravada pela natureza no coração de cada ser
humano, é tão poderosa que em cada ação da vida força a
nossa obediência. O prazer é ligado a cada ação necessária
para a preservação da vida e a dor àquelas de natureza oposta.
Amar o prazer e odiar a dor nos induz, sem exame ou reflexão, a
agir de maneira a obter a posse do primeiro e a falta do
segundo.
Uma vez recebidas as impressões, não fica no poder do
homem prolongar ou torná-las duráveis. Há certos limites que os
esforços humanos não podem exceder. Algumas impressões
são mais pungentes do que outras e nos tornam felizes ou
infelizes. Uma impressão agradável no começo, frequentemente
produz dor no seu progresso. Prazer e dor estão tão misturados
entre si, que é raro que um seja sentido sem alguma porção do
outro.
O homem como qualquer outro animal, ao vir ao mundo,
abandona-se às impressões presentes sem prever as suas
consequências ou desfecho. A previsão pode ser adquirida
apenas pela experiência e a reflexão pelas impressões
comunicadas a nós pelos objetos. A este respeito alguns
homens continuam infantis a vida toda, nunca adquirindo a
faculdade da previsão. E mesmo entre os mais sábios são
achados poucos que, certas impressões violentas como as do
amor, por exemplo, a mais violenta de todas, em algum período
da vida não os tenham reduzido a um estado infantil, não
prevendo nada e se permitindo serem guiados pelos impulsos
momentâneos.
À medida que avançamos em idade adquirimos mais
experiência na comparação dos objetos novos e desconhecidos,
com a ideia ou imagem daquelas impressões que a memória
292
tem preservado. Nós julgamos o desconhecido pelo conhecido
e, em consequência, conhecemos se aqueles devem ser
procurados ou evitados.
A faculdade de comparar os objetos presentes com os
ausentes, que existem apenas na memória, constitui a razão.
Ela é a balança com que pesamos as coisas. E, chamando de
volta aquelas que estão ausentes, nós podemos julgar pelas
suas mútuas relações o presente. Esta é a exaltada razão de
que, não sei a que pretexto, o homem se arroga para se
diferenciar de todos os outros animais. Nós vemos todos os
animais possuírem sinais evidentes de julgamento e
comparação. Os peixes dirigem-se ao mesmo lugar na hora
precisa em que costumam receber comida. Os animais mais
fracos se reúnem em sociedades para defesa mútua. A
sagacidade do cachorro é de conhecimento geral e a previsão
da abelha em sido há muito tempo proverbial. Os ursos da
Sibéria e os elefantes da Índia parecem possuir uma decidida
superioridade de entendimento sobre os selvagens humanos e
escravos que habitam esses países.
Alguns filósofos supõem o homem tendo o sentido do tato
em um grau superior ao dos outros animais como explicação da
sua superioridade. Se a isso adicionarmos a vantagem de uma
maior longevidade e a capacidade peculiar da espécie humana
de suportar a existência em todo o globo, talvez tenhamos
enumerado todas as causas da superioridade que o homem
sempre recebeu da natureza, qualquer que possa ser suas
pretensões. A fala ou o poder de comunicar ideias é comum em
quase todos os animais. Alguns deles inclusive possuem em
maior grau que o homem em certos modos de sociedade.
Dampierre descreve uma nação cuja fala consiste no uivo de
alguns poucos sons guturais e cujo vocabulário não contem mais
do que trinta palavras.
293
NOTA E. ― CAPÍTULO XXI. Qualquer que possam ser as suas pretensões, os
partidários da religião apenas podem provar que toda coisa é o efeito de uma causa, que somos com frequência ignorantes das causas imediatas dos efeitos que nós vemos e que mesmo quando as descobrimos, achamos que elas são os efeitos de outras causas e assim ao infinito. Mas eles não provaram e nem podem provar a necessidade da ascensão para a causa primeira e eterna, a causa universal de todas as causas particulares, produtora não somente das propriedades, mas mesmo da existência das coisas e que ela seja independente de toda outra causa. É verdade que nós nem sempre conhecemos a ligação, a cadeia e o progresso de cada causa. Mas o que pode ser inferido disso? A ignorância nunca pode ser o motivo razoável nem de crença ou de determinação.
Eu sou ignorante da causa que produz certo efeito e não posso assinalar uma que me satisfaça. Então devo eu ficar contente com aquela assinalada por outro mais presunçoso que diz estar convencido, embora não melhor informado do que eu, especialmente quando sei que a existência de tal causa é impossível? O relógio de um navio europeu naufragado, tendo caído nas mãos de uma tribo de índios, foi objeto de reunião para se descobrir a causa de seus extraordinários movimentos. Por muito tempo os índios não puderam nada concluir. Por fim um do grupo, mais arrojado do que os outros, declarou ser isto um animal de espécie desconhecida por eles e, como ninguém pudesse convencê-lo de que os movimentos do relógio poderiam provir de algum outro princípio diferente do que produz a vida animal e a ação, ele se imaginou habilitado a impor à assembléia a sua explicação.
F I M
296
ENSAIO
SOBRE
O DIREITO E AS LEIS POLÍTICAS
DO GOVERNO
AVISO
Este ensaio encontrado nos papéis de Helvétius foi
inserido no ano IV na 'Década filosófica'. Reconhece-se ai seus
princípios políticos e seu estilo. Entretanto, não se pode
assegurar que seja realmente dele. Data de aproximadamente
trinta anos antes da revolução e se acreditaria escrito alguns
anos mais tarde. O autor aí examina rapidamente as sociedades
políticas depois da sua origem até o estabelecimento do governo
monárquico. E ele teria sem dúvida levado mais longe suas
reflexões, se a lembrança das perseguições que já havia já
suportado não lhe houvesse contido pena.
297
ENSAIO
SOBRE
O DIREITO E AS LEIS POLÍTICAS
DO GOVERNO
Antes de refletir sobre um governo qualquer é necessário
fixar suas as sobre o direito natural do homem, direito essencial
imprescritível porque constitui a espécie. Direito
indubitavelmente inalienável porque nenhuma espécie pode
deixar de ser ela mesma a não ser deixando de existir.
Nós dissemos que é necessário antes de passar ao
exame das leis políticas de um governo, fixar as ideias sobre o
direito natural do homem porque todo governo, cujas leis
políticas ofendem esse direito essencial, será um governo
tirânico que terá apenas o princípio da força. E tal força poderá
ser legitimamente contraposta, estando-se assim em contínuo
estado de guerra, injusta da parte do usurpador do poder e
legítima da parte dos indivíduos que reclamam o seu direito
essencial.
O homem nasce necessariamente livre porque sua
conservação, sendo o seu fim principal, a busca e a escolha das
coisas necessárias a esta conservação é o seu primeiro dever e
a liberdade é necessária à sua consecução. Esta busca sendo
um trabalho, a primeira destinação do homem é trabalhar, mas
tendo o trabalho por primeiro objetivo a sua própria conservação,
deve ser necessariamente livre porque, se assim não for, sua
conservação será incerta e
298
seu fim e sua destinação principal não serão exequíveis.
Do trabalho necessariamente livre e da previsão natural
do homem segue a acumulação de coisas necessárias à
subsistência e desta acumulação, fruto de um trabalho livre,
nasce a propriedade. A propriedade é então um direito natural.
A propriedade sendo um direito natural não pode ser
então invadida na totalidade, nem mesmo parcialmente, sem
ferir essencialmente o direito natural do homem.
Mas como o fim principal do homem, após sua
conservação, é a perpetuação da espécie, os indivíduos
necessariamente se multiplicam.
A natureza tendo desigualmente distribuído a força física
nos indivíduos, aquele que foi dotado de uma maior força pode
invadir a propriedade do mais fraco. E o trabalho sendo um
esforço e o seu usufruto um prazer, o mais forte certamente
estará tentado a assim proceder.
Mas a previsão natural do homem, fazendo temer a cada
indivíduo mais fraco a submissão ao mais forte, levou os
indivíduos a reunir suas forças contra a violência. E a reunião
dessas forças tornou-se superior àquela que era de se recear. A
ordem restabeleceu-se.
O violador dos direitos naturais contra o qual a associação
foi formada não foi incluído na associação. Estando separado,
ele necessariamente formou uma família à parte. E a espécie ao
se multiplicar, foi-se formando por diferentes associações
separadas pelos diferentes sinais e línguas imaginadas para
explicar as necessidades e os desejos.
As diferentes associações sem relações entre elas
deviam ter desconfianças umas das outras e cada uma delas
sentiu a necessidade, para sua segurança, de se entender e se
unir mais particularmente com outras. Essas
299
primeiras associações não eram mais que simples
confederações. Eram sociedades políticas.
Essas sociedades, políticas tendo apenas por objeto a
conservação dos interesses particulares, foram o produto das
vontades particulares reunidas de que se formou a vontade
geral, primeiro fundamento da sociedade política. Mas esta
vontade geral não poderia ser formada, se a liberdade e a
propriedade não fossem conservadas em toda a sua
integralidade, porque elas eram o objetivo da formação daquela
sociedade.
Para conservar a liberdade e a propriedade em toda sua
integralidade, objeto da formação da sociedade, foi necessário
que os direitos respectivos de cada indivíduo fossem fixados por
leis. E essas leis, sendo o resultado e o produto da vontade
geral, puderam ser consideradas apenas como os órgãos das
vontades particulares reunidas e formando uma vontade geral.
Portanto, foi necessária a confecção da lei, que as vontades
particulares fossem reunidas em uma vontade geral. O direito de
fazer leis pertence então, necessariamente e essencialmente, à
assembléia de todos os membros da sociedade de quem as
vontades reunidas puderam, por elas mesmas, formar a vontade
geral de que as leis foram a expressão.
A lei uma vez formada foi necessariamente imperativa,
porque ela era a expressão da vontade geral. A vontade geral foi
então o soberano e a lei a palavra do soberano. A palavra do
soberano, sendo o título conservador dos direitos naturais e
essenciais de cada indivíduo, necessitou, para que ela não se
perdesse da escolha de depositários. A lei sendo imperativa,
necessariamente necessita que seus depositários a fizessem
executar. Foi necessário então, dar o poder executivo a esses
depositários, mas esse poder só poderia ser dado pelas
vontades reunidas. Todo
300
poder emana então, essencialmente da reunião das vontades na
qual reside a soberania.
O poder executivo dos depositários da lei foi então
legítimo, mas necessariamente limitado a fazer executar a lei,
porque a lei, sendo a palavra do soberano e os depositários da
lei sendo apenas os agentes comissionados pelo soberano para
fazer executar a vontade geral, estavam necessariamente
submetidos à lei. Se eles não estivessem submetidos à lei, eles
estariam fora da soberania e por consequência não fariam parte
da sociedade política residente essencialmente na reunião de
todas as vontades. Como agentes do soberano os depositários
da lei, encarregados de sua execução, devem conta ao
soberano do exercício do poder que lhes foi confiado. A
assembléia geral da nação em que reside essencialmente toda a
soberania foi então necessária para ordenar o exercício de
poder dos seus agentes e chamar outros ao exercício desse
poder, se eles não correspondessem à confiança pública.
Com a sociedade política se multiplicando sem cessar e
com ela as relações necessárias entre os diferentes membros e
com as outras sociedades políticas que lhe são vizinhas, as
assembleias nacionais tiveram então de ser frequentes e
cronologicamente regulares, porque as circunstâncias exigiam
novas leis e as leis, sendo apenas o resultado das vontades
reunidas, só podiam ser feitas em assembleias gerais. Os
agentes depositários do poder executivo, submissos eles
mesmos à lei, nos casos fortuitos que exigiam uma nova lei cujo
retardamento pudesse prejudicar a sociedade, tiveram então o
poder de convocar a nação para as assembleias extraordinárias
e propor as leis que julgassem necessárias. Eis ai as
301
assembleias nacionais fixas e as assembleias nacionais
extraordinárias
Os agentes do soberano, a quem é confiado o poder
soberano, foram escolhidos em maior ou menor número,
segundo as circunstâncias. Deve ter havido sociedade onde todo
esse poder foi entregue inteiro a um só indivíduo, que por suas
qualidades pessoais, mereceu a confiança dela.
Nas sociedades onde a escolha de um só tenha sido
preferida, apercebeu-se logo que um homem, mesmo que seja
superior aos outros em virtude e inteligência, não é isento de
paixões e erros. Para remediar os inconvenientes da fraqueza
humana, recorreu-se ao sábio expediente de lhe nomear um
conselho eletivo, pelo aviso do qual ele deve se conduzir ou, ao
menos, contra o conselho do qual não lhe é permitido agir. Esse
conselho deve ter sido composto de um número fixo pelo
soberano e as matérias aí deviam ser decididas pela pluralidade
de vozes. A decisão das matérias pode ser apenas preliminar já
que o soberano, isto é, a assembleia nacional tem com
exclusividade o direito de torná-la permanente.
O desejo natural do homem de dominar e de obter a
consideração ligada ao poder deve ter inspirado àquele que
estava revestido do desejo de conservá-lo e aos outros de
conquistá-lo. Daí as pretensões que podiam trazer a perturbação
para dentro da sociedade política. Para remediar o
inconveniente, o primeiro meio que se apresentou foi estipular
que o depositário do poder escolhido pela nação desfrutaria até
a morte desta augusta prerrogativa. Com a amovibilidade dos
membros do conselho, não tendo o mesmo inconveniente,
puderam eles ser escolhidos de tempos em tempos, e esse
tempo fixado pela assembléia nacional.
Essas sábias precauções foram necessariamente
tomadas,
302
porque a natureza das coisas as demonstrou indispensáveis
para a conservação da tranquilidade da sociedade política e
porque esta tranquilidade, sem a qual a liberdade e a
propriedade de cada indivíduo não poderiam estar asseguradas,
era objeto permanente da vontade geral. Por meio dessas
estipulações, a sociedade, ao abrigo das pretensões
continuamente ativas, não tardou a se aperceber que essas
pretensões adormecidas se acordavam com muita força no
último termo da vida ou na morte do depositário do poder. Com
cada membro da sociedade, tendo igual direito ao poder
principal, e o amor-próprio, natural ao homem, inspirando-lhe
uma estima de preferência pessoal, deveria ter ai tantos
pretendentes ao poder quantos indivíduos existissem na
sociedade, Mas a habilidade, a persuasão, a eloquência ― esta
arte de arrastar as vontades e de sujeitá-las ― devem ter obtido
o sacrifício das pretensões de muitos em favor das pretensões
de alguns. Daí as confederações particulares que dividiam a
sociedade. Um meio natural deve ter-se apresentado para
prevenir o perigo eminente. Aquele de estipular por meio de uma
lei permanente que o depositário do poder devesse sempre ser
escolhido pela nação em assembléia dentro de uma mesma
família. Assim o depositário do poder foi ao mesmo tempo
sucessivo e eletivo.
Nós cremos impossível de não se persuadir, após haver
meditado profundamente, que assim foram as primeiras
constituições políticas, à perfeição das quais parecia que nada
faltava, se as considerarmos isoladamente.
Mas as diversas sociedades, crescendo em população e
com a necessidade de maior subsistência viram-se forçadas a
estender seus territórios e necessariamente se encontraram.
Essas sociedades, sem relação entre si e se
303
achando divididas por interesses, se olhavam com desconfiança
e bem cedo o ódio, que é a continuação dela, junto com o
cupidez, fez nascer a violência. Foi assim que as sociedades se
encontraram em estado de guerra recíproca.
Nesta posição, a violência feita a um dos membros da
sociedade era um insulto ao soberano de que cada um dos
membros fazia parte. E sendo a confederação política formada
em razão da liberdade e da propriedade de cada um, todos
ficavam obrigados a se armarem para repelir a injúria feita a um
só. As guerras entre sociedades divididas foram então de todos
contra o agressor quando elas eram defensivas e, nesse caso, o
serviço militar era dever de todos, porque a conservação da
sociedade interessava igualmente a todos os membros. Mas nas
guerras ofensivas empreendidas fora do território, a sociedade
não estando em perigo, o serviço militar cessava de ser um
dever e a vontade particular e livre se tornava então o critério de
seleção das forças de ataques.
No primeiro caso, o soberano devia comandar através dos
depositários do poder executivo que tinham sido escolhidos. No
segundo caso, os depositários do poder, estando encarregados
da execução das leis e sua presença sendo necessária a essa
execução, não comandavam. Os guerreiros que participavam da
expedição ofensiva por vontade própria escolhiam seus próprios
chefes.
O chefe e esses guerreiros só podiam ter por objeto
nessas expedições a remoção pela força de coisas que podiam
satisfazer sua cobiça, ou a invasão de terras para se
estabelecer. Essas aquisições, em se fazendo em comum,
deviam se repartir do mesmo modo. Foi necessário então regras
de repartição. O chefe ou os chefes deviam estar sujeitos a elas,
assim como o menor dos guerreiros. Mas esses chefes tendo,
por seus valores e talentos, contribuído mais para o sucesso
deviam ter uma
304
parte mais vantajosa, seja na pilhagem ou nas terras
conquistadas. Estabeleceu-se então naturalmente, que os
chefes teriam um número determinado de partes do total da
pilhagem ou das terras conquistadas.
Ao retornar de suas expedições, esses guerreiros se
recolhiam à sociedade política e seus chefes voltavam a ser
simples cidadãos. Não demoravam muito em se aborrecerem da
vida tranquila que aí levavam. A pilhagem que eles haviam
conquistado os fazia conhecer novos prazeres e o hábito desses
prazeres os fazia sentir novas necessidades. Era preciso então
recorrer a novas expedições para satisfazer essas novas
necessidades. A sociedade inteira tornava-se então guerreira,
porque todos os indivíduos em estado de portar armas deviam
desejar procurar esses novos prazeres.
Essas expedições coroadas de sucesso repeliram para
longe as sociedades estrangeiras. Era necessário então, por
consequência, percorrer grandes distâncias para exercer a
pilhagem. Mas durante essas expedições longínquas, os
rebanhos ficavam negligenciados e as terras permaneciam
incultas. Tornou-se necessário resolver o inconveniente.
O homem é cruel apenas pelo medo e pela fraqueza.
Quando ele sente a superioridade de sua força, ele escuta a voz
da humanidade, ou talvez o sentimento de amor-próprio. Assim,
nossos guerreiros, não encontrando resistência, não deviam ser
cruéis. Mas concluíram que os homens que lhes eram
estranhos, porque não eram da sua sociedade, podiam ser
incluídos na pilhagem que eles pretendiam fazer e que eles
podiam retirar disso uma grande utilidade em os submetendo à
cultura de suas terras e em os obrigando a trabalhar para eles.
Assim se estabeleceu a escravidão e esta espécie de direito
internacional que tem subsistido por tantos séculos e que
sujeitava todos os povos vencidos.
É assim que nos parece que devem ter-se formado
305
as primeiras sociedades políticas e chegar, de consequência em
consequência, à melhor constituição que elas puderam adquirir.
Acreditamos estar no limite onde agora nos achamos, porque,
para além desse limite, os direitos de liberdade e de propriedade
têm sido atacados e esses direitos essenciais e naturais do
homem são imprescritíveis.
Do mesmo modo, estamos bem fundamentados em crer
que foram essas as constituições políticas dos povos novos, se
acaso, assim se dizer. Tal era a dos povos da Germânia em
relação a César e a Tácito. Povos cuja origem desconhecida não
devia estar muito longe e da qual os costumes rudes, mas
naturais, não haviam ainda sido corrompidos.
F I M
307
A FELICIDADE,
POEMA,
EM SEIS CANTOS
Com fragmentos de alguns poemas.
Obras p de Helvétius.
1772
http://books.google.com
308
PREFÁCIO
Ou Ensaio sobre a Vida e os Trabalhos
de CLAUDE-ADRIEN HELVÉTIUS
A felicidade é o objeto de desejo de todos os
homens, mas não de suas reflexões. Na sua procura
ininterrupta eles pouco se instruem dos meios de obtê-
la e só se tem feito até agora algumas máximas,
algumas canções e pouco de trabalho filosófico.
309
Na antiguidade os filósofos se ocuparam bastante
com este assunto, mas nos deixaram mais frases que
ideias. Os tratados da 'Vida Feliz' e da 'Tranquilidade
da Alma' de Sêneca contêm muito de espírito e muito
pouco de filosofia.
Os moralistas modernos sujeitados à superstição,
a qual só reina sobre o homem quando o rebaixa e o
amedronta, têm feito a sátira da natureza humana e
não a sua história. Prometem pintá-la e a desfiguram.
Presumem a felicidade no céu e não admitem que ela
habite a terra. De acordo com eles, o merecimento
dessa felicidade colocada além da vida é feito pelo
sacrifício dos prazeres. Assim, para eles o presente
não é nada e o futuro é tudo. E em
310
boa parte do mundo cultiva-se a Ciência da Salvação
em detrimento da Ciência da Felicidade.
Alguns filósofos modernos fizeram pequenos
tratados sobre a felicidade: os mais conhecidos são os
de Fontenelle e de Maupertuis.
Fontenelle, que há muito tempo foi apenas um
belo espírito, não era ainda filósofo quando escreveu o
seu tratado. Ele não sabia então generalizar as ideias.
Espalham-se em sua obra algumas verdades úteis
percebidas com agudeza, porém ele compõe o seu
sistema pelo seu caráter, gostos e situação pessoal. As
almas sensíveis não encontram em seu sistema nada
de proveitoso. Há muita pouca informação sobre como
tornar a felicidade mais geral, mas nos
311
relata bem o quanto Fontenelle era feliz.
Maupertuis era um espírito triste, cioso e infeliz
por não ser o homem do seu século. Maupertuis, com o
auxílio de duas ou três falsas definições, tomando os
nossos desejos como tormentos, o trabalho como um
estado de sofrimento e as nossas esperanças como
fontes de dor, nos representa como sobrecarregados
com o peso dos nossos males. Para ele, a existência é
um mal e ao falar da felicidade, parece desgostoso da
vida.
Após esses tristes e inúteis argumentadores e
outros mais que não falaremos, é prazeroso ouvir um
verdadeiro filósofo, homem amável, amado e
312
feliz falar da Felicidade. Temos a certeza que o público
verá com interesse o Poema que lhe trazemos às
mãos.
O leitor vai encontrar nele uma filosofia íntegra,
grandes ideias, sublimes quadros, inspiração, energia e
uma multidão de imagens e felizes versos. Se o projeto
não está terminado, se detalhes descuidados, alguns
rodeios, expressões vulgares, se a harmonia não é
constantemente variada e verdadeira, esses defeitos
são contrabalançados por belezas de primeira ordem.
As mesmas faltas se encontram no Poema de Lucrécio,
cheio, aliás, de uma falsa filosofia, e, entretanto, seu
poema superou com glória o espaço dos últimos vinte
séculos.
Lucrécio e o senhor Helvétius morreram
313
antes de terminar os seus poemas. Esperamos que o
francês seja tratado com a mesma indulgência que o
romano obteve do seu século e da posteridade. Ele a
merece pelo amor que teve à humanidade, pelo desejo
da felicidade humana espalhado nesta obra, como
também dentro do livro 'Do Espírito' e do qual sempre
esteve animado durante toda a sua vida.
Claude-Adrien Helvétius nasceu em Paris no mês
de janeiro de 1715, de Jean-Adrien Helvétius e de
Gabrielle d’Armancourt. A família dos Helvétius por
causa da perseguição sofrida no Palatinado na época
reforma, se estabeleceu na Holanda, onde numerosos
membros tiveram honrosos empregos.
O bisavô de Helvétius foi o principal médico do
exército e mereceu
314
pelos serviços prestados à República várias medalhas.
O filho deste ilustre homem, ainda muito jovem,
se estabelece em Paris. Conhecido aí como o "Médico
holandês", tornou a ipecacuanha conhecida em toda a
França. Ele havia aprendido o uso desta raiz com um
de seus parentes, governador da Batávia e serviu-se
dela com bastante sucesso em Paris e dentro do
exército. Luis XIV, de onde as graças eram tão
frequentes como devem ser as graças dos reis, lhe deu
título de nobreza e o cargo de inspetor-geral dos
hospitais. Morreu em Paris em 1727, lamentado pelos
pobres e gente de bem.
Um de seus filhos, herdeiro de seus talentos,
cultivou como ele, a medicina com glória. Era jovem
ainda quando salvou
315
o rei de uma doença perigosa adquirida aos sete anos
de idade. Posteriormente foi o médico principal da
rainha da qual merecia a confiança e as bondades. Em
Versalhes, foi amigo de todas as casas em que era
médico. Tratava em sua própria casa grande número
de pobres e visitava com constância aqueles que não
podiam sair das suas.
Amava muito a esposa, que era bela e dedicada
a ele e a todos os seus deveres. Amaram ternamente o
filho e se ocuparam em conjunto de sua educação e do
cuidado de tornar sua infância feliz. Helvétius não tinha
ainda cinco anos quando o confiaram ao senhor
Lambert, homem sábio e sensível, que vive ainda e
chora seu aluno.
316
Não havia trabalho que a vontade de agradar a tal
preceptor não fizesse o discípulo assumir. Ele teve em
boa hora o gosto pela leitura. É verdade que no
começo ele só gostava dos contos de fadas e de livros
onde reinava o prodigioso. Mas logo associou a eles La
Fontaine e Despréaux, cujos trabalhos encantam os
homens de gosto, mas não deveriam agradar às
crianças.
O jovem Helvétius foi para um colégio interno
logo que leu a 'Ilíada' e 'Uma História de Alexandre'.
Essas duas leituras mudaram seu caráter. De tímido,
tornou-se expansivo. O gosto pelo estudo foi suspenso
por algum tempo. Queria entrar para o serviço militar e
só respirava a guerra.
De início o despotismo dos regentes,
317
suas ameaças e coações o revoltaram. As tarefas
pormenorizadas que lhe sobrecarregavam o
aborreciam. Ele fez apenas medíocres progressos.
Mas, iniciada a aula de retórica, o seu regente, Padre
Porée, se percebeu que ele era sensível a elogios e,
elogiando os seus primeiros esforços, lhe fez fazer
outros ainda maiores. Nessa época os exageros de
linguagem estavam em moda no colégio. O Padre
Porée encontrou nos de Helvétius mais ideias e
imagens do que nos dos outros discípulos. A partir daí
ele lhe dá uma educação particular. Lia com ele os
melhores autores antigos e modernos e lhe fazia
observar as perfeições e as imperfeições. Esse padre
não escrevia com primor, mas tinha excelentes
princípios de literatura. Era um bom mestre e um mau
modelo. Ele tinha, sobretudo,
318
o talento de conhecer o alcance do espírito e o caráter
de seus alunos e a França lhe deve muito pelo grande
homem e genialidade que ele adivinhou e apressou.
A primeira experiência de glória aumentou o seu
amor por ela. O jovem Helvétius, elogiado nos
exercícios públicos do colégio, queria triunfar em tudo
em que pudesse ser louvado. Antes ele detestava a
dança e a esgrima, depois se sobressaiu nas duas
artes. Inclusive dançou uma ópera no papel e máscara
de Javillier, na qual obteve muitos aplausos.
Sua competição se estendia a tudo, mas jamais
tomou o caráter de inveja. Ele amava seus
concorrentes e havia obtido sua confiança. Eles
acreditavam em sua discrição nas pequenas artes que
a
319
severidade dos mestres e a necessidade de prazer
tornam tão comuns entre os jovens.
Helvétius tomou conhecimento do livro 'O
entendimento humano' quando ainda estava no
colégio. Esse livro fez uma revolução em suas ideias.
Tornou-se um discípulo fervoroso de Locke como
Aristóteles deve ter sido de Platão, ajuntando
descobertas àquelas de seu mestre.
Ele levou ao estudo do direito o espírito filosófico
que Locke lhe havia inspirado. Desde então ele
procurou as relações das leis com a natureza e a
felicidade dos homens.
Seu pai, cuja fortuna era medíocre e que havia
incorrido no desagrado do cardeal de Fleury pela sua
amizade com o senhor
320
Le Duc, o destinou às finanças como a uma profissão
que poderia lhe enriquecer e ainda deixar-lhe tempo
para o uso de seus talentos. Ele lhe enviou para a casa
do seu tio materno, o senhor d’Armancourt, que era
diretor de fazendas em Caen. Lá, Helvétius ocupou-se
de literatura e da filosofia, mais que de finanças e mais
ocupado de mulheres que de literatura e da filosofia.
Porém, aprendeu em pouco tempo e quase sem
esforço, tudo o que deveria saber um financista.
Ele tinha vinte e três anos quando a rainha Maria
Leckzinska, que gostava do senhor e da senhora
Helvétius, obtém para o filho deles o cargo de
arrematante de impostos régios. Inicialmente Helvétius
só teve o título e meio cargo, mas o senhor Orri logo
lhe deu o cargo inteiro. Foi-lhe dado cem mil escudos
de renda. Seus pais emprestaram-lhe os
321
fundos que um arrematante de impostos régios deveria
antecipar ao rei, com a condição de que Helvétius
pagasse o empréstimo e os encargos com os lucros do
seu posto.
Duas paixões que podiam arruinar o financista
mais opulento: o amor das mulheres e o desejo de
fazer o bem. Mas ele era organizado e probo. Em meio
a tantas diversões, soube usufruir sabiamente. De
início, destinou dois terços de suas rendas ao
reembolso de seus fundos, ficando o restante
destinado às despesas que a sua idade e nobreza do
seu coração lhe faziam necessárias.
Ao sair da infância, Helvétius havia procurado se
ligar a escritores famosos. Marivaux era um desses.
322
Esse escritor espirituoso, sensível e eloquente em seus
romances, era agradável na conversação. Digno dos
amigos pela delicadeza de alma e pureza dos
costumes. Helvétius instituiu-lhe uma pensão de dois
mil francos. Marivaux, embora um excelente homem,
era temperamental e tornava-se rabugento nas
discussões. Era um dos muitos amigos, mas a partir do
momento da instituição da pensão, tornou-se um dos
amigos pelo qual Helvétius dispensava mais atenção e
consideração.
O filho de Saurin da Academia de Ciências não
havia produzido ainda nenhuma obra que lhe tornasse
conhecido, mas era conhecido dos letrados como um
espírito entendido, justo e profundo,
323
de virtude, gosto e amplos conhecimentos. Mas, para
subsistir, tinha apenas um emprego que não convinha
ao seu caráter. Também recebeu de Helvétius uma
pensão de mil escudos que lhe valeu a independência,
o tempo necessário de cultivar as letras e o prazer de
sentir e tornar público que devia sua felicidade ao
amigo. Esse digno amigo, quando Saurin quis se casar,
o presenteou com os fundos da pensão que lhe havia
feito.
Helvétius procurava em tudo o mérito, para amá-
lo e o socorrer. Qualquer que sejam os cuidados feitos
para esconder os benefícios, nós podemos apresentar
uma lista de homens conhecidos obsequiados por ele.
Mas cremos faltar à sua memória se ousarmos nomear
aqueles que têm a fraqueza de ruborizar-se de seus
socorros.
324
Por essa época Fontenelle estava à testa do
império das letras. A extensão de luzes, filosofia
saudável, sabedoria de conduta, variedade de talentos,
a alegria de espírito e facilidade de relacionamento
social, tornavam Fontenelle agradável a muitos e a
diversos grupos sociais. Sua indiferença mesmo era útil
à sua consideração. Os inimigos de seus amigos,
seguros de não serem seus inimigos, lhe viam com
prazer. Ainda tinha o mérito de homem de idade e de
ter visto o século brilhante com que nosso século ama
entreter-se. Sua memória estava cheia de anedotas
interessantes que ele tornava ainda mais interessantes
pela maneira de contá-las. Seus contos e suas
brincadeiras faziam pensar. As mulheres, os homens
da corte, os artistas, os poetas e os filósofos amavam
sua conversação.
325
Helvétius o cortejava. Ia a ele como um discípulo que
vem modestamente propor suas dúvidas. Era com ele
que gostava de falar de Hobbes e de Locke. Acima de
tudo aprendeu com Fontenelle o talento, hoje muito
negligenciado, de exprimir com clareza as ideias.
Montesquieu era então apenas o autor das
'Cartas persas'. Mas nessa obra frívola na aparência e
na conversação, Helvétius percebeu o guia dos
legisladores. Por seu turno Montesquieu adivinha que o
homem será um dia o seu amigo. "Eu não sei se
Helvétius conhece sua superioridade, mas eu sinto que
é um homem acima dos outros", disse ele uma
ocasião.
'La Henriade', poema épico de um gênero
326
totalmente novo, de tragédias que igualam aquelas de
nossos grandes mestres. A 'História de Carlos XII', tão
superior a todas as histórias contadas na França, das
composições passageiras que fazem esquecer essa
multidão de insignificâncias agradáveis tão comuns no
século de Luis XIV. Uma filosofia evidente espalhada
em diversos gêneros, muito talento e muitas formas de
mérito atraíram sobre Voltaire os olhares da França e
da Europa. Ninguém excitou como ele admiração e
inveja. O público não rendido pela reverberação dos
literatos invejosos e os jovens que procuram de boa fé
o prazer ou os modelos eram seus admiradores. O
resto, pouco mais ou menos, compunha o número de
seus inimigos. O amor pelas letras, a arte de louvar da
qual fez muito uso, a civilidade
327
e a vontade de agradar não puderam acalmar a fúria da
inveja. Procurou se esconder no isolamento de Cirey.
Helvétius foi-lhe procurar aí. Confiou-lhe seus segredos
mais íntimos, isto é, o projeto e os dois primeiros
cantos do poema 'Da Felicidade'. Achou um crítico
melhor esclarecido do que todos os que ele havia
consultado até momento e um amigo ardoroso por sua
glória.
Nota-se pelas numerosas cartas de Voltaire,
quanto esse grande homem estava impressionado pelo
talento de Helvétius. Diz-lhe ele: "Vosso primeiro canto,
é repleto de ousadias da razão acima da vossa idade e
mais ainda dos nossos indolentes escritores que rimam
pelos seus livreiros e que se restringem sob o
compasso de um censor real invejoso ou tímido.
328
Miseráveis pássaros a que se cortaram as asas e
querem se levantar e tombam quebrando as pernas!
Vós tendes um talento másculo e eu gosto mais de
vossas faltas sublimes que das medíocres belezas com
que eles querem nos enfadar‖.
Em outras ocasiões Voltaire dá a Helvétius
conselhos excelentes e que reproduzimos porque
podem ser úteis a qualquer um que queira escrever em
versos.
"Eu vos direi em favor do progresso que tal bela
arte pode fazer em suas mãos: Temei em conseguindo
o grande saltar ao gigantesco. Exponha apenas
imagens verdadeiras. Utilizeis sempre da palavra
correta. Quereis vós uma pequena regra infalível? Aqui
está: Quando um pensamento é exato
329
e distinto é necessário ver se a maneira como é
expresso em verso será belo em prosa e se o verso,
despido da rima e da cesura, vos parece carregado de
uma palavra supérflua. Se há na construção a menor
falta. Se uma conjunção está esquecida. Enfim, se a
palavra mais apropriada não foi colocada no seu lugar,
conclua que vosso diamante não está bem engastado".
Em outra carta Voltaire repreende Helvétius que
lhe havia falado mal de Boileau. Diz ele: "Eu convenho
convosco que ele não é um poeta sublime, mas ele tem
feito muito bem o que queria fazer. Ele tem colocado a
razão em versos
330
harmoniosos e cheios de imagens. É claro,
consequente, fácil e feliz em suas expressões. Não se
eleva muito, mas também não cai e, além do mais,
seus assuntos não comportam essa elevação que os
vossos são suscetíveis. Vós sentistes o vosso talento
como ele tem sentido o seu. Sois filósofo; vedes tudo
ampliado. Vosso pincel é forte e arrojado. A natureza
vos tem dotado, digo-vos com a maior sinceridade,
muito acima de Despréaux. Mas esses talentos, por
maiores que sejam, não serão nada sem os seus.
Portanto, vos recomendo com ênfase esta arte de
escrever que Despréaux bem conheceu e bem
ensinou, esse respeito pela língua, esta sucessão de
ideias, essas ligações, essa arte fácil com que conduz
seu leitor e esse natural que é o fruto da genialidade.
Mande-me, meu caro amigo,
331
qualquer coisa assim, bem trabalhada, como só vós
podeis com rigor imaginar".
Homens de boa agudeza intelectual, mas cujas
ideias não eram muito extensas, volta e meia diziam a
Helvétius que a metafísica e principalmente a filosofia
não podiam ser tratadas em versos. Ele não acreditava,
mas algumas vezes duvidava. Voltaire tranquilizou-o.
Disse-lhe ele: ―Não duvideis que a sublime
filosofia possa muito bem falar a linguagem dos versos.
Ela é algumas vezes poética na prosa do Padre
Mallebranche. Por que não terminaríeis vós o que
Mallebranche esboçou? Ele era um poeta pela metade
e vós um poeta por inteiro‖.
Voltaire tinha razão.
332
Lucrécio junto aos romanos e Pope junto aos ingleses
fizeram dois poemas filosóficos e, todavia, admiráveis?
Homens pouco esclarecidos e amigos, talvez
invejosos, repetiam a Helvétius que ele devia empregar
seu tempo a outros estudos que não fossem a poesia e
a filosofia. Voltaire escreveu-lhe: ―Continueis a encher
vossa alma com conhecimentos de todas as artes e de
todas as virtudes. Não tenhais medo de honrar o
Parnaso com os vossos talentos. Eles vos honrarão
sem dúvida porque não negligenciareis jamais vossos
deveres. As funções do vosso cargo não são difíceis
para uma alma como a vossa? Esse trabalho se faz
como a organização da dispensa de vossa casa ou no
livro de controle de despenseiro.
333
O que! Para ser arrematante dos impostos régios não
se terá liberdade de pensar? Ah! Ático era arrematante
de impostos régios. Os cavalheiros romanos eram
arrematantes de impostos régios. Continue então
Ático‖.
Ático continua. Era usual que a companhia dos
arrematantes mandasse para as províncias os
arrematantes mais jovens. Eles se obrigam a se
instruírem em diferentes tipos de rendas, a controlar os
empregados locais e a implementar as ordens de
serviço. Nessas visitas de inspeção, Helvétius percorre
continuamente a Champagne, as duas Borgonhas e
Bordéus e em parte nenhuma tomou como norma de
ação dar sempre razão aos empregados da companhia
e estarem sempre os contribuintes errados. Não
recebia dinheiro de confiscos e muitas vezes
334
compensou os infelizes arruinados pelas afrontas dos
prepostos. De início a companhia não aprovava tanta
grandeza de alma, mas como Helvétius fazia as belas
ações com o seu próprio dinheiro, os arrematantes
concordaram tolerar esta conduta.
Não raro teve a coragem de ser o intermediário
do povo junto à própria companhia e ao ministro.
Empregou-se nas salinas de Lorena e do Franco
Condado certa máquina chamada "graduação" que
diminuía o consumo de lenha, mas também a
qualidade do sal. Helvétius propôs a destruição a
máquina ou a diminuição do preço do sal. É fácil
deduzir que nada obteve.
Ele chegou a Bordéus quando
335
passava a vigorar uma nova legislação sobre dos
vinhos, que alarmou a cidade e a província. Escreveu à
companhia contra o novo direito e indignou-se com as
respostas. Escapou-lhe um dia dizer a alguns
vinicultores de Bordéus: ―Enquanto apenas se
lastimarem, não se concordará com a vossa demanda.
Fazei-vos temer. Vós podeis juntar mais de dez mil.
Ataqueis os nossos empregados. Eles não são
duzentos. Colocar-me-ei à frente deles e nós nos
defenderemos, mas enfim vós nos batereis e ser-vos-á
feita justiça‖.
Por felicidade, o conselho do jovem Helvétius não
foi seguido. Mas de retorno a Paris, Helvétius apoiou
tão bem as
336
queixas dos bordelenses que conseguiu a extinção do
imposto.
Fez mais. Reprimiu a avidez dos subalternos.
Indicou os meios de diminuir o seu número. Propôs dar
maiores valores às terras de domínio do Estado e
assim se fez útil tanto à companhia dos arrematantes
quanto à nação. Seus serviços não impediram de ter
alguns desgostos. Trabalhando com pessoas de
pequeno espírito, propôs grandes objetivos e falou de
humanidade a homens endurecidos pela idade e pelo
dinheiro. Os infelizes consolados por ele, o trato com
pessoas de letras, seus estudos e suas amantes o
faziam mal suportar as inconveniências do serviço. Seu
pai, que lhe havia feito um arrematante de impostos
régios,
337
não o pode jamais fazê-lo financista. Helvétius já havia
reembolsado o empréstimo inicial e, malgrado suas
despesas com prazeres e obras de beneficência, se
encontrava muito rico. Comprou terras e concebeu o
projeto de se demitir da função de arrematante para se
dedicar inteiramente às letras e à filosofia. Mas lhe
faltava uma esposa que pudesse amar e que fosse feliz
no retiro em que viveriam.
Em casa de senhora Graffigni, autora do lindo
romance 'Cartas peruvianas', Helvétius viu a senhorita
de Ligniville e foi tocado pela beleza e adornos do
espírito. Mas antes de esposá-la quis conhecê-la. Ele a
via com frequência sem lhe falar de suas intenções e
do gosto que tinha por ela. Finalmente, após um ano
338
observando-a, concluiu ser a senhorita de Ligneville de
a alma nobre, sem orgulho, que suportava sua má
sorte com dignidade e que tinha coragem, bondade e
simplicidade. Acreditando que partilharia de seu
recolhimento lhe fez a proposta. Ela foi aceita. Mas,
antes de se casar, ele quis se demitir do emprego de
arrematante de impostos.
Helvétius, para satisfação de seu pai, comprou o
cargo de mordomo da rainha. Contudo, não era mais
bem feito para a corte que para as finanças. Foi muito
sensível às bondades da rainha. Esta princesa amava
pessoas de espírito e tratou bem Helvétius, que não
teve de início tantos inimigos quanto merecesse. Foram
perdoadas durante muito tempo suas luzes e suas
virtudes. Seu cargo não exigia muito
339
serviço e lhe deixava o emprego do seu tempo.
Casou-se no mês de julho de 1751 e partiu
imediatamente para suas terras de Voré. Levou
consigo dois secretários, mesmo que desnecessários já
que não era mais arrematante de impostos régios.
Porém, ele lhes era necessário. Um deles, chamado
Baudot, era rabugento, mordaz e irrequieto. Sob o
pretexto de que tinha conhecido Helvétius desde
criança, se permitia tratá-lo sempre como um preceptor
brutal trata uma criança. Um dos prazeres de Baudot
era discutir com o patrão a conduta, o espírito, o
caráter e os trabalhos do indulgente patrão. A
discussão sempre terminava na mais violenta sátira.
Helvétius o escutava com paciência e, por vezes, em o
deixando,
340
dizia à senhora Helvétius: ―Mas, é possível que eu
tenha todos os defeitos e todos os erros que o Baudot
me encontra? Não, sem dúvida. Mas enfim, eu tenho
alguns. E quem é que os dirá se eu não conservar
Baudot?‖.
Em suas terras, Helvétius se ocupava apenas dos
seus trabalhos, da felicidade dos vassalos, da sua e da
senhora Helvétius. Ele poderia dizer como milorde
Bolingbroke em uma de suas cartas a Swift: ―Eu tenho
por minha mulher o amor que outrora tive por todas as
do seu sexo‖.
Fazia dois anos que interrompera o trabalho do
poema 'A Felicidade'. Esse trabalho havia-lhe
conduzido a pesquisas sobre o homem. Desde as suas
primeiras meditações tinha vislumbrado novas
verdades. Estas verdades tornaram-se
341
mais claras e o conduziram a outras. E ele estava
inteiramente entregue à filosofia quando, em 1765,
perdeu o pai. Eu só acrescentarei uma palavra ao que
já disse desse ilustre médico. Ele conhecia
perfeitamente o seu filho, isto é: que tinha muito saber
e inteligência e que era sem preconceitos. Ele viu com
prazer esse filho sacrificar uma grande fortuna na
esperança de fama. Helvétius lamentou muito tão
excelente pai. Recusou recolher a sucessão e a deixou
ficar inteiramente com a mãe. Após longos debates,
obteve que ela conservasse a maior parte. A morte do
pai foi a primeira desventura que até então ocorreu em
sua feliz vida e suspendeu suas ocupações. Ele as
retomou logo que teve forças e, enfim, em 1758, ele
entrega
342
o livro 'Do espírito', que passo a analisar.
Helvétius começa examinando o que se entende
pela palavra 'espírito': É tanto a faculdade de pensar
quanto a somatória das ideias e de conhecimentos
existentes na cabeça de um homem.
Essas ideias são adquiridas pela impressão dos
objetos exteriores sobre os sentidos. Elas se
conservam pela memória que é apenas a primeira
impressão continuada, porém enfraquecida. Essa
faculdade natural de adquirir ideias pelos sentidos e de
conservá-las pela memória nos daria apenas
conhecimentos limitados e nos deixaria sem
habilidades, sem costumes e sem civilização, se a
natureza nos houvesse conformado como a maior parte
dos animais. É à flexibilidade das nossas mãos
343
que devemos nossa destreza, e sem essa habilidade,
ocupados com a própria defesa nas florestas e
disputando a subsistência, teríamos apenas formado
sociedades fracas e desumanas.
Os objetos de que os sentidos transmitem ideias
tem relações entre eles e conosco. O espírito humano
constrói o conhecimento com essas relações. Aí está
sua potência e limites. Chama-se julgamento a
percepção dessas relações.
Julgar é sentir.
A cor que eu chamo de vermelha age sobre meus
olhos de maneira distinta da cor que eu nomeio de
amarela. A ideia desta diferença é um julgamento. Esse
julgamento é
344
uma sensação composta de sensações recebidas em
ato ou conservadas na memória. De igual modo as
noções de força, de potência, de justiça, de virtude,
etc., quando se as analisa se reduzem a quadros
colocados na imaginação ou na memória.
Tudo no homem se reduz, portanto a sentir.
O homem está sujeito a erros. Eles têm três
causas: as paixões, a ignorância e o abuso das
palavras.
As paixões nos enganam porque nos fazem
observar os objetos de um único modo. A ambição faz
o príncipe fixar sua atenção no brilho da vitória e no
esplendor da vitória. Ele esquece as inconstâncias da
fortuna e as desgraças da guerra.
345
O medo mostra fantasmas e não deixa a verdade
apresentar-se. O amor é fértil em ilusões. ―Vós não
mais me amais, disse a senhorita de Caumont à
Poncet. Acreditais menos no que eu digo do que no
que vedes‖.
A ignorância é a causa de erros em questões
difíceis. É por falta de conhecimentos que a questão do
luxo é discutida há tanto tempo sem ser esclarecida.
Grandes homens têm feito dela apologia, outros sátira.
Em relação ao abuso das palavras, terceira causa
de erros, Helvétius se remete a Locke e não diz uma
palavra em favor daqueles que não querem recorrer ao
filósofo inglês. É necessário ver que os falsos sentidos
dados às palavras 'espaço', 'matéria',
346
'infinito', 'amor-próprio' e 'liberdade' têm sido a origem
de muitos erros na metafísica e na moral. Matéria é
apenas a coleção das propriedades comuns a todos os
corpos. Espaço é apenas o nada ou o vazio. A palavra
'infinito' apresenta apenas a ideia de falta de limites. O
amor-próprio, gravado em nós pela natureza, é um
sentimento que se torna virtuoso ou vicioso, segundo a
diferença de gosto, de paixões e de circunstâncias. A
liberdade do homem consiste no exercício voluntário de
suas faculdades.
Passemos ao segundo discurso.
Conforme sejam as ideias novas, úteis ou
agradáveis, o espírito tem maior ou menor estima
pública. Não se ganha a nossa estima pela quantidade
347
e extensão das ideias. É a relação que elas têm com a
nossa felicidade que nos força a lhas conceder o nosso
respeito. Desse modo, é o reconhecimento ou a
vingança que louva ou despreza.
As ideias mais estimáveis são as que agradam as
nossas inclinações. É sobre a vida de Alexandre que
trata o primeiro livro para Carlos XII. É por uma bela
mulher que o poeta pinta o amor. É por interesse
próprio que adotamos ou rejeitamos a opinião dos
demais.
É verdade, mas é raro existir na a terra filósofos
que se conduzem por amor da verdade, que estimam
preferencialmente as ideias brilhantes. Porém, são em
tão pequeno número que não é necessário
348
levar em conta. O restante dos homens estima apenas
as ideias que lisonjeiam sua opinião ou seu interesse.
Um tolo só tem amigos tolos. Augusto, Luís XIV e o
grande Condé viviam com gente de espírito. Sob um
monarca estúpido, disse a rainha Cristina, toda a sua
corte é ou virá a ser estúpida.
Quando a reputação de um homem ou de um
trabalho se estabelece, é comum nós o louvarmos sem
estima. Não temos por ele uma estima sentida, mas
uma estima de palavra. Assim é a estima geral por
Homero, que todo mundo louva e que só é lido por
homens letrados.
Todo homem estima apenas a sua própria
imagem nos outros, ou o que pode ser-lhe útil porque,
por natureza, tem de si a mais alta ideia.
349
O faquir e o sibarita se desprezam, assim como a
mulher recatada e a provocante. O filósofo que viva no
meio de jovens será imbecil e o ridículo da sociedade.
Separadamente, o magistrado, o militar e o negociante,
acreditam firmemente ser o seu espírito o mais
estimável.
Assim a sociedade nacional se divide em
pequenas sociedades, que, segundo suas ocupações,
classe e estado, estimam a espécie de espírito com
que mantêm relações.
Na corte estimam-se os homens de maneiras
elegantes, embora sejam em sua maior parte frívolos,
ineptos e ignorantes.
Enquanto as pequenas sociedades estimam
apenas o espírito que é o mais próximo ao seu, já o
350
público só concede sua estima ao espírito que é útil ao
bem público.
Em decorrência desta verdade, o espírito que
triunfa nas pequenas sociedades raramente triunfa
junto ao público.
Tal homem ou tal obra, pelo contrário, fazem
honra à nação, mas não obtêm êxito nas sociedades
particulares.
Se o público não considera o espírito medíocre é
porque ele não é útil nunca. Se porventura algum
espírito medíocre tornar-se general ou ministro, ele
será reverenciado porque teve a ventura de tornar-se
útil. Além do que, é costume ter-se indulgência para
com os grandes. Não se exige da comédia italiana os
mesmos talentos que da comédia francesa.
351
Entre a morte de altos funcionários e de artistas, os
últimos são os mais enaltecidos porque a posteridade
usufruirá de seus trabalhos, ao passo que os primeiros
só são úteis ao seu tempo.
Certos espíritos célebres em um lugar ou em um
século, não o são em outros séculos ou em outros
lugares. Os sofistas e os teólogos, tão ilustres outrora,
recolhem o desprezo dos séculos esclarecidos. As
farsas de Scarron fizeram sucesso antes do tempo de
Molière.
Existe ideias que agradam em todos os lugares e
em todos os tempos: umas são instrutivas e outras
agradáveis. Existe das duas em Homero, Virgílio,
Cornélio, Tasso e Milton, que não são
352
limitados à expressão de uma nação ou de um século,
mas pintam a humanidade. Poucos homens são
insensíveis à harmonia e aos quadros de grandes
objetos. Os quadros voluptuosos que chamam à
memória os prazeres dos sentidos e, sobretudo, os do
amor, estão igualmente no gosto de todos os povos. Os
filósofos que descobrem verdades úteis têm a estima
de todos os séculos e, em todos os séculos, amam-se
os poetas que fazem a virtude ser amada.
Mas o que é a virtude? Com esse nome se
nomeia as ações úteis nas pequenas sociedades. Um
homem que esconde do rigor das leis um parente
culpado passa por virtuoso nessas sociedades.
Um ministro que recuse amigos, parentes e
cortesãos para em seus lugares preferir um homem de
mérito e o bem do estado,
353
deve ter na corte a reputação de um homem duro, inútil
e desonesto.
Na corte chama-se prudência a falsidade, loucura
a coragem de dizer a verdade. Dá-se aí o título de bom
ao príncipe que prodigaliza os recursos do Estado, o
nome de amável ao príncipe que concede aos seus
favoritos ou à sua amante, cargos importantes à
felicidade da nação.
Como então saber se alguém é virtuoso? Guiais
todas as vossas ações ao bem do maior número?
Então sois virtuosos. Sim, a virtude é unicamente o
hábito de dirigir as ações ao bem geral. É em
consideração a este ponto de vista que se pode formar
ideias nítidas e precisas das quais os moralistas não
obtiveram a posse até o momento presente.
Uns, à frente dos quais se encontra Platão,
354
só recitaram engenhosos devaneios. A virtude,
segundo eles, é ideia de ordem, de harmonia, do bem
essencial. Outros, à testa dos quais está Montaigne,
sustentam que as leis da virtude são arbitrárias porque
observam que uma ação viciosa ao norte é com
frequência virtuosa ao sul. Os primeiros, por não terem
consultado a história, vagueiam num labirinto de
palavras. Os segundos, por não terem meditado sobre
a história, pensam que o capricho decidiu sobre a
bondade e a maldade das ações humanas.
O amor da virtude é então unicamente o desejo
da felicidade geral. As ações virtuosas são aquelas que
contribuem a esta felicidade. Os povos, por mais
atrasados que sejam, em seus costumes mais
singulares, sempre têm em vista unicamente a sua
felicidade. E se, em
355
certos países e lugares se honram ações que nos
parecem culpáveis, é que nesses países, essas ações
são úteis. O furto feito com habilidade era louvado em
Esparta, porque nesta república toda militarizada e
onde não havia espírito de propriedade, a vigilância e a
destreza eram qualidades úteis. Na China, onde a
população é excessiva, é permitido ao pai enjeitar ou
matar os filhos. Esta lei, tão cruel na aparência, evita
um mal maior e é, por consequência, útil. Enfim, em
todos os lugares, é a utilidade que torna as ações
criminosas ou virtuosas.
Mas em todos os lugares se liga a ideia de virtude
a ações que não podem produzir bem algum. É
verdade. Mas é que se está persuadido que essas
ações produzem um
356
bem, seja para esse mundo, seja para o outro. Eu
chamo de virtudes preconceito a esses hábitos e ações
que necessitam ser eliminadas.
Esses hábitos fundamentam-se na preferência
dada a sociedades particulares em detrimento da
sociedade geral. É isso que as torna viciosas.
Que bem faz ao mundo e à pátria a severidade
dos monges e dos faquires? De que utilidade pode ser
a loucura dos indianos que se fazem devorar pelos
crocodilos?
Trata-se de crimes de preconceito como se trata
de virtudes de preconceito.
Eu chamo de crimes de preconceito as ações
condenáveis pela opinião, embora não
357
prejudiquem ninguém. Que mal faz um brâmane que
toma por esposa uma virgem ou um homem que come
um pedaço de carne de vaca em vez de uma porção de
batatas?
As virtudes de preconceito são por vezes
costumes cruéis, como o costume dos Giagues de
esmagar crianças em um pilão para compor uma pasta
que, segundo os sacerdotes, os torne invulneráveis.
Há poucos povos que não tenham pelos crimes
de preconceito mais horror que pelas ações mais
nocivas à sociedade e mais estima pelas práticas
minuciosas e indiferentes que pelas ações úteis à
nação.
358
Da existência de virtudes reais e virtudes de
preconceito segue-se que há nos povos duas espécies
de corrupção: uma política e outra religiosa. Esta última
pode não ser criminal quando ela se alia ao amor do
bem público, aos talentos e às verdadeiras virtudes.
A corrupção política prepara, ao contrário, a
queda dos impérios. O povo é corrompido e logo os
particulares separam os seus interesses do interesse
geral.
Às vezes, esta corrupção se une à outra. Então
os moralistas ignorantes as confundem. Mas elas com
frequência encontram-se separadas. A corrupção
religiosa é, não raro, apenas o amor do prazer e é
inspirada pela natureza que ela satisfaz sem a aviltar.
Já a corrupção política é o efeito do modo de governar.
É dentro da legislação e da administração
359
dos impérios que é necessário procurar a causa dos
vícios e das virtudes dos homens.
As recitações dos moralistas só satisfazem a sua
vaidade e não produz nenhum bem. Seus discursos
afrontosos não podem mudar nossos sentimentos.
Nossos sentimentos são efeito da natureza e das leis.
É preciso condenar menos o luxo, que pode ser
necessário a um grande Estado e a arte da cortesia, a
que os homens devem suas artes, gosto e virtudes
políticas do que a instituição que faz do homem um
frouxo, um escravo, um velhaco ou um tolo.
É típico de moralistas hipócritas, ver com
indiferença os males que conduzem sua pátria à ruína
e se enfurecer contra
360
qualquer excesso de prazer.
Depois de colocados os princípios acima, pode se
fazer um catecismo em que os preceitos estarão claros,
verdadeiros e invariáveis. O povo, instruído por ele, não
será contaminado por vícios políticos e nem por
virtudes de preconceito. E o legislador, mais
esclarecido, fará apenas leis úteis. E as leis serão
respeitadas.
A inexecução das leis prova sempre a inépcia do
legislador. A recompensa, a punição, a glória e a
infâmia são as quatro divindades que podem inspirar as
virtudes e criar homens ilustres de todos os tipos.
Para aperfeiçoar a moral, os legisladores
361
dispõem de dois recursos: um é unir os interesses
particulares ao interesse geral; o outro é de apressar o
progresso do espírito. Mas, para acelerar esse
progresso, é preciso saber se o espírito é um dom da
natureza ou efeito da educação.
Esse é o assunto do terceiro discurso.
Todos os homens têm os sentidos
suficientemente bons para a percepção das mesmas
relações nos objetos. Possuem as mesmas
necessidades e teriam a mesma memória, se eles
tivessem a mesma atenção.
Todos os homens bem constituídos são capazes
de atenção. Todos aprendem sua língua. Todos
aprendem a ler e compreendem ao menos as primeiras
proposições de Euclides. É suficiente para elevarem-se
362
às mais importantes idéias, contanto que esforcem a
atenção. E para fazer esforço é necessário ter paixão.
São as paixões que fecundam o espírito e o
elevam a grandes ideias. São elas que formaram e
conduziram Licurgo, Alexandre, Epaminondas, etc. São
elas que inspiram os grandes projetos, os meios
extraordinários e as palavras sublimes, que são
arrebatamentos de almas fortemente passionais.
Tornamo-nos estúpidos na ausência das paixões.
Por vezes os príncipes mostram espírito para o
despotismo, Mas, uma vez que seus desejos estão
saciados, não têm mais
363
coragem de se arrancarem às delícias da ociosidade e
se embrutecem em suas grandezas.
Mas todos os homens são capazes do mesmo
grau de paixão?
A origem das paixões está na sensibilidade física,
no amor do prazer e no medo da dor, que movimentam
igualmente todos os homens.
O avaro, em se privando de tudo, se propõe a
assegurar os meios do usufruto dos prazeres e da
ausência dos males. O ambicioso tem o mesmo intento
na procura das procurar as grandezas. O amor da
glória e da virtude é apenas o desejo de desfrutar as
vantagens que a glória e a virtude acarretam.
Todos os homens são capazes do
364
mesmo grau paixão. Todos podem amar doidamente a
glória e a virtude. Então, todos têm a potência de se
elevar às maiores ideias e de fazer coisas
excepcionais, Nascidos iguais, os homens tornam-se
diferentes pelas leis e pela educação. Esta, a
educação, deve preparar à obediência e ao respeito
para com as leis. Contudo, é muito negligenciada. Para
saber o que ela pode fazer nos espíritos é importante
determinar de maneira precisa as ideias que se
assentam aos diversos nomes dados ao espírito. É o
que nos vamos apreciar no quarto discurso.
O nome de gênio é dado apenas aos espíritos
inventores. Sua invenção se apóia nos detalhes ou no
fundamento das coisas. É o trabalho provocado pelas
paixões e, sobretudo, pela paixão da glória que impele
a alma à
365
intensa meditação e faz descobrir novas verdades e
novas combinações. Os objetos que rodeiam o gênio e
as circunstâncias onde ele se encontra colocado
determinam e limitam a sua genialidade.
A imaginação é a invenção de imagens, como o
espírito é a invenção de ideias. Ela brilha nas
descrições, nos quadros. As pinturas são ou grandes
ou voluptuosas.
O sentimento é a alma da poesia. O autor que
está dela privado, está sempre aquém ou além da
natureza. Aquele que tem apenas espírito está sempre
afastado da simplicidade.
O espírito é apenas um conjunto de novas ideias
que não é suficientemente extenso,
366
nem importante para merecer o nome de genialidade.
Assim Maquiavel e Montesquieu são gênios. La
Rochefoucauld e La Bruyère são homens de espírito.
O talento é uma aptidão a um só gênero, dentro
do qual resulta apenas uma invenção medíocre.
O espírito é fino quando percebe pequenas
coisas e as dá à existência.
O espírito é forte quando produz ideias próprias a
causar fortes impressões.
Ele é luminoso quando produz claramente as
ideias abstratas.
É extenso quando discerne um conjunto e vê nele
relações afastadas.
É penetrante e profundo quando vê tudo nos
objetos.
367
O belo espírito tem mais escolhas de palavras e
rodeios de frases do que tem de ideias.
O espírito do século, o espírito do mundo é frívolo
e se ocupa de coisas pequenas. Se por acaso se
ocupa de grandes homens ou de obras célebres, é
para rebaixá-los. É o deus da zombaria que considera
com um riso maligno e um olho zombeteiro o Panteão,
a igreja de São Pedro, o júpiter de Fídias.
A genialidade e o espírito são efeitos da força ou
da vivacidade das paixões. O bom senso é efeito de
sua moderação e se restringe quase ao espírito de
conduta.
Mas é natural, dizem, das pessoas parecerem
insensíveis às paixões da
368
virtude e da glória. É culpa do clima? É do modo de
governar?
Em suas repúblicas Horácio Cocles e Leônidas
só podiam ser heróis. Nessas repúblicas, os homens
pouco apaixonados eram os menos bons cidadãos.
As repúblicas se corrompem quando as honras e
os prazeres estão atrelados ao poder e à tirania, Os
mesmos homens que teriam sido Cipiões e Camilos
serão Mários e Catilinas.
A consideração é uma glória atenuada. Quando
ela está unida à autoridade faz aduladores e
intrigantes. O dinheiro torna-se mais venerado que a
virtude. Vêem-se aos Cincinatos e Catões sucederem-
se
369
Crassos e Sejanos. A mais alta virtude e o vício mais
odioso são ambos, efeito do prazer que encontramos
aos nos entregarmos a um ou a outro.
Todos os homens possuem um desejo secreto de
ser déspota, porque todo homem tem, uns mais outros
menos, o desejo de se fazer servir dos outros para a
sua felicidade.
Nem sempre é preciso talentos e coragem para
estabelecer uma tirania. Só é necessário um
atrevimento comum e vícios. O príncipe começa por
dividir as classes de cidadãos, por espalhar anarquia e
por fazer desejar a uma parte da nação o descrédito da
outra parte. Faz em seguida brilhar a espada do poder,
coloca as virtudes no rol dos
370
crimes, multiplica os delatores, ordena a sufocação das
informações e exila os Sênecas e os Traseias.
Porém, os déspotas dão aos militares, que lhe
são sempre devotados, o sentimento de força e
acabam sendo suas vítimas.
A história dos imperadores de Roma e de
Constantinopla, dos sultões dos turcos, dos czares,
etc., são provas desta verdade. O homem mais culpado
de lesa-majestade é, por conseguinte, aquele que
aconselha o príncipe o uso de excessos e de não ter
limites no uso de sua autoridade.
Os déspotas, senhores absolutos dos povos que
não ousam censurá-los, não têm interesse em se
tornarem esclarecidos. Seus ministros, colocados por
intriga, não têm conhecimento
371
de justiça e de administração e ideia alguma de virtude.
Por conseguinte, a corrupção do povo sustenta a
ignorância e a inépcia dos príncipes e seus ministros.
Só há virtude nas sociedades onde a legislação
une o interesse particular ao interesse geral. Nos povos
em que o poder é repartido entre o povo, os grandes e
os reis, a necessidade das diversas classes de se
ocuparem dos assuntos importantes e a liberdade de
tudo pensar e tudo dizer, dão às almas força e nobreza.
Uma pequena cidade na Grécia produziu grandes
homens e as mais belas ações que todos os ricos e
vastos impérios do Oriente.
372
A força das paixões é proporcional às
recompensas que lhe são correlacionadas. As pilhas de
ouro do México e do Peru, exaltando a avareza dos
espanhóis, lhes têm feito fazer prodígios. Os discípulos
de Maomé e de Odin, na esperança de possuírem as
huris ou as valquírias, não se importavam com a morte.
Em todo lugar onde as letras resultam em consideração
e sucesso, elas são cultivadas com êxito.
O bom senso, que é efeito das paixões fracas,
não cria, não inventa, não muda e nem esclarece.
Quando tudo está em ordem, ele preenche bem os
lugares importantes. Se for necessário combater
abusos, o bom senso é inepto.
Somente gênios inspirados por fortes paixões
fundam ou recuperam os impérios.
373
O gosto é o conhecimento do que agrada a todos
os homens ou a um determinado povo. Adquire-se o
gosto deste último tipo pelo hábito de comparar os
julgamentos e se adquire o gosto do primeiro tipo, que
é o verdadeiro gosto, pelo conhecimento profundo da
humanidade.
Para se ter êxito nas artes, nas ciências e nos
negócios, primeiro é necessário se persuadir de que
não há excelência simultânea em todos os gêneros.
Newton não é reputado entre os poetas, nem Milton
entre os geômetras.
Há talentos exclusivos. Há certas qualidades e
mesmo, se atrevo dizer, certas virtudes particulares
exclusivas para determinados talentos. A ignorância
desta verdade é a causa de mil
374
injustiças. Elogia-se a moderação do filósofo e ao
mesmo tempo se lastima sua pouca emotividade, não
se apercebendo que ele deve o talento da observação
à tranquilidade de sua alma. Pretende-se que o homem
excepcional seja sempre sábio, mas se esquece que a
genialidade é a força da paixão, raramente compatível
com a sabedoria.
Pode-se saber por três sinais, se acaso se
nasceu para realizar grandes feitos: 1º. Se muito se
ama a glória para sacrificar todas as outras paixões; 2º.
Se ardentemente se admira as belas ações ou os
trabalhos consagrados pelo apoio de todos os tempos;
3º. Se verdadeiramente se ama os grandes homens do
seu tempo.
Após essas ideias sobre as diferentes espécies
de talentos, o autor termina, como ele havia prometido,
falando da ciência da
375
educação. Que ela é o conhecimento dos meios
próprios para formar corpos robustos, espíritos
esclarecidos e almas virtuosas. Esses meios
dependem absolutamente do governo. Sob um mau
governo, a natureza e a educação não podem produzir
homens esclarecidos e virtuosos, porque esses
homens sempre querem a felicidade própria e, debaixo
do jugo das tiranias, a luz e a virtude não conduzem de
maneira alguma à felicidade.
Está aí um extrato fiel do livro 'Do Espírito'. Não é
próprio da obra humana e do homem serem vistos
maior e melhor observados nos detalhes. Tem-se dito
de Descartes que ele criou o homem. Pode-se dizer de
Helvétius que ele o conheceu. Foi o primeiro que
fundou a moral sobre a base inquebrantável do
interesse pessoal.
376
Helvétius é um dos filósofos que mais tem esclarecido
esse assunto e colocado em xeque os sistemas que
nos escondem de nós mesmos e nos dão ideias falsas
de virtude. Seu livro é a produção de uma alma
verdadeiramente tocada pelos infortúnios que afligem
as grandes sociedades. Nenhuma pessoa fez sentir
melhor sobre que princípios é preciso estabelecer um
governo e os inconvenientes de toda constituição
política onde as vantagens de um pequeno número são
preferidas à felicidade do maior número. Sólon disse;
―Atenienses, vós estareis tão convencidos de que é do
vosso interesse seguir minhas leis, que não sereis
tentados a transgredi-las‖.
Eis o que devem dizer todos os legisladores e o
que Helvétius receita a eles. Seu livro tem ainda uma
vantagem que
377
o coloca acima de muitos outros. É o estilo sempre
claro e nobre. Quando o autor fala de uma verdade
nova ou abstrata, ele é simples e preciso. Acostumado
o vosso espírito a essas novas ideias, seu estilo torna-
se majestoso, forte e gracioso. Tendo-vos apresentado
uma dessas verdades particularmente interessantes
aos homens, ele a abrilhanta com as riquezas de sua
imaginação. E essa imaginação, sempre submissa à
filosofia, a embeleza sem a desencaminhar. Ela serve
apenas para tornar as verdades mais sensíveis e, por
assim dizer, mais evidentes. É com essa mesma
intenção que ele espalha no seu livro tantos contos
agradáveis e interessantes. Seus contos são apologias
e se ele os não tem poupado, é preciso se lembrar que
ele escreveu na França e que ele falava a um povo
ainda criança.
378
Logo que esta obra apareceu em Paris, os
verdadeiros filósofos a apreciaram. Os pequenos
moralistas ficaram enciumados, a alta sociedade,
enquanto aguardava que fosse julgado, comentava
depreciativamente e os hipócritas se alarmavam e com
razão. Uma mulher famosa por seu espírito prendado e
firmeza de caráter (senhora Du Deffant) disse a
respeito de Helvétius: ―É um homem que disse o
segredo de todos‖.
Os teólogos prepararam um plano de
perseguição que fizerem anteceder por críticas
absurdas. Disseram no 'Jornal cristão' e em enfáticas
pastorais: ―Que o prejudicial livro 'Do Espírito' era um
vapor saído do abismo. Que o autor era um leão que
atacava a virtude à viva força. Uma serpente que
caçava por emboscada. Que ele colocava
379
o homem no nível das bestas, sem respeito por
Orígenes que disse expressamente que o homem
opera pela razão e os animais por instinto. Que o autor
estava errado ao falar de legislação visto que se acha
nos Evangelhos tudo o que é preciso saber disso. Que
não há nada nos livros sagrados, nem nos Santos
Padres da igreja do que está contido no livro 'Do
Espírito'. Que o amor da glória e o amor da pátria
devem ser condenados como paixões, porque todas as
paixões são frutos do pecado‖.
Outros teólogos de igual clareza e lucidez
disseram: ―Que a filosofia dos enciclopedistas e de
Helvétius espalhavam um odor de morte que infectaria
toda a posteridade e que era uma planta maldita que
sufocaria de tempos em tempos o bom
380
grão semeado no campo do pai de família‖.
De início Helvétius recebeu todas essas críticas
com tranquilidade. Ele nem mesmo pensou em
responder a acusações tão vagas e absurdas. Como
faria isto? Como provar, disse Pascal, que não se está
à porta do inferno? Ele ficou um pouco apreensivo
quando foi ameaçado de censura pela Sorbona. Ele a
viu aparecer e só achou-a ridícula. Uma sequência de
algumas das proposições condenadas por esta
faculdade justificará bem o desprezo de Helvétius.
―A sensibilidade física produz as nossas ideias.
Ou, o que é o mesmo; nossas ideias nos vêm através
dos sentidos‖.
―O desejo de nossa própria felicidade é suficiente
para nos conduzir à virtude‖.
381
―É por boas leis que se produzem homens
virtuosos‖.
"A dor e o prazer fazem os homens pensar e
agir".
―É preciso tratar a moral como as outras ciências
e fazer uma moral como uma física experimental‖.
―É à maneira diferente pela qual o desejo de
felicidade se modifica que se devem os vícios e as
virtudes‖.
―Os homens não são maus, apenas submissos
aos seus interesses‖.
―As ações virtuosas são as ações úteis ao
público‖.
―De todos os prazeres dos sentidos, o amor é o
mais arrebatador‖.
382
―É preciso lamentar menos a maldade dos
homens do que a ignorância dos legisladores, que têm
colocado sempre em oposição o interesse particular ao
interesse geral‖.
―Um tolo produz tolices como uma planta
selvagem produz frutos amargos, etc. etc.‖.
Depois do aparecimento dessa censura, alguns
padres e o jesuíta chamado Neuville, pregaram em
Paris e na corte contra o livro 'Do Espírito'.
O ódio dos molinistas e dos jansenistas estava
então em plena ebulição. Essas duas facções se
acusavam reciprocamente de trair os interesses da
religião e, para se justificar, uns e
383
outros se excitavam com grande fervor contra os
filósofos. Os jansenistas tinham mais crédito no
parlamento e os molinistas em Versalhes. Os
jansenistas queriam fazer queimar o autor do livro e os
jesuítas, perseguindo-o, queriam se fazer honrados na
corte.
É necessário lhes fazer justiça. Muitos dentre eles
eram amigos de Helvétius, tanto quanto podem os
jesuítas serem amigos. Ele havia tratado sua ordem
com deferência e, na sua obra, onde ele gracejava de
tantos pregadores e doutores, não havia citado um
único jesuíta. Esses padres eram-lhe gratos por isto e
no começo falaram do seu livro com moderação.
Deram-lhe mesmo alguns elogios. Mas os jansenistas,
declarando-se perseguidores de Helvétius, estimularam
a rivalidade
384
dos jesuítas contra ele. A 'Gazeta Eclesiástica' se
desprendeu contra Helvétius. Berthier não podia se
calar com decência. Afinal, estando o parlamento
prestes a atuar severamente no caso, os jesuítas
sentiam-se humilhados de não terem participado da
maquinação.
Um deles, amigo a vinte anos de Helvétius (e
esta qualidade me impedirá de nomeá-lo), imaginou
que seria uma honra infinita a si mesmo e à sua ordem,
se pudesse fazer um filósofo retratar-se. Tramou uma
intriga contra o seu amigo benfeitor e a executou com a
diligência e a perfídia afetuosa de um padre da corte.
De início, propôs a Helvétius a assinatura de uma
pequena retratação, que devia, dizia ele, lhe reconduzir
às bondades da rainha e lhe preservar dos furores
jansenistas.
385
Helvétius consentiu em repetir num escrito particular o
que ele havia dito no seu prefácio do seu livro. ―Que se,
contra a sua expectativa, alguns dos princípios não
fossem concordes ao interesse do gênero humano, ele
declarava já, antecipadamente, os reprovar e que, sem
garantir a verdade de nenhuma de suas máximas, ele
só garantia a retidão e a pureza das suas intenções‖.
O jesuíta de início, se fez valer de ter obtido uma
espécie de retratação, mas queria outra mais precisa,
mais detalhada e sobretudo humilhante. Ele sugeriu à
rainha a vontade de exigi-la. Mostrou a Helvétius a
necessidade de se resolver a fazê-la e não obteve
resultado. Escreveu então à senhora Helvétius para
assustá-la, mas ele escreveu a uma mulher corajosa e
386
determinada a viver com seu marido e crianças no
exílio. Conseguiu melhor intento junto à mãe de
Helvétius. Ela foi persuadida que seu filho devia à
rainha o que esta princesa lhe exigia. Ela insistiu com
Helvétius e afligiu por muito tempo o seu coração, sem
poder abalá-lo.
Ele acreditava ter-se expressado no livro com
conveniência e reserva suficiente para colocá-lo ao
abrigo da censura. E mais: havia se submetido a todas
as formalidades jurídicas. Havia tido um censor real, de
quem ele acatara os julgamentos. Como então poderia
ser culpado? Mesmo quando seu livro tornou-se
repreensível, só se poderia culpar o censor. Porém, era
isso que ele mais temia. Não podia suportar
387
a ideia que ia ser a causa da desgraça, talvez mesmo
da perda de um homem estimável. Assim, para salvá-
lo, ele assinou o que se queriam.
Assim, por ter demonstrado que a única maneira
de tornar os homens virtuosos e felizes era
combinando o interesse particular com o interesse
geral, Helvétius foi tratado como Galileu o foi por ter
demonstrado o movimento da terra. Galileu, após ter
pedido perdão de joelho, disse em se levantando, "E
però si muove". A posteridade tem sido de sua opinião.
Do mesmo modo, quanto mais ela se esclareça, mais
pensará como Helvétius.
Bem se crê que a sua submissão não apaziguou
os padres. Ele recebeu ordem de se desfazer do cargo
e o senhor Tercier, seu censor,
388
foi destituído do cargo de primeiro funcionário de
assuntos estrangeiros. Esses rigores foram trabalho
dos jesuítas. Os jansenistas queriam ir mais longe. O
parlamento, que com certeza não entendeu o livro 'Do
Espírito', ia processar o senhor Tercier e Helvétius,
quando uma decisão do conselho que se restringia a
suprimir o livro, salvou o autor e o censor.
Enquanto uma seita de teólogos usufruía o prazer
de humilhar Helvétius e a outra se deleitava na
esperança de fazê-lo queimar, os jornalistas franceses
misturavam suas vozes com as de seus tigres.
Trataram o livro 'Do Espírito' como eles tratam todo
trabalho que se eleva acima da mediocridade. Suas
críticas foram repetidas e são ainda pelos homens de
boa fé, que só têm em
389
comum com os jornalistas o fato de não entenderem
Helvétius.
Acusaram-no de ter dito o que os antigos já
tinham dito antes dele. Sem dúvida, várias verdades
que se encontram no seu livro se acham também nos
antigos, mas lá, elas são esparsas e isoladas, sem que
se apercebam as relações que há entre elas. Em
Helvétius, ao contrário, elas estão ligadas, elas se
apóiam e formam o sistema do homem.
Esta verdade, "todas as nossas ideias nos vêm
dos sentidos", se encontra em Aristóteles e em
Epicuro, mas é só em Locke que ela é desenvolvida,
demonstrada e fundamenta o conhecimento do espírito
humano. Por consequência, é a Locke que ela
pertence.
390
"O que é vício ao norte é virtude ao sul", está em
Montaigne como em Helvétius, mas em Montaigne,
esta verdade é dada como um fenômeno do qual se
ignora a causa. Em Helvétius a causa é consignada. As
verdades pertencem menos àqueles que as proferem
como simples asserções do que àqueles que as
demonstram, as desenvolvem, as ligam a outras
verdades e as tornam mais fecundas.
Acusa-se Helvétius de falta de método. E se fez a
mesma censura a Montesquieu. Essas reprovações só
puderam ter sido feitas por homens que, por falta de
atenção e de capacidade, não compreenderam o
conjunto dos livros 'Do Espírito' e 'O Espírito das Leis'.
A sequência de ideias escapa em Montesquieu porque
ele é
391
obrigado a omitir frequentemente as intermediárias,
mas este encadeamento não deixa de existir. Ela
escapa em Helvétius porque as ideias intermediárias,
sendo ou muito novas ou muito importantes, ele
desenvolve-as, estende-as e embeleza-as. Sendo o
espírito, surpreendido por numerosos detalhes, perde
de vista a sequência das ideias principais, mas essas
sequências, nem por isso, estão menos em sua obra.
Atreveu-se a dizer que Helvétius reduziu a nada
todas as virtudes porque fez do interesse o móbil de
todas as ações. Mas o que Helvétius entende pela
palavra 'interesse'? O amor do prazer, a aversão à dor.
A que se reduz então o que ele diz? A esta verdade
eterna que, seja na virtude, seja nos prazeres, o desejo
de nossa felicidade é sempre o nosso móbil.
392
Acusaram-lhe também de favorecer a corrupção dos
costumes e a libertinagem porque ele fala do
entusiasmo da virtude e da glória que o amor das
mulheres tem com frequência inspirado junto aos
espartanos, aos samnitas e junto aos nossos
ancestrais. Entretanto se vê nos princípios de Helvétius
que, se a liberdade reinava junto a um povo, as
mulheres eram aí muito pouco estimadas para que o
desejo de lhes agradar viesse a ser um motor possante
e que, quando os prazeres são comuns ou fáceis, não
se os compra nem por trabalhos e nem por perigos.
Reprova-se em Helvétius ter ele falado friamente
das virtudes privadas e úteis somente nos pequenos
grupos sociais. Não é que não sentisse a estima que
lhes é devida. Ele as possuía todas, mas elas são
menos
393
seu assunto que as virtudes que contribuem à
felicidade e à glória das nações. Além do que, uma vez
estabelecidas essas grandes virtudes por boas leis, as
outras também, por decorrência, se estabelecerão.
O que o comum dos leitores tem menos perdoado
em Helvétius é ter pretendido que todos os homens
nascem com a mesma disposição de espírito e que não
haveria homem que a educação e o trabalho não
pudessem elevar ao nível de gênio. Segundo ele, só a
educação distingue os homens. A natureza os tem feito
iguais. Helvétius não leva em consideração as
diferenças de temperamento e de constituição física.
Supõe que o órgão interior recebedor das sensações é
o mesmo em todas as cabeças, que recebe as
sensações da mesma maneira e
394
que opera em todas com a mesma facilidade. Supõem
ainda, enfim, que só as circunstâncias e a educação
têm feito Newton geômetra, Homero poeta, Rafael
pintor e tal crítico um tolo. Ele emprega toda sua força
para estabelecer esta opinião, mas, infelizmente, até o
presente não tem conseguido. Mas dos esforços que
fez para prová-la, resulta a evidência de uma grande
verdade. Que para desenvolver e formar os nossos
talentos e qualidades, nós contamos muito com a
natureza, mas não o suficiente com a educação. A
máxima de Locke, que nós nascemos discípulos dos
objetos que nos rodeiam, é proclamada por Helvétius.
Além do que, se acontecer de cada homem não nascer
com as mesmas disposições dos outros homens, todos
os homens em conjunto são reputados iguais. O
legislador
395
que comanda vinte milhões de homens deve ver em
todos as mesmas faculdades. E suas leis, como
aquelas da natureza, devem ser gerais. Não devem
escolher pessoas para inspirar unicamente nelas a
virtude ou a genialidade. Cabe ao filósofo, que observa
os homens em detalhe, ver as diferenças que a
natureza colocou entre eles. Mas essas diferenças
desaparecem aos olhos do legislador.
Sem me deter mais nas críticas feitas contra um
dos melhores trabalhos deste século, direi que ele foi
condenado em Roma pela Inquisição, mas que esta
condenação, solicitada pelo clero francês, não teve
nenhum efeito na Itália. Lá o livro foi traduzido,
admirado e reimpresso. Vários homens revestidos das
principais dignidades da Igreja, e entre outros, o
396
cardeal Passionei, apressaram-se em escrever ao
autor para lhe agradecer o prazer que lhes havia dado.
Outro cardeal, que nós não nomeamos porque ainda é
vivo, lhe comunicou "que não se concebia em Roma a
tolice e a maldade dos padres franceses". Todos os
jornais da Itália o cobriram de elogios.
Um disse, falando do livro: ―Questa è un opera
che all’umanità apporterà infallibilmente un gran
vantaggio‖. Outro diz do autor: ―Il grande autore deé
rallegrars, essendo sicuro della gratitudine e della stima
che per lui avranno i veri dotti e quelli che ben
comprendono le di lui grande idee‖.
O sucesso foi o mesmo na Inglaterra. Traduzido
em Londres, se fez aí numerosas
397
edições no primeiro ano. Na Escócia, Hume e
Robertson falaram como de um trabalho superior.
Vários poetas ingleses o comemoraram. Não houve
críticas nesta ilha esclarecida a não ser por um
pequeno número de partidários da filosofia de Platão,
que lá se conserva embelezada e tornada sedutora
pelo milorde Shaftesbury.
Na Alemanha, logo de início apareceram duas
edições do livro de Helvétius. O famoso Gottscheid
colocou no frontispício de uma dessas traduções um
prefácio em que ele diz que ―se o livro 'Do Espírito' foi
condenado na França e num país que crê na
infalibilidade do papa, ele deve fazer sucesso entre os
protestantes e nos países onde os homens conservam
seus direitos‖. Ele acrescenta que ―o autor vem destruir
398
vários preconceitos funestos à sua pátria e esclarece o
mundo sobre os princípios da moral e da legislação‖.
Seu livro foi lido com avidez em todas as cortes
da Alemanha e recebido com os mesmos
arrebatamentos na Suécia e mesmo na Rússia. A
rainha da Suécia disse a um homem que ela honrava
com a sua confiança: ―Como eu gostaria de conversar
com Helvétius! Queria ao menos que ele soubesse do
prazer que me tem dado. Escreva-lhe de minha parte o
quanto eu o admiro‖.
O embaixador francês em Petersburgo lhe
escreveu: ―Ao chegar encontrei o espírito russo tão
ocupado com o vosso quanto todo o resto da Europa. É
com grande prazer que me encarrego de ser o
intérprete das pessoas esclarecidas desta nação. Eu
tomo
399
a liberdade de engrandecer as vossas qualidades junto
a eles. Eu devo como cidadão e como ministro,
conhecer e fazer conhecido tudo o que honra minha
pátria‖.
É pequeno número de franceses cujos apoios
merecem ser contados, mencionando com elogio em
seus trabalhos o livro 'Do Espírito' e ou defendendo
com calor nas conversas. Voltaire deu a Helvétius os
testemunhos mais carinhosos de sua estima.
Parecem vossos versos de Apolo feitos pela mão.
Tereis apenas meu reconhecimento por fruto.
Vosso livro é ditado por íntegra e reta razão,
Partais depressa e deixeis na França tudo.
Voltaire lhe oferece um amparo. Ele lhe consola,
apóia, encoraja, deseja e propõe de viver em inteira
independência, onde possa fazer
400
uso de seu amor pela verdade, da eloquência e da
genialidade. Ao mesmo tempo ele escreve a outras
pessoas que é o partidário mais zeloso de Helvétius.
Que a França é bem ridícula porque, logo que aparece
uma verdade entre nós, todo mundo fica alarmado
como se os ingleses estivessem nos invadindo. Na
Inglaterra, acrescenta ele, o livro 'Do Espírito' só tem
feito discípulos e amigos para o autor porque, em lugar
de hipócritas e pequenos importantes, os ingleses têm
filósofos que nos instruem e marinheiros que nos
castigam nas orelhas. Voltaire convida, sobretudo, os
seus compatriotas a imitarem os ingleses na nobre
liberdade de pensar e no profundo desprezo pelas
frivolidades de escola. Assegura que há muito tempo
não tem visto um só homem de sociedade que, sobre
as coisas essenciais, não pense como Helvétius.
401
Tantas aprovações ilustres, edições do livro 'Do
Espírito' que se sucederam rapidamente, seu sucesso
em todas as nações: Testemunhos que o autor podia
estar convicto de ter feito um livro útil ao gênero
humano. Sinais evidentes do reconhecimento universal.
Assim, o doce sentimento de sua glória sarou logo as
feridas que a intriga e a inveja tinham feito em
Helvétius. Ele tornou-se mais feliz como jamais foi.
Ele passava a maior parte do ano em suas terras
em Voré. Bom marido e bom pai, contente de sua
esposa e de suas crianças, lá saboreava os prazeres
da vida doméstica. A felicidade desta família era
percebida até mesmo por aqueles que estavam menos
preparados para a sentirem. Uma senhora da
sociedade disse, falando deles:
402
―Essa gente não pronuncia como nós as palavras 'meu
marido, minha esposa, minhas crianças'‖.
Helvétius tinha se preparado desde há muito
tempo para outra espécie de felicidade. Logo que ele
tomou posse de suas terras em Voré, ele se entregou a
seu caráter de beneficência.
Nesta terra havia um fidalgo de nome Senhor de
Vasseconcelle. Ele possuía apenas uma pequena
propriedade foreira e há muito tempo não fazia os
devidos pagamentos ao senhorio. Helvétius,
comprando a terra, comprou também os direitos sobre
as somas que eram devidas à Voré. Os
administradores, para mostrarem serviço ao novo
senhor, não deixaram de exigir com rigor tudo o que lhe
403
era devido. Fazia poucos dias que ele havia chegado,
quando lhe foi anunciado o senhor de Vasseconcelle.
Este conta ao senhor Helvétius que a situação de seus
negócios não lhe havia permitido de pagar o foro que
devia à Voré já há alguns anos e que no momento não
estava em condição de acertar tudo, mas se
comprometia para dali em diante pagar exatamente o
ano corrente e os atrasados de um ano. Acrescentou
que se lhe fosse exigido mais e se continuasse os
procedimentos de cobrança, estaria arruinado
irremediavelmente. Ele pediu a Helvétius que desse
ordem aos administradores de cessassem os
procedimentos de execução. ―Eu sei, lhe diz o filósofo,
que você é um homem de sociedade e que não é rico.
Daqui para diante, você me pagará como puder. Eis
aqui um papel que deve impedir os meus
administradores de lhe importunarem‖. Ele lhe
404
deu uma quitação geral. O senhor de Vasseconcelle se
joga seus joelhos gritando: ―Ah! Senhor, vós salvais a
vida de minha esposa e de cinco crianças‖. Helvétius o
ergue abraçando-o. Fala-lhe com o interesse mais
nobre e terno e lhe faz aceitar uma pensão de mil libras
para criar os filhos.
Outros homens de sociedade ou vizinhos, ou
vassalos do senhor Helvétius, recorreram a ele em
suas necessidades. Muitos respondiam processos.
Alguns, que suspensa a guerra, tinham um rebanho a
refazer ou equipamentos a recuperar e outros que
tinham crianças a educar ou um bem em desordem
podiam contar com a ajuda do senhor de Voré. Entre
todos os homens desta condição, que lhe deviam
obrigações, nomeamos apenas MM. De L'Étang, que
não quis jamais calar os
405
benefícios que ele recebeu de Helvétius.
Se os seus rendeiros tiveram alguma perda ou se
o ano não fora fecundo, lhes perdoava as dívidas e
com frequência lhes dava dinheiro. Ele fixou em suas
terras um cirurgião, homem de valor. Montou uma
farmácia bem abastecida para distribuição de remédios
a todos que necessitassem. Quando um camponês
caia doente, recebia carne, vinho etc., tudo o que
convinha ao seu estado. E Helvétius ia visitá-lo com
frequência, consolando e se preocupando que tivesse
bons cuidados e que fosse bem servido. Algumas
vezes lhe servia ele mesmo. Tinha uma maneira bem
segura de terminar quaisquer processos: Pagava de
imediato o preço da coisa contestada.
406
Ele era amigo zeloso e atencioso de pequeno número
de camponeses que mostravam bons costumes e
bondade. Gostava de ter à mesa homens idosos e
senhoras muito velhas que tinham toda a rudeza de
sua idade, mas que eram justas e praticavam o bem.
Com frequência fazia os seus amigos
desfrutarem um espetáculo deleitoso. O da sua
chegada à campanha. Mulheres, velhos e crianças
vinham rodeá-lo, abraçá-lo, soltando gritos e
derramando lágrimas de alegria. À sua partida, seu
coche era seguido, por muito tempo, por uma multidão
de vassalos ou de vizinhos.
Ele estimulava o trabalho em suas terras. E
queria provocar a industrialização de Voré porque só
assim se podia dar
407
aos habitantes a suficiência que lhes era recusada pela
esterilidade do solo. Tentou implantar uma fábrica de
rendas d’Alençon, mas até o momento não obteve
sucesso. Foi mais feliz num outro empreendimento.
Após ter sido enganado por agentes infiéis, ou pouco
inteligentes, finalmente estabeleceu uma fábrica que
emprega mão de obra não especializada, que faz dia a
dia, novos progressos.
Passava todas as manhãs a meditar e escrever.
O resto do dia procurava distração. Amava a caça e
para torná-la mais agradável, não imaginava aumentar
as caçadas. É verdade que não gostava de vê-la
destruída nem pelos outros e nem por ele próprio.
Entretanto, estava cercado de caçadores ilegais.
Estabeleceu severas proibições, mas os guardas, que
o conheciam, não levavam à risca o estabelecido.
408
Um dia, um camponês veio caçar justamente
debaixo das janelas do castelo. Helvétius ficou irritado
e ordenou que este homem fosse vigiado de perto e
preso na primeira ocasião. No dia seguinte, trouxeram-
lhe o culpado. Helvétius, muito irado, se levanta e dirige
apressadamente ao caçador que dois guardas
seguravam no pátio do castelo. Após o ter olhado um
momento disse: ―Meu amigo, você procedeu mal
comigo. Se tinha necessidade de caçar, por que não
me pediu autorização? Eu lhe teria dado‖. Em seguida
às essas palavras, ordenou que o libertassem e lhe
devolvessem o que havia caçado.
Entretanto a senhora Helvétius, indignada com o
atrevimento dos caçadores, assegurou ao marido que
caso não houvesse punição, continuariam a caçar em
suas propriedades.
409
Ele concordou e prometeu usar de rigor. Ordenou aos
guardas que multassem e desarmassem qualquer um
que atirasse em suas terras. Poucos dias após as
novas ordens, prenderam um camponês que caçava.
Tomaram-lhe a espingarda e conduziram-no à prisão,
de onde não saiu até ter quitado a multa. Helvétius,
informado deste acontecimento, vai procurar o aldeão,
receando incorrer nas censuras da senhora Helvétius.
Após obter a promessa do caçador de que não falaria
do que iria se passar entre eles, pagou-lhe o preço da
arma e lhe deu o dinheiro correspondente à soma da
multa e das custas totais do processo. A senhora
Helvétius, por seu lado, não estava tranquila. Disse às
suas filhas: ―Eu sou a causa desse pobre homem estar
arruinado. Eu estimulei vosso pai a
410
fazer punir os caçadores ilegais‖. Ela se fez conduzir à
morada daquele caçador, interroga a quanto monta a
soma da multa e das custas e o preço da arma de fogo.
Paga tudo. O camponês recebeu o dinheiro sem faltar
ao acordo com Helvétius
No mesmo ano, quando retornava à Paris, lhe
ocorreu um pequeno incidente que prova que sua
filosofia e sua bondade não o abandonariam jamais.
Sua carruagem foi parada numa rua por uma charrete
carregada de lenha que podia ser desviada facilmente
e deixar livre a rua. Mas não se fazia nada disso.
Helvétius, impaciente, chamou de tratante o condutor.
―Tem razão, lhe diz o aldeão. eu sou um velhaco e o
senhor um homem de sociedade, visto que eu estou a
pé e o senhor de carruagem. Meu amigo,
411
lhe diz Helvétius, vos peço perdão. Mas, tu vieste me
ensinar uma excelente lição que devo pagar‖. Entrega-
lhe seis francos e fez sua gente ajudar o carroceiro a
realocar a charrete.
Depois de passar sete ou oito meses em suas
terras, tornava a trazer a família para Paris onde vivia
em razoável isolamento com alguns amigos de
variadas condições, que lhe convinham por suas luzes
do saber e costumes. Somente dava um dia por
semana para as relações sociais. Nesse dia, sua casa
era um lugar de encontro da maioria dos homens de
mérito da nação e de muitos estrangeiros: príncipes,
ministros, filósofos, grandes senhores e literatos,
ansiavam por conhecer Helvétius.
Tal gênero de vida tão delicioso só foi
interrompido por duas viagens agradáveis.
412
Helvétius queria ver a Inglaterra e conhecer esta
famosa nação a quem a Europa deve tanto as luzes.
Queria ver o efeito das boas leis e de uma vigilante
administração. Partiu para Londres em de março de
1764. Foi recebido pelo rei, por altos funcionários e
sábios, como devia ser um homem ilustre cuja
reputação sempre o antecede. Viu as terras do país.
Não as achou melhor cultivadas que as da França, mas
encontrou os camponeses mais felizes. Reparou no
povo do interior da Inglaterra muita humanidade e nada
daquela arrogância que, certas vezes, os estrangeiros
reprovam nos habitantes de Londres.
Atravessando uma vila da província de Yorkshire,
um carregador desajeitado o derruba. Os vidros da
liteira
413
estilhaçaram-se e o carregador muito machucado,
soltava gritos. Helvétius, que os estilhaços de vidro
haviam machucado, saindo de sua cadeira, as mãos
sangrando, só se ocupava do carregador. Alguns
camponeses que tinham acorrido para lhes socorrer,
observaram esse traço de humanidade que lhe fizeram
notar outros. Num instante, Helvétius foi cercado por
todos os habitantes da vila. Todos se apressaram em
lhe oferecer suas casas, seus cavalos, mantimentos,
enfim, socorros de toda espécie. Muitos, mesmo os
mais ricos, queriam lhe servir de carregadores.
Observou nos ingleses um amor extremo por
suas crianças. O que nós chamamos na França de
espírito de sociedade lhes é quase desconhecido, mas
eles desfrutam muito dos prazeres da vida doméstica.
414
O espírito de sociedade reúne em Paris homens que
tem necessidades de entretimentos frívolos. O espírito
de sociedade congrega os ingleses para se ocuparem
dos interesses de Estado e da prosperidade da sua
pátria. Eles não procuram distrações porque eles têm
prazeres sólidos. Vê-se pouco na Inglaterra desse riso,
mais frequentemente sinal de tolice que de expressão
de felicidade. Mas se vê bem-estar e um sábio
emprego do tempo. Vê-se um povo sério, ocupado e
contente. Helvétius, ao sair desse país onde não tinha
visto a humanidade humilhada e sofrida, derramou
lágrimas.
Consentiu, no ano seguinte, às solicitações do rei
da Prússia (Frederico II) e de diversos príncipes, que
desde há muito tempo lhe convidavam a fazer uma
viagem para a Alemanha. Depois que se
415
ficou sabendo que podia se determinar a viajar, as
insistências tornaram-se mais vivas e assim, partiu no
fim do inverno de 1765. Estava com pressa de seguir
para Berlin e de ver um grande homem. O rei da
Prússia queria lhe hospedar e não permitiu que tivesse
outra mesa a não ser a sua. Ele o entreteve com
frequência e teve por sua pessoa e por seu caráter a
estima que já tinha por seu espírito. Helvétius foi
acolhido com a mesma consideração junto a diversos
príncipes da Alemanha e, sobretudo, em Gotha.
Ele observou em todas as cortes e nas nobrezas
alemãs a filosofia, o amor, a ordem e a humanidade.
Resulta deste espírito que, sob o domínio de vários
príncipes, a maioria dos quais déspotas, o povo não é
miserável. Por essa época Helvétius tinha ainda
416
receio de ser perseguido na França. Todos os príncipes
da Alemanha se ofereceram a lhe enviar uma
autorização de asilo. Todos queriam lhe reter. Ele ficou
muito agradecido a todos. Entretanto, se a perseguição
contra ele fosse renovada, a Inglaterra seria o país que
ele escolheria para asilar-se.
Apesar do medo, retornou à França. Havia-se
dissolvida a ordem dos jesuítas. Esta sociedade de
intrigantes, esta eterna cabala à qual se congregavam
só ambiciosos sem mérito, esta sociedade funesta aos
costumes e aos progressos das luzes, não foi proscrita
pelos filósofos. Estes destruíram a ordem, mas
trataram bem os indivíduos. O parlamento, por causa
da maioria dos jansenistas, tratou a ordem como ela
merecia, mas os indivíduos com barbárie.
417
Helvétius tomou conhecimento que aquele jesuíta que
tinha abusado de sua confiança e traído sua amizade,
aquele jesuíta que lhe havia feito perder as bondades
da rainha e posto contra ele os hipócritas da corte,
estava confinado numa aldeia onde sofria a mais
extrema pobreza. Procurou um dos amigos deste infeliz
e lhe deu cinquenta luíses. ―Leve-os, lhe diz, ao padre
***, mas não lhe diga que vieram de mim. Ele me
ofendeu e será para ele uma humilhação receber meus
socorros‖.
Helvétius, em seu isolamento em Voré, se
ocupava a desenvolver, a provar os princípios do livro
'Do Espírito'; mas não queria publicar mais nada. Via a
filosofia, perseguida por cabalas poderosas, formar
poucos discípulos e nenhum protetor. Ele ficava
418
aflito, mas não espantado. Dizia ―A verdade, que nunca
pode prejudicar o gênero humano, nem mesmo as
grandes sociedades que chamamos de nações, é com
frequência oposta aos interesses do pequeno número
de homens que estão à frente dos povos. Aí vocês têm
grandes corporações repletas de espírito corporativo.
Elas usurpam continuamente uns aos outros e todos
contra a pátria. São como uma grande família onde os
mais velhos querem excluir os mais novos da partilha.
Como será recebido nessas corporações um filósofo
que venha dizer-lhes: Acima de tudo, sede cidadãos!
Realizeis com dedicação as vossas obrigações.
Conservai os vossos direitos sem os aumentar‖? Lá,
ministros com espírito limitado e arrogante, incapazes
de ver os abusos que são introduzidos e
419
os que estão contidos na constituição do Estado. São
conduzidos pela rotina e as seguem. Eles não têm o
hábito da meditação: irão eles o possuir? Isto é o que é
necessário, entretanto, para corrigir esses abusos que
a filosofia vem lhes mostrar. Eles possuem fantasias,
projetos para seus favoritos e parentes. Crêem vocês,
que possam escutar sem impaciência, que eles só
devem ter em vista o bem do Estado? Que hão de
desejar? De não sofrerem contradição. E para isso o
que é necessário fazer? Suprimir da autoridade todas
as limitações, retirar toda a sua solidez. Mas esses
abusos que os ministros respeitam ou toleram, a quem
são prejudiciais? À pátria, que é apenas um nome
inútil. A quem podem ser úteis? Aos grandes. Julgue o
que os grandes pensarão de um grupo de homens que
lhes demandem
420
serem moderados e justos. O príncipe e os grandes
estão cercados de padres, que, nos séculos de
ignorância, reinaram sobre príncipes e povos. Se o
mundo se esclarecer serão menos respeitados e os
ver-se-á como homens em geral perigosos. Pode-se
imaginar com que fúria eles difamam a filosofia? Se
deve se espantar que sejam bem recebidos nas cortes
onde dizem: Deus vos tem dado o poder e a nós ele
nos encarrega de ensinar os povos. Em vez de vos
fatigar em fazer boas leis e em dar o exemplo de amor
pela pátria obrigai as nações a crer em nós e deixai
conosco. É mais cômodo.
―Vejam a cobiça dos homens do meu velho
Estado, dos cortesãos e de outros. Essas pessoas
deixarão que se decida em paz que suas fortunas nem
sempre são legítimas e que eles fazem
421
um odioso uso delas? Poderão consentir que se lhes
façam ruborizar dessas riquezas que são o alimento de
seu orgulho? Vocês percebem que a filosofia deve ser
perseguida nos palácios e até nas cabanas pelas
classes da sociedade que, ao menos por enquanto,
determinam a opinião pública? E diante de quem a
filosofia há de se defender? O que são seus juízes?
Tolos. Mas, dirão vocês, há na nação escritores
estimáveis que, sem ser do número dos filósofos,
adotam seus princípios, com que se adornam e os
reproduzem. Eu respondo que há poucos. Os homens
que têm apenas espírito são os rivais humilhados dos
homens que possuem genialidade e os detestam.
Vocês contariam mais de um belo espírito entre os
difamadores de Descartes e de Cornélio e, bem perto
de nós, entre aqueles de Voltaire, de Montesquieu, de
Buffon e de Fontenelle. A filosofia reduz o belo espírito,
os pequenos talentos, a seu justo valor e
422
assim, o interesse deles é unir suas vozes às dos
homens frívolos e corrompidos contra toda liberdade de
pensar. Sabem vocês por que a filosofia é honrada e
feliz na Inglaterra depois da revolução? É que na
Inglaterra o interesse geral e o interesse particular não
estão opostos. É que lá reina o amor da ordem e da
pátria. Se a honra verdadeira, se o espírito de
cidadania e se as verdadeiras virtudes não
renascessem nas nações onde a filosofia é perseguida,
lá ela teria a devida consideração. Se essas nações, ao
contrário, caírem no despotismo e, por consequência,
se corromperem cada vez mais, a filosofia estará
proscrita para sempre nelas".
Foi depois dessas ideias que Helvétius retornou
ao seu primeiro talento e se ocupou apenas do seu
poema 'Da Felicidade'. Esse talento que ele havia
deixado sem fazer uso, não estava enfraquecido. Pode-
se julgar pelo sexto canto e
423
e por uma parte do quarto, que ele compôs no verão
passado. Ele pensava trabalhar ainda vários anos
nesta obra e só entregar quando seus amigos e ele
estivessem contentes. E a que grau de perfeição não o
teria levado!
Observa-se no começo de 1771, algumas
mudanças no seu humor e nos seus gostos. Não se
achava mais nele a ordinária serenidade. Das
conversações que tanto tinha amado, gostava menos.
Tanto o fatigava o exercício que quase não ia mais
caçar. Essa mudança não alarmou sua família e seus
amigos. Estava-se bem longe de olhá-la como um sinal
de decadência. Atribuía-se a causas morais. Esses
últimos anos foram de desgraças públicas às quais
Helvétius era muito sensível. A desordem das finanças
e a mudança de constituição do Estado aumentaram a
consternação geral. Um grande
424
número de suicídios no reino e na capital são tristes
provas desta consternação. Os maus físicos
aumentaram ainda mais. As colheitas não foram
abundantes. Enquanto a penúria durou, as esmolas de
Helvétius não permitiram que seus vassalos sofressem.
Prolongou nesses anos infelizes a sua permanência na
aldeia que se lhe tornara tão cara pela necessidade
que tinha dele. Além de que, em Paris, o espetáculo de
uma miséria que não podia aliviar, lhe tornava triste a
sua permanência. Porém, fazia grandes bens. Todos
os dias se introduziam nele, com bastante mistério,
algumas novas finalidades em sua generosidade. Com
frequência, na presença delas, dizia a seu criado de
quarto: ―Cavalheiro, eu vos proíbo de falar disso,
mesmo após a minha morte‖.
Algumas vezes aconteceu dele estender suas
425
liberalidades a sujeitos muito maus. E, em se lhe
fazendo censuras, dizia: ―Se eu fosse rei eu os
corrigiria, mas sou apenas rico e eles pobres. Devo
lhes socorrer‖.
Sua boa constituição e uma saúde raramente
alterada lhe prometiam uma longa vida. Entretanto, dia
a dia, sentia que perdia as forças. Um ataque de gota
que se localizava na cabeça e no peito, lhe tirou
primeiro a consciência e logo da vida.
No dia 26 de dezembro de 1771 foi arrancado de
sua família e de seus amigos, dos infortunados e da
filosofia.
Poucos homens foram tratados pela natureza tão
bem quanto Helvétius. Ele havia recebido a beleza, a
saúde e a genialidade. Em sua mocidade, era muito
bem apessoado. Seus traços eram nobres e regulares.
426
Seus olhos exprimiam o que dominava em seu caráter,
isto é, a doçura e a benevolência. Tinha uma alma
corajosa e naturalmente voltada contra a injustiça e a
opressão.
Nenhuma pessoa poderia estar mais convencida
do que ele que para ter sucesso em tudo, é preciso
apenas querer fortemente. Havia sido um bom
dançarino, hábil na esgrima, atirador habilidoso,
financista esclarecido, bom poeta e grande filósofo,
desde que havia desejado ser. Havia amado muitas
mulheres, mas sem paixão e arrasto dos sentidos. Não
tinha nas amizades uma preferência exclusiva. Tinha
nelas mais procedimentos que ternura. Seus amigos,
em suas dificuldades, lhe achavam sensível porque ele
era bom. No curso ordinário da vida, eles lhe foram
pouco necessários. Com frequência, sua conversação
era a de um homem cheio de ideias e, às vezes, as
possuía num mundo que não era digno delas.
427
Gostava muito de debates e propunha paradoxos para
vê-los serem debatidos. Gostava de provocar o
pensamento naqueles que acreditava capazes e dizia ir
com eles à caça de ideias. Tinha o maior respeito pelo
amor-próprio dos outros e mostrava tão pouco a
superioridade que tinha, que muitos homens de espírito
que o viam frequentemente, passavam muito tempo
sem percebê-la. Temia a intimidade dos grandes. À
primeira vista, tinha com eles o ar de embaraço e de
contrariedade. Amou a glória passionalmente e esta foi
a única paixão que experimentou. Lhe fez amar o
trabalho, mas não lhe inspirou os seus favores.
Ninguém os tem escondido com mais cuidado. Ele não
deu a seus prazeres o tempo que dedicou ao estudo e,
na sua própria juventude, quando se retirava ao seu
escritório, só os infelizes eram permitidos de lhe
interromper.
428
A FELICIDADE, POEMA
PRIMEIRO CANTO
ARGUMENTO
O poeta procura em que condição e em que bens a natureza colocou a
felicidade. Interroga a Sabedoria que lhe mostra as vantagens e as desvantagens
daquilo que os homens chamam de bens. De início os prazeres do amor fazem os
homens felizes por algum tempo, mas o desgosto e os aborrecimentos os seguem. E os
que são entregues a esses prazeres se encontram na velhice sem recursos para a
felicidade. A Sabedoria lhe mostra os prazeres e as inquietações da ambição, seus
estragos e seus crimes. O poeta conclui que, embora as grandezas sejam uma fonte de
prazer, elas proporcionam menos felicidade que as volúpias dos sentidos.
Mergulhado nos dissabores, o homem, dizia eu um
dia,
está então à infelicidade condenado sem volta?
429
Que ventos impetuosos, ó poderosa Sabedoria,
da ilha da felicidade repelem-me sem cessar?
Que baixios ameaçadores defendem as margens!
Ó se todos os mortais jogados longe de seus portos,
pelas diversas correntes de doidas opiniões,
são, no meio dos mares, navios sem bússolas,
Vem me servir de guia: eia, que posso eu sem ti!
Procurei a Felicidade. Ela fugiu diante de mim.
Tendo na mão o fio de uma falsa esperança,
vagueio pelos meandros de um imenso labirinto.
É nos prazeres, nos bens ou na grandeza
que o homem deve procurar e achar a felicidade?
Sabedoria, a ti compete resolver minhas dúvidas,
da Felicidade dignar-se abrir os caminhos:
Eu disse. E num sono sonhos consoladores,
acalmaram a agitação dos meus sentidos.
Os céus se abrem, e do azul de uma nuvem
a Sabedoria rápida se oferece à minha vista.
Simples no discurso, e amável no acolhimento,
não ostenta de modo algum vaidosa presunção.
430
De uma falsa virtude desdenhando o embuste,
ela mesma aplaude as lições de Epicuro.
Indulgente com os humanos, sua nobre fronte
de seu sossegado palácio não tira os olhos.
Venho, diz ela, aqui partilhar teus receios,
e de teus úmidos olhos secar as lágrimas.
Saiba que no acaso que sustenta teus passos,
procuras a Felicidade onde ela não está.
Vá aos vários lugares que habitam a indolência,
a presunçosa ambição e a sórdida riqueza;
verás que nesses lugares o insano só persegue
o fantasma vão de uma Felicidade fugidia.
Ela diz. Eu me acho no centro de um bosque
e uma brisa forte e pura refresca a sombra.
Sob uma latada de murtas um trono de flores,
onde a arte com a mão combinou as cores.
De canto de pássaros meu ouvido se deleita.
De arbustos odorantes a terra se perfuma
e suas essências excitadas aromatizam os ares.
Às graças do amor os meus sentidos estão abertos.
431
Nesses lugares encantados tudo respira êxtase.
É aqui, diz minha guia, onde reina a indolência.
Eu a vejo: que encantos aos meus olhos surpresos?
O cor-de-rosa de sua pele dá vida aos lírios.
Seu corpo está seminu, sua boca semi-aberta;
sobre um cândido braço sua cabeça repousa.
Das chamas do desejo seus olhos brilhando,
Chamam o prazer para seu seio palpitante.
Do brincalhão Zéfiro o sopro acariciante,
levanta devagar sua echarpe esvoaçante:
Seu galante pudor às exaltações dos amantes,
opõe seus sorrisos, suas recusas excitantes,
seus rogos, seus gritos, esta fraca defesa,
que animando a espera e provocando agravo,
ao desejo encorajado permite de tudo ousar.
Mas que encanto desconhecido me força parar?
Eu vejo nos campos em flores, deleitosa cena:
Variando recreios, a vivaz Hebe galhofeira.
Lá conduzido pelos risos, eu avanço e vejo
ninfas encerrarem-se na escuridão da mata.
432
Seus belos corpos estão cobertos por leve gaze,
que em dobras nos seios prende a arte do agrado.
Obstáculo ao doce prazer, mas fraco obstáculo.
O tecido se rasga, o amor é triunfante.
O amante dá e recebe mil beijos fogosos
sobre seu ardente lábio, sente flutuar sua alma,
e de seus suspiros prensados o arvoredo ecoa.
Nos braços do prazer, a beleza se enfeita.
Adiante, perto dum arroio, brincadeiras de luta.
É lá que ao seu amante uma amante disputa
a murta de cheiros que sua mão quer colher.
Eu os vejo alternadamente se evitar, se acometer.
A ninfa tomba enfim sobre a relva estendida.
Que secretos encantos são oferecidos à vista!
A gritos impotentes seu pudor tem recorrido
e as águas refletem seus folguedos e amores.
Eu sei, digo então, todo sábio cita o sibarita.
Procura-se a felicidade? É aqui que ela habita.
433
Rainha desse paraíso: Eu estou a seis joelhos.
Sacerdotisas do prazer: Eu a vós me consagro.
Agora os amantes mais frios em suas carícias,
no seio das volúpias exauriram suas ternuras.
Os olhos já não brilham das chamas do desejo
e a languidez neles sucedeu ao prazer.
Nesses lugares felizes, ai, digo eu, ó Sabedoria.
A ligeira Felicidade é só um êxtase momentâneo.
Pois quê! Para reanimar as carências satisfeitas
a formosura tem apenas impotentes atrativos!
Aqui nada é durável. É verdade, diz minha guia,
quando a esses jogos diversos a juventude preside,
se tu vês ao prazer suceder os langores,
se os espinhos já crescem entre as flores.
Quando Hebe desaparece o céu aqui só envia
desgostos pungentes sem mistura de alegrias.
E esse templo onde teus olhos buscam a ventura,
pisado pelos desgostos, é só a morada do horror.
434
Ela diz: Hebe foge; já por esses arvoredos.
Bóreas ao cume nevado acumula nuvens.
E num carro sombrio conduzido pelos ventos
o frio invernal destrói o palácio da primavera.
De seus ramos então a folha é destacada,
o vento se consolida e a erva é ressecada,
um negro nevoeiro sucede à clareza do dia.
No trono onde reinava a indolência e o amor,
que vejo eu? É o tédio, monstro que se devora,
que se procura em tudo, se encontra e se detesta.
Sua fronte lívida é cingida por um ramo de cipreste.
Os amantes juntos dele carregam inúteis remorsos.
Esses infelizes que agora nenhum enlevo inflama,
indagam com assombro o vazio das suas almas.
Já a enfermidade, os olhos apagados e vazios,
o corpo meio curvado sobre uma bengala nodosa,
da idade caduca tem apressado o lento ultraje,
e de seu dedo de bronze sulcado suas fisionomias.
Eles invocam a morte, esperança dos infelizes,
e a morte muito lenta se recusa às suas súplicas.
435
Ah! exclamo então, nesse templo campesino,
a felicidade só faz, pois luzir e desaparecer!
Sibarita, porque esses queixumes impotentes?
Prazeres passados são infortúnios presentes.
Ele podia ser feliz, responde a Sabedoria,
mas o amor dos prazeres dissipou seu vigor;
O amor é uma dádiva da divindade.
Ele podia desfrutar, mas devia sensatamente
poupar-se então dos prazeres de toda vida.
Que lhe servem ai, esses pesares supérfluos?
O inútil remorso é só um infortúnio a mais.
Ó meu filho, ele só fez na primavera da vida
saborear de um só prazer; a fonte esgotou.
Sensível aos seus males, tu lastimas um infeliz,
entretanto, ele é menos que um louco ambicioso.
É de instantes felizes, onde cheio de ternura,
um amante gostaria de eternizar o êxtase.
436
Mas não há lugar algum, onde livre do desejo,
O ambicioso quisesse parar para usufruir.
A grandeza que ele obtém sempre leva com ela,
a impaciente esperança de uma nova grandeza.
Desta esperança completa nasce um novo desejo.
E de esperança em esperança, ele chega ao túmulo.
Ela diz; e do templo onde reinava a indolência,
transportado de repente no carro da Sabedoria
nós voamos. Seus corcéis atravessando os ares,
Debaixo de suas velozes patas faíscam clarões.
Mas submissos nos ímpetos à mão que lhes guia,
eles reaparecem de súbito numa árida planície.
Lá se elevam montes cobertos de muitas partes,
de destroços e mortos confusamente espalhados.
Suas cumeadas devastadas e seus soberbos topos
são clareados por raios e batidos por tempestades.
Que medo me assalta! Que gritos tumultuosos!
Que esperança guia a esses montes tempestuosos,
437
esses heróis que tentam escalar seus cumes?
Que é esse grandioso penhasco rodeado de abismos,
que sobressai dentre esses montes e atinge os céus?
É este célebre obstáculo onde os ambiciosos
sufocando do remorso a voz tão importuna,
vêm, diz a Sabedoria, implorar a fortuna?
Revestir seu orgulho desses bens aparentes,
de títulos pomposos, dignidades, e posições,
dessa púrpura enfim, desse poder supremo,
fantasma da felicidade e não felicidade mesma?
Ao pé dessa rocha, sobre esses destroços esparsos,
Tu vês a ambição dotada de olhos desvairados.
Esse monstro vagando sempre por esses abismos,
corroído pelos desgostos, escoltado por crimes,
aflito pelo presente, raramente pode notar
o futuro embelezado por raios de esperança.
O prevenido receio, através das trevas,
mostra-lhe isso iluminado por luzes fúnebres.
438
A si mesmo odioso, muitas vezes para puni-lo,
o céu lhe torna presente todos os males futuros.
Ó louca ambição, replicou a Sabedoria,
Já ribomba sobre ti o raio vingador.
Em vão a traição, a velhacaria e os furores
aplainaram para ti a estrada das grandezas.
No trono onde te assentas, carregas teus receios.
Vejo aí teu véu dourado inundado de lágrimas.
Ela diz; e eu ouço nesses montes cavernosos,
a ambição soltar bramidos horríveis.
Seus gritos ecoam nas duas pontas da terra
com um barulho parecido ao som do trovão.
Todos os ambiciosos acorrem à sua voz
por três caminhos diversos adiantam-se de vez
Os primeiros, precedidos do pálido terror,
o braço ensanguentado, a cabeça ameaçadora,
marcha disparando as flechas mortíferas.
A desolação se espalha aos seus passos.
A servidão os segue puxando grossas cadeias
e conjurando a morte para findar suas penas.
439
Tu vês, diz a Sabedoria, avançar os guerreiros
que a vitória tem coroado com criminosos louros.
Flagelos do mundo, seus males são seu trabalho.
Mas que tristes cenas! Que medo! Que estragos
que a terra à vista oferece em aspectos vários!
Diante deles palácios, atrás deles desertos.
Aqui vejo o terror, olho fixo, pele descorada,
que foge, para, escuta e se assusta dele mesmo.
Mais longe é a fúria, a indiferente crueldade,
que com pés de bronze pisoteia a humanidade.
O cego desespero que educou para a guerra
o braço nu, o olho nublado, míope, luta e se espeta.
Vês esses altivos ganhadores, soberbos romanos,
sob o peso de sua glória oprimir os humanos.
Vês os passos dos heróis marcados pela matança.
A morte, sob mil aspectos, mostra à sua passagem
os templos da paz tombando a seus olhares
e as artes confusas fugindo em toda a parte.
440
Eis os mortais dos quais a terra em silêncio
adora os decretos e elogia o poder!
Para eles constrói túmulos magnificentes,
de um poder que é só monumentos soberbos.
Os eleva aos céus; o universo os admira.
Com seus destruidores, é assim que conspira
e divinizando os furores dos heróis,
o homem os encoraja a novos crimes.
Ó vós de uma falsa honra imprudentemente ávido,
que nos campos de Marte consagra o homicídio,
pudessem vós, ó mortais, medir daqui em diante
o heroísmo dos reis na felicidade dos súditos.
Mas ao longe que turba humilde em sua postura,
por atalhos obscuros até esses montes avança?
Que mortais fingindo desprezar os grandes,
pensam por esse desdém chegar às honras?
441
Quem marcha diante deles? A dupla hipocrisia,
monstro ético e cruel, cuja alma é empedernida
ao horror de perversidades que parece detestar.
Como o desprezo de Deus que ele finge respeitar?
Sua fronte sombria e lívida é manchada de pó,
seu firme orgulho está escondido sob o cilício.
Ele guia por esses montes outros ambiciosos.
Insensível no seu ódio, ele descarta longe de si
a terna compaixão que ardendo de um santo zelo,
rende aos homens o amor que os deuses têm por ela.
Dos cegos mortais seu trono respeitado
é estabelecido sobre a fraude e a estupidez,
sobre o medo de um Deus que em sigilo ele ultraja.
e sobre a credulidade que cega a si mesma.
De todas as virtudes zeloso perseguidor,
a paz está em seu rosto e a guerra em seu coração.
Com horror o céu o contempla e o escuta.
Mas desvie a vista e veja por este caminho,
nesse mesmo rochedo, subir esse bajulador
ao palácio de um vizir, camaleão mutável,
442
que rastejando à corte, desdenhoso da cidade,
é enganador a seus amigos, ao Estado inútil
e vaidoso do jugo dos reis que ele leva com orgulho,
aguarda-lhes suspender sua felicidade ao acaso.
Que a ventura amiúde está longe da ordem suprema!
Veja este infortunado absorto em si mesmo:
o remorso inquieto assusta e o persegue,
se oculta em suas cortinas e o corrói no leito.
Entretanto, até ao pé do funesto rochedo
a que cerca o raio, onde a Sorte espalha
esses títulos, grandezas tão caras aos prejuízos,
todos os ambiciosos estão já posicionados.
Prestes a escalar, eles avançam amontoados.
A terra sob eles não muge, treme, desaba-se;
Eu os vejo, ao desafio, subindo esses montes,
entrar e precipitar-se em abismos profundos.
Eu vejo brilhar o aço em suas mãos mortíferas,
orgulhosos Sejanos batidos pelos Tibérios;
Aarãos a seus pés derrubarem os Darthans,
Bajazés tombarem aos ferros dos Tamerlãos.
443
Por todo lugar eu encontrei objetos de pavor.
O terror me parou, quando de sua possante mão,
a Fortuna depressa, com venda sobre os olhos;
procura e prende ao acaso um desses orgulhosos.
Ela mesma o coloca no mais alto de seu trono.
É lá que, sob o dossel, a ambição se surpreende:
se queixa de aí estar onde seu coração deve sentir
a desventura imprevista de existir sem desejo.
Que! Diz ela, batido por terrores legítimos,
consumido de remorsos acesos pelos meus crimes,
rodeado de inimigos prestes a me dilacerar.
Terei então tudo a perder e nada a desejar?
Que desgraça é a minha? Ah que! Meu plano
de grandezas me fez deleite por antecipação?
Que eu sou insensível agora ao que me vem?
Devo eu me ruborizo das honras que obtenho?
Trabalho do acaso, desprezível a mim mesmo,
Queria me ignorar em minha grandeza suprema.
Que rigoroso tormento para um ambicioso,
que desgraça constante ser abjeto aos próprios olhos!
444
Carregado de respeitos, que lhes rende? A baixeza,
a dupla traição, a necessidade, a fraqueza.
Desses frouxos respeitos os serviçais tributos
são pagos ao meu posto e não às minhas virtudes.
Se aos meus talentos é devo a minha coroa,
é a intriga, diz alguém. É a sorte que a dá,
quando por minhas virtudes eu soube merecê-la.
A terra há muito tempo tem o direito de duvidar.
Sim: esses ambiciosos a quem se rende homenagem,
sábios aos olhos do tolo, são tolos aos olhos do sábio.
Um grande é, por vezes, pequeno nas altas posições!
Como ele se anula frente aos grandes talentos!
Um anão é mais anão colocado nas montanhas,
um gigante mais gigante de pé nas campinas.
Ó grande, de qualquer honra que estejas revestido,
tu não impões nada aos olhos da virtude!
Em ti, da tua grandeza, eu só vejo fósforo
que brilha à centelha do fogo que o devora.
Exposto a contratempos, abatido sob seus pesos,
tu sofres cada instante dos males que tu previste.
445
Sou dos teus tormentos o doloroso espectador.
Sabedoria, me tira deste lugar que eu detesto
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
A terra se abre então, o mar sobe e brame,
A ambição sai voando e o monte desaparece.
446
SEGUNDO CANTO.
ARGUMENTO.
As riquezas são menos reais que o meio de adquiri-las. A busca por elas
mesmas prova o desconhecimento de sua aplicação. O rico ignorante sofre
aborrecimento e o desprezo dos homens de talento e dos sábios. Não é necessário
conhecimentos numa fortuna limitada. A natureza indica o usufruto dela. É preciso
inteligência para usufruir de uma grande fortuna que será apenas uma
responsabilidade, se ela não oferecer novos gostos. Procure então a intimidade dos
filósofos e dos sábios. Aprenda a pensar com eles desconfiando dos seus sistemas. Os
estóicos colocaram a felicidade na calma de uma alma impassível, estado quimérico
que o orgulho quis convencer da existência, sem estar ele mesmo convencido.
Se o amor, seus prazeres, o fausto e a grandeza,
não abrem aos mortais o templo da Felicidade,
447
é possível investigar o interior da riqueza?
Ali não acha nada, replica a Sabedoria.
A riqueza não é nada: os áridos metais
não guardam em seu seio os bens e os males.
O ouro tem por preço o que se deve ao seu uso.
É troco de prazer nas as mãos do sábio,
nas mãos do avaro, é de arrependimento.
Sem encanto para as artes, de que pode ele fruir?
Não, não é para ele que Bouchardon desenha,
que Rameau pega a lira e Milton imagina,
que Urânia elevou o plano dos vastos céus,
que no seu rochedo ainda árido e nebuloso
Fontenelle distribui flores e claridade,
e que ao pé de um olmo coroado de hera,
ele ensina os pastores a cantar seus prazeres.
O opulento oprimido pelo peso de seu descanso,
é às beiras do enfado conduzido pela ignorância,
procura em vão a ventura no seio da abundância.
448
Fatigado do seu ser, ele não desfruta mais
que do prazer rude das saciadas carências.
Sua imbecilidade cresce com sua riqueza.
Não te espantes, acrescenta a Sabedoria,
o homem à ignorância ao nascer está entregue.
Discípulo dos objetos que lhe rodeiam,
se do dom de pensar não faz emprego,
se seu zeloso orgulho o afasta do sábio,
à caducidade chega sem talento,
seu corpo é de velho, seu espírito de criança.
Inimigo do saber, este lhe parece frívolo.
O dinheiro é tudo para ele, o estudo é inútil.
Mantendo, novo Midas, sempre o olho preso
no o ouro, esse vil objeto de sua cobiça,
sob seus ricos lambris, que faz ele? Vegeta.
Lá, sua estupidez tranquila e satisfeita
gostaria com seu desdém de aviltar os sábios.
Do seio da opulência ele insulta os talentos.
Mas admira em segredo o escritor que avilta.
O desdém é, por vezes, confissão de estima.
449
Do brilho, meu filho, com que o ouro bate nos olhos,
seu possuidor cobiçoso é raramente feliz.
Há pouco de virtudes. Faustoso, submisso e desleal,
tirano com o escravo, escravo com o chefe,
como o ambicioso, invejoso de seus rivais,
sem ter seus talentos, o rico tem seus defeitos.
Talvez ele não seja para os golpes do acaso,
tal como o altivo vencedor sempre perto da queda.
Às grandes desgraças, por certo é menos exposto.
Mas, diz minha guia, ele é mais desprezado.
Os perigos que se afronta enobrecem os crimes.
Todos os ambiciosos passam por magnânimos,
mais das vezes criminosos, são menos odiados.
A fortuna um dia os perde, nos vingamos deles,
e a esperança de sua queda arrefece nosso rancor.
Qual a alma ademais tão livre e altiva,
para ver as grandezas só com o olho do desprezo?
Seu brilho se impõe e por um tão grande preço,
450
que cada um tendo em si a semente do crime,
a justifica em outro, e por vezes a estima.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Não: a Felicidade não é. .. .. . .. .. . .. ..
relegada pelo céu ao palácio de Plutão.
Onde a procurar, dizia eu? É junto a esses sábios,
cujos nomes são ainda respeitados pelos tempos?
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Eles têm sido com frequência ousados impostores
admirados na terra, eles estão cheios de erros.
Fizeram na vã esperança de explicar a natureza,
sob o nome de sabedoria adorar a impostura.
Um persa, o melhor, se disse amigo dos deuses,
ladrão da chama e dos segredos dos céus,
o primeiro da Ásia, convoca os mágicos;
ensina doidamente a ciência dos sábios.
Pinta o abismo sombrio, berço dos elementos,
o fogo, secreto autor de todos os movimentos.
451
O grande Deus, disse ele, com sua rápida asa
fendeu antes dos tempos os vastos mares do vazio.
Uma flor aí flutuava desde toda a eternidade.
Deus a apercebeu, de fato uma divindade
por nome, Brama, a bondade em essência.
Esse soberbo universo é filho de seu poder.
Por ele o movimento sucede o repouso.
Com o pavilhão dos céus coroou as águas.
Com a lama dos mares o deus modelou a terra.
As nuvens espessas, essas fornalhas dos trovões,
são pelo choque dos ventos, inflamadas nos ares.
O ardente Equador coroa o vasto universo.
Brama do primeiro dia abre enfim a barreira.
Os sois alumiados começam as suas carreiras
dando aos vastos céus suas formas e suas cores,
às florestas sua verdura, aos campos suas flores.
Amigo do maravilhoso, fraco, ignorante, crédulo,
o mago acreditou sempre nesse conto ridículo
e Zoroastro, também por orgulho inspirado,
enganará todo um povo após ter-se enganado.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . ..
452
Foi nesse momento que o cego sistema,
na sua fronte altiva cinge o diadema.
Com enigma de palavras cobrindo a falsidade,
menos se fazia entender mais se era respeitado.
Mas da Pérsia enfim expulso pela indolência,
ele atravessa os mares e se fixa na Grécia.
Lá conheceu, lá viu a causa e seus efeitos.
E a terra e os céus são para ele sem segredos.
Hesíodo sustenta que sobre o abismo imenso,
reinava o sombrio Érebo e o profundo silêncio,
quando das entranhas do caos tenebroso,
o amor foi gerado para governar os deuses.
Já a veterana noite que cobre o etéreo,
é pelos fogos do dia à metade devorada.
Eles alumiam enfim o ar, a terra e os mares,
e o fogo do amor dá vida ao universo
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Ai! Se do conhecer os limites são prescritos,
se o espírito é finito, o orgulho é sem limites.
453
É por orgulho que Platão outrora se apossou,
crendo que nada escapava à sua sagacidade,
do poder de pensar despido da matéria.
Nossa alma, ensinava ele, é só uma luz
que nasce, se enfraquece e cresce com o corpo.
Substância inextensa, princípio de atividade,
espírito indivisível, ela é então imortal.
A alma é umas vezes uma viva fagulha,
outras vezes um átomo sutil, um sopro aéreo.
Todos falam dela, mas ninguém prova nada.
Não é suficiente. E o homem em sua audácia,
após ter transposto os desertos do espaço,
da alma, por degraus, se eleva até Deus.
Deus preenche o universo, mas não ocupa lugar,
nada é Deus, nos dizem, mas ele é cada coisa.
Depois de longas provas, discute, propõem,
forma enfim seu Deus de um agrupamento
de atributos diferentes, de virtudes contrárias.
Não raro ofuscado por sua falsa eloquência
oculta sob grandes palavras sua ignorância.
454
Ele engana a si mesmo e surdo à razão,
crê formar uma idéia e só forma um som.
No labirinto sombrio de uma inútil ciência,
é preciso perder um tempo que a razão humana
nos primeiros dias do mundo teria melhor usado,
a procurar a verdade que a se fazer deuses.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Se o céu em um poço esconde a verdade,
quem de lá poderá tirá-la? A curiosidade,
louca num falso espírito, esclarecida num sábio.
Locke que ela encoraja nos mostrará o uso.
Escolhamo-lo por mestre dos primeiros anos,
ele guia até a verdade nossos trêmulos passos.
Locke não consegue atingir o fim da carreira;
mas sua possante mão franqueia a barreira.
Para melhor conhecer o homem, o pega no berço
e o segue da infância até as portas do túmulo.
455
Observe seu espírito, veja como o pensamento
pelo cinzel dos sentidos é na alma lavrado,
e quantos dos sábios os dogmas impostores
e quantos abusos de palavras erros geraram.
Com um braço abaixa o orgulho do Platonismo,
Com o outro limita o campo do Pirronismo.
Ele nos descobre enfim o caminho descartado,
e a entrada do templo onde brilha a verdade.
Penetremos com ele sob sua abóbada sagrada.
que de monstros diversos defende a entrada!
A preguiça derramando o suco de suas papoulas,
Embota os espíritos de um estúpido repouso.
O sistema cercado de relâmpagos e nuvens,
em os deslumbrando dispensa os sábios.
O odioso Despotismo cercado de cadafalsos,
comanda pelo terror o fechamento do acesso.
A superstição no fundo de uma pequena cela
caça, amedrontando o espírito débil e crédulo.
Com seus gritos aflitos a carência ameaçante,
na entrada do templo coloca o indigente.
A obstinação a porta esconde da velhice
e o amor defendendo o acesso da juventude.
456
Mas ele se abre aos mortais que com desdém,
pisam os vãos prazeres e prejuízos infames,
esperando o sucesso deles em sua constância.
Faz-se diante deles marchar a experiência.
Ela lhes tem conduzido até a verdade.
Pois seja: mas lhes conduz à felicidade.
De um astro autoritário o poder inimigo,
ou semeia de dores o curso da nossa vida,
ou pelo menos aí derrama mais males que bens.
Se eu quero ser feliz e jamais consigo,
se apenas posso usufruir da esperança de ser,
infortunados mortais, eu não sei, mas pode ser
que a ventura para vós é só a falta de males.
Sem dúvida que debilita num perfeito repouso
a sábio que é inacessível ao amor e ao ódio,
rico na indigência e livre sob correntes,
porta indiferentemente a coroa ou os ferros.
Sob a égide estóica, ao abrigo de reveses,
esse mortal deve fruir de uma calma imutável.
Que o universo desabe, ele resta inabalável.
457
Aprenda, diz a Sabedoria, a se julgar melhor,
que fingir ser insensível é sempre orgulhoso.
Como ainda iludido por sua aparente gravidade,
tomas por sábio um louco soberbo, atrabiliário,
que sensível aos prazeres, deles foge para evitar
o perigo de os perder e deles se arrepender.
Que procura por tudo a aflição e a injúria,
como os únicos crisóis onde a virtude se depura,
que sempre preparado contra o mal vindouro,
se habitua ao opróbrio e se exercita ao sofrer.
Louco aos pés da riqueza e incitando a miséria,
Quer enfim, diz ele, que o destino contrário,
que sob o fardo pesado de uma súbita desgraça,
possa talvez um dia subjugar a sua virtude,
e se achar para sempre calmo em sua solidão,
indiferente aos males que tranquilizam o hábito.
Entregue àos amores ardentes de vãos combates,
Veja esses loucos insultarem os gozos que não têm,
se embriagarem dos vapores de seu falso heroísmo.
Apóstolos e mártires de um morno Zenonísmo,
preferindo tolamente as dores aos prazeres
e o orgulho de maldizer a felicidade de gozar.
458
Mas com suas inúteis falas, como, ó Sabedoria,
puderam eles sempre enganar Roma e Grécia?
Teu espírito, replica ela, está surpreso disso?
Junto a povos orgulhosos o Estoicismo nasceu.
Como um ser inerte, eles pintam sua sabedoria;
tem sobre sua fronte a máscara da coragem;
sua atitude é selvagem, a gravidade imperiosa:
Que mais necessita para fascinar os olhos?
Mas veja a que excesso pode a perseverança.
Aprenda como sempre seduzido pela aparência
e pelo jugo do engano, tarda a se escapar
o imbecil universo é fácil de enganar.
A essas palavras me acho num lugar imenso,
que pessoas curiosas enchem com sua presença.
Lá se ergue uma pira onde, com tocha na mão,
um altivo mortal se senta com a fronte serena.
Nessa pira fúnebre onde teu olho me contempla,
povo, exclamou ele, aprenda com o meu exemplo,
que um sábio sempre igual em tudo aos deuses,
é calmo, independente e impassível como eles.
459
Nada pode lhe perturbar: a voraz chama,
que penetra seu corpo não atinge sua alma.
O medo que submete um cavalo indomado,
que deita o urso aos pés do domador irritado
e curva um povo inteiro ao jugo da servidão,
pode tudo na matéria e nada na minha coragem.
Ele diz: sua fogueira ele mesmo põem fogo.
A multidão espantada nele crê ver um deus.
Ela avança, se prensa, ela grita, admira.
Que é então, diz ele, o terror que eu inspiro?
Que poderá a dor contra minha firmeza?
Apesar de mim eu admirei sua intrepidez,
Sua coragem feroz aturdiu minha fraqueza,
Quando da pira a poderosa Sabedoria,
dispersando a multidão acalma o clamor.
O estóico a enxerga e treme de horror.
A esse golpe súbito seu ânimo desfalece,
ele solta um grito de dor, a força o larga.
Seu orgulho o deixou só com a agonia
e o deus desapareceu com o admirador.
460
TERCEIRO CANTO
ARGUMENTO O homem mais feliz é aquele que torna sua felicidade a menos dependente
dos outros e ao mesmo tempo possui diversos gostos que governa. É o homem que
ama o estudo e as ciências. Ele é ao mesmo tempo independente e mais esclarecido. A
Filosofia concede intensos prazeres, seja a filosofia que estuda a natureza, seja a que
estuda o homem. O filósofo desfruta mesmo em se enganando. Ela ama a história que
serve ao estudo experimental do homem. Ele não renuncia aos prazeres dos sentidos,
mas os domestica. A Poesia, a Música, a Pintura, a Escultura e a Arquitetura são para
ele novas fontes de prazeres.
No topo das grandezas, no seio da riqueza,
com frequência infeliz, o homem, diz a Sabedoria,
461
é atacado de um mal cuja origem está nele
e esse mal tão cruel, qual é ele? É o enfado
de seus sombrios vapores a maligna influência,
até no seu palácio devora a opulência.
Ela a persegue com frequência no seio dos amores.
E o que poderia sarar esse mal de todos os dias?
Qual o remédio para o enfado? O estudo, diz ela.
Não crês, entretanto, que obstinadamente fiel
só aos divertimentos que o espírito possa oferecer,
minha alma esteja fechada a todo outro prazer?
Tudo tem em mim direitos, a tudo eu homenageio,
todos os vários gozos são divinos para um sábio.
Aos encantos do estudo ele abre assim seu coração.
no estudo ele reconhece a mina da felicidade,
nele ele vai pegar esse prazer que a prática,
convém a todo estado, em todo lugar, a toda idade,
prazeres de todos instantes cujo germe está em si.
Infortúnio do insensato que os espera dos outros.
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462
Mas quem me trouxe às bordas do Parnaso?
Tudo é charme aqui. Aprenda, diz a Sabedoria,
que esta sombra verde, das musas habitada,
é de igual modo a morada da Felicidade.
A montes íngremes, a essas palavras, ela avança.
Em seu cimo eu percebo a dúvida, o silêncio,
a meditação com olho penetrante e intenso,
a sábia experiência com olhar cuidadoso.
Juntas elas garantem com trabalhos imensos,
os novos fundamentos do palácio das ciências,
onde penetrou já o novo dia das verdades.
Esses montes pelos mortais serão eles habitados?
Que vejo eu em seu cume? Sábios, responde ela.
Eles saciam-se aqui de uma alegria imortal.
À sua possante voz a natureza obedece.
Seu véu é transparente ao olho do seu espírito.
Eles venceram de um salto o espaço que separa,
a verdade comum da verdade última e mais rara.
Nos segredos do céu seus olhos souberam penetrar,
Dos efeitos à sua causa, fogosos a se lançarem.
463
Sua razão destruiu o reino dos sortilégios;
aos olhos do seu gênio não há mais prodígios.
Semelhantes a deuses eles pesaram os ares,
mediram sua altura, firmaram o universo.
Com uniformes leis sujeitaram a natureza
na variedade que forma sua apresentação
nas minas, nas águas, nos montes, nos céus.
Quantos prazeres ocultos sentidos só por eles!
Um examina aqui que forças poderosas
suspendem no éter essas estrelas errantes,
como enquanto se livrando do imóvel caos.
a atração rompeu as cadeias do repouso.
Este outro reproduziu as chamas da vida.
Da rápida morte a carreira é retardada.
A arte enfraquece já o corte da sua foice,
e o tempo é mais lento a cavar as sepulturas.
Ao longe, reconheces tu essas almas corajosas
que fenderam ao norte essas ondas preguiçosas,
464
cujas vagas erguidas e endurecidas pelos ventos,
sobrenadam em mares como rochas transparentes,
em um eixo mais curto elas suspendem o mundo.
Belezas físicas que o princípio é fecundo!
Esses globos sem conta que pasmam meu espírito!
Eu sinto que à sua vista minha alma se eleva.
Aqui eu poderei então espiar a natureza,
penetrar de seus segredos o fundo obscuro;
e mesmo sem atingir o cume da Felicidade.
Tenho apenas um só gosto; basta pro meu coração
Uma dúvida entretanto me prende e me oprime:
Eu bem sei que ao erro ninguém é impenetrável,
que ele abre um acesso no maior espírito:
É a onda que por tudo se filtra e se introduz.
É o erro, sob os nomes de Zenon, de Epicuro,
que desenhou outrora o plano da natureza.
O mais sábio é enganado, Certamente a vaidade
deve misturar os dissabores à sua felicidade.
Descartes me entendeu, eu tenho, disse-me ele,
andado com a faixa do sistema sobre os olhos.
465
Substitui com um erro os erros de um antigo.
Construí meu universo nos destroços do dele.
Mas que me aflige? Eu falhei como um sábio,
mas deixei marcado o baixio com meu naufrágio.
É necessário, dizia Malbranche, aqui confessar:
Nada vive em mim quando vivo tudo em Deus.
Se eu brilhei apenas com enganosas luzes,
e Locke murchou minhas glórias efêmeras,
meus enganos o guiaram à devida verdade.
É de erro em erro que se pode avançar.
Se eu me enganei; se minha razão escrava
dos preconceitos não pode quebrar os entraves,
perdão, ó Verdade! Quando eu admiti a lei,
eu não te desconsiderei. Eu as assumi por ti.
Ele disse e, entretanto, vários dentre os sábios,
já substituíram sob as espessas folhagens
as volúpias dos sentidos pelos prazeres do espírito.
O que é que, sob esses divinos dosséis, os conduz?
466
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Como tem ele alcançado os montes de Urânia?
Os sábios gostariam de se exilar desses lugares?
Não: mas, diz a Sabedoria, estão na idade feliz,
onde a ardente Venus os queima com suas chamas.
Devem eles as extinguir em suas almas?
Minhas mãos entrelaçaram do sagrado vale,
os mirtos do amor com os louros apolíneos.
O amor é um dos deuses a quem homenageio.
É o tirano de um louco, mas o escravo de um sábio;
ele premia um com ferros, o outro com prazeres.
Aqui dos sentidos, do coração, dominando os desejos,
o feliz Anacreonte, conduzido pela Sabedoria,
das rosas do prazer embeleza sua amada,
torna público suas belezas e celebra o amor.
O panegirista de Teos comanda nesse lugar.
Usufrua os gostos que o desejo faz nascer,
a flor mal desabrocha e rápida, desaparece.
467
Em seus corações, dizia ele, que feliz lembrança
de um prazer que extinto, reascende um desejo.
Conversai com Zenão, dançai com as Graças.
Possa o amor doido, atencioso em vossas pegadas,
de vosso entusiasmo prolongar os instantes.
Vês tu essa borboleta no retorno da primavera.
Como ela volteja em torno de uma rosa nova.
Balança-se no ar, se suspende em sua asa,
contempla algum tempo sua forma e suas cores
e voa sobre seu seio para deleitar seus perfumes.
Igual quando a aurora alumiando o hemisfério,
vem prestar à beleza o dom feliz do agradar.
Essa borboleta sou eu, a rosa, ela é a Dóris,
admirando de seu seio o encarnado e o lírio,
meu ávido olhar contempla com entusiasmo,
os membros arredondados e as brandas mãos.
Não posso eu do desejo moderar os furores.
Eu vôo aos seus braços e roubo seus favores.
No excesso de prazer nossas almas crêem
se unir, se penetrar e formar um único ser.
Nós dois expiramos no altar dos amores.
Podes tu, digo eu, ó Sabedoria, assim os ouvir?
468
Das falsas volúpias tal era a linguagem.
Não, não é aqui a habitação do sábio.
e o remorso sem dúvida misturou no seu seio,
ao néctar do prazer o veneno do desgosto.
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O desgosto que sempre segue o sibarita
não entra, retoma ela, no lar que habito.
E quando a regozijo esfria seus desejos,
o sábio procura alhures outros prazeres.
Aprendas que um gosto quando é único
se transforma em paixão e fica tirânico.
Que a variedade torna vivo um doce prazer!
Um homem tem em si, muitos gostos juntos?
Se ele perde um, essa perda é menos sentida.
Ao fim dessas palavras um poder invisível
rápido me transportou a um vasto palácio.
As entradas escondiam-se em grossa nuvem.
Apenas se apercebia ao longe ruínas antigas,
destroços empilhados em forma de pórticos.
469
E esse palácio famoso por sua antiguidade
foi construído pela mitologia e pela verdade.
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Minha alma, exclamo, está surpresa e feliz!
Se for bom observar dos montes de Urânia,
os meios empregadas para mover o universo,
de enumerar os sois suspensos nos ares,
de ver, de calcular qual força os dirige,
os faz flutuar dispersas no oceano do vazio,
Como dos vastos céus furando a profundeza,
tantos astros diferentes em forma e grandeza,
separados entre si por desertos ilimitados,
têm para se equilibrar poderes desiguais.
É menos belo ver quais recursos eternos,
e que agente comum move todos os mortais?
De desvelar dos tempos a escuridão profunda,
de ver o amor próprio nos princípios do mundo,
470
De vê-lo em nossos corações criar as paixões,
esclarecer os humanos e formar as nações.
Contra o ultraje aqui, liberar a vingança,
lá, contra o assassino couraçar a prudência,
e forjar com sua mão a balança das leis,
a corrente do escravo e o cetro dos reis?
De ver as nações alternadamente na terra
se ilustrarem com suas leis, artes e guerra,
de ver seus costumes e ousar antes do tempo
predizer sua grandeza ou seu descrédito.
De descobrir a causa ainda imperceptível,
e pela previdência a que tudo é visível,
revelar presente os séculos vindouros?
Que lugares prazerosos, ó Clio, tu me mostras!
Não: jamais nesses montes da celeste Urânia
haverá maiores objetos a elevar meu gênio.
Sabedoria, no momento eu sou duas vezes feliz,
Tenho dois gostos diversos. Porém, a meus olhos
o templo da felicidade não os oferece ainda.
Por certo um Deus o habita. É vão implorar?
471
Da minha felicidade o paraíso tem ciúme?
Porque teria? É formado por todos os gostos.
Não, tu não és tão feliz quanto tu podes ser.
Sempre, ó meu filho, tua ventura pode crescer.
Vem tu, te restam ainda prazeres a sentir.
A carreira das artes a teus olhos vai se abrir.
Acho-me, a essas palavras, no meio de um campo,
num círculo prateado como descreveu Hipocrene.
É um bosque de palmeiras, cujas palmas espessas,
entrelaçadas com arte, são tecidas em dosséis.
Uma folhagem agradável sombreia os caminhos.
Mil grinaldas de flores pensas em suas arcadas,
perfumando ao longe os bafejos dos ventos.
Que mão arqueou esses palácios da primavera?
Nesses gramados em flor, quem é esta deusa?
A imaginação, responde a Sabedoria,
que pode reabrir ainda os abismos do caos,
tirando a seu bel-prazer cem novos universos.
472
Seu olhar vai além do mundo que abraça.
Transpõe com um salto o tempo e o espaço.
É ela que curva todos os círculos dos céus,
que constrói o império e cria todos os deuses,
que furando o Etna até a morada das almas,
escava o Tártaro inflamando as chamas.
Depois de lá, subindo à claridade do dia,
dança com as silvanas, brinca com o amor.
No retorno da primavera canta Zéfiro e Flora
e as planícies pelorizadas pela aurora.
Aqui o julgamento ao seu lado sentado,
a domina, a dirige em seus firmes esforços.
Os trabalhos do gênio, com ela ele preside.
Nesses diversos arvoredos onde o destino te guia
eu tenho reunido as artes: cada uma tem seu altar.
E quais são, digo então, esses venturosos mortais,
que na arte de Linnus instruído por Polímnia,
por seus sublimes cantos fez calar a inveja?
473
São autores, diz ela, cujos versos significativos,
têm suportado, sustentado as provas do tempo.
Tu vês Lucrécio aqui exprimir aos olhos do sábio,
a verdade mais abstrata sob a mais viva imagem;
Milton com um fogo firme envolver os infernos,
prender o ponto que une o Érebo ao universo;
os Priores, os Boileaux, os Popes, os Horácios,
prenderem a verdade com a echarpe das Graças.
O atrevido Crébillon fazer aparecer o terror,
e dar aos seus versos os charmes do horror.
Além Pérsio está sentado. Crianças dum só gênio,
que meus versos, dizia ele, agradam sem harmonia.
Eu não imitarei esses versejadores sem talentos,
que pródigos de sons, são avaros de sentido,
cuja inspiração espalha do seu pleno curso
um dilúvio de palavras num deserto de ideias.
E não misturarei com certeza, imbecil orador,
o ouro puro das verdades ao chumbo vil do erro.
Semelhante ao Deus brilhante que colore e pensa,
Quem promove os versos meus? O que na França,
474
o primeiro colocou na boca o trompete de Marte;
nascido para os gostos, ele canta todas as artes.
Sua mão colhe de uma só vez o louro e a rosa,
pinta as obras de Henrique, as graças de Monrose,
as fúrias dos Clementes, as desgraças de Valois;
os turbilhões destruídos pelo Descarte Anglois,
o raio que Denis bifurcou para a encenação,
e o prisma onde Newton mostrou a estrutura.
Tal se vê num lago especialmente projetado,
o objeto mais próximo e o mais afastado,
a colina que o rodeia, a floresta que o sombreia,
a erva, o junco, a flor que ladeia sua margem,
E o astro cintilante que atravessa os céus.
A atmosfera ressoa então com sons maviosos.
Reconheço Quinaut. O amor montou sua lira.
Do Deus que o inspirou ele louvou o império,
e construiu seus altares em matizáveis palácios.
Obras de todas as artes, prazeres dos sentidos.
Repetirei seus versos e seguirei meu caminho.
Do palácio da Felicidade eu descobri o sobrecéu.
475
De lá saíram os fogos, que por tudo repartidos,
sobre aqueceram os lugares por onde andei.
Lá, eu portei meus passos, guiado pela Sabedoria,
quando o enxame de prazeres que voltejantes
e sempre metamorfoseantes nesses belos lugares,
retiveram meu curso se doando aos meus olhos.
Era um ateliê onde a afortunada Pintura,
sempre imitando embelezava a natureza.
Mil grupos diversos, obras primas de arte,
do espectador maravilhado retendo o olhar,
acreditando ver corpos, sua impaciente mão
toca, quer se assegurar que a tela está viva;
e seu espírito ainda assim irresoluto, curioso,
receia que o tenham logrado o toque e os olhos.
Nesse quadro ousado vejo mares comovidos
lançarem-se, chocarem-se e se vaporizarem
e por nuvem negra o céu ao longe coberto,
apenas iluminado pelo fogo de relâmpagos.
Uma tela de Reinaldo subjugado por Armide,
em outra uma Eumênide por serpente coroada.
476
Ao longe vejo o tempo que, vingador dos heróis,
arrasta e sufoca a inveja junto seus túmulos.
Do berço diáfano de uma vaga espumante
Venus se eleva aqui sobre a onda bramante.
O amor nasce com ela e por ela é armado,
do fogo de seus olhos o mundo é animado.
Já Pan nos montes tem agarrado Oréade;
Netuno, sob as águas arrebatado Náiade;
Íxion na sua nudez perseguido a Juno
e Prosérpina aos infernos se lança com Plutão.
Como ai, digo então, amo ver a pintura
dar corpos aos deuses e alma à natureza!
Dos abismos do esquecimento retirar heróis
e por essa nobre esperança formar novos!
Que prazeres diversos um só gosto faz nascer!
Do templo da felicidade se estou longe ainda,
ao menos a cada passo que dei nesses lugares,
me sinto ao mesmo tempo mais sábio e feliz.
477
Eu digo e provo uma alegria desconhecida
quando a Sabedoria apresenta-me um herói.
Que vejo? Um príncipe aqui?... Um rei glorioso,
que protetor das artes e celebrado por elas,
restaura seus altares que edificara a Grécia.
Deuses! Como foi grande, ajuntou a Sabedoria.
Se Sócrates no conselho e Alcides nos combates,
o ardor de conquistar não armou seu braço!
De César por muito tempo segue os vestígios.
Seu século era ao menos o século dos prodígios,
quando Luis pelas artes se deixou encantar.
Embelezou o universo e cansou de maravilhá-lo.
Mas vêm, olhes perto dele esses que na sua vida,
por excelentes trabalhos ilustraram sua pátria.
Já que enfim não é de gosto que no seu coração,
cem novos prazeres aumentem a sua felicidade.
Já a Arquitetura toma na mão seu esquadro,
e executa seus projetos. Lá, do seio da terra,
veja essas longas alavancas em harmonia,
arrancar gemendo essas informes rochas.
478
Sob os golpes do cinzel o mármore se forma,
Perraut curva a abóbada, arredonda a coluna,
eleva, junta, une e apresenta aos olhares
um palácio, a obra-prima e o abrigo das artes.
Veja Le Nautre cercar esses salões de verdura,
nos palácios de primavera variar os adereços,
veja as tílias em bola e os teixos arredondados.
Cibele sob teus passos estendeu seus tapetes,
cem pompas de cada vez extraiu dos campos.
Esse rio impetuoso assentado nas montanhas,
de onde se precipita por extensos canais,
rola em cascata ou se eleva em jatos d’água.
Musas, como esta abóbada é por vós enfeitada!
Le Pujet foi ai que recebeu o cinzel do gênio.
Veja dentro do seu ateliê a rocha transformada
sob os golpes do martelo gradualmente animada,
tudo a golpes desaparecer e só oferecer à vista,
Adônis moribundo ou então, Dido desvairada.
Quantos quadros apresentados a meus olhos!
Castas filhas do céu, que presidis às artes,
479
Musas, que fogo novo me penetra e me inflama?
Sinto que todos os gostos entraram na minha alma.
Se eu creio no êxtase que se eleva de meu coração,
vossas mãos me abrem enfim o paço da Felicidade.
Eu provo dos teus gostos, ó sublime Sabedoria.
Como as paixões são também o seu entusiasmo,
e com mil prazeres o homem ainda nesses lugares,
junta o prazer novo de se sentir venturoso.
Findando essas palavras nos passos de minha guia,
eu marcho. E sem poder no meu curso ligeiro
fixar a hora precisa que eu fui transportado,
eu me encontro no palácio da Felicidade.
As artes e os prazeres rodeavam seu trono:
Apolo e o Amor sustentavam sua coroa.
A serenidade estava pintada em seus olhos,
e a alegria aí brilhava sempre com o mesmo fogo.
Ó afortunado mortal, o tempo, diz a Sabedoria,
por todo o universo da alegria e da tristeza
480
alternadamente aumenta ou diminui o curso,
para de prazeres iguais medir aqui os dias.
E eu, da verdadeira ventura a fonte inesgotável,
que à felicidade o destino imutável
amarro a toda hora com o mais forte laço,
habito esse palácio e esse trono é meu.
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Do mundo, digo eu antão, evitarei o enlevo.
Na senda florida que me abre a Sabedoria,
Quero levar meus passos resoluto de buscar
os prazeres que a sorte não me arrancará,
suave para agitar, e ardente para agradar.
De ir sucessivamente do Parnaso à Citera,
e de ser em minha primavera atento a colher
os frutos da razão e as flores do prazer.
Mas já perto de mim, o amigo da ignorância,
do templo da Felicidade desterrou a ciência.
481
Ele afirma que as artes aos homens perigosas
fazem de seus amantes outro tanto infelizes,
que eu devo renunciar a uma louca Sabedoria,
que a ventura repousa no seio da indolência.
482
QUARTO CANTO
ARGUMENTO
Os talentos, diz a Indolência, são a infelicidade daqueles que os possuem. A
inveja os persegue. O homem não nasceu para o estudo. As ciências são inúteis à
felicidade do gênero humano. Assim fala o povo, mas ele ignora que as artes devem
seu progresso às ciências. Elas introduziram o uso dos metais, da agricultura, etc. Mas
a química tem dado os venenos e a pólvora do canhão. Deve-se a ela também os
remédios. E a pólvora do canhão tornou a guerra menos mortífera e os povos ficaram
ao abrigo das frequentes invasões. Mas as artes são as origens do luxo. O luxo só é um
mal nos Estados mal governados. Ele tem a sua origem no amor do prazer, motor do
universo.
Pode-se, diz a indolência, estimar os talentos,
mas, infortúnio do mortal orgulhoso, imprudente,
483
que loucamente inflamado do desejo de glória,
quer escrever seu nome no templo da memória,
a quantos desgostos ele deve se preparar!
Se eu quero ser feliz eu devo pouco desejar.
De seus ramos frondosos quando da tempestade,
de um carvalho sobranceiro despojou o topo,
que valor oferece ele aos golpes dos furacões?
Que podem contra ele seus esforços impotentes?
Afrontando dos Aquilões o furor implacável,
ele opõem ao sopro deles um tronco inabalável.
Tal deve ser o sábio, e sua única preocupação
é de podar em si os ramos da necessidade.
Ele não deve atribuir merecimento à fortuna.
deve fugir do vão brilho d’uma glória importuna.
Obscuramente contente se o verá preferir,
ao orgulho de inventor, o prazer do admirador.
Vivei vós longe das fainas no seio da indolência,
nascestes ignorantes, sejais assim por sabedoria.
Nosso espírito não é feito para penetrar e ver.
Basta que aprenda que não pode nada saber.
Do círculo que percorre os pontos são prescritos;
Deus com seu dedo poderoso delineou os limites.
484
Esta a nobre razão de quem se obstina a louvar:
Onde o olho cessa de ver, cessa de discernir.
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Escutai esse marquês alimentado na ignorância.
Ébrio de vinho, de amor, orgulho e de opulência,
ao sair de um jantar onde o abrasado desejo,
vem extinguir seus fogos no altar do prazer.
Esse galante mentor dos ócios da alta sociedade,
com eles ao acaso discorre, aprova ou critica.
Ele nada distingue nos discursos do impostor
de antigos preconceitos moderno aprovador.
A verdade até ele dardeja em vão sua luz.
O dedo da ignorância fechou sua pálpebra.
Ele não a descerra aos sublimes destaques,
dos semideuses mortais, egrégios pelos talentos.
Para que serve, dirá ele, o estudo das ciências,
e esse montão incerto de falsos conhecimentos?
Que mudança, que bem suscita aos Estados,
e desses longos cálculos só inúteis resultados.
485
E esses sábios tão altivos, espíritos indóceis,
incômodos com frequência, sempre inúteis,
indolentes orgulhosos, tolerados pelas leis.
Acolhidos pelos bobos, desprezados pelos reis?
Os vejo em segredo corroídos pela indigência,
da inutilidade, tão legítima recompensa.
Ei! Como não sofrerão esses soberbos espíritos,
coroados de louros fora dos muros de Paris!
O vulgo ignorante, assim fala e se engana.
Longe de condená-lo, eu o lastimo e desculpo.
Sabe ele que no seu cálculo esse sábio absorto,
que multiplica, a, a, por x, x, mais b, b,
deve, tendo nas mãos o compasso e esquadro,
traçar sobre o papel a figura de um copo,
que quebrando os raios em sua espessa curva,
e da cúpula dos ares abaixando a altura,
deve dar aos nossos olhos uma força nova?
Diz ele que com olho fixo na abóbada eterna,
o piloto atencioso apenas procura nos céus,
prender a altura do pólo com seus novos olhos,
para em um plano mais correto reconverter,
e desenhar dos mares o vazio e o vasto império.
486
A morte já tem seguido da planura das águas.
Eu percebo os escolhos cobertos pelas vagas,
dos lugares onde o sol começa sua carreira
até as regiões escuras onde se apaga sua luz.
O caminho está aberto, o oceano habitado.
O tímido navegante no porto parado,
corre afrontar os ventos reunidos sobre a cabeça.
Ele já dobrou o cabo das tormentas,
e passou esses montes que, a cara nos ares,
são altivos gigantes defensores desses mares.
O piloto construiu nesses férteis litorais
sucursais que, como lojas de nossas cidades,
tornarão comuns a todos as artes e os presentes
repartidos pelo céu aos diferentes povos.
É o mesmo comércio, a cada povo proveitoso,
que nutre o batavo no seu pântano improdutivo.
Ele fundou seu império e ai permanece em apoio.
A Holanda lhe deve o que ela é hoje em dia.
Ele a subtrai do jugo que a Espanha a oprime,
ele assalaria um exército e a torna temível,
E derramando a riqueza no seio de seus Estados,
aí semeia os louros colhidos pelos seus soldados.
487
As artes comandam? A natureza é dócil.
As vagas lhes obedecem, o metal é dúctil.
Amigas de nossos prazeres, suas mão liberais,
Têm com mimos sem conta agraciado os humanos, A desdenhar essas artes, é em vão que se obstina.
Quem não lhes deve? Elas escavaram a mina,
dos abismos da terra arrancaram os metais.
Elas os colocam em camadas em vastos fornos.
De crisóis inflamados derrama-se a matéria.
Contém ela ainda uma escória grosseira?
É para lhe desembaraçar de toda impureza
que o ferro pelas artes à fornalha é levado.
Já o fluxo prensado do elemento líquido,
deságua, espuma, ruge, vira o eixo rápido,
dessas alavancas aladas no seu centro rolante.
Os malhos erguidos por seus esforços possantes,
tombam em tempos iguais, a iguais distâncias;
e o ferro sob seus golpes se apura e condensa. Ignaro, veja as artes cercarem os nossos canteiros
Veja-as levantar os mastros, curvar os pranchões,
Fundir a ancora, arqueá-la e de mãos inumeráveis,
Aqui confeccionar as velas e lá tecer os cabos.
488
Da soberba embarcação as partes isoladas,
pelas mãos dessas artes são apenas montadas,
que não estando mais acorrentado no estaleiro,
o navio cedendo a seu peso que o arrasta,
em um valado de fogo se lança, e o oceano
esguicha, espuma ao longe e o abraça bramindo.
Nossos navios pelas artes armados para guerra,
açoitam Mahon e confrontam a Inglaterra,
eles são aparelhados para procurar combates.
A frota abriu a onda e seus soberbos mastros
oferecem ao olhar apenas uma floresta errante,
que alumia golpe sobre golpe uma chama troante.
Ah bem! Dir-se-á, as artes têm por um momento
Talvez merecido as honras que lhe concederam.
Mas sempre nós louvamos suas maravilhas
de modo que seu elogio ensurdece nossos ouvidos!
Vejamos os males que elas fazem. Só em seu sótão,
observai esse químico rodeado de balões de ensaio.
Se ele tem purificado as exalações da terra,
triturado os minerais e modelado o trovão,
489
não têm desses fogos armado os celerados?
Pois seja. Mas estreitou as portas da morte,
e se ele não pode dos reis sufocar as disputas,
ele empresta a seus furores armas menos cruéis.
A guerra é menos sangrenta e Marte apresenta,
golpes mais temíveis, mas golpes menos certeiros.
Infelizes mortais, se lê numa antiga história,
vê-se em todos os lugares a implacável vitória
quebrar o orgulho de reis, lançá-los a ferros,
e transformar de repente cidades em desertos.
Um só combate outrora decidiu um império.
Sem defesa, sem fortes, sem a arte de construí-los,
os Estados são todos abertos aos conquistadores.
Dos confins do universo essas rápidas torrentes,
que nada param todavia o bando vagabundo,
se sucedem uma as outras e devastam o mundo.
Um Vauban é nascido? O gênio e as artes,
cavando os fossos, constroem muralhas.
490
opõe em todo país os diques contra as tormentas,
e em um círculo estreito concentra coragens.
Não é mais hoje o tempo dos conquistadores.
Os reis são coroados com louros menos sangrentos.
Para manter a paz entre todas as potências,
A esperta Europa na mão segura sua balança
em um justo equilíbrio e sustenta os Estados
Não se respira mais o sangue e os combates.
O guerreiro sacrifica em uma paz duradoura
o orgulho de ser terrível ao desejo de ser amável.
Um herói no norte angaria os talentos:
como a pólvora em fogo faz esforço por igual,
por igual Frederico faz esforço para a glória.
Favorito de Apolo ele o é na vitória.
Capitão, orador, das Musas visitado,
ele abre dois caminhos à imortalidade.
C'as mãos que divulgou a águia da Germânia,
ele acaricia as artes e aplaude o gênio.
Mas seu elogio incomoda o ignorante.
Eu entrevejo seu humor e seu riso insultante.
491
Acreditem-me, dirão, as grandes descobertas,
por um feliz acaso nos são sempre oferecidos.
E vossos sábios enfim, com grandes palavras,
apenas acharam a arte de se impor aos tolos.
Do seu soberbo espírito a orgulhosa fraqueza
faz dos dons do acaso honra à sua sabedoria.
Indignado, revoltado de seus vãos argumentos,
vejo que tudo na terra é um benefício do tempo.
O tempo nos faz seus dons, certo: Mas um sábio,
faz o mais precioso: ele mostra seu emprego.
Sem ele, sem seu socorro, espírito fraco e cioso,
o pródigo azar não teria feito nada por nós.
Eu vejo que ele abriu uma rica estrada:
foi preciso que as artes talhassem a pedra.
Eu o repito ainda, sem as artes beneficentes,
o céu nos teria acumulado de inúteis presentes.
Em que tempo, que país, as Artes e as Ciências
não da felicidade distribuíram as sementes?
Essa ventura deve crescer. Ela enfim germinou?
O ignorante não sabe mais a mão que a semeou.
492
Esse lento crescimento é sempre insensível.
O sábio vê a causa às pessoas invisível.
Tudo se move para ele, mas aos olhos dos tolos,
o movente universo está sempre em repouso. Tem olhos obstinados em vão a natureza,
que ao sinal dos gêmeos se cobre de verdor,
que o astro da noite desfralda no alto dos ares
as velas prateadas que estende sobre os mares,
que o amante de Tétis, despertado pela Aurora,
restitui a forma ao mundo e suas cores à Flora,
quebra os raios de luz nos prismas das águas
e espalha rubis sobre a altura das vagas.
O universo diante dele despido de sua forma,
apenas lhe apresenta uma noite uniforme.
Semelhante a este obstinado e bem mais infeliz,
para a beleza das artes o estúpido é sem olhos,
para o estudo dos costumes nunca se dignou,
e o momento presente é o único que ele conhece.
Ele leu no futuro, esse ousado Richelieu,
cujo favor pródigo acolheu em todos os lugares,
as artes e os talentos para fixá-los na França.
Ele esperava com eles consolidar seu poder.
493
Ele sentiu seus poderes e que em todos os países,
as artes mudam os hábitos e os hábitos os Estados.
As artes fecundaram nossos campos estéreis,
de ricos monumentos encantaram nossas cidades
e dentro dos corações onde havia à ferocidade,
substituíram a atenciosa e nobre humanidade.
E mais, para nosso prazer, que não é nada ainda,
essas artes que não obstante, o ignorante honra.
Para o encanto dos olhos, eu vejo nos fornos,
o industrioso artífice amolecer os metais,
lhes dar a seu grado cem formas agradáveis.
Ele tem nos crisóis vitrificado essas areias,
que devem repetir nos meus olhos encantados,
os objetos de meu luxo e de minha vaidade.
O artista bateu o ouro estendendo-o em lâminas:
de nossos ricos brocados sua mão urde as tramas,
ele aí cruza os fios e seus felizes esforços,
de diversos novelos parece tirar as formas.
Amigas do rico ocioso as artes buscam sem cessar,
lhe subtrair aos males do sossego que lhe oprime.
494
De tudo o que a terra encerra em sua grandeza,
sua mão compôs a doçura de sua felicidade.
Colombo no seu desígnio fende o plano da onda,
e traz com ele, do seio de um outro mundo,
novas necessidades e novas aspirações,
germes que darão nossos males e nossos gostos.
Mas para que, dirão, esse comércio, esse fausto,
com nossas leis que não raro lutam e se opõem?
Esse luxo tão louvado em mil escritos diversos,
tem ele do sofrimento livrado o universo?
Que multidão de males prestes a se introduzir
nos povos onde o luxo estabeleceu seu império!
O artesão aí geme sob o peso dos impostos,
a coragem se humilha e se perde no repouso.
O poderoso sem pudor intriga a escravidão,
da sua submissão, seu luxo é uma garantia.
Essas superfluidades, essa pompa, esses gostos,
essas vãs distrações que encantam os lazeres,
esse comércio, essas artes que cada cidade tem,
são menos benfeitores que flagelos do mundo.
495
O mal que às nações faz um luxo descarado,
ao luxo propriamente, deve ser imputado?
Não. Esse mal só é, não raro fruto da miséria,
o produto de um poder ávido e sanguinário
e de uma causa enfim da qual o luxo é efeito.
De sua destruição o que pode ser o objeto?
Nas nossas felizes regiões o luxo, o consumo,
diverte a riqueza e alimenta a indigência.
O que pode contra o luxo armar os soberanos?
Seriam esses os gostos que ele causa nos homens?
Útil às nossas cidades, o prazer as anima;
ele dilata os corações, a aflição os comprime,
sem o prazer, admite-se, pai do movimento,
o espírito fica sem energia e o mundo estagnado.
496
QUINTO CANTO
ARGUMENTO
É o prazer que nos chama ao trabalho. É a esperança de prazeres que é a
causa das riquezas e das grandezas e que nos leva a procurá-las. Na história resumida
da sociedade, desde sua origem até no estado em que se encontra, se vê o amor pelo
prazer, móbil de todas as ações e energia necessária das sociedades. Ele faz a
felicidade e a glória, a vergonha ou a infelicidade, conforme é dirigido pelos
legisladores. A perfeição da legislação torna a felicidade dos indivíduos útil à
felicidade da sociedade. O despotismo, onde tudo tem por objeto a felicidade de um
só, e a superstição, que tem por fim o império e a felicidade dos padres, são
igualmente opostos a esta boa legislação.
Se o homem por pendor é arrastado ao crime,
dos desejos indiscretos com frequência vítima,
sob o peso de seus males parece prostrado,
será ao prazer que é necessário incriminar?
497
No tribunal do justo em vão se o denuncia
Ele vê na satisfação o motor da humanidade,
que submete às suas leis os variados povos.
Adoremos então nele a alma do universo.
Se sua potente voz a todos se faz entender,
se a esperança de gozo nos faz tudo fazer,
se criador das artes ele nos concede os gostos,
devo eu os imolar aos caprichos dos loucos?
Dessas artes negadas, se o estudo fecundo,
só desse nada mais que prazeres ao mundo,
as artes teriam saciado nosso primeiro desejo.
Quem pode de suas precisões distinguir o prazer?
É um presente do céu feito pelo Ser supremo.
Embora diga um beato; É um bem em si mesmo.
Existe aí prazer assim como honestidades:
pelos cuidados atentos de seus concessores,
é o preço de um feito injusto ou legítimo,
nos leva às virtudes ou nos arrasta ao crime.
Dos mortais iluminando ou enganando a razão,
alternadamente torna-se remédio ou veneno.
A satisfação dirigida por uma hábil mão,
em todo governo é um recurso proveitoso.
498
Nos campos idumeus, olhai este impostor
que por tudo espalhou o terror e o engano,
e que nos combates coroados pela glória,
tem com bandeiras sangrentas atado a vitória
Com que arte abusando dos seres humanos,
aqueceu os corações desses altivos sarracenos,
que sempre famintos e desejosos de carnificina,
dobravam o orgulho de reis ao jugo da servidão?
Se tudo se tornou viável a seus potentes esforços,
é que souberam do prazer empregar os recursos.
Ele conheceu o seu uso e seguro de sua força,
ao lado dos trabalhos colocando a recompensa,
ao sanguinário vencedor abrindo o paraíso,
para lá dos perigos lhe manifestou as huris.
Quer tu, curioso te instruíres e melhor conhecer
os efeitos do prazer, o que isso pode no teu ser
e que princípio ativo poderoso e geral,
desde toda eternidade moveu o mundo moral?
499
Penetra no teu coração. Que teu olho sonde
da sociedade o remonte à procedência,
ao momento em que Deus criou o universo.
Ele manda o fogo, a água, a terra e os mares
que se arredondem em globo, e o espaço dócil
recebeu em seus flancos a matéria imóvel.
De mil astros espalhados, Deus acordando,
aí deposita o calor, a força e os motivos.
Por habitante, por rei desse mundo visível,
sua mão criou o homem. Ele nasce, é sensível;
ele conhece o prazer e experimenta a dor,
e já o amor próprio germinou no seu coração.
Este amor sempre preparado para sua defesa,
até no seu berço protege a sua infância
e contra todo perigo se torna o seu apoio,
e na decrepitude ele vela ainda sobre ele.
Devo a este amor minha alegria e tristeza,
meus medos, impulsos, talentos, sabedoria.
Todo tempo este amor guiando meus desejos,
me faz fugir da dor e procurar os prazeres.
500
Entre aqueles que eu gosto, há um supremo.
Todo outro à sua aparência retira-se de si mesmo,
como um fantasma ligeiro foge ao aspecto do dia.
E essa delícia suprema é aquela do amor.
Seus fogos queimam Adão. Ele vê Eva, a admira,
a ama, a abraça e cede ao encanto que o seduz.
Ele é pai e seus filhos se alimentam de bolotas.
Em cavernas profundas e cavadas pelo tempo,
uns dos outros antes de tudo separados na terra,
sem ouro e precisões, eles viveram sem guerra:
vítimas ou vencedores de ursos e de leões
Ao mesmo tempo reis e súditos em vastas regiões,
seguem em tudo o instinto da simples natureza.
Seu número enfim cresce. A terra sem cultura,
não lhes rende mais bastantes e férteis presentes,
para prover às precisões de todos os habitantes.
A arte vem ao seu socorro. Ela escavou a mina.
Ela daí extrai o ferro, ela o funde, ela o afina.
Esse metal à fundição é em relha preparada.
Atrelado sob a canga o boi anda inclinado.
501
A necessidade, o prazer, fontes da indústria,
têm fecundado a planície, adornado a pradaria,
embelezado os jardins, levado às nossas searas
as cores de Vertumno e os frutos de Palas.
Mas os primeiros mortais, logo a raça inteira,
de uma marcha rápida completou sua carreira.
Quando enfim pelos anos arrastados ao túmulo,
Têmis transferiu a terra a novos mortais
e uma nova arte ensina à mão inábil,
a repartir o campo já tornado fértil.
O homem se fez dono. Ele o chamou seu bem.
É quando se conheceu o teu e o meu:
e que pela necessidade a terra semeada,
entre seus habitantes foi logo dividida.
Um fosso largo e profundo cerca seu recinto.
É lá que se dando às doçuras do repouso,
eles vivem algum tempo em paz profunda.
Mas como foi curto esse tempo tão especial!
502
Nesses lugarejos já eu vejo a sorte se armar.
Ela quer com ferro em mão recolher sem semear.
Com sua rude audácia ousando, tudo se espera.
Aos mais ásperos trabalhos seu orgulho submete
o fraco que reclama em vão o apoio dos deuses.
Têmis, diz-se, então se elevou aos céus.
A terra nesse momento é entregue à pilhagem.
Nenhum direito que não se deva à coragem.
O vencedor insensível ao grito da razão,
rouba o seu vizinho, sua mulher e sua casa.
De facções está por tudo alumiada a terra,
não da luz do amor, mas da luz da guerra;
e o universo inteiro só apresenta a meus olhos,
apenas viúvas em lágrimas e casas em fogo.
A morte que profere ao longe gritos terríveis,
percorre o universo sob cem formas horríveis.
Infelizes, esclarecidos por suas calamidades,
os humanos entraram em pactos, tratados.
503
A segurança de todos, eis a sua primeira lei,
sem a lei, sem esse jugo, indigno, mas necessário,
o fraco é oprimido e o vigoroso opressor.
Assim em todo Estado, a arte do legislador,
é que cada indivíduo ao andar na arena,
de que a rápida inclinação ao prazer o arrasta,
apenas possa dar um passo de cada vez em
direção à ventura pública, a obra-prima das leis.
Segundo um príncipe seja mais ou menos hábil
em fundar, em penetrar nesta arte tão difícil
de reunir e prender por um vínculo comum,
ao interesse de todos o interesse de cada um,
segundo se é ditoso em seguir a justiça
e se ama as virtudes ou se entrega ao vício.
É para reprimi-los que se vive nos Estados.
O público interesse cria os magistrados,
confiados a proteger a mais fraca inocência,
e a lei lhes encarrega do gládio e do poder.
Se jura entre suas mãos de suster seus direitos,
eles afiançam por sua vez de manter a lei.
Mas nesse vão juramento o magistrado perjuro,
esquece que esse era um direito da natureza.
504
O poder deixou de ser logo em suas mãos,
o recurso venturoso da felicidade dos homens.
Sentiu-se ele poderoso? Eu o vejo tentar,
destruir as leis que ele afiançou defender,
ou antes, dessas leis se armar para escravizar
os covardes cidadãos que deveriam lhe punir.
É então que à sua fronte colocando a coroa
se o viu transformar seu tribunal em trono,
e o amor ao bem público um crime a seus olhos.
Quem recusa seus ferros é um sedicioso.
O universo teve por reis a força e o disfarce;
eles aí reinam ainda sob o nome de justiça.
O criminoso feliz foi por tudo reverenciado.
Enfim no seu palácio, o tirano massacrado
morre sob os golpes daqueles que ele oprime.
A força era seu direito, a fraqueza seu crime.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
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. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. .
Se o orgulho edifica o poderio despótico,
O medo o fortalece. Sendo assim a política,
505
esta arte antes tão sábia em suas intenções,
esta nobre arte de livrar a ventura dos humanos:
é só a arte impenetrável, odiosa, que funda
o poder dos tiranos sobre os infelizes do mundo.
O homem adorou os braços que o humilhou,
e da sua escravidão ele fez uma virtude.
Do povo desafortunado a cegueira extrema
parece lhe despojar do amor de si mesmo.
Pareceu esquecer que a esperança de ser feliz,
da união publica havia formado os nós.
Sob o nome de virtudes ele ignorou os crimes.
Eu vos pego por testemunhas, infelizes vítimas,
vós que de vossos sultões bajulam a crueldade.
Colocais a arte de reinar na desumanidade;
e pareceis preferir nos vossos desejos ilícitos,
a arte terrível dos Sejanos à bondade dos Titos.
Neste relato rápido onde meu pincel ousado;
tem do mundo nascente esboçado o quadro,
506
vede que o prazer, única força da nossa alma,
espalha seu fogo intenso, nos move e inflama,
desde o escravo vil até o orgulhoso potentado.
Como comanda todos, comanda o magistrado
cobiçoso do prazer, empenha-se pelo poder,
ambiciona tudo sujeitar à sua obediência,
profana com seu orgulho o templo de Têmis,
e da espada, em suas mãos pelo povo posta,
para vingar a virtude do grande que o oprime,
ele faz um instrumento de vingança e de crime,
dela se serve para curvar sob um jugo ilegal,
o homem livre de nascimento e criado seu igual.
Mas esse mesmo prazer de que só a esperança
inspira no magistrado o amor do poderio,
e que na grandeza ata sempre seus olhos,
do padre muitas vezes faz um ambicioso.
Para elevar a púlpito ele abaixa o trono,
Á mitra dentro em pouco escraviza a coroa;
e mestre dos espíritos esse padre faz dos reis,
escravos titulares, mas submissos a suas leis.
507
Quem dos decretos do céu se diz depositário,
pode sempre a seu agrado mandar no povo.
Sob o respeito sagrado que oculta os altares,
a hábil ambição se esconde aos olhos mortais.
O arredio derviche sob o burel e o cilício,
suas vastas intenções dissimula o mistério.
Que olho agudo pode ver em seu acolhimento,
quanto a humildade oculta nele de orgulho?
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
508
SEXTO CANTO
ARGUMENTO
O progresso dos conhecimentos pode sozinho fazer a felicidade geral e a
particular. Os reis instruídos verão que o prazer de fazer o bem é o único prazer real
que dão as grandezas. Os homens esclarecidos e bem governados se tornam contentes
em contribuir para a felicidade dos outros. Mas o mundo está ainda longe desse
estado. Sob o jugo da opressão dos reis e dos padres, o sábio deverá usufruir das artes,
do prazer de amar e daquele de esclarecer os homens tanto quanto lhe for possível.
Fábula de Oromaze de Ariman.
Companheira das virtudes, sublime verdade,
que instruído por tuas lições, guiado por tua luz,
o homem aprende de ti que é o prazer mesmo,
a alma do universo, o dom de um Deus supremo,
509
que lhe será achado, longe dos mortais ciosos,
sua felicidade pessoal na felicidade de todos.
Ó santa verdade! É no teu templo augusto,
que o homem deve extrair as noções de justo.
Cegado pelo erro, há muito tempo se viu ele
desgarrar-se no crime procurando a virtude.
Está na hora da tua mão abrir-lhe os olhos.
Mostre-lhe que aqui em baixo uma era de luz,
pode sozinha renovar uma era de felicidade.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
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. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .
Oromaze engendrado deste imenso incêndio,
que se move, pensa, quer, vivifica, é Deus,
assim que nos céus tinha suspenso o mundo,
em favor dos mortais sua mão sábia e fértil,
dotou com seus dons todas as diversas regiões.
Entre os habitantes desse vasto universo,
há dois, sobretudo, que ama e que ele inspira.
Um seu nome é Elidor e o outro Netzanire.
510
Que bendito seja o céu, se diziam eles um dia,
unidos ao mesmo tempo pelo himeneu e o amor,
casal de cônjuges amantes, que ventura é a nossa!
Nós vivemos Netzanire e vivemos um para o outro.
Recorde ao teu espírito aquele dia na floresta,
em que me dei a teus olhos pela primeira vez.
Eu te vi. E o amor circulou nas minhas veias.
Impaciente de amar, eu te pedi em casamento.
Tu dignaste me escutar. Meus suspiros e votos,
não foram desviados por ventos invejosos.
Tu ardias do amor que devorava minha alma;
o himeneu longe de apagar mais irrita a chama.
Ela resiste ao tempo, todo dia eu te encontro
mais adorável ainda que a primeira vez.
O raio prateado da recém-nascida aurora,
é menos tonificante, menos agradável à Flora,
que o teu olhar o é ao teu esposo venturoso.
Ser encantador. Sabes o que pode o teu olhar,
tua forma, tua beleza, tua graça fascinante?
Sabes tu que em um coração ela leva o êxtase?
Desses corpos moldados por Venus e os amores,
Não tens jamais no banho admirado a forma?
511
Minha alma até o céu é muitas vezes lançada,
plena de ti, eu tenho frequentemente o pensar,
querendo tudo comparar nesse mundo habitado.
Não tenho visto nada que te iguale em beleza.
Se distraído um instante do objeto que adoro,
Eu prendo o meu olhar na brilhante Aurora,
nos círculos dos céus, nos imensos oceanos,
nos orbes brilhantes que atravessam os ares.
Apesar da surpresa que sente minha alma,
este espetáculo não me comove e me inflama.
Eu não sinto em mim o particular movimento,
meu ser não sente nenhuma grande mudança.
Esse soberbo espetáculo incitando a admiração,
me afogueia de um prazer que a alma domina.
Como eu sou diferente quanto eu te avisto!
Todo meu ser se altera em se chegando a ti
O céu ao meu amor ligou minha existência.
É por ti que eu sinto, é por ti que eu penso.
Longe de ti eu te procuro e tudo me é odioso.
Mas quando o teu porte adorna esses lugares,
ela aí derrama o espírito, amor e alegrias.
Às mágoas vorazes, meu coração está exposto?
512
Do desgosto, perto de ti perdendo a lembrança,
Meus olhos só são molhados do pranto do desejo.
Arrebatado, eu te observo e extasiado te toco.
À noite quando o himeneu me conduz ao teu leito,
teu ingênuo pudor irrita, exaspera meu fogo.
A graça está no teu gesto e o céu nos teus olhos.
Ocupado de ti somente, ó alma da minha vida,
o dom de te encantar é o único que eu invejo!
Que servem o saber, o espírito e o talento,
te amar, te agradar é tudo, o resto é nada.
Dos sábios às vezes eu ouço a voz sublime,
cantar os deuses, o tempo, o caos, o abismo,
e pintar as belezas do recém-nascido universo.
Não sei. Mas o enfado se junta à exposição.
Em confronto com a tua beleza o que é o gênio?
Discorrendo perto de ti a sabedoria é loucura.
Tudo é criado para ti. A rosa desse jardim
feita por quem a compara às rosas da tua tez.
Perto dela o Zéfiro sussurrando sua ternura,
do seu sopro amoroso reacende meu êxtase.
513
O amor, os doces beijos, o canto dos pássaros,
a vinha entrelaçada nos troncos dos olmeiros,
a sombra dos bosques, essas flores, a verdura,
e essas camas de relvas, e toda a natureza
me leva ao objeto do meu coração apaixonado.
O sol dourado e o astro argênteo das noites,
obras-primas que criou a palavra fecunda,
sobem eles aos céus para embelezar o mundo?
Não. Mas para iluminar com suas cores,
de manhã tuas belezas e à noite seus sabores.
A onda que reflete neste venturoso recanto,
a imagem exposta no seu espelho móvel,
com suas claras ondas só abraça esse lugar,
para multiplicar o objeto do meu amor.
Mas o sol já se eleva em sua carreira,
ao poderoso Oromaze, ao Deus da luz,
é tempo de pagar o tributo dos nossos votos,
é ele que te criou, por ele eu sou venturoso.
É um deus da bondade que Netzanire adora.
Os gozos são dons seus, e quem os frui o honra.
514
No templo do amor ele colocou seus altares.
Oromaze é ditoso da felicidade dos mortais.
Elidor a essas palavras abraça sua amada.
Os dois alcançam as abas de uma montanha,
que a alvor matinal iluminava com seu lume.
Por um charme sedutor causado nesses sítios,
a gente se sentia forçado para lá seguir o curso.
Da cumeeira do monte brotava uma fonte,
de que as águas caiam de alturas diversas,
numa pequena lagoa bordada de flores.
Os ares eram perfumados por ervas odorantes.
Ao redor se elevavam plátanos esplêndidos,
cujos troncos iluminados pelos primeiros raios,
tais como árvores de ouro enfeitando seu redor.
Do lago rebentavam ondas murmurantes,
que descendo primeiro em lençóis transparentes,
se dividiam em seguida em diferentes canais.
Os raios da aurora abrilhantando as águas,
e elas, por cem rodeios, rolando para o campo,
de lagos de diamante cercavam a montanha.
515
Em frente se elevava o santuário do amor;
é para lá que esses amantes iam diariamente.
Eles iam fazer invocações ao deus da luz,
em seus sagrados altares enunciar suas preces.
Um grito foi ouvido, saído de antros cavernosos.
Alguns sinais medonhos chegaram aos céus.
Dos abismos do Tênaro um vapor obscuro,
nos ares espalhado escondeu a natureza.
A montanha se sacode e a terra estremece.
Era o momento fatal pelo destino predito,
onde o soberbo Ariman, deus do erro e do ódio,
deus terrível aos mortais, quebraria sua cadeia.
Com o universo submetido à sua divindade,
o templo do amor seria a única exceção.
E é no seu vestíbulo que ao medo obediente,
o feliz casal de amantes procurou abrigo.
Mal eles chegam lá e seus olhos espantados,
volvem na direção dos lugares que deixaram.
Que espetáculo amedrontador, a estrela da luz
empalidece, para seu curso e recua para trás.
516
Os céus só brilham do fogo dos relâmpagos.
Um ruído surdo se escuta do fundo do mar.
O ar subterrâneo muge, se aquece, se dilata,
com um barulho terrível a montanha explode
e deixa perceber no seu flanco carbonizado
o feroz Ariman sobre uma rocha acorrentado
Seu corpo sem ação, sua alma sem pensares
do adormecimento da morte parecia oprimido,
quando um trovão abala e racha os céus.
A esse golpe Ariman desperta, abre os olhos.
Seu estado nessa hora o humilha e atordoa,
mas sua força renasce, ele coloca a coroa.
A rocha cai no abismo, os ferros se quebram.
Ele lança ao seu redor olhares enfurecidos
que espalham em tudo o medo e o pânico.
O céu pelo seu aspecto verteu umas lágrimas.
Céus, elementos, diz ele, e vós orbes ardentes,
que fecundais a terra e mensurais os anos;
Ariman é vencedor, reverenciais vosso senhor;
Que o universo enfim aprenda a me conhecer.
O cetro de Oromaze passou às minhas mãos;
terra, hoje recepcione teu novo soberano.
517
Vossos montes que florestas coroam de verde,
grutas que uma aragem animada e pura resfria,
bosques sempre verdes que mostram pela manhã
templos pelo prazer consagrados ao amor,
Jardim delicioso, paraíso que se celebra,
ornamento da terra e delícias do homem:
Desaparecei. Os males, as lágrimas do universo
vão me vingar do deus que me acorrentou.
Mortais, é hoje que meu reino tem começo.
Raios, que seus estrondos me proclamem.
Céus, estejai vós atentos aos meus comandos.
Vós rugidores mares e vós fogos vorazes,
regularmente afundeis e consumais a terra.
Elementos, entre vós, eu espalho a guerra.
Eu te ordeno, ó Morte, disparar tuas flechas:
Que tudo seja confuso! E eu quero que doravante,
a física ao procurar na profundeza das minas,
só descubra em tudo um montão de ruínas
e leia com medo nos bancos subterrâneos,
a história da terra e a história dos humanos.
518
Mortais, rastejareis nos destroços do mundo.
Na sua destruição que o inferno me auxilie.
Oromaze não é mais. Eu derrotei meu rival.
Que o universo físico e o universo moral,
sintam juntos os golpes da minha vingança.
Homem, que má sorte governe o teu nascer,
Que a fome e que a sede estorvem teu berço,
Eu encarrego a dor de cavar tua sepultura.
De tuas várias necessidades todo dia vítima,
que elas levem aos corações o germe do crime.
Quero do seu trono arrancada a equidade,
acima das virtudes assistir o vício exaltado,
a força triunfando e a inocência oprimida,
a paz enfim banida e a guerra inflamada,
o cruel despotismo armado contra as leis,
e despovoada a terra e massacrado os reis.
Que o homem aviltado se dobre à escravidão,
privado de virtude e privado de coragem.
Se seu espírito for inútil, saberei humilhá-lo,
embrutecido pelo medo, não ouse mais pensar.
Que a noite do espírito siga a noite da luz:
Homem, crédulo e vil, cubra-te da poeira
519
do teu próprio inimigo, viva na aflição,
por soberana reconheça a superstição.
Ao seu cetro brônzeo submeto a natureza.
O espírito se nutrirá do erro e da impostura,
o rebelde às suas leis arrastado às prisões.
Doravante por seus gritos e seus soluços,
por sua estúpida fé, que todo mortal me honre.
Banhai Padres, em sangue os meus altares.
Indulgente, sem dúvida, Oromaze outrora,
só impôs aos homens os seus desejos por leis.
Adorava-se esse deus sem medos e alarmes.
Meu culto mais severo é o culto das lágrimas.
Isto dito; e de imediato as cidades outrora,
agradáveis pelas artes, felizes pelas leis,
oferecem em toda a parte à vista confusa,
um mundo devastado no qual o terror habita.
520
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. ..
Que espetáculo de horror, gritou Elidor,
tudo mudado, morto: Mas vivemos ainda.
Nós vivemos, amamos, ó potência celeste!
Tu me preservaste. Netzanire me resta
inteira ao meu amor neste palácio de flores
que a arte e o prazer misturaram as cores.
Esqueço os mortais, os males e eu mesmo.
Não há pesar perto do pessoa que se ama.
Junto amiúde nesses leitos perfumados
as volúpias da alma e as dos sentidos.
Jura-me, quando a morte no seguir da idade,
se chegando devagar a essa calma sombra.
na sepultura contigo virá me sepultar,
que ela me encontre nos braços do prazer.
Desta espera tão doce teu amor é penhor.
O amor é dos mortais o mais belo símbolo,
521
é o êxtase dos sentidos, o dom mais belo dos céus,
o único bem que nos é comum com os deuses.
Provemos. Tu o sabes, lhe responde Netzanire.
Por ti, até esse dia, tenho vivido e respirado.
O mundo não me é nada. Ai! por minha ventura,
só desejei apenas um deserto e seu coração.
Minha alma, só para ti, para o amor acessível,
só ao infortúnio dos humanos é mais sensível.
Parece que o amor que meu coração sente,
Exalta também em mim o amor da virtude.
Tu vês por toda parte a terra saqueada.
Ah! meu querido Elidor, ela não está vingada.
Do deus que servimos, derrubando os altares,
Ariman para o seu jugo submeteu os mortais.
Seu furor que neste instante parece abrandado,
para lhes dar a desgraça lhes devolve à vida.
522
Dos vícios que ele infunde os fez seus algozes,
e quer que cada um seja o autor de seus males.
Para multiplicá-los, ele deixa à ignorância
o cuidado de fecundar sua funesta semente.
Do poder de Ariman desobrigue os humanos:
que seus ferros vis se partam por tuas mãos.
Urge que com tua presença alivies suas dores,
socorrer os mortais, eles são nossos irmãos.
Seja para eles na terra um deus consolador.
Se o teu desvio de mim custa ao teu coração,
creias que custa ao meu e estejas seguro que,
sinto no momento todas as dores da ausência.
Mas não importa, quero que no meu coração
o amor por instantes conceder à humanidade.
Seu esposo, a estas palavras, reconhece Netzanire:
Não; não duvido mais, é o céu que te inspira.
Ele me fala e eu vou ao teu comando
até os seus altares desafiar Ariman.
523
Em suas mãos, se puder, apagarei o trovão.
Eu vou me dedicar à felicidade da terra.
Tu o queres. Teu desejo é minha suprema lei.
Possa eu retornar mais digno ainda de ti.
A deixa a essas palavras. A compaixão o guia.
Ele cruza a grandes passos uma região estéril,
ele aí procura por seus pomares e seus campos
que retinham perfumes d'uma eterna primavera,
onde Flora cativava o ligeiro deus que ela ama,
onde sem arte e cuidados, a terra dela mesma,
coloria as flores e amadurecia os frutos.
Que diferença perceberam seus olhos surpresos!
Vê a enxada na mão, o trabalho e o estorvo,
enjoando-se da fadiga para semear o campo.
A pestilência, a escassez e as aflições cruéis
têm a diferentes mortes condenado os mortais.
O astro brilhante do dia, percorrendo a elíptica
lança no universo uma luz oblíqua, de través,
524
faz aí suceder debaixo dos céus sem calor,
os invernos às primaveras, as geadas às flores.
Elidor porém avança, ele quer se instruir
das leis e costumes que Ariman prescreveu
para os novos habitantes de um novo universo.
De um terreno fabuloso que cruza os desertos,
dirige seus passos para um bosque de plátanos.
Ao pé de uma montanha viu algumas cabanas.
Achega-se. Ele ouve umas torrentes que pulando,
de cima das rochas caem em pequenas várzeas.
O astro brilhante dos céus do alto do seu curso
nesse monte dardeja em vão uma pálida luz.
Carvalhos enormes, monarcas das florestas,
absorvem seus raios em suas densas folhagens.
Dos estéreis rochedos se vê cadeias de montanhas
misturarem seus cumes às copas dos carvalhos.
Lugares que um dia sombrio consagra ao terror,
a vasta solidão aumenta ainda mais o horror.
Lá, guiado pela esperança de ajudar os irmãos,
enxugando seus prantos, aliviando seus males.
525
Elidor escalou alguns montes sobranceiros,
cujos cimos se perdem num céu tempestuoso.
De seus cumes escarpados ele viu um grotão,
mina, abismo fundo, cavado pela ganância,
que com picareta aí persegue um filão de ouro,
Ela não nem parou seus olhos sobre Elidor.
Enquanto ele se extraviava nessa solidão,
um espectro se lhe oferece. Era a inquietude,
monstro que pelas próprias mãos dilascerado,
deve o seu ser aos tormentos com que é devorado.
Uma turvação interior anunciou sua presença.
Elidor desconheceu sua angustiosa presença.
Ele vê os opulentos que este monstro persegue,
e nas suas tristes sortes, sua alma se enternece.
Entretanto ele alcança o cume das montanhas.
Que espetáculo de horror! Ele vê nas planícies
guerreiros reunidos sob diferentes estandartes
atacando, defendendo e morrendo como heróis.
526
De corpos e sangue eles cobriram a planície.
Deus, exclama Elidor, que glória desumana
chama esses guerreiros nos campos da morte!
Vão eles arrancar o fraco ao jugo do forte?
Não. Eles combateram para decidir talvez,
de dois tiranos cruéis qual será seu mestre.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. .
O padre corrompido, na sua perversidade,
só admite uma virtude, é a credulidade.
Ele proscreve a justiça e a altiva ignorância
faz dobrar ao seu jugo a cega obediência.
A soturna hipocrisia exige dos humanos,
ao culto do coração as oferendas das mãos.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Elidor afasta-se daí e retorna à sua casa,
onde o amor inquieto esperava seu retorno.
Ariman venceu; a terra é o seu império,
e eu volto, diz ele, minha querida Netzanire.
527
Esquecer se eu puder, o espetáculo amedrontador
dos mortais oprimidos sob do jugo de Ariman.
Seus males aos olhos se apresentam sem cessar.
Tudo, mesmo em teus braços, me enche de tristeza.
Oromaze o escuta e das alturas celestes
desce, envolvido num turbilhão de fogo.
É à esperança, diz ele, a reanimar teu zelo.
Não. A noite do erro não pode ser eterna.
Estejas certo que o homem, ó sensível Elidor,
ao seu primeiro estado pode se elevar ainda.
Se o bem é da verdade sempre inseparável,
o extravio desse bem não é irreparável.
Um século de luz um dia deve retornar.
O século de ventura que parece se afastar.
Nessas precisões cujos gritos te estorvam,
em que Ariman pôs o pomo do infortúnio,
seu olho apesar da noite que se avoluma,
nota já o germe de uma felicidade vindoura.
Sim. Essas carências unidas às vossas vidas,
de vossos espíritos despertarão a diligência,
528
e arrancar-lhes-ão um dia da indolência,
onde os mantém o medo e o nome de Ariman.
Do dia da verdade vejo despontar a aurora;
E se do seu meio-dia esse dia está distante,
acredite que o inferno não pode alterar
esse dia, que se crê suspender o progresso.
Quando por esforços e trabalhos imensos,
os mortais abrirem o palácio das ciências,
que alcança a verdade degrau por degrau,
do fogo de seus raios tudo será iluminado.
Eles saberão então por qual arte se reúne
e com qual laço secreto se pode unir junto,
o interesse de cada um ao interesse de todos.
Mais justos, humanos, mais unidos entre vós,
seus dias fluirão sem mistura de sofrimentos.
Pode ser que esse fruto da sabedoria humana,
numa terra estéril terá uma lenta maturação.
Mas enfim quando a fruta estiver madura,
esclarecido, virtuoso, tanto quanto possa ser,
o homem merecerá de me possuir como mestre.
Soberbo demais Ariman, teu reino é passado.
Eu vejo teu trono em pó e teu cetro quebrado.
529
Tu ergueste até os céus tua orgulhosa cabeça.
Receie. Meu olho em ti vê desabar a tormenta.
Privado de poderio, desterrado do universo,
meu braço vingador te segue até os infernos.
Tu tombas, devorado por enxofres de raios.
O inferno se dissolve e o céu se aloja na terra.
Fim
530
FRAGMENTO
De uma epístola sobre 'O Amor próprio'.
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. . . . . . . . . . . . . . . Alguém com olho curioso
vê como o amor-próprio, sempre e em tudo,
531
pai único e comum das virtudes e crimes,
escava nossos males e entulha os abismos,
compõem os cidadãos, os submete aos reis,
Faz, rompe, reaperta o nó sagrado das leis,
extingue e reacende as chamas da guerra,
e excita em desigual todos os filhos da terra.
Dos romanos, outro observando os costumes,
e sua ferocidade, germe de suas grandezas,
vê neles das virtudes suceder a abundância,
vê esse povo vencedor, vencido pelo torpor,
e seu trono construído do trono de cem reis,
desabar de repente, vergado sob seu peso.
Alguns, menos amigos de um estudo fundo,
percorrem de relance os séculos do mundo,
que iguais a vagas sobre outras rolando,
parecem se abismar no turbilhão do tempo,
e em seus cursos rápidos arrastam e destroem,
as artes, leis, costumes, os reis e seus impérios.
532
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
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Aprenda que a um homem livre, urge dar algemas.
Eu me envergonho, mas enfim ao culpado universo,
é preciso os grandes, os reis. É um mal necessário.
A injustiça sem eles eleva uma cabeça arrogante.
O amor-próprio regressa aos primeiros direitos,
apanha a força por juiz e seus desejos por lei.
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. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . ..
Contemple de uma maneira saudável e calma,
as duas extremidades que limitam a tua vida.
Saiba o pouco que carece o teu ser imperfeito:
Ao teu nascimento, um peito, um cueiro e leite;
à morte, uma mortalha, uma cova, um caixão;
Eis aí tudo o que sobeja aos donos da terra.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
533
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Quando de remorso um rei não é combatido,
quando só admite por lei a sua ordem total,
toda a diferença se julga então pela guerra,
todo mortal é escravo ou tirano sobre a terra.
Não há mais virtudes, equidade, descanso,
e o universo moral regressa à desordem.
534
FRAGMENTO
De uma epístola sobre 'O Luxo'.
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É o prazer que só ao trabalho nos coordena.
No deserto dos mares, perigos e nas penas,
só a espera de fruir sustem os comerciantes.
Esperam um dia, mais ricos, mais contentes,
sob lambris dourados ter à mão a fortuna
e o prazer que estar ao abrigo da indigência.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Às grandes nações o luxo é, dizem, essencial.
Da pompa e do dinheiro o desejo salutar
nos tira do repouso que nos mantêm calmos.
É uma energia ativa, que motor dos espíritos
e nos nossos cidadãos excitando a indústria,
nas corporações do Estado faz circular a vida.
O ouro é pois um deus? Se lhe deve os desejos?
E o homem enfim sem ouro, não pode ser feliz?
535
Nos ermos do norte, o livre e altivo selvagem,
se contenta com as pedras de suas margens.
Ele não vai procurar em regiões abrasadoras,
os diamantes, as artes e os maiores prazeres.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Tem tanta sorte este imponente inútil,
que a pompa insultante baniu das cidades.
Que num carro dourado passeou por Paris.
Põe sua fortuna nos pés dos nossos jovens,
que sempre oprimidos de dívidas usuárias,
convertem em fitas os tesouros de seus pais.
Tombam e logo expiam carências urgentes,
o erro dos prazeres fruídos na primavera.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
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A videira cresce, sobe e se verdeja as montes.
As espigas ondeantes amarelam os campos.
e o trabalho por fim de todas as temporadas,
da improdutiva terra arranca as colheitas.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. ..
536
FRAGMENTO
De uma epístola sobre 'A Superstição'.
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Em todo Estado um corpo, de qualquer saber,
à sua grandeza deve progredir sem suspensão,
Sob o pretexto ilusório do interesse dos deuses
É o seu interesse que aprecia esse corpo ambicioso.
Em seus ousados projetos, constante, invariável,
a seus sócios empresta um suporte tremendo.
Com leis severas não é ele em nada contido?
Não. Caminha ocultamente ao poder absoluto.
Que pode armar para ele a pública ignorância,
dos príncipes ultrajados não teme a vingança.
O que há para temer dos magistrados, das leis?
O intérprete dos deuses está bem acima dos reis.
537
Só ele da virtude consegue distinguir o vício.
Só ele se coloca então como árbitro da justiça.
Com esse título teve o direito de guiar a todos.
Para conservar esse direito do qual era cioso,
para tê-los submissos à sua dura escravidão,
deles, do uso da razão proscreveu o emprego.
Quis que desdenhando seu impotente amparo,
eles só pudessem ser instruídos apenas por ele.
A terra nesse momento se cobriu de escuridão.
O fanatismo nasceu sobre lúgubres sepulcros.
No templo dos deuses, pelo engano aleitado,
ai ele recebia as deferências da credulidade.
O cetro é em suas mãos um dom da ignorância.
No universo receoso ele estende seu poderio.
Sua cabeça está nos céus, seu pé nos infernos.
O paraíso é seu dossel, seu trono é o universo.
Cativo mais seguro quanto menos pensa o ser,
esse mundo se crê livre, em o tendo por senhor.
Ele caminha cercado de ardentes fantasias.
Ema sua testa está escrito. Príncipe das nações.
538
Em Lisboa, em Goa é o seu poder que troveja,
que forma, que destrói, que pune, que perdoa.
O viram noutro tempo nas praias africanas,
encerrar sua vítima num bronze abrasado,
Do punhal de Calcas assassinar Ifigênia,
enterrar a vestal nos campos de Ausônia,
De Sócrates virtuoso determinar a morte,
Levar o medo a tudo, armar todos os Estados.
Mas, dirão, o padre atroz e sanguinário,
tem ele sempre na mão o machado mortal?
Faz ele correr sempre o sangue nos altares?
Se parece às vezes benigno com os mortais,
é quando no mundo ele mandou como senhor.
Mas tão cedo da verdade o dia veio aparecer,
que o sábio quis desenraizar a autoridade
de um império fundado sobre a imbecilidade.
O padre então se tornou cruel, impiedoso,
armado pelo interesse ele foi implacável.
Ele ordena o assassínio, disso faz um dever.
Diante do seu tribunal o príncipe é sem poder.
Ao seu socorro então é em vão que se apela
a esta mesma razão que baniu o falso zelo
539
Às mentes iluminadas em vão tem recurso.
Exilados de um Estado, o são para sempre.
Um rei permanece cercado indivíduos idiotas,
contra um clero poderoso, defensores inábeis.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
O intérprete dos deuses determina um crime?
Ele é muito obedecido, tudo se torna legítimo.
Também c'o sangue humano vertido pelos pagãos,
tem ele amiúde humilhado o templo dos cristãos.
Cremos durante muito tempo, cegos como somos,
que se reverenciava o céu chacinando os homens,
que se podia no altar de um Deus de caridade,
santificar a execração e a desumanidade.
Lá para se vingar do senado de Inglaterra
Garnet contraiu alguns raios debaixo da terra.
Agarrou ele esse monstro? Ele pronto a perecer?
Incendiário em Londres; em Roma, é o mártir.
Mas por qual arte enfim o audacioso sacerdote
do mortal que instrui, faz dele um homem cruel?
540
Ele o persuade que um Deus seu protetor,
tenha à sua ignorância atado a felicidade?
Ao ministro dos deuses nada é impossível;
seu interesse diz que o espírito é pernicioso,
diz que se um povo não for cego, é furioso,
que deve sempre andar de olhos vendados.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
. .. .. . .. .. . .. ..
Embora sustente ainda a imbecil ignorância
é ao amor da verdade; é ao seu conhecimento
que o céu até aqui, constante em seus desígnios,
tem sempre prendido a felicidade dos humanos.
. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .
Na planície, Almançor viu um imenso templo,
que parecia habitado por deuses enfurecidos.
Os muros construídos de ossadas empilhadas.
Ouve-se ressoar suas abóbadas subterrâneas,
de assobios de chicotes, do arrasto de correntes,
de golpes dos algozes, dos gritos de sua fúria,
unidos aos gritos agudos produzidos pela dor.
Pois quê! Diz ele, o quê! Ainda o raio vingador
reverencia outra vez o altar da perversidade?
541
E desde quando os deuses hostis aos humanos,
molham em sangue as suas benéficas mãos?
Que senado reunido sob essa abóbada obscura?
Quem se senta no altar? Que vejo? A hipocrisia.
É ele, dizem. Eblis, sumo sacerdote de Ariman,
que pontífice e monarca, aí reina insolentemente.
Uma jovem indiana a esses lugares trazida,
deve ser neste instante às chamas condenada.
E tu a vês comparecer. É preciso, lhe diz Eblis,
incensar hoje, sem falta, o Deus do meu país.
Que eu o incense ou não, que importa, diz ela?
Eu tenho até este momento à virtude constante
reverenciado, como Eblis, um ser beneficente,
em um lugar sob um nome talvez diferente.
Se o Deus que tu serves protege a inocência,
é o crime que pode provocar a sua vingança.
Contra um culto inocente, que motivo teria?
O que se crê lhe dever é tudo o que se lhe deve.
Se teu Deus pode tudo que se faça conhecer.
Meu coração está em suas mãos, ele é o senhor.
Às ordens de um tal Deus, ninguém se subtrai.
Creio quando ele quer e não quando eu quero.
542
Eu fechei, dirás tu, meus olhos para a luz.
Que teu Deus então abra minhas pálpebras.
Tu sabes. A crença é em todos os momentos,
o trabalho de sua bondade, não de tormentos.
Eu te conheço Eblis. Meu olho enfim clareia.
É o interesse que te move por teu falso fervor.
A terra está contra ti pronta a se revoltar.
Para dominá-la, tu queres a amedrontar.
Tu queres ser poderoso, e o ser pelo crime.
De tua ambição, tu me fazes tua vítima.
Sem ordem do céu, não creio que minha mão
ousa, replica Eblis, derramar sangue humano.
Contra ti, de meu Deus, a cólera está armada.
Sobre esta horrível fogueira se eu for consumido,
é por ordem de Eblis, não pela dos deuses.
Que teu culto seja santo, tu o dizes, eu o quero.
Mas desse culto, qual que seja a excelência,
responda. Teu Deus pode punir como ofensa,
a infração inocente de não tê-lo conhecido?
Eu torno te perguntar. Condenar-me-ias tu,
se relegado ainda em vastas regiões vivento,
desses funestos lugares, por mares separados,
543
eu tivesse, atendendo a rumores hipócritas,
desprezado teu poder, teu nome e grandezas?
Tu tremes. Essa suspeita te parece uma injúria.
Se eu tenho inocência aos olhos da hipocrisia,
se eu obtenho a graça de um monstro como tu,
o que teria eu a temer do nosso rei em comum?
Ele castiga os malfeitos, perdoa a ignorância.
e se ele não tem uma igual sabedoria, poderio,
esse deus é sem dúvida bom. É a tua impiedade
que cede a esse deus santo sua desumanidade.
Aos esforços do trabalho nada é impossível?
Eles tornam ao homem, a verdade acessível.
Dos Aquilões e dos correntes vencedoras,
Malta vê em seus mares robustos remadores
que com repetidos esforços, vencendo as ondas,
o volúvel elemento endurecem sob seus remos,
e a pá do remo apoiada nas sólidas águas,
nos seus admirados portos rebocam os navios.
FIM.
547
CENSURA
DA FACULDADE
DE TEOLOGIA DE PARIS
Contra o Livro que tem por título
DO ESPÍRITO
— 1759 —
548
CENSURA
DA FACULDADE
DE TEOLOGIA DE PARIS
Contra o Livro que tem por título
DO ESPÍRITO
PREFÁCIO
O decano e os doutores da Faculdade de Teologia de Paris a todos os fieis saudação em Jesus Cristo.
Tem-se visto nos séculos precedentes "insensatos que disseram no íntimo no seu coração, Deus não existe". Mas é reservado à corrupção do nosso século produzir homens que fazem profissão pública de impiedade e que fizeram até de seus
549
discursos ímpios e sacrílegos uma prova de sua sabedoria.
Esses homens sem consideração pelas leis, sem medo dos castigos, sem respeito pelas pessoas de bem, sem receio de sua ignorância, inventam todos os dias blasfêmias novas e ousam de tudo contra a religião.
A lhes crer, a fé não é o "fundamento das nossas esperanças", ela é o túmulo da razão, ela não é o princípio da salvação, ela é apenas o apanágio de homens simples e supersticiosos. Pode-se ser sinceramente religioso apenas quando se tem o espírito limitado e a alma fraca.
Não é somente na capital que esta doença tem feito seus estragos. Surgida como epidemia, ela tem passado até pelas províncias mais distantes, onde os escritos desses atrevidos autores, semelhantes a negros vapores e exalações infectas, formam nuvens espessas que carregam consigo o contágio e a desolação em todos os lugares onde se descarregam.
550
Hábitos morais, religião e práticas sociais as mais respeitáveis, nada é poupado. Tudo é passivel de saque ao furor desses escritores.
Se tratam sobre a natureza do homem: Segundo eles, o homem é apenas uma porção de matéria organizada jogada ao acaso na superfície da terra. Difere apenas do macaco do na mesma proporção que o macaco difere dos outros animais. O que, dentro do seu sistema, não degrada o homem porque o que ele tem a mais do que os outros animais ele deve à educação, à invenção das artes e ao uso da linguagem. É dessas belas descobertas que se vê sair uma História Natural da alma "como esta espuma salgada que as ondas de um mar agitado produzem".
Se falam da religião, eles tomam de assalto os dogmas mais sagrados, combatem as suas leis mais santas e a reduzem a um inutil fastasma: "Impostores que seguem suas paixões desregradas e plenas de impiedade".
Se escrevem sobre os hábitos morais, é com a intenção formada
551
de combater os princípios e as máximas que devem regrá-los, "corrompendo o que eles conhecem naturalmente como as bestas".
Se empreendem fixar os limites que separam os direitos respectivos dos príncipes e dos súditos, "sofrendo impacientemente toda dominação e desprezando os que são elevados em dignidade", eles transferem aos povos o que pertence apenas aos soberanos.
"Blasfemando o que ignoram", eles são suficientemente temerários para chamar a juízo em seu tribunal o Criador de todas as coisas, lhe demandando contas de suas obras, por se acreditarem em estado de corrigir a ordem admirável que ele colocou no universo.
"Entretanto, eles têm conhecido o que se pode descobrir de Deus e o próprio Deus se lhes tem feito conhecer. Mas porque eles não o têm glorificado e lhe rendido graças, se extraviaram em seus inuteis raciocínios e seus insensatos corações têm estado cheios de trevas. E se tornaram tolos em se atribuindo o nome de sábios: ...
552
eles têm colocado a mentira no lugar das verdades divinas e têm recusado ao Autor de seu ser a adoração e o culto soberano que lhe são devidos... É porque eles se entregaram às paixões vergonhosas... Como eles não querem reconhecer Deus, Deus também os tem abandonado a um sentido depravado e eles praticaram ações indignas do homem. Eles estiveram repletos de toda sorte de injustiça e de maldade,... de inveja e de artifícios e se tornaram caluniadores, inimigos de Deus, soberbos, arrogantes, inventores de novos meios de praticar o mal... sem prudência, sem modéstia, sem sentimentos e sem fé".
Tais são esses autores importantes, esses filósofos profundos que estão encarregados de nos fazerem renunciar à religião dos nossos pais, de nos fazerem mudar de costumes morais e de ponderar os direitos, a autoridade e o poder dos nossos reis em presença do próprio povo e de encerrá-los em limites que julgam a propósito lhes prescrever. Em uma palavra, colocam tudo em obra para tudo mudar, não importando o que possa custar ao Estado e aos particulares, porque a religião é apenas um sustentáculo menos essencial aos impérios que a lei e o poder.
553
Atentos em usar todos os meios de perverter os espíritos, eles
são mestres da sedução, mestres infatigáveis para todas as idades, para os diferentes sexos e para toda sorte de condições. Eles usaram sua atenção para comporem uma gramática destinada a formar ímpios: Não há livro que saia de suas mãos sob qualquer título e assunto, que não contenha um veneno pronto para a se insinuar no espírito dos que o lêem sem precaução. É uma conspiração formada contra a fé e a moral do cristianismo e contra a obediência devida à autoridade soberana, conspiração que tende a tudo perturbar e que vai livre ao seu objetivo, se não for barrada em seu projeto de arrancar do coração do homem toda estima da virtude, todo amor da pátria e os sentimentos mais caros da natureza. Daí que confusão! Que desordem! Porque quebrar os laços que unem entre si as diferentes partes da sociedade civil é atacar a constituição e a expor a uma dissolução integral.
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Mas é aos homens do Estado que compete prestar atenção sobre
esses excessos e a prever as consequências. Na qualidade de cidadãos nos é permitido fazer ouvir a nossa voz de passagem. Nós retornamos às nossas funções de teólogos.
Entre todos esses conspiradores que parecem distribuídos cada um em seu posto, há um que para nos servirmos da expressão de São Leão, parece ter misturado na mesma taça tudo aquilo que as modernas opiniões têm de mais detestável, para engolir de uma vez o veneno que os outros só beberam em parte. Reconhece-se por esse único indício o autor do livro que tem por título 'Do Espírito': esse homem que no seu trabalho parecer ter desejado se mostrar tão incrédulo quanto os ateus, tão entregue aos sentidos quanto as bestas, tão corrompido quanto os libertinos e tão ousado quanto os súditos mais sediciosos. A seita de Epicuro ficaria ruborizada em Atenas por tais violências. Tudo lhe é bom desde que se imponha a pessoas pouco instruídas ou que agrade a espíritos corrompidos. Ele despreza igualmente a honestidade pública, as leis, a pátria
555
e a própria reputação e faz exibição de um descaramento que só se encontra nas consequências dos vícios mais enraizados, que abafam até o menor sentimento de virtude.
E depois de ter vomitado tantos paradoxos monstruosos ousa ainda afetar pudor. Ele faz ouvir "que tendo se erguido frequentemente até as grandes ideias, ele foi forçado de silenciá-las ou ao menos constrangido a enfraquecer a força por causa da ambiguidade, obscuridade e fraqueza da expressão". Mas esta precaução cuja arte não é nova é apenas uma maneira mais segura de atiçar a curiosidade e de ensinar o erro sem se comprometer.
O restante do livro que ele disponibilizou ao público lhe pertence apenas por arranjo de materiais que outros houveram empregado antes dele. É trabalhando sobre o fundamento dos outros que ele tem pretendido fazer o nome.
Que nome! É um nome capaz de afagar a vaidade de quem quer que seja, um nome que se sabe, estar nutrido de mil venenos que outros já se serviram, e de lhes tornar mais pestilentos pela estadia que fizeram dentro de um estômago corrompido.
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Mas por receio que este autor não proteste contra tal imputação,
é necessário colocar sob os olhos dos nossos leitores as origens envenenadas de onde ele tem retirado toda a doutrina de seu funesto trabalho.
Não diremos nada do seu estilo porque o nosso objetivo não é censurar seus ornamentos pueris, seus rodeios de frase afeminados, esses aparatos inúteis de grandes palavras indignos de uma matéria séria e que são bons apenas para enganar os espíritos superficiais. Que o autor desfrute desse mérito, se aqui há algum.
DA ALMA
"Os sentidos são a origem de todos os pensamentos, porque não há nenhuma ideia do espírito que não tenha antes sido produzida nos sentidos, inteira ou em parte. Dos pensamentos produzidos nos sentidos nascem todos os outros... a causa da sensação são os corpos exteriores ou o objeto que comprime o órgão e que, agindo sobre ele, comunica o movimento para os nervos e as membranas até o cérebro e de lá ao coração... o esforço do coração que, pelo movimento de fora repugna a impressão que recebeu, parece ser alguma coisa exterior e é esta aparência que nós chamamos de sensação". (Hobbes, Do Homem, capítulo I, p. 3).
"Nós temos apenas ideias que devemos aos nossos sentidos. (Fábula das Abelhas", tomo III, p. 236).
"Julgar é somente perceber e reconhecer as relações, as quantidades e qualidades ou maneiras de ser dos objetos... é então evidente que são as sensações mesmas que produzem os julgamentos. O que se chama consequência numa sequência de julgamentos é apenas o acordo das sensações em relação a esses julgamentos.
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Todas as apreensões ou percepções são apenas funções puramente passivas do ser sensitivo. Parece, entretanto, que as afirmações, as negações e as argumentações marcam a ação do espírito, mas é a nossa linguagem e, sobretudo, as falsas noções... que nos impõem isto... eu percebo nos animais o exercício das mesmas funções sensitivas que eu reconheço em mim mesmo... nossos conhecimentos evidentes não são suficientes sem a fé para nos conhecer a nós mesmos, para descobrir a diferença que distingue essencialmente o homem ou o animal racional dos outros animais, porque, a consultar apenas a evidência, a razão, ela mesma sujeita às disposições do corpo, não pareceria essencial aos homens". (Dicionário Enciclopédico, artigo evidência).
"Não conhecemos a essência da matéria e nem todas as propriedades que Deus pode lhe dar. Nós não temos, portanto, o direito de assegurar que uma de suas faculdades não seja a faculdade de pensar". (Locke, Ensaio Sobre o Entendimento Humano).
"Nós só conhecemos muito imperfeitamente a matéria, ignoramos uma parte de seus atributos. Um filósofo moderno veio descobrir um que lhe é também tão essencial quanto à extensão, é a atração... quem sabe se não se descobrirá novas propriedades (nela) e se uma dessas propriedades não será a de pensar". (Nota acrescentada na última edição do Ensaio sobre o Entendimento Humano).
"Não se trata de saber se a alma é material ou espiritual. Concorda-se que ela é espiritual porque a religião assim nos tem ensinado, mas pergunta-se se ela não poderia ser material, se Deus assim o desejasse. Porém, sustentar o contrário... é limitar mal a propósito do poder de Deus... é raciocinar mal e supor como certo o que está em disputa". (Marquês D'Argens, Memória secreta da República das Letras).
"O homem é dotado de uma razão destinada a lhe tornar sociável... a natureza de suas faculdades, assim como os princípios naturais de suas operações nos é desconhecido... há somente processos desta razão que podem ser seguidos e observados por uma atenção meditada desta mesma faculdade... nós ignoramos o que é em nós a base e o amparo desta faculdade, como nós ignoramos o que acontece com esse princípio na morte: dir-se-á que talvez esse princípio inteligente subsista novamente após a vida... mas é inútil procurar conhecer um estado sobre o qual o Autor da natureza não nos instruiu com algum fenômeno". (Código da Natureza, p. 228).
"O primeiro momento da vida (do homem) o encontra envolvido numa indiferença total, até mesmo com a sua própria existência. Um sentimento
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cego que não difere daquele dos animais é o primeiro motor que faz cessar esta indiferença." (Código da Natureza, p. 20).
"O desejo de ser feliz é um efeito da nossa sensibilidade". (Código da Natureza, p. 156).
"As necessidades (do homem) o despertam gradativamente, o tornam atento à sua conservação e é dos primeiros objetos desta atenção que ele tira suas primeiras ideias". (Código da Natureza, p. 21).
"Dos animais aos homens a transição não é violenta: o que era o homem antes da invenção das palavras e o conhecimento da linguagem? Um animal de sua espécie que só se distinguia do macaco e de outros animais como o macaco é distinto de si mesmo". (O Homem Máquina, p. 30).
"A alma é apenas um termo inútil de que não se tem ideia e do qual um bom espírito deve somente se utilizar para nomear a parte que pensa em nós. Colocado o menor princípio do movimento, os corpos animais terão tudo o que lhes falta para se mover, sentir, pensar, se arrepender e se conduzir, em uma palavra, física e moralmente, conforme o caso". (O Homem Máquina, p. 71).
"Ser máquina, sentir, pensar, saber distinguir o bem do mal, em uma palavra, ter nascido com inteligência e um instinto moral e ser apenas um animal são coisas que não são mais contraditórias que ser um macaco ou um papagaio e saber se dar prazer... Eu creio ser o pensamento tão pouco incompatível com a matéria organizada que ele parece ser uma propriedade, igual à eletricidade, à faculdade motriz, à impenetrabilidade, à extensão, etc.". (O Homem Máquina, p. 97).
"Eu sei que a figura dos animais não é totalmente humana, mas não é necessário ser bem limitado, bem igual ao povo, bem pouco filósofo para conformar-se assim às aparências... os sentidos internos não fazem mais falta aos animais do que os externos. Por consequência, eles são dotados como nós de todas as faculdades espirituais das quais dependem. Eu quero dizer da percepção, da memória, da imaginação, do julgamento e do raciocínio. De onde se segue... que os animais têm uma alma feita pelas mesmas combinações que a nossa". (Os Animais mais que Máquinas, pp. 4, 5).
"A alma é sempre necessária. Ela é necessária a deliberar quando ela delibera. Ela é necessária a se determinar quando ela se determina. Os objetos igualmente desejáveis a colocam em suspensão, se eles parecem desiguais em bondade, a alma não deixa de escolher aquele que merece a preferência... todo mundo concorda que as percepções da alma não são livres. Ora, é o mesmo dos julgamentos, que são apenas uma espécie de percepção. Porque julgar é decidir sobre a conveniência ou não dos objetos que se comparam, o que só se faz percebendo a conveniência, ou a inconveniência. Então a alma não tem liberdade, porque jamais age sem percepção e sem julgamento. Seus motivos a determinam...
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ora, os motivos se reduzem a suas ideias e suas ideias se reduzem a percepções e a julgamentos que não são nada livres.
A maior parte dos autores que escreveram sobre a liberdade fica embaraçada em infinitas dificuldades e, para a defenderem, falam numa linguagem onde colocam princípios que a contradizem". (Collins, Escrito sobre a Liberdade na Coleção de Papeis sobre a filosofia de Desmaiseaux).
"Não é inverter a ordem da questão que concerne à liberdade e à necessidade, começar como se tem feito, pelo exame das faculdades da alma e da influência do entendimento sobre as operações da vontade, em vez de discorrer antes uma questão mais simples, aquela que diz respeito à operação dos corpos e da matéria organizada? De não procurar se formar com ideias de causalidade e de necessidade distintas da ligação constante dos objetos e desta indução que é a consequência? Se toda necessidade que nós concebemos na matéria se reduz a esses dois pontos, que, de acordo com todo o mundo, têm igualmente lugar nas operações da alma, a disputa fica encerrada". (Hume, Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano, tomo I, pp. 234, 235).
"Pode-se desenvolver outra razão para a grande fama que a doutrina da liberdade adquiriu. Há uma sensação enganosa de um estado indiferente, fundada em uma falsa luz da experiência, que acompanha, ou pode ao menos acompanhar várias de nossas ações... na maior parte das ocasiões nós sentimos nossas ações sujeitas à nossa vontade e nos imaginamos sentir que a vontade não é sujeita a nada. Em razão de que, logo que negamos esse ponto e que nos provoquem a experimentar, nós experimentamos que ela se adapta facilmente em todos os sentidos... nós achamos bom ter um sentido íntimo de nossa liberdade. Mas raramente um espectador aí se enganará e mais frequentemente, estará em estado de inferir nossas ações dos seus motivos e do nosso caráter. Ou, se ele não puder, em geral concluirá que é apenas por falta de conhecimento perfeito das circunstâncias da nossa situação e do nosso humor. Ora, é precisamente nisso, segundo eu, que consiste a essência da necessidade". (ibid, notas às pp. 236 a 238).
"Que se entende por liberdade quando se nomeia os atos da vontade livre? Pode-se apenas entender por liberdade o poder de agir ou de não agir em conformidade com as determinações da vontade. É dizer que se nós escolhermos permanecer em repouso, nós o podemos e que se a escolha for de nos mover, nós o podemos também. Ora, ninguém nega que todos os homens não tenham esta liberdade hipotética a menos que estejam aprisionadas ou acorrentadas. Assim, nada de disputa sobre esse assunto". (ibid, pp. 239, 240).
"Há concordância universal de que nada existe sem causa e que o termo acaso, a bem entender, é apenas um termo negativo que não pode significar nenhum poder real e existente na natureza.
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Mas pretende-se que haja causas necessárias e causas não necessárias, de onde surge a maravilhosa utilidade das definições. Que se me defina uma causa sem fazer entrar na definição a relação necessária com o efeito... é uma coisa impossível... nossa definição sendo admitida, a liberdade, por mais que alguém se oponha não a constrange. Mas a liberdade constrange à necessidade e será a mesma coisa que o acaso que, segundo a aprovação de todo o mundo, é equivalente ao nada". (ibid, pp. 240 a 242).
DA MORAL. "Eu não entendo outra coisa por direito natural do que as regras da
natureza de cada indivíduo... como há uma lei geral para todas as coisas naturais, que cada um em particular se perpetue no seu estado tanto quanto nele esteja, sem ter outra consideração que a sua própria conservação, segue-se dai que o direito natural de cada indivíduo é de subsistir e de agir segundo as forças que a natureza lhe houver dado. Dentro deste estado não distinguimos os homens dos outros seres naturais, nem os homens dotados da verdadeira razão daqueles que não a têm". Espinosa, ed. francesa do Tratado Teológico-político, cap. 16).
"Deus a respeito das ações dos homens, como dentro da ordem física do mundo, tem estabelecido uma lei geral, um princípio infalível de todo movimento... Como entregou os seres inanimados a um movimento cego e mecânico, ele tem do mesmo modo entregue os homens a um guia que os penetra, por assim dizer, e lhes possui por inteiro. É o sentimento do amor de nós mesmos... A sensibilidade física é em nós o que é o movimento primitivo impresso na matéria e que bem cedo perde a sua uniformidade para dar nascimento à variedade das mais belas combinações entre os corpos. É sobre regras quase todas semelhantes que a Divindade construiu e governa o mundo moral". (Código da Natureza, pp. 128, 129 e 157).
"Nossos órgãos são suscetíveis de um sentimento ou de uma modificação que nos agrada e nos faz amar a vida. Se a impressão desse sentimento é pequena é o prazer, se longa é a volúpia, se permanente é a felicidade. É sempre a mesma sensação que difere apenas pela sua duração e vivacidade. Eu acrescento esta palavra, porque não há um bem supremo com mais encanto que o prazer do amor: Quanto mais esse sentimento é durável, delicioso, lisonjeiro, ininterrupto e imperturbável, mais se é feliz. Quanto mais é curto e vivo mais ele tem da natureza do prazer e quanto mais é longo e tranquilo mais se afasta e se aproxima da felicidade... ter tudo o que se deseja. Uma feliz organização, beleza, espírito, graças, talentos, honras, riquezas, saúde, prazer e glória. Tal é a felicidade real e perfeita". La Metrie, (Anti Sêneca ou Discurso sobre a Felicidade, p. 7).
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"Nós não dispomos sobre o que nos governa. Não comandamos as nossas sensações. Reconhecendo seu império e a nossa sujeição, procuramos torná-las agradáveis a nós, persuadidos que é nisto que consiste a felicidade da vida. E enfim, nós nos acreditaremos igualmente mais felizes, que seremos mais homens ou mais dignos de o ser, que nós sentiremos a natureza, a humanidade e todas as virtudes sociais. E não admitiremos outras virtudes, nem outra vida que esta aí". (ibid, pp. 5, 6).
"Se diz com razão que um homem que despreza a vida pode destruir o que bom lhe parece. É o mesmo caso do homem que despreza seu o amor próprio. Adeus a todas as virtudes se vier a este ponto de indolência, a fonte secará necessariamente. O amor próprio pode apenas conservar o gosto que fez nascer. Sua falta é muito mais temível que o seu excesso... o bem estar é o próprio motivo da maldade. Ele conduz tanto o pérfido, o tirano e o assassino quanto o homem da sociedade... é então evidente, que em relação à felicidade o bem e o mal são indiferentes e que aquele que tiver uma grande satisfação fazendo o mal, será mais feliz do que aquele que tiver menos satisfação de fazer o bem. Isto explica porque tantos velhacos são felizes neste mundo e faz ver que é uma felicidade particular e individual que se obtêm sem virtude e no próprio crime... (tal) deve ser a origem das deferências, das indulgências, das desculpas, dos perdões, das graças, dos elogios, da moderação nos suplícios que se ordena com pesar e das recompensas devidas à virtude e que não se saberá conceder com a melhor das vontades". (Anti Sêneca, depois da p. 50 até a p. 56).
"Vejamos em que consiste a famosa disputa que reina na moral entre os filósofos e os que não o são. Coisa surpreendente! Se trata só de uma simples distinção, distinção sólida, quase escolástica. Só ela, acreditava-se, pode por fim a essas espécies de guerra civil e reconciliar todos os nossos inimigos. Eu me explico: não há nada de absolutamente justo, de injusto, nenhuma equidade real, vícios, grandeza, e crimes absolutos. Políticos protestantes, concedeis esta verdade aos filósofos e não vos deixeis ficar em trincheiras onde sereis vergonhosamente derrotados. Concebeis de boa fé que isto é justo, que pesa a justiça ao peso da sociedade e os filósofos, a seu turno, concordarão, que na ocasião em que negaram isto, tal ação é relativamente justa ou injusta, honesta ou desonesta, viciosa ou virtuosa, louvável, infame, criminosa, etc. Que vocês discutam a necessidade de todas essas belas relações arbitrárias?... Sim, vocês têm razão magistrados, ministros e legisladores de excitar os homens por todos os meios possíveis, menos a fazer um bem de que vocês se inquietam talvez pouco do que concorrer ao favorecimento da sociedade que é vosso ponto capital, porque vocês aí encontram o vosso interesse". La Metrie, (Discurso Preliminar, pp. 31, 32).
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"Porque nós sabemos não duvidar... que o que tem de legal não supõe
absolutamente nenhuma equidade, a qual só é reconhecível pelo caráter que eu disse, eu quero dizer o interesse da sociedade. Eis então finalmente as trevas da Jurisprudência e os caminhos cobertos da política iluminados pela chama da filosofia. Assim todas as disputas inúteis sobre o bem e o mau moral terão terminado". (ibid, p. 59).
"Porque a moral tira sua origem da política, como as leis dos carrascos. Segue disto que ela não é um trabalho da natureza, nem por consequência da filosofia ou da razão. Todos termos sinônimos". (ibid, p. 6).
Os vícios dos particulares trabalhados com destreza por hábeis políticos podem ser transformados em vantagens do bem público.
Será absolutamente impossível tornar uma nação populosa, rica e florescente, se não se banir o que nós chamamos de mal, seja físico ou moral.
Uma nação sóbria e temperante será pobre, ignorante e sem vícios consideráveis, mas também sem virtudes.
Jamais o homem se anima com tanto ardor do que quando é excitado pelos desejos. Sua excelência e capacidade permanecem escondidas se nenhum motivo considerável não as acorde. Sem a influência das paixões a nossa máquina é semelhante a um grande moinho numa calmaria.
A felicidade de uma nação consiste na opulência, no poder, na glória e no esplendor... Ora, a virtude, a probidade, a frugalidade, a moderação e a modéstia não produzirão esses efeitos. Mas bem! a prodigalidade, a avareza, a inveja, a ambição, a vaidade, o orgulho e outros vícios temperados uns pelos outros.
O orgulho e a vaidade construíram mais hospitais que todas as virtudes juntas.
Se as mulheres forem modestas, razoáveis e obedientes aos seus maridos, em uma palavra, se elas tiverem todas as virtudes, não contribuirão a milésima parte para tornar um reino opulento, poderoso e florescente do que elas contribuem com as qualidades que as desonram.
A obra prima do legislador tem sido a de ensinar os homens a combater seus apetites e de lhes persuadir que melhor convêm ter consideração pelo interesse público do que se limitar ao seu próprio interesse particular.
O gênero humano concordou em dar o nome de vício a toda ação que o homem cometa para satisfazer alguns de seus apetites, sem respeito ao interesse público e o nome de virtude a todas as ações que, sendo contrárias aos movimentos da natureza, tendem a causar vantagens ao próximo.
Quanto mais examinarmos de perto a natureza do homem, mais nos convenceremos que as virtudes morais são produções políticas e que a lisonja gera o orgulho,
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O 'pulchrum' e o 'honestium' mudam como as modas. É o mal, seja moral, seja físico que é o fundamento de todas as sociedades. "Para vigiar a nossa própria conservação, o Autor da natureza nos fez
nascer com o amor de nós mesmos acima de todas as coisas". (Fábula das Abelhas, primeiro vôo).
"É o cúmulo de a tolice propor a ruína das paixões". (Pensamentos filosóficos, p. 6, pensamento 6º).
"De ordinário, os moralistas invectivam contra as paixões e não se cansam de elogiar a razão. Não temerei de antecipar que, ao contrário, são as paixões que são inocentes e a nossa razão culpada. (Os Costumes, p. 75, I parte).
"Olhar-se-á como uma aflição incômoda essa aflição insuperável que arrasta um sexo para o outro... consentir a satisfazer a necessidade é o único meio razoável para se livrar de sua importunidade". (Os Costumes, p. 65, I parte).
"Se o acaso quis que o (filósofo) fosse tão bem organizado quanto possa a sociedade e que todo homem razoável deve desejar, o filósofo desejará e mesmo se deleitará, mas sem presunção e vaidade. Pelo contrário, como ele não se fez a si próprio, se as peças da sua máquina trabalham mal, ele ficará marcado, embaraçado na qualidade de cidadão. Como filósofo, ele se achará como não responsável. Bem esclarecido para se considerar culpável por pensamentos e ações que nascem e existem malgrado ele, suspirando sobre a funesta condição do homem, ele não se deixará corroer por esses remorsos torturantes... Nós não somos mais criminosos seguindo a impressão dos movimentos primitivos que nos governam que o Rio Nilo o é pelas suas inundações e o mar pelos seus estragos". (La Metrie, Sistema de Epicuro, art. 47 e 48).
"A continência, embora voluntária, não é estimável por ela mesma. Ela não surge a menos que convenha acidentalmente à prática de algumas virtudes ou à execução de alguns propósitos generosos. Fora desses casos ela merece com frequência mais censura do que elogios". (Os Costumes, p. 303, II parte).
"Que fazer para ser feliz! Ser mau se tiver espírito, alma, coração e inclinações para a maldade. Ser bom se tiver uma alma, coração e inclinações para a bondade e morrer como se tem vivido... Será em vão dizer aos carneiros para comportarem-se como os lobos, eles serão sempre carneiros. E aos lobos de serem doces como as ovelhas, eles permanecerão sempre como lobos". (Os Caracteres, I parte, pp. 132, 133).
"As leis (estabelecidas contra aqueles que se suicidam) são bem injustas. Quando eu estiver acabrunhado de dor, de misérias e de desprezo, porque querer me impedir de colocar fim às minhas penas e me privar cruelmente de um remédio que está em minhas mãos"... (Cartas persas, carta 74, edição 1722).
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Querem me condenar a receber odiosas graças que me oprimem (em separando a minha alma do meu corpo). Perturbo eu a ordem da Providência quando altero as modificações da matéria e porque deixo quadrada uma bola que as primeiras leis do movimento... fizeram redonda? Não sem dúvida. ; Faço apenas uso de um direito que me foi dado... sem que se possa dizer que me oponho à Providência.
"Quando minha alma for separada do meu corpo (pelo suicídio) haverá menos ordem e arranjo no universo? Todas essas ideias não têm outra origem que o nosso orgulho... nós imaginamos que a anulação de um ser tão perfeito como nós degradará toda a natureza". (ibid, carta 74).
Esta ação (o suicídio) entre os romanos era efeito da educação e tinha a ver com a maneira deles pensarem e com seus costumes. Entre os ingleses ela é efeito de uma doença e tem a ver com o estado físico da máquina independentemente de qualquer outra causa.
"É claro que as leis civis de qualquer país podem ter razões para desestimular o homicídio de si mesmo. Mas na Inglaterra não se pode mais punir, como não se pune os efeitos da demência". (O Espírito das Leis, tomo II, livro 14, cap. 11).
DA RELIGIÃO.
"A religião poderia ter falado a linguagem da razão. Nicele, esta bela pluma
do século passado que a tem tão bem imitada, a fez falar". (La Metrie, Discurso Preliminar de suas Obras, p. 59).
"O apego mal entendido ao culto exterior no qual ele foi educado é uma fonte de ódio entre aqueles que professam diferentes... Cobre-se com o nome de zelo o que é apenas apego à sua própria opinião, cega obstinação, fanatismo e barbárie". (Os Costumes, III parte, p. 444).
"O espírito de intolerância é um espírito de desvario, de que os progressos não podem ser olhados como um eclipse total da razão humana". (Cartas Persas, carta 73).
"Juliano Apóstata valia menos que um cristão? Ele era ao menos um grande homem e o melhor dos príncipes... Crer em um Deus acreditando em vários, olhar a natureza como uma causa cega e inexplicável de todos os fenômenos ou ser seduzido pela ordem maravilhosa que eles nos oferecem, reconhecer uma inteligência suprema mais incompreensível ainda que a natureza... Eis o campo onde os filósofos têm feito a guerra entre eles depois que conheceram a arte de raciocinar. E esta guerra durará tanto quanto esta rainha dos homens, a opinião, que reinará sobre a terra. Eis o campo onde cada um pode ainda hoje em dia se bater e seguir entre tantos estandartes aquele que rirá mais de sua sorte ou dos seus preconceitos, sem que não se tenha nada a temer de tantas frívolas e vãs escaramuças; mas é o que pode
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compreender desses espíritos que não vêem mais longe do que seus próprios olhos". (La Metrie, Discurso preliminar, pp. 26, 27).
DO GOVERNO
"Magistrados, grandes de uma república, monarcas: que sois no Direito natural em relação dos povos que governais? Simples ministros delegados para cuidar de felicidade deles, destituídos de todo emprego e os mais vis membros desse corpo, visto que executais mal a vossa comissão... Uma nação que coloca um desses cidadãos à frente, não está ela no direito de lhe dizer... se nós achamos de nossa utilidade vos prorrogar no governo; se nós julgamos que qualquer um de vós seja capaz, depois de vós, nós podemos agir em consequência, por uma escolha livre e independente de toda pretensão. E eu pergunto qual capitulação, qual título, qual direito de antiga possessão pode prescrever contra a verdade desta carta divina, pode livrar os soberanos?... Que se julgue por essa exposição a forma ordinária dos governos". (Código da Natureza, pp. 117, 120, 121).
"Toda autoridade surge de outra origem que da natureza. Que se examine bem e se verá que ela sempre remonta a uma dessas duas origens: ou à força e à violência daquele que se apoderou ou do consentimento daqueles que aí estão submissos por um contrato feito ou suposto entre eles e aquele a quem eles deferiram a autoridade... O poder que vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que produzam o seu uso legítimo, útil à sociedade, vantajoso para a república e que a fixem e a coloquem dentro de limites... O verdadeiro e legítimo poder tem necessariamente limites... Enoque e Elias que resistirão (ao Anti-Cristo) não serão nem homens rebeldes e nem sediciosos... mas homens razoáveis, firmes e piedosos, que saberão que todo poder cessa de ser a partir do momento que sai dos limites que a razão prescreveu e que ele se afasta das regras que o Soberano dos príncipes e dos súditos tem estabelecido. Homens, enfim, que pensarão como São Paulo, que todo poder só é de Deus enquanto for justo regrado. O príncipe tem de seus súditos a autoridade que ele tem sobre eles e esta autoridade é limitada pelas leis da natureza e do estado. As leis da natureza e do estado são as condições sob as quais eles estão submissos". (Dicionário Enciclopédico, artigo Autoridade).
"Ninguém promete sem fraudes renunciar ao direito que tem sobre todas as coisas e ninguém garantirá efetivamente sua promessa se não for incitado pelo medo de um grande mal ou pela esperança de um bem maior... Nenhuma convenção é válida a menos que ela seja útil, sem esta circunstância todo contrato é por defeito nulo. Por consequência, não se deve exigir das pessoas uma fé inviolável a menos que se faça introduzir que o infrator não sofra novamente mais prejuízo
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do que lucro". Espinosa (Tratado Teológico-político, cap. 10).
"Um prudente e avisado Senhor não pode e nem deve guardar tão estritamente sua fé, quando tal observância lhe é prejudicial e que as ocasiões e necessidades que lhe a fizeram prometer são já passadas e extintas, porque se todos os homens são bons, este preceito então é censurável. Mas, visto sua ordinária maldade e que eles próprios não a guardarão, você também não estará obrigado a observá-la e não é preciso ter medo que um príncipe não ache sempre razão suficiente para tolerar esta infração de fé. Podem-se trazer infinitos exemplos a esse propósito. Quanta paz, tréguas e promessas foram rompidas pela infidelidade dos príncipes e aquele que melhor fez a raposa é o que melhor executa seus trabalhos, se tem ele, todas às vezes a necessidade de disfarçar bem esta natureza e usar de grande fingimento e dissimulação". (Maquiavel, O Príncipe, ed. in-4º, de 1634, cap. 18, pp. 64, 65).
"Que mal? Eu pergunto aos grandes inimigos da liberdade de pensamento e de escrever, haverá de consentir com o que parece verdadeiro quando se reconhece com a mesma inocência e se prossegue com a mesma fidelidade o que parece sábio e útil... Não se pode tentar explicar e adivinhar o enigma do homem? Nesse caso, quanto mais for filósofo aquele que nunca pensou, mais será um mau cidadão. Enfim, que funesto presente será a verdade se ela não é sempre boa. Isto é: que apanágio supérfluo será a razão se ela foi feita para ser cativa e subordinada? Sustentar esse sistema é querer corromper e degradar a espécie humana... mas escrever sobre Filosofia é ensinar o materialismo? Ei bem! Que mal?". (La Metrie, Discurso Preliminar, p. 17 e seguintes).
Nós não nos absteremos de indicar as outras fontes onde bebeu o autor que propomos censurar, por temor que os vapores envenenados dessas cloacas de impureza e de irreligião não se tornem funestas aos nossos leitores. Os espíritos são hoje em dia tão suscetíveis às más impressões, que se deve temer de lhes fornecer a menor ocasião de cair
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nas delícias da filosofia dos nossos dias.
À frente então, sectários vãos e orgulhosos de uma falsa filosofia, escravos abjetos de uma louca sabedoria da qual sois brinquedos, sucessivamente panegiristas exagerados e detratores injustos da razão. Vão! a simplicidade cristã não tem necessidade de vossas lições. Ela sabe sem vocês e melhor que vocês o que é bom, o que é santo, o que contribui à salvação das almas e à felicidade do gênero humano. Quando vocês nos falam de Deus, vocês o pintam como um ser ocioso e inútil que se pode se dispensar de procurar conhecer a existência e os atributos e que não tem nenhuma espécie de influência sobre a sociedade humana. Vocês desfiguram o homem e o distinguem das bestas apenas pelos aparelhos de seus órgãos exteriores. Vocês só conhecem por recompensa da virtude o gozo de prazeres vergonhosos que só, dizem vocês, podem vos consolar da infelicidade de existir. Enfim, vocês querem que os reis peguem ou larguem ao desejo do capricho de um povo cego e injusto os direitos do exercício da realeza.
O cristianismo resulta de outros princípios:
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princípios. Ele professa um Deus único dotado de todas as perfeições; um Deus bom, justo, cuja providência se estende sobre tudo e principalmente sobre as coisas humanas. Ele sabe que o gênero humano, inocente e puro ao sair das mãos de Deus, foi manchado pelo crime do primeiro homem e resgatado pelo sangue de Jesus Cristo e restituído à sua primeira destinação. Ele crê que a alma do homem é feita por Deus, que ela só pode ser saciada por Deus e que seu coração não encontra repouso a não ser que repouse em Deus. Enfim, o Cristianismo reconhece que o poder dos reis é uma emanação do poder do próprio Deus. Que é preciso obedecer aos reis para agradar a Deus e que se os resiste, o próprio Deus pune pessoalmente essa resistência.
Esses são os sentimentos de que um coração cristão se nutre. Ele os tem do próprio Deus que falou pelos profetas, pelo seu filho e pelos apóstolos. E não se o acusará de se entregar imprudentemente à fé que lhe persuade, a menos que se suponha que Deus pode enganar os homens ou que o universo inteiro pode ser seduzido por homens fracos e ignorantes, por simples pescadores que não têm outras armas que
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a paciência, outras riquezas que a pobreza e outro conselho que a simplicidade. Que anunciavam do verbo da vida apenas o que eles tinham entendido, o que haviam visto, o que haviam tocado com suas mãos e que selando com o próprio sangue a verdade que eles pregavam, convenceram os grandes e os pequenos, os sábios e os ignorantes e forçaram o gênero humano a renunciar a idolatria para crer em Jesus Cristo crucificado.
Mas os livros sagrados são bastante claros por eles mesmos para dissipar as nossas dúvidas e fixar a nossa crença? E se eles não são, qual será a luz que poderá nos esclarecer?
Jesus Cristo fundou sua igreja com a qual ele prometeu estar até a consumação dos séculos. Sempre se pode reconhecê-la pelas características que lhe são próprias e que a distinguem de todas as outras sociedades que possam ter algum traço de semelhança com ela. Pode-se a consultar porque ela está sempre presente. Ela tem seus pastores, ela tem seus mestres que Deus instituiu para trabalhar "na perfeição dos santos e nas
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funções do seu ministério... afim de que nós não sejamos como crianças, como pessoas inconstantes e que se deixam levar por todos os ventos das opiniões humanas, pela fraude dos homens e pela habilidade que eles têm de comprometer artificialmente no erro". É suficiente saber se ela falou porque quando ela já falou, as pesquisas são inúteis, a resistência uma loucura e uma única dúvida um crime.
.Que cessem então esses filósofos (porque eles amam quem os chama assim), esses filósofos saídos, não da academia de Platão, nem do pórtico de Zenão, mas do estábulo
13 de Epicuro! Que eles cessem de
nos reprovar a nossa cegueira no que concerne à natureza e à Divindade. Nós não temos outra doutrina que aquela dos nossos pais, aquela que eles mesmos professaram antes de renunciar ao seu batismo. Que cessem de nos fazer molesta demanda sobre uma religião, sobre princípios de costumes que um longo uso e um direito incontestável nos asseguram. Que eles cessem de abalar a fidelidade devida ao melhor dos reis, a que toda nação tem dado
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Esta expressão que parece forte é apenas justa porque esses autores se colocam eles mesmos ao nível das bestas.
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por acordo, o nome de 'Bem amado'. Que eles ponderem sobre eles mesmos, que examinem o que são, que direitos têm, que missão e, sobretudo, a que inimigo eles ousam declarar guerra.
É a esta igreja santa que Jesus Cristo fundou sobre a pedra, que sustentou tantos assaltos, a esta igreja que enfrentou tempestades mil vezes mais terríveis que esta e que, longe de diminuir a sua solidez, apenas a fez se afirmar ainda mais em seus fundamentos.
Não é só hoje em dia que ela tem servido de alvo aos tiros daqueles que o século chama de filósofos. Ela se viu em combate com esses mesmos inimigos logo que nasceu e estava encerrada em limites muitos estreitos. Quando foi entregue ao furor dos carrascos e se empregava o ferro e o fogo para destruí-la. Nesses momentos críticos ela repeliu os ataques dos sábios do paganismo, mas que sábios! Homens profundos em todas as ciências, armados da mais sutil dialética e da mais forte eloquência, sustentados pelo esforço unânime de todas as seitas conjuradas contra o cristianismo. O cisma tentou
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mil vezes lhe tomar de assalto suas milícias. A heresia frequentemente apoiada pela autoridade dos reis e dos imperadores quis arrombar seus redutos. O inferno armou contra ela todo seu furor. Durante todos os tempos nada de repouso, nada de trégua, mas sempre sustentada pela mão de Deus e, mais terrível que um exército colocado em ordem de batalha, ela viu seus inimigos fugirem como a mentira foge diante da verdade.
É todavia, esta mesma igreja que se apóia hoje em dia em tantos troféus, que está protegida por tantos reis, sobretudo pelo rei muito cristão e que é defendida até pelas leis civis, enfim, que está estabelecida nos costumes dos povos a dezoito séculos. É esta igreja que se encontra nos tempos presentes atacada pelas práticas secretas de um pequeno número de homens sem nome, a maior parte desprezível, mercenária e fazendo tráfico de sua impiedade, porque eles não têm outro recurso. A posteridade, sem dúvida, censurará o nosso século pela sua paciência excessiva e por sua fraqueza.
A maior parte desses homens não é desconhecida. A igreja os admite ainda, embora com desgosto, em seu seio como insetos venenosos. O Estado lhes deixa ainda dentro da sociedade, entretanto,
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o soberano pontífice, o ilustre arcebispo desta capital, o rei e o parlamento acabam de lhes fazer sentir sua indignação e o que devem esperar se perseverarem em seus furores. Este aviso deve ser suficiente, se eles forem ainda capazes de reflexão, para se voltarem a si mesmos e para fazê-los renunciar ao projeto que formaram de perverter os espíritos e corromper os corações. Que eles temam sobretudo, que não se lhes obsequiem de compor esta república de que eles amam traçar o plano, onde tais homens ocupados unicamente do interesse pessoal, sem leis, sem religião e sem freio para deter o fogo das paixões, se destruiriam uns aos outros, os mais fortes usando espadas e os mais fracos se servindo de venenos e por esse modo livrariam a terra de uma raça inumana que a desonra.
Para nós, encarregados que somos pelo Senhor de guardar seu campo e vigiar sob armas, para estar sempre prestes ao combate, é nosso dever de nos opor às empreitadas do inimigo e deter, assim também se ele estiver no meio de nós, os seus progressos.
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É por esta razão que nós escolhemos o livro 'Do Espírito' como
reunindo todas as espécies de venenos que se encontram espalhados em diferentes livros modernos. Extraímos certo número de proposições que assinalamos como a Faculdade tem costume de fazer, mas com as qualificações extraordinárias que a natureza dos erros tem exigido de nós.
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... o homem de toda liberdade de suas deliberações. Elas submetem todos os julgamentos humanos a uma fatal necessidade. Supõem que o homem não tem e não pode ter nenhum conhecimento de Deus e das coisas espirituais, porque esses objetos não lhes são evidentes. Destroem toda regra comum da verdade, regra que não pode ser a sensação, a qual varia de acordo as disposições diferentes do sujeito que ela afeta, é sempre determinada a um objeto particular e deve ser submissa ao tribunal da razão que pode decidir sozinha a verdade da sua relação. Elas destroem, por consequência, os fundamentos de toda verdadeira ciência. Elas contêm enfim o veneno do materialismo e conduzem ao ateísmo.
VI
Essas faculdades (a sensibilidade física e a memória), que considero como as causas produtoras dos nossos pensamentos e que nos são comuns com os animais, nos ocasionarão, no entanto, apenas um número muito pequeno de ideias se elas não estivessem juntas em nós por certa organização externa. Se a natureza em lugar de mãos e de dedos flexíveis tivesse terminado os nossos punhos por patas de cavalo, quem duvida que os homens... não estivessem ainda vagando pelas florestas como rebanhos fugitivos. (Disc. I, cap. I, p. 1)
VII Sem uma correta organização exterior, a sensibilidade e a
memória seriam apenas faculdades estéreis em nós. (Disc. I, cap. I, p. 4).
VIII
Tem-se escrito muito sobre a alma das bestas. Foi-lhes alternadamente retirada e dada a faculdade de pensar e talvez não se tenha procurado suficientemente e escrupulosamente, nas diferenças físicas do homem e do animal, a causa da inferioridade daquilo que se chama a alma dos animais. (Disc. I, cap. I, p. 2, nota a).
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IX
É combinando todas as diferenças da parte física do homem e das bestas que se pode explicar porque a sensibilidade e a memória, faculdades comuns nos homens e animais, são por assim dizer nos últimos, apenas faculdades estéreis. (Disc. I, cap. I, p. 3, nota).
CENSURA
Essas proposições onde se assegura "que a sensibilidade física e a memória são igualmente comuns ao homem e aos animais, que não há outra causa da inferioridade daquilo que se chama de alma das bestas e que a superioridade do homem sobre a besta, que a diferença exterior dos órgãos, de maneira que esta única diferença de organização exterior torna essas faculdades menos estéreis nos homens que nos animais".
Essas proposições são falsas e temerárias. Elas ultrajam a humanidade. Elas aviltam a dignidade da alma criada à imagem de Deus e tendem a destruir a fé na sua imortalidade. Elas cheiram a materialismo.
X
No transcorrer do tempo tem-se volta e meio sustentado que a matéria sentia ou não sentia... Só se tratava de saber se a extensão, a solidez e a impenetrabilidade eram as únicas propriedades comuns a todos os corpos. E se a descoberta de uma força, como por exemplo, a da atração, não poderia provocar a suspeita de que os corpos tivessem ainda outras propriedades desconhecidas, tal como a faculdade de sentir que, se manifestando apenas nos
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corpos organizados dos animais, poderia ser, entretanto, comum a todos os indivíduos. Com a questão reduzida a esse ponto sentiu-se então que se é a rigor, impossível de demonstrar que todos os corpos sejam absolutamente insensíveis. Todo homem que não esteja sobre esse assunto esclarecido pela revelação, só pode decidir a questão calculando e comparando a probabilidade desta opinião com a probabilidade da opinião contrária. (Disc. I, cap. 4, pp. 31, 32).
CENSURA Esta proposição onde ele diz "Que não se pode demonstrar que a
faculdade de sentir não é uma propriedade comum a todos os corpos, embora ela só se manifeste nos corpos organizados dos animais. Que a descoberta de uma força como a da atração pode nos fazer suspeitar que os corpos tenham ainda outras propriedades desconhecidas como a faculdade de sentir. E por consequência, que só se pode decidir esta questão calculando e comparando a probabilidade desta opinião com a probabilidade da opinião contrária".
Esta proposição é falsa e contrária à razão. Ela revela a temeridade e a má fé do autor que, para destruir a religião, abusa da filosofia de Newton contra a intenção expressa desse filósofo e de seus discípulos mais célebres. E relacionada com as precedentes já condenadas, apresenta aos leitores um sistema completo de materialismo igualmente funesto à religião e à sociedade.
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XI Talvez alguém me pergunte se essas duas faculdades (a
sensibilidade física e a memória) são modificações de uma substância espiritual ou material... O que eu tenho a dizer do espírito concorda bem com uma e outra dessas hipóteses. Observarei somente a esse respeito que, se a igreja não tivesse fixado nossa crença nesse ponto e se alguém tivesse que, somente através das luzes da razão, se elevar até o conhecimento do princípio pensante, não se poderia deixar de concordar que nenhuma opinião desse gênero é suscetível de demonstração. Que se devem ponderar as razões a favor e contra, examinar as dificuldades e se determinar em favor do maior número de verossimilhanças. E por consequência, apoiar-se apenas em julgamentos provisórios. E se fará desse problema, como de uma infinidade de outros que só se pode resolver com a ajuda do cálculo das probabilidades. (Disc. I, cap. I, pp. 4, 5).
XII
Por mais arrojado estóico que fosse, Sêneca não estava
totalmente seguro da espiritualidade da alma. "Vossa carta, escreveu ele a um de seus amigos, chegou fora de propósito: Logo que a recebi eu caminhava deliciosamente no palácio da esperança. Estava seguro da imortalidade da minha alma. Minha imaginação, docemente aquecida pelos discursos de alguns grandes homens, já não duvidava mais desta imortalidade que eles prometem, mas não provam. Já começava a me desagradar de mim mesmo, desprezar os restos de uma vida infeliz e me comunicava com as delícias das portas da eternidade. Vossa carta chega. Eu acordo e de um sonho tão agradável me resta o desgosto de reconhecer que era um sonho. (ibid, pp. 4, 5, nota d).
XIII
Uma prova, diz o senhor Deflandes na sua 'História Crítica da
Filosofia', que antigamente não se acreditava na imortalidade e na imaterialidade da alma é que, no tempo de Nero, queixavam-se em Roma que a doutrina do outro mundo, introduzida recentemente, desanimava a
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coragem dos soldados os tornando mais tímidos, eliminava a principal consolação dos infelizes e dobrava enfim a morte com a ameaça de novos sofrimentos após esta vida.(ibid, mesma nota, p. 5).
CENSURA
Essas proposições no que respeita a "representam a espiritualidade da alma como uma opinião problemática para qualquer um que a julgue apenas pelas luzes da razão e que elas enunciam que os princípios do autor sobre o espírito concordam igualmente bem com as duas hipóteses da alma espiritual ou material".
Essas proposições são falsas, contrárias às luzes evidentes da razão e degradam a natureza humana.
E no que respeita ao autor nessas mesmas proposições, após acobertar-se com máscara de católico, "apresenta o sentimento de imortalidade da alma como uma opinião duvidosa e insinua sob um nome estrangeiro que esta imortalidade é apenas um sonho. Que antes do surgimento da religião cristã, esta crença não tinha partidários no império romano. Que o dogma de uma vida futura recentemente introduzida foi considerado, sob o reinado de Nero, contrária aos interesses da república".
Essas proposições contêm uma doutrina, falsa e escandalosa, que contradiz a crença universal de todos os tempos e lugares e oposta aos sentimentos dos filósofos mais célebres da antiguidade pagã. Doutrina que tira da virtude seus motivos
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mais fortes e afrouxa a rédea a todos os vícios. Que é igualmente injuriosa à sabedoria, à bondade e à justiça de Deus. Que destrói os princípios da religião natural. E que só foi imaginada para tornar odiosa a religião cristã. A respeito do que o autor progride com o nome de Sêneca e do que ele atribui ao povo romano. Só se vê imputações falsas e de má fé, ou ao menos, grossa ignorância da história romana e um engano no sentido que ele dá à passagem da carta do filósofo citado com complacência
14.
XIV
O que será... a liberdade? Pode-se entender por este termo apenas a faculdade livre de querer ou de não querer uma coisa. Mas essa faculdade iria supor que aí pode haver vontades sem motivos e, por consequência, efeitos sem causa. Pelo menos (dirá alguém), somos livres sobre a escolha dos meios que empregamos para nos tornarmos felizes? Sim, responderei, mas livre é então apenas sinônimo de esclarecido... São necessários que todos os nossos pensamentos e vontades sejam efeitos imediatos ou de consequências necessárias das impressões que nós recebemos. Não se pode então formar ideia alguma desta palavra "liberdade' aplicada à vontade. É necessário considerá-la como
14
Quando o dia vier em que será separado o humano do divino, eu deixarei esse corpo onde tenho estado e me entregarei aos Deuses. Não é que eu esteja atualmente sem eles. Estou no momento retido por uma massa pesada e terrestre. A estadia que se faz nesta vida mortal é apenas uma preparação a uma melhor e mais longa vida... Esse dia que vocês temem como se fosse o último da vossa vida é aquele do vosso nascimento para a eternidade. (Tradução de Sêneca por Duryer).
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um mistério. Exclamar como São Paulo 'O altitudo!' E concordar que só a Teologia pode discorrer sobre tal matéria e que um tratado filosófico da liberdade será um tratado apenas de efeitos sem causas. (Disc. I, cap. 4, pp. 36 a 38).
XV Há ainda pessoas que olham a suspensão do espírito como prova
da liberdade. Eles percebem apenas que a suspensão é tão necessária quanto a precipitação nos julgamentos. Quando, por faltar exame ficou-se exposto a alguma desgraça, o amor de si instruído pelo infortúnio, deve nos induzir à suspensão. A gente se engana semelhantemente com a palavra 'deliberação'. Nós acreditamos deliberar quando temos, por exemplo, que escolher entre dois prazeres mais ou menos iguais e quase em equilíbrio. Entretanto, não se faz mais que tomar por deliberação a lentidão com que, entre dois pesos quase iguais, o mais pesado arrasta um dos pratos da balança.
CENSURA
Essas proposições onde se sustenta "Que os homens não são livres nas escolhas dos meios que podem empregar para serem felizes e nem na suspensão dos julgamentos do espírito. Que quando se crê deliberar, não se faz mais que tomar por deliberação a lentidão com que, entre dois pesos quase iguais, o mais pesado arrasta um dos pratos da balança. Que todos os nossos pensamentos e todas as ações da nossa vontade são ou efeitos imediatos ou consequências necessárias das impressões involuntárias que recebemos. Que um tratado filosófico da liberdade será uma produção tão ridícula quanto um tratado
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de efeitos sem causa. Que é necessário considerar a liberdade como um mistério e exclamar como São Paulo 'O altitudo!' Que apenas a Teologia pode discorrer sobre semelhante matéria".
Essas proposições (heréticas nelas mesmas) repugnam o sentido íntimo que nós temos da nossa liberdade. São injuriosas aos filósofos, aos teólogos, à sagrada escritura e sobretudo, ao apóstolo São Paulo. Elas são ímpias. Reduzem a nada o mérito e o demérito das ações. Destroem toda a diferença entre os crimes, até entre os maiores e os males físicos que têm uma causa necessária. Estabelecem o fatalismo e destroem toda a legislação moral e por consequência, aquela de Deus, que supõe evidentemente uma verdadeira liberdade no homem. Elas não deixam nenhum lugar à manifestação da santidade da justiça divina. Minam e derrubam abertamente e de um único golpe, todos os princípios da moral cristã e da probidade natural.
SOBRE A MORAL I
Enquanto a Poesia, a Geometria, a Astronomia e geralmente todas as ciências tendem mais ou menos rapidamente à perfeição, a moral parece mal sair do berço. É que os homens, forçados a se reunirem em sociedade e de se darem leis e costumes, tiveram de fazer um sistema moral antes que a observação lhes tivesse levado à descoberta dos verdadeiros princípios. Feito o sistema, cessaram de observar. E assim nós apenas temos, por assim dizer, a moral da infância do mundo. (Disc. II, cap. II, 13, p. 222).
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II
Quais inimigos da humanidade, alguém dirá, se opõem ainda aos progressos da moral? Não são mais os reis, mas duas outras espécies de homens poderosos. Os primeiros são os fanáticos e eu não os confundo com os homens verdadeiramente piedosos. E esses aqui são o sustentáculo das máximas da religião. Aqueles são os destruidores... indiferentes às ações honestas, eles se julgam virtuosos, não sobre o que são, mas sobre o que crêem que são. A credulidade dos homens é, segundo eles, a única medida da sua probidade:... ambiciosos, hipócritas e discretos, eles sentem que para escravizar os povos, devem lhes cegar. Assim esses ímpios gritam sem cessar contra a impiedade e contra todo homem nascido para esclarecer as nações. Toda verdade nova lhes é suspeita. Parecem crianças que tudo assusta no escuro. A segunda espécie de homens poderosos que se opõem ao progresso da moral são os meios-políticos. Entre esses, há os que, naturalmente levados à verdade, só são inimigos das verdades novas porque são preguiçosos e querem se subtrair à fatiga da atenção necessária para examiná-las. Há outros animados de motivos perigosos e esses aqui são os que se devem temer mais. São homens cujo espírito é desprovido de talentos e a alma de virtudes, que, por serem grandes celerados, não lhes faltam coragem. Incapazes de novas e elevadas visões, esses últimos crêem que a sua consideração tem o respeito imbecil ou fingido que ostentam por todas as opiniões e erros recebidos. Furiosos contra todo homem que pode abalar o império, armam contra ele as paixões e até os preconceitos que desprezam e não cessam de assombrar os espíritos fracos com a palavra novidade... Querem que se tenham os povos prostrados diante dos preconceitos recebidos, como diante dos crocodilos sagrados de Mênfis. (Disc. II, cap. 23, pp. 223 a 226).
III
É suficiente para esse efeito (para aperfeiçoar a moral) levantar os obstáculos que colocam ao seu progresso essas duas
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espécies de homens que eu citei. O único modo de ter êxito é lhes desmascarando, de mostrar nos protetores da ignorância, os mais cruéis inimigos da humanidade. (Disc. II, cap. 24, p. 228).
IV
Se o exame das ideias corretas para tornar os homens virtuosos nos é interditado pelas duas espécies de homens poderosos acima citados, o único modo de apressar o progresso da moral será então, como eu já disse acima, fazer ver nesses protetores da estupidez os mais cruéis inimigos da humanidade e de arrancar-lhes o cetro da ignorância que eles têm e do qual se servem para comandar o povo embrutecido. (Disc. II, cap. 24, pp. 238, 239).
V
Porque os nomes de Descartes e de Newton são mais célebres que os de Nicole, de La Bruyere e de todos os moralistas que talvez, em seus trabalhos, tenham feito prova de igual espírito? É, responderei eu, que os grandes físicos têm, com suas descobertas, por vezes servidos o universo e que a maior parte dos moralistas não tem, até o presente, sido de algum socorro à humanidade... Para merecer a estima, os moralistas deviam empregar na pesquisa dos meios próprios à formação de homens bravos e virtuosos, o tempo e o espírito que eles perderam em compor suas máximas sobre a virtude. (Disc. II, cap. 22, pp. 219, 220).
VI
Eu penso que os princípios que estabeleço nesta matéria são conformes ao interesse geral e à experiência. É pelos fatos que eu remontei às causas. Creio que se deve tratar a moral como todas as outras ciências e fazer uma moral como uma física experimental. (Prefácio, pp. 1, 2). Em moral, assim como na física, é sempre sobre os fatos que é preciso estabelecer as opiniões. (Disc. III, cap. 51, p. 296).
VII
Maior conhecimento do mal deve dar aos moralistas maior habilidade para a cura. Eles poderão considerar a moral
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de um ponto de vista novo e, de uma ciência inútil, fazer uma ciência útil ao universo. (Disc. II, cap. 14, p. 154).
CENSURA
Essas proposições segundo as quais "a moral recebida por todos
os povos, quanto aos primeiros princípios, desde o começo do mundo até o presente dia e mesmo a moral divina que professam as nações cristãs, é apenas uma ciência frívola e inútil, estabelecida ao acaso pelos primeiros homens que se uniram em sociedade e se deram costumes morais antes que a observação lhes tivesse feito descobrir os verdadeiros princípios. De maneira que a moral é ainda mal saída do berço e nós temos apenas a moral informe da infância do mundo. Segundo o que, até o presente, os moralistas têm perdido tempo compondo máximas sobre a virtude e não têm sido de auxílio algum para a humanidade. Por isso é necessário introduzir uma nova moral, uma moral experimental fundada unicamente sobre fatos e deduzida das ações de homens corrompidos e entregues às suas paixões, como mostra os exemplos que o autor relata em seu livro. De acordo com o que, finalmente, aqueles que se opõem a esta nova moral e querem que se reprima a que lhes é contrário, e por consequência a moral cristã, devem ser difamados como ímpios, fanáticos, celerados e como os mais cruéis inimigos da humanidade, de protetores da estupidez, que têm o cetro da ignorância para comandar os povos embrutecidos".
Essas proposições são falsas e absurdas. Elas invertem a ordem
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das coisas ao fundar a regra dos costumes morais sobre as ações dos homens mesmo que corrompidos, no lugar de ações humanas que devem ser conformes regras de costumes. Degradam com impiedade a providência do Criador, no que respeita à suposição de que estiveram os primeiros homens abandonados a si próprios sem nenhuma lei. Insultam sem pudor os homens ilustres que em todos os séculos têm muito bem merecidos da humanidade, insultam mesmo todo o gênero humano. Ultrajam os ministros da igreja e os magistrados cristãos. São blasfematórias contra os profetas e os apóstolos e mesmo contra Jesus Cristo. Elas estão repletas de furor e despropósitos.
VIII
Parece que no universo moral como no universo físico Deus colocou apenas um só princípio em tudo o que tem sido. O que é e o que será é apenas um desenvolvimento necessário. Ele disse à matéria: Eu te favoreço com a força. Imediatamente os elementos, submetidos às leis do movimento, vagantes e desconsertados nos desertos dos espaços formaram mil reuniões monstruosas, produziram mil caos diversos até que finalmente, eles se colocaram em equilíbrio e na ordem física dentro da qual se supõe estar agora o universo arranjado. Parece que ele disse igualmente ao homem. Eu te favoreço com a sensibilidade. É por ela que, cego instrumento das minhas vontades e tu, incapaz de conhecer a profundeza de minhas intenções, deves sem saber, realizar todos os meus desígnios. Eu o coloco sobre a guarda do prazer e da dor. Um e outro vigiarão os teus pensamentos e ações e engendrarão as tuas paixões. Excitarão tuas aversões, amizades, carícias e furores. Alumiarão teus desejos, medos e esperanças. Revelarão a ti verdades e te mergulharão em erros. E após te haver feito conceber mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, te desvendarão
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um dia os princípios simples ao desenvolvimento dos quais estão presas a ordem e a felicidade do mundo moral. (Disc. III, cap. 3, p. 322).
CENSURA
Esta proposição onde é dito que "a suposta ordem em que o
universo físico esteja, após mil ligações extraordinárias dos elementos feitas pela força antecipadamente impressa na matéria; Que de igual modo no universo moral, parece que há apenas um princípio de tudo o que aí se faz, a saber, a sensibilidade física, por meio da qual o homem, cego instrumento da vontade de Deus, cumpre sem o saber, todos os seus desígnios; Que os homens colocados sob a guarda do prazer e da dor, após ter sido o joguete de mil paixões e mil furores e após ter criado mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, devem descobrir um dia os princípios simples ao cujo desenvolvimento estão ligadas a ordem e a felicidade do mundo moral":
Esta proposição é falsa e contrária à razão. Ela apresenta para a formação do mundo físico um sistema insensato que retira de Deus a especialidade na qual despedaça o melhor da sua sabedoria e só pode agradar aos ateus. Submete à necessidade e ao fatalismo o mundo moral e toda a sucessão das ações humanas e torna Deus manifestadamente o autor de todos os erros, crimes e furores dos homens. Ela rejeita, por consequência, com
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impiedade e blasfêmia a providência de Deus dentro da ordem moral e contém, quantos aos costumes, todo o veneno do Ateísmo.
Como esta proposição dá a entender que "do desenvolvimento dos princípios explicados no trabalho resultará a ordem e a felicidade do universo moral", ela mostra um orgulho inacreditável e a louca presunção do autor que se atreve a preferir suas ideias à sabedoria de todo o gênero humano e até mesmo à legislação divina.
IX
A dor e o prazer dos sentidos fazem os homens agirem e pensarem e são os únicos contrapesos que movem o mundo moral. (Disc. III, cap. 16, p. 366).
X Os homens por natureza, sendo apenas sensíveis aos prazeres
dos sentidos, têm por consequência, esses prazeres como o único objeto de seus desejos. (Disc. III, cap. 10, p. 326).
XI
É necessário... revelar às nações os verdadeiros princípios da
moral. Ensinar-lhes que insensivelmente arrastados em direção da felicidade aparente ou real, a dor e o prazer são os únicos motores do universo moral. E que o sentimento do amor de si é a única base em que podem ser colocados os fundamentos de uma moral útil. (Disc. II, cap. 14, p. 230).
XII É só à maneira diferente em que o interesse pessoal se modifica
que se devem seus vícios e suas virtudes. (Disc. II, cap. 5, p. 52). O vulgo limita comumente o significado dessa palavra 'interesse'
ao amor pelo dinheiro... eu tomo essa palavra num sentido mais extenso... eu a aplico geralmente a tudo o que pode nos proporcionar prazeres ou nos poupar de aflições. (Disc. II, cap. II, nota b, p. 46).
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XIII
Que outro motivo (que interesse pessoal) poderá determinar um
homem a agir generosamente? É-lhe tão impossível amar o bem pelo bem quanto amar o mal pelo mal. (Disc. II, cap. 5, p. 73).
XIV Os homens não são maus, mas submissos aos seus interesses. Os
gritos dos moralistas não mudarão certamente esse motivo do universo moral. Não é então da maldade dos homens que é necessário se lastimar. (Disc. II, cap. 5, nota a, p. 73).
CENSURA Essas proposições nas quais se assegura que "o prazer e a dor
dos sentidos são o princípio de todas as afecções e de todos os movimentos do espírito humano e são o único objeto dos desejos dos homens; Que essas duas impressões (o prazer e a dor dos sentidos) são igualmente a causa de todas as ações humanas, que não tem outro motivo que possa determinar os homens a ações generosas e que lhes é tão impossível amar o bem pelo bem quanto amar o mal pelo mal; Que os homens, seja o que for que façam, não são malvados, mas somente submissos aos seus interesses e que não é de sua maldade que é preciso se lastimar; Que o prazer e a dor dos sentidos são os únicos motores, os únicos contrapesos, os únicos motivos do universo moral; E que assim o sentimento do amor de si, isto é: da inclinação aos prazeres dos sentidos, é a única base sobre a qual se pode fundar uma moral útil":
Essas proposições são falsas.
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Elas extinguem o sentimento íntimo do bom e do honesto. Sufocam nos homens a benevolência mútua que a natureza lhes inspira e todas as afecções de bondade, reconhecimento, equidade, compaixão e de deferência, em uma palavra de humanidade que são neles os germes das virtudes morais e os laços de união e paz. Só lhes deixam por princípio de suas ações a cupidez, fonte de divisões e de todos os vícios. Elas destroem a vontade, esta faculdade a que compete moderar o apetite sensitivo e pela qual rebaixam o homem à condição das bestas, o homem nascido para Deus e capaz de bens espirituais. Destroem nos primeiros princípios, todos os deveres da sociedade civil e da religião.
XV
A virtude é apenas o desejo de felicidade dos homens... eu considero (a probidade) como a virtude colocada em ação. (Disc. II, cap. 13, pp. 140, 141).
Eu considerarei a probidade... relativamente a: 1º a um particular; 2º a uma pequena sociedade; 3º a uma nação; 4º aos diferentes séculos e aos diferentes países; 5º ao universo inteiro. E tomando sempre a experiência por guia nas minhas pesquisas, mostrarei que, sob cada um desses pontos de vista, o interesse é o único juiz da probidade. (Disc. II, cap. I, pp. 47, 48).
XVI Eu me acredito no direito de concluir que o interesse pessoal é
único e universal apreciador do mérito das ações dos homens. E que assim a probidade, em relação a um particular é... apenas o hábito das ações pessoalmente úteis a esse particular. (Disc. II, cap. I, p. 54).
XVII
A probidade (em relação a uma sociedade particular) é apenas o hábito maior ou menor de ações particularmente úteis a esta pequena sociedade. (Disc. II, cap. 5, p. 73).
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XVIII
Não é mais da probidade em relação a um particular ou a uma pequena sociedade, mas da verdadeira probidade, da probidade considerada em relação ao público, do que se trata... Esta espécie de probidade é a única que realmente merece e que obtêm geralmente o nome. (Disc. II, cap. II, p. 119).
XIX Que importa ao público a probidade de um particular? Esta
probidade não lhe é quase de nenhuma utilidade. (Disc. II, cap. 6, pp. 81, 82).
XX Em todos os séculos e países diversos a probidade apenas pode
ser o habito de ações úteis à sua nação. Por mais certa que seja essa proposição, para fazer sentir mais evidentemente a verdade, tentarei dar ideias claras e precisas da virtude... o bem público é o objeto da virtude... as ações que ela comanda são os meios de que ela se serve para cumprir seu objetivo. (E um pouco mais acima o autor disse se referindo às opiniões dos filósofos sobre a virtude). Eles teriam de sentir que os séculos devem necessariamente ocasionar no físico e na moral, revoluções que mudam a face dos impérios; Que, nas grandes perturbações, os interesses de um povo sofrem sempre grandes mudanças; E que as mesmas ações podem lhe ser úteis ou nocivas e por consequência ter, alternadamente, o nome de virtuosas ou de viciosas. (Disc. II, cap. 13, pp. 133, 134).
XXI A gente poderia se ouso dizer compor um catecismo da
probidade em que as máximas simples, verdadeiras e disponíveis a todos os espíritos, ensinariam as pessoas que a virtude, invariável no objetivo que se propõe, não está nos meios próprios a preencher esse objetivo. Que se deve, por consequência, olhar as ações como indiferentes nelas mesmas. Sentir que é à necessidade do Estado que deve determinar aquelas que são dignas de estima ou de desprezo. E sentir enfim que é ao legislador, pelo conhecimento que ele deve ter
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do interesse público em fixar o instante no qual cada ação cessa de ser virtuosa e torna-se viciosa. Esses princípios uma vez admitidos, com que facilidade o legislador apagará as luzes do fanatismo e da superstição, suprimirá os abusos e reformará os costumes bárbaros, que foram talvez úteis quando do seu estabelecimento e tornaram-se depois tão funestos ao universo? (Disc. II, cap. 17, p. 168).
XXII
Pode-se tornar apenas (os homens) virtuosos unindo o interesse pessoal ao interesse geral. Colocado esse princípio, fica evidente que a moral é apenas uma ciência frívola, se acaso não se confundir ela com a política e a legislação. (Disc. II, cap. 15, p. 161).
XXIII
Esta utilidade (pública) é o princípio de todas as virtudes humanas... é... a esse princípio que é necessário sacrificar todos os sentimentos, até mesmo o sentimento de humanidade... tudo se torna legítimo e até virtuoso para a salvação pública. (Disc. II, cap. 6, pp. 80, 81).
XXIV
Se existisse uma probidade em relação ao universo, esta probidade seria apenas o hábito das ações úteis a todas as nações. Porém não há ação que possa influir de imediato na felicidade ou infelicidade de todos os povos... não há portanto, probidade prática em relação ao universo. A respeito da probidade de intenção, que se reduz ao desejo constante e habitual da felicidade dos homens... eu digo que esta espécie de probidade é ainda, apenas uma quimera platoniana... de onde eu concluo que não pode haver a probidade prática e nem mesmo a probidade de intenção, em relação ao universo. (Disc. II, cap. 25, pp. 140, 141).
XXV De todos os interesses particulares se forma um interesse
comum que deve dar às diferentes ações os nomes de justas, permitidas e injustas, segundo elas sejam úteis, indiferentes ou nocivas às sociedades. Uma vez chegado a esta verdade, descubro facilmente a origem das
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virtudes humanas. Vejo que, sem a sensibilidade à dor e ao prazer físico, os homens, sem desejos, sem paixões e igualmente indiferentes a tudo, não teriam conhecido o interesse pessoal. Vejo também que sem o interesse pessoal, eles não teriam se congregado em sociedade, não teriam feito entre eles convenções e não teriam nenhum interesse geral. Por consequência, não haveria ações justas ou injustas. Vejo ainda que assim, a sensibilidade física e o interesse pessoal foram os autores de toda justiça. (Disc. III, cap. 4, p. 276).
CENSURA
Essas proposições em que se ensina que "o interesse pessoal, isto é, segundo o autor, tudo o que pode nos proporcionar prazeres dos sentidos ou nos subtrair aflições, é o único e universal apreciador do mérito das ações humanas; Que a probidade alheia, em relação a um particular, é apenas o hábito das ações pessoalmente úteis a esse particular; Que o mesmo acontece nas sociedades particulares e nas nações, que só chamam de probidade o hábito maior ou menor das ações que lhe são úteis; Que a probidade de um particular em relação a outro particular é apenas pouco ou mesmo nada interessante para o público; Que a probidade, em relação a uma nação é a única probidade verdadeira, a única virtude verdadeira, a única probidade que realmente é digna do nome e que geralmente o obtêm; Que esta verdade invariável no objetivo a que se propõem, a saber, a utilidade pública, não está nos meios próprios a atingir este
596
objetivo; Que assim, se tem de olhar as ações como indiferentes nelas mesmas, que elas tornam-se sucessivamente úteis ou nocivas segundo as diversas mudanças que acontecem nos estados e tomam, naturalmente e alternadamente o nome de virtuosas ou de viciosas; Que é ao legislador, pelo conhecimento que deve ter do interesse público, que cabe fixar o instante no qual cada ação cessa de ser virtuosa e torna-se viciosa; Que é evidente que a moral é apenas uma ciência frívola, se ela não for confundida com a política e a legislação; Que é preciso sacrificar (ao interesse público) todos os sentimentos, até mesmo o sentimento de humanidade; Que tudo se torna legítimo e mesmo virtuoso a este fim; Que não pode haver probidade em relação ao universo, porque não há ação que possa influir imediatamente na felicidade de todos os povos; Que se deve então reconhecer que é da sensibilidade física que nasce o interesse pessoal; Que na sequência, o interesse pessoal produz as sociedades políticas e as convenções; Que as sociedades políticas e as convenções levam ao nascimento do interesse comum ou nacional; E que se deve dar às diferentes ações os nomes de justas, permitidas e de injustas, segundo elas sejam úteis, indiferentes ou nocivas às sociedades, e dedutivamente, a sensibilidade física e o interesse pessoal são os autores de toda virtude e de toda justiça".
Essas proposições são falsas, absurdas e contrárias às mais nobres inclinações da alma e às claras noções do espírito. Elas destroem toda diferença entre o bem e o mau moral, diferença essa fundada na própria natureza das coisas e confirmada pela revelação divina. Retiram do homem todos os
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motivos repressivos que o senso moral, a razão e a religião lhe fornecem. Elas convidam-no a se entregar em segredo a toda sorte de perversidade, a cometer clandestinamente toda sorte de crimes e até a se utilizar abertamente, seja com violência, seja com artifícios, de ações as mais negras contra todo cidadão e até mesmo contra o Estado, todas as vezes que tiver esperança de um sucesso feliz e que acredite aos menos, poder escapar às penas estipuladas nas leis civis. São então, a todo respeito, perniciosas aos cidadãos e aos Estados. Elas destroem todo Direito natural e divino. E são ímpias, detestáveis blasfematórias.
XXVI
Toda a arte do legislador consiste... em forçar os homens, pelo sentimento de amor deles mesmos, a serem sempre justos uns em relação aos outros. Ora, para produzir semelhantes leis é necessário... com antecipação saber... que a sensibilidade física produziu em nós o amor do prazer e o ódio à dor. Que o prazer e a dor depositaram em seguida e fizeram despontar em todos os corações o germe do amor de si, cujo desenvolvimento deu nascimento às paixões, de onde saíram todos os vícios e todas as virtudes... A moral e a legislação que considero como um uma só ciência farão... apenas progressos insensíveis.
É só o tempo que poderá lembrar esses séculos felizes designados pelos nomes de Astreia ou de Rhéa que são apenas o engenhoso emblema da perfeição dessas duas ciências. (Disc. II, cap. 24, pp. 237 a 239).
XXVII
Não é... da maldade dos homens que é preciso se lastimar, mas da ignorância dos legisladores que tem sempre colocado o interesse particular em oposição ao interesse geral. Se os citas eram mais virtuosos que nós
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é porque sua legislação e seu gênero de vida lhes inspiraram mais probidade. (Disc. II, cap. 5, p. 73, nota a).
XXVIII
São somente as fortes paixões que fazem executar ações corajosas e conceber essas grandes ideias que fazem o assombro e a admiração de todos os séculos. (Disc. III, cap. 5, p. 196).
XXIX
Eu entendo por esta expressão 'paixão forte' uma paixão da qual o objeto seja tão necessário à nossa felicidade que a vida nos fica insuportável sem a posse deste objeto. Tal é a ideia que Omar formou das paixões quando disse: "Quem quer que tu sejas, que, apaixonado da liberdade, queres ser rico sem bens, poderoso sem súditos, vassalo sem senhor e ousar desprezar a morte, os reis tremerão diante de ti e apenas tu não temerás pessoa alguma". Essas são, com efeito, as únicas paixões que, possuídas a esse grau de força, podem executar as maiores ações e afrontar os perigos, a dor, a morte e até mesmo o céu. Dicearco, general de Felipe, levanta na presença de suas tropas dois altares, um à impiedade e o outro à injustiça, sacrifica e marcha contra os cíclades. (Disc. III, cap. 6, p. 298).
XXX
As penas e os prazeres dos sentidos podem nos inspirar toda espécie de paixões, de sentimentos e de virtudes... Que recurso mais possante para mover nossas almas? A Fenícia não tem... edificado altares para a beleza? Esses altares só puderam ser derrubados pela nossa religião. Que objeto (para quem não é esclarecido pelos raios da fé) é, com efeito, mais digno de nossa adoração... a fruição somente (dos prazeres do amor) pode nos fazer suportar com delícias o penoso fardo da vida e nos consolar da infelicidade de ser. (Disc. III, cap. 15, p. 364 a 366).
XXXI
O amor das mulheres é nas nações civilizadas, o recurso quase único que impele (e em nota relativa a esta proposição) o desejo vago de felicidade... reduz-se hoje em dia,
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como já tenho provado, aos prazeres dos sentidos... Ora, por meio desses prazeres, eu estou, sem dúvida, no direito de escolher aquele das mulheres, como o mais vivo e o mais forte de todos. Uma prova que, com efeito, são os prazeres dessa espécie que nos animam é que se é suscetível da aquisição de grandes talentos e capaz de resoluções desesperadas, necessárias para subir aos primeiros postos apenas durante a primeira juventude. (Disc. III, cap. 13, pp. 339, 340).
XXXII
Se o prazer do amor é para os homens o mais vivo dos prazeres, qual germe fecundo de coragem encerrado nesse prazer e qual ardor pela virtude não pode inspirar o desejo das mulheres?... a força da virtude é sempre proporcional ao grau de prazer que se lhe destina por recompensa. (Disc. III, cap. 15, pp. 363, 364).
XXXIII
Que se abra a História e se verá que em todos os países onde
certas virtudes eram encorajadas pela esperança de prazeres dos sentidos, essas virtudes eram as mais comuns e causaram a maior ostentação. Porque os cretenses, os beócios e em geral todos os povos mais favoráveis ao amor têm sido os mais corajosos?... é que os prazeres do amor, como observam Plutarco e Platão, são os mais apropriados para elevar a alma dos povos e a mais digna recompensa dos heróis e dos homens virtuosos... É também sobre isso que, segundo os costumes gregos, foi feito Platão dizer que o mais belo dever, ao se sobressair nos combates, é a recompensa do mais valente. (Disc. III, cap. 15, p. 361).
CENSURA
Essas proposições em que se assegura que "é das nossas paixões que saem todos os vícios e todas as virtudes; Que o desejo vago de felicidade se reduz sempre ao prazer dos sentidos; Que as únicas paixões fortes que enfrentam os perigos, a dor,
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a morte e mesmo o céu, fazem executar essas ações corajosas que são o assombro e a admiração de todos os séculos; Que entre todas as paixões o amor das mulheres é nas nações civilizadas o recurso quase único que as impele; Que uma prova de que, com efeito, são as paixões desta espécie que nos animam, é que só se é suscetível da aquisição de grandes talentos e capaz dessas resoluções desesperadas, necessárias algumas vezes para assumir os primeiros postos, na primeira juventude onde esta paixão predomina; Que só o gozo desses prazeres pode nos fazer suportar com prazer o difícil fardo da vida e nos consolar da infelicidade de ser; Que, para quem não é esclarecido pelos raios da fé, não há objeto mais digno da nossa admiração que a beleza; Que assim toda a arte de uma legislação perfeita consiste em encorajar os cidadãos a fazerem ações generosas, em lhes propondo por recompensa o gozo de volúpias corporais e sobretudo, os prazeres do amor, a força da virtude estando sempre em proporção ao grau do prazer dos sentidos à que se consigna por recompensa".
Essas proposições são falsas, insensatas, ímpias, obscenas e ditadas pelo furor da libertinagem. Elas degradam a razão, esta faculdade mais nobre da alma e lhe tira a autoridade para colocar em seu lugar, por um desarranjo monstruoso, o desejo desregrado dos prazeres mais brutais. O soberano bem da alma razoável, imortal e destinada ao gozo
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de Deus, elas estabelecem nas voluptuosidades frágeis e passageiras que desdenham e desprezam uma alma elevada, voluptuosidades que não são de nenhum socorro contra as enfermidades do corpo, os sofrimentos do espírito e os sonhos da fortuna; Elas apresentam a ideia de uma legislação infame, cheia de absurdos e contradições, nas quais os maiores homens, após serem consumados por longos trabalhos feitos pela pátria, não terão nenhuma recompensa a esperar, ou não se encontrará nenhum motivo pelo qual possa levar um cidadão a sacrificar sua vida pelo bom êxito público e onde se verá em cessar, ao intento das mesmas recompensas, se elevarem divergências no seio do Estado igualmente tão funestas à sociedade, que as paixões de cada pretendente serão mais fortes e ao mesmo tempo menos reprimidas. A lei natural, todas as leis divinas e humanas são aí calcadas aos pés e as expressões faltam para qualificá-las como merecem. Elas mostram qual é o caráter desses homens que rejeitam a religião e a que excessos odiosos são capazes de se ater nos sistemas que inventam contra ela.
XXXIV
Eu desejo que a razão nos dirija nas ações importantes da vida. Mas que se abandonem os detalhes a seus gostos e a suas paixões. (Disc. IV, cap. 15, p. 619).
XXXV
Nada mais perigoso num Estado do que esses moralistas declamadores enfáticos e sem espírito, que concentrados numa pequena esfera de ideias, repetem continuamente o que ouviram dizer a seus miolos, recomendam sem cessar a moderação dos desejos e querem exterminar as paixões em todos os corações. Eles não imaginam que seus preceitos,
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úteis a alguns particulares em determinadas circunstâncias, serão a ruína das nações que as adotarem. (Disc. II, cap. 16, p. 164).
XXXVI
De todos os dons que o céu pode derramar sobre uma nação, o
dom mais funesto será sem contradição a prudência, se o céu a tornar comum a todos os cidadãos. O que é, com efeito, o homem prudente? Aquele que conserva dos males afastados uma imagem bastante viva para que ela balance nele a preferência de um prazer que lhe será funesto... é... à imprudência e à loucura que o céu prende a conservação dos impérios e a duração do mundo. Parece então que ao menos na constituição atual da maior parte dos governos a prudência é desejável apenas em um muito pequeno número de cidadãos. Que a razão sinônima da palavra 'bom senso' e elogiada por tanta gente merece somente pouca estima. Que a sabedoria que se lhe supõe resulta da sua indolência e que sua infalibilidade aparente é com frequência apenas uma apatia. (Disc.IV, cap. II, pp. 582, 583).
XXXVIII
Quem sabe se o caráter formado e os hábitos fixados, cada um não se conduz o melhor possível mesmo quando parece o mais louco?... Quanta gente cuja felicidade está... ligada a paixões que devem lhes mergulhar em grandes infelicidades e que, entretanto, se ouso dizer, estavam loucos querendo ser mais sábios! Há inclusive homens e a experiência apenas demonstra bastante, que são tão desafortunadamente nascidos para serem felizes apenas com ações que os levam a pique... Em se abandonando ao seu caráter, se economiza ao menos os esforços inúteis que se fariam resistindo. (Disc. IV, cap. II, pp. 573, 574).
XXXVIII
O caráter uma vez formado (diria o ambicioso) é impossível de alterá-lo... Quaisquer razões que ele alegue o homem moderado lhe repetirá sempre: "Não é preciso ser ambicioso". Parece-me (diz o autor) ouvir um
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médico dizendo ao seu paciente: "Senhor, não tenha febre". (Disc. IV, cap. II, p. 571).
CENSURA
Essas proposições onde é dito "que se vê bem que a razão nos dirige nas ações importantes da vida, mas que é necessário abandonar os detalhes aos seus gostos e paixões; Que o preceito da moderação das paixões será a ruína dos Estados que a adotarem; Que de todos os bens que o céu pode derramar sobre uma nação, o dom, de todos o mais funesto será, sem contradição, a prudência, se o céu a tornar comum a todos os cidadãos; Que a razão, sinônimo da expressão 'bom senso' e a sabedoria que se lhe supõe, merecem apenas pouca estima; Que é à imprudência e à loucura que o céu une a conservação dos impérios e a duração do mundo. Que o caráter uma vez formado ao mal não pode se conformar ao bem e que, quando o homem moderado diz ao ambicioso "não é preciso ser ambicioso", é tão ridículo quanto quando um médico diz ao seu paciente, "Senhor, não tenha febre"; Que a felicidade de muita gente está ligada a paixões que lhes devem mergulhar em grandes desgraças, os quais, entretanto, estavam loucos para serem mais sábios; Que ocorre o mesmo com os homens tão desgraçadamente nascidos para só poderem ser felizes através de ações que os levam a naufrágio. E que se abandonando ao seu caráter, se economiza ao menos os esforços que se faz para resistir".
Essas proposições estão cheias de loucura e de impudência. Elas contêm não somente o fatalismo
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destrutivo de toda religião, segundo o próprio autor, como se verá mais adiante, mas anunciam ainda, abertamente, uma das mais perniciosas consequências. A saber, que é preciso se abandonar ao seu caráter por mais depravado que ele seja. Fazem a apologia de todos os crimes e de todos os celerados. São igualmente perniciosas à segurança dos particulares e à salvação do Estado. Elas são blasfematórias contra Deus, legislador e vingador de crimes. Elas devem ser detestadas por todo mundo pela execração que fazem do gênero humano.
XXXIX Eles devem (os moralistas) fazer sentir que o pudor é uma
invenção do amor e da volúpia refinada. (Disc. II, cap. 14, p. 159).
XL Não há nação que não conheça e não confunda duas diferentes
espécies de virtude. Uma que chamarei de 'virtude de preconceito' e a outra de 'verdadeira virtude'... (Disc. II, cap. 15, p. 141). Em consequência dessas duas espécies de virtude, eu distinguirei duas diferentes espécies de corrupção dos costumes. Uma eu chamarei de 'corrupção religiosa' e a outra de 'corrupção política'. Mas antes de entrar neste exame declaro que é na qualidade de filósofo e não de teólogo que escrevo. E que assim pretendo apenas, nesse capítulo e nos seguintes, tratar das virtudes puramente humanas. Este aviso dado, eu entro na matéria e digo que, em matéria de costumes, dá-se o nome de corrupção religiosa a toda espécie de libertinagem e principalmente àquela dos homens com as mulheres. Esta espécie de corrupção da qual eu não sou apologista e que é sem dúvida criminosa porque ofende a Deus, não é, entretanto, incompatível com a felicidade de uma nação... (Disc. II, cap. 14, p. 146). Quantos males, dir-se-á, ligados a esta espécie de corrupção! Mas apenas se poderá responder que a libertinagem só é politicamente perigosa a um Estado
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quando ela está em oposição com as leis do país ou quando ela se encontra unida a qualquer outro vício de governo. (ibid. p. 150).
XLI
Nenhuma proporção entre as vantagens que o comércio e o luxo proporcionam ao Estado constituído como ele é (vantagens que são necessárias renunciar para banir a libertinagem) e o mal infinitamente pequeno que ocasiona o amor das mulheres. É de se lastimar encontrar em uma mina rica algumas palhetas de cobre misturadas ao ouro... Com efeito, que se examine politicamente a conduta das mulheres galantes. Ver-se-á que, censuráveis em determinados aspectos, elas são, em outros, muito úteis ao público. Que elas fazem, por exemplo, de suas riquezas um emprego comumente mais vantajoso ao Estado que as mulheres mais sensatas. O desejo de agradar que conduz a mulher galante até Rubanier, até o negociante de tecidos ou de modas, lhe faz não somente arrancar uma infinidade de trabalhadores da indigência, onde os reduziria a prática de leis suntuárias, mas lhe inspira ainda atos de uma caridade mais esclarecida. Na suposição de que o luxo seja útil a uma nação, não são as mulheres galantes que movem a indústria dos artífices do luxo, os tornando dia a dia mais úteis ao Estado? As mulheres ponderadas, em fazendo liberalidades a mendigos ou a malandros, são então bem menos aconselhadas pelos seus diretores (espirituais) que as mulheres galantes pelo seu desejo de agradar. Essas aqui alimentam cidadãos úteis e aquelas lá homens inúteis ou até mesmo inimigos desta nação. (Disc. II, cap. 15, pp. 157, 158).
XLII
Diferentes povos acreditaram e acreditam ainda que esta espécie de corrupção (a libertinagem dos homens com as mulheres) não é criminosa. Ela é sem dúvida na França porque ofende as leis do país, mas ela o seria menos se as mulheres fossem comuns e as crianças declaradas filhas do Estado; esse crime não seria então, politicamente nada perigoso. (Disc. II, cap. 14, pp. 146, 147).
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XLIII
É o único meio (em quebrando todos os laços de parentesco
entre os homens e declarando todos os cidadãos filhos do Estado) de sufocar os vícios que permitem uma aparência de virtude, de impedir a subdivisão de um povo em uma infinidade de famílias ou de pequenas sociedades, de que os interesses quase sempre opostos ao interesse público, estenderão por fim nas almas toda espécie de amor pela pátria. (Disc. II, p. 75).
XLIV
Os homens desgostosos com a vida que se matam... merecem tanto o nome de sensatos como de corajosos. Neles, o desprezo da vida não é o efeito de uma forte paixão, mas de uma falta de paixões. É o resultado de um cálculo pelo qual provam a si mesmos que é melhor não ser, que serem infelizes. (Disc. III, p. 450).
CENSURA
Essas proposições onde é dito que "o pudor é uma invenção do amor e da volúpia refinada e que é isso que os moralistas deveriam fazer saber. Onde se assegura que a corrupção religiosa, isto é, a libertinagem de toda espécie e principalmente aquela dos homens com as mulheres não é oposta à virtude verdadeira, mas somente a uma virtude de preconceito e que em se considerando as coisas, não como teólogo, mas como filósofo, não se pode olhar a libertinagem como uma corrupção política perigosa no Estado, nem contrária à honestidade moral, porque, segundo o autor, a moral é apenas uma ciência frívola se não se a confundir com a política
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e a legislação. Segundo elas, as despesas que as mulheres galantes fazem pelo desejo de agradar são muito mais úteis do que as esmolas feitas pelas mulheres bem comportadas e piedosas. Onde se pretende que o único meio de abafar em um Estado os vícios que apresentam uma aparência de virtude em lhe proporcionando as maiores vantagens será quebrando todos os laços de parentesco entre os homens, tornando as mulheres comuns e declarando todos os cidadãos filhos do Estado. Onde enfim se ousa afirmar que aqueles que, por desgosto para com a vida, se suicidam merecem o nome de sensatos e corajosos".
Essas proposições são falsas, contrárias à honestidade e aos mais nobres sentimentos da natureza. Rejeitam com uma insolência cínica o pudor, esse dom precioso da natureza, esta virtude que é a protetora dos bons costumes e freio natural dos desejos desregrados. Elas são um elogio licencioso da libertinagem e preferem ao vínculo sagrado do matrimônio, à sua fecundidade e à felicidade de uma união bem conveniente e à daquela dos filhos uma desordem que o pudor impede de nomear, que os pais e as mães devem ter em horror e que será perniciosa às crianças que daí poderão nascer. Por uma inumanidade espantosa elas estimam mais as despesas vãs e criminosas das mulheres galantes e os desejos que têm de agradar que o amor ao próximo e as esmolas das mulheres ponderadas e piedosas. Rompem os laços invioláveis do casamento e do sangue, que são necessários à conservação do gênero humano. Reduzem a nada os deveres recíprocos dos pais e dos filhos, em uma palavra, todos os deveres da vida doméstica e por isso,
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eliminam uma das principais doçuras da vida, aquela do cumprimento dos seus deveres e destroem os mais prementes motivos que animam os homens ao trabalho e a colocar em obra uma habilidade onde os particulares e o Estado encontram sua utilidade. Elas esbanjam com o maior absurdo os nomes de sábios e corajosos àqueles que têm o furor de se matar. Furor que, segundo os filósofos pagãos
15 só acontece por
uma falta de coragem e de firmeza e que devem reprimir um amor regrado da fé, o amor da pátria e a vontade divina que a lei natural e a revelação nos fazem conhecerem. Enfim, por uma perversidade sem exemplo, elas derrubam de vez todos os deveres da vida privada, doméstica e política, sem relação a toda espécie de lei que as estabelecem.
SOBRE A RELIGIÃO I
Os turcos que em sua religião admitem o dogma da necessidade, princípio destrutivo de toda religião... podem, em consequência, serem olhados como deístas. (Disc. II, cap. 14, p. 233).
II
A derradeira causa da indulgência do homem de mérito tem à vista claramente que existe a necessidade nos julgamentos humanos... O homem de espírito sabe que os homens são aquilo que eles devem ser. Que todo ódio contra eles é injusto. Que um tolo carrega em si tolices como a planta brava os frutos amargos, que insultá-lo é
15
Veja Platão, Aristóteles, Josefo e no livro do Direito natural e das gentes, do barão de Pussendorf, tradução de Barbeyrac, livro 1, cap. 4, pp. 250, 251.
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censurar o carvalho de produzir a bolota em lugar de azeitonas. (Disc. II, cap. 13, pp. 114, 115).
CENSURA
Essas duas proposições das quais a última encerra o "Dogma da necessidade em todos os julgamentos e em todas as ações dos homens" erro que, já condenado nas proposições XIV e XV sobre a alma, é claramente expressa aqui e repetida em vários lugares do livro. E do qual a primeira assegura que esse "dogma da necessidade é um princípio destruidor de toda religião. Que por consequência, aqueles que admitem esse dogma podem ser olhados como deístas que desprezam igualmente todas as religiões:".
Essas proposições reunidas mostram evidentemente que o autor adota esta espécie de Deísmo, que se diverte com todas as religiões e que se comporta com a fé com todo o veneno e impiedade do Ateísmo.
III
O homem humano e moderado é um homem muito raro, se ele encontra um homem de outra religião diferente da sua. É, diz ele, um homem que, sobre essas matérias, tem outras opiniões diferentes das minhas. (Disc. II, cap. II, p. 58, nota e).
IV
A diferença de religião e por consequência de opinião
determinou, ao mesmo tempo, os cristãos, mais zelosos que justos, a difamar com mais infames calúnias, a memória de um príncipe (Juliano, o apóstata) que, diminuindo os impostos, restabelecendo a disciplina militar e reavivando a virtude moribunda dos romanos, tão justamente
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mereceu ser colocado na categoria de seus maiores imperadores. (Disc. II, cap. II, p. 209).
CENSURA
Essas duas proposições que "representam todas as religiões, inclusive a religião cristã, como de simples opiniões sobre as quais a humanidade e a moderação exigem que se permita a cada um pensar e dizer o que lhe agrada".
Essas proposições são absolutamente contrárias à reta razão, da qual a luz é suficiente para fazer rejeitar todas as falsas religiões e demonstra que somente a religião cristã é evidentemente crível. Elas contêm também esta detestável impiedade que se chama o 'indiferentismo' de todas as religiões.
A última dessas proposições das quais "o objeto é fazer passar por calúnias infames todas as acusações que autores muito dignos da fé e muito santos doutores da igreja intentaram contra um imperador apóstata e o mais supersticioso idólatra, que empregou artimanha e força para perseguir injustamente os cristãos".
Esta última proposição é falsa e injuriosa aos autores e aos doutores da igreja que têm falado desse príncipe. Ela manifesta um espírito animado do ódio mais arrojado contra a religião cristã.
V
É apenas contemplando a terra desse ponto de vista, em se elevando a esta altura, que ela se reduz insensivelmente diante do filósofo a um pequeno espaço e toma a seus olhos a forma de um pequeno burgo habitado por diferentes
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famílias que tomam o nome de chinesa, inglesa, francesa, italiana, enfim todos aqueles nomes que se dão às diferentes nações. (Disc. II, cap. 10, pp. 110, 111).
É daí que, vindo considerar o espetáculo dos costumes morais, das leis, dos hábitos, das religiões e das diferentes paixões, um homem, sendo quase insensível ao elogio e à sátira das nações, pode quebrar todos os vínculos dos preconceitos e examinar com um olhar tranquilo a contrariedade das opiniões dos homens e contemplar com prazer a extensão da tolice humana.
CENSURA
Esta proposição que apresenta "um filósofo elevado a certa altura, contemplando desse ponto de vista os costumes morais, as leis, os hábitos e mesmo todas as religiões (no rol das quais a religião cristã está compreendida). Tal filósofo, desprendido de todos os laços de preconceitos, passa sem surpresa do serralho ao convento dos cartuxos e se repasta com prazer da extensão da tolice humana".
Esta proposição é escandalosa e ímpia. Ela faz olhar com o mesmo olho as mais vergonhosas voluptuosidades e os santos exercícios da perfeição do evangelho. Ela acrescenta ao 'indiferentismo' religioso o horrível 'indiferentismo' dos costumes morais e das ações.
VI
Dos motivos de interesse temporal, manuseados com destreza por um legislador hábil, são suficientes para formar homens virtuosos. O exemplo dos turcos... dos chineses materialistas. Aquele dos saduceus que negavam a imortalidade da alma... enfim, o exemplo dos gimnosofistas que
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sempre acusados de ateísmo e sempre respeitados por sua sabedoria e sua moderação, cumpriam com a maior exatidão os deveres da sociedade. Todos esses exemplos e milhares de outros semelhantes provam que a esperança ou o medo dos sofrimentos ou dos prazeres temporais são tão eficazes e tão próprios para formar homens virtuosos quanto os sofrimentos e os prazeres eternos. (Disc. II, cap. 24, pp. 232, 233).
VII
É então unicamente por boas leis que se podem formar homens virtuosos. (e em nota relativa a esta proposição) Não se terminaria nunca se acaso se desejasse dar a lista de todos os povos que, sem a ideia de Deus, não deixam de viver em sociedade mais ou menos felizes, segundo a habilidade menor ou maior de seu legislador. (Disc. II, cap. 29, pp. 236, 237).
CENSURA
Essas proposições que ensinam que "os motivos de interesse temporal (isto é, como o autor no seu sistema o explica em vários lugares de seu livro, o prazer e a dor dos sentidos,) manejados com destreza por um legislador hábil são suficientes para produzir homens virtuosos. Que os homens apenas podem ser formados na virtude através de leis humanas que fazem agir de acordo com esses recursos do prazer e da dor. Que os exemplos dos turcos, dos chineses materialistas, dos saduceus, dos gimnosofistas e de mil outros povos que, sem nenhuma ideia de Deus, vivem, entretanto, em sociedade, mais ou menos felizes segundo a habilidade menor ou maior de seu legislador. Que todos esses exemplos
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provam que a esperança ou o medo dos prazeres ou dos sofrimentos temporais são tão apropriados para formar homens virtuosos quanto os sofrimentos e os prazeres eternos".
Essas proposições são falsas, escandalosas e blasfematórias contra o evangelho. Elas favorecem o Ateísmo. Desviam os homens do pensamento de um Deus que recompensa a virtude e pune o vício eternamente. Fornecem um exemplo do atrevimento e da malignidade prodigiosa do autor em forjar fatos ou a ajustá-los a seus pontos de vista.
VIII
Nada de mais sábio do que o fundador do império dos incas inicialmente se anunciando aos peruanos como o filho do sol e de lhes persuadir que lhes trazia leis que lhe haviam sido ditadas pelo seu pai. Essa mentira imprimiu nos selvagens mais respeito pela sua legislação. Essa mentira foi então muito útil a este estado nascente não olhado provavemente como virtuoso. (Disc. II, cap. 13, pp. 139, 140).
CENSURA
Esta proposição que "coloca no rol das virtudes e que honra com o nome da mais alta sabedoria as mentiras e as fraudes de um impostor que, para prender um povo e o submeter a suas leis, lhe persuadiu que as leis que lhes propunha lhe haviam sido ditadas por Deus seu pai".
Esta proposição contem uma doutrina abominável e, sob o véu de um fato histórico, apresenta ao espírito uma blasfêmia que causa horror.
IX
(Sob o título dos meios de aperfeiçoar a moral).
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A que desprezo é necessário então condenar todo aquele que quizer reter os povos nas trevas da ignorância? Não se tem até o presente momento insistido nesta verdade com suficiente força. Não que se deva destruir num dia todos os altares do erro. Eu sei com que cautela se deve promover uma opinião nova. Sei inclusive que, em os destruindo, se deve respeitar os preconceitos e que, antes de atacar um erro geralmente acatado, é necessário enviar, como as pombas da arca, algumas verdades à descoberta, para ver se o dilúvio dos preconceitos ainda não cobre a face do mundo, se os erros começam a escoar-se e se acaso se apercebe aqui e ali no universo algumas ilhas onde a virtude e a verdade possam desembarcar para se comunicarem com os homens. Mas apenas se toma tantas precauções com os preconceitos pouco perigosos. O que se deve aos homens que, ciosos da dominação, querem tornar estúpidos os povos para os tiranizar? É preciso, com uma mão arrojada, quebrar o talismã da imbecilidade que está ligado ao poder desses gênios malfazejos. Desvendar às nações os verdadeiros princípios da moralidade. (Disc. II, cap. 24, pp. 229, 230).
CENSURA
Esta proposição que supõe que se"ignora os verdadeiros princípios da moral e que esta ignorância provem do poder de gênios malfazejos que espalham de propósito espessas trevas no espírito dos povos; Que o dilúvio dos preconceitos cobre ainda a face do mundo; Que há em toda parte altares construídos ao erro, mas que entretanto, não devem ser destruídos de uma só vez e que é com bastante cautela que se deve promover uma opinião nova; Que, em se destruindo os preconceitos, deve-se os respeitar e que é necessário enviar algumas verdades à descoberta, para ver se
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acaso se descobre aqui e ali ilhas no universo, onde a virtude e a verdade possam arribar para se comunicarem com os homens".
Esta proposição é falsa. Ela insulta os filósofos moralistas que têm sido tão merecedores da humanidade. São injuriosas aos príncipes e aos magistrados cristãos, afrontosa contra os ministros da igreja, ímpia e blasfema contra Jesus Cristo e os apóstolos. Revela além disso os artifícios e os disfarces do autor e de tantos outros pretensos filósofos que, mesmo quando fazem todos os esforços para destruir a religião, querem parecer respeitá-la. Mostra claramente por qual razão eles têm o costume de se revestir e de apresentar com frequência sua perniciosa doutrina, tratando de assuntos que lhes são estranhos.
X
Qual homem virtuoso e qual cristão... não tentaria fundamentar a probidade, não sobre princípios tão respeitáveis como os da religião, mas sobre princípios que sejam menos fáceis de enganar, tais como são os motivos do interesse pessoal? Sem serem contrários aos princípios da nossa religião, esses motivos são suficientes para levar necessariamente os homens à virtude. (Disc. II, cap. 14, pp. 235, 236).
XI
Sobre que outra base... poder-se-ia apoiá-los? (Esses princípios da probidade) seria sobre os princípios das falsas religiões?... Não se a apoiará mais (a virtude) sobre os princípios da verdadeira religião. Não que a moral não seja excelente,... mas porque esses princípios apenas seriam convenientes a um pequeno número de cristãos espalhados sobre a terra. E que um filósofo que, nos seus escritos, é sempre considerado como falando ao universo, deve dar à virtude os fundamentos sobre os quais todas
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as nações possam igualmente construir e, por consequência, edificar sobre a base do interesse pessoal. (Disc. II, cap. 14, p. 131).
CENSURA
Essas proposições segundo as quais "os princípios da probidade
não podem ser apoiados na religião cristã, embora ela seja respeitável, mas sobre o fundamento do interesse pessoal (que não é outra coisa que a impressão do prazer dos sentidos, segundo a doutrina do autor já exposta). Seja porque é menos fácil de enganar a impressão que vem desses prazeres e porque, sem ser contrário aos princípios da religião cristã, ela é suficiente para induzir os homens à virtude. Seja porque os princípios da religião cristã apenas poderão convir a um pequeno número de cristãos espalhados por toda a terra e um filósofo, sempre suposto como falando ao universo, deve dar à virtude os fundamentos nos quais todas as nações possam igualmente construir, e por consequência, edificá-la sobre a base do interesse pessoal".
Essas proposições aliam um desprezo horrivel pela religião cristã com um respeito aparente por essa mesma religião. Elas destroem totalmente a moral do evangelho que está destinada pelo seu autor a esclarecer o universo. Elas são falsas, absurdas, ímpias, blasfematórias, inimigas de todas as religiõese e perniciosas aos bons costumes e à sociedade.
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SOBRE O GOVENO
I A igreja e os reis pensam que os homens estão uns em relação
aos outros, tal como no caso dos primeiros homens antes que tivessem formado sociedades e conhecessem outros direitos que a força e a sagacidade, que houvesse alguma convenção entre eles, alguma lei, alguma propriedade e que pudesse por consequência, haver algum roubo e alguma injustiça. (Disc. III, cap. 4, p. 279).
II
Cada nação... pode... se persuadir que a infração de um tratado que lhe é vantajoso violar é uma cláusula tácita em todos os tratados, que são na verdade simples tréguas... É evidente que cada nação pode mesmo se crer igualmente mais autorizada a essas conquistas que se chamam de injustas, não encontrando nada na garantia de, por exemplo, duas nações contra uma terceira. De igual modo, a segurança que um particular encontra na garantia de sua nação contra outro particular, esse tratado deve ser tanto menos sagrado quanto a execução é mais incerta. (Disc. III, cap. 4, pp. 279, 280).
III
Ele sabe (o público esclarecido) quanto é útil de tudo pensar e tudo dizer. (prefácio, p. 6).
Sempre se é forte num estado livre, onde o homem concebe os mais altos pensamentos e pode exprimi-los tão vivamente quanto os concebe. Não é assim nos estados monárquicos. Nesses países, o interesse de certos grupos, aquele de particulares poderosos e mais frequentemente ainda, uma falsa e exígua política, se opõe aos arrebatamentos do espírito. Seja quem for que nesses governos, se eleve até as grandes ideias, é com frequência forçado a silenciá-las, ou ao menos constrangido a trocar a força pela ambiguidade, obscuridade e fraqueza de expressão. Assim lord
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Chesterfield, numa carta endereçada ao senhor Abade de Guasco, diz, falando do autor do 'O Espírito das Leis': "É pena que o senhor presidente de Montesquieu, retido sem dúvida pelo receio do ministério, não tenha tido a coragem de tudo dizer. Sente-se bem, no geral, o que ele pensa sobre certos assuntos, mas ele não se exprime tão claramente e tão fortemente. A gente saberia bem melhor o que ele pensava se tivesse escrito em Londres e se tivesse nascido inglês". (Disc. IV, cap. 4, p. 518).
IV É com frequência apenas pela boca da licença que as queixas
dos oprimidos podem se elevar até o trono. (nota b relativa a esta proposição), "Não é, diz o poeta Saadi, a voz tímida dos ministros que deve levar à orelha dos reis as queixas dos infelizes. É preciso que o grito do povo possa dar-se a conhecer diretamente no trono". (Disc. II, cap. 6, p. 79).
V
Se vocês estivessem realmente animados (diz o autor aos moralistas que ele chama de hipócritas) desta paixão, (a paixão do bem público) a sua aversão por cada vício seria sempre proporcional ao mal que este vício faz à sociedade. E se a vista das faltas menos nocivas ao Estado fosse suficiente para lhes irritar... de qual desgosto seriam vocês afetados quando apercebessem qualquer imperfeição na Jurisprudência ou na distribuição dos impostos?... então, penetrados da mais viva dor, a exemplo de Nerva, nós os veríamos, detestando o dia que lhes transformou em testemunhas dos males da vossa pátria, vocês mesmos acabando com isso. Ou ao menos, a exemplo dos chineses virtuosos que, precisamente irritados pelas humilhações dos grandes, se apresentam ao imperador levando-lhe suas reclamações: Diz o queixoso: "Eu venho me oferecer ao suplício que iguais representações têm levado seiscentos de meus concidadãos. E te aviso para se preparar a novas execuções. A China possui ainda dezoito mil bons patriotas que, pela mesma causa, virão sucessivamente te requerer o mesmo castigo. A essas palavras ele se calou e o imperador admirado com a sua
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firmeza, lhe concede a recompensa mais lisonjeira para um homem virtuoso: a punição dos culpados e supressão dos impostos. (Disc. II, cap. 16, pp. 162, 163).
VI
Entre os antigos persas... o mais abjeto e o mais negligente de todos os povos, é permitido aos filósofos encarregados de inaugurar os príncipes, de lhes dizer essas palavras no dia do seu coroamento: "Saiba, ó rei, que tua autoridade cessará de ser legítima o dia mesmo que tu cessares de tornar os persas felizes. Verdade das qual Trajano parecia compenetrado". (Disc. III, cap. 17, p. 386).
VII Em que regiões do globo este amor virtuoso da pátria não tem
executado destas ações heróicas? Na China um imperador, perseguido pelas armas vitoriosas de um cidadão, quer se servir do respeito supersticioso que nesse país um filho tem pelas ordens de sua mãe, para obrigar esse cidadão a se desarmar. Mandado a esta mãe um oficial do imperador vem de punhal na mão lhe dizer que ela apenas tem a escolha de morrer ou obedecer. Responde-lhe ela com um sorriso amargo: "Teu mestre ficará lisonjeado que eu ignore as convenções tácitas, mas sagradas, que une os povos aos soberanos, pelas quais os povos se empenham de obedecer e os reis de lhes tornar felizes? Ele violou essas convenções por primeiro. Negligente executor das ordens de um tirano, aprende de uma mulher o que em semelhante caso se deve à pátria. "A essas palavras, arrancando o punhal das mãos do oficial ela se fere e lhe diz": "Escravo, se te resta ainda alguma virtude leva a meu filho esse punhal ensanguentado. E lhe diga para vingar sua nação e que ele puna o tirano. Ele não tem nada a temer por mim, nada mais a se preocupar. É agora é livre para ser virtuoso. Se o nobre orgulho, a paixão do patriotismo e a da glória determinam os cidadãos a ações tão corajosas, que constância e que força as paixões não inspiram, etc.... (Disc. III, cap. 6, pp. 300, 301).
VIII
Entre tantos romanos que se davam voluntariamente
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à morte, não são poucos os que para massacrar os tiranos, ousassem torná-la útil à pátria. Em vão, dir-se-ia, que a guarda que cercava todo o palácio da tirania lhes impedia o acesso. Era o medo dos suplícios que desarmava seus braços. (Disc. III, cap. 16, p. 450).
CENSURA
Essas proposições no que respeita ao que elas asseguram "que a igreja e os reis pensam que não há, entre os soberanos, outros direitos além da força e da sagacidade e que não pode haver nenhuma injustiça entre eles. Que a própria religião não forma dos tratados uma obrigação que ligue os príncipes e que a infração das convenções mais solenes é uma cláusula tácita em todos os tratados, todas as vezes que a utilidade se achar junto com a perfídia".
Essas proposições solapam o direito das gentes "comuns e necessárias" que não é diferente do direito natural. Destruindo a boa fé entre as potências contratantes, elas tornam as guerras intermináveis e suprimem todo o meio de manter a paz. São impudentemente caluniosas para com a igreja e os soberanos. E renovam a doutrina de Maquiavel.
Essas mesmas proposições no que respeita ao que elas declaram "que num Estado deve ser permitido a cada um pensar e dizer o que bom lhe parece; Que, quando o povo se crê tratado muito duramente, é necessário que seus gritos possam pela boca da licença penetrar diretamente até o trono; Que então, todo cidadão,
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animado pela paixão do bem público deve, sem ser detido pela magestade do trono, se apresentar ao soberano e cansá-lo com seus queixumes e suas censuras; Que nesse caso a autoridade dos príncipes cessa de ser legítima; Que então o nobre orgulho e a paixão da glória devem armar contra eles os seus súditos e até mesmo levá-los aos mais negros atentados".
Essas proposições abalam o direito político nos seus fundamentos. Perturbam a paz pública. Anulam o poder dos príncipes, chanchelada pela autoridade das leis naturais e divina
16. Arrancam do
coração dos súditos os sentimentos de respeito, obediência e de fidelidade devida ao seu príncipe. Excitam-lhes à facções, a sedições, à revolta e a desmedidos crimes. E levam abertamente à ruína completa do Estado e portanto, devem ser abominadas por todos os homens.
As proposições, além disso, que a pouco foram censuradas, não são as únicas repreensíveis no livro 'Do Espírito'. Aí se acha quase em todas as páginas e a própria
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O santo concílio, desejando abolir, de alto a baixo, tais máximas, (que se pode suprimir a vida de um tirano, etc.) e posto em deliberação o assunto, declara tal doutrina cheia de erros na fé e nos costumes morais, condena-a como herética, escandalosa, introdutora de traições, sedições e perfídias e condena também a todos aqueles que obstinadamente a sustentam como heréticos e como tais puníveis segundo os santos decretos. Tradução do encarregado da França em 1615.
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faculdade de teologia tem relacionado um grande número que, sem que se tenha acreditado dever ser relatada, são merecedoras, assim mesmo, de fortes qualificações. Pode-se dividir em quatro classes principais a maior parte dessas proposições.
1º. Umas tem relação com as proposições que a faculdade vem condenar e exprimem ora menos claramente, ora em termos formais uma doutrina igualmente perniciosa. (Ver pp. 7, 8, 35, 148, 174, 206, 358, 359, 362, 554, 598, 599, 607, 608, etc.).
2º. Em outras são apresentados fatos controversos ou alterados como verdadeiros. Dá-se por certo coisas incertas e duvidosas, onde se diz que a igreja e os príncipes têm estabelecido o que eles jamais estabeleceram, que os santos doutores ensinaram o que sempre foi oposto aos seus sentimentos e essas exposições falsas e artificiosas são utilizadas para atacar a igreja, o governo, as leis, os bons costumes e a religião. (Ver pp. 138, 214, 225, 229, 233, 236, 468, etc .).
3º. Há muitas que contêm traços de obsenidade tão revoltantes que é preciso ter mais que uma impudência cínica para se comprazer em apresentá-las aos leitores. (Ver pp. 173, 186, 294, 390, 392, 411, 519, etc.).
4º. Há enfim várias onde o autor dá a
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entender o que não ousa dizer expressamente e essas alusões são tão ímpias e tão contrárias aos estados monárquicos que um homem que tem respeito por sua religião e amor pela sua pátria não pode, sem estremecer, discernir o sentido delas.
A faculdade de teologia não julgou ser conveniente censurar todas essas proposições em detalhes. Se deve à decência, ao Estado e à religião não se permitir desenvolver os horrores que contem em grande parte o livro e nem mesmo de se fazer extratos. Ademais uma condenação particular de todas essas proposições lhe pareceu inútil, após ter exposto e censurado as que contem o sistema do autor e os principais corolários do sistema.
Ela rejeita entretanto, todas essas espécies de proposições e tudo o que se encontra de condenável no trabalho, protestando que seu silêncio não deve e não pode ser olhado como uma aprovação do que ela não assinalou. A faculdade declara também, que condena
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o livro 'Do Espírito' como um trabalho dos mais detestáveis que já pode ter aparecido.
Faça o Deus de misericórdia que o autor que já se viu obrigado a fazer diversas retratações, reconheça sinceramente quanto ele terá de se afastar de suas leituras e das amizades que lhe têm estragado o espírito e corrompido o coração.
Faça o céu que ele renuncie a este orgulho insuportável que se manifesta em cada página do seu livro, que se separe para sempre de seus mestres que lhe têm seduzido e que abjure enfim, o que aprendeu com eles: "Que tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é santo e tudo o que é de edificação e de bom odor... seja o objeto de seus pensamentos e de suas ações". Que para uma vida penitente e exemplar ele repare, tanto quanto lhe seja possível, o escândalo que deu com o seu livro. "E que o Deus da paz esteja com ele".
De Mandato D. Decani & Magistrorum Sacrae Facultatis Parisiensis.
Herissant, Scriba