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Traduções bilingues da vida e obra de Claude-Adrien Helvétius

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FACULDADE PADRE JOÃO BAGOZZI

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Aparecida Maria de Oliveira e

Gottlann Barbosa Venzke Habith.

— DEZ/2012 —

TRADUÇÕES BILÍNGUES DA VIDA

E OBRA DE

CLAUDE-ADRIEN HELVÉTIUS.

(1715-1771)

Orientador: Prof.: Sidney Reinaldo da Silva

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Agradecimentos especiais aos professores Sidney Reinaldo da

Silva e Osmar Ponchirolli pelos incentivos, à http://books.google.com

pela disponibilização dos livros utilizados e à Faculdade Padre João

Bagozzi, para que possamos estar à altura de seu prestígio.

Conteúdo.

'Ensaio sobre a vida e obras de Helvétius' por Saint-Lambert (1818) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 3

'Os progressos da razão na busca da verdade' por Helvétius — livro completo: (1775)

'Os progressos da razão na busca da verdade'- - - - - - - - - - 79

'Discurso entre um deísta e um ateu' por Helvétius - - - - - - - 216

'O verdadeiro significado do sistema da natureza' por Helvétius (1852) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - -- 221

'Ensaio sobre o direito e as leis políticas do governo' por Helvétius (1818) - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - 295

'A felicidade', poema em seis cantos por Helvétius — livro completo: (1772)

'Prefácio ou ensaio sobre a vida e obras de Helvétius' - - - - 308

'A felicidade'- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 428

Fragmento de uma epístola sobre 'O amor próprio'. -. - - - - 530

Fragmento de uma epístola sobre 'O luxo' - - - - - - - - - - - - - 534

Fragmento de uma epístola sobre 'A superstição' - - - - - - - 536

Censura da Faculdade de teologia de Paris contra o livro que tem por título 'Do espírito' - - - - - - - - - - - - - 547

3

— 1818 —

http://books.google.com

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ENSAIO SOBRE

A VIDA E AS OBRAS DE HELVÉTIUS

POR SAINT-LAMBERT

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Durante muito tempo acreditou-se que este 'Ensaio sobre

a vida e as obras de Helvétius' tinha sido encontrado nos papeis

de Duclos. Mas Saint-Lambert tem-se declarado o autor e o tem

colocado em seus 'Trabalhos Filosóficos', como uma

homenagem prestada à amizade e ao mérito.

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ENSAIO

SOBRE

A VIDA E OS TRABALHOS DE HELVÉTIUS

POR SAINT-LAMBERT

Claude-Adrien Helvétius nasceu em Paris no mês de

janeiro de 1715, de Jean-Adrien Helvétius e de Gabrielle

d’Armancourt. A família dos Helvétius por causa da perseguição

sofrida no Palatinado na época reforma, se estabeleceu na

Holanda, onde numerosos membros tiveram honrosos

empregos.

O bisavô de Helvétius foi o principal médico do exército e

mereceu, pelos serviços prestados à República, várias

medalhas.

O filho deste ilustre homem, ainda muito jovem, se

estabelece em Paris. Conhecido aí como o 'Médico holandês',

tornou a ipecacuanha conhecida em toda a França. Ele havia

aprendido o uso desta raiz com um de seus parentes,

governador da Batávia e serviu-se dela com bastante sucesso

em Paris e dentro do exército. Luis XIV, de onde as graças eram

tão frequentes como devem ser as graças dos reis, lhe deu título

de nobreza e o cargo de inspetor-geral dos hospitais. Morreu em

Paris em 1727, lamentado pelos pobres e gente de bem.

Um de seus filhos, herdeiro de seus talentos, cultivou

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como ele, a medicina com glória. Era jovem ainda quando salvou

o rei de uma doença perigosa adquirida aos sete anos de idade.

Posteriormente foi o médico principal da rainha da qual merecia

a confiança e as bondades. Em Versalhes, foi amigo de todas as

casas em que era médico. Tratava em sua própria casa grande

número de pobres e visitava com constância aqueles que não

podiam sair das suas.

Amava muito a esposa, que era bela e dedicada a ele e a

todos os seus deveres. Amaram ternamente o filho e se

ocuparam em conjunto de sua educação e do cuidado de tornar

sua infância feliz. Helvétius não tinha ainda cinco anos quando o

confiaram ao senhor Lambert, homem sábio e sensível, que vive

ainda e chora seu aluno.

Não havia trabalho que a vontade de agradar a tal

preceptor não fizesse o discípulo assumir. Ele teve em boa hora

o gosto pela leitura. É verdade que no começo ele só gostava

dos contos de fadas e de livros onde reinava o prodigioso. Mas

logo associou a eles La Fontaine e Despréaux, cujos trabalhos

encantam os homens de gosto, mas não deveriam agradar às

crianças.

O jovem Helvétius foi para um colégio interno logo que leu

a 'Ilíada' e 'Uma História de Alexandre'. Essas duas leituras

mudaram seu caráter. De tímido, tornou-se expansivo. O gosto

pelo estudo foi suspenso por algum tempo. Queria entrar para o

serviço militar e só respirava a guerra.

De início o despotismo dos regentes, suas ameaças e

coações o revoltaram. As tarefas pormenorizadas que lhe

sobrecarregavam o aborreciam. Ele fez apenas medíocres

progressos.

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Mas, iniciada a aula de retórica, o seu regente, Padre Porée, se

percebeu que ele era sensível a elogios e, elogiando os seus

primeiros esforços, lhe fez fazer outros ainda maiores. Nessa

época os exageros de linguagem estavam em moda no colégio.

O Padre Porée encontrou nos de Helvétius mais ideias e

imagens do que nos dos outros discípulos. A partir daí ele lhe dá

uma educação particular. Lia com ele os melhores autores

antigos e modernos e lhe fazia observar as perfeições e as

imperfeições. Esse padre não escrevia com primor, mas tinha

excelentes princípios de literatura. Era um bom mestre e um

mau modelo. Ele tinha, sobretudo, o talento de conhecer o

alcance do espírito e o caráter de seus alunos e a França lhe

deve muito pelo grande homem e genialidade que ele adivinhou

e apressou.

A primeira experiência de glória aumentou o seu amor por

ela. O jovem Helvétius, elogiado nos exercícios públicos do

colégio, queria triunfar em tudo em que pudesse ser louvado.

Antes ele detestava a dança e a esgrima, depois se sobressaiu

nas duas artes. Inclusive dançou uma ópera no papel e máscara

de Javillier1, na qual obteve muitos aplausos.

Sua competição se estendia a tudo, mas jamais tomou o

caráter de inveja. Ele amava seus concorrentes e havia obtido

sua confiança. Eles acreditavam em sua discrição nas pequenas

artes que a que a severidade dos mestres e a necessidade de

prazer tornam tão comuns entre os jovens.

Helvétius tomou conhecimento do livro 'O entendimento

humano' quando ainda estava no colégio. Esse livro fez uma

revolução em suas ideias. Tornou-se um discípulo fervoroso de

1 Avant Noverre, os dançarinos desta ópera estão mascarados.

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Locke como Aristóteles deve ter sido de Platão, ajuntando

descobertas àquelas de seu mestre.

Ele levou ao estudo do direito o espírito filosófico que

Locke lhe havia inspirado. Desde então ele procurou as relações

das leis com a natureza e a felicidade dos homens.

Seu pai, cuja fortuna era medíocre e que havia incorrido

no desagrado do cardeal de Fleury pela sua amizade com o

senhor Le Duc, o destinou às finanças como a uma profissão

que poderia lhe enriquecer e ainda deixar-lhe tempo para o uso

de seus talentos. Ele lhe enviou para a casa do seu tio materno,

o senhor d’Armancourt, que era diretor de fazendas em Caen.

Lá, Helvétius ocupou-se de literatura e da filosofia, mais que de

finanças e mais ocupado de mulheres que de literatura e da

filosofia. Porém, aprendeu em pouco tempo e quase sem

esforço, tudo o que deveria saber um financista.

Ele tinha vinte e três anos quando a rainha Maria

Leckzinska, que gostava do senhor e da senhora Helvétius,

obtém para o filho deles o cargo de arrematante de impostos

régios. Inicialmente Helvétius só teve o título e meio cargo, mas

o senhor Orri logo lhe deu o cargo inteiro. Foi-lhe dado cem mil

escudos de renda. Seus pais emprestaram-lhe os fundos que

um arrematante de impostos régios deveria antecipar ao rei, com

a condição de que Helvétius pagasse o empréstimo e os

encargos com os lucros do seu posto.

Duas paixões que podiam arruinar o financista mais

opulento: o amor das mulheres e o desejo de fazer o bem. Mas

ele era organizado e probo. Em meio a tantas diversões, soube

usufruir sabiamente. De início, destinou dois terços de suas

rendas ao reembolso de

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seus fundos, ficando o restante destinado às despesas que a

sua idade e nobreza do seu coração lhe faziam necessárias.

Ao sair da infância, Helvétius havia procurado se ligar a

escritores famosos. Marivaux2 era um desses. Esse escritor

espirituoso, sensível e eloquente em seus romances, era

agradável na conversação. Digno dos amigos pela delicadeza de

alma e pureza dos costumes. Helvétius instituiu-lhe uma pensão

de dois mil francos. Marivaux, embora um excelente homem, era

temperamental e tornava-se rabugento nas discussões. Era um

dos muitos amigos, mas a partir do momento da instituição da

pensão, tornou-se um dos amigos pelo qual Helvétius

dispensava mais atenção e consideração.

O filho de Saurin da Academia de Ciências não havia

produzido ainda nenhuma obra que lhe tornasse conhecido, mas

era conhecido dos letrados como um espírito entendido, justo e

profundo, de virtude, gosto e amplos conhecimentos. Mas, para

subsistir, tinha apenas um emprego que não convinha ao seu

caráter. Também recebeu de Helvétius uma pensão de mil

escudos que lhe valeu a independência, o tempo necessário de

cultivar as letras e o prazer de sentir e tornar público que devia

sua felicidade ao amigo. Esse digno amigo, quando Saurin quis

se casar, o presenteou com os fundos da pensão que lhe havia

feito.

Helvétius procurava em tudo o mérito, para amá-lo e

2 Durante uma discussão, Marivaux, tendo-se levantado, não cumprimenta

seu amigo. Logo que parte, Helvétius se contenta em dizer: 'Como eu teria lhe respondido, se eu não lhe tivesse obrigado a aceitar meus favores!'

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o socorrer. Qualquer que sejam os cuidados feitos para

esconder os benefícios, podemos apresentar uma lista de

homens conhecidos obsequiados por ele. Mas cremos faltar à

sua memória se ousarmos nomear aqueles que têm a fraqueza

de ruborizar-se de seus socorros.

Por essa época Fontenelle estava à testa do império das

letras. A extensão de luzes, filosofia saudável, sabedoria de

conduta, variedade de talentos, a alegria de espírito e facilidade

de relacionamento social, tornavam Fontenelle agradável a

muitos e a diversos grupos sociais. Sua indiferença mesmo era

útil à sua consideração. Os inimigos de seus amigos, seguros de

não serem seus inimigos, lhe viam com prazer. Ainda tinha o

mérito de homem de idade e de ter visto o século brilhante com

que nosso século ama entreter-se. Sua memória estava cheia de

anedotas interessantes que ele tornava ainda mais interessantes

pela maneira de contá-las. Seus contos e suas brincadeiras

faziam pensar. As mulheres, os homens da corte, os artistas, os

poetas e os filósofos amavam sua conversação.

Helvétius o cortejava. Ia a ele como um discípulo que vem

modestamente propor suas dúvidas. Era com ele que gostava de

falar de Hobbes e de Locke. Acima de tudo aprendeu com

Fontenelle o talento, hoje muito negligenciado, de exprimir com

clareza as ideias.

Montesquieu era então apenas o autor das 'Cartas

persas'. Mas nessa obra frívola na aparência e na conversação,

Helvétius percebeu o guia dos legisladores. Por seu turno

Montesquieu adivinha que o homem será um dia o seu amigo.

"Eu não sei se Helvétius conhece sua

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superioridade, mas eu sinto que é um homem acima dos outros",

disse ele uma ocasião.

'La Henriade', poema épico de um gênero totalmente

novo, de tragédias que igualam aquelas de nossos grandes

mestres. A 'História de Carlos XII', tão superior a todas as

histórias contadas na França, das composições passageiras que

fazem esquecer essa multidão de insignificâncias agradáveis tão

comuns no século de Luis XIV. Uma filosofia evidente espalhada

em diversos gêneros, muito talento e muitas formas de mérito

atraíram sobre Voltaire os olhares da França e da Europa.

Ninguém excitou como ele admiração e inveja. O público não

rendido pela reverberação dos literatos invejosos e os jovens

que procuram de boa fé o prazer ou os modelos eram seus

admiradores. O resto, pouco mais ou menos, compunha o

número de seus inimigos. O amor pelas letras, a arte de louvar

da qual fez muito uso, a civilidade e a vontade de agradar não

puderam acalmar a fúria da inveja. Procurou se esconder no

isolamento de Cirey. Helvétius foi-lhe procurar aí. Confiou-lhe

seus segredos mais íntimos, isto é, o projeto e os dois primeiros

cantos do poema 'Da Felicidade'. Achou um crítico melhor

esclarecido do que todos os que ele havia consultado até

momento e um amigo ardoroso por sua glória.

Nota-se pelas numerosas cartas de Voltaire, quanto esse

grande homem estava impressionado pelo talento de Helvétius.

Diz-lhe ele: "Vosso primeiro canto, é repleto de ousadias da

razão acima da vossa idade e mais ainda dos nossos indolentes

escritores que rimam pelos seus livreiros e que se restringem

sob o compasso de um censor real

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invejoso ou tímido. Miseráveis pássaros a que se cortaram as

asas e querem se levantar e tombam quebrando as pernas! Vós

tendes um talento másculo e eu gosto mais de vossas faltas

sublimes que das medíocres belezas com que eles querem nos

enfadar‖.

Em outras ocasiões Voltaire dá a Helvétius conselhos

excelentes e que reproduzimos porque podem ser úteis a

qualquer um que queira escrever em versos.

"Eu vos direi em favor do progresso que tal bela arte pode

fazer em suas mãos: Temei em conseguindo o grande saltar ao

gigantesco. Exponha apenas imagens verdadeiras. Utilizeis

sempre da palavra correta. Quereis vós uma pequena regra

infalível? Aqui está: Quando um pensamento é exato e distinto é

necessário ver se a maneira como é expresso em verso será

belo em prosa e se o verso, despido da rima e da cesura, vos

parece carregado de uma palavra supérflua. Se há na

construção a menor falta. Se uma conjunção está esquecida.

Enfim, se a palavra mais apropriada não foi colocada em seu

lugar, conclua que vosso diamante não está bem engastado".

Em outra carta Voltaire repreende Helvétius que lhe havia

falado mal de Boileau. Diz ele: "Eu convenho convosco que ele

não é um poeta sublime, mas ele tem feito muito bem o que

queria fazer. Ele tem colocado a razão em versos harmoniosos e

cheios de imagens. É claro, consequente, fácil e feliz em suas

expressões. Não se eleva muito, mas também não cai e, além

do mais, seus assuntos

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não comportam essa elevação que os vossos são suscetíveis.

Vós sentistes o vosso talento como ele tem sentido o seu. Sois

filósofo; vedes tudo ampliado. Vosso pincel é forte e arrojado. A

natureza vos tem dotado, digo-vos com a maior sinceridade,

muito acima de Despréaux. Mas esses talentos, por maiores que

sejam, não serão nada sem os seus. Portanto, vos recomendo

com ênfase esta arte de escrever que Despréaux bem conheceu

e bem ensinou, esse respeito pela língua, esta sucessão de

ideias, essas ligações, essa arte fácil com que conduz seu leitor

e esse natural que é o fruto da genialidade. Mande-me, meu

caro amigo, qualquer coisa assim, bem trabalhada, como só vós

podeis com rigor imaginar".

Homens de boa agudeza intelectual, mas cujas ideias não

eram muito extensas, volta e meia diziam a Helvétius que a

metafísica e principalmente a filosofia não podiam ser tratadas

em versos. Ele não acreditava, mas algumas vezes duvidava.

Voltaire tranquilizou-o.

Disse-lhe ele: ―Não duvideis que a sublime filosofia possa

muito bem falar a linguagem dos versos. Ela é algumas vezes

poética na prosa do Padre Mallebranche. Por que não

terminaríeis vós o que Mallebranche esboçou? Ele era um poeta

pela metade e vós um poeta por inteiro‖.

Voltaire tinha razão. Lucrécio junto aos romanos e Pope

junto aos ingleses fizeram dois poemas filosóficos e, todavia,

admiráveis?

Homens pouco esclarecidos e amigos, talvez invejosos,

repetiam a Helvétius que ele devia

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empregar seu tempo a outros estudos que não fossem a poesia

e a filosofia. Voltaire escreveu-lhe: ―Continueis a encher vossa

alma com conhecimentos de todas as artes e de todas as

virtudes. Não tenhais medo de honrar o Parnaso com os vossos

talentos. Eles vos honrarão sem dúvida porque não

negligenciareis jamais vossos deveres. As funções do vosso

cargo não são difíceis para uma alma como a vossa? Esse

trabalho se faz como a organização da dispensa de vossa casa

ou no livro de controle de despenseiro. O que! Para ser

arrematante dos impostos régios não se terá liberdade de

pensar? Ah! Ático era arrematante de impostos régios. Os

cavalheiros romanos eram arrematantes de impostos régios.

Continue então Ático‖.

Ático continua. Era usual que a companhia dos

arrematantes mandasse para as províncias os arrematantes

mais jovens. Eles se obrigam a se instruírem em diferentes tipos

de rendas, a controlar os empregados locais e a implementar as

ordens de serviço. Nessas visitas de inspeção, Helvétius

percorre continuamente a Champagne, as duas Borgonhas e

Bordéus e em parte nenhuma tomou como norma de ação dar

sempre razão aos empregados da companhia e estarem sempre

os contribuintes errados. Não recebia dinheiro de confiscos e

muitas vezes compensou os infelizes arruinados pelas afrontas

dos prepostos. De início a companhia não aprovava tanta

grandeza de alma, mas como Helvétius fazia as belas ações

com o seu próprio dinheiro, os arrematantes concordaram tolerar

esta conduta.

Não raro teve a coragem de ser o intermediário do povo

junto à própria companhia e ao ministro. Empregou-se nas

salinas de Lorena e do

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Franco Condado certa máquina chamada "graduação" que

diminuía o consumo de lenha, mas também a qualidade do sal.

Helvétius propôs a destruição a máquina ou a diminuição do

preço do sal. É fácil deduzir que nada obteve.

Ele chegou a Bordéus quando passava a vigorar uma

nova legislação sobre dos vinhos, que alarmou a cidade e a

província. Escreveu à companhia contra o novo direito e

indignou-se com as respostas. Escapou-lhe um dia dizer a

alguns vinicultores de Bordéus: ―Enquanto apenas se

lastimarem, não se concordará com a vossa demanda. Fazei-

vos temer. Vós podeis juntar mais de dez mil. Ataqueis os

nossos empregados. Eles não são duzentos. Colocar-me-ei à

frente deles e nós nos defenderemos, mas enfim vós nos

batereis e ser-vos-á feita justiça‖.

Por felicidade, o conselho do jovem Helvétius não foi

seguido. Mas de retorno a Paris, Helvétius apoiou tão bem as

queixas dos bordelenses que conseguiu a extinção do imposto.

Fez mais. Reprimiu a avidez dos subalternos. Indicou os

meios de diminuir o seu número. Propôs dar maiores valores às

terras de domínio do Estado e assim se fez útil tanto à

companhia dos arrematantes quanto à nação. Seus serviços não

impediram de ter alguns desgostos. Trabalhando com pessoas

de pequeno espírito, propôs grandes objetivos e falou de

humanidade a homens endurecidos pela idade e pelo dinheiro.

Os infelizes consolados por ele, o trato com pessoas de letras,

seus estudos e suas amantes o faziam mal suportar as

inconveniências do serviço. Seu pai, que lhe havia feito um

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arrematante de impostos régios, não o pode jamais fazê-lo

financista. Helvétius já havia reembolsado o empréstimo inicial e,

malgrado suas despesas com prazeres e obras de beneficência,

se encontrava muito rico. Comprou terras e concebeu o projeto

de se demitir da função de arrematante para se dedicar

inteiramente às letras e à filosofia. Mas lhe faltava uma esposa

que pudesse amar e que fosse feliz no retiro em que viveriam.

Em casa de senhora Graffigni, autora do lindo romance

'Cartas peruvianas', Helvétius viu a senhorita de Ligniville e foi

tocado pela beleza e adornos do espírito. Mas antes de esposá-

la quis conhecê-la. Ele a via com frequência sem lhe falar de

suas intenções e do gosto que tinha por ela. Finalmente, após

um ano observando-a, concluiu ser a senhorita de Ligneville de a

alma nobre, sem orgulho, que suportava sua má sorte com

dignidade e que tinha coragem, bondade e simplicidade.

Acreditando que partilharia de seu recolhimento lhe fez a

proposta. Ela foi aceita3.

3A senhora Helvétius, nascida em 1719 no castelo de Ligneville em Lorena,

tinha vinte e um irmãos e irmãs. Como digna esposa de um filósofo com o qual partilhava intenções

beneficientes, tinha a necessidade de aliviar a indigência. A seus olhos a riqueza era apenas um meio de reparar as injustiças da natureza. Sua bondade se estendia até para com os animais, aos quais ela se comprazia de prodigalizar cuidados diários. Como o inverno multiplica suas necessidades assim como dos homens, sua solicitude a arrancava da cama cedo pela manhã e ela corria dar comida para uma multidão de pássaros que retornavam todos os dias à sua varanda. (Veja em 'Conselhos para minha filha' o lindo conto 'dos Pássaros da senhora Helvétius').

Após ter perdido seu marido ela fixou sua residência em Auteuil, nome caro à filosofia e a todas as qualidades do espírito e do

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Assim,4 antes de se casar, quis se demitir do emprego de

arrematante de impostos.

Helvétius, para satisfação de seu pai, comprou o cargo de

mordomo da rainha. Contudo, não era mais bem feito para a

corte que para as finanças. Foi muito sensível às bondades da

rainha. Esta princesa amava pessoas de espírito e tratou bem

Helvétius, que não teve de início tantos inimigos quanto

merecesse. Foram perdoadas durante muito tempo suas luzes e

suas virtudes. Seu cargo não exigia muito serviço e lhe deixava

o emprego do seu tempo.

Casou-se no mês de julho de 1751 e partiu imediatamente

para suas terras de Voré. Levou consigo dois secretários,

mesmo que desnecessários já que não era mais arrematante de

impostos régios. Porém, ele lhes era necessário. Um deles,

chamado Baudot, era rabugento, mordaz e irrequieto. Sob o

pretexto de que tinha conhecido Helvétius desde criança, se

permitia tratá-lo sempre como um preceptor brutal trata uma

criança. Um dos prazeres de Baudot era discutir com o patrão a

conduta, o espírito, o caráter e os trabalhos do indulgente

patrão. A discussão sempre terminava na mais violenta sátira.

Helvétius o escutava com paciência e, por vezes, em o

deixando, dizia à senhora Helvétius: ―Mas, é possível que eu

tenha todos os defeitos e todos os erros que o Baudot me

encontra?

4coração continuou a atrair tudo o que havia na França de homens célebres. Deste

número constavam Franlin e Turgot, que, inclusive, lhe propuseram casamento. Mas a viúva de Helvétius havia-lhe amado tão apaixonadamente para se decidir a contrair um segundo casamento. 4 Bonaparte após o seu retorno do Egito foi visitá-la em seu retiro. Passeando

em seu jardim com o ambicioso conquistador, lhe diz ela: “Vós não sabeis quanto se pode achar de felicidade em três arpentes de terra”.

Ela morreu dia doze de agosto de 1800 e deixou duas filhas casadas: A mais velha com o senhor conde de Meun, pai do senhor par da França de igual nome e a mais jovem com senhor conde de Audlaw.

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Não, sem dúvida. Mas enfim, eu tenho alguns. E quem é que os

dirá se eu não conservar Baudot?‖.

Em suas terras, Helvétius se ocupava apenas dos seus

trabalhos, da felicidade dos vassalos, da sua e da senhora

Helvétius. Ele poderia dizer como milorde Bolingbroke em uma

de suas cartas a Swift: ―Eu tenho por minha mulher o amor que

outrora tive por todas as do seu sexo‖.

Fazia dois anos que interrompera o trabalho do poema 'A

Felicidade'. Esse trabalho havia-lhe conduzido a pesquisas

sobre o homem. Desde as suas primeiras meditações tinha

vislumbrado novas verdades. Estas verdades tornaram-se mais

claras e o conduziram a outras. E ele estava inteiramente

entregue à filosofia quando, em 1765, perdeu o pai. Eu só

acrescentarei uma palavra ao que já disse desse ilustre médico.

Ele conhecia perfeitamente o seu filho, isto é: que tinha muito

saber e inteligência e que era sem preconceitos. Ele viu com

prazer esse filho sacrificar uma grande fortuna na esperança de

fama. Helvétius lamentou muito tão excelente pai. Recusou

recolher a sucessão e a deixou ficar inteiramente com a mãe.

Após longos debates, obteve que ela conservasse a maior parte.

A morte do pai foi a primeira desventura que até então ocorreu

em sua feliz vida e suspendeu suas ocupações. Ele as retomou

logo que teve forças e, enfim, em 1758, ele entrega o livro 'Do

espírito', que passo a analisar.

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Análise do livro 'Do Espírito'.

Primeiro discurso:

Helvétius começa examinando o que se entende pela

palavra 'espírito': É tanto a faculdade de pensar quanto a

somatória das ideias e de conhecimentos existentes na cabeça

de um homem.

Essas ideias são adquiridas pela impressão dos objetos

exteriores sobre os sentidos. Elas se conservam pela memória

que é apenas a primeira impressão continuada, porém

enfraquecida. Essa faculdade natural de adquirir ideias pelos

sentidos e de conservá-las pela memória nos daria apenas

conhecimentos limitados e nos deixaria sem habilidades, sem

costumes e sem civilização, se a natureza nos houvesse

conformado como a maior parte dos animais. É à flexibilidade

das nossas mãos que devemos nossa destreza, e sem essa

habilidade, ocupados com a própria defesa nas florestas e

disputando a subsistência, teríamos apenas formado sociedades

fracas e desumanas.

Os objetos de que os sentidos transmitem ideias tem

relações entre eles e conosco. O espírito humano constrói o

conhecimento com essas relações. Aí está sua potência e

limites. Chama-se julgamento a percepção dessas relações.

Julgar é sentir.

A cor que eu chamo de vermelha age sobre meus olhos

de maneira distinta da cor que eu nomeio de amarela. A ideia

desta diferença é um julgamento. Esse julgamento é uma

sensação composta de sensações recebidas em ato ou

conservadas na memória. De igual modo as noções de força, de

potência, de justiça, de virtude, etc., quando se as

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analisa se reduzem a quadros colocados na imaginação ou na

memória.

Tudo no homem se reduz, portanto a sentir.

O homem está sujeito a erros. Eles têm três causas: as

paixões, a ignorância e o abuso das palavras.

As paixões nos enganam porque nos fazem observar os

objetos de um único modo. A ambição faz o príncipe fixar sua

atenção no brilho da vitória e no esplendor da vitória. Ele

esquece as inconstâncias da fortuna e as desgraças da guerra.

O medo mostra fantasmas e não deixa a verdade

apresentar-se. O amor é fértil em ilusões. ―Vós não mais me

amais, disse a senhorita de Caumont à Poncet. Acreditais

menos no que eu digo do que no que vedes‖.

A ignorância é a causa de erros em questões difíceis. É

por falta de conhecimentos que a questão do luxo é discutida há

tanto tempo sem ser esclarecida. Grandes homens têm feito

dela apologia, outros sátira.

Em relação ao abuso das palavras, terceira causa de

erros, Helvétius se remete a Locke e não diz uma palavra em

favor daqueles que não querem recorrer ao filósofo inglês. É

necessário ver que os falsos sentidos dados às palavras

'espaço', 'matéria', 'infinito', 'amor-próprio' e 'liberdade' têm sido a

origem de muitos erros na metafísica e na moral. Matéria é

apenas a coleção das propriedades comuns a todos os corpos.

Espaço é apenas o nada ou o vazio. A palavra 'infinito'

apresenta apenas a ideia de falta de limites. O amor-próprio,

gravado em nós pela natureza, é um sentimento que se torna

virtuoso ou vicioso, segundo a diferença de gosto, de paixões

22

e de circunstâncias. A liberdade do homem consiste no exercício

voluntário de suas faculdades.

Segundo discurso:

Passemos ao segundo discurso.

Conforme sejam as ideias novas, úteis ou agradáveis, o

espírito tem maior ou menor estima pública. Não se ganha a

nossa estima pela quantidade e extensão das ideias. É a relação

que elas têm com a nossa felicidade que nos força a lhas

conceder o nosso respeito. Desse modo, é o reconhecimento ou

a vingança que louva ou despreza.

As ideias mais estimáveis são as que agradam as nossas

inclinações. É sobre a vida de Alexandre que trata o primeiro

livro para Carlos XII. É por uma bela mulher que o poeta pinta o

amor. É por interesse próprio que adotamos ou rejeitamos a

opinião dos demais.

É verdade, mas é raro existir na a terra filósofos que se

conduzem por amor da verdade, que estimam preferencialmente

as ideias brilhantes. Porém, são em tão pequeno número que

não é necessário levar em conta. O restante dos homens estima

apenas as ideias que lisonjeiam sua opinião ou seu interesse.

Um tolo só tem amigos tolos. Augusto, Luís XIV e o grande

Condé viviam com gente de espírito. Sob um monarca estúpido,

disse a rainha Cristina, toda a sua corte é ou virá a ser estúpida.

Quando a reputação de um homem ou de um trabalho se

estabelece, é comum nós o louvarmos sem estima. Não temos

por ele uma estima sentida, mas uma estima de palavra. Assim

é a estima geral por Homero, que todo mundo louva e que só é

lido por homens letrados.

Todo homem estima apenas a sua própria imagem nos

outros, ou o que pode ser-lhe útil porque, por natureza, tem de si

a mais alta ideia.

23

O faquir e o sibarita se desprezam, assim como a mulher

recatada e a provocante. O filósofo que viva no meio de jovens

será imbecil e o ridículo da sociedade. Separadamente, o

magistrado, o militar e o negociante, acreditam firmemente ser o

seu espírito o mais estimável.

Assim a sociedade nacional se divide em pequenas

sociedades, que, segundo suas ocupações, classe e estado,

estimam a espécie de espírito com que mantêm relações.

Na corte, estimam-se os homens de maneiras elegantes,

embora sejam em sua maior parte frívolos, ineptos e ignorantes.

Enquanto as pequenas sociedades estimam apenas o

espírito que é o mais próximo ao seu, já o público só concede

sua estima ao espírito que é útil ao bem público.

Em decorrência desta verdade, o espírito que triunfa nas

pequenas sociedades raramente triunfa junto ao público.

Tal homem ou tal obra, pelo contrário, fazem honra à

nação, mas não obtêm êxito nas sociedades particulares.

Se o público não considera o espírito medíocre é porque

ele não é útil nunca. Se porventura algum espírito medíocre

tornar-se general ou ministro, ele será reverenciado porque teve

a ventura de tornar-se útil. Além do que, é costume ter-se

indulgência para com os grandes. Não se exige da comédia

italiana os mesmos talentos que da comédia francesa.

Entre a morte de altos funcionários e de artistas, os

últimos são os mais enaltecidos porque a posteridade usufruirá

de seus trabalhos, ao passo que os primeiros só são úteis ao

seu tempo.

Certos espíritos célebres em um lugar ou

24

em um século, não o são em outros séculos ou em outros

lugares. Os sofistas e os teólogos, tão ilustres outrora, recolhem

o desprezo dos séculos esclarecidos. As farsas de Scarron

fizeram sucesso antes do tempo de Molière.

Existem ideias que agradam em todos os lugares e em

todos os tempos: umas são instrutivas e outras agradáveis.

Existem das duas em Homero, Virgílio, Cornélio, Tasso e Milton,

que não são limitados à expressão de uma nação ou de um

século, mas pintam a humanidade. Poucos homens são

insensíveis à harmonia e aos quadros de grandes objetos. Os

quadros voluptuosos que chamam à memória os prazeres dos

sentidos e, sobretudo, os do amor, estão igualmente no gosto de

todos os povos. Os filósofos que descobrem verdades úteis têm

a estima de todos os séculos e, em todos os séculos, amam-se

os poetas que fazem a virtude ser amada.

Mas o que é a virtude? Com esse nome se nomeia as

ações úteis nas pequenas sociedades. Um homem que esconde

do rigor das leis um parente culpado passa por virtuoso nessas

sociedades.

Um ministro que recuse amigos, parentes e cortesãos

para em seus lugares preferir um homem de mérito e o bem do

estado, deve ter na corte a reputação de um homem duro, inútil

e desonesto.

Na corte chama-se prudência a falsidade, loucura a

coragem de dizer a verdade. Dá-se aí o título de bom ao príncipe

que prodigaliza os recursos do Estado, o nome de amável ao

príncipe que concede aos seus favoritos ou à sua amante,

cargos importantes à felicidade da nação.

Como então saber se alguém é virtuoso? Guiais todas as

vossas ações ao bem do maior

25

número? Então sois virtuosos. Sim, a virtude é unicamente o

hábito de dirigir as ações ao bem geral. É em consideração a

este ponto de vista que se pode formar ideias nítidas e precisas

das quais os moralistas não obtiveram a posse até o momento

presente.

Uns, à frente dos quais se encontra Platão, só recitaram

engenhosos devaneios. A virtude, segundo eles, é ideia de

ordem, de harmonia, do bem essencial. Outros, à testa dos

quais está Montaigne, sustentam que as leis da virtude são

arbitrárias porque observam que uma ação viciosa ao norte é

com frequência virtuosa ao sul. Os primeiros, por não terem

consultado a história, vagueiam num labirinto de palavras. Os

segundos, por não terem meditado sobre a história, pensam que

o capricho decidiu sobre a bondade e a maldade das ações

humanas.

O amor da virtude é então unicamente o desejo da

felicidade geral. As ações virtuosas são aquelas que contribuem

a esta felicidade. Os povos, por mais atrasados que sejam, em

seus costumes mais singulares, sempre têm em vista

unicamente a sua felicidade. E se, em certos países e lugares se

honram ações que nos parecem culpáveis, é que nesses países,

essas ações são úteis. O furto feito com habilidade era louvado

em Esparta, porque nesta república toda militarizada e onde não

havia espírito de propriedade, a vigilância e a destreza eram

qualidades úteis. Na China, onde a população é excessiva, é

permitido ao pai enjeitar ou matar os filhos. Esta lei, tão cruel na

aparência, evita um mal maior e é, por consequência, útil. Enfim,

em todos os lugares, é a utilidade que torna as ações criminosas

ou virtuosas.

Mas em todos os lugares se liga a ideia de virtude

26

a ações que não podem produzir bem algum. É verdade. Mas é

que se está persuadido que essas ações produzem um bem,

seja para esse mundo, seja para o outro. Eu chamo de virtudes

preconceito a esses hábitos e ações que necessitam ser

eliminadas.

Esses hábitos fundamentam-se na preferência dada a

sociedades particulares em detrimento da sociedade geral. É

isso que as torna viciosas.

Que bem faz ao mundo e à pátria a severidade dos

monges e dos faquires? De que utilidade pode ser a loucura dos

indianos que se fazem devorar pelos crocodilos?

Trata-se de crimes de preconceito como se trata de

virtudes de preconceito.

Eu chamo de crimes de preconceito as ações

condenáveis pela opinião, embora não prejudiquem ninguém.

Que mal faz um brâmane que toma por esposa uma virgem ou

um homem que come um pedaço de carne de vaca em vez de

uma porção de batatas?

As virtudes de preconceito são por vezes costumes

cruéis, como o costume dos Giagues5 de esmagar crianças em

um pilão para compor uma pasta que, segundo os sacerdotes,

os torne invulneráveis.

Há poucos povos que não tenham pelos crimes de

preconceito mais horror que pelas ações mais nocivas à

sociedade e mais estima pelas práticas minuciosas e

indiferentes que pelas ações úteis à nação.

Da existência de virtudes reais e virtudes de preconceito

segue-se que há nos povos duas espécies de corrupção: uma

política e outra religiosa. Esta última pode não ser criminal

quando ela se alia ao amor do bem público, aos talentos e às

verdadeiras virtudes.

5 Ver Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers,

"Jagas, Giagas ou Giagues", page 8.433. (N.T.).

27

A corrupção política prepara, ao contrário, a queda dos

impérios. O povo é corrompido e logo os particulares separam

os seus interesses do interesse geral.

Às vezes, esta corrupção se une à outra. Então os

moralistas ignorantes as confundem. Mas elas com frequência

encontram-se separadas. A corrupção religiosa é, não raro,

apenas o amor do prazer e é inspirada pela natureza que ela

satisfaz sem a aviltar. Já a corrupção política é o efeito do modo

de governar.

É dentro da legislação e da administração dos impérios

que é necessário procurar a causa dos vícios e das virtudes dos

homens.

As recitações dos moralistas só satisfazem a sua vaidade

e não produz nenhum bem. Seus discursos afrontosos não

podem mudar nossos sentimentos. Nossos sentimentos são

efeito da natureza e das leis.

É preciso condenar menos o luxo, que pode ser

necessário a um grande Estado e a arte da cortesia, a que os

homens devem suas artes, gosto e virtudes políticas do que a

instituição que faz do homem um frouxo, um escravo, um

velhaco ou um tolo.

É típico de moralistas hipócritas, ver com indiferença os

males que conduzem sua pátria à ruína e se enfurecer contra

qualquer excesso de prazer.

Depois de colocados os princípios acima, pode se fazer

um catecismo em que os preceitos estarão claros, verdadeiros e

invariáveis. O povo, instruído por ele, não será contaminado por

vícios políticos e nem por virtudes de preconceito. E o legislador,

mais esclarecido, fará apenas leis úteis. E as leis serão

respeitadas.

28

A inexecução das leis prova sempre a inépcia do

legislador. A recompensa, a punição, a glória e a infâmia são as

quatro divindades que podem inspirar as virtudes e criar homens

ilustres de todos os tipos.

Para aperfeiçoar a moral, os legisladores dispõem de dois

recursos: um é unir os interesses particulares ao interesse geral;

o outro é de apressar o progresso do espírito. Mas, para acelerar

esse progresso, é preciso saber se o espírito é um dom da

natureza ou efeito da educação.

Esse é o assunto do terceiro discurso.

Todos os homens têm os sentidos suficientemente bons

para a percepção das mesmas relações nos objetos. Possuem

as mesmas necessidades e teriam a mesma memória, se eles

tivessem a mesma atenção.

Todos os homens bem constituídos são capazes de

atenção. Todos aprendem sua língua. Todos aprendem a ler e

compreendem ao menos as primeiras proposições de Euclides.

É suficiente para elevarem-se às mais importantes idéias,

contanto que esforcem a atenção. E para fazer esforço é

necessário ter paixão.

São as paixões que fecundam o espírito e o elevam a

grandes ideias. São elas que formaram e conduziram Licurgo,

Alexandre, Epaminondas, etc. São elas que inspiram os grandes

projetos, os meios extraordinários e as palavras sublimes, que

são arrebatamentos de almas fortemente passionais.

Tornamo-nos estúpidos na ausência das paixões.

Por vezes os príncipes mostram espírito para o

despotismo, Mas, uma vez que seus desejos estão saciados,

não têm mais coragem de se arrancarem às

29

delícias da ociosidade e se embrutecem em suas grandezas.

Mas todos os homens são capazes do mesmo grau de

paixão?

A origem das paixões está na sensibilidade física, no

amor do prazer e no medo da dor, que movimentam igualmente

todos os homens.

O avaro, em se privando de tudo, se propõe a assegurar

os meios do usufruto dos prazeres e da ausência dos males. O

ambicioso tem o mesmo intento na procura das procurar as

grandezas. O amor da glória e da virtude é apenas o desejo de

desfrutar as vantagens que a glória e a virtude acarretam.

Todos os homens são capazes do mesmo grau paixão.

Todos podem amar doidamente a glória e a virtude. Então, todos

têm a potência de se elevar às maiores ideias e de fazer coisas

excepcionais, Nascidos iguais, os homens tornam-se diferentes

pelas leis e pela educação. Esta, a educação, deve preparar à

obediência e ao respeito para com as leis. Contudo, é muito

negligenciada. Para saber o que ela pode fazer nos espíritos é

importante determinar de maneira precisa as ideias que se

assentam aos diversos nomes dados ao espírito. É o que nos

vamos apreciar no quarto discurso.

O nome de gênio é dado apenas aos espíritos inventores.

Sua invenção se apóia nos detalhes ou no fundamento das

coisas. É o trabalho provocado pelas paixões e, sobretudo, pela

paixão da glória que impele a alma à intensa meditação e faz

descobrir novas verdades e novas combinações. Os objetos que

rodeiam o gênio e as circunstâncias onde ele se encontra

colocado determinam e limitam a sua genialidade.

A imaginação é a invenção de imagens, como o

30

espírito é a invenção de ideias. Ela brilha nas descrições, nos

quadros. As pinturas são ou grandes ou voluptuosas.

O sentimento é a alma da poesia. O autor que está dela

privado, está sempre aquém ou além da natureza. Aquele que

tem apenas espírito está sempre afastado da simplicidade.

O espírito é apenas um conjunto de novas ideias que não

é suficientemente extenso, nem importante para merecer o

nome de genialidade. Assim Maquiavel e Montesquieu são

gênios. La Rochefoucauld e La Bruyère são homens de espírito.

O talento é uma aptidão a um só gênero, dentro do qual

resulta apenas uma invenção medíocre.

O espírito é fino quando percebe pequenas coisas e as dá

à existência.

O espírito é forte quando produz ideias próprias a causar

fortes impressões.

Ele é luminoso quando produz claramente as ideias

abstratas.

É extenso quando discerne um conjunto e vê nele

relações afastadas.

É penetrante e profundo quando vê tudo nos objetos.

O belo espírito tem mais escolhas de palavras e rodeios

de frases do que tem de ideias.

O espírito do século, o espírito do mundo é frívolo e se

ocupa de coisas pequenas. Se por acaso se ocupa de grandes

homens ou de obras célebres, é para rebaixá-los. É o deus da

zombaria que considera com um riso maligno e um olho

zombeteiro o Panteão, a igreja de São Pedro, o júpiter de Fídias.

A genialidade e o espírito são efeitos da força ou da

vivacidade das paixões. O bom senso é efeito de

31

sua moderação e se restringe quase ao espírito de conduta.

Mas é natural, dizem, das pessoas parecerem insensíveis

às paixões da virtude e da glória. É culpa do clima? É do modo

de governar?

Em suas repúblicas Horácio Cocles e Leônidas só podiam

ser heróis. Nessas repúblicas, os homens pouco apaixonados

não eram os melhores cidadãos.

As repúblicas se corrompem quando as honras e os

prazeres estão atrelados ao poder e à tirania, Os mesmos

homens que teriam sido Cipiões e Camilos serão Mários e

Catilinas.

A consideração é uma glória atenuada. Quando ela está

unida à autoridade faz aduladores e intrigantes. O dinheiro torna-

se mais venerado que a virtude. Vêem-se aos Cincinatos e

Catões sucederem-se Crassos e Sejanos. A mais alta virtude e o

vício mais odioso são ambos, efeito do prazer que encontramos

aos nos entregarmos a um ou a outro.

Todos os homens possuem um desejo secreto de ser

déspota, porque todo homem tem, uns mais outros menos, o

desejo de se fazer servir dos outros para a sua felicidade.

Nem sempre é preciso talentos e coragem para

estabelecer uma tirania. Só é necessário um atrevimento comum

e vícios. O príncipe começa por dividir as classes de cidadãos,

por espalhar anarquia e por fazer desejar a uma parte da nação

o descrédito da outra parte. Faz em seguida brilhar a espada do

poder, coloca as virtudes no rol dos crimes, multiplica os

32

delatores, ordena a sufocação das informações e exila os

Sênecas e os Traseias.

Porém, os déspotas dão aos militares, que lhe são

sempre devotados, o sentimento de força e acabam sendo suas

vítimas.

A história dos imperadores de Roma e de Constantinopla,

dos sultões dos turcos, dos czares, etc., são provas desta

verdade. O homem mais culpado de lesa-majestade é, por

conseguinte, aquele que aconselha o príncipe o uso de

excessos e de não ter limites no uso de sua autoridade.

Os déspotas, senhores absolutos dos povos que não

ousam censurá-los, não têm interesse em se tornarem

esclarecidos. Seus ministros, colocados por intriga, não têm

conhecimento de justiça e de administração e ideia alguma de

virtude. Por conseguinte, a corrupção do povo sustenta a

ignorância e a inépcia dos príncipes e seus ministros.

Só há virtude nas sociedades onde a legislação une o

interesse particular ao interesse geral. Nos povos em que o

poder é repartido entre o povo, os grandes e os reis, a

necessidade das diversas classes de se ocuparem dos assuntos

importantes e a liberdade de tudo pensar e tudo dizer, dão às

almas força e nobreza.

Uma pequena cidade na Grécia produziu grandes homens

e as mais belas ações que todos os ricos e vastos impérios do

Oriente.

A força das paixões é proporcional às recompensas que

lhe são correlacionadas. As pilhas de ouro do México e do Peru,

exaltando a avareza dos espanhóis, lhes têm feito fazer

prodígios. Os discípulos de Maomé e de Odin, na esperança de

possuírem as huris ou as valquírias, não se importavam

33

com a morte. Em todo lugar onde as letras resultam em

consideração e sucesso, elas são cultivadas com êxito.

O bom senso, que é efeito das paixões fracas, não cria,

não inventa, não muda e nem esclarece. Quando tudo está em

ordem, ele preenche bem os lugares importantes. Se for

necessário combater abusos, o bom senso é inepto.

Somente gênios inspirados por fortes paixões fundam ou

recuperam os impérios.

O gosto é o conhecimento do que agrada a todos os

homens ou a um determinado povo. Adquire-se o gosto deste

último tipo pelo hábito de comparar os julgamentos e se adquire

o gosto do primeiro tipo, que é o verdadeiro gosto, pelo

conhecimento profundo da humanidade.

Para se ter êxito nas artes, nas ciências e nos negócios,

primeiro é necessário se persuadir de que não há excelência

simultânea em todos os gêneros. Newton não é reputado entre

os poetas, nem Milton entre os geômetras.

Há talentos exclusivos. Há certas qualidades e mesmo, se

atrevo dizer, certas virtudes particulares exclusivas para

determinados talentos. A ignorância desta verdade é a causa de

mil injustiças. Elogia-se a moderação do filósofo e ao mesmo

tempo se lastima sua pouca emotividade, não se apercebendo

que ele deve o talento da observação à tranquilidade de sua

alma. Pretende-se que o homem excepcional seja sempre sábio,

mas se esquece que a genialidade é a força da paixão,

raramente compatível com a sabedoria.

Pode-se saber por três sinais, se acaso se nasceu para

realizar grandes feitos: 1º. Se muito se ama a glória para

sacrificar todas as outras paixões;

34

2º. Se ardentemente se admira as belas ações ou os trabalhos

consagrados pelo apoio de todos os tempos; 3º. Se

verdadeiramente se ama os grandes homens do seu tempo.

Após essas ideias sobre as diferentes espécies de

talentos, o autor termina como ele havia prometido, falando da

ciência da educação. Que ela é o conhecimento dos meios

próprios para formar corpos robustos, espíritos esclarecidos e

almas virtuosas. Esses meios dependem absolutamente do

governo. Sob um mau governo, a natureza e a educação não

podem produzir homens esclarecidos e virtuosos, porque esses

homens sempre querem a felicidade própria e, debaixo do jugo

das tiranias, a luz e a virtude não conduzem de maneira alguma

à felicidade.

Está aí um extrato fiel do livro 'Do Espírito'. Não é próprio

da obra humana e do homem serem vistos maior e melhor

observados nos detalhes. Tem-se dito de Descartes que ele

criou o homem. Pode-se dizer de Helvétius que ele o conheceu.

Foi o primeiro que fundou a moral sobre a base inquebrantável

do interesse pessoal. Helvétius é um dos filósofos que mais tem

esclarecido esse assunto e colocado em xeque os sistemas que

nos escondem de nós mesmos e nos dão ideias falsas de

virtude. Seu livro é a produção de uma alma verdadeiramente

tocada pelos infortúnios que afligem as grandes sociedades.

Nenhuma pessoa fez sentir melhor sobre que princípios é

preciso estabelecer um governo e os inconvenientes de toda

constituição política onde as vantagens de um pequeno número

são preferidas à felicidade do maior número. Sólon disse;

―Atenienses, vós estareis tão convencidos de que é do vosso

interesse seguir minhas leis, que não sereis tentados a

transgredi-las‖.

Eis o que devem dizer todos os legisladores

35

e o que Helvétius receita a eles. Seu livro tem ainda uma

vantagem que o coloca acima de muitos outros. É o estilo

sempre claro e nobre. Quando o autor fala de uma verdade nova

ou abstrata, ele é simples e preciso. Acostumado o vosso

espírito a essas novas ideias, seu estilo torna-se majestoso,

forte e gracioso. Tendo-vos apresentado uma dessas verdades

particularmente interessantes aos homens, ele a abrilhanta com

as riquezas de sua imaginação. E essa imaginação, sempre

submissa à filosofia, a embeleza sem a desencaminhar. Ela

serve apenas para tornar as verdades mais sensíveis e, por

assim dizer, mais evidentes. É com essa mesma intenção que

ele espalha no seu livro tantos contos agradáveis e

interessantes. Seus contos são apologias e se ele os não tem

poupado, é preciso se lembrar que ele escreveu na França e

que ele falava a um povo ainda criança.

Logo que esta obra apareceu em Paris, os verdadeiros

filósofos a apreciaram. Os pequenos moralistas ficaram

enciumados, a alta sociedade, enquanto aguardava que fosse

julgado, comentava depreciativamente e os hipócritas se

alarmavam e com razão. Uma mulher famosa por seu espírito

prendado e firmeza de caráter (senhora Du Deffant) disse a

respeito de Helvétius: ―É um homem que disse o segredo de

todos‖.

Os teólogos prepararam um plano de perseguição que

fizerem anteceder por críticas absurdas. Disseram no "Jornal

cristão" e em enfáticas pastorais: ―Que o prejudicial livro 'Do

Espírito' era um vapor saído do abismo. Que o autor era um leão

que atacava a virtude à viva força. Uma serpente que caçava por

emboscada. Que ele colocava o homem no nível das bestas,

36

sem respeito por Orígenes que disse expressamente que o

homem opera pela razão e os animais por instinto. Que o autor

estava errado ao falar de legislação visto que se acha nos

Evangelhos tudo o que é preciso saber disso. Que não há nada

nos livros sagrados, nem nos Santos Padres da igreja do que

está contido no livro 'Do Espírito'. Que o amor da glória e o amor

da pátria devem ser condenados como paixões, porque todas as

paixões são frutos do pecado‖.

Outros teólogos de igual clareza e lucidez disseram: ―Que

a filosofia dos enciclopedistas e de Helvétius espalhavam um

odor de morte que infectaria toda a posteridade e que era uma

planta maldita que sufocaria de tempos em tempos o bom grão

semeado no campo do pai de família‖.

De início Helvétius recebeu todas essas críticas com

tranquilidade. Ele nem mesmo pensou em responder a

acusações tão vagas e absurdas. Como faria isto? Como provar,

disse Pascal, que não se está à porta do inferno? Ele ficou um

pouco apreensivo quando foi ameaçado de censura pela

Sorbona. Ele a viu aparecer e só achou-a ridícula. Uma

sequência de algumas das proposições condenadas por esta

faculdade justificará bem o desprezo de Helvétius.

―A sensibilidade física produz as nossas ideias. Ou, o que

é o mesmo; nossas ideias nos vêm através dos sentidos‖.

―O desejo de nossa própria felicidade é suficiente para

nos conduzir à virtude‖.

―É por boas leis que se produzem homens virtuosos‖.

"A dor e o prazer fazem os homens pensar e agir".

37

―É preciso tratar a moral como as outras ciências e fazer

uma moral como uma física experimental‖.

―É à maneira diferente pela qual o desejo de felicidade se

modifica que se devem os vícios e as virtudes‖.

―Os homens não são maus, apenas submissos aos seus

interesses‖.

―As ações virtuosas são as ações úteis ao público‖.

―De todos os prazeres dos sentidos, o amor é o mais

arrebatador‖.

―É preciso lamentar menos a maldade dos homens do que

a ignorância dos legisladores, que têm colocado sempre em

oposição o interesse particular ao interesse geral‖.

―Um tolo produz tolices como uma planta selvagem

produz frutos amargos, etc. etc.‖.

Depois do aparecimento dessa censura, alguns padres e

o jesuíta chamado Neuville, pregaram em Paris e na corte contra

o livro 'Do Espírito'.

O ódio dos molinistas e dos jansenistas estava então em

plena ebulição. Essas duas facções se acusavam

reciprocamente de trair os interesses da religião e, para se

justificar, uns e outros se excitavam com grande fervor contra os

filósofos. Os jansenistas tinham mais crédito no parlamento e os

molinistas em Versalhes. Os jansenistas queriam fazer queimar

o autor do livro e os jesuítas, perseguindo-o, queriam se fazer

honrados na corte.

É necessário lhes fazer justiça. Muitos dentre eles eram

amigos de Helvétius, tanto quanto podem os jesuítas ser

amigos. Ele havia tratado sua ordem com deferência e,

38

na sua obra, onde ele gracejava de tantos pregadores e

doutores, não havia citado um único jesuíta. Esses padres eram-

lhe gratos por isto e no começo falaram do seu livro com

moderação. Deram-lhe mesmo alguns elogios. Mas os

jansenistas, declarando-se perseguidores de Helvétius,

estimularam a rivalidade dos jesuítas contra ele. A 'Gazeta

Eclesiástica' se desprendeu contra Helvétius. Berthier não podia

se calar com decência. Afinal, estando o parlamento prestes a

atuar severamente no caso, os jesuítas sentiam-se humilhados

de não terem participado da maquinação.

Um deles, amigo a vinte anos de Helvétius (e esta

qualidade me impedirá de nomeá-lo), imaginou que seria uma

honra infinita a si mesmo e à sua ordem, se pudesse fazer um

filósofo retratar-se. Tramou uma intriga contra o seu amigo

benfeitor e a executou com a diligência e a perfídia afetuosa de

um padre da corte.

De início, propôs a Helvétius a assinatura de uma

pequena retratação, que devia, dizia ele, lhe reconduzir às

bondades da rainha e lhe preservar dos furores jansenistas.

Helvétius consentiu em repetir num escrito particular o que ele

havia dito no seu prefácio do seu livro. ―Que se, contra a sua

expectativa, alguns dos princípios não fossem concordes ao

interesse do gênero humano, ele declarava já, antecipadamente,

os reprovar e que, sem garantir a verdade de nenhuma de suas

máximas, ele só garantia a retidão e a pureza das suas

intenções‖.

O jesuíta de início, se fez valer de ter obtido uma espécie

de retratação, mas queria outra mais precisa, mais detalhada e

sobretudo humilhante. Ele sugeriu à rainha a vontade de exigi-la.

Mostrou a Helvétius a necessidade de se resolver a fazê-la e

não obteve resultado. Escreveu então à senhora

39

Helvétius para assustá-la, mas ele escreveu a uma mulher

corajosa e determinada a viver com seu marido e crianças no

exílio. Conseguiu melhor intento junto à mãe de Helvétius. Ela foi

persuadida que seu filho devia à rainha o que esta princesa lhe

exigia. Ela insistiu com Helvétius e afligiu por muito tempo o seu

coração, sem poder abalá-lo.

Ele acreditava ter-se expressado no livro com

conveniência e reserva suficiente para colocá-lo ao abrigo da

censura. E mais: havia se submetido a todas as formalidades

jurídicas. Havia tido um censor real, de quem ele acatara os

julgamentos. Como então poderia ser culpado? Mesmo quando

seu livro tornou-se repreensível, só se poderia culpar o censor.

Porém, era isso que ele mais temia. Não podia suportar a ideia

que ia ser a causa da desgraça, talvez mesmo da perda de um

homem estimável. Assim, para salvá-lo, ele assinou o que se

queriam6.

Assim, por ter demonstrado que a única maneira de tornar

os homens virtuosos e felizes era combinando o interesse

particular com o interesse geral, Helvétius foi tratado como

Galileu o foi por ter demonstrado o movimento da terra. Galileu,

após ter pedido perdão de joelho, disse em se levantando, "E

però si muove". A posteridade tem sido de sua opinião. Do

mesmo modo, quanto mais ela se esclareça, mais pensará como

Helvétius.

Bem se crê que a sua submissão não apaziguou

6 Voltaire escreveu ao S. Lefebvre La Roche a respeito desta retratação: “Foi-

me falado de uma retratação. Aí eu só sinto a honra a quem se fez isto: honra e glória ao perseguido nessas espécies de tirania!”

40

os padres. Ele recebeu ordem de se desfazer do cargo e o

senhor Tercier, seu censor, foi destituído do cargo de primeiro

funcionário de assuntos estrangeiros. Esses rigores foram

trabalho dos jesuítas. Os jansenistas queriam ir mais longe. O

parlamento, que com certeza não entendeu o livro 'Do Espírito',

ia processar o senhor Tercier e Helvétius, quando uma decisão

do conselho que se restringia a suprimir o livro, salvou o autor e

o censor.

Enquanto uma seita de teólogos usufruía o prazer de

humilhar Helvétius e a outra se deleitava na esperança de fazê-

lo queimar, os jornalistas franceses misturavam suas vozes com

as de seus tigres. Trataram o livro 'Do Espírito' como eles tratam

todo trabalho que se eleva acima da mediocridade. Suas críticas

foram repetidas e são ainda pelos homens de boa fé, que só têm

em comum com os jornalistas o fato de não entenderem

Helvétius.

Acusaram-no de ter dito o que os antigos já tinham dito

antes dele. Sem dúvida, várias verdades que se encontram no

seu livro se acham também nos antigos, mas lá, elas são

esparsas e isoladas, sem que se apercebam as relações que há

entre elas. Em Helvétius, ao contrário, elas estão ligadas, elas

se apóiam e formam o sistema do homem.

Esta verdade, "todas as nossas ideias nos vêm dos

sentidos", se encontra em Aristóteles e em Epicuro, mas é só em

Locke que ela é desenvolvida, demonstrada e fundamenta o

conhecimento do espírito humano. Por consequência, é a Locke

que ela pertence.

"O que é vício ao norte é virtude ao sul", está em

Montaigne como em Helvétius, mas em

41

Montaigne, esta verdade é dada como um fenômeno do qual se

ignora a causa. Em Helvétius a causa é consignada. As

verdades pertencem menos àqueles que as proferem como

simples asserções do que àqueles que as demonstram, as

desenvolvem, as ligam a outras verdades e as tornam mais

fecundas.

Acusa-se Helvétius de falta de método. E se fez a mesma

censura a Montesquieu. Essas reprovações só puderam ter sido

feitas por homens que, por falta de atenção e de capacidade,

não compreenderam o conjunto dos livros 'Do Espírito' e 'O

Espírito das Leis'. A sequência de ideias escapa em

Montesquieu porque ele é obrigado a omitir frequentemente as

intermediárias, mas este encadeamento não deixa de existir. Ela

escapa em Helvétius porque as ideias intermediárias, sendo ou

muito novas ou muito importantes, ele desenvolve-as, estende-

as e embeleza-as. Sendo o espírito, surpreendido por

numerosos detalhes, perde de vista a sequência das ideias

principais, mas essas sequências, nem por isso, estão menos

em sua obra.

Atreveu-se a dizer que Helvétius reduziu a nada todas as

virtudes7 porque fez do interesse o móbil de todas as ações.

Mas o que Helvétius entende pela palavra 'interesse'? O amor

do prazer, a aversão à dor. A que se reduz então o

7 Em geral o que resta na cabeça das pessoas é que esse livro ('O Espírito')

contem princípios perigosos. Que vulgaridade! Em primeiro lugar e na maior parte do tempo, não se quer compreender a verdadeira significação dos termos. Em segundo lugar, não depende de nenhum livro por mais inspirado que seja, de corromper a moral, como infelizmente não depende de nenhum filósofo, por mais falador e eloquente que possa ser, de aperfeiçoá-la. O governo e a legislação têm com exclusividade esse poder e é depois de sua ação e reação que a moral pública assume seu exato nível de sabedoria ou de corrupção. Os livros não fazem nada. (Grimm, Correspondance littéraire, janvier 1772).

42

que ele diz? A esta verdade eterna que, seja na virtude, seja nos

prazeres, o desejo de nossa felicidade é sempre o nosso móbil.

Acusaram-lhe também de favorecer a corrupção dos

costumes e a libertinagem porque ele fala do entusiasmo da

virtude e da glória que o amor das mulheres tem com frequência

inspirado junto aos espartanos, aos samnitas e junto aos nossos

ancestrais. Entretanto se vê nos princípios de Helvétius que, se

a liberdade reinava junto a um povo, as mulheres eram aí muito

pouco estimadas para que o desejo de lhes agradar viesse a ser

um motor possante e que, quando os prazeres são comuns ou

fáceis, não se os compra nem por trabalhos e nem por perigos.

Reprova-se em Helvétius ter falado friamente das virtudes

privadas e úteis apenas nos pequenos grupos sociais. Não é

que ele não sentisse a estima que lhes é devida. Ele as possuía

todas, mas elas são menos seu objeto que as virtudes que

contribuem à felicidade e à glória das nações. E mais, quando os

prazeres são comuns ou fáceis, não se os compra nem por

trabalhos nem por perigos.

O que o comum dos leitores menos perdoou em Helvétius

é ter ele pretendido que todos os homens nascem com a mesma

disposição ao espírito e que não havia homem a quem a

educação e o trabalho não pudessem elevar ao nível de gênio.

Segundo ele só a educação é que distingue os homens. A

natureza os tem feito iguais. Ele não leva em conta as diferenças

de temperamento e de constituição física. Supõe que o órgão

interior que recebe as sensações é o mesmo em todas as

cabeças, recebe essas sensações da mesma maneira, opera em

todos com a mesma facilidade e enfim, que é somente as

circunstâncias e a

43

educação que fizeram Newton geômetra, Homero poeta, Rafael

pintor e tal crítico um tolo. Ele emprega toda sua força para

estabelecer esta opinião, mas, infelizmente, até o presente não

tem conseguido. Mas dos esforços que fez para prová-la, resulta

a evidência de uma grande verdade. Que para desenvolver e

formar os nossos talentos e qualidades, nós contamos muito

com a natureza, mas não o suficiente com a educação. A

máxima de Locke, que nós nascemos discípulos dos objetos que

nos rodeiam, é proclamada por Helvétius. Além do que, se

acontecer de um homem não nascer com as mesmas

disposições dos outros homens, todos em conjunto são

reputados iguais. O legislador que comanda vinte milhões de

homens deve ver em todos as mesmas faculdades. E suas leis,

como aquelas da natureza, devem ser gerais. Não devem

escolher pessoas para inspirar unicamente nelas a virtude ou a

genialidade. Cabe ao filósofo, que observa os homens em

detalhe, ver as diferenças que a natureza colocou entre eles.

Mas essas diferenças desaparecem aos olhos do legislador.

Sem me deter mais nas críticas feitas contra um dos

melhores trabalhos deste século, direi que ele foi condenado em

Roma pela Inquisição, mas que esta condenação, solicitada pelo

clero francês, não teve nenhum efeito na Itália. Lá o livro foi

traduzido, admirado e reimpresso. Vários homens revestidos das

principais dignidades da Igreja, e entre outros, o cardeal

Passionei, apressaram-se em escrever ao autor para lhe

agradecer o prazer que lhes havia dado. Outro cardeal, que nós

não nomeamos porque ainda é vivo, lhe comunicou "que não se

concebia em Roma a tolice e a maldade dos padres franceses".

44

Todos os jornais da Itália o cobriram de elogios. Um disse,

falando do livro: ―Questa è un opera che all’umanità apporterà

infallibilmente un gran vantaggio‖. Outro diz do autor: ―Il grande

autore deé rallegrarsi, essendo sicuro della gratitudine e della

stima che per lui avranno i veri dotti e quelli che ben

comprendono le di lui grande idee‖.

O sucesso foi o mesmo na Inglaterra. Traduzido em

Londres, se fez aí numerosas edições no primeiro ano. Na

Escócia, Hume e Robertson falaram como de um trabalho

superior. Vários poetas ingleses o comemoraram. Não houve

críticas nesta ilha esclarecida a não ser por um pequeno número

de partidários da filosofia de Platão, que lá se conserva

embelezada e tornada sedutora pelo milorde Shaftesbury.

Na Alemanha, logo de início apareceram duas edições do

livro de Helvétius. O famoso Gottscheid colocou no frontispício

de uma dessas traduções um prefácio em que ele diz que ―se o

livro 'Do Espírito' foi condenado na França e num país que crê

na infalibilidade do papa, ele deve fazer sucesso entre os

protestantes e nos países onde os homens conservam seus

direitos‖. Ele acrescenta que ―o autor vem destruir vários

preconceitos funestos à sua pátria e esclarece o mundo sobre os

princípios da moral e da legislação‖.

Seu livro foi lido com avidez em todas as cortes da

Alemanha e recebido com os mesmos arrebatamentos na

Suécia e mesmo na Rússia. A rainha da Suécia disse a um

homem que ela honrava com a sua confiança: ―Como eu

gostaria de conversar com Helvétius! Queria ao menos que ele

soubesse do prazer que me tem dado. Escreva-lhe de minha

parte o quanto eu o admiro‖.

45

O embaixador francês em Petersburgo lhe escreveu: ―Ao

chegar encontrei o espírito russo tão ocupado com o vosso

quanto todo o resto da Europa. É com grande prazer que me

encarrego de ser o intérprete das pessoas esclarecidas desta

nação. Eu tomo a liberdade de engrandecer as vossas

qualidades junto a eles. Eu devo como cidadão e como ministro,

conhecer e fazer conhecido tudo o que honra minha pátria‖.

É pequeno número de franceses cujos apoios merecem

ser contados, mencionando com elogio em seus trabalhos o livro

'Do Espírito' e ou defendendo com calor nas conversas. Voltaire

deu a Helvétius os testemunhos mais carinhosos de sua estima.

Parecem vossos versos de Apolo feitos pela mão.

Tereis apenas meu reconhecimento por fruto.

Vosso livro é ditado por íntegra e reta razão,

Partais depressa e deixeis na França tudo.

Voltaire lhe oferece um amparo. Ele lhe consola, apóia,

encoraja, deseja e propõe de viver em inteira independência,

onde possa fazer uso de seu amor pela verdade, da eloquência

e da genialidade. Ao mesmo tempo ele escreve a outras

pessoas que é o partidário mais zeloso de Helvétius. Que a

França é bem ridícula porque, logo que aparece uma verdade

entre nós, todo mundo fica alarmado como se os ingleses

estivessem nos invadindo. Na Inglaterra, acrescenta ele, o livro

'Do Espírito' só tem feito discípulos e amigos para o autor

porque, em lugar de hipócritas e pequenos importantes, os

ingleses têm filósofos que nos instruem e marinheiros que nos

castigam nas orelhas. Voltaire convida, sobretudo, os seus

46

compatriotas a imitarem os ingleses na nobre liberdade de

pensar e no profundo desprezo pelas frivolidades de escola.

Assegura que há muito tempo não tem visto um só homem de

sociedade que, sobre as coisas essenciais, não pense como

Helvétius.

Tantas aprovações ilustres, edições do livro 'Do Espírito'

que se sucederam rapidamente, seu sucesso em todas as

nações: Testemunhos que o autor podia estar convicto de ter

feito um livro útil ao gênero humano. Sinais evidentes do

reconhecimento universal. Assim, o doce sentimento de sua

glória sarou logo as feridas que a intriga e a inveja tinham feito

em Helvétius. Ele tornou-se mais feliz como jamais foi.

Ele passava a maior parte do ano em suas terras em

Voré. Bom marido e bom pai, contente de sua esposa e de suas

crianças, lá saboreava os prazeres da vida doméstica. A

felicidade desta família era percebida até mesmo por aqueles

que estavam menos preparados para a sentirem. Uma senhora

da sociedade disse, falando deles: ―Essa gente não pronuncia

como nós as palavras 'meu marido, minha esposa, minhas

crianças'‖.

Helvétius tinha se preparado desde há muito tempo para

outra espécie de felicidade. Logo que ele tomou posse de suas

terras em Voré, ele se entregou a seu caráter de beneficência.

Nesta terra havia um fidalgo de nome Senhor de

Vasseconcelle. Ele possuía apenas uma pequena propriedade

foreira e há muito tempo não fazia os devidos pagamentos ao

senhorio. Helvétius, comprando a terra, comprou também os

direitos sobre as somas que eram devidas à Voré. Os

administradores, para mostrarem serviço ao novo senhor, não

47

deixaram de exigir com rigor tudo o que lhe era devido. Fazia

poucos dias que ele havia chegado, quando lhe foi anunciado o

senhor de Vasseconcelle. Este conta ao senhor Helvétius que a

situação de seus negócios não lhe havia permitido de pagar o

foro que devia à Voré já há alguns anos e que no momento não

estava em condição de acertar tudo, mas se comprometia para

dali em diante pagar exatamente o ano corrente e os atrasados

de um ano. Acrescentou que se lhe fosse exigido mais e se

continuasse os procedimentos de cobrança, estaria arruinado

irremediavelmente. Ele pediu a Helvétius que desse ordem aos

administradores de cessassem os procedimentos de execução.

―Eu sei, lhe diz o filósofo, que você é um homem de sociedade e

que não é rico. Daqui para diante, você me pagará como puder.

Eis aqui um papel que deve impedir os meus administradores de

lhe importunarem‖. Ele lhe deu uma quitação geral. O senhor de

Vasseconcelle se joga seus joelhos gritando: ―Ah! Senhor, vós

salvais a vida de minha esposa e de cinco crianças‖. Helvétius o

ergue abraçando-o. Fala-lhe com o interesse mais nobre e terno

e lhe faz aceitar uma pensão de mil libras para criar os filhos.

Outros homens de sociedade ou vizinhos, ou vassalos do

senhor Helvétius, recorreram a ele em suas necessidades.

Muitos respondiam processos. Alguns, que suspensa a guerra,

tinham um rebanho a refazer ou equipamentos a recuperar e

outros que tinham crianças a educar ou um bem em desordem

podiam contar com a ajuda do senhor de Voré. Entre todos os

homens desta condição, que lhe deviam obrigações, nomeamos

apenas MM. De L'Étang, que não quis jamais calar os benefícios

que ele recebeu de Helvétius.

48

Se os seus rendeiros tiveram alguma perda ou se o ano

não fora fecundo, lhes perdoava as dívidas e com frequência

lhes dava dinheiro. Ele fixou em suas terras um cirurgião,

homem de valor. Montou uma farmácia bem abastecida para

distribuição de remédios a todos que necessitassem. Quando

um camponês caia doente, recebia carne, vinho etc., tudo o que

convinha ao seu estado. E Helvétius ia visitá-lo com frequência,

consolando e se preocupando que tivesse bons cuidados e que

fosse bem servido. Algumas vezes lhe servia ele mesmo. Tinha

uma maneira bem segura de terminar quaisquer processos:

Pagava de imediato o preço da coisa contestada.

Ele era amigo zeloso e atencioso de pequeno número de

camponeses que mostravam bons costumes e bondade.

Gostava de ter à mesa homens idosos e senhoras muito velhas

que tinham toda a rudeza de sua idade, mas que eram justas e

praticavam o bem.

Com frequência fazia os seus amigos desfrutarem um

espetáculo deleitoso. O da sua chegada à campanha. Mulheres,

velhos e crianças vinham rodeá-lo, abraçá-lo, soltando gritos e

derramando lágrimas de alegria. À sua partida, seu coche era

seguido, por muito tempo, por uma multidão de vassalos ou de

vizinhos.

Ele estimulava o trabalho em suas terras. E queria

provocar a industrialização de Voré porque só assim se podia

dar aos habitantes a suficiência que lhes era recusada pela

esterilidade do solo. Tentou implantar uma fábrica de rendas

d’Alençon, mas até o momento não obteve sucesso. Foi mais

feliz num

49

outro empreendimento. Após ter sido enganado por agentes

infiéis, ou pouco inteligentes, finalmente estabeleceu uma fábrica

que emprega mão de obra não especializada, que faz dia a dia,

novos progressos.

Passava todas as manhãs a meditar e escrever. O resto

do dia procurava distração. Amava a caça e para torná-la mais

agradável, não imaginava aumentar as caçadas. É verdade que

não gostava de vê-la destruída nem pelos outros e nem por ele

próprio. Entretanto, estava cercado de caçadores ilegais.

Estabeleceu severas proibições, mas os guardas, que o

conheciam, não levavam à risca o estabelecido. Um dia, um

camponês veio caçar justamente debaixo das janelas do castelo.

Helvétius ficou irritado e ordenou que este homem fosse vigiado

de perto e preso na primeira ocasião. No dia seguinte,

trouxeram-lhe o culpado. Helvétius, muito irado, se levanta e

dirige apressadamente ao caçador que dois guardas seguravam

no pátio do castelo. Após o ter olhado um momento disse: ―Meu

amigo, você procedeu mal comigo. Se tinha necessidade de

caçar, por que não me pediu autorização? Eu lhe teria dado‖.

Em seguida às essas palavras, ordenou que o libertassem e lhe

devolvessem o que havia caçado.

Entretanto a senhora Helvétius, indignada com o

atrevimento dos caçadores, assegurou ao marido que caso não

houvesse punição, continuariam a caçar em suas propriedades.

Ele concordou e prometeu usar de rigor. Ordenou aos guardas

que multassem e desarmassem qualquer um que atirasse em

suas terras. Poucos dias após as novas ordens, prenderam um

camponês que caçava. Tomaram-lhe a espingarda e

conduziram-no à prisão, de onde não saiu até ter quitado a

multa. Helvétius, informado deste

50

acontecimento, vai procurar o aldeão, receando incorrer nas

censuras da senhora Helvétius. Após obter a promessa do

caçador de que não falaria do que iria se passar entre eles,

pagou-lhe o preço da arma e lhe deu o dinheiro correspondente

à soma da multa e das custas totais do processo. A senhora

Helvétius, por seu lado, não estava tranquila. Disse às suas

filhas: ―Eu sou a causa desse pobre homem estar arruinado. Eu

estimulei vosso pai a fazer punir os caçadores ilegais‖. Ela se fez

conduzir à morada daquele caçador, interroga a quanto monta a

soma da multa e das custas e o preço da arma de fogo. Paga

tudo. O camponês recebeu o dinheiro sem faltar ao acordo com

Helvétius8

No mesmo ano, quando retornava à Paris, lhe ocorreu um

pequeno incidente que prova que sua filosofia e sua bondade

não o abandonariam jamais. Sua carruagem foi parada numa

rua por uma charrete carregada de lenha que podia ser desviada

facilmente e deixar livre a rua. Mas não se fazia nada disso.

Helvétius, impaciente, chamou de tratante o condutor. ―Tem

razão, lhe diz o aldeão. eu sou um velhaco e o senhor um

homem de sociedade, visto que eu estou a pé e o senhor de

Helvétius, vos peço perdão.

Mas, tu vieste me ensinar uma excelente lição que devo pagar‖.

Entrega-lhe seis francos e fez sua gente ajudar o carroceiro a

realocar a charrete.

Depois de passar sete ou oito meses em suas

8 Esse caráter de beneficência do generoso filósofo de Voré e de sua digna

esposa foi o assunto de duas comédias, uma intitulada 'Helvétius em Voré' representada no ano VI e a outra, sob o título de 'Uma Peculiaridade de Helvétius', representada no ano IX.

51

terras, tornava a trazer a família para Paris onde vivia em

razoável isolamento com alguns amigos de variadas condições,

que lhe convinham por suas luzes do saber e costumes.

Somente dava um dia por semana para as relações sociais.

Nesse dia, sua casa era um lugar de encontro da maioria dos

homens de mérito da nação e de muitos estrangeiros: príncipes,

ministros, filósofos, grandes senhores e literatos, ansiavam por

conhecer Helvétius.

Tal gênero de vida tão delicioso só foi interrompido por

duas viagens agradáveis. Helvétius queria ver a Inglaterra e

conhecer esta famosa nação a quem a Europa deve tanto as

luzes. Queria ver o efeito das boas leis e de uma vigilante

administração. Partiu para Londres em de março de 1764. Foi

recebido pelo rei, por altos funcionários e sábios, como devia ser

um homem ilustre cuja reputação sempre o antecede. Viu as

terras do país. Não as achou melhor cultivadas que as da

França, mas encontrou os camponeses mais felizes. Reparou no

povo do interior da Inglaterra muita humanidade e nada daquela

arrogância que, certas vezes, os estrangeiros reprovam nos

habitantes de Londres.

Atravessando uma vila da província de Yorkshire, um

carregador desajeitado o derruba. Os vidros da liteira

estilhaçaram-se e o carregador muito machucado, soltava gritos.

Helvétius, que os estilhaços de vidro haviam machucado, saindo

de sua cadeira, as mãos sangrando, só se ocupava do

carregador. Alguns camponeses que tinham acorrido para lhes

socorrer, observaram esse traço de humanidade que lhe fizeram

notar outros. Num instante, Helvétius foi cercado por todos os

habitantes da

52

vila. Todos se apressaram em lhe oferecer suas casas, seus

cavalos, mantimentos, enfim, socorros de toda espécie. Muitos,

mesmo os mais ricos, queriam lhe servir de carregadores.

Observou nos ingleses um amor extremo por suas

crianças. O que nós chamamos na França de espírito de

sociedade lhes é quase desconhecido, mas eles desfrutam

muito dos prazeres da vida doméstica. O espírito de sociedade

reúne em Paris homens que tem necessidades de entretimentos

frívolos. O espírito de sociedade congrega os ingleses para se

ocuparem dos interesses de Estado e da prosperidade da sua

pátria. Eles não procuram distrações porque eles têm prazeres

sólidos. Vê-se pouco na Inglaterra desse riso, mais

frequentemente sinal de tolice que de expressão de felicidade.

Mas se vê bem-estar e um sábio emprego do tempo. Vê-se um

povo sério, ocupado e contente. Helvétius, ao sair desse país

onde não tinha visto a humanidade humilhada e sofrida,

derramou lágrimas.

Consentiu, no ano seguinte, às solicitações do rei da

Prússia (Frederico II) e de diversos príncipes, que desde há

muito tempo lhe convidavam a fazer uma viagem para a

Alemanha. Depois que se ficou sabendo que podia se

determinar a viajar, as insistências tornaram-se mais vivas e

assim, partiu no fim do inverno de 1765. Estava com pressa de

seguir para Berlin e de ver um grande homem. O rei da Prússia

queria lhe hospedar e não permitiu que tivesse outra mesa a não

ser a sua. Ele o entreteve com frequência e teve por sua pessoa

e por seu caráter a estima que já tinha por seu espírito. Helvétius

foi acolhido com a mesma consideração junto a diversos

príncipes da Alemanha e, sobretudo, em Gotha.

Ele observou em todas as cortes e nas nobrezas alemãs

a filosofia,

53

o amor, a ordem e a humanidade. Resulta deste espírito que,

sob o domínio de vários príncipes, a maioria dos quais déspotas,

o povo não é miserável. Por essa época Helvétius tinha ainda

receio de ser perseguido na França. Todos os príncipes da

Alemanha se ofereceram a lhe enviar uma autorização de asilo.

Todos queriam lhe reter. Ele ficou muito agradecido a todos.

Entretanto, se a perseguição contra ele fosse renovada, a

Inglaterra seria o país que ele escolheria para asilar-se.

Apesar do medo, retornou à França. Havia-se dissolvida a

ordem dos jesuítas. Esta sociedade de intrigantes, esta eterna

cabala à qual se congregavam só ambiciosos sem mérito, esta

sociedade funesta aos costumes e aos progressos das luzes,

não foi proscrita pelos filósofos. Estes destruíram a ordem, mas

trataram bem os indivíduos. O parlamento, por causa da maioria

dos jansenistas, tratou a ordem como ela merecia, mas os

indivíduos com barbárie.

Helvétius tomou conhecimento que aquele jesuíta que

tinha abusado de sua confiança e traído sua amizade9, aquele

jesuíta que lhe havia feito perder as bondades da rainha e posto

contra ele os hipócritas da corte, estava confinado numa aldeia

onde sofria a mais extrema pobreza. Procurou um dos amigos

deste infeliz e lhe deu cinquenta luíses. ―Leve-os, lhe diz, ao

padre ***, mas não lhe diga que vieram de mim. Ele me ofendeu

e será para ele uma humilhação receber meus socorros‖.

Helvétius, em seu isolamento em Voré, se ocupava em

desenvolver e provar os princípios do livro 'Do Espírito', mas não

queria publicar mais nada.

Inicialmente trabalhou em lhes justificar e responder

9 Este jesuíta é o padre Berthier ou, segundo Collé, o padre Pleix.

54

as críticas, mas quando o trabalho ficou pronto, as críticas

estavam esquecidas. Renunciando então a este projeto, achou

melhor seguir suas primeiras ideias e formar um plano geral da

educação. É o objeto do seu livro 'Do Homem' de que ele

mesmo deu a seguinte análise.

Análise do livro Do Homem.

Seção I

Após ter na exposição deste trabalho dito uma palavra

sobre a sua importância, da ignorância onde se acha os

verdadeiros princípios da educação e, enfim, da aridez desse

assunto e dificuldade de tratá-lo, ele examina na seção I, ―se a

educação necessariamente diferente dos diversos homens não é

a causa desta desigualdade dos espíritos que até o presente

momento foi atribuída à desigual perfeição dos órgãos‖.

A esse respeito, o autor pergunta em que idade começa a

educação do homem e quem são seus professores.

Observa que o homem é discípulo de todos os objetos

que o rodeiam, de todas as posições onde o acaso o coloca e de

todos as acidentes que lhe acontecem;

Que esses objetos, essas posições e esses acidentes não

são exatamente os mesmos para todos e que assim, ninguém

recebe as mesmas instruções;

Que na suposição impossível dos homens terem os

mesmos objetos sob os olhos, esses

55

objetos não lhes impressionariam no instante preciso que suas

almas estivessem na mesma situação. Esses objetos não

estimulariam por consequência, as mesmas ideias e que assim,

a pretendida uniformidade da instrução recebida, seja nos

colégios, seja na casa paterna é uma suposição cuja

impossibilidade está provada pelos fatos e pelas influências do

acaso, independente da influência que os mestres têm na

educação das crianças e dos adolescentes.

Colocados esses dados, passa a considerar a extrema

extensão do acaso e examina:

Se os homens ilustres não lhe devem com frequência

seus gostos por determinados gêneros de estudo e, por

consequência, seus talentos e seus sucessos nesses mesmos

gêneros;

Se a ciência da educação pode ser aperfeiçoada sem

restringir os limites do império do acaso;

Se as contradições atuais percebidas em todos os

princípios de educação não se espalham ao império desse

mesmo acaso;

Se essas contradições de que dá alguns exemplos, não

devem ser olhadas como um efeito da oposição que se encontra

entre o sistema religioso e o sistema da felicidade pública;

Se as religiões podem ser tornadas menos destrutivas à

felicidade nacional e fundamentadas sobre princípios mais

conformes ao interesse geral;

Quais são esses princípios;

Se for possível que um príncipe esclarecido os

estabeleça.

Se, entre as falsas religiões, há algumas cujos cultos

tenham sido menos contrários à felicidade das sociedades e, por

consequência, à perfeição da ciência da educação:

56

Se depois desses exames e na suposição de que todos

os homens têm uma mesma aptidão ao espírito, a diferença em

sua educação não deve produzir uma diferença em suas ideias e

em seus talentos. De onde se segue que a diversidade atual dos

espíritos não pode ser olhada nos homens comumente bem

organizados, como uma prova demonstrativa de sua desigual

aptidão ao espírito.

Seção II

Ele examina na seção II:

"Se todos os homens comumente bem organizados não

terão igual aptidão ao espírito".

Ele convém de início que todas as nossas ideias nos vêm

através dos sentidos. Que, em consequência, deve-se olhar o

espírito como um puro efeito, ou da agudez maior ou menor dos

cinco sentidos, ou de uma causa oculta ou não determinada à

que se tem vagamente dado o nome de organização;

Que para provar a falsidade desta opinião é necessário

recorrer à experiência, fazer uma ideia limpa da palavra espírito,

distingui-la de alma e, feita esta distinção, observar:

Sobre quais objetos o espírito age;

Como ele age;

Se todas essas operações não se reduzem à observação

das semelhanças e das diferenças, das conveniências e das

inconveniências que os objetos têm entre si e conosco e se, por

consequência, todos os julgamentos determinados sobre os

objetos físicos não serão puras sensações;

Se não acontece o mesmo com os julgamentos

determinados sobre as ideias a que se dão os nomes de

abstratas, coletivas, etc.;

Se, em todos os casos, julgar e comparar não será

57

outra coisa que ver alternativamente, isto é, sentir;

Se acaso podemos experimentar a impressão dos objetos

sem, entretanto, compará-los entre si.

Se a sua comparação não supõe o interesse de compará-

los.

Se esse interesse não será a causa única e ignorada de

todas as nossas ideias, ações, aflições, prazeres e, enfim, da

nossa sociabilidade.

A respeito disso ele observa que este interesse tem, em

última análise, sua origem na sensibilidade física. Que essa

sensibilidade é, por consequência, o único princípio das ideias e

das ações humanas;

Que não há motivo razoável para rejeitar esta opinião;

Que com esta opinião uma vez demonstrada e

reconhecida como verdade, deve-se necessariamente olhar a

diversidade dos espíritos como efeito:

Ou da diversidade de extensão da memória;

Ou da maior ou menor perfeição dos cinco sentidos;

Que, neste caso, não é a grande memória e nem a

exagerada agudeza dos sentidos que produz e deve produzir um

grande espírito;

Que a respeito da agudeza dos sentidos, os homens

comumente bem organizados só diferem em suas sensações em

graduações mínimas;

Que esta ligeira diferença não muda em nada a relação

de suas sensações entre elas; Que esta diferença, por

consequência, não tem nenhuma influência sobre seu espírito,

que só é e só pode ser o conhecimento das verdadeiras

relações dos objetos entre eles.

Causa da diferença das opiniões dos homens.

Que esta diferença é o efeito da significação

58

incerta e vaga de alguns termos, tais como as palavras 'bom',

'interesse' e 'virtude'.

Que estando as palavras precisamente definidas e suas

definições consignadas em dicionário, todas as proposições de

moral, política e metafísica, tornam-se também suscetíveis de

demonstração como as verdades geométricas.

Que a partir do momento que se ligar ideias iguais a

palavras iguais, todos os espíritos adotarão os mesmos

princípios e extrairão as mesmas consequências;

Que é impossível, visto que os objetos se apresentam a

todos com as mesmas relações, que em se comparando esses

objetos entre si, os homens (seja no mundo físico como prova a

geometria, seja no mundo intelectual como prova a metafísica)

não alcancem os mesmos resultados;

Que a verdade dessa proposição se prova pela

semelhança dos contos de fada, filosóficos e religiosos de todos

os países e pela uniformidade dos embustes empregados em

toda parte pelos ministros das falsas religiões para aumentar e

conservar sua autoridade sobre o povo.

De todos esses fatos resulta que a agudeza maior ou

menor dos sentidos não muda em nada a proporção na qual os

objetos nos atingem. Todos os homens comumente bem

organizados têm igual aptidão ao espírito.

Para multiplicar as provas desta importante verdade, o

autor a demonstra ainda, dentro desta mesma seção, por outro

encadeamento de proposições. É preciso ver que as mais

sublimes ideias, uma vez simplificadas, são segundo o

testemunho de todos os

59

filósofos, redutíveis a esta clara proposição: "o branco é branco,

o negro é negro";

Que todas as verdades desta espécie estão à livre

disposição de todos os espíritos. Que não há então nenhuma,

por grande e geral que seja, que, claramente apresentada e livre

da obscuridade das palavras, não possa ser igualmente

apreendida por todos os homens comumente bem organizados.

Ora, poder igualmente atingir às mais altas verdades é ter igual

aptidão ao espírito. Esta é a conclusão da segunda seção.

Seção III

O objeto da seção III é a pesquisa das causas a que se

pode atribuir à desigualdade dos espíritos.

Essas causas se reduzem a duas:

Uma é o desejo desigual que os homens têm de se

esclarecer;

A outra, a diversidade das posições onde a sorte os

coloca, diversidade de que resulta essa de sua instrução e de

suas ideias. Para fazer sentir que é só a essas duas causas que

se deve imputar e a diferença e desigualdade dos espíritos, o

autor prova que a maior parte de nossas descobertas são dons

do acaso;

Que os mesmos dons não são concedidos a todos;

Que, entretanto, essa repartição não é tão desigual

quanto se imagina;

Que a esse respeito é menos a sorte que nos falta do que

nós é que faltamos à sorte;

Que na verdade todos os homens comumente bem

organizados têm iguais espíritos em potência, mas esta potência

é morta quando ela não é colocada em ação por uma paixão

como a do amor da estima, da glória, etc.;

Que os homens só devem a tais

60

paixões a atenção necessária à fecundação das ideias que o

acaso lhes oferece;

Que sem as paixões o seu espírito pode se assim for

desejado, ser considerado como uma máquina perfeita, mas da

qual o movimento foi suspenso até que as paixões lhe sejam

devolvidas.

Do exposto se deve concluir que a desigualdade de

espírito nos homens é o produto do acaso e da diferente

vivacidade das suas paixões. Mas tais paixões serão neles o

efeito da força dos seus temperamentos? É o que Helvétius

examina na seção IV.

Seção IV

Ele demonstra:

Que os homens comumente bem organizados são

suscetíveis do mesmo grau de paixão.

Que sua força diferente é sempre o efeito da diferença

das posições onde a sorte os coloca;

Que o caráter original de cada homem (como observa

Pascal) é apenas o produto de seus primeiros hábitos; Que o

homem nasce sem ideias, sem paixões e sem outras

necessidades que as da fome e da sede, por consequência sem

caráter; Que ele muda frequentemente sem mudar de

organização; Que essas mudanças independentes da agudeza

maior ou menor dos seus sentidos, ocorrem depois das

mudanças sobrevindas em sua posição e ideias.

Que a diversidade dos caracteres depende unicamente da

maneira diferente de como se modifica nos homens o

sentimento de amor deles mesmos.

Que esse sentimento, efeito necessário da sensibilidade

física, é comum a todos e dá origem ao amor do poder;

Que esse desejo produz a inveja, o amor das

61

riquezas, da glória, da consideração, da justiça, da virtude, da

intolerância e de todas as paixões factícias das quais os

diversos nomes só designam as diversas aplicações do amor do

poder.

Provada esta verdade o autor mostra em uma curta

genealogia das paixões, que se o amor do poder é apenas um

puro efeito da sensibilidade física e se todos os homens

comumente bem organizados são sensíveis, todos por

consequência são suscetíveis de experimentar a apropriada

paixão para colocar em ação a igual aptidão de espírito que eles

possuem.

Mas essas paixões podem inflamar-se vivamente em

todos? O que se pode garantir é que o amor da glória pode se

exaltar no homem ao mesmo grau de força que o sentimento do

amor de si mesmo. É que a força desse sentimento é em todos

os homens mais do que suficiente para lhes dar o grau de

atenção que exige a descoberta das mais altas verdades. É que

o espírito humano é, em consequência, suscetível de

perfectibilidade. E que enfim, nos homens comumente bem

organizados, a diversidade dos talentos só pode ser um puro

efeito da diferença de sua educação, dentro da qual esta

compreendida aquela das posições onde o acaso os coloca.

Seção V

Na seção V o autor se propõe de mostrar os erros e as

contradições daqueles que, sobre esta questão, adotam

princípios diferentes dos seus e que reportam à desigual

perfeição dos órgãos dos sentidos a inegável superioridade dos

espíritos.

Ninguém tem sobre esta matéria escrito melhor que

Rousseau, mas sempre contrário a ele mesmo, algumas vezes

olhando o espírito e o caráter como o efeito da

62

diversidade dos temperamentos e outras vezes adotando a

opinião contrária.

Helvétius mostra que dessas contradições a esse respeito

resulta:

Que a virtude, a humanidade, o espírito e os talentos, são

aquisições;

Que a bondade não é dom inato do homem;

Que as necessidades físicas são sementes de crueldade

no homem.

Que a humanidade é, por consequência, sempre o

produto ou do medo, ou da educação.

Que Rousseau, depois das primeiras contradições, cai

sem cessar em novas; Que ele acredita alternadamente que a

educação é útil e inútil.

Do feliz uso que se pode fazer na instrução pública de

algumas ideias de Rousseau.

Que depois deste autor, não é necessário crer serem a

infância e a primeira juventude sem discernimento.

Das pretensas vantagens da idade madura sobre a

adolescência; Que elas são nulas.

Dos elogios dados por Rousseau à ignorância; Dos

motivos que o tem determinado a se fazer o seu apologista.

Que as luzes jamais têm contribuído para a corrupção dos

costumes; Que o próprio Rousseau não acreditava nisso.

Das causas da decadência dos impérios; Que entre essas

causas não é permitido citar a perfeição das artes e das

ciências;

E que a cultura delas atrasa a ruína de um império

despótico.

Seção VI

Na seção VI o autor considera os diversos males

produzidos pela ignorância.

63

Ele prova que a ignorância não destrói a indolência;

Que ela não assegura a fidelidade dos súditos;

Que ela julga sem exame as questões mais importantes.

Citando a questão do luxo, por exemplo:

Ele prova que não se pode resolver esta questão sem

comparar uma infinidade de objetos entre si;

Sem primeiro ligar ideias claras à palavra "luxo" e sem

examinar em seguida:

Se o luxo não será útil e necessário e se ele supõe

sempre a intemperança em uma nação.

Da causa do luxo: Se o luxo não será ele mesmo o efeito

de calamidades públicas de que se acusa ser ele o autor;

Se para conhecer a verdadeira causa do luxo, não é

necessário remontar à formação das sociedades e seguir os

efeitos da grande multiplicação dos homens.

Observar se esta multiplicação não produz entre eles uma

divisão de interesses e esta divisão uma repartição muito

desigual das riquezas nacionais.

Dos efeitos produzidos por ela e pela repartição muito

desigual de dinheiro e da sua introdução no império.

Dos bens e dos males que ela aí ocasiona.

Das causas da grande desigualdade das fortunas.

Dos meios de se opor ao acúmulo muito rápido das

riquezas nas mesmas mãos.

Dos países onde o dinheiro não tem circulação.

Quais são nesses países os princípios produtivos da

virtude.

Dos países onde o dinheiro tem circulação.

64

Que o dinheiro aí se torna o objeto comum do desejo dos

homens e o princípio produtivo de suas ações e virtudes.

Do momento quanto, semelhantes aos mares, as riquezas

abandonam determinados países.

Do estado em que fica então uma nação.

Do estúpido entorpecimento que sucede a perda das

riquezas.

Dos diversos princípios de atividade das nações.

Do dinheiro considerado como um desses princípios.

Dos maus que ocasiona o amor pelo dinheiro.

Se no estado atual da Europa, o magistrado esclarecido

deve desejar o pronto enfraquecimento de tal princípio de

atividade.

Que não é no luxo, mas em sua causa produtora que se

deve procurar o princípio destruidor dos impérios.

Se é possível usar muita atenção no exame de questões

desta espécie.

Se em tais questões os julgamentos precipitados da

ignorância não levam com frequência uma nação às maiores

infelicidades.

Se, consequentemente a isto que eu disse não se deve

odiar e desprezar os protetores da ignorância e, em geral, a

todos aqueles que se opondo aos progressos do espírito

humano, prejudicam a perfeição da legislação e, por

consequência, a felicidade pública, que dependente

exclusivamente da boa qualidade das leis.

Seção VII

Percebe-se na seção VII que é a excelência das leis e

não, como pretendem alguns, a pureza do culto religioso que

pode garantir a felicidade e a tranquilidade dos cidadãos.

Da pouca influência das religiões nas virtudes e na

felicidade das nações.

65

Do espírito religioso destrutivo do espírito legislativo.

Que uma religião verdadeiramente útil obrigaria os

cidadãos a se esclarecerem.

Que os homens não agem em conformidade com a sua

crença, mas segundo a vantagem pessoal.

Que muitas consequências nos seus espíritos tornam a

religião papista prejudicial.

Que no geral os princípios especulativos têm pouca

influência na conduta dos homens; Que eles obedecem apenas

às leis dos seus países e a seus interesses.

Que nada prova melhor o prodigioso poder da legislação

do que o governo dos jesuítas.

Que ele tem fornecido a esses religiosos meios de fazer

tremer os reis e de executar os maiores atentados.

Dos grandes atentados:

Que esses atentados podem ser igualmente inspirados

pelas paixões da glória, da ambição e do fanatismo;

Do modo de distinguir a espécie de paixão que os

comanda;

Do momento quando o interesse dos jesuítas lhes ordena

os grandes atentados;

Qual a seita na França que poderia se opor às suas

empreitadas;

Que só o jansenismo poderia destruir os jesuítas.

Que sem os jesuítas não se teria nunca conhecido todo o

poder da legislação.

Que, para levá-la à perfeição, é necessário, ou como São

Bento fazer uma ordem religiosa, ou como Rômulo e Penn,

fundar um império ou uma colônia.

66

Que em qualquer outro caso, o gênio legislativo

constrangido pelos costumes e preconceitos já estabelecidos

não pode levantar vôo e nem ditar as leis perfeitas cujas

instituições acarretem às nações a maior felicidade possível.

Que para resolver o problema da felicidade pública seria

necessário preliminarmente conhecer em que constitui

essencialmente a felicidade do homem.

Seção VIII

Helvétius demonstra na seção VIII em que consiste a

felicidade do indivíduo e por consequência a felicidade nacional,

necessariamente composta de todas as felicidades particulares.

Que para resolver o problema político é preciso examinar

se, em todas as condições, os homens podem ser igualmente

felizes, isto é, preencher de uma maneira igualmente agradável

todos os instantes de seus dias.

Do emprego do tempo:

Que este emprego é com pouca diferença o mesmo em

todas as profissões.

Que se os impérios são povoados apenas por infelizes,

isto é efeito da imperfeição das leis e da distribuição muito

desigual das riquezas.

Que se podem dar mais facilidades aos cidadãos; Que

esta facilidade moderaria neles o desejo excessivo de riquezas.

Dos diversos motivos que atualmente justificam esses

desejos.

Que entre esses motivos um dos mais fortes é o medo do

aborrecimento.

Que a doença do aborrecimento é mais comum e cruel do

que imagina

Da influência do aborrecimento sobre os costumes dos

povos e a forma de governá-los.

67

Da religião e de suas cerimônias consideradas como

remédios contra o aborrecimento.

Que o único remédio para esse mal são as sensações

vivas e distintas.

Daí decorre o nosso amor pela eloquência, a poesia e

todas essas artes recreativas de que o objetivo é excitar essas

espécies de sensações.

Prova detalhada desta verdade.

Das artes recreativas: De sua impressão sobre o rico

ocioso; Que elas não podem arrancá-lo do seu enfado.

Que ricos são em geral os mais enfadados porque eles

são passivos em quase todos os seus prazeres.

Que os prazeres passivos são em geral os mais curtos e

custosos.

Que em consequência, é no rico que se faz sentir mais

vivamente a necessidade das riquezas.

Que ele gostaria de sempre ser movido sem se dar ao

trabalho de mover-se.

Que ele não tem motivo para subtrair-se a uma

ociosidade à que uma fortuna medíocre sustenta

necessariamente em outros homens.

Da associação das ideias de felicidade e riqueza na nossa

memória; Que esta associação é efeito da educação.

Que uma educação diferente produziria um efeito

contrário.

Que então, sem serem igualmente ricos e poderosos, os

cidadãos serão e poderão mesmo acreditar serem igualmente

felizes.

Da utilidade distante desses princípios.

Que uma vez convencido desta verdade, não se deve

mais olhar a infelicidade como inerente à natureza das

sociedades, mas como um acidente

68

ocasionado pela imperfeição de sua legislação.

Seção IX

Na seção IX o autor trata da possibilidade de indicar um

bom plano de legislação.

Dos obstáculos que a ignorância coloca em sua

publicação;

Do ridículo que ela lança sobre toda ideia nova e todo

estudo aprofundado da moral e da política;

Da repulsa do ignorante por toda reforma;

Da dificuldade de se fazer boas leis;

Das primeiras perguntas a se fazer a esse respeito.

As recompensas de qualquer espécie que forem, mesmo

luxos de prazer, não corromperão jamais os costumes.

Do luxo de prazer. Que todo prazer concedido pelo

reconhecimento público faz amar a virtude, faz respeitar as leis,

cuja derrogação, como alguns pretendem, não é jamais efeito da

inconstância do espírito humano.

Das verdadeiras causas das mudanças sobrevindas nas

leis dos povos.

Que essas mudanças têm sua origem na imperfeição das

próprias leis e na negligência dos administradores, que não

sabem conter a ambição das nações vizinhas pelo terror das

armas e a ambição dos seus concidadãos pela sabedoria dos

regulamentos, e que então, educados em preconceitos nocivos

favorecem a ignorância das verdades cuja revelação asseguraria

a felicidade pública.

Que a revelação da verdade não é jamais funesta àquele

que a diz.

Que seu conhecimento, útil às nações, não perturba

jamais a paz.

Que uma das mais fortes provas desta asserção

69

é a lentidão com que a verdade se propaga.

Dos governos.

Que em um governo, a bondade do príncipe jamais está,

como se acredita, ligada à infelicidade do povo.

Que se deve a verdade aos homens.

Que a obrigação de dizê-la supõe a livre uso dos meios

de descobri-la.

Que, cerceadas desta liberdade, as nações corrompem-

se na ignorância.

Dos males que produz a indiferença pela verdade.

Que o legislador, como alguns pretendem, nunca é

forçado a sacrificar a felicidade da geração presente à felicidade

da geração futura.

Que tal suposição é absurda.

Que se deve tanto mais incentivar os homens à procura

da verdade, quanto por indiferença a ela, mais eles julgam uma

opinião verdadeira ou falsa segundo o interesse que eles têm na

sua verdade ou falsidade.

Que este interesse lhes fará negar a necessidade da

verdade das demonstrações geométricas.

Que este interesse lhes fará estimarem em si a crueldade

que detestam nos outros.

Que este interesse lhes faz respeitar o crime.

Que este interesse faz os santos.

Que este interesse prova aos grandes a superioridade de

sua espécie sobre os outros homens.

Que este interesse faz honrar o vício num protetor.

Que o interesse do poderoso tem maior peso que a

verdade nas opiniões gerais.

Que um interesse secreto esconde sempre dos

parlamentares a adequação da moral dos jesuítas e do papismo.

Que o interesse faz negar diariamente esta

70

máxima: ―Não faça a outrem o que não gostarias que te

fizessem‖.

Que ela esconde do conhecimento dos bons e honestos

padres não só os maus produzidos pelo catolicismo como

também os progressos de uma seita intolerante, porque ela é

ambiciosa e regicida, já que é intolerante.

Dos meios empregados pela igreja para se avassalar das

nações.

Da ocasião em que a igreja católica deixa em repouso

suas pretensões.

Da ocasião em que ela as faz reviver.

Das pretensões da igreja provadas pelo direito.

Dessas mesmas pretensões provadas pelos fatos.

Dos meios de dominar a ambição eclesiástica.

Que só o tolerantismo pode contê-la. Pode em

esclarecendo os espíritos, assegurar a felicidade e a

tranquilidade do povo cujo caráter é suscetível de todas as

formas que lhe dão as leis, o governo e, sobretudo a educação

pública.

Seção X

A seção X trata do poder da educação, dos meios de

aperfeiçoá-la; Dos obstáculos que se opõem aos progressos

desta ciência.

Da facilidade com que, uma vez levantados esses

obstáculos, determinar-se-á o plano de uma excelente

educação.

A educação pode tudo.

Os príncipes são como os particulares, o produto de suas

instruções.

O autor dá uma ideia geral da educação física do homem.

Ele expõe em que momento e em que circunstância o

homem é suscetível de uma educação moral.

71

Quais são os obstáculos que se opõe à perfeição desta

parte da educação.

O interesse do padre é o primeiro obstáculo.

A imperfeição da maior parte dos governos é o segundo

obstáculo.

Toda reforma importante na parte moral da educação

pressupõe outra reforma nas leis e na forma do governo.

Feita esta reforma e uma vez levantados os obstáculos

que se opõem aos progressos da instrução, o problema da

melhor educação possível se resolve.

O objetivo do autor, nessa conclusão, é provar a analogia

de suas opiniões com as de Locke;

De fazer sentir toda a importância e extensão do princípio

da sensibilidade física;

De responder à censura de materialismo e de impiedade;

De mostrar todo o absurdo de tais acusações e a

impossibilidade de qualquer moralista esclarecido de escapar a

esse respeito das censuras eclesiásticas.

Este trabalho é a sequência do livro 'Do Espírito'. É o

mesmo fundo de verdades, com mais desenvolvimentos talvez,

com mais aprofundamentos nos princípios e extensão nas

consequências. Seu intento não sendo de publicá-lo em vida,

não teve tempo de dar à sua composição o mesmo grau de

perfeição que tem o seu livro 'Do Espírito'. A violência da

perseguição havia diminuído muito o seu amor pela glória. Só o

desejo de ser útil postumamente ainda o animava. Sua bela

alma estava sensivelmente tocada pelo bem que devia

72

produzir um dia seus escritos, mas ele não queria dar ao público

mais nada.

Via a filosofia, perseguida por cabalas poderosas, formar

poucos discípulos e nenhum protetor. Ele ficava aflito, mas não

espantado. Dizia ―A verdade, que nunca pode prejudicar o

gênero humano, nem mesmo as grandes sociedades que

chamamos de nações, é com frequência oposta aos interesses

do pequeno número de homens que estão à frente dos povos. Aí

vocês têm grandes corporações repletas de espírito corporativo.

Elas usurpam continuamente uns aos outros e todos contra a

pátria. São como uma grande família onde os mais velhos

querem excluir os mais novos da partilha. Como será recebido

nessas corporações um filósofo que venha dizer-lhes: Acima de

tudo, sede cidadãos! Realizeis com dedicação as vossas

obrigações. Conservai os vossos direitos sem os aumentar‖? Lá,

ministros com espírito limitado e arrogante, incapazes de ver os

abusos que são introduzidos e os que estão contidos na

constituição do Estado. São conduzidos pela rotina e as

seguem. Eles não têm o hábito da meditação: irão eles o

possuir? Isto é o que é necessário, entretanto, para corrigir

esses abusos que a filosofia vem lhes mostrar. Eles possuem

fantasias, projetos para seus favoritos e parentes. Crêem vocês,

que possam escutar sem impaciência, que eles só devem ter em

vista o bem do Estado? Que hão de desejar? De não sofrerem

contradição. E para isso o que é necessário fazer? Suprimir da

autoridade todas as limitações, retirar toda a sua solidez. Mas

esses abusos que os ministros respeitam ou toleram, a quem

são prejudiciais? À pátria, que é apenas um

73

nome inútil. A quem podem ser úteis? Aos grandes. Julgue o

que os grandes pensarão de um grupo de homens que lhes

demandem serem moderados e justos. O príncipe e os grandes

estão cercados de padres, que, nos séculos de ignorância,

reinaram sobre príncipes e povos. Se o mundo se esclarecer

serão menos respeitados e os ver-se-á como homens em geral

perigosos. Pode-se imaginar com que fúria eles difamam a

filosofia? Se deve se espantar que sejam bem recebidos nas

cortes onde dizem: Deus vos tem dado o poder e a nós ele nos

encarrega de ensinar os povos. Em vez de vos fatigar em fazer

boas leis e em dar o exemplo de amor pela pátria obrigai as

nações a crer em nós e deixai conosco. É mais cômodo.

―Vejam a cobiça dos homens do meu velho Estado, dos

cortesãos e de outros. Essas pessoas deixarão que se decida

em paz que suas fortunas nem sempre são legítimas e que eles

fazem um odioso uso delas? Poderão consentir que se lhes

façam ruborizar dessas riquezas que são o alimento de seu

orgulho? Vocês percebem que a filosofia deve ser perseguida

nos palácios e até nas cabanas pelas classes da sociedade que,

ao menos por enquanto, determinam a opinião pública? E diante

de quem a filosofia há de se defender? O que são seus juízes?

Tolos. Mas, dirão vocês, há na nação escritores estimáveis que,

sem ser do número dos filósofos, adotam seus princípios, com

que se adornam e os reproduzem. Eu respondo que há poucos.

Os homens que têm apenas espírito são os rivais humilhados

dos homens que possuem genialidade e os detestam. Vocês

contariam

74

mais de um belo espírito entre os difamadores de Descartes e

de Cornélio e, bem perto de nós, entre aqueles de Voltaire, de

Montesquieu, de Buffon e de Fontenelle. A filosofia reduz o belo

espírito, os pequenos talentos, a seu justo valor e assim, o

interesse deles é unir suas vozes às dos homens frívolos e

corrompidos contra toda liberdade de pensar. Sabem vocês por

que a filosofia é honrada e feliz na Inglaterra depois da

revolução? É que na Inglaterra o interesse geral e o interesse

particular não estão opostos. É que lá reina o amor da ordem e

da pátria. Se a honra verdadeira, se o espírito de cidadania e se

as verdadeiras virtudes não renascessem nas nações onde a

filosofia é perseguida, lá ela teria a devida consideração. Se

essas nações, ao contrário, caírem no despotismo e, por

consequência, se corromperem cada vez mais, a filosofia estará

proscrita para sempre nelas".

Foi depois dessas ideias que Helvétius retornou ao seu

primeiro talento e se ocupou apenas do seu poema 'Da

Felicidade'. Esse talento que ele havia deixado sem fazer uso,

não estava enfraquecido. Pode-se julgar pelo sexto canto e por

uma parte do quarto, que ele compôs no verão passado. Ele

pensava trabalhar ainda vários anos nesta obra e só entregar

quando seus amigos e ele estivessem contentes. E a que grau

de perfeição não o teria levado!

Observa-se no começo de 1771, algumas mudanças no

seu humor e nos seus gostos. Não se achava mais nele a

ordinária serenidade. Das conversações que tanto tinha amado,

gostava menos. Tanto o fatigava o exercício que quase não ia

mais caçar. Essa mudança não alarmou sua família e seus

amigos. Estava-se bem longe de

75

olhá-la como um sinal de decadência. Atribuía-se a causas

morais. Esses últimos anos foram de desgraças públicas às

quais Helvétius era muito sensível. A desordem das finanças e a

mudança de constituição do Estado aumentaram a consternação

geral. Um grande número de suicídios no reino e na capital é

tristes provas desta consternação. Os maus físicos aumentaram

ainda mais. As colheitas não foram abundantes. Enquanto a

penúria durou, as esmolas de Helvétius não permitiram que seus

vassalos sofressem. Prolongou nesses anos infelizes a sua

permanência na aldeia que se lhe tornara tão cara pela

necessidade que tinha dele. Além de que, em Paris, o

espetáculo de uma miséria que não podia aliviar, lhe tornava

triste a sua permanência. Porém, fazia grandes bens. Todos os

dias se introduziam nele, com bastante mistério, algumas novas

finalidades em sua generosidade. Com frequência, na presença

delas, dizia a seu criado de quarto: ―Cavalheiro, eu vos proíbo de

falar disso, mesmo após a minha morte‖.

Algumas vezes aconteceu dele estender suas

liberalidades a sujeitos muito maus. E, em se lhe fazendo

censuras, dizia: ―Se eu fosse rei eu os corrigiria, mas sou

apenas rico e eles pobres. Devo lhes socorrer‖.

Sua boa constituição e uma saúde raramente alterada lhe

prometiam uma longa vida. Entretanto, dia a dia, sentia que

perdia as forças. Um ataque de gota que se localizava na

cabeça e no peito, lhe tirou primeiro a consciência e logo da

vida.

No dia 26 de dezembro de 1771 foi arrancado de sua

família

76

e de seus amigos, dos infortunados e da filosofia.

Poucos homens foram tratados pela natureza tão bem

quanto Helvétius. Ele havia recebido a beleza, a saúde e a

genialidade. Em sua mocidade, era muito bem apessoado. Seus

traços eram nobres e regulares. Seus olhos exprimiam o que

dominava em seu caráter, isto é, a doçura e a benevolência10.

Tinha uma alma corajosa e naturalmente voltada contra a

injustiça e a opressão.

Nenhuma pessoa poderia estar mais convencida do que

ele que para ter sucesso em tudo, é preciso apenas querer

fortemente. Havia sido um bom dançarino, hábil na esgrima,

atirador habilidoso, financista esclarecido, bom poeta e grande

filósofo, desde que havia desejado ser. Havia amado muitas

mulheres, mas sem paixão e arrasto dos sentidos. Não tinha nas

amizades uma preferência exclusiva. Tinha nelas mais

procedimentos que ternura. Seus amigos, em suas dificuldades,

lhe achavam sensível porque ele era bom. No curso ordinário da

vida, eles lhe foram pouco necessários. Com frequência, sua

conversação era a de um homem cheio de ideias e, às vezes, as

possuía num mundo que não era digno delas.

10

Se a expressão homem cortês não existisse na língua francesa, teria sido necessário inventá-la para Helvétius. Ele era o seu protótipo: Justo, indulgente, sem mau humor, sem amargura e de uma grande uniformidade no trato social, ele tinha todas as virtudes da sociedade e as tinha em parte da ideia que havia adquirido sobre a natureza humana. Não lhe parecia mais razoável se zangar com um homem mau que a gente encontra pelo caminho do que com uma pedra de calçamento fora do lugar. O hábito que ele havia contraído de generalizar as ideias e de só ver os grandes resultados, em lhe tornando algumas vezes indiferente ao bem, o havia tornado também o mais tolerante dos homens. Mas esta tolerância só se estendia aos vícios particulares da sociedade, porque para os autores dos males públicos ele os enforcaria ou os queimaria sem misericórdia. (Grimm, Correspondance littéraire, janvier 1772).

77

Gostava muito de debates e propunha paradoxos para vê-los

serem debatidos. Gostava de provocar o pensamento naqueles

que acreditava capazes e dizia ir com eles à caça de ideias.

Tinha o maior respeito pelo amor-próprio dos outros e mostrava

tão pouco a superioridade que tinha que muitos homens de

espírito que o viam frequentemente, passavam muito tempo sem

percebê-la. Temia a intimidade dos grandes. À primeira vista,

tinha com eles o ar de embaraço e de contrariedade. Amou a

glória passionalmente e esta foi a única paixão que

experimentou. Lhe fez amar o trabalho, mas não lhe inspirou os

seus favores. Ninguém os tem escondido com mais cuidado. Ele

não deu a seus prazeres o tempo que dedicou ao estudo e, na

sua própria juventude, quando se retirava ao seu escritório, só

os infelizes eram permitidos de lhe interromper.

Nota. Neste ensaio sobre os trabalhos de Helvétius,

Saint-Lambert só mencionou as três obras principais: o livro 'Do

Espírito', aquele 'Do Homem' e o 'Poema da Felicidade'. Nós

devemos posteriormente ao senhor François de Neufchâteau o

conhecimento de uma epístola 'O Orgulho e a Indolência do

Espírito', da qual Helvétius havia submetido a Voltaire três lições

sucessivas. E o 'Magasin Encyclopédique' (1814) publicou uma

epístola 'O Amor do Estudo', endereçada à senhora Du Châtelet

por um aluno de Voltaire, com notas do mestre. Essas duas

peças são evidentemente de Helvétius. 'Os Progressos da

Razão na busca da Verdade', publicados pela primeira vez numa

edição de Londres em 1777 e 'O Ensaio sobre o Direito e as Leis

Políticas do Governo', inserida no ano IV na 'A Dezena

Filosófica', tem-lhe sido

78

atribuídos. Acha-se aí, com efeito, os mesmos princípios e a

mesma força de estilo. Entretanto não se pode afirmar que

sejam realmente dele.

O senhor Pierre Didot juntou à edição dos 'Obras de

Montesquieu' que ele publicou em 1795 as notas que Helvétius

havia feito nas margens de um exemplar do 'Espírito das Leis'.

O senhor Firmin Didot possui um exemplar precioso dos

'Obras de Voltaire', que, além das adições e correções feitas

pela mão do próprio Voltaire, está cheio de notas a lápis da mão

de Helvétius. A edição é aquela de Amsterdã 1739 e só forma

quatro volumes in-8º. No primeiro volume que contém 'La

Henriade', acham-se na margem muitos traços a lápis, mas não

se tem a chave do sistema que Helvétius usava para distinguir

essas marcas, que estão quase sempre nas ideias mais

salientes e sobre os mais belos versos. Por vezes as críticas

estão claras, mas em sua maior parte estão ilegíveis. Vê-se,

pelos traços a lápis na margem da tragédia de 'Brutus', no

segundo tomo, a admiração que Helvétius possuía pelos

grandes sentimentos desenvolvidos nesta peça. 'A Morte de

César', no terceiro volume, dá lugar à mesma observação. As

primeiras e as últimas folhas de cada um dos volumes estão

escritas a lápis pela mão de Helvétius, mas a muito custo pode-

se decifrar algumas linhas.

Essas notas e reparos, do mais vivo interesse quando

juntas aos trabalhos a que se reportam, não representam nada

se forem impressas separadamente.

F I M

79

OS

PROGRESSOS

DA

RAZÃO

NA BUSCA DA VERDADE.

HELVÉTIUS

— 1775 —

http://books.google.com

80

OS PROGRESSOS

DA

RAZÃO

NA BUSCA DA VERDADE.

PROPOSTA PRELIMINAR.

Antes de querer pesquisar a origem das coisas é preciso

ter coragem e força de espírito necessária, estar isento de

preconceitos e ter unicamente a razão por guia e a verdade por

objeto.

O homem sábio não acusará de temerário quem ousar

sustentar que, enquanto os efeitos são visíveis aos nossos

olhos, já as suas causas estão sempre em uma obscuridade

impenetrável. Quem tem assistido à formação das essências?

Quem tem colocado limites no espírito humano? Quem tem

medido os seus limites? A Inteligência suprema pela qual tudo

existe, não pode fazer as inteligências serem incapazes de

conhecer o que é? Não terá ela harmonizado a atividade do

espírito humano à imensa variedade dos fenômenos naturais? E

se os conhecimentos que o espírito adquire não são a seu

respeito, mais do que novas maneiras de ser, porque não

poderão elas ser tão diversificadas como é a matéria revestida

com a ajuda do movimento? Aquele que

81

faz tantas coisas dignas de serem vistas e conhecidas, não terá

os olhos bastante penetrantes para ver e o espírito também

bastante penetrante para compreender?

Se os olhos vêem, os ouvidos escutam e as outras

faculdades são suas próprias funções, sem terem necessidades

de algum preceito, o entendimento pode bem raciocinar,

procurar a verdade, encontrá-la e julgar sem a ajuda de

nenhuma ciência

Sirvamo-nos pois dos nossos olhos e do nosso

entendimento. Vejamos por nós mesmos. Pensemos por nós

mesmos. E não nos envergonhemos de procurar a verdade.

82

OS

PROGRESSOS DA RAZÃO

NA BUSCA DA VERDADE.

Na minha infância fui criado nos preconceitos da época.

Todo homem que não reflete passa a vida inteira com os

mesmos preconceitos. Esses preconceitos são os obstáculos

mais funestos ao conhecimento dos homens. Contaminados de

paixões, de tal ou qual espécie, sejam elas devoção,

libertinagem, ódio, amor, orgulho, ciúme ou curiosidade, eles

não vêem praticamente nada em seu estado natural. O objeto

está sempre disfarçado com a cor intermediária pela qual é ele é

percebido.

Para remediar esses inconvenientes é necessário esperar

que a disposição dos órgãos seja mudada, que seja

restabelecida dentro de um justo equilíbrio e então, a percepção

se fará de uma maneira toda diferente, assim como a

determinação do juízo.

Refletindo e estudando a mim mesmo, tive a felicidade de

me desfazer de todos os preconceitos e de vencê-los.

Reconheci que aquilo

83

que se chama de natureza pode apenas conter a inteligência e a

matéria. Esta inteligência é o único objeto que nós devemos

reconhecer como o verdadeiro Deus e é a única de quem toda a

natureza depende. É esta Inteligência suprema que dá o

movimento e a vida a toda matéria. Não há um átomo desta

matéria que não dependa desta Inteligência infinita, que tudo

governa e rege. Todos os indivíduos da natureza são obra de

sua onipotência.

O que chamamos de matéria é apenas a soma de todos

os seres. Estes seres e esta inteligência não tiveram começo

algum. E por conseguinte são eternas. Há uma força inerente a

esses seres que lhes faz essencialmente ativos, móveis e

capazes de produzir todos os efeitos que vemos. Esta força

inerente só pode ser produzida por esta Inteligência que preside

a natureza toda. É ela que produz o movimento. É pelo

movimento que tudo se forma, cresce, se altera e se destrói. É o

movimento que altera o aspecto dos seres, que lhes acresce e

remove qualidades e que faz com que, após haverem ocupado

determinada grau ou ordem, cada um deles seja forçado por

uma continuação de sua natureza, sair para ocupar outro grau

ou ordem e contribuir ao nascimento, conservação e composição

de outros seres totalmente

84

diferentes em espécie, essência e hierarquia.

Todos os indivíduos da natureza são compostos somente

de átomos. Cada átomo tem sua alma particular e distinta de

todos os outros átomos. Então, todo indivíduo é composto de

tantas almas quantos átomos possuir. Por conseguinte, só pode

estar no primeiro átomo da composição da minha

individualidade, a residência da minha alma ou do 'eu mesmo',

pois todos os outros átomos são acréscimos que serão

separados quando da minha dissolução.

Todos os seres ou átomos que compõem a matéria são

dotados de uma porção de inteligência proporcional à

quantidade de suas espécies. Elas possuem tudo desta

inteligência até um determinado grau, uns mais, outros menos.

De sorte que cada ser tem a sua porção de inteligência ao

mesmo grau.

Este pequeno átomo ou germe de onde provém o começo

da nossa existência atual, esta pequena máquina assim tão

completa na sua pequenez que é o corpo dele, (pois que este

aqui é apenas o mesmo átomo desenvolvido por ingestão de

matéria alheia), não poderá sobreviver à dissolução de tudo o

que houver recebido de acidental depois da concepção?

Ora, visto que esse pequeno corpo primitivo, onde tem

residido a individualidade da nossa máquina, subsista durante

infinitos tempos, submetendo-se a

85

revoluções, passando sucessivamente pelos corpos dos nossos

antepassados, não será tal fato um grande preconceito para a

sua imortalidade? Despojado de toda matéria estranha que

tenha recebido no seio de sua mãe pela comunicação do sangue

e depois do nascimento pela nutrição, ele pode resistir às

tentativas da morte e pode viver eternamente como tem

subsistido antes, independentemente de todos esses recursos...

E também por que pensaríamos que esta máquina primitiva,

estando destituída de tudo que lhe seja estranho não pensaria e

não teria sensações? Deve-se crer que sem certo volume de

matéria, não se pode pensar e nem ser sensível? A força desta

pequena máquina será débil e minúscula. Mas qual não será a

sua força se ela é inesgotável? E o que é necessário para lhe

dar esta força? Uma simples vontade da Inteligência suprema.

Vocês me afirmarão que não se lembram de haver

pensado e tido sensações enquanto estavam fechados nos

corpos de vossos antepassados. Mas vocês ignoram que a

memória depende de certos traços do cérebro. Que esses traços

são para o socorro dos espíritos animais e que não tendo então

os mesmos órgãos, nem os mesmos espíritos animais e nem as

mesmas fibras que possuem agora, vocês não devem ficar

surpresos de não se lembrarem dos

86

pensamentos e das sensações que tiveram a cem anos dentro

dos corpos de vossos bisavôs. Agora vocês pensam por

sensações totalmente diferentes das que pensarão nos séculos

futuros, pois as sensações não serão mais as mesmas que

possuem hoje em dia.

O que se chama de universo compreende o espaço

infinito dentro do que estão colocados todos os seres. O sol, a

lua, as estrelas, todos os globos e todos os planetas são todos

animais compostos de átomos, que vivem e se nutrem à custa

das substâncias uns dos outros neste espaço infinito. Esses aí

contendo outros e aí se vai de grau em grau até o infinito.

A experiência nos demonstra esta verdade sem

possibilidade de dúvida. Somos animais que vivem e se nutrem

da substância deste animal que chamamos terra e no que

estamos colocados. De nossa parte estamos repletos de outros

animais muito menores e sem comparação conosco. Como são

os vermes e toda sorte de parasitas e insetos que habitam

dentro e à superfície do nosso corpo. Estes aqui são ainda a

terra de outros animais mais imperceptíveis. Nossa carne, nosso

sangue, nosso espírito e toda nossa substância são somente um

tecido de pequenos animais, que vivem e se nutrem a expensas

e da substância uns dos outros, nos emprestam

87

o movimento que eles tem, se deixam conduzir à nossa vontade

e nos conduzem. E que produzem enfim, todos juntos, esta ação

que chamamos vida.

Pois o que chamamos matéria, é só um composto de

germes ou pequenos animais. Por quantas mudanças não

deverá ter passado esse germe ou pequeno animal humano,

antes de transformar-se em semente e encontrar uma matriz

conveniente para lhe produzir e fazê-lo um homem? Quantos

milhões de vezes esse germe, caminhando ao propósito de

produzir este homem, não terá servido a produção de toda a

sorte de indivíduos tanto do reino animal quanto do reino

vegetal, por faltarem-lhe mais ou menos átomos para chegar ao

seu intento? E isso acontece com tudo o que se produz. E nada

se faz e se produz sem que o primeiro começo não seja um

germe. Quantos milhões de anos uma quantidade prodigiosa de

germes não deve ainda esperar, antes de poder se produzir sob

as suas formas naturais, porque lhe tem faltado encontrar a

matéria própria ao seu desenvolvimento? Porque a quantidade

de germes é inesgotável. Tudo o que é, sente e vegeta. E após

cada germe ter chegado ao seu termo ou ao seu mais alto

período, ele desce e retorna ao seu estado original para uma vez

mais realizar tudo de novo.

88

Tudo vêm da Inteligência suprema.

Nós não podemos nos dar as ideias. Admitamos que os

objetos não possam nos dar por eles mesmos. Pois como

poderia um pedaço de matéria ter em si a virtude de produzir em

mim um pensamento? Então a Inteligência eterna que produz

tudo, produz também as ideias, de qualquer maneira que possa

ser.

Mas o que é uma ideia? O que é uma sensação, uma

vontade, etc.? Sou eu apercebendo, eu sentindo, eu querendo.

Sabe-se enfim que não há mais um ser real chamado

ideia, um ser real chamado movimento, mas há corpos movidos.

Do mesmo modo, não há um ser particular chamado memória,

imaginação ou julgamento, mas nós é que se lembramos, nós é

que imaginamos ou nós é que julgamos. Tudo isto é de uma

verdade incontestável.

Agora, como o ser Inteligente e todo poderoso produz

todos esses modos nos seres organizados? Ele coloca dois

entes dentro de um grão de trigo para que um faça o outro

germinar? Há dois entes dentro do cervo para que um faça o

outro correr? Não; sem dúvida. O grão de trigo é dotado de

faculdade de vegetar e o cervo de correr.

O que é a faculdade de vegetar? É movimento dentro da

matéria. O que é esta faculdade

89

de correr? É arranjo de músculos que, presos a ossos,

conduzem para frente outros ossos presos a outros músculos.

É evidentemente uma matemática geral que dirige toda a

natureza e opera todas as produções. O vôo dos pássaros, o

nado dos peixes e a corrida dos quadrúpedes são efeitos

demonstrados de regras do movimento continuado.

A formação, a nutrição, o crescimento e o definhamento

dos animais são da mesma forma efeitos de leis matemáticas

úteis?

Mecanismos de sentidos.

Vocês explicam por essas leis como um animal se põe a

procurar o seu alimento. Vocês devem então presumir que há

outra lei pela qual ele tem a ideia de alimento, sem o que não irá

procurá-lo.

A Inteligência suprema tem feito depender da Mecânica,

todas as ações do animal. Por isso a Inteligência tem feito

depender da Mecânica as sensações que causam essas ações.

Há dentro do órgão da audição um artifício bem sensível.

É uma hélice em espiral que leva as ondulações do ar em

direção a uma concha em forma de funil. O ar prensado dentro

deste funil entra nos ossos pétreos dentro do labirinto, no

vestíbulo, em uma pequena concha chamada caracol. Ele vai

tocar no tambor ligeiramente apoiado no martelo, a bigorna e o

estribo, os quais

90

tocam ligeiramente, esticando ou relaxando as fibras do tambor.

Este artifício de tantos órgãos e de outros ainda, leva os

sons até o cerebelo, faz entrar os acordes da música sem os

confundir e aí introduz as palavras que são o correio dos

pensamentos, de que restam por vezes lembranças que duram

toda vida.

Uma indústria, não menos maravilhosa lança nos nossos

olhos, sem os ferir, raios de luz refletida dos objetos, raios esses

tão soltos e finos, que parecem que não há coisa alguma entre

eles e o nada. Raios tão rápidos que um piscar de olhos não

acompanha sua velocidade. Eles desenham na retina quadros

nos quais aplicam cores. Traçam uma imagem nítida de um

paraíso celestial.

Eis aí instrumentos que produzem evidentemente efeitos

determinados e muito diferentes, agindo nos princípios dos

nervos. De sorte que é impossível entender pelo órgão da vista e

de ver pelo ouvido.

O autor da natureza terá colocado com uma arte tão

divina esses instrumentos maravilhosos, terá colocado relações

tão impressionantes entre os olhos e a luz, entre o ar e as

orelhas, para que haja ainda necessidade de se completar o seu

trabalho por outros meios? A natureza age sempre pelos

caminhos mais curtos. A complicação dos procedimentos é uma

impotência, a multiplicidade dos recursos é uma fraqueza.

91

Tudo o que está preparado para a vista e para o ouvido

está também para os outros sentidos, com uma arte tão

maravilhosa quanto industriosa. O Ser supremo não seria um

mau artesão se o animal formado por ele para ver e entender

não pudesse, entretanto, ver e nem entender se não se lhe

metesse um terceiro personagem interno para fazer só essas

funções? A Inteligência suprema não pode dar de uma só vez as

sensações após nos ter dado os instrumentos admiráveis da

sensação?

A Inteligência suprema fez isso, convenhamos, em todos

os animais. Nenhuma pessoa por mais boba que seja, imagina

que dentro de uma lebre ou de um galgo, esteja escondido um

ser que veja, escuta, cheira e que age por ele.

Uma multidão incontável de animais goza de seus

sentidos por leis universais. E essas leis são comuns a eles e a

nós. Eu encontro um urso em uma floresta. Ele escutou a minha

voz e eu escutei o seu rosnado. Ele me viu com os seus olhos,

como eu o vi com os meus. Ele tem o instinto de me devorar,

como eu tenho o instinto de me defender ou de fugir. Alguém irá

me dizer: Espera. Há apenas a necessidade dos órgãos do urso,

mas para você é outra coisa. Não são os seus olhos que vêm,

não são as suas orelhas que escutam. Não é o trabalho dos

seus órgãos que lhe dispor a evitar

92

ou a combater. É preciso consultar uma pequena pessoa que

está dentro do seu cerebelo, sem a qual você não poderá ver e

nem escutar este urso, nem o evitar e nem se defender.

O mecanismo de nossas ideias.

Por certo, se os órgãos dados pela Inteligência universal

aos animais lhes são suficientes, não há razão alguma para se

atrever a crer que os nossos não sejam E que além da

Inteligência universal, nós precisemos de um terceiro para

operar.

Se há casos em que esse terceiro é útil, não é absurdo

não admiti-lo em outros casos? Admite-se que nós fazemos uma

infinidade de movimentos sem o concurso desse terceiro.

Nossos olhos se fecham rapidamente a um súbito e imprevisto

clarão de luz. Nossos braços e nossas pernas se colocam em

equilíbrio, pelo medo de uma queda. Mil outras operações

demonstram ao menos que um terceiro não preside sempre a

ação dos nossos órgãos.

Examinemos todos os autômatos nos quais a estrutura

interna é um pouco parecida com a nossa. Há neles como em

nós poucos nervos do terceiro par e alguns dos outros pares,

que se inserem dentro dos músculos que servem os sentidos e

que trabalham no laboratório químico das vísceras, agindo

independente da vontade. É admirável, sem dúvida, que seja

dado a todos os animais a virtude de imprimir movimentos a

todos os músculos que

93

servem para lhes fazer marchar, apertar, estender, mexer as

patas ou braços, as garras ou dedos, comer, etc. E que nenhum

animal seja o mestre da menor ação do coração, do fígado, dos

intestinos, da circulação do sangue, que circula por todo o corpo

cinco vezes por hora, no caso do homem.

Mas se entende bem quando se diz que há no homem um

pequeno ser que comanda os pés e as mãos e que não pode

comandar o coração, o estômago, o fígado e o pâncreas? E este

pequeno ser não existe no elefante e no macaco que fazem uso

dos seus membros exteriores como nós e que são escravos de

suas vísceras como nós?

E vai-se mais adiante. Diz-se: Não há nenhuma relação

entre os corpos e uma sensação. São coisas inteiramente

diferentes. Então, será em vão que a Inteligência suprema terá

disposta a luz para penetrar nos nossos olhos e nos fazer ver. E

as partículas elásticas do ar para entrar nos nossos ouvidos e

nos fazer escutar, se a Inteligência não tiver colocado no nosso

cérebro um ser capaz de receber essas sensações? Este ser,

diz alguém, deve ser simples. Ele é puro, intangível, está em um

lugar sem ocupar espaço. Não pode ser tocado, mas recebe

impressões. Não tem absolutamente nada de material, mas é

afetado continuamente pela matéria.

94

Então outro diz: Esse pequeno personagem que não

ocupa lugar algum, estando colocado no nosso cérebro, não

pode na verdade ter por ele mesmo alguma sensação e alguma

ideia pelos próprios objetos. O Ser inteligente então rompeu esta

barreira que o separa da matéria e quis que ele tivesse

sensações e ideias a propósito dela. A Inteligência suprema quis

que ele vivesse quando a nossa retina estiver pintada e que ele

escute quando nosso tímpano for tocado. É verdade que todos

os animais recebem suas sensações sem o socorro desse

pequeno ser. Mas é preciso dar um ao homem. É mais nobre. O

homem combina mais ideias que os outros animais. É preciso

então que ele tenha suas ideias e sensações de maneira

diferente da deles.

Se assim é, senhores, por que o bom autor da natureza

teve tanto trabalho? Se este pequeno ser que vocês alojam no

cerebelo não pode por sua natureza ver e escutar, se não há

nenhuma proporção entre os objetos e ele, não será preciso olho

e nem ouvido, tambor, martelo, bigorna, córnea, úvea, humor

vítreo e retina. Tudo isto será absolutamente inútil.

Desde que este pequeno personagem não tenha

conexão, analogia ou proporção alguma com algum arranjo da

matéria, essa disposição é inteiramente supérflua. Bastava que

o Ser supremo dissesse: "Tu terás o sentimento da visão, da

audição, do gosto, do odor e

95

do tato, sem necessidade de qualquer instrumento ou órgão".

A opinião de que há dentro do cérebro humano um ser,

um personagem estranho que não existe nos outros cérebros é

então sujeita a muitas dificuldades. Ela contradiz toda analogia.

Multiplica os seres sem necessidade. Torna todo o artifício do

corpo humano um trabalho vão e enganoso.

A Inteligência suprema faz tudo.

É certo que nós não podemos nos dar nenhuma

sensação. Nem mesmo podemos imaginar além daquelas que

nós temos experimentado. Que todas as academias da Europa

proponham um prêmio para aquele que imaginar um novo

sentido, jamais alguém o ganhará. Não podemos então

simplesmente nada por nós mesmos, havendo um ser invisível e

intangível dentro do nosso cerebelo, ou não havendo. E é

preciso concordar que, em todos os sistemas, o Autor da

natureza deu tudo o que nós temos, órgãos, sensações e as

ideias que são a continuação delas.

Visto que assim estamos sob a mão da Inteligência

suprema, Mallebranche, em que pesem todos os seus erros, tem

então razão de dizer filosoficamente que nós estamos em Deus

e que vemos tudo em Deus, como São Paulo

96

disse na linguagem da teologia e Aratos e Caton disseram na

moral.

Que podemos, portanto, entender por estas palavras, ver

"tudo em Deus"? Ou essas são palavras vazias de sentido ou

significam que a Inteligência suprema nos dá todas as nossas

ideias.

O que quer dizer, receber ideias? Se não somos nós que

as formamos quando as recebemos, então é a Inteligência

suprema que as forma, do mesmo modo que se não somos nós

que formamos o movimento, é a Inteligência. Logo, tudo é ação

desta Inteligência suprema sobre os seres.

Como tudo é ação da Inteligência suprema.

Há dentro da natureza apenas um princípio universal,

eterno e agente e não pode existir dois porque, ou eles seriam

semelhantes ou seriam diferentes. Se diferentes, eles se

destruiriam. Se semelhantes, é como se houvesse apenas um. A

unidade de propósito no grande tudo infinitamente variado

anuncia um só princípio. Este princípio deve agir sobre todos os

seres ou ele não é mais um princípio universal.

Se ele age sobre todos os seres, age sobre todos os

modos de cada ser. Não há, por conseguinte, um só modo, uma

só ideia, que não seja o efeito imediato de uma causa universal

sempre presente.

Esta causa universal produziu o sol e

97

os astros imediatamente. Seria de estranhar que ela não

produzisse em nós, imediatamente, a percepção do sol e dos

astros.

Como não se pode duvidar que tudo é efeito desta causa,

quando esses efeitos começaram a agir? Esta causa universal é

necessariamente agente porque ela age, pois a ação é seu

atributo, porque todos os seus atributos são necessários. Porque

se não fossem necessários, ela não os teria.

Então ela sempre agiu. É também impossível conceber

que o Ser eterno essencialmente agente por sua natureza, tenha

estado inativo por uma eternidade, tal como é impossível

conceber um ser luminoso sem luz.

Uma causa sem efeito é uma quimera, um absurdo, assim

também como um efeito sem causa. Houve pois eternamente e

haverá sempre efeitos desta causa universal.

Seus efeitos não podem vir do nada. Logo, eles são

emanações eternas desta causa eterna.

Por conseguinte, a matéria do universo pertence à

Inteligência suprema tanto quanto as idéias e as idéias tanto

quanto a matéria.

Dizer que alguma coisa esta fora dela, é dizer que existe

alguma coisa fora do infinito.

Sendo a Inteligência suprema o Princípio universal de

todas as coisas, todas as coisas existem nela e para ela.

98

A Inteligência suprema inseparável de toda a natureza.

Não é necessário inferir disso que ela toca sem cessar os

seus trabalhos por vontades e ações particulares. Nós fazemos

sempre a Inteligência suprema à nossa imagem. Ora nós a

representamos como um Déspota dentro do seu palácio,

ordenando a escravos, ora como um trabalhador ocupado com

as rodas da sua máquina. Mas um homem que faz uso da razão

pode conceber de modo diferente a Inteligência suprema, como

um Princípio sempre agente e sempre presente a si. Se ele foi

princípio uma vez, é então princípio sempre, pois não pode

mudar de natureza. A comparação do sol e da luz com a

Inteligência suprema e suas produções, é sem dúvida

infinitamente imperfeita, mas enfim, ela nos dá uma idéia,

mesmo que tênue e deficiente, de uma causa sempre

subsistente e de efeitos sempre subsistentes.

Enfim, eu apenas pronuncio o nome da Inteligência

suprema como um papagaio ou como um imbecil, se eu não

tiver a ideia de uma causa necessária, imensa, agente, presente

a todos os efeitos, em todo o lugar, em todo tempo.

Eu não posso me opor às objeções feitas a Espinosa. Foi

dito dele que ele fazia o seu Deus inteligente e bruto, que seu

Deus era apenas uma

99

contradição perpétua. Mas aqui nós não fazemos da Inteligência

suprema a universalidade das coisas. Nós dizemos que a

universalidade das coisas emana dele. E para nos servir ainda

da insuficiente comparação do sol e dos seus raios luminosos,

dizemos que um raio de luz lançado do globo solar e absorvido

na mais infecta cloaca, não pode causar sujeira alguma nesse

astro. Essa cloaca não impede que o sol vivifique toda a

natureza do nosso globo.

Podem nos contrapor também que esses raios são tirados

da substância do sol, que são algumas das emanações e que as

produções da Inteligência suprema são emanações dela mesma.

Assim nós recairíamos no receio de dar uma falsa idéia desta

Inteligência suprema e de compô-la em partes desunidas, de

partes que se combatem. Nós responderemos o que já temos

respondido. Que a nossa comparação é muito imperfeita e serve

apenas para formar uma tênue idéia de uma coisa que não pode

ser representada por imagens. Poderíamos dizer, além disso,

que um raio de luz ao penetrar no sangue, não se mistura com

ele e aí conserva sua essência indivisível. Mas é melhor declarar

que a luz mais pura não pode representar a Inteligência

suprema. A luz emana do sol e tudo emana da

100

Inteligência suprema. Nós não sabemos como. Apenas podemos

conceber o Ser supremo como o Ser necessário do qual tudo

emana. O povo o olha como um Déspota que tem porteiros na

antecâmara do seu palácio.

Acreditamos que todas as imagens com que se tem

representado esse Princípio inteligente, universal,

necessariamente existente por si mesmo e necessariamente

agente na vastidão imensa são ainda mais errôneas que as

comparações tiradas do sol e dos seus raios. Ele é pintado,

sobre os ventos, assentado nas nuvens, cercado de raios e

trovões, falando aos elementos e refreando os mares: Tudo isso

é expressão da nossa pequenez. É na verdade ridículo colocar

num nevoeiro, a meio caminho do nosso pequeno globo, o

Princípio eterno de todos os milhões de globos que rolam pela

imensidão. Nossos raios e trovões que são vistos e ouvidos a

quatro ou cinco léguas ao redor, quando muito, são pequenos

efeitos físicos, perdidos no grande todo. E é este grande todo

que é necessário considerar quando se fala de Inteligência

suprema.

Só pode ser a mesma virtude que penetra do nosso

sistema planetário aos outros sistemas planetários, que estão

mil e mil vezes mais longe de nós que o nosso globo está de

Saturno. As mesmas leis eternas governam

101

todos os astros, porque se as forças centrípetas e centrífugas

dominam o nosso mundo, elas também dominam os mundos

vizinhos e assim em todo o universo. A luz do nosso sol e a de

Sirius deve ser a mesma, deve ter a mesma tenuidade, a mesma

rapidez, a mesma força, escapar igualmente em linha reta em

todas as direções e agir igualmente na razão direta ao quadrado

da distância.

Embora a luzes das estrelas que são outros sois venha a

nós num determinado tempo, a luz do nosso sol também vai até

elas reciprocamente num determinado tempo. Visto que esses

raios luminosos, esses raios de luz do nosso sol se refratem,

não há dúvida que os raios dos outros sois que dardejam nos

seus planetas se refratem precisamente da mesma maneira,

caso os meios onde eles se encontrem sejam os mesmos.

Já que esta refração é necessária à vista, é de se deduzir

que haja nesses planetas seres com a faculdade de ver. Não é

provável que o bom uso da luz seja perdido nesses outros

globos. Pois se o instrumento lá está, o uso do instrumento

também deve estar lá. Partamos sempre desses dois princípios:

Que nada é inútil. E que as grandes leis da natureza são as

mesmas em todos os lugares. Assim, esses sois incontáveis e

acesos no espaço clareiam incontáveis planetas. Seus raios

102

operam lá como no nosso globo. Portanto, lá animais desfrutam

a vida.

A luz é de todos os entes, ou de todos os modos do

grande Ser, aquele que nos dá a idéia mais extensa da

Divindade, tão clara quanto possa representar.

Com efeito, após ter visto os recursos da vida animal do

nosso globo, nós não sabemos se os habitantes dos outros

mundos têm órgãos iguais. Depois de conhecer a gravidade, a

elasticidade e outras características da nossa atmosfera,

ignoramos se os planetas que giram em torno de Sírius ou de

Aldebarã, têm uma atmosfera igual à nossa. Nosso mar salgado

não nos mostra que existem mares nesses outros planetas. Mas

a luz se apresenta por toda parte. Nossas noites são iluminadas

por uma multidão de sois. É a luz que de um canto desta

pequena esfera em que o homem rasteja, mantém uma

correspondência contínua com todos esses universos. Saturno

nos vê e nos vemos Saturno. Sirius que é apercebido pelos

nossos olhos, pode também nos descobrir. Ele descobre

certamente o nosso sol, embora haja entre um e outro uma

distância que uma bala de canhão, que percorre cem toesas por

segundo, não pode transpor em quatro mil anos.

A luz é realmente um mensageiro rápido que percorre o

grande todo, de mundo a mundo. Tem algumas propriedades da

matéria e

103

propriedades superiores. E se alguma coisa pode fornecer uma

tênue idéia inicial, uma noção imperfeita do Ser supremo, é a

luz. Ela está por tudo como ele e age por tudo como ele.

Resulta disso, parece-me, de todas essas idéias, que há

uma Inteligência eterna e onipotente de onde decorrem, em

todos os tempos, todos os seres e todas as maneiras de ser do

universo.

Sei que sou tão necessariamente limitado quanto o

grande Ser é necessariamente imenso. É isso tudo o que me

mostra o pequeno raio de luz emanado em mim, do sol das

mentes.

Reflexões sobre o homem.

A origem dos erros em que o homem caiu, na ocasião em

que se considerou como objeto de reflexão, é proveniente dele

ter acreditado mover-se por vontade própria. Não refletiu que as

partes de todos os corpos, os primeiros elementos que os

compõem, são os mesmos e produzem, só pela diversidade do

seu arranjo, os diferentes corpos que vemos. Acreditou agir

sempre pela própria energia em suas ações e nas vontades que

lhe são os motivos. Ser independente das leis gerais da

natureza e dos objetos, que malgrado e por vezes sem o homem

saber, esta natureza age sobre ele.

104

Se acaso se observasse atentamente, teria reconhecido que

todos esses movimentos são apenas espontâneos. Teria

reconhecido que o seu nascimento depende de causas

inteiramente fora de seu poder; Que é sem a sua concordância

que ele entra no sistema onde ocupa um lugar e que depois de

nascido, até o momento de sua morte, ele é continuamente

modificado por causas que, à sua revelia, influenciam sua

máquina, modificam o seu ser e regulam a sua conduta. A

menor reflexão não será suficiente para provar que os sólidos e

os fluidos de que o seu corpo é composto e que o mecanismo

escondido que ele crê ser independente de causas anteriores,

estão perpetuamente sob as influências dessas causas e

estarão, sem elas, totalmente incapacitados de agir?

Não vê o homem que seu temperamento não depende de

si, que suas paixões são efeitos necessários desse

temperamento e que suas vontades e ações são determinadas

por essas paixões e pelas opiniões que ele não se deu? Seu

sangue mais ou menos abundante ou aquecido, seus nervos e

fibras mais ou menos tensos ou relaxados e suas disposições

duráveis ou passageiras não decidem a cada instante suas

idéias, seus pensamentos, seus desejos, suas crenças e seus

movimentos, sejam eles visíveis ou invisíveis? E o estado em

que ele se encontra não depende necessariamente

105

do ar diversamente modificado, dos alimentos de que se nutre,

de combinações secretas que ocorrem nele mesmo e que

conservam a ordem, ou introduzem a desordem em sua

máquina? Numa palavra. Tudo deveria ter convencido o homem

que ele é, em cada instante da sua vida, um instrumento passivo

nas mãos da necessidade.

No mundo onde tudo é ligado, onde todas as causas

estão encadeadas umas nas outras pela Inteligência que preside

toda a natureza, não pode haver energia ou força independente

e isolada. É, portanto, sempre esta Inteligência agente na

natureza que marca para o homem cada um dos pontos da linha

que ele deve descrever. É ela quem elabora e combina os

elementos de que ele deve ser composto. É ela que lhe dá o seu

ser, sua tendência e sua maneira particular de agir. É ela que lhe

desenvolve, que lhe faz crescer e que lhe conserva por um

tempo, durante o qual ele é forçado a cumprir sua tarefa. É ela

que coloca no seu caminho os objetos e acontecimentos que lhe

modificam de uma maneira ora agradável e ora perniciosa. É ela

que, lhe dando sentimento, lhe coloca em situação de escolher

os objetos e os meios mais propícios à sua conservação. É ela

que, após lhe ter fornecido a sua carreira, o conduz à sua

dissolução e lhe faz também suportar a lei geral e constante de

que nada é isento. É assim que, pelo movimento ela faz o

homem nascer, o sustem

106

por um tempo e enfim o dissolve, ou o obriga a entrar no seio

duma natureza que logo o reproduzirá espalhado sob uma

infinidade de novas formas, das quais cada uma de suas partes

percorrerá do mesmo modo os diferentes períodos, tão

necessariamente quanto tudo houver percorrido aqueles de sua

existência precedente.

Portanto, não nos surpreendemos que o homem encontre

tantos obstáculos no momento em que quer perceber o seu ser

e a sua maneira de agir e que imagine de si estranhas hipóteses

para explicar o jogo escondido da sua máquina e que ele veja

seu movimento de uma maneira que lhe parece diferente

daquela dos outros seres da natureza. Ele bem vê que seu

corpo e suas diferentes partes se mexem, mas com frequência,

ele não pode ver o que os leva à ação. Acredita então ter dentro

de si um princípio motor, distinto da sua máquina, que dá

secretamente o impulso às suas molas, se move por sua própria

energia e age segundo leis totalmente diferentes daquelas que

regem os movimentos de todos os outros seres. O homem tem a

consciência de certos movimentos internos que se lhe fazem

sentir, mas como conceber que esses movimentos invisíveis

possam com freqüência produzir efeitos tão evidentes? Como

compreender que uma idéia fugitiva, um ato imperceptível do

pensamento possa frequentemente trazer a confusão e a

discórdia em todo o seu ser? Em uma

107

palavra: Acredita perceber em si mesmo uma substância

distinta, dotada de uma força secreta em que ele supõe

qualidades inteiramente diferentes daquelas de seus próprios

órgãos. Ele não presta atenção que a causa primeira que faz

uma pedra cair ou seu braço se mover, é talvez tão difícil de

conceber ou de explicar quanto aquela do movimento interno de

que o pensamento e a vontade são efeitos. Desta maneira, pela

falta de meditação sobre a inteligência que rege todos os

movimentos da natureza, de ver esta natureza sob o seu

verdadeiro ponto de vista e de notar a conformidade e a

simultaneidade dos movimentos desse pretenso motor e desses

do seu corpo, ou dos seus órgãos materiais, ele julgou que isto

era, não somente um ser a parte, mas ainda de uma natureza

diferente de todos os seres naturais, de uma essência mais

simples e que não tinha nada de comum com aquilo que ele via.

É daí que vieram sucessivamente as noções de

espiritualidade, imaterialidade, imortalidade e todas as palavras

vagas que se tem inventado pouco a pouco, à força de sutilizar

para marcar os atributos da substância desconhecida que o

homem acreditava encerrado em si mesmo e que julgava ser o

princípio escondido de suas ações visíveis. Para coroar a

hipótese audaciosa feita dessa força motriz, foi suposto que,

diferentemente de todos os outros seres

108

e do corpo que lhe serve de invólucro, ela não devia se sujeitar à

dissolução, que sua perfeita simplicidade a impedia de poder se

decompor ou mudar de forma. Em uma palavra, que ela estava

por sua essência isenta das mudanças que os corpos se viam

sujeitos, assim como todos os outros seres compostos de que a

natureza está repleta.

Portanto, o homem tornou-se duplicado. Ele se vê como

um todo composto pela montagem inconcebível de duas

matérias diferentes e que não têm analogia alguma entre elas.

Ele distingue duas substâncias em si mesmo. Uma

visivelmente submissa às influências dos seres grosseiros e

compostos, de matéria grosseira e inerte foi chamada de corpo.

A outra que se diz simples, duma essência pura, foi nomeada

alma ou espírito e as funções dela foram chamadas de

espirituais e intelectuais. O homem considerado relativamente as

primeiras foi chamado de homem físico. E quando se o

considera relativamente às últimas, é distinguido ou designado

sob o nome de homem moral.

Essas distinções adotadas hoje em dia pela maior parte

dos filósofos estão fundadas em suposições gratuitas. Os

homens sempre acreditaram remediar a ignorância das coisas,

inventando palavras em que eles não podem ligar um verdadeiro

sentido. Imagina-se que se conhecia a matéria, todas as

109

suas propriedades, faculdades, causas e diferentes

combinações porque se entrevia nela algumas qualidades

essenciais. Na realidade, apenas se fez obscurecer as tênues

idéias que se pode formar dela, associando uma substancia

muito menos inteligente que ela própria. É assim que os

especuladores, criando palavras e multiplicando os seres, só se

fizeram mergulhar em embaraços que queriam evitar e colocar

obstáculos ao progresso dos conhecimentos. Desde que os

fatos lhe faltaram, se valeram de conjecturas que logo foram

transformadas por eles em realidade. E a sua imaginação que a

experiência não guia mais, se introduziu sem retorno, no labirinto

de um mundo ideal e intelectual, que só ela havia gerado. E foi

logo impossível de tirá-la daí e colocá-la no bom caminho, onde

está apenas a experiência que lhe pode dar a direção. A

experiência mostra que dentro de nós mesmos, assim como

dentro de todos os objetos que agem sobre nós, há apenas a

matéria dotada pela Inteligência suprema das propriedades que

lhe foram dadas. Enfim, o homem é um todo organizado,

composto de diferentes partes de matéria, igual a todas as

outras composições da natureza. Obedece a leis gerais e

conhecidas, assim como leis ou maneiras de agir que lhe são

sabidas e particulares.

Assim, quando nos perguntarem o que é

110

o homem, nós diremos que é um ser material, organizado ou

formado de maneira a sentir, a pensar e a ser modificado de

uma maneira somente a ele próprio, à sua organização, em

combinações particulares que se encontram anexadas nele. E

se nos perguntarem qual a origem que nós damos aos seres da

espécie humana? Nós diremos que, igual a todos os outros

seres, o homem é uma produção da natureza que lhe monta de

uma maneira específica e se encontra submetido às mesmas

leis e que difere em outros aspectos e segue leis particulares,

determinadas pela diversidade da sua formação. E se

perguntarem de onde o homem tem vindo? Nós responderemos

que a experiência não nos tem dado a resposta desta questão

porque não podemos penetrar nos segredos da Inteligência

infinita e que esta pergunta não nos pode interessar

verdadeiramente. Para nós é suficiente saber que o homem

existe e que ele é constituído de maneira a produzir os efeitos

que nós vemos ser ele suscetível.

Mas, se disserem: O homem sempre existiu? A espécie

humana foi produzida desde toda a eternidade? Tem tido em

todos os tempos homens iguais a nós e sempre terá? Houve um

primeiro homem de que todos os outros são descendentes? As

espécies sem começo serão também sem fim? Essas espécies

são indestrutíveis ou passam como os

111

indivíduos? O homem tem sido sempre o que ele é, ou bem

antes de vir ao estado em que nós o vemos, foi obrigado passar

por uma infinidade de desenvolvimentos sucessivos? O homem

pode enfim se gabar de ter chegado a um estado fixo, ou a

espécie humana deve ainda mudar? Se o homem é um produto

da natureza, alguém perguntará se nós cremos que esta

natureza pode produzir novos seres e pode fazer desaparecer

espécies antigas. Pois dentro dessas suposições quer-se saber

por que a natureza não produz novos seres e novas espécies

sob os nossos olhos?

Parece que podemos pegar sobre todas essas questões,

indiferentes à realidade da coisa, o partido que nós quisermos. À

falta da experiência, é a uma hipótese que se fixa a curiosidade,

que se lança sempre para além dos limites prescritos ao nosso

espírito. Observado isso, o contemplador da natureza dirá que

ele não vê nenhuma contradição em supor que a espécie

humana, tal como é hoje em dia, tenha sido produzida ou dentro

do tempo ou desde toda eternidade. Ele não vê vantagem em

supor que esta espécie tenha chegado por diferentes passagens

de desenvolvimentos sucessivos ao estado em que nós a

vemos. A matéria é eterna e necessária, mas suas combinações

e suas formas são passageiras e contingentes. E o homem é ele

outra coisa que matéria combinada, em que a forma varia a todo

instante?

112

Entretanto algumas reflexões parecem favorecer ou dar

como mais provável a hipótese que o homem é uma produção

feita dentro do tempo, particular ao globo que habitamos. Que,

por conseqüência, não pode datar da formação desse globo e

que é resultado de leis particulares que o dirigem. A existência é

essencial ao universo, ou à montagem total de matérias

essencialmente diversas das que nós temos, mas as

combinações e as formas não lhe são essenciais. Observado

isso, qualquer que seja a matéria que compõem a nossa terra,

ela sempre existiu. Esta terra não teve sempre a sua forma e

suas propriedades atuais. Talvez esta terra seja uma massa

destacada dentro do tempo de algum outro corpo celeste e que,

consequentemente, esteve assim apta a produzir seres em tudo

diferentes do que nós agora aqui encontramos, visto que então

sua posição e sua natureza deviam propiciar produções

diferentes das que nos oferece hoje em dia.

As plantas, os animais e os homens, qualquer que seja a

suposição que se adote, podem ser olhados como produções

inerentes ao nosso globo e que lhe são próprias, na posição ou

nas circunstâncias onde ele se encontra atualmente. Essas

produções mudarão se o nosso globo, por qualquer revolução,

vier a trocar de lugar. O que parece fortificar esta hipótese é o

fato de que no nosso globo,

113

todas as produções variam em razão dos seus diferentes climas.

Os homens, os animais, os vegetais e os minerais não são os

mesmos em toda a parte, Eles variam algumas vezes de

maneira muito sensível a uma distância pouco considerável.

Enfim, os homens variam em diferentes climas pela cor, talhe,

formação, força, laboriosidade, coragem e pelas faculdades de

espírito. Mas o que constitui o clima? É a diferente posição das

partes do mesmo globo relativamente ao sol, posição que é

suficiente para ocasionar uma variedade sensível nas suas

produções.

Pode-se então conjecturar com bastante fundamento, que

se por qualquer acidente, o nosso globo viesse a se deslocar,

todas as suas produções seriam forçadas a mudar, visto que as

causas não seriam mais as mesmas, ou não agindo mais da

mesma maneira, os efeitos deveriam necessariamente mudar.

Transportemos em imaginação um homem do nosso planeta

para Saturno. Bem cedo seu peito será rasgado por um ar muito

rarefeito, seus membros serão congelados pelo frio e ele

morrerá pela falta de elementos análogos à sua existência atual.

Transportemos outro homem para Mercúrio e o excesso de calor

irá destruí-lo bem cedo.

Assim tudo parece nos autorizar a conjecturar que a

espécie humana é uma produção própria

114

do nosso globo, da posição onde ele se encontra e que se essa

posição vier a mudar, a espécie humana mudará ou será forçada

a desaparecer, visto que aí não terá o que lhe possa coordenar

com o todo, que não somente lhe dá a idéia de ordem, mas

ainda lhe faz dizer que tudo está bem, embora não seja tudo

como podia ser e embora tudo seja o que necessariamente é.

Estas reflexões parecem contrariar as ideias daqueles

que queriam conjecturar que os outros globos são habitados

como o nosso por seres semelhantes a nós. Mas se os lapões

diferem de uma maneira tão marcante dos hotentotes, que

diferença nós não devemos supor entre um habitante do nosso

globo com um habitante de Saturno ou Venus?

Qualquer que seja o caso, se nos obrigam a remontar por

imaginação à origem das coisas e ao berço do gênero humano,

nós diremos que é provável que o homem seja um efeito

necessário do desenvolvimento do nosso globo, ou um dos

resultados das qualidades, das propriedades e da energia de

que ele foi suscetível na presente posição. Que ele tenha

nascido macho e fêmea, que a sua existência seja coordenada

com a desse globo e que enquanto esta coordenação subsistir, a

espécie humana se conservará e se propagará desde a

impulsão e as leis primitivas que o têm previamente feito nascer.

Se esta

115

coordenação vier a mudar, ou se a terra deslocada da sua

posição, cessar de receber a mesma impulsão ou influência da

parte das causas que agem atualmente sobre ela e que lhe

fornecem sua energia, a espécie humana mudará para fazer

frente a seres novos, próprios a se coordenarem com o estado

que sucederá a este, que nós vemos atualmente subsistir.

Oh homem! Nunca conceberás que tu és efêmero? Tudo

muda no universo. A natureza não engloba nenhuma forma

constante. E tu pretendes que a tua espécie não pode

desaparecer e deve ser excetuada da lei geral que ordena que

tudo se altere. Tu, que na tua tolice tomas arrogantemente o

título de rei da natureza! Tu que medes a terra e os céus! Para ti,

para quem tua vaidade imagina que tudo foi feito, porque tu tens

uma pequena porção de inteligência! É necessário apenas um

ligeiro acidente, como um deslocamento de um átomo, para te

fazer perecer, para te degradar, para te roubar esta pequena

porção de inteligência em que pareces te fiar.

Se forem rejeitadas todas as conjecturas precedentes e

afirmado que a natureza age por uma soma de leis imutáveis e

gerais; Se acreditado que o homem, os quadrúpedes, os peixes,

os insetos e as plantas existem por toda a eternidade e

permanecem eternamente como são; Se desejado que desde

toda a eternidade os astros brilhem no firmamento; E se

116

dito que não é preciso mais demandar porque o homem é tal

como ele é e porque a natureza é tal como nós a vemos ou

porque o mundo existe, nós não nos oporemos. E qualquer que

seja o sistema que se adote, ele responderá talvez igualmente

bem às dificuldades que nos embaraça. E consideradas de perto

se verá que essas dificuldades são na verdade apenas

insignificâncias que nós colocamos antes da experiência. Não é

dado ao homem saber tudo. Não lhe é dado conhecer sua

origem, nem lhe é dado penetrar nas essências das coisas e

remontar aos primeiros princípios. Mas lhe é dado possuir a

razão, a boa fé e convir ingenuamente que se ignora aquilo que

não se pode saber. E de não substituir por palavras ininteligíveis

e suposições absurdas as suas incertezas. Assim, àqueles que

para resolver as dificuldades, pretendem ser a espécie humana

descendente de um primeiro homem e de uma primeira mulher

criados pela Divindade, nós respondemos que estamos muito

convencidos da natureza e da Inteligência suprema e que não

temos nenhuma idéia da criação. Porém bem da sua formação,

visto que a matéria é eterna e que se servir de palavras como

alma e criação, é dizer em outros termos, que se ignora a

energia da Inteligência suprema sobre a natureza e que nós não

sabermos nada como ela pode produzir os homens que nós

vemos.

117

Desde toda a eternidade, a Inteligência suprema tem

conhecido a matéria. É contraditório dizer que se conhece uma

coisa que não existe. Assim, a matéria deve ser eterna.

Inventou-se a palavra 'alma' para expressar debilmente os

recursos da nossa vida, como a vegetação é uma palavra que é

usada para significar a maneira inexplicável pela qual a suprema

Inteligência faz que a planta tire os sucos da terra. Todos os

animais se movem e esta força de se mover, chama-se força

ativa. Mas não há um ser distinto que seja esta força. Esta força

então deve vir de onde? Temos paixões, memória e razão. Mas

essas paixões, esta memória e esta razão não são sem dúvida

coisas à parte. Não são seres que existem em nós. Não são

pequenas pessoas que têm uma existência particular, são

palavras genéricas inventadas para fixar nossas idéias. A alma

que significa a nossa memória, nossa razão e nossas paixões,

não é então mais do que uma palavra. Quem faz o movimento

na natureza? É a Inteligência suprema. Quem faz vegetar as

plantas? É esta Inteligência. Quem faz o pensamento no

homem? É esta Inteligência suprema.

Por mais que a alma humana fosse uma pequena pessoa

encerrada dentro do nosso corpo que dirige os movimentos e as

idéias, isso não marcaria no eterno Artisão da natureza

118

uma impotência e um artifício indígno dele? Então ele não teria

sido capaz de fazer robôs que tivessem em si o dom do

movimento e do pensamento? Vocês ousariam negar que a

Inteligência suprema tenha o poder de animar o ser pouco

conhecido que chamamos matéria? Por que então se serviria ele

de outro agente para animá-lo?

E tem mais. Que será desta alma que vocês dão tão

livremente ao nosso corpo? De onde ela virá? Seria necessário

que a Inteligência suprema estivesse continuamente à espreita

do acasalamento de homens e mulheres. Que ela

cuidadosamente marcasse o momento em que o germe deixa o

corpo do homem e entra no corpo da mulher. E então

rapidamente enviasse uma alma para esse germe? E se este

germe morre, o que será dessa alma? Ela terá sido criada

desnecessariamente, ou ela vai esperar outra ocasião?

Eis que vos confesso uma estranha ocupação para o

Mestre da natureza. Mas não somente é preciso que preste uma

atenção contínua na copulação da espécie humana. É preciso

ainda que ele faça o mesmo com todos os animais, porque eles

têm como nós memória, idéias e paixões e se uma alma é

necessária para formar esses sentimentos, memória, ideias e

paixões, é necessário que a Inteligência suprema trabalhe

continuamente forjando almas para todos os animais da

natureza.

119

Que idéia posso fazer de um Artesão de tantos milhões de

globos, que será obrigado a fazer continuamente cravilhas

invisíveis para perpetuar sua obra? Visto que sou animado pela

própria Inteligência suprema, para que me serveria esta alma?

Eis uma pequena parte das razões que podem me fazer

duvidar da sua existência.

Não somos nós que nos damos idéias, nós as temos

quase sempre, apesar de nós mesmos. Nós as temos quando

estamos dormindo. Tudo se faz em nós sem que nos

intrometamos. A alma pedirá educadamente ao sangue e aos

fluídos animais: "corram, por favor, desta maneira para me

agradar". Eles circularão sempre como a Inteligência suprema

lhes receitou. É melhor eu ser a máquina desta inteligência que

me é demonstrada, que ser a máquina de uma alma que eu

duvido.

O homem é um todo composto por montagem de muitas

partes de espécies diferentes, que estão sujeitas

irrevogavelmente às leis inflexíveis do mecanismo universal:

Partes sólidas, partes fluídas, partes duras, partes moles,

alavancas de todos os gêneros, roldanas, tubos, glândulas,

licores e espíritos (animais)11. Tudo isso forma um todo, que por

algumas de suas partes, torna-se capaz de sentimentos e

conhecimento, como um pêndulo torna-se capaz de fazer soar a

hora.

11

Segundo a fisiologia antiga substâncias muito sutis que levavam a vida do coração e do cérebro ao resto do corpo; espíritos vitais. N.T

120

A estrutura, a ligação, a conveniência, os usos e os

efeitos dessas diferentes partes, são bem dignos de nossa

curiosidade e deveriam ser um dos principais estudos nos

primeiros anos da nossa vida.

Mas o que deve sobretudo chamar a nossa atenção para

tema em questão é o nosso cérebro, pois o cérebro é a sede dos

sentimentos e dos conhecimentos.

Como os olhos são o órgão da visão, de modo que sem

os olhos não vemos nada, de forma semelhante, nós só

pensamos pela parte inferior do cérebro, onde todos os nervos

terminam, ou, o que é a mesma coisa, de onde todos os nervos

se originam e de onde vão se distribuir pelos sentidos. De modo

que esta parte do cérebro é o nosso sentido interno. Podemos

lhe comparar de alguma forma, com uma aranha, que no reduto

onde ela permanece estacionada, é avisada pelos fios da sua

teia, dos vários movimentos que ocorrem em qualquer um dos

fios e que são levados até ela.

Esta parte do cérebro é o que comumente se chama de

alma, nome a que o vulgo dá uma significação bem diferente,

porque ele olha a alma como uma substancia diferente do corpo

e como o princípio de todas as operações de um animal vivo.

Mas a palavra alma é um termo abstrato e metafísico, que não

tem mais realidade em si em comparação ao o resto do corpo,

que a palavra 'visão' tem em relação aos olhos e a palavra

''audição' em relação aos ouvidos.

121

É inútil procurar em nós um ser estranho ao nosso corpo,

que seja o princípio das nossas operações. Elas são o resultado

da montagem e do concurso de todas as diferentes partes do

próprio corpo, dependendo das leis do mecanismo universal. É

esta montagem que forma o animal vivo.

Nós apenas conhecemos os diversos seres que estão no

mundo pelo sentimento dos efeitos que vemos que estes seres

produzem em nós. Eu vejo um determinado corpo e sinto que

ele excita em mim a sensação de calor e luz. Digo então que ele

é quente, luminoso e diferente do gelo e de outros corpos

sólidos que também vejo, mas que não me fazem sentir nem

calor e nem luz. Eu sinto que sou capaz de sentimento e de

pensamento. Assim eu afirmo que tenho a propriedade de sentir

e pensar. Eu tenho um corpo organizado como resultado de

diferentes elaborações e diversos movimentos que ocorrem

sobretudo no cérebro. Eu sinto que eu sou afetado por

sentimentos e pensamentos. Por isso eu reconheço em mim a

propriedade de sentir e pensar. E eu digo que sou um corpo

organizado que sente e pensa de acordo com as diferentes

impressões que se fazem no órgão do pensamento que é o

sentido interior.

Toda coisa é considerada ser no estado onde se

encontra, até que uma razão legítima nos obrige a olhar de

forma diferente. Ora, eu não tenho nenhum

122

motivo razoável que me obrige transferir para outro ser que me é

desconhecido, uma propriedade que encontro tão intimamente

ligada ao meu corpo.

O que faz imaginar uma substância diferente do corpo e

capaz apenas de pensar é o hábito pelo qual os homens

atribuem propriedades apenas aos seres em que eles vêem que

estas propriedades estão reunidas. Eles não percebem esta

ligação e essa ignorância lhes é imputada. E melhor que

permanecer indeterminada, eles imaginam um ser que é o

substrato desta propriedade desconhecida. É assim que durante

a noite, quando o vulgo escuta qualquer barulho sem ver o corpo

que o causa, atribui ou a um espírito ou a qualquer outro ser

quimérico. Desta maneira, como se pensa sem saber que o

pensamento é uma propriedade do corpo vivo e organizado, se

imagina um ser de que a gente não conhece nada, para fazer o

substrato do pensamento.

As diferentes maneiras pelas quais se pensa segundo os

diversos estados onde o corpo se encontra são o que prova por

completo que nós não temos necessidade de recorrer a um ser

estranho e ideal para reconhecer o que pensa em nós,

Há o estado de vigília e o estado de sono; o estado de

saúde e o estado de doença; estado da paixão e estado

tranquilo e raro da razão; estado da loucura,

123

da mania, da melancolia, da alegria e da aflição; a natureza e a

qualidade dos alimentos, o clima mesmo e a temperatura do ar,

tudo isso influi no pensamento.

Nós ficamos exaustos depois de pensar por muito tempo

e sem parar em qualquer assunto que exige atenção. E como a

aplicação da nossa capacidade de pensar influi sobre o resto do

corpo, nós sentimos também que o trabalho manual afeta a

faculdade de pensar. E que depois de um trabalho penoso,

precisamos de descanso, a fim de não perturbar as operações

das partes internas do nosso corpo, que fornecem novas

energias ao órgão do pensamento.

As diferentes fases da vida trazem também mudanças em

nossa maneira de pensar. Vemos esta faculdade crescer com o

corpo, se fortificar se enfraquecer com ele e, finalmente, se

perder com as outras propriedades de nossos órgãos.

A constituição ou a qualidade da pasta de que cada

homem foi formado, também produz diferenças na maneira de

pensar.

Ou, se fosse apenas o cérebro que pensasse e o

pensamento fosse uma propriedade (ou, como querem alguns

Autores, a essência, outra substância de que o conceito, como

eles querem, exclui toda a corporeidade) como o que

acontecesse no corpo poderia influenciar o pensamento? A

essência do círculo pode influenciar a

124

essência do quadrado? Cada ser é como ele é em si mesmo,

independente de outro ser pelo menos quanto à sua propriedade

essencial. O corpo não tem necessidade de espírito para ser

extenso. O mesmo acontece se o espírito fosse uma substância

cuja propriedade essencial fosse pensar. Pensaríamos como e

quando nós quiséssemos. E nós não somos os mestres nem dos

nossos pensamentos e nem das nossas sensações. Se nossa

alma tivesse por ela mesma esta propriedade de sentir e pensar,

os vários estados do corpo e as várias elaborações que aí

acontecem, não afetariam o exercício desta propriedade

essencial do espírito, pelo menos até ao ponto em que sentimos

que estes estados influenciam, sobretudo durante o sono, na

doença, na embriaguez, na loucura, etc.

Tudo isso, dizem, vem apenas em virtude da união que o

Ser supremo estabeleceu entre o corpo e a alma.

Mas ainda um golpe: a união das duas substâncias não

vai produzir uma mudança no que elas têm de essenciais.

Esta palavra 'união' é aqui apenas um termo metafísico,

tirado de montagem, ou junção de corpos, mas nada parecido

pode ser encontrado entre duas substâncias que não tenham

entre si qualquer relação.

Além do mais, para sustentar que duas substâncias estão

unidas, não deveríamos perceber antes

125

bem distintamente estas duas substâncias? Se a existência

particular de cada uma dessas duas substâncias não nos é

conhecida, como podemos garantir com certeza que elas estão

unidas? Ora, eu apenas percebo e sei o meu corpo, em que

descubro pelo sentimento, a propriedade de pensar e ser

suscetível a alegrias, tristezas, prazeres e dores.

Além de que, os Doutores afirmam que há pouca ligação

entre sua suposta substância pensante e a substância extensa.

Eles asseguram tão afirmativamente que a idéia de uma exclui a

idéia da outra, que eu não posso entender como na hipótese

deles, se possa admitir esta união e sustentar que ela consiste

num comércio recíproco entre a alma e o corpo. O comércio

recíproco entre a alma e o corpo de um louco, de um doente, de

um apoplético, de um homem embriagado, de um homem que

dorme! Não é isso o que os Jurisconsultos chamam de uma

sociedade leonina, onde os benefícios estão apenas de um

lado?

Além disso, o comércio recíproco não faria a união, ele a

suporia. E que união pode-se conceber entre duas substâncias,

que, como eles pretendem, são tão diferentes que o conceito de

uma exclui o conceito da outra?

Mas podemos duvidar desta união, dizem os Doutores?

Já que sentimos tão indubitavelmente que o que pensa em nós

age na nossa substância extensa.

126

Eu respondo que esse sentimento interior não prova a existência

e nem a união de duas substâncias diferentes, em que uma

delas é totalmente desconhecida para mim. Esse sentimento

serve unicamente para provar que o pensamento é uma

propriedade dos corpos vivos, cujos órgãos atingiram certo

ponto de consistência. Sinto tão indubitavelmente que o meu

corpo organizado é vivo, que acho que estou convencido de ser

o pensamento uma propriedade que a Inteligência suprema me

deu e que eu apenas a tenho porque sou um corpo organizado e

vivo.

Embora nós só conheçamos as propriedades dos seres

pelos sentimentos que os próprios seres nos dão, posso eu

duvidar do meu corpo, visto que ele é vivo e tem a propriedade

de pensar que eu sinto tão intimamente ser um efeito da

continuação do meu corpo?

Não serve para nada dizer que o cérebro e os espíritos

animais, não passando de corpos e de substâncias extensas,

não podem pensar e nem fazer pensar. Nossa própria

experiência, fundada no sentimento interior, destrói esta objeção

vulgar.

É verdade que como nós somente sabemos pelos

sentidos e que os nossos sentidos não são tão perspicazes para

perceberem como o pensamento resulta de todas as operações

que ocorrem no nosso cérebro, nós não sabermos

127

como o nosso cérebro tem a propriedade de pensar. Mas tudo o

que podemos concluir dessa falta de luz, é unicamente a nossa

ignorância sobre o detalhe do como e não a impossibilidade de

um fato de que temos consciência.

O homem cego de nascença não conhece como os

corpos em que só descobre qualidades tácteis podem excitar

impressões da luz e de cor, de que não tem e não pode ter

nenhuma idéia. Mas se negar estas propriedades porque elas

lhe são desconhecidas e porque não as compreende na idéia

que faz de corpos, seria ele bem razoável se afirmasse que o

que não conhece não poderia ser?

Esses doutores estão ainda mais errados do que este

cego, porque mesmo com uma pancada na cabeça, nós não

poderíamos duvidar do que não pensamos. Nossos próprios

sentimentos e reflexões nos têm dado da idéia da luz e das

cores. Uma vez que um número infinito de fatos nos faz

descobrir no cérebro a propriedade de pensar, propriedade essa

cujo exercício depende dos sentidos e de todas as operações

que ocorrem no corpo.

Mas o pensamento, diz alguém, não está encerrado na

idéia de extensão. Isso ocorre porque os olhos e os outros

sentidos não os podem descobrir ali, como os sentidos do cego

de nascença não descobrem a luz ou as cores.

A idéia que nós temos da extensão é apenas uma idéia

metafísica; a extensão é apenas

128

um termo arbitrário: Não há ser real que seja a extensão. Esta

palavra só marca uma idéia geral, tirada de todas as

propriedades dos objetos que afetam nossos sentidos e as quais

nos dão um substrato comum, que nós chamamos extensão.

Assim, a figura é um termo abstrato que marca a visão do nosso

espírito, que concebe em geral esta maneira de ser dos corpos,

entendendo que eles têm uma forma exterior, sem parar em

nenhuma forma particular. Portanto neste sentido, não há ser

que seja a figura em geral. Acontece o mesmo com a extensão.

Ela é apenas o substrato comum que nós imaginamos de todas

as propriedades sensíveis que afetam os nossos sentidos. Ora,

o pensamento sendo interior não podendo afetar os sentidos

externos. Ele não pode jamais ser considerado como tendo o

mesmo fundamento das propriedades sensíveis e, nem por

consequência, estar contido na idéia da extensão. O que não

tem parte na causa da idéia, não pode entrar na compreensão

dessa mesma idéia.

Além de que, os objetos de um sentido não são os objetos

de outro sentido. A visão pode não sentir os sabores, os cheiros,

os sons e nem as qualidades tácteis e os outros sentidos não

podem ver os objetos. Ora, a propriedade que o cérebro tem que

pensar é exercida apenas no interior da caixa óssea da cabeça,

de onde parte todos os nervos que vão formar os órgãos dos

sentidos.

129

Esta propriedade de pensar não pode ser percebida por nenhum

sentido externo. Não é então mais objeto dos sentidos que as

cores não são para o gosto ou do cheiro. Esta propriedade é

apreendida apenas pelo sentido interior, guiada pela reflexão.

Mas ela não envia luz aos olhos, nem vibração do ar aos

ouvidos, nem sais aos órgãos do sabor, etc. Assim, não pode

ser percebida pelos sentidos e nem estar encerrada na idéia de

extensão.

Obtenham um sentido a mais, que possa se refletir sobre

si mesmo e vocês descobrirão como o cérebro pensa e muitas

outras propriedades mais, as quais até lá, serão sempre tão

desconhecidas quanto os satélites de Saturno e de Júpiter eram

para os astrônomos antes da descoberta do telescópio.

Os nossos conhecimentos são limitados. Os dos animais

são ainda mais. Os seres inanimados não têm nenhum. Existem

matérias pesadas e leves. Há corpos sólidos e corpos fluídos

que estão sempre em movimento, como éter e o fogo estão

todos contidos no nosso estado. Reconheçamos as vantagens

que a Inteligência suprema nos deu, mas não procuremos nos

enobrecer com títulos fantasiosos.

Para ter o direito de excluir de todo ser extenso a

propriedade de pensar, é necessário conhecer exatamente todas

as propriedades que pode haver

130

em tal ser, mas apenas conhecemos nele aquelas que os

nossos sentidos podem descobrir. E por que recusaríamos, além

disso, aquela que a nossa consciência nos faz sentir? Por que

imaginaríamos um ser de que não temos nenhuma idéia para lhe

dar, apenas por suposição, a propriedade única de pensar? Ser

ideal, cuja união quimérica com o corpo, implica tanto

impossibilidade quanto contradição. Por que recorrer ao milagre,

quando só há de sentir para reconhecer que tudo que não está

em contradição está sob o poder da Inteligência suprema?

Eu sei que tenho um cérebro e o que for que aí tenha de

mais importante para se conhecer nas partes delicadas que o

compõem, escapa mesmo aos melhores microscópios. No

entanto, como a anatomia me ensina que é lá que todos os

sentidos terminam e que então, sei por consciência que é lá

onde eu penso, julgo, imagino, lembro etc., eu infiro que penso,

julgo, imagino e me recordo por um cérebro vivificado por

espíritos animais. É um sentido a mais, ou melhor, é o centro de

todos os sentidos e relativamente a que os espíritos animais têm

a mesma função que os raios de luz têm com os olhos, as

vibrações do ar com os órgãos da audição, o sal com o gosto e

as várias partículas dos corpos odorantes com o órgão do

cheiro. Em uma palavra, eu sou como eu me encontro, tal como

eu me

131

sinto. Eu não imagino tendo em mim um ser que não conheço,

um ser de natureza diferente da minha e de mim mesmo e um

ser de que sinto que a propriedade que se lhe atribui de pensar,

que faz, dizem, toda a sua essência, é apenas uma propriedade

de mim mesmo. Enfim, um ser que se ele for tal como dizem,

não passa de um acidente absoluto e sem relação alguma com o

meu corpo. Eu sinto que logo que meu corpo para de obedecer

às ordens dos órgãos do pensamento e da vontade, ele

simplesmente segue os movimentos do seu próprio mecanismo.

Ou, como nós já temos dito, ele segue as leis invariáveis do

mecanismo universal. Mecanismo a que todos os sentidos estão

sujeitos, mesmo aquele do pensamento. Assim, bem longe desta

pretensa substância que chamamos alma comandar, ela de fato

obedece. E é de se admirar que, enquanto se experimenta a

cada momento a sua impotência e subordinação, enquanto se

reconhece que ela não pode se presentear com o menor prazer

ou excluir a mais leve dor, nem acelerar a digestão, purificar o

sangue, remover qualquer obstrução, sarar a mais ligeira doença

e nem retificar nos insensatos o exercício da sua pretendida

faculdade essencial de pensar, estabelece-se um comércio

recíproco entre a alma e o corpo. E se define a alma como uma

substância dotada de razão e disposta de tal sorte

132

que ela governa o corpo? Não é ela nem mesmo governada por

si mesmo, ao ponto de cessar de ser, quando o corpo perde o

seu mecanismo.

Da organização.

Toda a matéria é vivente. Há apenas matéria viva no

sistema material. A matéria não poderia perder sua vida nem

sua organização. Logo que um todo orgânico e vivo se dissolve

em outros corpos orgânicos e vivos não há mais matéria morta

após esta dissolução que não houvesse antes. É um composto

vivo que se decompõe em outros compostos vivos sem que

jamais haja a menor parcela de matéria que morra em todas

essas composições ou decomposições. A passagem da matéria

do estado de vida ao estado de morte e o seu retorno do estado

de morte ao estado de vida não pode ter lugar. A vida sendo

essencial à matéria, esta permanece sempre viva. Ela muda

somente de forma e de combinação. Os germes considerados

como modelos ou formas morrem. Mas considerados como

matéria orgânica não morrem. Isso quer dizer que não há

nenhuma destruição na natureza, mas uma contínua

metamorfose.

Ora bem, Livremo-nos dessas ideias de matéria morta,

bruta e inorgânica. Acreditemos que é um péssimo raciocínio

dizer que não há vida onde não percebemos nada. É o primeiro

passo para se chegar ao conhecimento de tudo.

133

A experiência diária nos demonstra um instinto ou uma

inteligência dentro de cada partícula de matéria. Um grão de

semente jogado na terra que lhe é própria e conveniente escolhe

desta terra o que lhe convém à sua substância e crescimento. É

então visível que esse grão deve ser dotado de uma espécie de

inteligência capaz de fazê-lo agir. A falta de desenvolvimento

dentro dos germes suspende as funções, mas não destrói nem

uns e nem os outros. Os germes conservam todo o fundamento

do aparelho orgânico do corpo no qual resultará. O princípio que

nele está unido tem o mesmo fundamento das operações que

ele produzirá na ocasião e à medida do desenvolvimento do

germe. Tem a faculdade de pensar, querer, sentir, se mover e de

se lembrar. Mas o sujeito que deve lhe fazer isso para ele

exercer, não tem ainda adquirido os meios necessários. (Uma

geração nova apenas deve ser olhada como a manifestação de

um corpo que existia sob uma forma imperceptível). Não há

nada de inútil na natureza. Se houvesse uma só inutilidade, seria

mais provável que o acaso tenha presidido à sua formação do

que ele ter sido feito pelo Autor de uma inteligência perfeita.

Porque é mais singular que uma Inteligência infinita agisse sem

intento, do que seria admirável que um princípio cego se

conformasse à ordem por puro acidente. Mas toda coisa tem sua

destinação.

A organização é uma qualidade essencial à

134

matéria, qualidade tão essencial quanto à extensão. Ela é a

base das faculdades comuns a todos os seres, que são as da

nutrição, crescimento e geração. Pode-se dividir quebrar ou

picar os seres orgânicos, só se destruirá a forma e a estrutura

total sem destruir a organização das partes. Nós não os

podemos destruir porque são matéria e como matéria eles

permanecem orgânicos, em qualquer estado que seja e

conservam as faculdades de nutrição, crescimento e geração,

para desenvolvê-las quando as circunstâncias forem favoráveis.

A organização é uma qualidade essencial à

Tudo que morre não faz mais que trocar de forma. Não há

um grão de substância que seja destruída porque toda a matéria

é viva e imperecível.

Os animais, as plantas e os minerais são todos

modificações de matéria organizada. Todos participam da

mesma essência, sem ter outras distinções entre eles do que a

medida pela qual eles participam das propriedades dessa

essência.

Nada perece na natureza. O homem e tudo o que respira,

após ser despojados do invólucro grosseiro, esta espécie de

máscara que lhes envolve e os cobre e que, cessando de serem

homens, ou animais, ou insetos, ou qualquer outra forma

composta, subsistirão vivos dentro da sua primeira forma e

adejarão nos ares até que se lhes apareça

135

ocasiões favoráveis a lhes fazerem reaparecer sob outras

formas.

O homem faz parte do universo. A parte tem relações com

o todo. O universo é um sistema imenso de relações. Essas

relações são determinadas reciprocamente umas pelas outras.

Dentro de tal sistema não pode haver arbitrariedade. Cada

estado de um ser qualquer é determinado naturalmente pelo

estado antecedente. Caso contrário o estado subsequente não

teria a causa de sua existência.

Um corpo vivo que se dissolve, não morre por isso. Mas

cada uma das partes leva consigo a sua vida e sua alma, logo

que ele se corrompe.

Todo montagem de matéria pensa e o pensamento que

subsiste nessa montagem, subsiste sob outras modificações nas

partes desunidas, após a dissipação do conjunto.

Do movimento.

É o movimento que dá o peso à matéria porque ela por si

mesma não é pesada nem leve. O movimento é o princípio

conhecido da gravitação dos corpos. A vegetação é efeito do

movimento, como a geração e a vida dos corpos organizados

são produzidos e conservados pelo movimento. É ao movimento

que se faz necessário atribuir todos os fenômenos. E graças aos

limites do espírito humano, tudo é fenômeno para nós.

136

Não há movimento sem direção. Porque o movimento

sem direção será um movimento simultâneo para todos os lados,

o que é contraditório. A direção é uma determinação em direção

a um lado, em vez de outro. Esta direção só pode ser efeito de

uma Inteligência. A existência do movimento prova então a

existência de uma Inteligência.

Assim, todo movimento, suas leis e seus efeitos são o

trabalho de um Ser livre, infinitamente poderoso e inteligente.

Se uma Inteligência suprema não governasse a matéria e

o movimento, tudo estaria em confusão. Ora, nós vemos que em

tudo o que sai da matéria, há arranjo e ordem. Por

consequência, uma potência infinita deve presidi-la.

Se a atividade deve entrar na definição de matéria, ela

deve também exprimir aí a essência. Com efeito, é certo que

uma definição para ser boa, deve conter todas as propriedades

da coisa definida, ou essas propriedades devem dela decorrer.

Sem isso a definição não é suficiente para distinguir a coisa e

ela será confusa e incompleta. Dito isto, me parece que até aqui

não se definiu perfeitamente a matéria ao dizer que ela é

extensa. Eis a razão pela qual não se olhou os efeitos que o

movimento produz nela como essenciais a ela, mas como

acidentais e de uma natureza diferente, visto que se não os tem

compreendido na sua definição.

137

Ao passo que se dentro da definição de matéria nós fizermos

entrar a atividade com a extensão e a solidez12, como assim

disse o senhor Locke, se verá que todos os seus efeitos

decorrem naturalmente daí e nós não seremos mais obrigados a

recorrer a alguma outra causa para explicá-los assim como as

consequências da extensão.

Supondo que é um erro dizer que o movimento seja

estranho à matéria, concordar-se-á que todas as definições que

se dão por ordinário, estando fundadas sobre esta definição,

contribuíram bastante para fortificar este erro no espírito dos

homens. Por isso, eles estão acostumados a privar a matéria de

movimento e fizeram desta ideia um princípio que acreditaram

ser evidente e que jamais ousaram revogar em suas dúvidas.

Além disso, acontece que aqueles que têm o propósito de

introduzir opiniões falsas e que julgam acertado fortificar seus

intentos, ou aqueles que por sua atração à fama e aqueles que

querem manter sua autoridade sustentando opiniões absurdas e

já estabelecidas, colocam como inegociável que não se dispute

sobre princípios. Além do que eles dão para os princípios todas

as máximas que julgam úteis a seus próprios pontos de vista. De

qualquer modo, se o movimento é essencial à matéria, é

essencial também fazê-la entrar na definição de matéria.

Concordo que antes de fazer tal

12

Solidez = impenetrabilidade. Ver página 192

138

definição de matéria, é preciso começar por provar claramente

que a atividade lhe é necessária. É o que eu me proponho a

fazer no decorrer deste escrito e tentarei provar a definição por

mim demandada pelas razões que trarei para provar que dentro

da natureza, toda matéria, assim como que todas as suas

partículas estiveram sempre em movimento e não podem jamais

dele serem privadas. Que as moléculas que estão encerradas no

centro das rochas mais duras e maiores, no centro de uma barra

de ferro ou de um lingote de ouro, estão em uma atividade

constante como as moléculas do fogo, do ar e da água, embora

em graus diversos e determinações diferentes, iguais que estão

os últimos comparados entre eles. Com efeito, esta ação interna

lhes é igualmente natural a todos, assim como a todas as outras

classes de matéria que se encontram no universo, embora seus

movimentos específicos sejam muito variáveis, o que vem das

diferentes maneiras que eles se afetam uns aos outros. Mas é

tempo de procurar uma nova definição de matéria assim que nós

tivermos feito ver evidentemente que o movimento lhe é

essencial.

Sustento que a matéria não pode ser concebida sem uma

ação que lhe seja própria ou sem qualquer efeito desta ação. E

persisto em sustentar que a matéria não pode mais ser

concebida sem movimento como igualmente não pode ser sem

extensão e que

139

uma de suas propriedades é tão inseparável quanto a outra. Se

alguém quiser tentar me dar a ideia de matéria sem ação, é

necessário para isso, que faça qualquer coisa que seja privada

de toda cor, figura, leveza, peso, que não seja áspera ou lisa,

nem doce e amarga, ou quente e fria. Numa palavra, um ser

privado de todas as qualidades sensíveis, destituído de partes,

de proporções e de todas as relações. Visto que todas essas

coisas dependem imediatamente do movimento, assim como as

formas dos seres corporais, suas gerações, sucessões,

corrupções, combinações infinitas, transposições e os arranjos

de suas partes que são indubitavelmente os efeitos naturais do

movimento, ou melhor, que são o próprio movimento designado

sob esses diversos nomes e sob essas determinações.

A divisibilidade da matéria que é em geral reconhecida é

ainda uma prova convincente de que não se pode concebê-la

sem movimento, pois é só o movimento que a divide e a

diversifica. Por conseguinte, o movimento é necessário assim

como a extensão na ideia de divisibilidade. Donde é necessário

concluir que o movimento é tão essencial à matéria quanto a

extensão. Com efeito, como poder conceber que a matéria seja

uma

140

substância ou qualquer coisa, a não ser que ela tenha ação?

Como a matéria poderá ser o sujeito de acidentes, segundo o

que se diz na sua definição vulgar, pois todos os acidentes são

apenas diferentes determinações da ação dentro da matéria,

diversificadas segundo suas colocações em relação aos nossos

sentidos, mas, que realmente não são distintas da nossa

imaginação ou da coisa mesma dentro da qual nós dizemos que

os acidentes existem? A redondeza não difere em nada do corpo

redondo e o mesmo acontece com todas as outras figuras. Na

verdade, a redondeza não é o nome de um ente real. É somente

uma palavra usada para exprimir a maneira de ser particular de

determinado corpo. O calor e o frio, os sons, odores e as cores

não são nem mesmo as maneiras de ser ou de posturas das

coisas. São apenas nomes que nós damos às maneiras com

que afetam nossa imaginação, pois a maior parte das coisas é

concebida por nós relativamente ao nosso próprio corpo e não

relativamente à sua verdadeira natureza. Eis aí porque algo que

é doce para um, parece amargo a outro. O que dá prazer a um

homem sadio é doloroso a um doente. Entretanto, os órgãos

sendo quase iguais em todos os homens, são

consequentemente afetados da mesma maneira, embora

tenham diferenças mais ou menos acentuadas. Mas essas

141

diferenças, assim como todas as outras que se vê na matéria,

sendo devidas a mudanças diversas ou a essas coisas mesmas,

são apenas conceitos de diferentes movimentos. E então eu

creio poder ousadamente afirmar que a matéria não é jamais

concebida senão como agente e eu conto provar que ela é

assim mesmo dentro do que se chama repouso.

Isso colocado, que se prive se acaso se puder, a matéria

do movimento, ao que eu adivinharei antecipadamente a ideia

que se terá. Ela será a mesma daquela que se pretendeu nos

dar os que tentaram antigamente defini-la. Segundo eles a

matéria primeira é "neque quid, neque quale, neque quantun,

neque quidquam eorum quibus ens denominatur". O que, em

muitas palavras, significa que a matéria não é absolutamente

nada.

Entretanto pretende-se que a extensão da matéria seja

mais fácil de descobrir, mesmo não sendo evidente por si

mesma. Mas se diz que não acontece o mesmo com a sua

atividade. Não posso estar de acordo com isto e sustento que

uma das suas propriedades é tão fácil de descobrir quanto a

outra e que ela não pode ser desprezada ou revogada na dúvida

a não ser por aqueles que só julgam pelas aparências, pelos

hábitos e pela autoridade, sem dignar-se consultar a própria

razão. Seguindo este método de raciocinar, eles podem nos

provar que a lua é apenas do tamanho de um queijo, porque

como o

142

vulgo não crê que haja a extensão quando não se discerne um

objeto visível, também muitas pessoas ficarão chocadas de

serem colocadas no grupo do vulgo em muitas outras coisas, por

concordarem entretanto com o vulgo na crença que não há ação

quando não se percebe nenhum movimento local e determinado.

A experiência nos convence que a multidão de adversários não

prova nada contra a verdade de uma proposição qualquer. As

coisas mais claras e mais simples têm sido grandes mistérios

por séculos inteiros. Entretanto, não é surpreendente que não se

encontre nada onde não se tem procurado. Por pouca paciência

que vocês tenham, me lisonjeia lhes mostrar o que tem

conduzido todas as seitas de filósofos, assim como o vulgo, a

crer na matéria inerte ou desprovida de atividade. Entretanto,

inúmeros filósofos se aperceberam do movimento da matéria,

mas cegados pelos preconceitos de infância, têm atribuído tal

movimento a toda sorte de causas, menos à verdadeira, o que

lhes têm frequentemente forçados a imaginar ridículas e bizarras

hipóteses.

Eu sei que inúmeros sábios filósofos sustentam a

existência do vazio, ideia essa que parece fundada sobre a

inatividade da matéria. A que eu acrescento que alguns desses

filósofos negam junto com os epicuristas que o vazio tenha uma

extensão real e pretendem que ele não é nada, enquanto

143

outros fazem disso uma substância extensa que não tem,

segundo eles, nem corpo e nem espírito. Essas noções fazem

despontar uma infinidade de disputas sobre a natureza do

espaço. A crença do vazio é uma das consequências errôneas e

inumeráveis que resultam da definição de matéria somente pela

sua extensão, na qual ela é suposta desprovida de ação e na

qual se crê ser ela dividida em partes reais independentes umas

das outras. Depois de semelhantes suposições, é impossível

não se concluir que deverá haver o vazio e é semelhantemente

impossível de não concluir uma multidão de absurdos. O que

nós chamamos de partes dentro da matéria, é apenas, como se

pode provar, maneiras diferentes de se conceber as suas

afeições, distinções e modificações. Assim essas partes são

imaginárias ou relativas e não são reais e absolutamente

divididas. A água como tal, pode ser produzida, dividida,

corrompida, aumentada e diminuída, mas não quando ela é

considerada como matéria.

Para evitar todos esses equívocos, é a propósito que

advirto que por corpo eu entendo certas modificações da matéria

que o espírito concebe sendo outros sistemas limitados ou

qualidades abstraídas mentalmente, mas que não são realmente

separados da extensão do universo. Nós dizemos então que um

corpo é maior ou menor, que

144

outro está quebrado ou dissolvido, etc., logo que ele

experimenta mudanças diversas em suas modificações. Mas nós

não podemos dizer propriamente que as matérias são maiores

ou menores que outras porque só há uma espécie de matéria no

universo e se ela é infinitamente extensa e não pode ter partes

absolutas independentes umas das outras, visto que as partes

ou moléculas são apenas concebidas como eu disse a pouco

que os corpos eram.

Tem-se inventado uma infinidade de palavras para ajudar

a nossa imaginação. Elas servem como os andaimes aos

construtores, mas que devem ser suprimidos quando o edifício

for acabado. É preciso se guardar bem de tomá-los por pilastras

ou fundamentos. Desta espécie são, por exemplo, as palavras

'grande' e 'pequeno' que são apenas comparações que o nosso

espírito faz e não nomes de seres reais. Um homem é

relativamente grande em relação à sua criança e pequeno

comparado a um elefante e a criança é grande se for comparada

ao seu pássaro, etc. Essas palavras e outras da mesma espécie

são úteis quando se as aplica convenientemente. Mas abusa-se

com frequência delas e de fatos relativos, designando modos e

fazendo-os realidades, seres positivos e absolutos. Tal é o

abuso que se faz das palavras 'corpo', 'partes', 'partículas',

'qualquer coisa', 'certo ser', etc.. Assim pode ser no uso normal

da vida, mas não

145

deve ser admitido nas especulações filosóficas.

Outros filósofos só admitem haver na natureza partes

normais e relativas e não partes reais e positivas. Entretanto,

não obstante suas sutilezas, não podem alegar nenhuma prova

contra a existência de um vazio que seus adversários não

possam facilmente destruir, visto que todos eles concordam na

suposição de ser a matéria desprovida de ação. Os que estão

afeitos à filosofia sabem que as dificuldades são iguais dos dois

lados, o que tem feito muita gente crer que a coisa é por sua

natureza inexplicável. Neste caso eles se apegam, como

frequentemente se tem injustamente feito, a seu próprio

entendimento que não é satisfatório e não às suposições

precárias que se têm elaborado de lado a lado e que eles não

notaram.

Não há nada de mais certo do que em duas afirmações

contraditórias uma ser sempre verdadeira, enquanto a outra

sempre falsa. Assim, seja o que for que haja o vazio ou que tudo

seja pleno, servindo-se de suas impróprias expressões, embora

seja evidente que a verdade deve se encontrar dentro de uma

das duas proposições, nenhum dos dois partidos foi capaz de

demonstrar qual é a verdadeira, porque todos os dois partem de

um princípio falso do qual só pode resultar falsidades e

absurdos.

146

Mas se vocês ficarem convencidos, como logo eu espero fazer-

lhes ficar, de que a matéria é ativa assim como a extensão,

todas as dificuldades sobre o vazio desaparecerão nesse

assunto. Com efeito, como as quantidades particulares e

limitadas que nós nomeamos corpos são somente modificações

diversas da extensão geral da matéria que a todas encerra e que

não podem aumentar ou diminuir, de igual modo, todos os

movimentos locais e particulares da matéria são somente

determinações diversas de sua ação geral, que os dirige para

um lado ou outro à ajuda de tal ou qual causa e de tal ou qual

maneira, sem que esses movimentos aumentem ou diminuam a

ação total.

Em todos os tratados que se tem feito sobre as leis

ordinárias do movimento, encontram-se diferentes graus de

movimento que um corpo perde ou adquire. Essas leis têm por

objeto a quantidade de ação dos corpos particulares uns sobre

os outros e não a ação da matéria em geral. Assim também as

quantidades particulares de matéria são medidas por outras

quantidades menores e não pela extensão do todo. Os

matemáticos calculam a quantidade e as proporções do

movimento logo que vêem os corpos agirem uns sobre os

outros, sem se embaraçarem com as razões físicas que eles

deixam para os filósofos explicarem. Esses aqui as explicariam

bem melhor se começassem por estudar os fatos e as

observações

147

dos matemáticos, como Newton tem muito bem observado.

Não há dentro da matéria atributo inseparável que não

tenha um número infinito de modificações que lhe sejam tão

próprias quanto a extensão. A ação e a solidez estão nesse

caso. Contudo é necessário que todos os atributos concorram à

produção dos modos particulares a cada um, porque eles só são

a mesma matéria considerada sob pontos de vista diferentes.

Assim, dizendo como tem dito uma multidão de filósofos, que se

não houvesse o vazio, não haveria lugar onde o corpo C

pudesse se colocar e nenhum espaço livre para o corpo B

empurrar o corpo C. Assim discorrendo, eu digo que não ter

espaço é apenas uma das ideias grosseiras do povo. É supor

que os pontos B e C, assim como todos ou a grande parte dos

pontos que os cerca, sãos realmente fixos e dentro de um

repouso absoluto. Mas um verdadeiro filósofo não faz

concessões aos erros da maioria. E se eu chegar a provar que a

ação é natural, essencial, intrínseca e necessária à matéria, ver-

se-á logo que essas objeções não têm qualquer força e que os

exemplos que se nos contrapõem de círculos formados por

bolas contínuas, de um peixe prestes a se mover na água, etc.,

não provam nada, visto que todas estas coisas supõem tanto um

repouso absoluto quanto a geração de movimento, o que

6

148

é precisamente questão em discussão aqui. Se ela puder ser

provada, não haverá argumento sólido para responder ao que se

usa para estabelecer o vazio.

Eu já fiz pressentir alguma coisa sobre o abuso de

palavras na filosofia. Nós temos uma prova particular disso em

alguns termos úteis inventados pelos matemáticos, mas mal

entendidos e pervertidos por outros e com frequência mal

aplicados pelos próprios matemáticos. Isso não pode deixar de

acontecer quando se toma noções abstratas por seres reais e

dos quais se faz a seguir a base da construção de hipóteses. É

assim que linhas, superfícies e pontos matemáticos têm sido

considerados como coisas realmente existentes, do que se tem

tirado uma infinidade de falsas conclusões. Dizer, por exemplo,

que a extensão é composta de pontos, é dizer que o

comprimento e a altura são formados por algo que não é

comprido, largo, alto ou por qualquer medida de quantidade.

É assim que a palavra 'infinito' tem causado grandes

confusões que fizeram nascer uma multidão de erros e

equívocos. Tem-se representado o número infinito como se

unidades pudessem se juntar a mais unidades num processo

sem fim e daí, por decorrência, resultou que existe realmente um

número infinito. É assim que se fez um tempo infinito, se fez o

pensamento de um homem infinito, imaginou-se

7

149

linhas assíntotas e várias outras progressões sem fim, que só

são infinitas relativamente às operações do nosso espírito, sem

ser nelas mesmas. Porque o que é realmente infinito, deverá

existir atualmente como tal em vez daquilo que só é

potencialmente infinito, que não existe positivamente.

Mas não há palavra que tenha sido mais mal aplicada e

que por consequência, tenha dado lugar a muitas disputas do

que a palavra 'espaço', que é apenas uma noção abstrata, como

se verá em seguida, ou que é apenas uma relação que um ser

tem com outros seres que estão a uma distância dele, sem levar

em conta as coisas que se acham entre eles, embora essas

coisas tenham uma existência real. Assim o lugar é ou a posição

relativa que um corpo tem com outros corpos que o rodeiam, ou

o lugar que esse corpo preenche com seu próprio volume, de

onde se concebe que os outros corpos estão excluídos. São só

puras abstrações, visto que a capacidade não difere em nada do

corpo contido. De igual modo, a distância é a medida entre dois

corpos quaisquer sem levar em conta as coisas das quais a

extensão é assim medida. Entretanto, como os matemáticos

tiveram a necessidade de presumir um espaço sem matéria, do

mesmo modo que eles presumiram uma duração sem seres,

pontos sem quantidades, etc., os filósofos, que não têm podido

sem isto exprimir a razão da geração do

150

movimento na matéria que eles representavam como inerte,

imaginaram um espaço real distinto da matéria que eles

consideraram como extenso, incorpóreo, imóvel, homogêneo,

indivisível e infinito.

Se a matéria é ela mesma essencialmente ativa, não se

tem necessidade de recorrer a esta invenção para lhe obter o

movimento e não é necessário procurar a geração do

movimento.

Se a matéria é infinita, ela não pode ter partes separadas

que se movem independentemente umas das outras em linhas

retas ou em linhas curvas, não obstante essas modificações que

nós distinguimos pelo nome de corpos particulares e divisíveis.

A matéria deve igualmente ser homogênea, se ela possui

ação por ela mesma, como também extensão e solidez, sem ser

dividida em partes.

Se a matéria é infinita, o universo não deve ter movimento

local, pois fora de si ele não pode ter pontos fixos nos quais

possa ser sucessivamente aplicado, nem algum lugar por onde

possa passar.

Bem sei que combato uma opinião aceita universalmente

e que mesmo em referência ao que eu digo sobre o espaço,

tenho contra mim o maior homem do universo. Mas ele não

perde nada da sua glória, mesmo que se

151

tenha enganado neste caso, visto que as demonstrações e as

descobertas que o seu livro contém, não ficarão menos

verdadeiras. Por mim, não posso admitir um espaço absoluto

distinto da matéria que o liga ou o coloca, ou que eu então

admita um tempo absoluto distinto das coisas das quais se

considera a duração. Entretanto é de se pensar que não

somente o senhor Newton acreditou nestas coisas, mas ainda as

colocou em um mesmo nível. ―O tempo e os espaços, diz ele,

são os seus próprios lugares, assim como de todos os seres.

Todos os seres estão colocados dentro do tempo, quanto à

ordem de sucessão e dentro do espaço quanto à ordem da

situação, É da essência deles serem lugares e é absurdo dizer

que os lugares primitivos se movem. Assim esses lugares são

absolutos e as simples transferências desses lugares são

movimentos absolutos‖ (veja seus princípios matemáticos,

página 7.)

Estou persuadido que essas palavras são suscetíveis de

serem interpretadas de uma maneira favorável à minha opinião,

mas prefiro de lhes relatar no sentido que elas têm usualmente,

visto sobre tudo que como eu já disse acima, isto não deverá

manchar em nada o trabalho desse grande homem.

A respeito do que se alega em favor da inatividade da

matéria como também da existência do vazio, dizendo que um

corpo é ou mais pesado ou mais

152

leve que outro de igual volume, é necessário supor que o peso

ou a leveza não são puras relações de comparações de algumas

situações ou de algumas pressões exteriores. É preciso que se

os olhe como seres reais, como qualidades absolutas e

inerentes, sentimento que é presentemente rejeitado por todo

mundo e que é contrário às noções que se tem na mecânica.

Não será difícil provar, mesmo para pessoas de uma capacidade

ordinária, que não se pode ter peso ou leveza num suposto caos

e que essas qualidades dependem unicamente da fábrica ou do

mecanismo do universo. Diga-se, são consequências

necessárias do mundo atualmente existente, efeitos necessários

de seu arranjo presente, mas não atributos da matéria, visto que

o mesmo corpo torna-se alternativamente pesado ou leve, de

acordo com sua posição entre outros corpos e ademais, como é

bem conhecido, que muitos seres não se acham às vezes no

estado de pesados e nem no estado de leveza. Querer imaginar

que alguma parte da matéria tenha por ela mesma o peso e a

leveza porque se vê os seus efeitos na fábrica do universo, ou

querer deduzir seus efeitos das leis comuns da gravitação, é não

somente supor que a matéria é igualmente afetada em todo

lugar, mas ainda é supor que as rodas, as molas

153

e as correntes de um relógio possam, estando separadas,

produzir os mesmo movimentos que elas produzem quando

juntas.

Entretanto, é segundo essas suposições evidentemente

falsas que os filósofos, nos sistemas que imaginaram sobre a

formação do universo, inventaram a fábula dos quatro elementos

que vieram se colocar por si mesmos segundo seus diferentes

graus de peso e leveza. Segundo eles a terra se colocou no

lugar mais baixo ou no centro, as águas vieram em seguida, o ar

e o fogo ocuparam a região superior. Todos os povos e todas as

seitas estiveram fixados supersticiosamente nessas ideias de

caos primitivo, noção tão informe quanto complicada como o

próprio nome parece enunciar. E em tudo se fundamenta em

suposições não somente arbitrárias, mas inteiramente

quiméricas e falsas. Tais são as ideias grosseiras que se fez do

número e da incomponibilidade dos quatro elementos, tirados

dos corpos mais compostos do universo. Tal é a leveza ou o

peso das moléculas da matéria, tal é a separação do se chama

germes dos seres, separação que, dizem, não poderia ser feita

sem esta leveza e este peso e que, segundo essas condições,

não se poderia executar sem o socorro de um Arquiteto todo

poderoso que nem sempre pode o que

154

se fazia necessário, ou a quem se tem fornecido instrumentos

tão ruins e mal inventados que eles provam a fraqueza de

julgamento daqueles que formaram o mundo segundo seu

próprio modelo.

Em uma palavra: É segundo uma suposição tão precária que se

decidiu que ele fez um tempo onde a matéria esteve em

desordem, sem nos dizer quanto esse tempo durou e nem a

causa desta confusão. Isto pode nos provar de resto quão pouco

se deve contar com o consentimento universal, ou quanto é

necessário se defender dos erros epidêmicos que se espalham

sob o nome imponente de consentimento universal.

Mas não nos envolvamos nessas digressões, embora elas

se apresentem muito naturais. Concorda-se que a maior parte

dos corpos atualmente está em movimento e se diz que isso não

prova que eles estiveram sempre assim e que não há outros que

estejam em repouso absoluto. Concordo que, qualquer que seja

a verdade, semelhante consequência não se segue

necessariamente. Entretanto, antes de continuar, não será fora

de propósito ver até onde se pode estender este movimento

atual de que há geral concordância. Embora a matéria do

universo seja igual em todos os lugares, entretanto, em relação

a essas diferentes modificações, costuma-se concebê-la como

dividida em uma infinidade de sistemas particulares ou de

turbilhões de matéria. Esses sistemas ou turbilhões se

subdividem ainda em outros

155

maiores ou menores que dependem uns dos outros, como cada

um deles depende em tudo do seu centro, tecidos, formas e da

sua coerência. Nosso sol, por exemplo, é o centro de um desses

grandes sistemas que encerram grande número de outros

menores em seu raio de ação, do mesmo modo que todos os

planetas que se movem ao redor dele. Esses sistemas são

subdivididos em outros menores, mas dependentes como os

satélites de Júpiter dependem dele, ou como a lua depende da

terra. O nosso globo é subdividido em atmosfera, terra, água,

etc. Estes aqui se subdividem ainda em homens, quadrúpedes,

pássaros, plantas, árvores, peixes, metais, vermes, insetos,

pedras, metais e numa infinidade de outros seres diferentes.

Como todos esses seres são ligados ou dependem uns dos

outros, do mesmo modo, para me servir de uma linguagem

ordinária, a matéria deles é refundida uma na outra. Com efeito,

não somente, a terra, o ar, a água e o fogo estão intimamente

unidos e combinados, mas por uma contínua mudança eles são

transformados uns nos outros. A terra torna-se água, a água

transforma-se em ar, o ar se converte em matéria etérea e em

seguida elas servem para formar combinações inúmeras e

infinitas. Os animais que nós destruímos contribuem à nossa

conservação. Até mesmo o que nos destrói faz-nos contribuir à

conservação

156

dos outros seres. Nós tornamo-nos erva, plantas, água, ar ou

outras substâncias que servem para produzir outros homens,

outros animais, os quais a seu turno, se transformam em pedra,

madeira, metais, minerais ou em novos animais, ou ainda,

muitos se tornam partes desses seres ou de muitos outros, visto

que os animais e os vegetais se consomem e se devoram uns

aos outros. Tanto isso é verdade que cada ser vive pela

destruição de outro.

Todas as partes do universo estão continuamente num

movimento que produz e destrói. Os sistemas maiores têm seus

movimentos contínuos de igual modo que as menores

moléculas. Os globos colocados nos centros dos turbilhões

giram em seus próprios eixos e cada molécula do turbilhão

gravita em torno do seu centro. Qualquer que seja a ideia

lisonjeira que nós tenhamos de nós mesmos, nossos corpos não

diferem em nada dos corpos dos outros seres. Como eles,

nossos corpos crescem ou diminuem pela nutrição e secreções,

pelo crescimento, transpiração e por muitos outros meios, pelos

quais nós incorporamos à nossa substância parte de outros

corpos dos quais recebemos qualquer coisa em troca. Resulta

disso que nós não somos hoje o que éramos ontem e que nós

não seremos amanhã o que nos somos hoje. Enquanto

estivermos vivos, nós estaremos

157

num fluxo e refluxo perpétuo e quando nós estivermos no estado

de dissolução total de nosso sistema, o qual chega pela nossa

morte, nós nos tornaremos parte de uma infinidade de outros

seres que se apropriarão de nossos despojos. Nossos

cadáveres se misturarão em parte com a poeira e as águas da

terra, uma porção se evaporará no ar, onde flutuará ao vento em

diferentes lugares. Elas se misturarão e se incorporarão a uma

infinidade de seres.

Nenhuma parte da matéria está ligada a uma figura ou

forma. Todas mudam perpetuamente. É de se dizer que,

estando num movimento contínuo, elas são divididas, usadas,

trituradas e dissolvidas por outras substâncias que tomam sua

forma e trocam assim sem cessar de forma. A terra, o ar, o fogo

e a água, o ferro, a madeira, o mármore, as plantas e os animais

são rarefeitos ou condensados, liquefeitos, congelados,

dissolvidos ou coagulados, são em uma palavra mudados por

uma infinidade de movimentos uns nos outros. Toda a superfície

da terra nos mostra sempre essas mudanças. Não há ser que

permaneça o mesmo durante uma hora seguida. Ora, todas

essas mudanças são apenas mudanças de diferentes espécies,

são indubitavelmente os efeitos de uma ação universal. Mas as

mudanças das partes não produzem nenhuma mudança no

universo porque é evidente que as alterações, as sucessões, as

revoluções e as transmutações incessantes da

158

matéria não podem aumentar ou diminuir a soma deste universo,

tanto quanto o alfabeto não perde uma letra malgrado as

combinações infinitas que se fazem numa língua. Com efeito,

tão logo um ser deixe uma forma, ele assume imediatamente

outra. Ele sai, por assim dizer, de cena dentro de um

determinado traje para reaparecer logo em seguida sob um novo

disfarce o que produz na natureza uma juventude e um vigor

perpétuo que não é jamais seguido de declínio e de decrepitude,

como têm imaginado tolamente alguns homens que não

consultam a experiência e a razão. O universo, assim como

todas as suas partes, permanece sempre o mesmo.

Os grandes sistemas do universo estão subdivididos em

sistemas menores de matéria. Os indivíduos que compõem

esses sistemas menores perecem na verdade, sem, no entanto,

serem aniquilados. Conservam por algum tempo sua forma em

razão da força ou da fraqueza de suas disposições, estrutura ou

constituições. É o que chamamos de período ou tempo de

duração de determinado ser. Entretanto, quando certa

constituição é destruída antes de ter atingido seu período

normal, por movimentos mais possantes partidos de seres que o

rodeiam, nós damos a essa mudança o nome de acidente ou de

violência, como quando um jovem homem é assassinado e

então dizemos que ele foi morto por

159

acidente, que pereceu por uma morte violenta ou que morreu

antes do tempo.

As espécies se perpetuam pela propagação, não obstante

o declínio e a destruição dos indivíduos. A morte do nosso corpo

é apenas a matéria que vai se revestir de qualquer outra forma

nova, semelhante às impressões da cera que podem variar, mas

com ela permanecendo sempre a mesma. E dentro da realidade

nossa morte é a mesma coisa que nosso o nascimento. Com

efeito, morrer é apenas cessar de ser o que nós éramos

anteriormente e nascer é começar a ser o que nós não éramos

até agora.

Antes de encerrar este assunto, devo observar que,

considerando as inúmeras gerações que se sucedem no nosso

globo e que são, por suas mortes, incorporadas à massa

comum, dispersadas e combinadas com outras partes, e, em se

juntando a esse fluxo de matéria que a transpiração faz

incessantemente sair dos corpos dos homens enquanto eles

vivem, assim como o alimento que eles comem diariamente, a

inspiração do ar e as adições contínuas de matéria que

aumentam o seu volume; considerando, digo eu, essas coisas,

parece provável que não há sobre a superfície da terra inteira

uma única molécula de matéria que não tenha feito parte do

homem. Esse raciocínio aplicável à nossa espécie é igualmente

verdadeiro relativamente a toda ordem de animais,

160

vegetais e de seres, visto que todos foram dissolvidos e

transformados uns nos outros pelas mudanças incessantes, de

sorte que nada é mais correto do que dizer que todo ser material

é todas as coisas e que todas as coisas se reduzem a uma só.

Os efeitos sensíveis que vemos nos forçam então a

reconhecer um movimento contínuo nos seres. Concorda-se que

as partículas de ar, água, fogo, de matéria etérea e de vapores,

estão em ação perpétua. Reconhece-se ainda o movimento dos

corpúsculos imperceptíveis que emanam de todos os corpos

grandes e visíveis, que por suas massas, figuras, número e

movimentos agem sobre os nossos sentidos e produzem em nós

as sensações e as ideias que temos das cores, odores, sabores

e do quente, frio, etc. Mas ao mesmo tempo, apela-se aos

nossos sentidos para pretender que existem corpos em repouso

absoluto. Cita-se, por exemplo, as rochas, o ferro, o ouro, o

chumbo, as madeiras de construção e outros corpos que não

mudam de lugar sem o concurso de uma força externa. Eu

respondo que é a razão e não os sentidos, que deve guiar o

nosso julgamento nestes assuntos. Os nossos sentidos não

podem nos enganar desde que apelemos à razão em nosso

socorro. Quando os sentidos estiverem unidos à razão, eu não

colocarei

161

dificuldades à decisão da questão.

É preciso então que se distinga sempre entre a energia

interna ou a ação essencial de toda a matéria, sem a qual ela

não pode ser suscetível de qualquer alteração ou divisão e os

movimentos locais exteriores ou as mudanças de lugar que são

apenas mudanças particulares da ação essencial que é o

sujeito. Os movimentos particulares, sendo determinados por

outros movimentos mais possantes que lhes fazem diretos ou

circulares, rápidos ou lentos, ou continuados ou interrompidos,

de acordo com o movimento dos outros corpos que lhes

encontram, que lhes seguem ou que lhes cercam. Não há

nenhuma parte da matéria que não tenha uma energia interna

que lhe seja própria. Mas ela é assim determinada pelas partes

que a avizinham conforme a sua determinação particular seja

mais forte ou mais fraca, cedível ou resistente. Essas partes por

seu turno continuam a ser variadas de outra maneira pela mais

próxima. É desta maneira que todos os seres continuam a

mudar sem cessar por um movimento que julgo perpétuo. Mas

como há concordância geral de que todos os movimentos locais

que se possam imaginar são acidentes que aumentam, alteram,

diminuem e aniquilam, sem que o sujeito que eles modificam ou

no qual existem se destrua, esse sujeito não pode ser

considerado imaginário, uma noção puramente abstrata. Ele

deve ser qualquer coisa de real e de positivo.

162

A extensão não pode ser esse sujeito porque as ideias de

variedade, de alteração e de movimento não decorrem

necessariamente da ideia de extensão. Assim, como disse ainda

a pouco, é necessário que seja a ação, visto que todos esses

movimentos são apenas modificações diversas da ação, do

mesmo modo que todos os corpos particulares ou quantidades

são apenas modificações diversas da extensão. Eu falarei

oportunamente da solidez ou da impenetrabilidade e farei ver a

maneira que esses três atributos essenciais ou essas três

propriedades são inseparáveis e cooperam em conjunto.

Mas não nos esqueçamos de que temos apelado aos

nossos sentidos. O vulgo crê que as estrelas não são maiores

do que uma lâmpada normal, que o sol e a lua têm somente, em

média, um pé de diâmetro. É a nossa razão que nos induziu a

calcular a distância que existe entre os nossos olhos e esses

corpos e medir a sua massa real a tal distância. Não é ainda a

razão que nos ensina a distinguir as estrelas fixas dos planetas e

que nos induz a conceber os movimentos destes que são muito

diferentes dos que os sentidos nos mostram? Eu não falo de um

bastão reto que parece curvo dentro da água e nem das cores

que se vê na garganta de um pombo. Eu não falo também do

calor e do frio, do

163

sabor e dos odores que não existem nas coisas mesmas que

nós distinguimos pelos nomes que exprimem as sensações que

se excitam em nós. Eu me atenho ao assunto que trato. O

movimento local não é por ele mesmo frequentemente lento, que

os nossos sentidos não podem apercebê-lo? Nós não vemos um

corpo passar sucessivamente de um lugar para outro embora ele

não cesse de se mover e nós, no final, ficamos convencidos

pelos efeitos indubitáveis e pelos intervalos visíveis que ele

deixa. Não temos nós os exemplos na agulha de um relógio e na

sombra de um quadrante solar? Acontece o mesmo com os

movimentos que são muito rápidos, nos quais nós não vemos

distintamente as sucessões, como na passagem de uma bala de

fuzil. Etc.

Se nós julgarmos o corpo do homem ou de qualquer outro

animal pela sua superfície exterior, ele parecerá não ter mais

movimento local interno que o chumbo, o ouro ou uma pedra.

Nós não induziríamos um juízo mais sensato de uma árvore ou

de uma planta. Entretanto, se todas as partes da árvore não

estivessem em movimento, ela não poderia crescer e nem

definhar. Os conhecimentos que se têm de anatomia juntos com

a experiência diária não permitem duvidar que todas as partes

dos animais não estejam num movimento contínuo, assim como

as das plantas.

164

Elas crescem, diminuem, transpiram, se dissolvem, fenecem, se

corrompem, engordam ou emagrecem, se aquecem ou se

esfriam, mesmo quando o homem ou o animal está em repouso

ou dormindo ou mesmo que a árvore não se desloque do seu

lugar. Ninguém ignora hoje em dia a circulação do sangue e da

seiva. O ferro, a pedra, o ouro e o chumbo não são menos

desprovidos de movimento interno que os corpos que nós

nomeamos de fluidos. Sem isso eles não sofreriam as mudanças

que o ar, o fogo e a água lhes fazem suportar. Mas, embora

esses corpos tenham saídos de um estado precedente para

tomar as formas que nós os vemos ter atualmente, embora as

mudanças que eles suportam em sua figura façam ver

claramente que suas partes estão em um movimento contínuo,

as causas que lhes envolvem não lhes fazem trocar de forma ou

de situação de maneira bem marcada para se mostrar aos

nossos sentidos. Esta é a causa porque inúmeras pessoas

crêem que esses corpos não têm nenhum movimento e

nenhuma determinação particular.

No entanto esses corpos, mesmo ao permanecerem num

mesmo lugar, experimentam uma ação real. Os esforços e a

resistência de uma de suas partes, estando iguais durante certo

tempo, aos movimentos determinantes dos corpos vizinhos que

agem sobre eles e os impedem de

165

passar certos limites. Isso é fácil de compreender se acaso se

lembrar do que eu já disse das determinações sucessivas e

inúmeras do movimento, do qual este aqui é uma espécie que se

denomina repouso, para distingui-lo daquele onde ele está em

movimento local e visível.

Um corpo que desce ou tomba por seu próprio peso ou

por uma impulsão mais forte que lhe foi comunicada por outros

corpos, tendo mais força que os corpos que lhe cedem no trajeto

percorrido, não está menos em ação quando estiver parado. Ele

ficará apenas impedido de avançar mais adiante pela resistência

mais forte que lhe opõem a terra. Ele não pode retornar para

cima por causa da pressão igual dos corpos que estão atrás

dele. Um navio a vela não está sem ação quando a força do

vento que lhe faz ir em direção à embocadura de um rio é igual à

força da maré que torna a subir ou que o puxa para a nascente

do rio. Com efeito, se uma dessas forças se sobressai sobre a

outra, o navio se deslocará, mas, durante todo esse tempo o

navio estará apenas privado de uma espécie de movimento, mas

não de todo esforço ou ação. O ferro, o chumbo ou o ouro não

estão mais privados de ação. As mudanças que eles suportam,

sejam por seus movimentos internos, seja da parte dos

movimentos dos corpos vizinhos, cujo efeito é de usá-los,

dissolvê-los,

166

segurá-los, diminuí-los, alterar suas formas, etc., devem nos

convencer dessa verdade.

Assim, visto que o repouso é somente certa determinação

do movimento dos corpos, uma ação real pela qual eles resistem

a dois movimentos iguais, é evidente que o que se denomina de

repouso, é somente um estado relativo, que se tem em relação a

outros corpos que mudam sensivelmente de lugar.

Mas o povo, tomando o movimento local por um ser real

como faz em todas as outras relações, tem olhado o repouso

como uma privação ou acreditado que o movimento é ativo e o

repouso passivo, relativamente ao corpo que lhe deu sua última

determinação, tal como ele é ativo relativamente ao corpo que

lhe determina em seguida. É removendo dessas palavras a

significação relativa para lhes atribuir uma absoluta, que se deu

lugar à maior parte dos erros e das discussões levantados sobre

este assunto.

No entanto os mais hábeis geômetras e os grandes

filósofos, embora tenham suposto o movimento acidental ou

estranho e o repouso essencial à matéria, não deixaram de

reconhecer que todas as suas partes estão atualmente em

movimento. Foram forçados a isto pelo poder irresistível da

experiência e da razão. Eles convieram que os corpos

167

encerrados no seio da terra suportam movimentos e mudanças

contínuas como os que nós vemos à sua superfície. É o que nos

provam os bancos ou leitos de pedras que se formam, os metais

e os minerais que se produzem diariamente e todos os

fenômenos do mundo subterrâneo. Reconhecem que é pelo

movimento que se explica tudo o que acontece na natureza. Que

é pela ação recíproca dos corpos, de uns sobre os outros, que

eles sempre seguem as leis da mecânica. É assim que nos dão

razão de todas as variedades que a natureza nos apresenta. É

assim que nos explicam as qualidades sensíveis e primitivas, as

formas, as combinações, as modificações e as mudanças da

matéria. Dessa maneira são feitas as ideias mais claras do

movimento local, considerando os pontos de onde um corpo

parte e em direção aos quais ele tende, não como dentro de um

repouso absoluto, mas somente como dentro de um estado de

repouso relativo ao movimento desses mesmos corpos. Embora

o grande Newton seja considerado um partidário de um espaço

extenso, incorpóreo, ele não deixa de dizer que pode ser que

não haja um só corpo em repouso absoluto, que pode ser que

não haja um centro corporal imóvel que se possa encontrar na

natureza. Eis como se exprime em determinado lugar. ―O vulgo

atribui a resistência aos corpos em repouso e a

168

impulsão aos corpos que se movem. Mas o movimento e o

repouso, da maneira como se os concebe usualmente, são

apenas relativamente distintos um do outro e os seres que

vulgarmente se crê em repouso, não estão de fato assim‖. (veja

Princípios matemáticos, página 7). É assim que fala este homem

tão justamente admirado, que penetrou com seus olhos a

natureza, mais longe do que qualquer outro ou dentro do estado

atual da matéria. Com efeito, toda a física está compreendida

sob o título 'Do Movimento dos Corpos' que ele deu ao primeiro

livro dos seus princípios.

Creio poder ousadamente concluir de tudo o que precede

que a ação é da essência da matéria, pois é esta ação que é

realmente o sujeito de todas as modificações que são

designadas pelos nomes de movimentos locais, mudanças,

diferenças ou de variedade. E acima de tudo, porque o repouso

absoluto, sobre o qual se fundamentou a crença na inércia ou na

atividade da matéria, é uma pura quimera.

Este erro vulgar que fez supor um repouso absoluto foi

ocasionado pelas aparências que apresentam os corpos

pesados, duros e com massa. Vendo que esses corpos não

mudavam de direção, mas que era necessário para lhes fazer

mudar, determinações ou forças muito grandes, das quais os

efeitos batiam forte nos sentidos, concluiu-se que havia um

repouso absoluto e

169

que todos os corpos permaneceriam em estado de repouso sem

um motor externo, que se concebeu como não material, visto

que todos os corpos eram matéria e que o que era natural às

partes devia ser natural ao todo. Pelo menos os filósofos tiraram

essas induções da noção de repouso de que estavam imbuídos

desde a infância e em consultando apenas os seus sentidos.

Com efeito, ninguém nasce teólogo, filósofo ou político. Assim,

inicialmente, todo mundo está no nível do vulgo e recebe as

mesmas impressões ou os mesmos preconceitos que ele. E

ainda que um homem chegue a se desembaraçar da maior parte

dos erros, entretanto, se dá entrada em seu espírito a algum

princípio sem o devido exame, qualquer luz que tenha daí em

diante, acabará por cair em inúmeros absurdos que decorrem

desse princípio não examinado.

Porque então não há repouso absoluto nos exemplos que

se tem apresentado e por que, ao contrário, todas as partes da

matéria estão em um movimento absoluto, não se deve se

colocar ao lado desses filósofos que são os mais supersticiosos

e menos perspicazes. Não se deve partir desses raciocínios

oriundos de um erro vulgar, mas vendo que todas as partes da

matéria estão sempre em movimento. Deve-se ainda concluir

que o movimento lhe é tão essencial quanto, pela mesma razão

se crê que a extensão

170

é de sua essência, pois que toda parte de matéria é extensa.

Esses dois casos são os mesmos e a razão o provará aos que

renunciarem aos preconceitos

É por isso que me omiti de falar dos movimentos relativos

dos corpos que se supõem em repouso. Só os indicarei aqui a

fim de lembrar que ao mesmo tempo esses movimentos não

cessam de ser absolutos. Todos os seres que se encontram no

nosso globo terrestre participam do seu movimento contínuo. E o

mesmo acontece com os seres que estão em outros planetas,

visto que o movimento do todo é apenas a soma total do

movimento das partes. Isso é evidente por si mesmo e se

demonstra ainda pela força proporcional que é necessária, seja

para imprimir uma nova direção ou determinação a um corpo,

seja para parar a direção já recebida por esse corpo, porque

uma não pode ser menor que a outra. Embora todas as partes

imagináveis de uma bola em movimento estejam em repouso,

umas relativamente às outras ou relativamente ao lugar que elas

ocupam dentro da bola, entretanto ninguém dirá que todas as

partes não estejam realmente em movimento, como fazendo

parte da bola e relativamente aos corpos que estão fora dela. É

assim que um passageiro participa do movimento de um navio

em movimento. Embora esse passageiro pareça estar em

repouso relativamente

171

ao lugar onde se acha colocado ou às outras partes do navio,

que, não obstante o movimento do todo, permanecem à mesma

distância que ele e nas mesmas posições relativas a ele.

Disse ainda apenas uma palavra de passagem sobre a

força centrípeta pela qual todos os corpos da terra tendem em

direção ao seu centro, do mesmo modo que todos os corpos

tendem ao centro dos seus movimentos. Também não tenho dito

da força centrífuga pela qual os corpos se esforçam por se

afastarem do centro numa linha reta, se eles não estiverem de

outra maneira determinados por uma causa mais forte. É assim

que uma pedra rodeada por uma funda é retida em sua órbita

pelo couro da atiradeira. enquanto os cordões, estando tensos

pelo movimento da pedra, são contraídos ou apertados do lado

desta pedra pelos esforços que ela faz para escapar em linha

reta a cada ponto do círculo que ela descreve. Os cordões são

igualmente estendidos e contraídos contra a mão do homem,

donde se segue que o centro se aproxima tanto da pedra quanto

a pedra se aproxima do centro, o que por muitas razões não

chega nunca. Efeitos bem evidentes dependem dessas forças à

medida que elas estão perto de serem iguais ou à proporção que

uma é mais forte que a outra. É porque a força centrípeta sendo

muito maior que a força centrífuga das partes da terra engloba

nelas

172

a atmosfera, vê-se a razão que impede a terra de perder alguma

de suas matérias e porque ela mantém sempre o mesmo volume

ou tem sempre as mesmas dimensões, visto que a força

centrípeta da gravidade que retém os diferentes corpos em suas

órbitas, ser bem mais forte que a força centrífuga dos

movimentos pela qual eles procuram se evadir seguindo uma

tangente.

Qualquer natureza que seja as causas dessas forças, elas

fornecem as provas incontestáveis do movimento contínuo que

eu sustento existir em todos os seres. Mas não direi mais nada

do que já disse acima por medo de me engajar numa disputa

sobre a natureza da gravidade e ser obrigado a pesquisar se o

peso dos corpos é sempre proporcional à quantidade de matéria

que eles contêm. Isto é, se há mais matéria e mais peso em um

pé cúbico de chumbo que em um pé cúbico de cortiça,

sentimento que sei ser sustentado por filósofos muito hábeis, ou

se a mesma quantidade de matéria está contida em iguais

dimensões de mercúrio, ouro, prata, ferro, chumbo, terra, água e

de ar, embora seus pesos específicos sejam diferentes. Isto vem

em parte das pressões exteriores e em parte das estruturas

internas ou das modificações que dão às suas matérias comuns,

as formas diversas que constituem suas espécies e que as

distinguem de seus pesos, como elas

173

são distinguidas por suas figuras, cores, gostos, odores ou suas

outras qualidades devidas às suas disposições particulares, à

ação de outros corpos ou à nossa própria imaginação e

sentidos.

Tal é o meu sentimento, sobre qualquer razão que se

funde, acrescido ao fato que se a gravidade é um atributo

essencial da matéria e não um modo particular, as mesmas

coisas serão igualmente pesadas em todos os lugares e em

todas as circunstâncias, do mesmo modo que elas são

igualmente sólidas e extensas em qualquer parte. Elas não

variarão na aceleração e no retardamento de suas quedas a

distâncias variáveis do centro.

Assim segundo eu, a gravidade não prova a existência do

vácuo que é somente um dos numerosos modos da ação, de

qualquer forma que esta determinação aconteça, a que não

examinaremos quanto à sua presença visto que ninguém lhe

nega a existência. Também não prova que as quantidades e as

proporções do movimento são devidas à gravidade ou à ação

dos corpos particulares a esse respeito e que se deve calculá-

los após os fatos e as observações, qualquer que seja a

natureza de suas causas físicas. Pela mesma razão, não falarei

da atração dos planetas, de suas gravidades, de seus modos de

agir uns sobre os outros, visto que é certo pelas influências do

sol, pelo fluxo e refluxo das marés

174

ocasionados pela lua e por muitas outras provas que os planetas

se afetam muito sensivelmente em razão das suas massas,

figuras, distâncias e de suas posições.

As opiniões daqueles que estão persuadidos que o

movimento é acidental à matéria, que ela tem partes atualmente

independentes e separadas e que existe o vazio ou um espaço

incorporal, não são os únicos erros que a noção de um repouso

absoluto tem originado. Com efeito, filósofos menos

supersticiosos e que têm mais atentamente considerado a

natureza das coisas ensinaram que toda a matéria era animada

e que as moléculas de ar, água, madeira, ferro e pedra,

usufruíam da vida como o homem e os animais ou como a

massa inteira. Foram naturalmente conduzidos a esta ideia

porque lhes foram ensinado que a matéria era essencialmente

inerte, preconceito de que eles não estavam desembaraçados.

Entretanto, como eles viam com a ajuda da experiência que a

matéria, assim como todas as suas partes, estava num

movimento contínuo e como acreditavam igualmente que a vida

era uma coisa distinta do corpo vivo e organizado, concluíram

que a causa desse movimento era algum ser intimamente unido

à matéria, de qualquer maneira ela fosse modificada, e da qual

era inseparável. Esses filósofos vivificantes se

175

dividiram em diferentes classes, porque foi necessário um

grande número de expedientes para dar ao erro as aparências

da verdade. Alguns, em meio aos quais devemos colocar os

estóicos, olhavam esta vida como a alma do universo, co-

extensa com a matéria, disseminada no todo e penetrando em

todas as suas partes, como essencialmente corporal embora

infinitamente mais sutil que os outros corpos, que foram

supostos por demais grosseiros em relação a ela.

Já a alma universal dos platônicos era imaterial ou

somente puro espírito. Outros, entre os quais se encontram

Estratão de Lâmpsaco e os modernos hilozoístas, ensinaram

que as moléculas da matéria tinham vida e consequentemente

pensamento até certo grau, ou uma percepção direta sem

nenhuma reflexão. A essas moléculas, Heráclito entre os antigos

e Espinosa entre os modernos, juntaram a inteligência ou atos

refletidos, sem jamais se incomodar de levantar as dificuldades

que se apresentavam contra um sistema tão pouco fundado. E

sem mesmo de se dar ao trabalho de fazer ver como, mesmo

em harmonizando esta consciência à matéria, as diferentes

moléculas que raciocinam podiam conciliar-se para formar um

mesmo corpo ou sistema de seres, ou se separar e se juntar tão

regularmente em certas ocasiões sem terem de disputar entre

elas sobre os melhores e os piores lugares que elas

176

deviam ocupar ou sobre a companhia que se associasse com

elas. Eles não nos disseram porque o homem, embora composto

de partes dotadas de sentimento e inteligência, encontra

portando em si mesmo esta faculdade que somente exerce seu

poder em um único lugar.

A ideia da vida plástica adotada por outros filósofos não é

menos romanesca. Segundo o doutor Cudworth, que a fez

reviver, ela não é material. É uma espécie de espírito de ordem

inferior, desprovido de sentimento e de pensamento e que,

entretanto, é dotado de uma energia que lhe faz realizar as

funções da vida. Esses partidários das formas plásticas parecem

somente diferir dos hilozoístas pelas palavras, se bem que

sustentem sentimentos muito opostos, que são sem dúvida por

temor das consequências absurdas ou odiosas que alguém

poderia tirar de suas opiniões. Alguns eles como os jansenistas

e os calvinistas, que, embora certamente da mesma opinião

sobre o dogma da predestinação (não obstante suas sutis

diferenças) não deixam de se censurem reciprocamente.

Mas todas essas hipóteses são visivelmente artifícios ou

prestidigitações de que eles se servem para explicar o

movimento atual da matéria inerte, para evitar fazer a Divindade

intervir a cada instante e para não fazê-la a autora indistinta de

todas as ações,

177

submetendo-a a uma necessidade absoluta e inevitável.

Eis o que eu tinha a dizer daqueles que recorreram a um

motor externo para mover a matéria. Quanto àqueles que a

consideraram como inerte e desprovida de ação por sua

natureza, mas não assinalaram a causa de seu movimento,

como fizeram Anaxímenes e alguns outros antigos filósofos e

aqueles que, como Espinosa entre os modernos, não disseram a

causa do pensamento e nem do movimento da matéria, sua

opinião é tão pouco razoável que é inútil expô-la e ela foi sempre

objeto de triunfo para os estóicos, espiritualistas e os partidários

das formas plásticas.

Mas o erro mais universal que se produziu pela falsa

suposição da inércia da matéria é aquele que quer persuadir que

existe um espaço infinito, extenso e, entretanto, incorporal.

Como se fundou três grandes sistemas baseados neste espaço

substancial que tiveram por defensores homens muito célebres e

de reconhecido mérito, vou expor a história desta opinião, como

fiz com as das outras, embora eu pudesse me dispensar,

sobretudo após ter provado que a matéria é essencialmente

ativa e que seu movimento geral é o sujeito imediato de todas as

determinações moventes, do mesmo modo que a extensão é o

sujeito imediato de todas as formas e quantidades. Com

178

efeito, foi ainda para explicar a produção do movimento na

matéria inerte, que se imaginou principalmente este espaço

como o lugar da sua ação. Mas a matéria, não sendo ativa e não

tendo necessidade que o movimento lhe seja continuamente

transmitido por um agente exterior, pode-se banir o espaço da

filosofia como um ser inútil e quimérico. Todo mundo concorda

que a extensão é infinita visto que ela só pode ser limitada pela

extensão. As demonstrações desse princípio são tão conhecidas

universalmente e adotadas para que eu tenha necessidade de

repeti-las. A matéria não é menos infinita quando se a concebe

como uma substância extensa porque não se podem imaginar

limites a que não se possa acrescentar ainda extensão ao

infinito. Assim, se ela não é atualmente infinita, sua qualidade de

ser finita deve vir de outra causa que não seja da sua extensão.

Aqueles que, de acordo com princípios filosóficos,

acreditaram que a matéria era finita imaginaram que ela era

inativa, divisível em partes separadas e independentes umas

das outras, entre as quais existiam interstícios. Eles pensaram

que essas partes eram pesadas ou leves por elas mesmas e que

tinham figuras diversas e graus variados de movimentos quando

eram forçadas a sair do estado natural de repouso. Isso

179

os levou necessariamente a supor extensões infinitas, ao

mesmo tempo em que admitiam outra extensão infinita. Nesse

caso eles não puderam se abster de fazer essas extensões

diferentes em outros aspectos: uma como imóvel, penetrável,

indivisível, invariável, homogênea, incorpórea e encerrando tudo

e a outra como móvel, impenetrável, divisível, variável,

heterogênea, corpórea e contida. Uma designa o espaço infinito

e a outra os corpos particulares.

Mas toda esta distinção é fundada na suposição da coisa

em questão e na significação equívoca de palavras como 'lugar',

'tudo', 'partes', 'partículas', 'divisibilidade', etc. Assim, após ter

considerado como certo que a matéria fosse finita e dividida em

partes, que ela tinha necessidade de receber o movimento de

fora e que agisse em lugares vazios, esses filósofos fizeram este

círculo dentro de outro círculo ou imaginaram uma extensão que

penetra em outra extensão, como se os modos pudessem ser

penetrados pelo seu sujeito.

Mas todas essas suposições não sendo, como já tenho

dito, mais que consequências da suposição geral de que matéria

era desprovida de ação e tendo ao contrário provado que o

movimento lhe é essencial, não há razão para não se acreditar

que a matéria seja infinita e que, como o nada não tem

propriedades, a extensão que todo o mundo concorda em

180

reconhecer como infinita convém a esse sujeito que é infinito

nele mesmo e que é modificado ao infinito pelo seu movimento,

sua extensão e seus atributos inseparáveis.

Eu poderia parar por aqui, mas para colocar o assunto em

toda a sua extensão e fora de toda disputa, vou mostrar que

tudo aquilo que se atribui ao espaço e aos corpos como suas

diferenças essenciais, pertencem seguramente à matéria infinita.

Porque reconheço que essas propriedades têm uma existência

real e embora elas sejam opostas em aparência, são apenas

afeições do mesmo sujeito, considerado sob pontos de vista

diversos. Quando se concebe os corpos como finitos, móveis e

divisíveis, em repouso, pesados ou leves, de diferentes formas e

em situações variadas, nós separamos por abstração as

modificações do sujeito, ou, se acaso se preferir, separamos as

partes do todo e imaginamos os limites próprios de certas

porções da matéria que as separam e as distinguem de todo o

resto. É daí que vem originalmente a noção de vazio. Mas

quando consideramos o espaço infinito como impenetrável,

imóvel, indivisível, como o lugar que recebe todos os corpos

onde eles ficam contidos e se movem, ao passo que ele mesmo

é privado de forma, isento de mudança, neste caso nós

separamos por abstração

181

o sujeito infinito das modificações finitas, isto é, de todas as suas

partes.

Apliquemos agora esta doutrina a exemplos particulares.

Visto que nada pode ser acrescentado ao infinito e nem dele ser

retirado, o universo não pode aumentar ou diminuir, visto não

existir lugar fora dele em que se possa colocar o que se tenha

retirado dele e nem de onde se possa pegar o que se quiser

acrescentar. Consequentemente, ele é imutável e indivisível.

Assim é sem figura, pois que não tem limites. É imenso já que

nenhuma quantidade infinita, em qualquer frequência com que

se a repita, pode igualar ou medir sua extensão. É por isso que

quando dizemos que o espaço encerra tudo, falamos da matéria

infinita para distinguir o todo das partes que, entretanto, não

diferem em nada realmente do todo. Quando nós separamos por

abstração a extensão da matéria e das suas outras

propriedades, nós fazemos a mesma coisa do que quando nós

dizemos que o espaço é incorporal, visto que, nesse caso,

consideramos somente o que os geômetras consideram, ou

seja: pontos, linhas e superfícies. Quando dizemos que ele é

um, nós queremos designar que é infinito e indivisível, porque há

apenas um universo, embora haja incontáveis mundos. Quando

dizemos que ele é o lugar de todas as coisas nós indicamos que

ele

182

é o sujeito de suas próprias modificações, movimentos, figuras,

etc. Quando dizemos que é homogêneo queremos anunciar que

a matéria é sempre a mesma, por mais variadas que sejam as

suas modificações. Finalmente, quando dizemos que corpos

finitos somente podem ser a menos que não existam, nós

entendemos por isso sua existência relativa, visto que a sua

própria solidez ou sua maneira de ser relativamente aos outros

seres, é o que se chama de o seu lugar, abstração feita do

universo de onde são partes, e onde participam de uma maneira

finita e limitada do movimento, solidez e da extensão infinita,

porque a matéria infinita é espaço e o lugar real, assim como o

sujeito real de suas próprias modificações e de suas porções.

O que foi dito deve fazer sentir como a noção de um

espaço absoluto se formou. Ela veio em parte de suposições

gratuitas, tais como são aquelas de que a matéria é finita, que

ela é inerte e que ela pode ser dividida e em parte da suposição

que se fez da abstração da extensão, que é a propriedade mais

evidente da matéria, sem prestar atenção às suas outras

propriedades ou à conexão absoluta delas dentro do mesmo

sujeito, embora cada uma possa ser abstraída mentalmente das

outras, o que, em numerosas ocasiões, é de uma grande

utilidade para os geômetras. Mas não é necessário jamais

183

tomar essas abstrações por realidades e nem as fazer existir

fora do sujeito do qual mentalmente se as tenha separado, nem

as colocar num outro sujeito incerto ou desconhecido. A matéria

é com frequência considerada abstração feita do movimento, do

mesmo modo que o movimento é com frequência considerado

abstração feita da matéria, a extensão abstração feita do

movimento, da solidez, etc. Cada uma dessas propriedades

pode ser considerada em separado das outras, embora na

realidade o movimento da matéria dependa da solidez e da sua

extensão e embora esses atributos sejam inseparáveis um dos

outros. Mas aqueles que sustentam a existência de um espaço

infinito, após considerarem a matéria abstração feita da

extensão, distinguiram a extensão geral da extensão particular

da matéria de tal ou qual corpo, como se a última fosse qualquer

coisa acrescentada a primeira e, embora eles não pudessem

assinalar o sujeito da primeira extensão e nem dizer se era uma

substância não corporal e nem espiritual, ou se era uma nova

espécie de nada dotado, entretanto, das propriedades do ser.

Além disso, muitos deles quiseram passar a extensão

geral pelo próprio Ser supremo ou ao menos por uma ideia

incompleta da Divindade, como se pode ver no 'Tratado do

espaço real' do senhor. Ralphson, onde se constata, segundo as

autoridades que alega, não ser ele

184

o primeiro inventor desta noção e nem o único a sustentá-la hoje

em dia. Eu só duvido que a maior parte desses senhores

acredite firmemente na existência da Inteligência suprema e

quero caridosamente crer em tudo, mas me parece que, à força

de sutilezas, eles reduziram a nada ou ao menos fizeram do

universo ou da natureza o único Deus, do que não gostariam

definitivamente de concordar. Mas a bondade de suas intenções

deve lhes desculpar junto a pessoas equânimes e impedir que

se os acuse de ateísmo. Entretanto o erro deles foi percebido

pelos ateus, que, eles mesmos e outros se deram a zombar

como se pode ver nesses quatro versos de um poema, onde

após ter chicanado algumas outras noções da Divindade, eles

ridicularizam este espaço incorporal infinito com boa razão.

―Outros, é dito, de que a cabeça se faz de noções sublimes,

provam com sagacidade que o espaço é nada: Então está

provado o mesmo de ti‖. Essa gente, sem pensar, reencontrou a

verdade. Com efeito, a ideia de uma extensão que penetra outra

extensão pareceu ridícula a muita gente, aliás, muito afastadas

do ateísmo ou da irreligião. Eles poderiam perguntar onde reside

a inteligência, a razão, a sabedoria de um espaço extenso, se é

no todo ou em qualquer uma de suas partes. Quando eu falo de

185

partes é para me acomodar às ideias ordinárias, porque o infinito

não pode ter partes. Mas se, como um dos interlocutores dos

'Diálogos de Cícero', se pretendessem que o todo ou qualquer

das partes possui inteligência, além de não se poder concordar

com eles que a inteligência das partes pertence de alguma

forma à sua extensão, nós poderíamos ainda lhes opor com

outro interlocutor de Cícero, que pelo mesmo raciocínio o todo

deve ser um cortesão, um músico, um dançarino e um filósofo,

visto que muitas das partes o são. Mas isto são sofismas de

parte a parte, visto que é confundir os modos variáveis com as

propriedades essenciais ou os efeitos verdadeiros com causas

imaginárias, estranhas ou pouco proporcionais a esses efeitos.

Após ver que o movimento é essencial à matéria,

descobre-se que os argumentos daqueles que sustentam a

existência do espaço absoluto, são antes comparações e

similitudes do que argumentações, que não provam nada do que

aí querem conceber e que em geral são de petições de

princípios. Eu posso supor com eles que Deus dividiu toda a

matéria do universo em duas esferas iguais, que se estiverem a

certa distância uma da outra, se encontrará entre elas um

espaço ou um vazio que se pode medir, ou que se elas se

tocarem em um único ponto como os corpos

186

esféricos perfeitos devem fazer, haverá um espaço que não será

consistente com os outros pontos da sua circunferência. Mas

não é supor ao mesmo tempo a matéria finita e supor este

espaço que se pretende provar e, por alguma outra razão que eu

percebo, não é isto a simples consideração da gravidade? Eu

bem posso com o senhor Locke conceber o movimento de um

só corpo sem que outro lhe suceda imediatamente para pegar o

seu lugar, mas isto acontecerá em se fazendo abstração desse

corpo único ou em impedindo minha atenção de ter por objeto

aqueles que lhe sucedem realmente. Eu posso com ele

conceber dois corpos colocados a certa distância que se

aproximam um do outro sem deslocar nenhum outro corpo até

que eles venham se encontrar. Mas isto acontecerá em se

fazendo abstração de tudo o que eles deslocarem. Porque,

como o senhor Locke o diz muito bem ele mesmo, do que se

observa que uma coisa pode ser de tal modo não se segue que

ela exista nesse estado, sem o que encheríamos o mundo de

quimeras, de centauros e de monstros que jamais existiram. Mas

estou de acordo que por essas espécies de exemplos eu

entendo muito bem a ideia daqueles que sustentam a existência

do espaço ou do vazio que era absurdo de negar para os

cartesianos, assim como é imperdoável a eles disputarem contra

uma coisa de que confessam não ter ideia alguma.

187

O senhor Locke disse tudo o que se podia dizer a esse respeito

no seu 'Ensaio sobre o entendimento humano' e, sobretudo no

capítulo 13 do segundo livro, onde entre outras, ele se exprime

assim: ―Se o corpo não é suposto infinito, o que creio que

ninguém não afirmará, eu posso conceber à extremidade da

matéria um homem que poderá estender a mão para além do

seu corpo‖. Esse filósofo não pode ignorar que muita gente,

antes dele nascer, sustentou a infinidade da matéria e eu não

sou o único que a sustento no seu tempo. Mas, embora se

possam conceber por abstração esses limites imaginários,

contudo eu não posso encontrar uma boa razão para me

persuadir que a extensão que o senhor Locke reconhece ser

infinita, possa existir em algum lugar fora da matéria. Digo que

bem longe de se encontrar em tudo o que já se escreveu sobre

esse assunto alguma argumentação decisiva, ou capaz de ao

menos de balançar as minhas, eu vejo apenas suposições que

eu já destruí, sem falar das dificuldades insuperáveis que

resultam dessas extremidades fictícias, quando se trata de

examinar sua consistência e figura e de saber se qualquer coisa

pode se separar, o que vem dessas frações ou partes separadas

e uma infinidade de outros problemas inexplicáveis.

Posso agora, para contentar o senhor Locke, considerar

as partes divididas, porém eu nego que a continuidade da

matéria infinita possa ser

188

alguma vez rompida ou separada por algumas superfícies

distinguidas por espaços vazios intermediários. Porque, como já

disse, somente abstraímos o que nós chamamos de partes, só

considerando da extensão o que é necessário para o nosso caso

e distinguindo essas partes, não por divisões reais do todo, mas

pelas modificações da cor, da forma, do movimento, etc., do

mesmo modo que nós consideramos o calor do sol sem prestar

atenção à sua luz.

O senhor Locke diz ainda que aqueles que afirmam a

impossibilidade da existência do espaço sem matéria são não

somente forçados a fazer os corpos infinitos, mas devem negar

ainda que a Inteligência suprema tenha o poder de destruir

alguma parte da matéria. É certo que eles fazem a matéria

infinita, mas se nega o que ele acrescenta sobre a destruição de

suas partes, porque não se pode demonstrar que a Inteligência

suprema tenha revelado alguma vez que teve de aniquilar

alguma parte da matéria. Este não será mais um argumento por

um espaço real do que dizer que a Inteligência suprema tem o

poder de destruir porções da matéria, ou sustentar que o mundo

acabará em três dias, só porque se concorda e se concebe que

é possível ao Ser supremo destruir dentro de um tempo tão

curto.

Não vejo porque o senhor Locke diz no

189

mesmo lugar, que aqueles que sustentam a infinidade da

matéria devem ser restringidos de declarar a sua opinião. Eu

não sei o que se lucrará restringindo aqueles que sustentam a

existência de um espaço infinito ou de qualquer outro ser infinito,

porque a palavra se aplica a muitos outros sujeitos. O que

impediu Descartes de afirmar claramente que a matéria fosse

infinita e que o determinou a se contentar em dizê-la indefinida,

é que estava de um lado seguro de que a extensão era infinita,

enquanto que do outro dizia que a matéria era inerte em si

mesma e realmente divisível, o que fazia com que não pudesse

demonstrar a sua infinidade, embora se possa provar muito bem

pelos seus escritos que ele positivamente a afirmou.

Quanto às dificuldades que os teólogos possam opor

contra esse princípio, elas são de muito pouco peso e mostram

que há homens que têm muito pouco de filosofia e bastante de

zelo e entusiasmo. Por mim, não creio que os teólogos

moderados do nosso século tenham vontade de fazer reviver os

sofismas sutis de seus ignorantes antecessores. Mas peço que

seja lembrado que embora eu não seja da mesma opinião do

senhor Locke sobre o espaço, eu tenho toda a consideração que

devo por seu excelente trabalho sobre 'O entendimento

humano', e que julgo como o mais próprio para guiar o raciocínio

de maneira exata, conveniente e

190

inteligível em toda sorte de assuntos. Não é por afetação que me

declaro aqui contra o sentimento desse grande homem, mas,

sabendo o caso que se deve fazer da sua autoridade, acredito

dever separar os preconceitos que ele possa fazer nascer contra

a infinidade da matéria, contra o movimento que é de sua

essência ou contra todas as induções que se possa tirar desses

princípios.

Ouso então me lisonjear que tudo o que disse convencerá

que o movimento deve entrar na definição da matéria, assim

como a sua extensão e solidez. Se alguém me pedir a definição

do movimento em si mesmo, direi que nem eu e ninguém

podemos fornecê-la. Não é porque não o conheçamos o

suficiente para isso. Ao contrário, o conhecemos muito melhor

que muitas coisas que se podem definir. As ideias simples tais

como as do movimento, extensão, cor, som, etc., são evidentes

por elas mesmas, embora não se as possa definir. Mas as

palavras que designam as ideias complexas, isto é, um conjunto

de ideias evidentes considerado como uma única coisa são os

verdadeiros objetos da definição, porque os diferentes termos

que representam essas ideias, quando estão reunidos, mostram

a ligação, a possibilidade e a compreensão do todo. É assim que

todas as palavras do universo não poderiam explicar o que é o

azul e nem

191

dar uma ideia clara a quem não tenha nunca visto essa cor. Se a

gente supor que a mesma pessoa não tenha jamais visto o ouro,

embora conheça outros metais muito bem, ela estará em

condições de fazer uma ideia distinta, quando se lhe disser que

é um metal amarelo, pesado, maleável, fusível e determinável ao

fogo, etc. Assim, quando se define as palavras que designam

ideias simples, nós não devemos tomar essas palavras pelos

sujeitos das ideias, porque os termos sinônimos não explicam a

natureza de uma coisa. Eles só nos fazem explicar os sentidos

da palavra de uma maneira mais inteligível. É por isso que os

termos como 'passagem', 'translação' e 'aplicação sucessiva' são

apenas palavras diferentes para designar o movimento e não

são mais definições do que aquela quando Aristóteles diz que, "é

a ação de um ser que tem o poder de avançar desde que tenha

o poder". Mas todos os movimentos locais particulares podem

ser definidos pelas linhas que eles descrevem e pelas causas

que determinam o curso ou os graus de seus movimentos.

Pode-se dizer a mesma coisa da extensão geral da

matéria e das suas determinações particulares, da medida, da

figuras, etc. A solidez da matéria é igualmente uma ideia intuitiva

ou não definível. Mas eu não tomo aqui a solidez no sentido dos

geômetras, eu não a entendo por toda a quantidade alinhada

192

nas três dimensões. Mas a tomo no sentido do senhor Locke

que substituiu o termo positivo 'solidez' pelo termo negativo

'impenetrabilidade' para designar a resistência que se encontra

em todo corpo, no momento em que impede outro de se colocar

no lugar que ocupa, antes de tê-lo abandonado. É assim que

uma gota de água igualmente prensada por todos os lados é um

obstáculo invencível à reunião dos corpos mais fortes do

universo enquanto suas partes não forem afastadas. É assim

que um pedaço de madeira impede nossas mãos de se

juntarem, quaisquer que sejam os esforços que façamos para

tanto. A mesma coisa é também verdade para todos os corpos

macios ou fluidos, quanto para os corpos mais duros ou mais

firmes, mais pesados ou os mais leves e para o ar quanto para o

ouro e os diamantes, como observa muito bem o senhor Locke

que usa de tanta exatidão em tudo e que distingue a palavra

empregada para designar uma propriedade inseparável da

matéria de sua acepção comum, quando se serve da palavra

'sólido' no lugar da palavra 'duro', dentro de que sentido ele

designa a coesão das partes de todo corpo difícil de separar, ao

passo que, no sentido filosófico, é uma repleção ou uma

exclusão total de todos os outros corpos. E eis aí o sentido que

eu lhe concedo em todo esse escrito.

Não pretendo dizer que a matéria não tenha outras

propriedades essenciais além da

193

extensão, da solidez e da ação. Mas estou persuadido que, se

houver atenção conveniente nessas três propriedades, pode-se

explicar uma infinidade de fenômenos de uma maneira bem

mais clara do que se tem feito até o momento presente. Mas é

necessário esperar fazer somente algumas descobertas na

física, quando se requererá fazer abstração de uma dessas

propriedades, ou daquela que sozinha pode completar a

essência da matéria, porque é certo que dentro da matéria esses

atributos podem ser separados apenas mentalmente.

Eu nego, por exemplo, que a extensão esgote a ideia de

matéria, pois ela não contém as ideias de solidez e de

movimento. Pode ser bem verdade que a matéria seja extensa,

ainda que ela não seja unicamente extensa, mas ainda ativa e

sólida. Mas, visto que na consideração pura dessas ideias, uma

não supõe as outras e, embora cada uma delas tenha certos

modos que se concebe lhe pertencer como própria e

imediatamente, entretanto, elas estão ligadas na natureza de tal

modo, que uma não pode existir sem a outra e todas concorrem

necessariamente à produção desses modos que são próprios de

cada uma delas.

A extensão é o sujeito imediato de todas as divisões,

figuras e porções de matéria, mas é a ação que produz essas

mudanças e elas não poderiam ser distinguidas sem a solidez. A

ação é a causa imediata

194

de todos os movimentos locais, mudanças e de todas as

variedades que vemos na matéria. Mas a extensão é o sujeito e

a medida de suas distâncias. E é da solidez que depende a

resistência, a impulsão e a produção dos corpos e, entretanto, é

a ação que lhes produz dentro da extensão.

Assim a solidez, a extensão e a ação são três ideias

distintas sem serem três seres diferentes. São maneiras

diferentes de se considerar a mesma matéria.

Mas retornando disso ao assunto particular que estamos

tratando, distinguir-se-á facilmente agora a verdadeira força

motriz desta ação essencial à matéria e que a força comunicada

aos corpos particulares é alguma determinação ou direção da

ação geral. Porque, nesse sentido, é indubitável que nada pode

se mover, isto é, se determinar por si mesmo, até que seja

determinado por algum outro ser. Assim a matéria sendo ativa, a

direção dada a esta ação, em qualquer parte que seja,

continuará a ser para sempre dela própria, pois não pode haver

efeitos sem causa e, que por consequência, esta direção deverá

ser mudada por uma força superior e aquela por outra e assim

sucessivamente, uma não cessando de agir até que outra

comece, assim como uma forma não é jamais destruída na

195

matéria, a não ser para dar lugar à outra. Desse modo cada

movimento é sempre sucedido por outro movimento e jamais por

um repouso absoluto, do mesmo modo que em cada parte da

matéria a interrupção da figura será a interrupção de tudo, o que

é impossível,

Essas determinações do movimento nas partes da

matéria sólida e extensa são o que chamamos de fenômenos da

natureza, aos quais damos nomes e atribuímos aplicações,

perfeições e imperfeições, segundo a maneira que eles afetam

os nossos sentidos ou causam prazer ou dor ao nosso corpo e

contribuem à nossa conservação ou à nossa destruição.

Entretanto, não lhes damos sempre determinações tiradas de

suas causas reais ou das maneiras pelas quais elas se

produzem umas às outras, tais como a elasticidade, dureza,

moleza, fluidez, quantidade, figuras e as relações dos corpos

particulares. Ao contrário, com frequência não atribuímos várias

determinações do movimento a nenhuma causa em absoluto,

como nós fazemos nos movimentos espontâneos dos animais,

porque, mesmo quando esses movimentos são acompanhados

de pensamento, todavia, se são considerados como

movimentos, eles têm causas físicas. É assim quando um cão

corre atrás de uma lebre: O que acontece é que o objeto

196

exterior age com toda a força impulsiva ou atrativa sobre os

nervos, que são ordenados com os músculos, as juntas e as

outras partes, de maneira a produzir os diversos movimentos no

mecanismo animal. Qualquer um que tem ideia da ação dos

corpos uns sobre os outros por seu contato imediato, ou pelas

moléculas imperceptíveis que deles procedem incessantemente

e que a esse conhecimento junta aquele das leis da mecânica,

da hidrostática e da anatomia, estará convencido que todos os

movimentos pelos quais o homem se assenta, fica de pé, se

deita, se levanta, anda e corre, etc., têm por princípio

determinações próprias, materiais e proporcionais aos seus

efeitos.

O senhor Newton, no prefácio dos seus 'Princípios

matemáticos', após ter falado da gravidade, da elasticidade, da

resistência, da impulsão, da atração e da maneira como ele

explica o sistema do mundo por essas noções, diz "Eu bem

desejaria que se pudesse com a ajuda dos princípios da

mecânica, explicar igualmente os outros fenômenos da natureza,

porque muitas coisas me fazem suspeitar que elas possam

depender em muito de algumas forças que, colocadas em ação

por causas ainda desconhecidas, fazem com que os corpos

sejam impelidos uns contra os outros e se unam para formar

figuras regulares ou se distanciem e

197

fujam uns dos outros. Mas sendo essas forças desconhecidas,

os filósofos tentaram em vão explicar a natureza". Nenhuma

pessoa no mundo está na condição desse grande homem, de

descobrir a natureza dessas forças e figuras particulares e de

reduzi-las a um sistema. Quanto à força geral ou à força motriz

de toda a matéria, ouso me lisonjear de haver neste escrito

contribuído a lhe fazer conhecida.

Não se pode dar nenhuma razão porque a Inteligência

suprema não teria dado a atividade à matéria do mesmo modo

que deu a extensão. Uma das duas propriedades não é mais

impossível que a outra, Não é preciso necessariamente que esta

Inteligência suprema dirija sem cessar todos os movimentos?

Pode-se de outra maneira dar a razão da formação das plantas

e dos animais que pela extensão da matéria? O homem está em

estado de poder provar, sem a potência desta Inteligência

suprema, que a ação ou a reação dos corpos e de todas as

moléculas da matéria umas sobre as outras tenha alguma vez

podido produzir o mecanismo admirável dessas plantas e

animais? Todos os conhecimentos profundos da mecânica não

servirão para nada. Todos os encontros fortuitos dos átomos,

todos os golpes do acaso que se possam imaginar não podem

mais dar às partes do universo a ordem que nós vemos nele,

198

que os caracteres de imprensa jogados confusamente

cem mil milhões de vezes não produzirão poemas como o

'Eneida' de Virgílio ou como a 'Ilíada' de Homero.

A respeito da infinidade da matéria, ela faz somente

excluir, como fazem todas as pessoas sensatas, um Deus

extenso e corporal, mas não uma Inteligência suprema e

imaterial.

Um homem isento de todos os preconceitos deve estar

convencido de todas essas verdades e por consequência, pode

viver com tranquilidade sem outro embaraço que o cuidado de

conservar a sua saúde e cultivar a razão. É a ocupação mais

agradável que ele pode ter durante o curso da sua vida. Ele se

aprova a si mesmo comparando a tranquilidade interior que goza

com as inquietudes, perturbações e o medo que atormentam os

outros e aos quais, segundo eles mesmos, a morte não deverá

colocar fim. Ele se vê pelo uso da sua razão tranquilo contra os

falsos fantasmas e as quimeras que infestam sem descanso a

maior parte dos mortais. Contente de que lhe é permitido

conhecer e das descobertas que faz a cada dia, ele não se crê

interessado em sondar as profundezas impenetráveis. Não é

como um animal estúpido arrastado por uma autoridade

superior. Contente e livre de sua sorte, aguarda sua morte sem

tremer

199

como um fim inevitável que o Autor da natureza fixou a todos os

seres. Esta morte não pode amedrontar todo homem que sabe

que a sua sorte está nas mãos de uma Inteligência infinitamente

perfeita, de quem a bondade, a sabedoria e a justiça não podem

ser misturadas com alguma imperfeição e nem jamais se

desmentirem.

Qualidades do verdadeiro filósofo.

O verdadeiro filósofo é uma máquina humana como

qualquer outro homem, mas é uma máquina que por sua

constituição mecânica reflete sobre os seus movimentos. Os

outros homens são determinados a agir sem sentir e sem

conhecer as causas que os fazem mover, sem mesmo imaginar

que elas existam.

O filósofo ao contrário desenreda suas causas tanto

quanto ele é em si e mesmo e com frequência as prevê e se

abandona a elas com confiança. É um relógio que se monta por

assim dizer, algumas vezes por si mesmo. Desse modo evita os

objetos que podem lhe causar paixões que não convêm ao seu

bem estar e nem a um ser razoável e procura aqueles que

podem provocar nele as afeições convenientes ao estado onde

ele se encontra.

A razão é para o filósofo o que a graça é para o cristão.

No sistema

200

de Santo Agostinho a graça determina o cristão a agir

voluntariamente. A razão determina o filósofo sem lhe suprimir o

gosto voluntário.

Os outros homens são levados por suas paixões sem que

as suas ações sejam precedidas pela reflexão. São homens que

andam nas trevas, ao passo que o filósofo, mesmo em suas

próprias paixões, só age depois da reflexão. Ela caminha na

noite, mas é precedido de um archote.

O filósofo forma seus princípios sobre uma infinidade de

observações particulares, enquanto o povo adota o princípio

sem pensar nas observações que o produziram. Ele acredita que

a máxima existe, por assim dizer, por ela mesma, mas o filósofo

forma a máxima a partir de sua fonte. Ele examina a origem, ele

conhece valor dela e só faz dela o uso que lhe convém.

Deste conhecimento que os princípios só nascem das

observações particulares, o filósofo, concebendo a estima pela

ciência dos fatos, ama se instruir dos detalhes e de tudo o que

não se advinha. Assim ele considera como uma máxima contra o

progresso das luzes do espírito se limitar à simples meditação e

a crer que o homem apenas tira a verdade do seu próprio

âmago.

Certos metafísicos dizem, evitai as impressões dos

sentidos, deixai aos historiadores o

201

conhecimento dos fatos históricos e aos gramáticos os

linguísticos.

Nós filósofos, ao contrário, estamos persuadidos que

todos os nossos conhecimentos nos vêm dos sentidos, que

somos feitos apenas de regras oriundas da uniformidade das

impressões sensíveis e que nós estamos no término das luzes

quando os nossos sentidos não são suficientemente sutis e nem

suficientemente fortes para nos abastecer. Convencidos que a

origem dos nossos conhecimentos está inteiramente fora de nós,

eles nos estimulam a fazer uma ampla provisão de ideias em

nos confiando às impressões exteriores dos objetos e em nos

tornando discípulos que consultam e escutam e não em mestres

que decidem e que impõem silêncio. Querem que estudemos a

impressão precisa que cada objeto faz em nós e que nós

evitemos confundi-la com aquela que outro objeto tiver causado.

Daí a certeza e os limites dos conhecimentos humanos.

Certeza quando se sente que se recebeu de fora a impressão

própria e precisa que cada julgamento supõe, porque todo

julgamento discerne e sente a impressão exterior que lhe é

particular. E os limites são quando não se sabe receber

impressões, seja pela natureza do objeto ou pela fraqueza dos

nossos órgãos. Aumentai, se possível, a potência dos órgãos e

aumentareis os

202

conhecimentos. Foi apenas depois da descoberta dos

telescópios e dos microscópios que se fizeram tantos progressos

na astronomia e na física.

É também para aumentar o número dos nossos

conhecimentos e das nossas ideias que nós filósofos estudamos

os homens de outros tempos e os de hoje em dia.

Submetei-vos como as abelhas do mundo passado e do

mundo presente, nos dizem eles. Retornai logo à vossa colméia

para produzir o vosso mel.

O filósofo se aplica ao conhecimento do universo e de si

próprio, mas tal como o olho não pode se observar, o filósofo

sabe que ele também não pode se conhecer perfeitamente, visto

que não pode receber nenhuma impressão exterior de dentro de

si próprio e que apenas conhecemos por impressões

semelhantes.

Este pensamento não lhe aflige porque ele se toma tal

como é e não tal como parece à imaginação que possa ser.

Ademais, esta ignorância não é para ele razão de julgar-se

composto de duas substâncias opostas. Assim, como não se

conhece perfeitamente, ele diz que não conhece como pensa,

mas como sente que pensa, Reconhece que sua substância é

capaz de pensar da mesma

203

maneira que ela é capaz de escutar e ver.

O pensamento é para o homem um sentido como o da

audição e da vista, dependendo igualmente de uma constituição

orgânica. Só o ar é capaz de produzir os sons, só o fogo pode

excitar o calor, só os olhos podem ver, só os ouvidos podem

escutar e só a substância do cérebro é suscetível de

pensamentos.

Se os homens têm tanto trabalho para unir a ideia do

pensamento com a ideia da extensão é que nunca viram a

extensão pensar. Eles são neste ponto como um cego de

nascimento é a respeito das cores e um surdo de nascença a

respeito dos sons. Eles não poderão unir essas ideias com a

extensão que eles tateiam porque nunca viram essa união. A

verdade não é para o filósofo uma dona que corrompe a sua

imaginação e que crê se encontrar em toda parte. Ele se

contenta em poder se desembaraçar onde ele pode a perceber.

Não a confunde com a verossimilhança. Toma por verdade o

que é verdade, por falso o que é falso, por duvidoso o que é

duvidoso e por verossímil o que é verossímil. Ele faz mais e está

aqui uma grande perfeição do filósofo: é que logo que não tenha

o motivo próprio para o julgamento, ele o faz permanecer

indeterminado.

Cada julgamento, como já se observou, supõe um motivo

exterior que lhe deva excitar.

204

O filósofo sente qual deve ser o motivo próprio do julgamento

que ele deve usar. Se acaso falta o motivo, ele não julga,

aguarda. E se consola quando vê que aguardou inutilmente.

O mundo está cheio de pessoas de espírito e de muito

espírito que julgam sempre, sempre advinham, porque é de

adivinhar do que de julgar sem sentir que se tem o motivo

próprio do julgamento. Ignoram o alcance do espírito humano,

acreditam que ele pode conhecer tudo. Assim eles encontram a

humilhação de não proferir julgamentos e imaginam que o

espírito consiste em julgar. O filósofo ao contrário, está contente

consigo mesmo quando suspende a faculdade de se determinar,

como se estivesse determinado antes de haver sentido o motivo

próprio da decisão. Assim ele julga e fala menos, mas julga mais

sadiamente e fala melhor. Não evita os traços vivos que se

apresentam naturalmente ao espírito por uma pronta montagem

de ideias, que com frequência a gente se admira de tê-las unido.

É nesta pronta ligação que consiste o que comumente se chama

espírito. Mas é também o que ele menos olha. Ele prefere a

esse brilho o cuidado de distinguir bem as ideias e de conhecer

o justo alcance e a ligação precisa, de evitar se deixar enganar

ao levar longe demais as relações particulares que as ideias

205

têm entre elas. É este discernimento que consiste o que se

chama julgamento e acuidade de espírito.

A esta acuidade se junta ainda à flexibilidade e a clareza.

O filósofo não está a tal ponto ligado a um sistema que não sinta

toda a força das objeções. A maior parte dos homens está de tal

sorte entregue às suas opiniões que não se dá ao trabalho de

considerar as opiniões dos outros.

O filósofo compreende o sentimento que rejeita com o

mesmo alcance e a mesma clareza que entende aquele que ele

adota.

O espírito filosófico é então um espírito de observação e

de acuidade que relaciona tudo aos seus verdadeiros princípios.

Mas não é só o espírito que o filósofo cultiva. Ele leva longe sua

atenção e seus cuidados.

O homem não é um monstro que deve apenas viver nos

abismos do mar ou no fundo de uma floresta. As suas

necessidades de vida lhe impõem o comércio necessário com os

outros e, em qualquer estado em que ele se encontre, suas

necessidades e seu bem estar o levam a viver em sociedade.

Assim a razão exige que ele conheça, estude as

qualidades sociais e que trabalhe para adquiri-las. É

impressionante como os homens se apegam tão pouco a tudo o

que é

206

prático e que se afogueiem tão vivamente com especulações

inúteis. Olhai as desordens que tantas diferenças heréticas têm

causado. Elas versam sempre sobre teorias. Algumas vezes se

trata do número de pessoas da Trindade. Outras vezes de suas

emanações. Outras do número de sacramentos e de suas

virtudes. E outras da natureza da graça. Quantas guerras,

quantas discórdias por quimeras!

Os filósofos estão sujeitos às mesmas quimeras. Quantas

disputas nas escolas! Quantos livros sobre questões sem

importância! Uma palavra as decidirá ou fará ver que são

indissolúveis.

Uma seita famosa hoje em dia, reprova nas pessoas de

erudição a negligência do estudo do seu próprio espírito, por

carregar sua memória de fatos e de pesquisas sobre a

antiguidade. E nós reprovamos uns e outros de negligenciar

tornarem-se mais amáveis e de não entrarem de maneira

alguma na sociedade.

Nosso filósofo não se crê exilado no mundo. Não se crê

estar num país inimigo. Ele quer gozar com sábia economia os

bens que a natureza lhe oferece. Quer encontrar prazer com os

outros e para encontrar ele se esforça. Assim procura a

concordância com aqueles com que a sorte ou a sua própria

escolha lhe faz viver e procura ao mesmo tempo o que lhe

convém. É um

207

homem que quer agradar e se tornar útil.

A maior parte das pessoas importantes a quem as

dissipações não deixam suficiente tempo para meditar é cruel

com aqueles que eles não acreditam serem seus iguais.

Os filósofos comuns que meditam muito, ou melhor, que

meditam mal, o fazem com todas as pessoas. Eles fogem dos

homens e todos os homens os evitam.

Mas o nosso filósofo que se reparte entre o retiro e trato

social dos homens é pleno de humanidade. É o carreteiro de

Terêncio que sente que é homem e que só a humanidade

interessa à boa ou má fortuna do seu próximo.

Será inútil observar aqui o quanto o filósofo é orgulhoso

de tudo o que se denomina honra e probidade. Eis aí o seu

verdadeiro assunto.

A sociedade civil é por assim dizer a única divindade que

ele reconhece enquanto está na terra. Ele a adula com sua

probidade, com uma atenção precisa em seus deveres e com

um desejo sincero de não ser um membro inútil e incômodo.

O sentimento de probidade entra tanto na constituição

mecânica do filósofo como nas luzes do espírito. Quanto mais

esclarecido, mais encontraremos nele a probidade. Ao contrário,

onde reina o fanatismo e a superstição, reinam as paixões, a

violência, etc. 'É Madalena que ama o mundo e Madalena que

ama a Deus;

208

é sempre Madalena que ama com violência".

Ora, o que faz o homem honesto não é o agir pelo amor

ou pelo ódio, pela esperança ou pelo medo, é o agir pelo espírito

de ordem ou de razão. Tal é o temperamento do filósofo, Ora,

não há muito com que contar com as virtudes do temperamento.

Confiai vosso vinho mais àquele que não o ama naturalmente do

que àquele que toma todos os dias novas resoluções de não

mais se embriagar.

O devoto é um homem honesto apenas pela paixão. Ora,

as paixões não asseguram nada. Além do que o devoto, eu me

atrevo dizer, não tem o hábito de ser honesto em relação a

Deus, porque ele tem o hábito de não seguir exatamente sua

regra.

A religião é tão pouco proporcional à humanidade que o

mais justo comete infidelidades a Deus sete vezes por dia, isto

é, várias vezes. As frequentes confissões dos mais piedosos nos

fazem vez dentro dos seus corações. Segundo a maneira deles

pensarem, uma vicissitude contínua entre o bem e o mal. Isso é

suficiente para se crer culpado por existir.

Este combate eterno em que o homem sucumbe tão

frequentemente forma nele o hábito de imolar a virtude ao vício.

Ele se familiariza em seguir sua tendência e a praticar as faltas

na esperança de se reabilitar pelo arrependimento. Quando

209

se é tão frequentemente infiel a Deus, a gente, insensivelmente,

se dispõe a ser também aos homens.

Ademais, o presente tem sempre mais força sobre o

espírito do homem que o futuro, que o amor próprio faz sempre

olhar de um ponto de vista muito distante. O supersticioso se

deleita sempre em remediar suas faltas, de evitar as penas e de

merecer as recompensas. Também a experiência faz ver de

maneira suficiente que o freio da religião é bem fraco, malgrado

a quantidade de sermões e práticas religiosas. O povo é sempre

o mesmo. A natureza é mais forte que as quimeras. E parece

que ela é zelosa de seus direitos. Ela se retira com frequência

das cadeias onde a cega superstição a quer tolamente prender.

Só o filósofo que sabe o que fazer com ela. Comanda-a pela

razão.

Examinem todos contra os quais a justiça humana é

obrigada a se servir da sua espada. Vocês encontrarão ou

temperamentos ardentes ou espíritos pouco esclarecidos, mas

sempre supersticiosos ou ignorantes. As paixões tranquilas do

filósofo podem muito bem o levar à volúpia, mas jamais ao

crime. Sua razão cultivada o guia e não o conduz jamais à

desordem.

A superstição faz sentir somente de maneira fraca quanto

importa aos homens em relação ao seu interesse presente,

seguir as leis da sociedade. Ela condena mesmo aqueles que

não as

210

seguem por esse mesmo motivo, que ela chama com desprezo

de motivo humano. O ilusório é para ela bem mais perfeito que o

natural. Assim suas exortações só operam como deve operar

uma quimera. Elas atormentam, elas apavoram, mas, quando a

vivacidade das imagens que elas produzem diminui, quando o

fogo passageiro das imagens é extinto, o homem permanece

sem luz, abandonado às fraquezas do seu temperamento.

Nosso sábio, não temendo nada após a morte, parece

perder um motivo a mais de ser um homem honesto durante a

vida. Mas ele ganha aí em consistência, por assim dizer, e de

vivacidade no motivo que o faz agir, motivo tanto mais forte

quanto mais for puramente humano e natural. O motivo é a

própria satisfação que ele encontra de estar contente consigo

mesmo e seguindo as regras da probidade. Motivo que o

supersticioso só tem imperfeitamente, porque tudo o que há de

bom nele só é imaginário. A esse motivo se reporta ainda outro

motivo bem forte. É o próprio interesse do sábio; um interesse

presente e real.

Separai por um momento o filósofo do homem de

sociedade. Que lhe resta? A sociedade civil, seu único amparo

aqui em baixo, o abandona. Eis ele privado das mais doces

satisfações da vida. Eis ele banido sem retorno do

211

comércio com pessoas de bem. Assim lhe importa bem mais que

ao resto dos homens, dispor todos os seus esforços para só

produzir efeitos conformes à ideia de homem de sociedade. Não

acrediteis que porque ninguém tem os olhos nele, ele se

abandonará a uma ação contrária à probidade. Não, esta ação

não é conforme a disposição mecânica do sábio. Ele é parecido,

por assim dizer, com o fermento da ordem e da regra. É repleto

de ideias do bem da sociedade civil. Conhece seus princípios

bem melhor que os outros homens. O crime acharia nele muita

oposição, haveria muitas ideias naturais e muitas ideias

adquiridas a destruir. Sua faculdade de agir é por assim dizer,

como uma corda de instrumento musical montada num

determinado tom. Ela não será capaz de produzir um som

diferente. Ele teme sair do tom, de não estar em concordância

consigo mesmo.

Ademais, em todas as ações que os homens praticam,

eles só procuram a sua própria satisfação atual. É o bem, ou

melhor, o atrativo presente, segundo a disposição mecânica em

que se encontram que os fazem agir. Ou porque quereis vós que

em vista do filósofo não esperar castigos e nem recompensas

depois dessa vida, deixando a Providência agir, ele deve

encontrar um atrativo presente que o leve a matar ou a vos

enganar? Não está ele, ao contrário, mais disposto

212

pelas suas reflexões, a encontrar mais atrativos e prazer de viver

convosco, a atrair vossa confiança e vossa estima e a saldar

seus deveres de amizade e de reconhecimento? Esses

sentimentos não estão no íntimo do homem independentemente

de todas as crenças sobre o futuro? A ideia do homem avesso à

sociedade é tão oposta à ideia do filósofo quanto à ideia de

estúpido. E a experiência faz ver todos os dias que quanto mais

se tenha de razão e de luz, mais se é bom, sábio e apropriado

para o comércio da vida.

Entrarei voluntariamente em mais um importante detalhe.

Sente-se bastante quanto a república deve tirar mais utilidade

daqueles que, elevados aos grandes cargos, estão cheios de

ideias de ordem e de bem público e de tudo o que se denomina

de humanidade. É preciso desejar que se exclua de lá todos

aqueles que por sua educação estão cheios de outros

sentimentos.

O verdadeiro filósofo é então um homem honesto que age

em tudo pela razão e que junta, a um espírito de reflexão e de

exatidão, os hábitos morais e as qualidades sociais.

O verdadeiro filósofo sente que é alguma coisa existente.

Ora, essa alguma coisa que ele sente, só pode saber através da

inteligência, pois sem ela, nada se pode conceber. Esta

inteligência é então a única necessária e

213

tudo o que não é ela, lhe é contingente. É então a primeira

causa e a única fonte de tudo o que existe. Esta inteligência não

pode ter tido um começo, pelo que então é eterna e infinita.

Como Inteligência tem necessidade somente de si mesma para

existir e é certamente a sua própria causa. Já que é a sua

própria causa e que nada pode existir sem ela, ela é também a

causa de tudo o que existe, porque é da essência do efeito

haver uma causa. Por consequência a Inteligência é a causa

necessária, tanto de si como de tudo o que existe ou que pode

existir.

O filósofo não pode duvidar que a substância inteligente

não seja determinada, visto que ela é a causa geral dela mesma

e de tudo o que existe. Ele não pode duvidar que esta causa

inteligente não seja livre, já que ela é a própria causa de existir e

de agir.

O filósofo denomina de contingente o que pode ser e não

ser, em cujo sentido é evidente que a substância inteligente e

suas ações não podem ser extensas, porque sua natureza e

suas consequências são igualmente necessárias e

determinadas.

O filósofo chama de necessário tudo que é determinado e,

nesse sentido, a substância inteligente é necessária, sendo

determinada por ela mesma. E os seres particulares são

também

214

necessários, embora determinados por suas causas. Mas há

outra espécie de necessidade que é aquela da natureza, como é

a caso da substância cuja existência é necessária em

decorrência de sua própria definição e, que por consequência,

não convém a outros seres particulares que podem ser

concebidos como não existentes.

Há igualmente outra espécie de determinação que

consiste, dentro dos limites prescritos à existência dos seres

particulares, em extensão, conformação dos órgãos, percepções

ou em conhecimentos. Mas esta espécie de determinação

limitada é oposta à ideia geral e se restringe aos indivíduos.

Isto colocado, o filósofo conclui que a ação da substância

inteligente é eterna, livre, infinita e necessária como a sua

natureza porque, de outro modo, a sua ação não dependeria

dela. Ela teria outra causa que não ela mesma, contra a

definição que o filósofo concebe como sua própria causa de

existir e de agir.

E igualmente de lá se segue que ela é toda poderosa, isto

é, que pode fazer tudo o que é possível, o que não é permitido

aos entes limitados ou a um entendimento finito. Dizendo em

uma linguagem mais ampla, ela pode fazer tudo o que possa ser

consequência de seus atributos infinitos. Ora, da infinidade dos

atributos segue a infinidade das consequências.

215

Portanto, a substância inteligente, ou o ser absoluto, é infinito

em sua ação e consequentemente onipotente.

A esta enumeração dos atributos da substância

inteligente, mais especificamente àquela que o filósofo concebe

sob o nome de causa absoluta e onipotente, não é difícil de

reconhecer o Ser supremo que o filósofo concebe como Ser

absolutamente infinito. Substância dotada de uma infinidade de

atributos ou mais reconhecida pela infinidade de propriedades,

das quais cada uma exprime infinitamente sua essência eterna e

infinita.

F I M

216

D I S C U R S O

ENTRE UM DEÍSTA E UM ATEU.

O ateu.

O nosso debate se reduz em saber se a natureza eterna

age com sabedoria e desígnio ou se ela toma todas as espécies

de formas por uma cega necessidade. Não nos ofusquemos com

os preconceitos vulgares. Um filósofo só deve crer logo que é

forçado por uma evidência completa. Eu somente raciocino

sobre o que eu vejo e só vejo na natureza toda uma matéria

imensa e uma força infinita. Esta matéria agente é eterna. Ora,

em um tempo infinito uma força toda poderosa deve dar

necessariamente todas as espécies de formas a uma matéria

imensa. Ela tem tido outras espécies diferentes das que nós

vemos hoje em dia e ela ainda terá novas no futuro. Tudo

mudou, tudo muda e tudo mudará. Eis aí o círculo eterno no qual

rolam os átomos.

O deísta.

Aí está um sofisma e não uma prova. Você só vê,

segundo você próprio diz, em toda a natureza uma força infinita

e uma matéria imensa. Eu concordo, mas, seguir-se daí que a

força infinita seja uma propriedade da matéria? A matéria é

eterna, acrescenta você, isso pode ser porque a força infinita é

sempre operante, ela tem podido

217

produzir o tempo todo, mas disso você conclui que ela seja a

única substância existente? Eu concordarei ainda que a força

toda poderosa possa dar num tempo infinito, todas as

variedades de formas à matéria imensa, mas é isso uma prova

de que essa força age por uma necessidade cega e sem

intenção? Admito seus princípios, mas negarei, entretanto, suas

consequências que me parecem absolutamente falsas. E eis

aqui a razão.

A ideia que nós temos da matéria não contêm a ideia de

força. Ela não cessa de ser matéria quando está em perfeito

repouso e não se transforma em movimento logo que perde

esse repouso. Disso eu concluo que não é ativa por ela mesma

e, consequentemente, que a força infinita não é uma de suas

propriedades.

Além disso, percebo em mim e em vários seres que me

rodeiam um princípio comparador que sente, raciocina e julga.

Ora, é um absurdo supor que uma matéria, sem sentimento e

sem pensamento, possa sentir e tornar-se inteligente em

mudando de lugar ou de figura. Não há nenhuma ligação entre

essas ideias. É verdade que a vivacidade dos nossos

sentimentos depende frequentemente do movimento dos nossos

humores, isso prova que o espírito e o corpo podem estar

unidos, mas de modo algum que sejam um. Daí eu concluo que

existe na natureza outra substância além da matéria

218

e que, por consequência, deve haver uma Inteligência soberana

extremamente superior à minha alma, à sua e a de todos os

outros homens.

Para saber se há tal Inteligência eu percorro todas as

maravilhas do universo. Observo a constância e a regularidade

das suas leis, a fecundidade e a variedade de suas produções, a

ligação e a conveniência das suas partes, a conformação dos

animais, a estrutura das plantas, a ordem dos elementos e a

revolução dos astros. Então, não posso mais duvidar que tudo

seja efeito de um desígnio, de uma arte e de uma sabedoria

suprema. Disso eu concluo que a força infinita que você

reconhece na natureza é uma Inteligência soberana e

onipotente.

Um olhar superficial nesses prodígios pode deixar o

espírito na hesitação, mas logo que se entra no santuário da

natureza, logo que se estudam a fundo seus segredos, não

podemos vacilar. Eu não vejo como os ateus podem resistir à

força dessas provas.

Após lhe ter exposto as razões que me fazem crer, peço-

lhe que me apresente as razões que lhe possam fazer duvidar.

O ateu.

Um ser infinitamente sábio e poderoso deve ter toda sorte

de perfeições. Sua bondade e justiça devem igualar sua

sabedoria e potência. Entretanto, o universo está cheio de

imperfeições e

219

vícios. Eu vejo em toda parte seres infelizes e maldosos. Ora,

não posso conceber como os sofrimentos e os crimes podem

começar ou subsistir sob o império de um Ser soberanamente

bom, sábio e potente. A ideia de uma causa infinitamente

perfeita me parece incompatível com seres tão contrários à sua

natureza produtora. Eis a razão das minhas dúvidas.

O deísta.

Quê! Negará você o que vê claramente por que não vê

mais longe? A menor luz nos leva a crença, mas a maior

obscuridade não é razão para a negação. Nesse crepúsculo da

vida humana, as luzes do espírito são bastante fracas para nos

mostrar as primeiras verdades com perfeita clareza. Só se as faz

entrever de longe e por um pequeno e ocasional raio de luz que

é suficiente para nos conduzir. E é uma evidência que dissipa

todas as nuvens. Você rejeitará as provas mais convincentes de

uma Inteligência soberana porque você não vê as razões

secretas de sua conduta? Você nega a sabedoria eterna porque

não concebe como o mal pode subsistir sob o seu império. Isto

lá é raciocinar? Uma coisa não existe porque você não a vê. Eis

a que se reduzem todas as suas dificuldades.

O desejo de tudo penetrar e de tudo explicar, de tudo

ajustar às nossas ideias imperfeitas é

220

de longe a mais perigosa doença do espírito humano. O mais

sublime esforço da nossa razão é de se calar diante da razão

soberana. Deixemos à Inteligência suprema o cuidado de

justificar um dia os caminhos incompreensíveis da sua

providência. Nosso orgulho e nossa impaciência fazem com que

não queiramos esperar esse desenlace. Nós queremos

antecipar a luz e nós a perdemos de vista.

A verdadeira felicidade sem a ideia de uma Inteligência

onipotente é uma contradição. O homem, longe de poder

procurar por si mesmo a sua própria felicidade, só pode ser

miserável, imperfeito, fraco e limitado, agitado por mil desejos

bem acima de seu poder. Como se poderia lisonjear-se de ser

feliz sem o socorro de um Ser infinitamente sábio para aclarar o

nosso espírito, todo poderoso para as nossas fraquezas e

infinitamente perfeito para suprir às nossas imperfeições! Se tal

Ser não existisse, o homem seria o mais infeliz de todos os

seres que existem sobre a terra. Porque ele leva consigo as

sementes da sua miséria, o que não acontece com os outros

animais.

F I M

221

O

VERDADEIRO SIGNIFICADO

DO

SISTEMA DA NATUREZA

TRADUZIDO DO FRANCÊS

DE

HELVÉTIUS

— 1852 —

http://books.google.com

222

CONTEÚDOS

Prefácio do Tradutor. Prefácio Carlile Introdução capítulo I. Da natureza Capítulo II. Do movimento e sua origem Capítulo III. Da matéria e seu movimento. Capítulo IV. Leis do movimento comuns a todos os seres ─ atração e repulsão ─ necessidade. Capítulo V. Da ordem e desordem ─ inteligência e acaso. Capítulo VI. Do homem ─ suas distinções física e moral ─ sua origem. Capítulo VII. Da alma e sua espiritualidade Capítulo VIIII. Das faculdades intelectuais ─ todas derivadas da sensação. Capítulo IX. Diversidade das faculdades intelectuais ─ elas dependem, como as qualidades morais, das causas físicas. ─ princípios naturais da sociedade, morais e políticos. Capítulo X. A mente não tira ideias de si própria ─ nós não temos ideias inatas. Capítulo XI. Do sistema da liberdade do homem. Capítulo XII. Exame das opiniões que defendem que o sistema da necessidade é perigoso. Capítulo XIIII. Da imortalidade da alma ─ o dogma do futuro estado ─ o medo da morte. Capítulo XIV. Da educação ─ moralidade e leis suficientes para restringir o homem ─ desejo de imortalidade ─ suicídio. Capítulo XV. Do interesse do homem, ou das ideias que ele

223

CONTEÚDOS

forma da felicidade ─ sem virtude ele não pode ser feliz. Capítulo XVI. As opiniões errôneas concebidas pelo homem sobre a felicidade são a verdadeira causa da sua miséria Capítulo XVII. Origem das nossas ideias a respeito da divindade. Capítulo XVIIII. Da mitologia e teologia. Capítulo XIX. Opiniões teológicas absurdas e extraordinárias. Capítulo XX. Exame das provas do Dr. Clarke sobre a existência de uma divindade. Capítulo XXI. Exame das provas da existência de uma divindade. Capítulo XXII. Do deísmo, otimismo e causas finais. Capítulo XXIII. Exame das supostas vantagens que resultam para o homem das noções de uma divindade, ou sua influência sobre os princípios morais, ciência política, o bem estar das nações e dos indivíduos. Capítulo XXIV. As opiniões religiosas não podem ser o fundamento da moralidade. ― paralelo entre a religião e a moralidade natural. ― a religião impede o progresso da mente. Capítulo XXV. Das ideias que são dadas da divindade, o homem não pode concluir nada ― seu absurdo e inutilidade. Capítulo XXVI. Apologia para os sentimentos contidos nesta obra. Capítulo XXVII. O ateísmo é compatível com uma moralidade saudável? Capítulo XXVIII. Os motivos que levam ao ateísmo ― pode este sistema ser perigoso? Capítulo XXIX. Resumo do sistema da natureza.

224

PREFÁCIO DO TRADUTOR.

Numa época de alarme como o presente, quando

princípios subversivos à nossa existência como nação são

publicamente sustentados e engenhosamente publicados, torna-

se dever de todo bom homem apontar esta perigosa tendência

para seus camaradas cidadãos, especialmente quando as mais

insidiosas astúcias são empregadas para a sua propagação.

Pela energia dos nossos tribunais e o ativo zelo dos mais

prejudicados, mostrados ultimamente com vigor, talvez além da

lei, os ataques abertos dos sediciosos contra nossa feliz

constituição têm sido completamente frustrados. Mas a vigilância

não deve cessar com o desaparecimento do perigo. Embora

aparentemente derrotados, os nossos inimigos não têm ainda

abandonado suas hostis intenções. Eles estão ainda ativamente

ocupados e esperam apenas uma oportunidade para

continuarem em frente com aquela força adicional que sua

astúcia e intrigas podem ter obtido para sua causa.

O principal meio que eles agora usam para levar os seus

sórdidos esquemas a efeito é a extirpação da nossa mais santa

fé. Um expediente que executam diligentemente com todos os

talentos para o mal nos quais são tão famosos. Eles sabem ser

o altar o grande baluarte do trono. E a erradicação da religião

das mentes de seus compatriotas, eles consideram como a

garantia do sucesso de suas tentativas contra a constituição.

Portanto, a imprensa extravasa publicações e o teatro ataca com

suas exibições, direta ou

225

indiretamente, certas doutrinas da religião estabelecida. O

afrouxamento da moral e a desatenção para os deveres da

adoração, tão perceptíveis nas maneiras dos tempos atuais,

autorizam a preocupação de que os esforços da anarquia não

têm conjuntamente sido improdutivos.

Os meios que eles usam para atingir seus objetivos não

são menos perversos do que engenhosos. Com as palavras "paz

universal", "benevolência" e "tolerância" perpetuamente em suas

bocas, eles encontram homens que lhes dão crédito por essas

virtudes. De início, aparentando a mais sagrada consideração

para as doutrinas fundamentais da cristandade, eles visam

apenas reformar e reconciliar com a razão alguns dos

aparentemente contraditórios dogmas. Encorajados pelo

sucesso, eles recorrem com frequência ao ataque das mais

fundamentais doutrinas da revelação, tentando, para usar suas

próprias palavras, reconciliá-las com a razão. Daí para o deísmo

ou para a negação de toda revelação, o passo é curto. Pela

influência de tais artimanhas, nós vemos, em consequência, a

causa de a impiedade prevalecer mesmo onde a religião de

Jesus florescia antigamente em sua grande pureza.

Não é minha intenção traçar a conspiração contra a

religião através de todos os diferentes estágios do seu

progresso. Assumindo alternadamente milhares de diferentes

disfarces, ela parece evitar com frequência a mais escrupulosa

investigação. Mas onde quer que achemos discussões

favorecidas sobre religião, descobertas de pretensas incorreções

no texto bíblico, cismas e divisões da estabelecida igreja

nacional, vemos uma extraordinária afetação de santidade por

homens cujas vidas são uma sátira a toda piedade. Então nós

podemos estar seguros, os desígnios da anarquia já tem feito

progressos.

Embora nossos inimigos não tenham ainda pensado ser

prudente fazer uma aberta confissão de ateísmo, é evidente que

este é o último passo de sua impiedosa carreira.

226

Que isto é sua religião, (se o que aniquila toda a divindade pode

ser assim chamado), é um fato que qualquer evidência adicional

não pode ser mais clara. Os escritos de Robinson e Barruel, na

verdade, têm estabelecido completamente este ponto que bons

homens agora concebem só uma opinião a esse respeito.

Colocar o povo da Grã-Bretanha em guarda contra

aqueles que desejam roubar a sua religião e mergulhá-los nos

horrores da anarquia e da impiedade, foi o motivo que inspirou o

tradutor a apresentar este tratado ao público. É um compêndio

escrito por Helvétius do ―Sistema da Natureza‖. Um trabalho

publicado sob o nome de Mirabaud, posto que seja uma bem

conhecida produção de Diderot, assistido por Robinet e outros

discípulos da escola francesa da infidelidade. Ele contem quase

tudo que pode ser dito a favor do ateísmo e permite uma

completa visão daquele sistema que os sediciosos desejam

colocar no lugar da santa religião de Jesus. Vai, acredita-se,

produzir os mais felizes efeitos naqueles que tenham sido

arrastados nos laços da impiedade, embora ainda

desprevenidos de até onde isto pode levá-los, visto que pode

incitar em suas mentes uma comparação entre as doutrinas do

ateísmo e da Cristandade. Desse exame, eles necessariamente

acharão inumeráveis motivos para determiná-los a retornar para

essa religião que é a única a dar segurança no presente e

felicidade no futuro. Expondo também as falácias do deísmo e

todos os outros sistemas não fundados na revelação, pode ter o

efeito de trazer para o grêmio da igreja muitos bons homens que

foram pervertidos do seu dever por aquelas pretensões de paz,

virtude e benevolência assumidas pelos livre-pensadores, que

operam sobre os mais afáveis sentimentos da natureza humana

como meio de fazer prosélitos para sua causa.

227

Pensadores superficiais podem argumentar que esta publicação

pode aumentar o verdadeiro mal que o tradutor deseja combater.

Para ele não há motivo de preocupação. É fazer um mau elogio

ao conhecido bom senso dos britânicos supor que fracas

argumentações e negligentes declamações, contidas mesmo no

melhor trabalho ateu, seja capaz de influenciar ou perverter seus

julgamentos. A exposição do erro é a sua revelação: assim

pensava São Paulo e os principais padres da igreja primitiva,

cuja autoridade não será prontamente questionada.

O tradutor tem adicionado neste tratado algumas notas de

alguns dos mais competentes escritores do ateísmo, para que

seus correligionários não tenham a desculpa de dizer que a sua

causa foi injustamente submetida ao julgamento público.

Possa este trabalho ter o efeito de trazer de volta ao

menos um prosélito da impiedade para a santa religião do seu

país. O grato conhecimento desta redenção individual irá

consolar o tradutor pela desgraça e ódio com que está seguro de

ser alvo por parte dos amigos da anarquia pelo que ele fez

expondo o seu monstruoso sistema para o público em geral em

uma tradução inglesa.

228

PREFÁCIO CARLILE

O pequeno trabalho que segue é um compêndio do que é

chamado ―Sistema da Natureza de Mirabaud‖. E aqueles que

não podem se permitir comprar o original acharão este

igualmente instrutivo e importante. É toda a parte essencial, é

todo ouro, Não há sentença a mais ou a menos. É um desiderato

para acompanhar o original ―Sistema da Natureza‖ como um

livro texto, mas um ainda maior desiderato para aqueles que não

podem se permitir comprar alguma das existentes edições

originais.

Este trabalho foi primeiro impresso em Glasgow em 1799,

mas o tradutor achou necessário juntar algumas poucas páginas

de sedução no seu próprio trabalho, de modo a desviar as

perseguições cristãs. O presente editor não tem medo nem

escrúpulo de colocar avante tal trabalho em sua pura e

manifesta forma. Ele está completamente orgulhoso de ser

chamado deísta, materialista ou ateu, como queiram preferir os

idólatras, tanto que seja diferenciado deles.

Um puro código de ética só pode ser fundado apenas em

um sistema descrente de todo poder espiritual ou sobrenatural.

Chame isso de ateísmo, materialismo ou o que você desejar. A

moralidade não tem outra fundamentação. Nós sabemos que

existe a matéria em movimento. Podemos percebê-la

fisicamente. Porém, fora das nossas percepções não temos

nenhum conhecimento distinto. Assim, não temos nenhum

conhecimento de poder espiritual ou sobrenatural, porque não os

percebemos e nem a necessidade de suas existências.

As notas anexadas a este trabalho foram selecionadas e

adicionadas pelo tradutor e como elas são boas, o editor achou

por bem deixá-las passar.

Os filósofos e os filantropistas dispostos a

229

distribuir este pequeno trabalho gratuitamente e os vendedores

podem ficar certos de que não há receio dele ser perseguido. O

editor está preparado para uma grande procura e lisonjeia-se de

ser capaz de despachar grandes tiragens. Este trabalho deve

ser chamado 'Manual do Filósofo' ou 'Remédio para a pior de

todas as doenças humanas – Superstição'. O editor o colocará

contra todos os milhões de opúsculos religiosos editados pelas

tipografias ou que possam vir a ser daqui para frente. Deixem os

padres e os fanáticos publicarem um tratado que refute os

conteúdos deste pequeno livro e nunca mais terão a

necessidade de escrever ou imprimir alguma coisa, seja mentira

ou verdade.

230

SISTEMA DA NATUREZA

INTRODUÇÃO

O homem, infortunadamente para si mesmo, deseja

superar os limites da sua esfera e se transportar para além do

mundo visível. Negligencia a experiência e se alimenta de

suposições. Desde cedo predisposto por ardilosos homens

contra a razão, ele negligencia o seu cultivo. Pretendendo

conhecer seu destino em outro mundo, fica desatento para a sua

felicidade no mundo presente.

O objetivo do autor é chamar o homem à razão tornando-

a querida para ele, ─ para dissipar as nuvens que obscurecem o

caminho da sua felicidade, ─ oferecer reflexões úteis para sua

paz e conforto e favorável ao aperfeiçoamento mental.

Longe de querer destruir os deveres da moralidade, é desejo do

autor lhes dar uma dupla força e estabelecê-los no altar da

virtude, que é a única que merece a veneração da humanidade.

CAPÍTULO I.

DA NATUREZA

O homem é obra da natureza e sujeito às suas leis, das

quais não pode se libertar e nem mesmo, ultrapassar em

pensamento. Como ser formado pela natureza, ele não está

além do grande todo de que é parte. Entidades supostas serem

superiores ou distintas da natureza são meras quimeras, das

quais nenhuma ideia real pode ser formada.

231

O homem é um ser puramente físico. O homem moral é somente

o homem físico considerado de determinado ponto de vista. Sua

organização é trabalho da natureza. Suas ações visíveis e os

movimentos invisíveis são igualmente efeitos naturais e

consequências do seu mecanismo. Suas invenções são efeitos

de sua essência. Suas ideias provêm da mesma causa. A arte é

apenas a natureza agindo por instrumentos que ela mesma fez

para si. Tudo é impulso da natureza.

É para o físico e para a experiência que o homem deve

redirecionar todas as investigações. A natureza age por leis

simples. Quando nós abandonamos a experiência, a imaginação

nos extravia. É por falta de experiência que os homens têm

formado ideias erradas sobre a matéria [NOTA A].

A indolência é gratificada seguindo exemplos, hábitos e

autoridades, ao contrário da experiência que exige atividade ou

razão e esta requer reflexão. Por consequência, aversão a todas

as coisas que se desviam das regras ordinárias e um implícito

respeito pelas instituições antigas: ─ a credulidade procede da

experiência. Consultando a experiência e contemplando o

universo nós achamos apenas matéria e movimento.

CAPÍTULO II

DO MOVIMENTO E SUA ORIGEM

É o movimento que sozinho forma as conexões entre

nossos órgãos e os objetos externos e internos.

A causa é um ser que coloca outro ser em movimento, ou

que produz uma mudança que um corpo efetua sobre outro por

meio do movimento.

232

Nós só conhecemos o modo pelo qual um corpo age em nós

pela mudança que ele produz.

É só através da ação que podemos julgar os movimentos

interiores como os pensamentos e outros sentimentos: Quando

vemos um homem fugindo, concluímos que ele está com medo.

O movimento dos corpos é a consequência necessária de

sua essência. Todo ser tem leis de movimento peculiares a si

mesmo.

Todos os corpos do universo estão em movimento. A

ação é essencial à matéria. Todos os seres nascem, crescem,

diminuem e finalmente perecem. Metais, minerais, etc. estão

todos em ação. As pedras que estão no chão agem sobre ele

pela pressão. O nosso sentido do olfato age sobre as

emanações provenientes de corpos mais compactos.

O movimento é imanente à natureza que é um grande

todo, fora do que não há existência e lhe é essencial. A matéria

move-se por sua própria energia e possui propriedades de

acordo com as quais age.

Atribuindo o movimento da matéria a uma causa, nós

devemos supor que a própria matéria veio a existir: uma coisa

impossível. Uma vez que ela não pode ser aniquilada, como

podemos imaginar que ela teve um começo?

De onde a matéria procede? Ela sempre existiu. Qual é a

causa original do seu movimento? A matéria sempre esteve em

movimento, como o movimento é uma consequência da sua

existência e a existência supõe sempre propriedades no corpo

existente. Desde que a matéria possui propriedades, sua

maneira de agir necessariamente decorre da sua forma de

existência. Logo, um corpo pesado deve cair.

233

CAPÍTULO III

DA MATÉRIA E SEU MOVIMENTO.

As mudanças, as formas e as modificações da matéria

procedem apenas do movimento. Pelo movimento cada corpo na

natureza é formado, mudado, aumentado, diminuído e destruído.

O movimento produz uma perpétua transmigração, troca e

circulação das partículas de matéria. Estas partículas separam-

se para formar novos corpos. Um corpo alimenta outros corpos e

eles, na sequência, devolvem à massa geral os elementos que

tinham emprestado. As estrelas são produzidas pela

combinação de matéria e estes corpos maravilhosos, que o

homem em sua transitória existência, aprecia por apenas um

instante, irão um dia, talvez, serem dissipados pelo movimento.

CAPÍTULO IV

LEIS DO MOVIMENTO COMUNS A TODOS OS SERES ─

ATRAÇÃO E REPULSÃO ─ NECESSIDADE.

Nós consideramos os efeitos como naturais quando nós

vemos a sua causa agente. Quando nós vemos um efeito

extraordinário, de que a causa é desconhecida, nós recorremos

à imaginação, que cria quimeras.

O fim visível de todos os movimentos dos corpos é a

preservação da sua forma atual de existência, atraindo o que é

favorável e repelindo o que lhe é prejudicial. Desde o início da

existência nós experimentamos movimentos peculiares a uma

determinada essência.

Cada causa produz um efeito e não

234

pode haver um efeito sem uma causa. Se cada movimento,

portanto, está imputado a uma causa e essas causas são

determinadas pela sua natureza, essência e propriedades, nós

devemos concluir que elas são todas necessárias e que cada

ser da natureza, em suas dadas propriedades e circunstâncias,

pode apenas agir do modo como age. A necessidade é a

infalível e constante ligação das causas com os seus efeitos e

esse irresistível poder, necessidade universal, é somente a

consequência da natureza das coisas, em virtude de que o todo

age por leis imutáveis. [NOTA B].

CAPÍTULO V

DA ORDEM E DESORDEM ─ INTELIGÊNCIA E ACASO.

A observação dos movimentos regulares da natureza

produz na mente humana a ideia de ordem. Esta palavra

expressa apenas uma coisa relativa a nós mesmos. A ideia de

ordem ou de desordem não é prova de suas existências na

natureza, visto que nela cada coisa é necessária. Desordem em

relação a um ser é nada mais que a sua passagem para uma

nova ordem ou forma de existência. Assim aos nossos olhos, a

morte é a maior de todas as desordens, mas a morte apenas

muda a nossa essência. Nós não estamos menos submetidos às

leis do movimento.

O poder de agir segundo um fim é chamado de

inteligência e esse fim nós conhecemos que o ser possui porque

nós lhe o atribuímos. Nós negamos a sua existência em seres

cuja forma de ação é diferente das nossas.

Quando nós não percebemos a conexão de certos efeitos

com suas causas, nós os atribuímos ao

235

acaso. Quando nós vemos ou pensamos que vemos o que é

chamado de ordem, nós a imputamos a uma inteligência, uma

qualidade emprestada de nós mesmos e da particular forma com

que somos afetados.

Um ser inteligente pensa, deseja e age para chegar a um

fim. Para esse propósito, órgãos e um fim similar ao nosso é

necessário. Eles seriam necessários, acima de tudo, para uma

suposta inteligência que governe a natureza. Assim, sem órgãos

não pode haver ideias, intuição, pensamento, desejo, plano ou

ação. A matéria quando combinada de uma determinada

maneira pressupõe ação, inteligência e vida. [NOTA C].

CAPÍTULO VI

DO HOMEM ─ SUAS DISTINÇÕES FÍSICA E MORAL ─ SUA

ORIGEM.

O homem está sempre sujeito a necessidades ─ Seu

temperamento é independente dele, mas influencia suas

paixões: ─ seu sangue, mais ou menos abundante ou quente,

seus nervos mais ou menos relaxados, os alimentos com os

quais ele se alimenta. Tudo age sobre ele e o influencia.

O homem é um todo organizado, composto de diferentes

matérias as quais agem de acordo com suas respectivas

propriedades. A dificuldade de descobrir as causas de seus

movimentos e ideias produziu a divisão da sua essência em

duas naturezas. Ele inventou palavras porque desconhece as

coisas.

O homem, como toda outra coisa, é produção da

natureza. Qual é sua origem? Nós carecemos de experiência

para responder a questão.

Tem ele sempre existido, ou é uma produção instantânea

da natureza? Ambos os casos são

236

possíveis. A matéria é eterna, mas suas formas e combinações

são transitórias. É provável que tenha sido produzido num

determinado período do nosso globo, em que ele varia, como as

outras de suas produções, de acordo com as variações do clima.

Sem dúvida, foi feito macho e fêmea e existirá enquanto o globo

permanecer no presente estado. Quando o globo mudar, a

espécie humana deverá dar lugar a novos seres capazes de

incorporarem em si próprios as novas qualidades que o globo

então estiver possuindo.

Quando somos incapazes de julgar sobre a produção do

homem, falar em Deus e da criação é apenas confissão da

nossa ignorância da energia da natureza.

O homem não tem o direito de crer que é um ser

privilegiado na natureza. Ele está sujeito às mesmas vicissitudes

das outras produções. A ideia da excelência humana é

simplesmente fundada na parcialidade que o homem sente por

si mesmo.

CAPÍTULO VII

DA ALMA E SUA ESPIRITUALIDADE

O que é chamado de alma move-se conosco. Ora, o

movimento é uma propriedade da matéria. A alma também se

mostra material nos invencíveis obstáculos que ela encontra por

parte do corpo. Se a alma causa o movimento do meu braço

quando não há obstáculo no caminho, isto cessa quando o braço

é pressionado para baixo por um grande peso. Então, aqui é

uma massa de matéria que extingue um impulso dado por uma

causa espiritual que, não sendo conectada com a matéria, não

deveria encontrar resistência nela.

O movimento supõe extensão e solidez no corpo que é

movido. Quando nós atribuímos uma ação a uma causa,

237

nós devemos então considerar esta causa como sendo material.

Quando eu ando adiante, eu não deixo minha alma para

trás. Por conseguinte, a alma possui uma qualidade em comum

com o corpo e peculiar à matéria. A alma constitui uma parte do

corpo e experimenta todas as suas vicissitudes, passando pelo

estado infantil e de debilidade, partilhando de seus prazeres e

dores e com o corpo exibindo marcas de embotamento,

debilidade e morte. Em resumo, é apenas o corpo visto em

relação a algumas de suas funções.

Quer espécie de substância é esta que não pode ser vista

e nem sentida? Um ser imaterial, mas agindo sobre a matéria!

Como pode o corpo encerrar um ser fugidio, que ilude todos os

sentidos?

CAPÍTULO VIII

DAS FACULDADES INTELECTUAIS ─ TODAS DERIVADAS

DA SENSAÇÃO.

Sensação é um modo do ser afetado, peculiar a certos

órgãos dos corpos animados, ocasionado pela presença de um

objeto material. A sensibilidade é o resultado de um arranjo

peculiar aos animais. Os órgãos comunicam entre as

impressões sensíveis.

Cada sensação é um choque dado nos órgãos. A

percepção é aquele choque comunicado ao cérebro. Uma ideia

é a imagem do objeto que ocasionou a sensação e a percepção.

Em vista disso, se os nossos órgãos não se moverem, nós não

podemos ter percepções e nem ideias.

A memória produz imaginações. Formamos um quadro

das coisas que nós temos visto, e, pela imaginação,

transportamo-nos para aquilo que não vemos.

20

238

As paixões são movimentos da vontade determinada

pelos objetos que agem sobre ela, de acordo com a nossa forma

atual de existência.

As faculdades intelectuais atribuídas à alma são

modificações imputadas aos objetos que golpeiam os sentidos.

Logo, uma tremedeira nos membros, quando o cérebro é

afetado pelo movimento, chama-se medo. [NOTE D].

CAPÍTULO IX.

DIVERSIDADE DAS FACULDADES INTELECTUAIS ─ ELAS

DEPENDEM, COMO AS QUALIDADES MORAIS, DAS

CAUSAS FÍSICAS. ─ PRINCÍPIOS NATURAIS DA

SOCIEDADE, MORAIS E POLÍTICOS.

O temperamento decide as qualidades morais. Nós o

herdamos da natureza e dos nossos pais. Suas diferentes

espécies são determinadas pelo ar que respiramos, clima que

habitamos, educação e pelas ideias que esta inspira.

Fazendo a mente espiritual, nós lhe administramos

remédios impróprios. A constituição que pode ser mudada,

corrigida ou modificada, deveria ser o único objeto da nossa

atenção.

O gênio é um efeito da sensibilidade física. É a faculdade

possuída por alguns seres humanos de apreender de relance o

todo e as suas diferentes partes.

Pela experiência nós prevemos os efeitos ainda não

sentidos. Daí a prudência e a previsão. A razão é a natureza

modificada pela experiência.

A finalidade última do homem é a preservação própria e

tornar sua existência feliz. A experiência mostra-lhe a

necessidade que ele tem dos outros para conseguir o seu

objetivo e mostra os meios de torná-los

239

favoráveis a seus desígnios. Ele vê o que é agradável ou

desagradável neles e estas experiências lhe dão a ideia de

justiça, etc. Nem a virtude e nem o vício são fundados em

convenções, mas repousam unicamente em relações

subsistentes entre todos os seres humanos.

Os deveres mútuos dos homens nascem da necessidade

de empregar todos os meios que tendam ao fim proposto pela

natureza. É pela promoção da felicidade dos outros homens que

nós os engajamos na promoção da nossa.

A política poderia ser a arte de direcionar as paixões

humanas ao bem da sociedade. As leis não deveriam ter outro

objetivo que a direção de suas ações para o mesmo objetivo.

A felicidade é o objetivo comum de todas as paixões.

Estas são legítimas e naturais e não podem ser chamadas de

boas ou ruins, salvo quando afetam outros homens. Para

direcionar as paixões à virtude, é necessário mostrar à

humanidade as vantagens resultantes dessas práticas.

CAPÍTULO X.

A MENTE NÃO TIRA IDEIAS DE SI PROPRIA ─ NÓS NÃO

TEMOS IDEIAS INATAS.

Se podemos só formar ideias dos objetos materiais, como

pode a causa das ideias ser presumida como imaterial?

Para isso, os sonhos são colocados como uma objeção,

mas no sono o cérebro está repleto com uma multidão de ideias

que foi recebida quando em vigília: A memória sempre produz

imaginações. A causa dos sonhos deve ser física, porque eles

com frequência procedem da comida, humores e fermentações,

diferentes do estado saudável do homem.

240

As ideias imaginadas como inatas são aquelas que são

familiares e, por assim dizer, incorporadas em nós, mas é

sempre através da mediação dos sentidos que nós as

adquirimos. Elas são o efeito da educação, do exemplo e do

hábito. Tais são as ideias formadas de Deus que evidentemente

procede das descrições dadas dele.

Nossas ideias morais são frutos só da experiência. Os

sentimentos de afeição paternal e filial são o resultado da

reflexão e do habito.

O homem adquire todas as suas noções e ideias. As

palavras "inteligência", "ordem", "virtude", "desgosto", "dor" e

"prazer são, para mim, vazias de sentido, a menos que eu as

compare com outros objetos. O julgamento pressupõe

sensibilidade e o julgamento em si mesmo é fruto de

comparação.

CAPÍTULO XI.

DO SISTEMA DA LIBERDADE DO HOMEM.

O homem é um ser físico, sujeito à natureza e

consequentemente, à necessidade. Nascida sem o nosso

consentimento, a nossa organização é independente de nós e as

nossas ideias nos vêm involuntariamente. A ação é a sequência

de um impulso comunicado por um objeto sensível.

Eu estou sedento e vejo um poço ─ Posso eu mesmo me

impedir de beber água dele? Mas se me contarem que a água

está envenenada, eu me abstenho de beber. Será dito que neste

caso eu sou livre? A sede necessariamente determina-me a

beber. A descoberta do veneno necessariamente determina-me

a não beber. O segundo motivo é mais forte que o primeiro e eu

me abstenho de beber. Mas um homem imprudente,

241

diz-se, beberá. Neste caso, o primeiro impulso pode ser o mais

forte. Em qualquer dos dois casos a ação é necessária. Ele, que

bebe, é um louco, mas as ações dos loucos não são menos

necessárias que as dos outros homens.

Um libertino pode ser persuadido a mudar sua conduta.

Esta circunstância não prova que ele é livre, mas apenas que

motivos suficientes podem ser encontrados para contrapor o

efeito daqueles que anteriormente agiam sobre ele.

Uma escolha de maneira alguma prova a liberdade, visto

que a hesitação só acaba quando a vontade é determinada por

suficientes motivos. E o homem não pode impedir os motivos de

agirem sobre a sua vontade. Quer ele se impedir de desejar

possuir o que pensa ser desejável? Não, mas dizemos, ele pode

resistir o desejo pela reflexão sobre as suas consequências. Mas

tem ele o poder de reflexão? As ações humanas não são nunca

livres. Elas procedem necessariamente da constituição e das

ideias recebidas, fortalecidas pelo exemplo, educação e

experiência. O motivo que determina o homem está sempre

além do seu poder.

Não obstante o sistema da liberdade humana, os homens

têm universalmente fundado seus sistemas apenas na

necessidade. Se os motivos forem pensados como incapazes de

influenciar a vontade, porque fazer uso da moralidade,

educação, legislação e mesmo da religião? Nós estabelecemos

instituições para influenciar a vontade: A prova clara da nossa

convicção que eles devem agir sobre ela. Estas instituições são

necessidades demonstradas ao homem.

A necessidade que governa o mundo físico governa

também o mundo moral, onde cada coisa é também sujeita à

mesma lei.

242

CAPÍTULO XII.

EXAME DAS OPINIÕES QUE DEFENDEM QUE O SISTEMA

DA NECESSIDADE É PERIGOSO.

Se as ações dos homens são necessárias, com que

direito, é perguntado, são os crimes punidos, visto que as ações

involuntárias nunca são objetos de punição?

A sociedade é uma reunião de seres sensíveis suscetíveis

de razão, que amam o prazer e odeiam a dor. Nada mais é

necessário para engajar sua cooperação ao bem-estar geral. A

necessidade é calculada para impressionar todos os homens.

Os maus são loucos, contra os quais, os outros têm o direito de

defenderem-se. Loucura é um estado involuntário e necessário,

entretanto os loucos são confinados. Mas a sociedade não deve

excitar desejos e depois puni-los. Os ladrões são com frequência

aqueles que a sociedade privou dos meios de subsistência.

Atribuindo tudo à necessidade, dizem-nos, as ideias de

justo e injusto, de bom e mal são destruídas. Não. Embora o

homem aja por necessidade, suas ações são justas e boas em

relação à sociedade cujo bem-estar ele promove. Todo homem é

sensível, de maneira que é compelido a amar determinado modo

de conduta em seu vizinho. As ideias de prazer e dor, vício e

virtude são fundadas na nossa própria essência.

O fatalismo não estimula o crime e nem abafa o remorso,

sempre sentido pelos maus. Embora possam ter por muito

tempo escapado da censura e da punição, eles não estão afinal

das contas, melhor satisfeitos consigo mesmos. No meio de

perpétuas aflições, lutas e agitações, não podem encontrar

repouso ou felicidade. Todo crime custa-lhes amargos tormentos

e noites sem sono. O sistema da fatalidade estabelece a

moralidade demonstrando a sua necessidade.

A fatalidade, é dito, desencoraja o homem, paralisa sua

243

mente e quebra os laços que o unem à sociedade. Mas a posse

da sensibilidade depende de mim mesmo? Meus sentimentos

são necessários e fundados na natureza. Embora eu saiba que

todos os homens devem morrer, sou eu nesse caso, menos

afetado pela morte de uma esposa, de um filho, de um pai ou de

um amigo?

O fatalismo deve inspirar no homem uma útil submissão e

resignação ao seu destino. A opinião de que tudo é necessário o

tornará tolerante. Lamentará e perdoará seus companheiros

humanos. Ele será humilde e modesto, sabendo que tem

recebido todas as coisas que possui.

O fatalismo, é dito, rebaixa o homem a uma mera

máquina. Tal linguagem é invenção da ignorância a respeito do

que constitui a verdadeira dignidade. Toda máquina é valiosa

quando executa bem as funções para as quais foi destinada. A

natureza é apenas uma máquina, de que a espécie humana

perfaz uma parte. Seja a alma mortal ou imortal, nós não

admiramos menos a grandeza e a excelência de um Sócrates.

A opinião do fatalismo é vantajosa ao homem. Previne

inúteis remorsos de perturbar a mente. Ensina-lhe a

conveniência de usufruir com moderação, visto que o sofrimento

sempre acompanha o excesso. Ele seguirá os caminhos da

virtude, desde que todas as coisas mostrem-lhe a necessidade

dele se tornar estimável pelos outros e contente consigo mesmo.

244

CAPÍTULO XIII.

DA IMORTALIDADE DA ALMA ─ O DOGMA DO FUTURO

ESTADO ─ O MEDO DA MORTE.

A alma, passo a passo, segue os diferentes estados do

corpo. Com o corpo ela vem à existência, é delicada na infância,

partilha dos prazeres e das dores, seus estados de saúde e de

doença, atividade ou depressão. Com o corpo, fica adormecida

ou acordada. E ainda se a presume imortal!

A natureza inspira ao homem o amor da existência e o

desejo de sua continuação produz a crença da imortalidade da

alma. Supondo que o desejo de imortalidade seja natural, é ele

uma prova de sua realidade? Nós desejamos a imortalidade do

corpo e esse desejo é frustrado. Por que não seria o desejo da

imortalidade da alma também frustrado? A alma é apenas o

princípio da sensibilidade. Pensar, sofrer e desfrutar é sentir.

Então, quando o corpo cessa de viver, ela não pode mais

exercer a sensibilidade. Onde não existem os sentidos, lá não

pode haver ideias. Se a alma percebe apenas por meio dos

órgãos, como então é possível ela sentir depois da dissolução

deles?

Dizem-nos do divino poder, mas o divino poder não pode

fazer uma coisa existir e não existir ao mesmo tempo. Não pode

fazer a alma pensar sem os meios necessários para adquirir os

pensamentos.

A destruição do seu corpo sempre alarma o homem, não

obstante a opinião da imortalidade da alma. Uma prova segura

que ele é mais afetado pela presente realidade do que pela

esperança de um distante futuro.

A verdadeira ideia da morte é revoltante para o homem,

todavia ele faz tudo o que está em seu poder para torná-la mais

horrenda. É um período que nos entrega sem defesa

245

aos indescritíveis horrores de um déspota impiedoso. Isto,

dizem, é o mais forte muro contra as desordens humanas. Mas

que efeito tem essas ideias produzidas naqueles que são ou ao

menos pretendem ser persuadidos de sua verdade? A maioria

da humanidade raramente pensa nelas. Nunca, quando

apressados pelas paixões, preconceitos ou exemplos. Se elas

produzem algum efeito, é só naqueles a quem elas são

necessárias em apressar para o bem e reter do mal. Elas

enchem os corações dos bons homens de terror, mas não têm a

menor influência sobre os maus.

Homens maus podem ser encontrados entre os infiéis,

mas infidelidade de modo algum implica maldade. Pelo contrário,

o homem que pensa e medita, melhor conhece os motivos para

ser bom do que aquele que se permite ser conduzido cegamente

pelos motivos dos outros. O homem que não espera outro

estado de existência é o mais interessado em prolongar a sua

vida e se fazer querido pelos seus companheiros homens no

único estado de existência que lhe é familiar. O dogma de um

estado futuro destrói a nossa felicidade nesta vida. Nós

afundamos em calamidade e permanecemos no erro, na

esperança de ser feliz daqui por diante.

O estado presente tem servido como modelo do futuro.

Nós sentimos prazer e dor, logo céu e inferno. Um corpo é

necessário para usufruir das delícias celestes, então o dogma de

uma ressurreição.

Mas de onde surgiu a ideia do inferno? Porque, como

uma pessoa doente que se agarra mesmo a uma miserável

existência, o homem prefere uma vida de sofrimento à

aniquilação, que ele considera e maior das calamidades. Além

disso, esta noção é confirmada pela ideia da divina misericórdia.

Por uma feliz inconsistência os homens não se desviaram

em

246

suas condutas dessas insolentes ideias, porque os terrores

imputados a um futuro estado são tão fortes que eles afundariam

em brutalidade e o mundo se tornaria um deserto.

Embora este dogma possa operar sobre as paixões, nós

vemos menos homens maus entre aqueles que são os mais

firmemente persuadidos desta verdade? Os homens que

pensam ser restringidos por esses terrores, imputam a eles

efeitos só atribuíveis a motivos presentes, tais como timidez e

apreensão das consequências de uma má ação praticada. Pode

o medo de um distante futuro coibir o homem em quem uma

imediata punição não produz efeito?

A própria religião destrói o efeito desses terrores. A

remissão dos pecados estimula o homem mau até o seu último

momento. Este dogma é consequentemente, oposto ao anterior.

Os inspiradores desses terrores admitem serem eles

ineficazes. Os sacerdotes estão continuamente lamentando que

o homem esteja sempre apressado com as suas viciosas

inclinações. Em resumo, para um homem tímido que é

restringido por esses terrores, há milhões a quem tornam

ferozes, imprestáveis e maus e desviam dos seus deveres para

com a sociedade, a que eles estão continuamente

atormentando.

CAPÍTULO XIV.

DA EDUCAÇÃO ─ MORALIDADE E LEIS SUFICIENTES

PARA RESTRINGIR O HOMEM ─ DESEJO DE

IMORTALIDADE ─ SUICÍDIO.

Deixe-nos não procurar motivos para agir neste mundo

num distante futuro. É à experiência e à verdade

247

que devemos recorrer, providenciando remédios para os males

que ocorrem na nossa espécie. Ai também deve ser procurado

aqueles motivos que dão ao coração inclinações úteis à

sociedade.

A educação, acima de tudo, dá à mente hábitos úteis ao

indivíduo e à sociedade. Os homens não têm necessidade de

recompensas celestiais e nem de punições sobrenaturais.

Um governo firme não precisa de fábulas em seu apoio.

Presentes, recompensas e punições são mais eficazes do que

aquelas do futuro e apenas elas devem ser empregadas. O

homem é em toda a parte um escravo e consequentemente,

vazio de honra: baixo, interesseiro e dissimulado. Existem os

vícios dos governos. O homem é em qualquer lugar enganado e

impedido de cultivar a sua razão. Consequentemente é estúpido

e não razoável. Em todo lugar ele vê vícios e crimes serem

honrados e então conclui que a prática do vício leva à felicidade

e a da virtude leva ao sacrifício para si mesmo. Em toda parte

ele é miserável e compelido a ofender o seu próximo que podia

fazer feliz. O céu está além da sua vista e a terra prende sua

atenção. Aqui ele deseja em todos os eventos ser feliz. Se a

humanidade fosse mais feliz e melhor governada, não haveria

necessidade de lançar mão à fraude para governá-los.

Motivar o homem a ver este estado como o único capaz

de torná-lo feliz, limitar suas esperanças para esta vida em vez

de entretê-lo com histórias sobre o futuro. Mostrar-lhe o efeito

das suas ações sobre os seus vizinhos, excitar sua operosidade,

recompensar seus talentos, fazê-lo ativo, laborioso, benevolente

e virtuoso, ensiná-lo a estimar a afeição dos seus

contemporâneos e deixá-lo conhecer as consequências do ódio

deles.

Ainda que grande possa ser o medo da morte, desgostos,

aflições mentais e desgraças motivam em nós

248

algumas vezes a considerá-la como um refúgio da injustiça

humana.

O suicídio tem sido diversamente considerado. Alguns

imaginam que o homem não tem direito de quebrar o contrato

pelo qual ele entrou na sociedade. Mas examinando as

conexões que subsistem entre o homem e a natureza, eles não

acharão nada de voluntário por uma parte e nem de recíproca da

outra. A vontade do homem não teve participação na sua vinda

ao mundo e ele vai embora daí contra a sua inclinação. Todas

essas ações são compulsórias. Ele pode apenas amar a

existência na condição de que ela lhe faça feliz.

Examinando o contrato do homem com a sociedade, nós

devemos encontrar que ele é condicional e recíproco e supõe

mútuas vantagens para as partes contratantes. A conveniência é

o vínculo da conexão. Está quebrado? O homem desde esse

momento torna-se livre. Poderíamos nós censurar o homem que,

achando-se destituído dos meios de subsistência na cidade,

retira-se para o campo? Aquele que morre, apenas retira-se para

a solidão.

A diferença de opinião sobre isto como também em outros

assuntos é necessária. O suicídio lhe dirá que nesta situação,

sua conduta poderia ser precisamente similar. Mas para estar na

situação do outro, nós devemos possuir sua organização,

constituição e paixões. Ser, em resumo ele mesmo, colocado

nas mesmas circunstâncias e excitado pelos mesmos motivos.

Essas máximas podem ser consideradas perigosas, mas

máximas sozinhas não levam os homens a adotar resoluções

extremas. É uma constituição estimulada pelo desgosto, uma

organização defeituosa, um desarranjo da máquina. Em uma

palavra: a necessidade. A morte é o recurso de que a virtude

oprimida nunca deveria ser despojada.

249

CAPÍTULO XV.

DO INTERESSE DO HOMEM, OU DAS IDEIAS QUE ELE

FORMA DA FELICIDADE ─ SEM VIRTUDE ELE NÃO PODE

SER FELIZ.

O interesse é o objeto a que cada homem, de acordo com

a sua constituição, prende a felicidade. A mesma felicidade não

é apropriada a todos os homens, porque cada homem depende

de sua particular organização. Então pode ser fácil conceber que

em seres com tais diferenças particulares, o que constitui o

prazer de um homem, pode ser indiferente, ou mesmo

desgostoso para outro. Nenhum homem pode decidir o que

constituirá a felicidade do seu próximo.

Compelidos, entretanto, a julgar as ações pelos seus

efeitos em nós mesmos, aprovamos o interesse que as anima,

de acordo com a vantagem que produzem na espécie humana.

Então, admiramos o valor, a generosidade, os talentos e a

virtude. É da natureza do homem amar a si mesmo, preservar

sua existência e torná-la feliz. A experiência e a razão logo o

convencem que não pode sozinho controlar os meios de

alcançar a felicidade. Ele vê outros seres humanos engajados no

mesmo objetivo, mas capazes de assisti-lo na obtenção do seu

desejado objeto. Percebe que eles favorecerão os seus

propósitos somente na medida em que os seus coincidam com

os interesses deles mesmos. Concluirá então, que para

assegurar a sua própria felicidade, deve granjear a amizade, a

aprovação e a assistência deles e fazê-los encontrar vantagens

em promover os seus objetivos. A procura dessas vantagens

para a humanidade constitui a virtude. O homem sábio encontra

nisto o seu interesse de ser virtuoso. Virtude é nada mais do que

a arte de fazer um homem feliz contribuindo

250

para a felicidade dos outros. O mérito e a virtude estão fundados

na natureza e nas carências do homem.

O homem virtuoso é sempre feliz. Em cada face ele lê o

direito que adquiriu sobre o coração do outro. O vício é

compelido a se render à virtude, cuja superioridade ele

embaraçadamente reconhece. Pode um homem virtuoso

algumas vezes fatigar-se no desdém e na obscuridade, mas a

justiça de sua causa lhe traz consolação da injustiça humana.

Esta consolação é negada para os malvados cujos corações

estão cheios de ansiedade, vergonha e remorso.

CAPÍTULO XVI.

AS OPINIÕES ERRÔNEAS CONCEBIDAS PELO HOMEM

SOBRE A FELICIDADE SÃO A VERDADEIRA CAUSA DA

SUA MISÉRIA

Nada pode ser mais inútil do que declamações de uma

sombria filosofia contra o amor do poder, da grandeza, das

riquezas ou do prazer. Toda coisa que promete vantagens é um

natural objeto de desejo.

A autoridade paternal, aquelas de hierarquia, riquezas,

gênios e talentos são fundados sobre essas vantagens. É

apenas por conta das vantagens que elas produzem que as

ciências são estimáveis. Os reis, os ricos e os grandes homens

podem nos enganar pela exibição e esplendor, mas é apenas

pelos seus benefícios que eles têm poder legítimo sobre nós.

A experiência nos ensina que as calamidades da

humanidade tiveram origem nas opiniões religiosas. A ignorância

das causas naturais criou deuses e a impostura os fez terríveis.

O homem vivia infeliz porque lhe foi dito que Deus o tinha

condenado à miséria. Ele nunca teve vontade de quebrar as

suas

251

correntes, porque foi ensinado que a estupidez, a renúncia à

razão, a brutalidade mental e a humilhação espiritual eram os

meios de obter a felicidade eterna. Os reis, transformados pelos

homens em deuses, pareciam herdar o direito de governar. E a

política tornou-se a arte fatal de sacrificar a felicidade de todos

ao capricho de um indivíduo.

A mesma cegueira impregnou a ciência da moralidade.

Em vez de fundá-la na natureza do homem e as relações que

subsistem entre ele e seus companheiros, ou sobre os deveres

resultantes daquelas relações, a religião estabeleceu uma

imaginária conexão entre o homem e seres invisíveis. Os

deuses, sempre pintados como tiranos tornaram-se o modelo da

conduta humana. Quando o homem ofendia o seu próximo,

pensava que tinha ofendido a Deus e acreditava que podia

pacificá-lo com presentes e humildade. A religião corrompeu a

moralidade e as expiações de piedade completaram sua

destruição. Os remédios religiosos eram desgostosos às paixões

humanas porque impróprios à natureza do homem. Mas eles

eram chamados de divinos. A virtude parecia odiosa ao homem

porque era representada para ele como inimiga do prazer. Na

observância dos seus deveres, ele nada via senão o sacrifício de

todas as coisas agradáveis. E os motivos reais da persuasão de

tais sacrifícios nunca lhe eram mostrados. O presente prevalece

sobre o futuro, o visível sobre o invisível. O homem tornou-se

mal porque o que lhe era contado é que para usufruir a

felicidade era necessário que assim fosse.

Devotos melancólicos acham que os objetos dos desejos

humanos são incapazes de satisfazer o coração e rebaixam-nos

como perniciosos e abomináveis. Cegos médicos que tomam o

estado natural do homem por doença! Proíba o homem de amar

e desejar e você o arranca do seu ser! Mande-o odiar-se e

desprezar-se e você lhe retira os mais fortes motivos para a

virtude.

252

A despeito das nossas queixas contra a sorte há muitos homens

felizes no mundo. Também se acha no mundo soberanos

ambiciosos em fazer nações felizes. Elevadas almas que

encorajam o gênio, socorrem a indigência e desejam atrair a

admiração.

A pobreza em si mesmo não é excluída da felicidade. O

homem pobre, habituado ao trabalho, conhece as doçuras do

repouso. Com limitado conhecimento e poucas ideias, ele tem,

todavia poucos desejos.

A soma total do bom excede a do mal. Não há felicidade

no atacado, posto que bastante no varejo. No total do curso da

vida de um homem poucos dias são de total infelicidade. O

hábito alivia o peso das tristezas e aflições suspensas são

prazeres. Cada carência, no momento de sua gratificação, torna-

se um prazer. A falta de dor e de doença é um estado feliz que

nós usufruímos sem perceber. A esperança ajuda-nos a suportar

as calamidades. Em resumo, o homem que pensa ser o mais

infeliz, não vê a aproximação da morte sem terror, a menos que

o desespero tenha, a seus olhos, desfigurado o todo da

natureza. Quando a natureza nos nega qualquer prazer, ela

deixa aberta uma porta para a nossa partida. E por que não

faríamos nós uso disto? É porque nós ainda achamos um prazer

na existência.

CAPÍTULO XVII.

ORIGEM DAS NOSSAS IDEIAS A RESPEITO DA DIVINDADE.

O mal é necessário ao homem, visto que sem ele não se

saberia o que é o bem. Sem o mal o homem não teria escolha,

vontade, paixões, inclinações e nem poderia ter motivos para

amar

253

ou odiar. Ele então seria um autômato e não mais um homem.

O mal que vê no universo sugere ao homem a ideia da

divindade. A multidão de males, tais como as pragas, as fomes,

terremotos, as inundações e conflagrações o aterrorizam. Mas

que ideias ele formaria da causa que produz tais efeitos? O

homem nunca imaginou a natureza como a causa das

calamidades que o tem afligido. Não achando agente na terra,

capaz de produzir tais efeitos, ele direcionou sua atenção para o

céu, residência imaginada de seres cuja inimizade destruía sua

felicidade neste mundo.

O terror era sempre associado com a ideia desses

poderosos seres.

A partir dos objetos conhecidos os homens julgam os

desconhecidos. Para toda causa desconhecida que atuava

sobre ele o homem deu uma vontade, inteligência e paixões

similares às suas. Ele mesmo influenciado por submissão e

presentes, empregou-os para ganhar os favores da divindade.

Os negócios relativos a essas oferendas foram confiados

a homens idosos e muita cerimônia foi usada para executá-los.

As cerimônias continuaram e tornaram-se costumes. Daí,

portanto, a introdução no mundo da religião e da classe

sacerdotal.

A mente do homem (cuja essência é trabalhar

incessantemente objetos desconhecidos para atribuir-lhes

consequências que não serão examinadas friamente mais tarde)

logo modificou esses sistemas.

Por uma necessária consequência dessas opiniões, a

natureza foi logo despida de todo poder. O homem não podia

conceber a possibilidade de a natureza permitir o seu

sofrimento, igualmente sujeita ela própria a um poder inimigo da

sua felicidade e interessado em puni-lo e afligi-lo.

254

CAPÍTULO XVIII.

DA MITOLOGIA E TEOLOGIA.

Originalmente o homem venerava a natureza. Falava-se

alegoricamente de todas as coisas e todas as partes da natureza

eram personificadas. Daí um Saturno, Júpiter, Apolo, etc. O povo

não percebia que era a natureza e suas partes que alegorizava.

A origem de onde esses deuses foram tirados foi logo

esquecida. Um ser incompreensível foi formado do poder da

natureza e convidado a se mover. Assim a natureza separou-se

de si mesma e foi considerada como uma massa inanimada,

incapaz de ação.

Foi necessário atribuir qualidades a esse poder motriz.

Este ser, ou posteriormente, espírito, inteligência, ser incorporal,

isto é, substância diferente de qualquer uma que conhecemos,

não era vista por ninguém. Os homens só podiam atribuir-lhe as

suas próprias qualidades. O que eles chamavam de perfeições

humanas, foi o modelo em miniatura da perfeição da Divindade.

Mas por outro lado, em vista das calamidades e

desordens a que o mundo estava tão sujeito, por que não

atribuir-lhe malícia, imprudência e capricho? Esta dificuldade foi

então removida criando inimigos para ela. Esta é a origem dos

anjos rebeldes. Não obstante seu poder, ela não pode subjugá-

los. Ela foi compreendida estar na mesma situação em relação

aos homens que o ofendiam.

Tendo então, em sua própria opinião, dado conta

satisfatoriamente da miséria humana, outra dificuldade ocorreu.

Não podia ser negado, que os homens justos eram por vezes

incluídos nas punições de Deus.

Foi então dito que por causa do pecado humano

255

Deus podia vingar-se no inocente, como aqueles príncipes maus

que proporcionam uma punição maior em vista da grandeza e

poder da parte ofendida do que a magnitude e realidade da

ofensa. Os piores homens e os piores governos tirânicos têm

sido os modelos de uma divindade e de sua divina

administração.

CAPÍTULO XIX.

OPINIÕES TEOLÓGICAS ABSURDAS E EXTRAORDINÁRIAS.

Dizem para nós que Deus é bom, mas Deus é o autor de

todas as coisas. Todas as calamidades que afligem a

humanidade devem, é claro, ser atribuídas a ele. Bom e mal

supõe dois princípios: Se há um só, ele deve alternadamente ser

bom e mau.

Deus, dizem os teólogos, é justo e o mal é um castigo

para as injúrias que os homens tem feito a ele. Para haver

ofensa supõem-se a existência de conexões entre o ofensor e

parte ofendida. Ofender é causar dor, mas como pode uma fraca

criatura como o homem, que recebe sua própria existência de

Deus, agir contra um poder infinito que nunca consente com o

pecado ou a desordem?

A justiça supõe a disposição de dar a cada indivíduo o

que lhe é devido, mas nos é dito que Deus não nos deve nada e

que, sem prejuízo à sua equidade, pode jogar o trabalho de sua

mão num abismo de miséria. São ditos que os males são

apenas temporários: seguramente então, eles são injustos

durante certo tempo. Deus castiga seus amigos para o bem

deles, mas se Deus é bom, pode permitir que sofram, mesmo

por um momento? Se Deus é onisciente, por que tentar os

amigos

256

de quem sabe não haver nada a temer? Se onipotente, por que se perturba com pequenas intrigas levantadas contra si?

Qual bom homem não deseja tornar seus colegas felizes?

Porque Deus não faz o homem feliz? Nenhum homem tem razão

de estar contente com o seu quinhão. O que pode ser dito disso

tudo? Os julgamentos de Deus são impenetráveis. Neste caso

como podem os homens pretender raciocinar sobre ele? Desde

que imperscrutável com que fundamento pode uma única virtude

ser-lhe atribuída? Que ideia nós podemos formar de uma justiça

que não apresenta semelhança com a do homem?

É dito que sua justiça é balanceada com sua misericórdia,

mas sua misericórdia derroga a sua justiça. Se imutável, pode

ele por um momento alterar seus desígnios?

Deus, dizem os padres, criou o mundo para sua própria glória. Mas, já superior a tudo, estava faltando alguma coisa à sua glória? O amor da glória é o desejo de ser diferenciado para melhor entre nossos iguais. Se Deus é suscetível disto, por que permite qualquer um abusar de seus favores? Ou por que os seus favores são insuficientes para nos fazer agir de acordo com os seus desejos? Porque me tem feito um agente livre. Mas por que me conceder uma liberdade que sabe que eu vou abusar?

Em consequência desta liberdade, os homens serão

eternamente punidos no outro mundo pelas faltas que eles

cometeram nesta vida. Mas por que punir eternamente as faltas

de um momento? O que pensaríamos de um rei que punisse

eternamente um de seus súditos, que num momento de

embriaguez tivesse ofendido o seu orgulho, sem, entretanto

fazer-lhe alguma injúria real e houvesse ele mesmo o

alcoolizado? Consideraríamos nós o monarca como todo

poderoso se ele fosse obrigado a permitir que todos os seus

súditos, com exceção de poucos amigos fieis, insultassem suas

leis e mesmo sua própria pessoa e contrariassem-lhe em todas

as medidas?

257

É dito que as qualidades de Deus são tão diferentes das

qualidades do homem e tão eminentes, que nenhuma

semelhança qualquer que seja subsiste entre elas. Mas, neste

caso como podemos formar alguma ideia delas? Por que então

a teologia ousa anunciá-las?

Mas Deus tem falado e se fez conhecido ao homem.

Quando e para quem? Onde estão esses divinos oráculos? Em

absurdas e contraditórias compilações onde o Deus da

sabedoria fala uma obscura, insidiosa e boba linguagem, onde o

Deus da benevolência é cruel e sanguinário, onde o Deus da

justiça é injusto, parcial e ordena iniquidades e onde o Deus da

misericórdia decreta a mais horrenda punição para as vítimas da

sua cólera.

As relações subsistentes entre Deus e o homem apenas

podem ser fundadas em qualidades morais. Mas se o homem é

ignorante dessas qualidades, como podem elas servir de modelo

à sua conduta? Como é possível a ele imitá-las?

Não há proporção entre Deus e o homem e onde falta

proporção, não pode haver relações. Se Deus é incorpóreo,

como pode ele agir sobre os corpos? Como podem os corpos

agir sobre ele, fazendo-lhe ofensas, perturbando seu repouso e

excitando sua cólera? Se o oleiro estiver desgostoso com a má

aparência das vasilhas que fabricou, a quem ele culpará senão a

si próprio?

Se Deus não deve nada ao homem, o homem deve-lhe

igualmente pouco. As relações devem ser recíprocas e os

deveres fundados em mútuas necessidades. Se estas não têm

valor para Deus, ele não deve nada por elas e o homem não

pode ofendê-lo. A autoridade de Deus pode ser apenas fundada

sobre o bem que ele outorga aos homens. E seus deveres

devem repousar apenas sobre os favores que eles esperam

dele. Se Deus não deve a felicidade ao homem, toda relação

entre eles está aniquilada.

258

41

Como podemos reconciliar as qualidades imputadas a

Deus com seus atributos metafísicos? Como pode um puro

espírito agir como homem, um ser corpóreo? Um puro espírito

não pode ouvir nossas preces e nem ser sensibilizado com as

nossas misérias. Se imutável, ele não pode mudar. Se toda a

natureza sem ser Deus, pode existir em ligação com ele, ele não

pode ser infinito. Se ele ou consente ou não pode impedir os

males e as desordens do mundo, ele não pode ser onipotente.

Ele não pode estar em todo lugar, se ele não está no homem

quando o homem comete pecado, ou sai dele no momento da

perpetração.

Uma revelação provaria a malícia na Divindade. Ela

supõe que a Divindade tem por muito tempo negado ao homem

um conhecimento necessário à sua felicidade. Se esta revelação

é feita só a um pequeno número, caracteriza uma parcialidade

inconsistente com a sua justiça. A revelação destruiria a

imutabilidade de Deus porque supõe que ele tenha feito num

período que desejou não fazer em outro. Que espécie de

revelação é essa, que não pode ser entendida? Se apenas um

homem for incapaz de entendê-la, essa circunstância sozinha é

suficiente para condenar Deus por injustiça.

CAPÍTULO XX.

EXAME DAS PROVAS DO DR. CLARKE SOBRE A

EXISTÊNCIA DE UMA DIVINDADE.

É dito que todos os homens acreditam na existência de

uma divindade e a voz da natureza, sozinha, é suficiente como

prova. Esta é uma ideia inata.

Mas o que prova essa ideia ser adquirida é a natureza da

opinião que varia de época em época e de nação a nação. Que

isto é infundado é

259

42

evidente pelo fato de que os homens têm aperfeiçoado cada ciência que possui um propósito real, enquanto a ciência de Deus tem estado sempre quase no mesmo estado. Não há assunto sobre o qual os homens mantenham tal variedade de opiniões.

Admitindo-se que cada nação tenha uma forma de adoração, esta circunstância de maneira alguma prova a existência de Deus. A universalidade de uma opinião não prova a sua verdade. Todas as nações não têm acreditado na existência de feitiçaria e de visagens? Antes de Copérnico, todos os homens não acreditavam que a terra era imóvel e que o sol girava em torno dela?

As ideias de Deus e de suas qualidades são fundadas apenas nas opiniões de nossos pais, infundidas em nós pela educação, pelos hábitos contraídos na infância e fortalecidas pelo exemplo e pela autoridade. Daí a opinião que todos os homens nascem com uma ideia da Divindade. Nós retemos essas ideias sem nunca ter refletido sobre elas.

O Dr. Clarke tem alegado os mais fortes argumentos que até agora foram trazidos em suporte da existência de uma Divindade. Suas proposições podem ser reduzidas nas seguintes:

1: ―Alguma coisa tem existido desde toda eternidade‖. Sim, mas o que é ela? Por que não a matéria em vez do espírito? Quando uma coisa existe, a existência deve ser essencial para ela. Aquilo que não pode ser aniquilado necessariamente existe: tal é a matéria. A matéria então sempre existiu.

2: ―Um ser independente e imutável tem existido desde toda eternidade‖.

Em primeiro lugar o que é este ser? É ele independente de sua própria essência? Não, porque ele não pode fazer os seres que produziu agirem de modo não coerente com as propriedades das suas produções. Um corpo apenas depende de outro, até onde ele deve sua existência

260

e sua forma de ação a este. Apenas a esse título pode a matéria

ser dependente. Mas a matéria é eterna e não pode dever sua

existência a outro ser. E, se é eterna e auto-existente, é evidente

que, em virtude dessas qualidades, contem dentro de si todas as

coisas indispensáveis para a ação. A matéria sendo eterna, não

tem necessidade de um criador.

É este ser imutável? Não, como tal, um ser não poderia

desejar e nem produzir ações sucessivas. Se este ser criou a

matéria, houve um tempo em que foi resolvido que a matéria não

deveria existir e outro tempo em que foi resolvido que ela

deveria. Este ser, portanto, não pode ser imutável.

3: ―Este ser eterno, imutável e independente é auto-

existente‖. Mas visto que a matéria é eterna, por que não

poderia ela ser auto-existente?

4: ―A essência de um ser auto-existente é

incompreensível‖. Verdade e tal é a essência da matéria.

5: ―Um ser necessariamente auto-existente é

necessariamente eterno‖. Mas teria aquela propriedade em

comum com a matéria. Por que então separar este ser do

universo?

6: ―O ser auto-existente deve ser infinito e presente em

todos os lugares‖. Infinito! Que seja, mas nós não temos razão

para pensar que a matéria seja finita. Presente em todos os

lugares! Não, a matéria certamente ocupa uma parte do espaço

e daquela parte, ao menos, a Divindade deve ser excluída.

7: ―O ser necessariamente auto-existente deve ser um".

Sim, se nada pode existir fora ele, mas pode alguém negar a

existência do universo?

8: ―O ser auto-existente é necessariamente inteligente‖.

Mas a inteligência é uma qualidade humana. Pensamentos e

sentidos são necessários para se ter inteligência. Um ser que

tem sentidos é material e não pode ser puro espírito. Mas este

ser, este grande todo,

261

44

possui uma particular inteligência que o coloca em movimento?

Desde que a natureza contenha seres inteligentes, por que

despi-la de inteligência?

9: ―O ser auto-existente é um agente livre‖. Mas Deus não

tem dificuldade em executar seus planos? Deseja ele a

continuação do mal ou não o pode impedir? Nesse caso ele, ou

permite o mal, ou não é livre. Deus só pode agir de acordo com

as leis da sua essência. Sua vontade é determinada pela

sabedoria e pelas qualidades que lhe são atribuídas: ele não é

livre.

10: ―A causa suprema de todas as coisas possui infinito

poder‖. Mas se o homem é livre para cometer pecado o que

acontece com o poder infinito de Deus?

11: ―O autor de todas as coisas é necessariamente sábio‖.

Se ele é o autor de todas as coisas, é autor de muitas coisas

que consideramos tolas.

12: ―A causa suprema necessariamente possui todas as

perfeições morais‖. A ideia de perfeição é abstrata. É relativa ao

nosso modo de perceber que a coisa pareça perfeita para nós.

Quando nos machucamos em seus trabalhos e forçados a

lamentar os males que sofremos, julgamos Deus perfeito? É ele

assim a respeito de seus trabalhos, onde geralmente vemos

confusão misturada com ordem?

Se for alegado que nós não podemos conhecer Deus e

que nada de positivo pode ser dito sobre ele, nós bem podemos

estar autorizados a duvidar da sua existência. Se

incompreensível, podemos nós ser censurados de não

compreendê-lo?

É dito para nós que o senso comum e a razão são

suficientes para demonstrar a sua existência. Mas também nos

dizem que nesses assuntos a razão é uma guia infiel. A

convicção, além disso, é sempre o efeito da evidência e da

demonstração.

262

CAPÍTULO XXI.

EXAME DAS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE UMA DIVINDADE.

Nenhuma variedade, é dito, pode surgir da cega

necessidade física, que deve sempre ser uniforme e que a

variedade que nós vemos ao nosso redor pode proceder apenas

da vontade e das ideias de um ser necessariamente existente.

Por que esta variedade não surgiria de causas naturais da

automática matéria, cujo movimento junta e combina vários e

análogos elementos? Não é um pão de forma produzido pela

combinação de farinha, fermento e água? Necessidade cega é o

nome que nós damos a um poder com cuja energia nos é

desconhecido.

Mas, é dito, que os movimentos regulares e a admirável

ordem do universo e os benefícios concedidos diariamente ao

homem, anunciam sabedoria e inteligência. Esses movimentos

são efeitos necessários das leis da natureza que nós chamamos

de boas ou de ruins dependendo de como eles nos afetam.

É alegado que os animais são uma prova da poderosa

causa que os criou. O poder da natureza não pode ser duvidado.

São os animais, pela harmonia de suas partes, trabalho de um

ser invisível? Eles estão continuamente mudando e finalmente

morrem. Se Deus não pode formá-los de outro modo, ele não é

livre e nem poderoso. Se ele muda de ideia ele não é imutável.

Se ele permite que as máquinas que criou sensíveis

experimentem tristeza, é destituído de bondade. E se não pode

fazer seu trabalho mais durável é deficiente em habilidade.

O homem que pensa ser ele o principal trabalho na

natureza prova ou a malícia ou a incapacidade do seu pretenso

autor. Sua máquina é mais sujeita a desarranjos do que a dos

outros seres. Quem, na

263

perda de um objeto amado não preferiria ser um animal ou uma

pedra do que ser humano? Melhor ser uma rocha inanimada do

que um devoto tremendo debaixo do jugo do seu Deus e

prevendo ainda maiores tormentos num estado futuro de

existência.

É possível, perguntam os teólogos, conceber um universo

sem um criador que cuide da sua obra? Mostre uma estátua ou

um relógio a um selvagem que nunca os tenha visto e ele

concluirá rapidamente ser o trabalho de um habilidoso artista.

1: A natureza é muito poderosa e laboriosa, mas estamos

pouco familiarizados com a maneira pela qual ela tanto forma

uma pedra ou um mineral, como um cérebro organizado como o

de Newton. A natureza pode fazer todas as coisas e a existência

de qualquer coisa prova por si mesma ser uma das suas

produções. Deixe-nos não concluir que os trabalhos que mais

nos espantam não são da sua produção.

2: O selvagem para quem o relógio foi mostrado, ou terá

ideia da operosidade humana ou não. Se tiver, considerará

imediatamente ser a produção de ser da sua própria espécie. Se

não, nunca pensará ser o trabalho de um ser como ele próprio.

Em consequência, atribuirá isso a um gênio ou espírito, isto é, a

um desconhecido poder que ele supõe capaz de produzir efeitos

para além dos efeitos produzidos pelos humanos. Com isso o

selvagem provará apenas sua ignorância do que o homem é

capaz de executar.

3: Abrindo e examinando o relógio, o selvagem perceberá

que isto deve ser um trabalho do homem. Perceberá

imediatamente sua diferença dos trabalhos presentes na

natureza, a qual ele nunca viu produzir rodas de um metal

polido. Mas nunca irá supor que um trabalho material seja a

produção de ser imaterial. Investigando o mundo, nós vemos a

causa material de seus fenômenos e a esta causa é a

264

natureza, cuja energia é conhecida daqueles que a estudam.

Não nos aleguem que nós, desse modo, atribuímos a tudo

causas cegas e a um concurso fortuito dos átomos. Nós

chamamos essas causas de cegas quando delas somos

ignorantes. Atribuímos os efeitos ao acaso quando nós não

percebemos a ligação que os conecta às suas causas. A

natureza não é uma causa cega e nem age pelo acaso. Todas

as suas produções são necessárias e sempre o efeito de leis

fixas. Aí pode haver a ignorância da nossa parte, mas as

palavras "Espírito", "Deus", "Inteligência", não irão remediar, mas

apenas aumentar a ignorância.

Esta é uma resposta suficiente para a eterna objeção feita

pelos partidários da natureza de atribuírem tudo à contingência.

O acaso é uma palavra vazia de sentido e somente expõe a

ignorância daqueles que a usam. Dizem para nós que o trabalho

regular não pode ser formado pela combinação do acaso, que

um poema épico, como a Ilíada, nunca pode ser produzido pelas

letras lançadas juntas aleatoriamente. Certamente que não. É a

natureza que combina, de acordo com leis fixas, uma cabeça

organizada capaz de produzir tal trabalho. A natureza dá tal

temperamento e organização a um cérebro que, formada a

cabeça como a de Homero e colocada nas mesmas

circunstâncias, deve necessariamente produzir um poema igual

à Ilíada, a menos que seja negado que as mesmas causas

produzem os mesmos efeitos.

Tudo é efeito da combinação da matéria. As mais

admiráveis de suas produções que contemplamos são apenas

os efeitos naturais de suas partes diferentemente arranjadas.

[NOTA E].

265

CAPÍTULO XXII.

DO DEÍSMO, OTIMISMO E CAUSAS FINAIS.

Admitindo a existência de um Deus e mesmo supondo-o

possuir intenções e inteligência, o que resulta para a

humanidade? Que conexão pode subsistir entre nós e tal ser?

Os bons ou maus efeitos procedentes da sua onipotência e

providência poderão ser outros que os da sua sabedoria, justiça

e eternos decretos? Podemos supor que ele mudará os seus

planos a nosso respeito? Vencido pelas nossas preces, fará o

fogo parar de queimar ou impedirá uma construção que desaba,

de esmagar aqueles que passam em baixo? O que podemos

perguntar a esse Deus, se ele é compelido a dar um livre curso

aos eventos que ele próprio ordenou? A oposição de nossa

parte seria loucura.

Por que privar-me de meu Deus, diz o feliz entusiasta,

que me favorece e a quem eu vejo como um benevolente

soberano que me protege? Por que, diz o infortunado homem,

privar-me do meu Deus cuja consoladora ideia seca minhas

lágrimas?

Eu respondo perguntando-lhes onde eles acham a

bondade que atribuem a Deus? Para cada ser humano feliz

quantos desgraçados não vemos? É ele bom para todos os

homens? Quantas calamidades nós não vemos diariamente

enquanto ele é surdo às nossas preces? Todo homem, por

conseguinte, deve julgar sobre a Divindade, de acordo como é

afetado pelas circunstâncias.

Julgando todas as coisas boas no mundo, onde o bom

está necessariamente acompanhado do mal, os otimistas

parecem ter renunciado a evidência dos sentidos. O bom é, de

acordo com eles, a finalidade do todo. Mas o todo não pode ter

uma finalidade. Se tivesse, cessaria de ser o todo.

266

Deus, dizem alguns homens, sabe como nos beneficiar

pelos males que nos permite sofrer nesta vida. Mas, como eles

sabem disto? Visto que nos tem tratado mal nesta vida, que

segurança nós temos de um melhor tratamento num futuro

estado? O que de bom é possível resultar de pragas e fomes

que devastam a terra? É necessário criar outro mundo para

justificar a Divindade da culpa pelas calamidades que nos faz

sofrer no presente.

Alguns homens supõem que a Divindade, depois de criar

a matéria do nada, abandonou-a para sempre ao seu primeiro

impulso. Estes homens apenas querem um Deus para produzir a

matéria e o supõem viver em completa indiferença ao destino da

sua obra. Semelhante Deus é um ser completamente inútil para

o homem.

Outros têm imaginado obrigações para serem devidas

pelo homem ao seu Criador. Outros supõem que, em

consequência da sua justiça, ele recompensará e punirá. Fazem

do seu Deus um homem. Mas estes atributos contradizem um ao

outro porque, supondo ser ele o autor de todas as coisas, deve

consequentemente ser o autor do bem e mal. Nós podemos

acreditar igualmente em tudo.

É nos perguntado, Gostaria você de depender da cega

natureza do que de um bom, sábio e inteligente ser?

Objeção 1: O nosso interesse não determina a realidade

das coisas. 2: Este ser tão supereminentemente sábio e bom é

apresentado para nós como um tirano tolo. E seria melhor para o

homem depender da cega natureza do que de semelhante ser.

3: A natureza, quando bem estudada, nos ensina os meios de

sermos felizes, tanto quanto a nossa essência nos permita. Ela

nos informa os meios apropriados de alcançar a felicidade.

267

CAPÍTULO XXIII.

EXAME DAS SUPOSTAS VANTAGENS QUE RESULTAM PARA O HOMEM DAS NOÇÕES DE UMA DIVINDADE, OU

SUA INFLUÊNCIA SOBRE OS PRINCÍPIOS MORAIS, CIÊNCIA POLÍTICA, O BEM ESTAR DAS NAÇÕES E DOS

INDIVÍDUOS.

Originalmente a moralidade, tendo somente por objeto a auto-preservação do homem e seu bem estar na sociedade, nada teve com os sistemas religiosos. O homem, de sua própria mente, determinou os motivos para moderar suas paixões, resistir às viciosas inclinações e tornar-se útil e estimável a todos de quem constantemente achou-se em necessidade.

Os sistemas que pintam Deus como um tirano não podem tomá-lo como objeto de imitação para o homem. Eles descrevem-no como ciumento, vingativo e interesseiro. Nesses sistemas a religião divide os homens. Eles disputam e perseguem-se uns aos outros e nunca censuram a si próprios pelos crimes cometidos em nome de Deus.

O mesmo espírito impregna a religião. Lá nós não ouvimos nada a não ser sobre vítimas. E mesmo o puro espírito dos cristãos tem que ter o seu próprio filho assassinado para aplacar sua fúria.

O homem requer uma moralidade fundada sobre a natureza e a experiência.

Achamos virtude real entre os padres? São esses homens, tão firmemente persuadidos da existência de Deus, menos viciados no deboche e na intemperança? Examinando sua conduta, estamos aptos a pensar que estão desenganados de suas opiniões sobre a Divindade.

Faz sentido a ideia de uma recompensa e castigo como imposição divina àqueles príncipes, que derivam seu poder, como eles pretendem da própria Divindade? São aqueles monarcas maus e sem remorsos, que espalham

268

destruição ao seu redor, ateus? Eles chamam a Divindade por

testemunha no mesmo momento em que estão para violar seus

juramentos.

Os sistemas religiosos têm melhorado a moral do povo? A

religião, na opinião deles, substitui tudo. Seus ministros

contentes em dar suporte a dogmas e ritos, úteis a seu próprio

poder, multiplicam as enfadonhas cerimônias com a intenção de

tirar proveito, pelas transgressões de seus escravos a elas. Olhe

o trabalho da religião e da classe sacerdotal como uma venda de

favores dos céus! As palavras sem significado, "impiedade",

"blasfêmia", "sacrilégio" e "heresia", foram inventadas pelos

padres e esses pretensos crimes têm sido punidos com as

maiores severidades.

Qual deve ser o destino da juventude com tais

preceptores? Desde a infância a mente humana é envenenada

com noções incompreensíveis e perturbada por fantasmas que o

gênio é constrangido a uma mecânica devoção e o homem

completamente predisposto contra a razão e a verdade.

A religião forma os cidadãos, pais e maridos? Ela é

colocada acima de tudo. Ao fanático é dito que ele deve

obedecer a Deus e não ao homem. Em consequência, quando

ele pensa estar agindo pela causa celeste, ele se rebelará contra

o seu país e abandonará sua família.

Onde a educação se dirige para assuntos úteis,

incalculáveis benefícios podem resultar daí para a humanidade.

Não obstante a sua educação religiosa quantos homens estão

sujeitos a hábitos criminosos. A despeito de um inferno tão

tórrido até mesmo na descrição, que multidão de abandonados

criminosos enche as nossas cidades. Esses homens podiam

recuar com horror daquele que expressa alguma dúvida da

existência de Deus. Do templo onde sacrifícios foram feitos,

oráculos divinos proferidos e o vício denunciado em nome do

céu, todo homem retorna aos seus antigos procedimentos

criminosos.

269

Os ladrões condenados e assassinos são ambos ateus ou

descrentes? Esses desgraçados acreditam em Deus. Eles

ouviram continuamente falar dele e nem lhes é desconhecida a

punição que ele destinou aos crimes. Mas um escondido Deus e

uma distante punição são insuficientes para reprimir crimes que

os castigos presentes e certos nem sempre impedem.

O homem que tremeria no ato de cometer o menor crime

na presença de todos, não hesita um momento quando ele

imagina a si mesmo visto apenas por Deus. Tão fraca é a ideia

da divindade quando oposta às paixões humanas.

O mais religioso pai, quando aconselha seu filho, lhe fala

de um Deus vingativo? Sua constituição destruída pela

depravação, sua fortuna arruinada pelo jogo e o desprezo da

sociedade: estes são os temas que ele emprega.

A ideia de um Deus é desnecessária e contrária a uma

saudável moralidade. Ela não consegue a felicidade da

sociedade e nem a dos indivíduos. Os homens que sempre se

ocupam com fantasmas, vivem em perpétuo terror. Eles

negligenciam seus mais importantes assuntos e passam uma

miserável existência em gemidos, orações e expiações

Eles imaginam que satisfazem a Deus se sujeitando a

todo mal. Que proveito a sociedade deduz das noções lúgubres

desses loucos piedosos. Eles são ou misantropos sem serventia

para si próprios e para o mundo ou fanáticos que perturbam a

paz das nações. Se as ideias religiosas consolam uns poucos

entusiastas tímidos e pacatos, elas tornam miseráveis durante a

vida milhões de outros, infinitamente mais consistentes com

seus princípios. O homem que pode estar tranquilo debaixo de

um terrível Deus deve ser um ser destituído de razão.

270

CAPÍTULO XXIV.

AS PONIÕES RELIGIOSAS NÃO PODEM SER O

FUNDAMENTO DA MORALIDADE. ― PARALELO ENTRE A

RELIGIÃO E A MORALIDADE NATURAL. ― A RELIGIÃO

IMPEDE O PROGRESSO DA MENTE.

Opiniões arbitrárias e inconsistentes, noções

contraditórias, especulações abstratas e ininteligíveis

especulações não podem nunca servir como fundamentação da

moralidade, que deve repousar sobre princípios claros e

evidentes, deduzidos da natureza do homem e fundados sobre a

experiência e a razão. A moralidade é sempre uniforme e nunca

segue a imaginação, as paixões ou interesses do homem. Ela

deve ser estável e igual para todos os homens, nunca variando

com o tempo e o lugar. A moralidade, sendo a ciência dos

deveres do homem que vive em sociedade, deve ser fundada

nos sentimentos inerentes à nossa natureza. Em uma palavra,

sua base deve ser a necessidade.

A teologia está errada supondo que carências mútuas, o

desejo de felicidade e os evidentes interesses das sociedades e

dos indivíduos são motivos insuficientes para influenciar o

homem. Os ministros da religião sujeitam a moralidade às

paixões humanas fazendo-a fluir de Deus. Eles construíram a

moralidade sobre o nada ao fundarem-na sobre uma quimera.

As ideias concebidas de Deus, devido aos diferentes

pontos de vista nos quais ele é olhado, variam com a fantasia de

cada homem, de tempos em tempos e de um país para outro.

Compare a moralidade da religião com a da natureza e

elas serão achadas essencialmente diferentes. A natureza

convida os homens a amarem-se uns aos outros, a preservarem

a sua existência e aumentarem a sua felicidade. A religião

ordena-os a amar um terrível Deus, a odiar-se a si mesmo e

sacrificar suas mais preciosas

271

alegrias da alma a um medonho ídolo. A natureza convida o

homem a consultar sua razão: A religião lhe diz que a razão é

uma guia falível. A natureza convida-o procurar pela verdade: A

religião lhe proíbe toda investigação. A natureza convida o

homem a ser sociável e amar seus vizinhos: A religião ordena-

lhe fugir da sociedade e se sequestrar do mundo. A natureza

aprecia a delicadeza e a afeição para com o marido: A religião

considera o matrimônio como um estado de impureza e

corrupção. A natureza convida o homem mau a resistir às suas

tendências vergonhosas como destrutivas à felicidade: A

religião, enquanto proíbe o crime, promete perdão ao criminoso

pela sua humilhação perante os seus ministros, pelos sacrifícios,

ofertas, cerimônias e preces.

A mente humana pervertida pela religião tem dificilmente

avançado um único passo em direção ao aperfeiçoamento. A

lógica tem sido regularmente empregada para provar os mais

palpáveis absurdos. A teologia tem inspirado reis com falsas

ideias de seus direitos, dizendo-lhes que o seu poder procede de

Deus. As leis tornaram-se sujeitas aos caprichos da religião. A

Física, a Anatomia e a História Natural estavam autorizadas a

olharem apenas com os olhos da superstição. Os mais claros

fatos eram refeitos quando inconsistentes com as hipóteses

religiosas.

Questões da filosofia natural, esclarecidas afirmando-se

que fenômenos tais como os vulcões e as enchentes são prova

da indignação Divina? Em vez de atribuir as guerras e as fomes

à cólera de Deus, não seria mais proveitoso mostrar aos homens

que elas procedem de seu próprio desatino e da tirania de seus

príncipes? Os homens então teriam procurado um remédio para

seus males e um melhor governo. A experiência convenceria o

homem da ineficácia dos jejuns, preces, sacrifícios e procissões,

que nunca produziram nada de bom.

272

CAPÍTULO XXV.

DAS IDEIAS QUE SÃO DADAS DA DIVINDADE, O HOMEM NÃO PODE CONCLUIR NADA ― SEU ABSURDO E

INUTILIDADE.

Supondo a existência de uma inteligência como aquela apresentada pela Teologia, deve ser reconhecido que nenhum homem tem até agora correspondeu aos desejos da providência. Deus deseja ser conhecido dos homens, mas até mesmo os teólogos não podem formar alguma ideia dele. Admitindo que eles tenham formado uma ideia, que seu ser e atributos são evidentes para eles, o resto da humanidade goza das mesmas vantagens?

Poucos homens são capazes de uma constante e profunda meditação. As pessoas comuns de ambos os sexos, condenados a trabalhar para a subsistência, nunca refletem. As pessoas da alta sociedade, as mulheres e as pessoas jovens de ambos os sexos, ocupadas apenas com suas paixões e prazeres, pensam tão pouco quanto o vulgo. Não há talvez dez homens em um milhão que tenham seriamente perguntado a si mesmos, o que entendem por Deus. E ainda menos pessoas podem ser achadas que tenham feito um problema da existência da divindade. Todavia a convicção supõe evidência, que sozinha produz a certeza. Quem são os homens que estão convencidos da existência de Deus? Nações inteiras cultuam Deus na autoridade de seus pais e de seus padres. Confidência, autoridade e hábito estão no lugar da convicção e da prova. Tudo repousa sobre a autoridade. A razão e a investigação estão universalmente proibidas.

A convicção da existência de um Deus, tão importante para todos os homens, é reservada apenas aos padres e aos inspirados? Achamos nós entre eles a mesma unanimidade que com aqueles ocupados em estudar o conhecimento das artes úteis? Se Deus deseja

273

ser conhecido de todos os homens, por que não se mostra para o mundo todo em uma menos equívoca e mais convincente maneira do que tem feito até aqui, nessas relações que parecem acusá-lo de parcialidade? As fábulas e as metamorfoses são os únicos meios de que ele pode dispor? Por que não ter seu nome, atributos e vontade escritos em caracteres legíveis a todos os homens?

Pela imputação de qualidades contraditórias nele, os teólogos têm colocado seu Deus em uma situação em que ele não pode agir. Admitindo que ele exista com tais extraordinárias e contraditórias qualidades, nós não podemos reconciliar com o senso comum e nem com a razão, a conduta e a adoração prescrita em relação a ele.

Se infinitamente bom, por que temê-lo? Se infinitamente sábio, por que nos interessamos pela nossa sorte? Se onisciente, por que contar-lhe as nossas necessidades ou fatigá-lo com as nossas súplicas? Se ele está em todos os lugares, por que construir templos para ele? Se senhor de tudo, por que fazer-lhe sacrifícios e oferendas? Se justo, de onde nasceu a crença que punirá o homem que ele próprio criou fraco e delicado? Se onipotente, como pode ser ofendido e contrariado? Se razoável, por que se zangar com uma criatura cega como o homem? Se imutável, por que pretendemos mudar seus decretos? E se inconcebível, por que se atrever a formar alguma ideia dele?

Mas se, de outro modo, ele é irascível, vingativo e mal, nós não estamos obrigados a oferecer-lhe nossas orações. Se um tirano, como podemos nós amá-lo? Como pode um senhor ser amado pelos seus escravos a quem permite ofendê-lo ou que possa ter o prazer de puni-los? Se todo poderoso, como pode o homem fugir de sua cólera? Se imutável, como pode o homem escapar a seu destino?

Então, de qualquer ponto de vista que considerarmos Deus, nós não poderemos render-lhe preces e adoração.

Mesmo admitindo a existência de uma divindade, cheia de

274

equidade, razão e benevolência, o que poderia um virtuoso ateu

temer se inesperadamente se encontrasse na presença de um

ser, de que, durante a vida, tivesse tido dele uma opinião

errônea e o negligenciado?

Oh Deus, ele poderia dizer, inconcebível ser que não

pude descobrir. Perdão, que o limitado entendimento que me

deste foi inadequado à tua descoberta. Como eu poderia

descobrir a tua espiritual essência só com a ajuda dos sentidos?

Eu não poderia submeter minha mente ao jugo dos homens, que

confessadamente, não mais esclarecidos do que eu, concordam

somente entre eles em convidar-me a renunciar a razão que tu

me deste. Mas, oh Deus, se tu amas tuas criaturas, eu também

os tenho amado. Se a virtude te agrada, meu coração sempre a

honrou. Eu tenho consolado o aflito e nunca devorei a comida do

pobre. Eu tenho sido sempre justo, generoso e compassivo.

A despeito da razão, os homens são frequentemente

trazidos de volta aos preconceitos da infância pelas doenças.

Isto é muito comum no caso das pessoas doentes. À

aproximação da morte, eles tremem porque a máquina está

enfraquecida. Estando o cérebro incapaz de executar suas

funções, eles caem em delírios. Os nossos sistemas

experimentam as mudanças do nosso corpo.

275

CAPÍTULO XXVI.

APOLOGIA PARA OS SENTIMENTOS CONTIDOS NESTA OBRA.

Os homens tremem ao próprio nome de ateísmo. Mas o

que é um ateu? O homem que traz de volta a humanidade à

razão e a experiência, destruindo preconceitos prejudiciais à sua

felicidade. Que não tem necessidade de recorrer a poderes

sobrenaturais para explicar os fenômenos da natureza.

É loucura, dizem os teólogos, supor movimentos

incompreensíveis na natureza. É loucura preferir o conhecido ao

desconhecido? Consultar a experiência e a evidência dos

nossos sentidos? Dirigirmo-nos à razão e preferir seus oráculos

à decisão dos sofistas que se confessam mesmo ignorar o Deus

que anunciam?

Quando vemos padres tão zangados com opiniões ateus,

nós não deveríamos suspeitar da justiça de sua causa? Tiranos

espirituais! São vocês que tem difamado a Divindade, sujando-o

com o sangue dos desgraçados! Vocês são os verdadeiros

ímpios. A impiedade consiste em insultar o Deus em quem se

acredita. Aquele que não acredita em Deus, não pode injuriá-lo e

não pode naturalmente ser ímpio.

De outro modo, se a piedade consiste em servir o seu

país, sendo útil aos próximos e observando as leis da natureza,

um ateu é piedoso, honesto e virtuoso quando sua conduta é

regulada pelas leis que a razão e a virtude lhe prescrevem.

Dizem-nos que os homens que têm motivo para esperar

uma felicidade futura nunca caem no ateísmo. Sozinhos, os

interesses das paixões e o medo da punição fazem ateus. Mas

os homens cujo empenho em esclarecer a razão, que estampam

cada ideia de virtude,

276

não estão contados entre os rejeitam a existência de um estado

futuro por medo de seus castigos.

É verdade que o número de ateus é incalculável porque o

entusiasmo tem ofuscado a mente humana e o progresso do

erro tem sido tão grande que poucos homens têm a coragem de

pesquisar a verdade. Se, por ateus são significados aqueles

que, guiados pela experiência e evidência dos seus sentidos,

não vêem nada na natureza senão o que realmente existe, se

por ateus são significados os filósofos naturais que pensam que

todas as coisas podem ser julgadas pelas leis do movimento

sem ter que recorrer a um poder quimérico e se por ateus são

significados aqueles que não conhecem o que um espírito é e

rejeitam um fantasma cujas qualidades contrárias apenas

perturbam a humanidade: Sem dúvida, há muitos ateus e o

número deles seria maior, se o conhecimento da física e a

saudável razão fossem mais disseminados no geral.

Um ateu não acredita na existência de um Deus. Nenhum

homem pode ter certeza da existência de um ser inconcebível

em que qualidades inconsistentes são ditas estar unidas. Neste

sentido, muitos teólogos poderiam ser ateus, como também

aqueles seres crédulos, que se prostram diante de um ser, do

qual eles não têm outra ideia, a não ser aquela dada a eles por

homens que declaradamente não compreendem nada dele

também.

277

CAPÍTULO XXVII.

O ATEÍSMO É COMPATÍVEL COM UMA MORALIDADE SAUDÁVEL?

Embora o ateu negue a existência de um Deus, não nega

a sua própria existência e nem a dos outros homens. Ele não

pode negar a existência de relações que subsistem entre os

homens e nem os deveres que necessariamente resultam

dessas relações. Não pode duvidar da existência da moralidade

ou da ciência das relações que subsistem entre os homens que

vivem em sociedade. Embora possa algumas vezes parecer

esquecer os princípios morais, daí não decorre que eles não

existam. Ele pode agir sem consistência com os seus princípios,

mas o infiel filosófico não é tanto objeto de temor quanto um

entusiástico padre. Embora o ateu não creia na existência de um

Deus, pode ser pensado que se permitirá excessos perigosos e

se sujeitar a punições?

Se os homens poderiam ser mais felizes sob um príncipe

ateu do que sob um tirano crente que continuamente presenteia

os sacerdotes? Não deveríamos temer querelas religiosas do

último? Não deveria o nome de Deus, de que o monarca

aproveita-se, algumas vezes servir como desculpa para as

perseguições do tirano? Não esperaria ele ao menos achar na

religião o perdão para os seus crimes?

Muita inconveniência pode surgir fazendo a moralidade

depender da existência de um Deus. Quando as mentes

corruptas descobrem a falsidade dessas suposições, pensarão

que a virtude em si mesma, como uma divindade, é uma mera

quimera e não verão razão de praticá-la na vida. Portanto, é

como seres que vivem em sociedade que estamos ligados pela

moralidade. Nossos deveres devem sempre ser os mesmos,

quer um Deus exista ou não.

Se alguns ateus negam a existência do bem e

278

do mal, isto apenas prova a própria ignorância deles. Um

sentimento natural compele o homem amar o prazer odiar a dor.

Pergunte ao homem que nega a existência da virtude ou do

vício, se ele ficaria indiferente ao ser roubado, caluniado, traído

ou insultado? Sua resposta provará que ele faz uma distinção

entre as ações dos homens, que as distinções de bem e mal não

dependem das convenções humanas e de ideias sobre

divindade e não dependem de recompensas ou punições de um

futuro estado de existência.

O ateu, acreditando apenas na vida presente, pelo menos

deseja viver feliz. O Ateísmo, diz Bacon, torna o homem

prudente enquanto limita sua visão para esta vida. Os homens

acostumados ao estudo e à meditação nunca são maus

cidadãos.

Alguns homens, desenganados eles mesmos em assuntos

religiosos, pretextam que a religião é útil para o povo, visto que

sem isto, ele não poderia ser governado. Mas a religião tem uma

influência útil nos costumes populares? Ela escraviza sem fazer

obedientes. Ela faz idiotas, cuja única virtude consiste na cega

submissão às inúteis e bobas cerimônias, para as quais mais

consequências estão ligadas do que à virtude real ou à pura

moralidade. As crianças ficam amedrontadas por terrores

imaginários apenas por um momento. É somente mostrando aos

homens a verdade que eles podem apreciar o valor da virtude e

achar motivos para cultivá-la.

É principalmente entre as nações onde a superstição,

ajudada pela autoridade, faz seu pesado jugo ser sentido e

abusa imprudentemente de seu poder, que o número de ateus é

considerável. A opressão infunde energia na mente e ocasiona

uma rigorosa investigação das causas dos seus males. A

calamidade é um poderoso incentivo, estimulando a mente para

o lado da verdade.

279

CAPÍTULO XXVIII.

OS MOTIVOS QUE LEVAM AO ATEÍSMO ― PODE ESTE

SISTEMA SER PERIGOSO?

Que interesse, somos perguntados, podem ter os homens

de negar a existência de Deus? Mas não são as tiranias

exercidas em seu nome e a servidão em que os homens gemem

sob os padres, motivos suficientes à determinação do exame

das pretensões de uma classe que ocasiona tanto mal ao

mundo? Pode haver motivo mais forte do que o incessante medo

excitado pela crença em um ser que se irrita com os nossos

mais secretos pensamentos, a quem nós podemos ofender sem

querer, que nunca está contente conosco, que dá ao homem

más inclinações, que pode puni-lo por elas e que eternamente

pune os crimes de um momento?

O deísta nos dirá que apenas pintamos a superstição.

Mas tal suposição nunca provará a existência de uma divindade.

Se o Deus da superstição é um ser desagradável, o Teísmo

deve ser sempre inconsistente e impossível.

O devoto corrompido acha na religião mil pretextos para

ser mal. O ateu não tem um disfarce para cobrir sua vingança e

fúria.

Nenhum ateu sensível pensa que as ações cruéis

causadas pela religião são capazes de justificação. Se o ateu é

um homem mal, ele sabe quando está cometendo algo errado.

Nem Deus e nem seus sacerdotes podem então persuadi-lo que

agiu apropriadamente.

A indecente e criminal conduta de seus ministros, dizem

alguns homens, não prova nada contra a religião. Não pode a

mesma coisa ser dita de um ateu com bons princípios e uma

péssima prática? O Ateísmo, é dito, destrói a força das

promessas, mas o perjúrio é

280

bastante comum nessas nações que se vangloriam de sua

piedade. São os mais santos reis fiéis às suas promessas?

Algumas vezes a própria religião não concede a dispensa delas,

especialmente quando o perjúrio é benéfico à santa causa? Os

criminosos se abstêm de juramentos quando necessário à sua

justificação? As promessas são bobas formalidades que nem se

impõem aos vilões e nem acrescentam nada aos compromissos

dos homens bons.

Tem sido perguntado se já existiu um povo que não tenha

tido alguma ideia de Deus e se poderia existir uma nação ateia.

Um tímido e ignorante animal como o homem

necessariamente torna-se supersticiosos sob calamidades. Ou

ele próprio cria um Deus ou toma o que lhe é oferecido por

outro. Mas o selvagem não extrai a mesma conclusão da

existência de seus deuses que o cidadão civilizado. Uma nação

de selvagens se contenta com uma rude adoração e nunca

raciocina sobre a Divindade. Apenas nos Estados civilizados é

que os homens sutilizam essas ideias.

Uma numerosa sociedade sem religião, moralidade,

governo, leis ou princípios, sem dúvida alguma não pode existir,

visto que isto seria apenas um agrupamento de homens

mutuamente dispostos a se ofenderem. Mas, apesar de todas as

religiões do mundo, não estão as sociedades humanas quase

nesse estado? Uma sociedade de ateus, governada por boas

leis cujas recompensas estimulem a virtude e cujas punições

detenham os crimes, poderia ser infinitamente mais virtuosa do

que essas sociedades religiosas, nas quais todas as coisas

tendem a perturbar a mente e a depravar o coração.

Nós não podemos esperar remover de uma nação inteira

suas ideias religiosas, porque elas foram inculcadas desde a

mais tenra infância. Mas o vulgo, em longo prazo, pode colher

vantagens de trabalhos que a princípio não faz ideia.

281

O Ateísmo, tendo a verdade do seu lado, irá gradualmente

insinuar-se na mente e tornar-se familiar ao homem.

CAPÍTULO XXIX.

RESUMO DO SISTEMA DA NATUREZA.

Oh tu, diz a Natureza, que de acordo com o impulso que

eu te dei, tende a todo instante para a felicidade, não resistas à

minha soberana lei. Trabalhe para a tua felicidade. Desfrute sem

medo. Seja feliz.

Retorna, oh devoto, à natureza. Ela irá banir do teu

coração os terrores que estão te esmagando. Cessa de

contemplar o futuro. Vive para ti mesmo e para os teus

próximos. Eu aprovo os teus prazeres enquanto eles não

machucarem a ti e nem aos outros que eu tenho tornado

necessários à tua felicidade.

Deixa o teu interesse pela humanidade no destino do teu

próximo. Considere que, como ele, tu podes um dia ser

miserável. Seca as lágrimas da desolada virtude e da inocência

ofendida. Deixa o moderado fervor da amizade e a estima de

uma companhia amada fazerem com que esqueças as dores da

vida.

Sê justo, visto que a equidade sustenta a raça humana.

Sê bom porque a bondade ganha qualquer coração. Sê

indulgente porque tu vives entre seres fracos como tu mesmo.

Sê modesto porque o orgulho machuca o amor próprio de todo

ser humano. Perdoa as injustiças porque a vingança eterniza o

ódio. Faze o bem a quem te injuria que tu te podes mostrar

maior que ele e ganhar a sua amizade. Sê moderado,

temperado e casto porque a voluptuosidade, a intemperança e

282

o excesso destroem teu ser e te tornam desprezível.

Sou eu que puno os crimes deste mundo. O homem

malvado pode escapar às leis humanas, mas da minha ele não

pode nunca fugir. Abandona-te para a intemperança e o homem

não te punirá, mas eu te punirei encurtando tua existência. Se

dedicado ao vício, tu perecerás debaixo dos teus fatais hábitos.

Príncipes, cujo poder ultrapassa as leis humanas, tremem sob

mim. Eu os puno infundindo-lhes a suspeita e o terror em suas

mentes. Olhe no coração desses criminosos cujos semblantes

sorridentes escondem uma alma angustiada. Vê o avaro

cobiçoso, desfigurado e emagrecido, gemendo debaixo da

riqueza adquirida com o sacrifício de si mesmo. Observe o

sibarita voluptuoso entortar-se sob uma alquebrada constituição.

Vê o ódio mútuo e desdenhoso que subsiste entre um casal

adúltero! A mentira desposada de toda confiança. O gelado

coração da ingratidão que nenhum ato de amabilidade pode

dissolver. A alma pétrea do monstro que, à vista do

desafortunado, nunca o suavizou. A vingança alimentando em

seu peito víboras roedoras que a consomem! Inveje, se tu te

atreves, o sono do assassino, do iníquo juiz ou do opressor

cujos sofás estão rodeados pelos archotes das fúrias. Mas não!

A humanidade te obriga a partilhar dos seus merecidos

tormentos. Comparando-te com eles e achando o teu peito o

domicílio constante da paz, tu acharás um motivo de auto-

congratulação. Finalmente, Observe o decreto do destino cheio

de abundância. Ele deseja que a virtude nunca seja deixada de

sem recompensas, mas o crime será sempre a sua própria

punição.

283

NOTAS.

NOTA A. ― CAPÍTULO I.

Os homens têm caído em mil erros, ao atribuir existência

distinta de nós mesmos aos objetos de nossas percepções

interiores, da mesma maneira como nós as concebemos em

separado. Em consequência, tornou-se importante examinar a

natureza das distinções que subsistem nesses objetos.

Algumas dessas são tão distintas das outras que elas não

podem existir juntas. A superfície de um corpo não pode, ao

mesmo tempo, ser branco e preto em todas as suas partes. E

nem pode um corpo ser mais ou menos extenso que outro das

mesmas dimensões. Deste modo, duas ideias distintas

necessariamente excluem uma à outra, desde que a existência

de uma delas necessariamente infira a não existência da outra e

consequentemente, sua própria separada e independente

existência. Esta classe eu chamo de real ou de existências

exclusivas.

Mas há outra classe que, em oposição à anterior, eu

chamo de fictícias ou de existências imaginárias. Enquanto um

corpo está passando de uma cor ou forma para outra, nós

sucessivamente experimentamos diferentes sensações, mas é

evidente que nós permanecemos o mesmo, sendo apenas o

corpo que muda de cor ou de forma. Mas o corpo não é a sua

cor e nem a sua forma, visto que ele pode existir sem eles e

ainda assim ser o mesmo corpo. Nem é a forma ou figura de um

corpo sua cor, movimento, extensão ou dureza, porque essas

qualidades são distintas umas das outras e nenhuma delas pode

existir separa e independe do resto. Mas como elas podem

existir juntas,

284

elas não são distintas como aquelas que não podem existir

juntas ao mesmo tempo. Elas não podem ter uma separada e

distinta existência dos corpos de que são propriedades. O

mesmo poder pelo que o corpo branco existe é aquele pelo qual

sua brancura também existe. O que nós chamamos de brancura

não pode existir por si mesmo, separado de um corpo. Esta é a

distinção entre coisas capazes de serem separadas, embora

achadas unidas e que, embora excitando em nós diferentes

impressões, podem, todavia, ser consideradas separadamente e

tornarem-se distintos objetos de percepção. Esta classe de

objetos imaginários ou fictícios, existindo apenas em nossa

própria mente, não devem ser confundidos com a primeira

classe de objetos que tem uma real, exclusiva e independente

existência própria.

Inumeráveis erros têm surgido pela confusão dessas

distinções. Nas matemáticas, por exemplo, nós ouvimos, a todo

o momento, sobre pontos e linhas, ou extensões sem

comprimento e superfícies tendo comprimento e largura sem

profundidade, embora os próprios geômetras confessem que tais

corpos não existem e nem podem existir senão na mente,

enquanto cada corpo na natureza é verdadeiramente extenso

em todos os sentidos. Materialistas inexperientes têm caído em

grossos absurdos por tomarem como reais e com distintas

existências as diferentes propriedades da extensão,

separadamente consideradas pelos matemáticos. Desse modo

eles formam um mundo de átomos ou de pequenos corpos sem

volume e extensão, todavia possuindo infinita dureza e uma

grande variedade de formas. Corpos como esses podem apenas

existir nas mentes dos atomistas.

Se mesmo homens competentes podem ser

desajeitadamente enganados não distinguindo entre a existência

real de corpos externos e a existência fictícia de percepções

existentes somente na mente, não é de se admirar que uma

multidão de erros possa nascer,

285

em se comparando não só aquelas percepções em si mesmas,

mas mesmo nas suas mútuas relações umas com as outras.

Eu não digo que as sensações possam existir separadas

de nós mesmos. Os sentimentos de prazer e dor, embora não

distintos de quem os sente, certamente são da minha mente que

os percebe, reflete e compara-os com outras sensações. Como

o sentimento da real existência é mais claro que o imaginário ou

fictício, nós imaginamos, que uma similar distinção existe entre

todos os objetos que a mente concebe. Portanto, as operações

da mente e suas diferentes propriedades têm sido consideradas

como seres reais, como tantas entidades que tendo existências

reais em si mesmas e adquirido assim uma existência física que

não possuem por si mesmas. Em consequência, nossa mente

tem sido diferenciada de nós mesmos como a parte é do seu

todo. A própria mente tem sido separada da alma ou daquilo que

anima, daquilo que nos faz viver. Uma distinção tem sido feita na

mente entre o entendimento e a vontade. Em outras palavras,

entre aquilo que percebe e aquilo que deseja e aquilo que

deseja e aquilo que não deseja. As nossas percepções têm sido

discriminadas de nós mesmos e umas das outras. Assim são os

pensamentos, ideias, etc. que não são nada senão a própria

faculdade de percepção vista em relação a algumas de suas

funções. Tudo isto, entretanto, são apenas modificações da

nossa essência e não mais distintas delas mesmas e nem de

nós do que a extensão, a solidez, a forma, a cor, o movimento

ou repouso são distintos do corpo a que pertencem. Mas,

distinções absolutas têm sido feitas entre elas e têm sido

consideradas como tantas pequenas entidades das quais nós

formamos uma montagem. De acordo, entretanto, com esses

filósofos, nós somos compostos de milhares de pequenos

corpos, tão distintos uns dos outros como as

286

69

diferentes árvores de uma floresta, cada um dos quais existe por

um particular e independente poder!

Com relação às coisas realmente distintas de nós, não

apenas suas propriedades, mas mesmo as relações dessas

propriedades têm sido diferenciadas delas mesmas e umas das

outras e para estas uma real existência tem sido dada. Foi

observado que os corpos agem, batem e se repelem uns aos

outros e, em consequência de suas ações e reações, mudanças

são produzidas neles. Quando, por exemplo, eu ponho minha

mão no fogo, eu sinto o que é chamado de calor. Neste caso, o

fogo é a causa e o calor é o efeito. Para abreviar a linguagem,

foram inventados termos gerais aplicados a ideias particulares

de natureza similar. O corpo que produz a mudança em outro foi

chamado de causa e o corpo que sofre a mudança de efeito.

Como esses termos produzem na mente alguma ideia de

existência, ação, reação e mudança, o hábito de usá-los faz os

homens acreditarem que eles têm uma clara e distinta

percepção deles. Pelo contínuo uso dessas palavras, os homens

finalmente acreditaram que aí pode existir uma causa, sem uma

substância e sem um corpo. A causa, embora distinta de toda

matéria, sem ação ou reação, mas capaz de produzir todo

presumível efeito.

287

NOTA B. ― CAPÍTULO IV.

As mudanças são produzidas nos corpos pelas suas

ações e reações uns sobre os outros. O mesmo corpo que agora

no presente é uma causa foi previamente um efeito. Ou, em

outras palavras: o corpo que produz uma mudança em outro, por

ação sobre ele, passou ele mesmo por uma mudança pela ação

de outro corpo. Um corpo pode, em relação a outros, ser ao

mesmo tempo causa e efeito. Enquanto eu empurro um corpo

com um bastão, o movimento do bastão que é o efeito do meu

impulso, é a causa da progressão do corpo que é empurrado. A

palavra "causa" apenas denota a percepção da mudança que

um corpo produz em outro, considerado em relação ao corpo

que produz isso. E a palavra "efeito" significa nada mais que a

percepção da mesma mudança considerada relativamente ao

corpo que sofre isso. O absurdo da suposição da existência de

causas independentes e absolutas que não são e nem podem

ser efeitos, deve parecer óbvio em toda compreensão imparcial.

A progressão infinita de corpos que têm estado em

sucessão, causa e efeito, logo fatigou os homens desejosos de

descobrir a causa geral para todos os efeitos particulares. Todos

eles de uma vez, por conseguinte, subiram à primeira causa

imaginada ser universal em relação à que todas as causas

particulares são efeitos, embora não ela mesma o efeito de

alguma causa. A única ideia que eles podem apresentar dela é

que produziu todas as coisas, não somente a forma de suas

existências, mas mesmo suas próprias existências. Ela não é, de

acordo com eles, nem um corpo e nem um ser como os seres

particulares. Em uma palavra, ela é a causa universal. E isto é

tudo o que eles podem dizer sobre ela.

Do que foi dito (vide NOTA A) deve

288

parecer que esta causa universal é somente uma quimera, um

mero fantasma. No máximo ser um imaginário e fictício existente

apenas nas mentes daqueles que pensam isto. De qualquer

maneira, é o destino dos gregos, do Deus dos filósofos, judeus e

cristãos e do Benevolente Espírito da nova seita parisiense dos

teofilantropistas, a única seita que já tentou fundar a adoração

sobre princípios que sustentam alguma semelhança com a

moralidade, a razão e o senso comum.

Aqueles que, sem o conhecimento desta causa universal,

se contentam com causas particulares, as têm diferenciados

geralmente das substâncias materiais. Vendo a mesma

mudança frequentemente produzida por diferentes ações ou

causas, conceberam a existência de causas particulares

distintas dos corpos sensíveis. Alguns têm lhas atribuído

inteligência e vontade: daí deuses, demônios, gênios e espíritos

bons e maus. Outros, que não podem conceber a existência de

um modo de ação diferente do seu próprio modo, têm imaginado

certas virtudes procedentes da influência dos astros, da sorte e

mil outros obscuros e ininteligíveis termos que não significam

nada mais que cegas e necessárias causas.

289

NOTA C. ― CAPÍTULO V.

Entre os inumeráveis erros nos quais os homens estão

continuamente caindo pela confusão de objetos fictícios com

objetos reais, está o de supor a existência de um infinito poder,

causa, sabedoria ou inteligência e de apenas considerar as

propriedades da sabedoria, poder e inteligência nos seres que

eles vêem. O termo "infinito" é totalmente incompatível com a

existência de qualquer coisa finita, positiva ou real. Em outras

palavras: esse termo carrega consigo a impossibilidade de uma

existência real. Aqueles que chamam um poder, quantidade ou

número de infinito, falam de alguma coisa indeterminada de que

nenhuma justa ideia pode ser formada, pois por mais que a ideia

possa ser extensa, ela deve caber precisamente na coisa

representada. Um número infinito, por exemplo, não pode ser

concebido e nem expresso. Admitindo por um momento a

existência de tal número, é necessário perguntar se certa parte,

por exemplo, a metade não lhe pode ser retirada. Esta metade é

finita e pode ser contada e expressa. Mas a dobrando, nós

fazemos uma soma igual ao número infinito, que poderá então

ser determinado e para o qual uma unidade pode ser ao menos

adicionada. Esta soma então será maior do que era antes, maior

do que o número infinito, ou daquele de que nada pode ser

adicionado. Todavia, nós fizemos uma adição nele! Ele é, por

conseguinte, ao mesmo tempo infinito e finito e, em decorrência,

possui propriedades exclusivas de um e de outro. Nós podemos

de igual modo, conceber a existência de um corpo branco que

não é branco, ou em outras palavras: uma mera quimera. Tudo o

que nós podemos dizer disso é que isso não existe e nem pode

existir.

O que foi dito de um número infinito igualmente se aplica

a uma causa infinita, inteligência ou poder. Como há diferentes

graus de causação da inteligência e do poder, esses graus

devem ser considerados

290

como unidades, a soma dos quais expressará a quantidade do

poder e da inteligência de tais causas. Uma infinidade de poder,

ação ou inteligência, a que nada possa ser adicionada e nem

concebida, é impossível, nunca existiu e nunca pode existir.

NOTA D. ― CAPÍTULO VIII.

O homem nasce com uma disposição para conhecer, ou

para sentir e receber impressões da ação de outros corpos

sobre ele. Essas impressões são chamadas sensações,

percepções ou ideias. Estas impressões deixam traços ou

vestígios de si mesmas que são algumas vezes excitados na

ausência dos objetos que as ocasionaram. Esta é a faculdade da

memória ou dos sentimentos, por meio do que o homem tem

conhecimento das antigas impressões, acompanhadas pela

percepção da distinção entre o tempo que recebeu e aquele em

que delas se relembra.

Toda impressão produz uma sensação agradável ou

desagradável. Quando vigorosas, nós as chamamos de prazer

ou dor. Quando fracas, de satisfação, bem-estar, desconforto ou

mal-estar. O primeiro desses sentimentos nos impele para os

objetos e nos faz esforçarmo-nos para juntar e prendê-las a nós,

para aumentar e prolongar as forças das sensações e para

renovar e tornar a chamá-las quando elas cessam. Nós amamos

os objetos que produzem tais sensações e somos felizes em

possuí-los. Nós procuramos e desejamos sua posse e somos

miseráveis quando as perdemos. O sentimento de dor nos induz

a fugir e escapar dos objetos que produzem isso, a temer, odiar

e detestar sua presença.

291

Nós somos assim constituídos para amar o prazer e odiar a dor.

E esta lei, gravada pela natureza no coração de cada ser

humano, é tão poderosa que em cada ação da vida força a

nossa obediência. O prazer é ligado a cada ação necessária

para a preservação da vida e a dor àquelas de natureza oposta.

Amar o prazer e odiar a dor nos induz, sem exame ou reflexão, a

agir de maneira a obter a posse do primeiro e a falta do

segundo.

Uma vez recebidas as impressões, não fica no poder do

homem prolongar ou torná-las duráveis. Há certos limites que os

esforços humanos não podem exceder. Algumas impressões

são mais pungentes do que outras e nos tornam felizes ou

infelizes. Uma impressão agradável no começo, frequentemente

produz dor no seu progresso. Prazer e dor estão tão misturados

entre si, que é raro que um seja sentido sem alguma porção do

outro.

O homem como qualquer outro animal, ao vir ao mundo,

abandona-se às impressões presentes sem prever as suas

consequências ou desfecho. A previsão pode ser adquirida

apenas pela experiência e a reflexão pelas impressões

comunicadas a nós pelos objetos. A este respeito alguns

homens continuam infantis a vida toda, nunca adquirindo a

faculdade da previsão. E mesmo entre os mais sábios são

achados poucos que, certas impressões violentas como as do

amor, por exemplo, a mais violenta de todas, em algum período

da vida não os tenham reduzido a um estado infantil, não

prevendo nada e se permitindo serem guiados pelos impulsos

momentâneos.

À medida que avançamos em idade adquirimos mais

experiência na comparação dos objetos novos e desconhecidos,

com a ideia ou imagem daquelas impressões que a memória

292

tem preservado. Nós julgamos o desconhecido pelo conhecido

e, em consequência, conhecemos se aqueles devem ser

procurados ou evitados.

A faculdade de comparar os objetos presentes com os

ausentes, que existem apenas na memória, constitui a razão.

Ela é a balança com que pesamos as coisas. E, chamando de

volta aquelas que estão ausentes, nós podemos julgar pelas

suas mútuas relações o presente. Esta é a exaltada razão de

que, não sei a que pretexto, o homem se arroga para se

diferenciar de todos os outros animais. Nós vemos todos os

animais possuírem sinais evidentes de julgamento e

comparação. Os peixes dirigem-se ao mesmo lugar na hora

precisa em que costumam receber comida. Os animais mais

fracos se reúnem em sociedades para defesa mútua. A

sagacidade do cachorro é de conhecimento geral e a previsão

da abelha em sido há muito tempo proverbial. Os ursos da

Sibéria e os elefantes da Índia parecem possuir uma decidida

superioridade de entendimento sobre os selvagens humanos e

escravos que habitam esses países.

Alguns filósofos supõem o homem tendo o sentido do tato

em um grau superior ao dos outros animais como explicação da

sua superioridade. Se a isso adicionarmos a vantagem de uma

maior longevidade e a capacidade peculiar da espécie humana

de suportar a existência em todo o globo, talvez tenhamos

enumerado todas as causas da superioridade que o homem

sempre recebeu da natureza, qualquer que possa ser suas

pretensões. A fala ou o poder de comunicar ideias é comum em

quase todos os animais. Alguns deles inclusive possuem em

maior grau que o homem em certos modos de sociedade.

Dampierre descreve uma nação cuja fala consiste no uivo de

alguns poucos sons guturais e cujo vocabulário não contem mais

do que trinta palavras.

293

NOTA E. ― CAPÍTULO XXI. Qualquer que possam ser as suas pretensões, os

partidários da religião apenas podem provar que toda coisa é o efeito de uma causa, que somos com frequência ignorantes das causas imediatas dos efeitos que nós vemos e que mesmo quando as descobrimos, achamos que elas são os efeitos de outras causas e assim ao infinito. Mas eles não provaram e nem podem provar a necessidade da ascensão para a causa primeira e eterna, a causa universal de todas as causas particulares, produtora não somente das propriedades, mas mesmo da existência das coisas e que ela seja independente de toda outra causa. É verdade que nós nem sempre conhecemos a ligação, a cadeia e o progresso de cada causa. Mas o que pode ser inferido disso? A ignorância nunca pode ser o motivo razoável nem de crença ou de determinação.

Eu sou ignorante da causa que produz certo efeito e não posso assinalar uma que me satisfaça. Então devo eu ficar contente com aquela assinalada por outro mais presunçoso que diz estar convencido, embora não melhor informado do que eu, especialmente quando sei que a existência de tal causa é impossível? O relógio de um navio europeu naufragado, tendo caído nas mãos de uma tribo de índios, foi objeto de reunião para se descobrir a causa de seus extraordinários movimentos. Por muito tempo os índios não puderam nada concluir. Por fim um do grupo, mais arrojado do que os outros, declarou ser isto um animal de espécie desconhecida por eles e, como ninguém pudesse convencê-lo de que os movimentos do relógio poderiam provir de algum outro princípio diferente do que produz a vida animal e a ação, ele se imaginou habilitado a impor à assembléia a sua explicação.

F I M

294

295

— 1818 —

http://books.google.com

296

ENSAIO

SOBRE

O DIREITO E AS LEIS POLÍTICAS

DO GOVERNO

AVISO

Este ensaio encontrado nos papéis de Helvétius foi

inserido no ano IV na 'Década filosófica'. Reconhece-se ai seus

princípios políticos e seu estilo. Entretanto, não se pode

assegurar que seja realmente dele. Data de aproximadamente

trinta anos antes da revolução e se acreditaria escrito alguns

anos mais tarde. O autor aí examina rapidamente as sociedades

políticas depois da sua origem até o estabelecimento do governo

monárquico. E ele teria sem dúvida levado mais longe suas

reflexões, se a lembrança das perseguições que já havia já

suportado não lhe houvesse contido pena.

297

ENSAIO

SOBRE

O DIREITO E AS LEIS POLÍTICAS

DO GOVERNO

Antes de refletir sobre um governo qualquer é necessário

fixar suas as sobre o direito natural do homem, direito essencial

imprescritível porque constitui a espécie. Direito

indubitavelmente inalienável porque nenhuma espécie pode

deixar de ser ela mesma a não ser deixando de existir.

Nós dissemos que é necessário antes de passar ao

exame das leis políticas de um governo, fixar as ideias sobre o

direito natural do homem porque todo governo, cujas leis

políticas ofendem esse direito essencial, será um governo

tirânico que terá apenas o princípio da força. E tal força poderá

ser legitimamente contraposta, estando-se assim em contínuo

estado de guerra, injusta da parte do usurpador do poder e

legítima da parte dos indivíduos que reclamam o seu direito

essencial.

O homem nasce necessariamente livre porque sua

conservação, sendo o seu fim principal, a busca e a escolha das

coisas necessárias a esta conservação é o seu primeiro dever e

a liberdade é necessária à sua consecução. Esta busca sendo

um trabalho, a primeira destinação do homem é trabalhar, mas

tendo o trabalho por primeiro objetivo a sua própria conservação,

deve ser necessariamente livre porque, se assim não for, sua

conservação será incerta e

298

seu fim e sua destinação principal não serão exequíveis.

Do trabalho necessariamente livre e da previsão natural

do homem segue a acumulação de coisas necessárias à

subsistência e desta acumulação, fruto de um trabalho livre,

nasce a propriedade. A propriedade é então um direito natural.

A propriedade sendo um direito natural não pode ser

então invadida na totalidade, nem mesmo parcialmente, sem

ferir essencialmente o direito natural do homem.

Mas como o fim principal do homem, após sua

conservação, é a perpetuação da espécie, os indivíduos

necessariamente se multiplicam.

A natureza tendo desigualmente distribuído a força física

nos indivíduos, aquele que foi dotado de uma maior força pode

invadir a propriedade do mais fraco. E o trabalho sendo um

esforço e o seu usufruto um prazer, o mais forte certamente

estará tentado a assim proceder.

Mas a previsão natural do homem, fazendo temer a cada

indivíduo mais fraco a submissão ao mais forte, levou os

indivíduos a reunir suas forças contra a violência. E a reunião

dessas forças tornou-se superior àquela que era de se recear. A

ordem restabeleceu-se.

O violador dos direitos naturais contra o qual a associação

foi formada não foi incluído na associação. Estando separado,

ele necessariamente formou uma família à parte. E a espécie ao

se multiplicar, foi-se formando por diferentes associações

separadas pelos diferentes sinais e línguas imaginadas para

explicar as necessidades e os desejos.

As diferentes associações sem relações entre elas

deviam ter desconfianças umas das outras e cada uma delas

sentiu a necessidade, para sua segurança, de se entender e se

unir mais particularmente com outras. Essas

299

primeiras associações não eram mais que simples

confederações. Eram sociedades políticas.

Essas sociedades, políticas tendo apenas por objeto a

conservação dos interesses particulares, foram o produto das

vontades particulares reunidas de que se formou a vontade

geral, primeiro fundamento da sociedade política. Mas esta

vontade geral não poderia ser formada, se a liberdade e a

propriedade não fossem conservadas em toda a sua

integralidade, porque elas eram o objetivo da formação daquela

sociedade.

Para conservar a liberdade e a propriedade em toda sua

integralidade, objeto da formação da sociedade, foi necessário

que os direitos respectivos de cada indivíduo fossem fixados por

leis. E essas leis, sendo o resultado e o produto da vontade

geral, puderam ser consideradas apenas como os órgãos das

vontades particulares reunidas e formando uma vontade geral.

Portanto, foi necessária a confecção da lei, que as vontades

particulares fossem reunidas em uma vontade geral. O direito de

fazer leis pertence então, necessariamente e essencialmente, à

assembléia de todos os membros da sociedade de quem as

vontades reunidas puderam, por elas mesmas, formar a vontade

geral de que as leis foram a expressão.

A lei uma vez formada foi necessariamente imperativa,

porque ela era a expressão da vontade geral. A vontade geral foi

então o soberano e a lei a palavra do soberano. A palavra do

soberano, sendo o título conservador dos direitos naturais e

essenciais de cada indivíduo, necessitou, para que ela não se

perdesse da escolha de depositários. A lei sendo imperativa,

necessariamente necessita que seus depositários a fizessem

executar. Foi necessário então, dar o poder executivo a esses

depositários, mas esse poder só poderia ser dado pelas

vontades reunidas. Todo

300

poder emana então, essencialmente da reunião das vontades na

qual reside a soberania.

O poder executivo dos depositários da lei foi então

legítimo, mas necessariamente limitado a fazer executar a lei,

porque a lei, sendo a palavra do soberano e os depositários da

lei sendo apenas os agentes comissionados pelo soberano para

fazer executar a vontade geral, estavam necessariamente

submetidos à lei. Se eles não estivessem submetidos à lei, eles

estariam fora da soberania e por consequência não fariam parte

da sociedade política residente essencialmente na reunião de

todas as vontades. Como agentes do soberano os depositários

da lei, encarregados de sua execução, devem conta ao

soberano do exercício do poder que lhes foi confiado. A

assembléia geral da nação em que reside essencialmente toda a

soberania foi então necessária para ordenar o exercício de

poder dos seus agentes e chamar outros ao exercício desse

poder, se eles não correspondessem à confiança pública.

Com a sociedade política se multiplicando sem cessar e

com ela as relações necessárias entre os diferentes membros e

com as outras sociedades políticas que lhe são vizinhas, as

assembleias nacionais tiveram então de ser frequentes e

cronologicamente regulares, porque as circunstâncias exigiam

novas leis e as leis, sendo apenas o resultado das vontades

reunidas, só podiam ser feitas em assembleias gerais. Os

agentes depositários do poder executivo, submissos eles

mesmos à lei, nos casos fortuitos que exigiam uma nova lei cujo

retardamento pudesse prejudicar a sociedade, tiveram então o

poder de convocar a nação para as assembleias extraordinárias

e propor as leis que julgassem necessárias. Eis ai as

301

assembleias nacionais fixas e as assembleias nacionais

extraordinárias

Os agentes do soberano, a quem é confiado o poder

soberano, foram escolhidos em maior ou menor número,

segundo as circunstâncias. Deve ter havido sociedade onde todo

esse poder foi entregue inteiro a um só indivíduo, que por suas

qualidades pessoais, mereceu a confiança dela.

Nas sociedades onde a escolha de um só tenha sido

preferida, apercebeu-se logo que um homem, mesmo que seja

superior aos outros em virtude e inteligência, não é isento de

paixões e erros. Para remediar os inconvenientes da fraqueza

humana, recorreu-se ao sábio expediente de lhe nomear um

conselho eletivo, pelo aviso do qual ele deve se conduzir ou, ao

menos, contra o conselho do qual não lhe é permitido agir. Esse

conselho deve ter sido composto de um número fixo pelo

soberano e as matérias aí deviam ser decididas pela pluralidade

de vozes. A decisão das matérias pode ser apenas preliminar já

que o soberano, isto é, a assembleia nacional tem com

exclusividade o direito de torná-la permanente.

O desejo natural do homem de dominar e de obter a

consideração ligada ao poder deve ter inspirado àquele que

estava revestido do desejo de conservá-lo e aos outros de

conquistá-lo. Daí as pretensões que podiam trazer a perturbação

para dentro da sociedade política. Para remediar o

inconveniente, o primeiro meio que se apresentou foi estipular

que o depositário do poder escolhido pela nação desfrutaria até

a morte desta augusta prerrogativa. Com a amovibilidade dos

membros do conselho, não tendo o mesmo inconveniente,

puderam eles ser escolhidos de tempos em tempos, e esse

tempo fixado pela assembléia nacional.

Essas sábias precauções foram necessariamente

tomadas,

302

porque a natureza das coisas as demonstrou indispensáveis

para a conservação da tranquilidade da sociedade política e

porque esta tranquilidade, sem a qual a liberdade e a

propriedade de cada indivíduo não poderiam estar asseguradas,

era objeto permanente da vontade geral. Por meio dessas

estipulações, a sociedade, ao abrigo das pretensões

continuamente ativas, não tardou a se aperceber que essas

pretensões adormecidas se acordavam com muita força no

último termo da vida ou na morte do depositário do poder. Com

cada membro da sociedade, tendo igual direito ao poder

principal, e o amor-próprio, natural ao homem, inspirando-lhe

uma estima de preferência pessoal, deveria ter ai tantos

pretendentes ao poder quantos indivíduos existissem na

sociedade, Mas a habilidade, a persuasão, a eloquência ― esta

arte de arrastar as vontades e de sujeitá-las ― devem ter obtido

o sacrifício das pretensões de muitos em favor das pretensões

de alguns. Daí as confederações particulares que dividiam a

sociedade. Um meio natural deve ter-se apresentado para

prevenir o perigo eminente. Aquele de estipular por meio de uma

lei permanente que o depositário do poder devesse sempre ser

escolhido pela nação em assembléia dentro de uma mesma

família. Assim o depositário do poder foi ao mesmo tempo

sucessivo e eletivo.

Nós cremos impossível de não se persuadir, após haver

meditado profundamente, que assim foram as primeiras

constituições políticas, à perfeição das quais parecia que nada

faltava, se as considerarmos isoladamente.

Mas as diversas sociedades, crescendo em população e

com a necessidade de maior subsistência viram-se forçadas a

estender seus territórios e necessariamente se encontraram.

Essas sociedades, sem relação entre si e se

303

achando divididas por interesses, se olhavam com desconfiança

e bem cedo o ódio, que é a continuação dela, junto com o

cupidez, fez nascer a violência. Foi assim que as sociedades se

encontraram em estado de guerra recíproca.

Nesta posição, a violência feita a um dos membros da

sociedade era um insulto ao soberano de que cada um dos

membros fazia parte. E sendo a confederação política formada

em razão da liberdade e da propriedade de cada um, todos

ficavam obrigados a se armarem para repelir a injúria feita a um

só. As guerras entre sociedades divididas foram então de todos

contra o agressor quando elas eram defensivas e, nesse caso, o

serviço militar era dever de todos, porque a conservação da

sociedade interessava igualmente a todos os membros. Mas nas

guerras ofensivas empreendidas fora do território, a sociedade

não estando em perigo, o serviço militar cessava de ser um

dever e a vontade particular e livre se tornava então o critério de

seleção das forças de ataques.

No primeiro caso, o soberano devia comandar através dos

depositários do poder executivo que tinham sido escolhidos. No

segundo caso, os depositários do poder, estando encarregados

da execução das leis e sua presença sendo necessária a essa

execução, não comandavam. Os guerreiros que participavam da

expedição ofensiva por vontade própria escolhiam seus próprios

chefes.

O chefe e esses guerreiros só podiam ter por objeto

nessas expedições a remoção pela força de coisas que podiam

satisfazer sua cobiça, ou a invasão de terras para se

estabelecer. Essas aquisições, em se fazendo em comum,

deviam se repartir do mesmo modo. Foi necessário então regras

de repartição. O chefe ou os chefes deviam estar sujeitos a elas,

assim como o menor dos guerreiros. Mas esses chefes tendo,

por seus valores e talentos, contribuído mais para o sucesso

deviam ter uma

304

parte mais vantajosa, seja na pilhagem ou nas terras

conquistadas. Estabeleceu-se então naturalmente, que os

chefes teriam um número determinado de partes do total da

pilhagem ou das terras conquistadas.

Ao retornar de suas expedições, esses guerreiros se

recolhiam à sociedade política e seus chefes voltavam a ser

simples cidadãos. Não demoravam muito em se aborrecerem da

vida tranquila que aí levavam. A pilhagem que eles haviam

conquistado os fazia conhecer novos prazeres e o hábito desses

prazeres os fazia sentir novas necessidades. Era preciso então

recorrer a novas expedições para satisfazer essas novas

necessidades. A sociedade inteira tornava-se então guerreira,

porque todos os indivíduos em estado de portar armas deviam

desejar procurar esses novos prazeres.

Essas expedições coroadas de sucesso repeliram para

longe as sociedades estrangeiras. Era necessário então, por

consequência, percorrer grandes distâncias para exercer a

pilhagem. Mas durante essas expedições longínquas, os

rebanhos ficavam negligenciados e as terras permaneciam

incultas. Tornou-se necessário resolver o inconveniente.

O homem é cruel apenas pelo medo e pela fraqueza.

Quando ele sente a superioridade de sua força, ele escuta a voz

da humanidade, ou talvez o sentimento de amor-próprio. Assim,

nossos guerreiros, não encontrando resistência, não deviam ser

cruéis. Mas concluíram que os homens que lhes eram

estranhos, porque não eram da sua sociedade, podiam ser

incluídos na pilhagem que eles pretendiam fazer e que eles

podiam retirar disso uma grande utilidade em os submetendo à

cultura de suas terras e em os obrigando a trabalhar para eles.

Assim se estabeleceu a escravidão e esta espécie de direito

internacional que tem subsistido por tantos séculos e que

sujeitava todos os povos vencidos.

É assim que nos parece que devem ter-se formado

305

as primeiras sociedades políticas e chegar, de consequência em

consequência, à melhor constituição que elas puderam adquirir.

Acreditamos estar no limite onde agora nos achamos, porque,

para além desse limite, os direitos de liberdade e de propriedade

têm sido atacados e esses direitos essenciais e naturais do

homem são imprescritíveis.

Do mesmo modo, estamos bem fundamentados em crer

que foram essas as constituições políticas dos povos novos, se

acaso, assim se dizer. Tal era a dos povos da Germânia em

relação a César e a Tácito. Povos cuja origem desconhecida não

devia estar muito longe e da qual os costumes rudes, mas

naturais, não haviam ainda sido corrompidos.

F I M

306

307

A FELICIDADE,

POEMA,

EM SEIS CANTOS

Com fragmentos de alguns poemas.

Obras p de Helvétius.

1772

http://books.google.com

308

PREFÁCIO

Ou Ensaio sobre a Vida e os Trabalhos

de CLAUDE-ADRIEN HELVÉTIUS

A felicidade é o objeto de desejo de todos os

homens, mas não de suas reflexões. Na sua procura

ininterrupta eles pouco se instruem dos meios de obtê-

la e só se tem feito até agora algumas máximas,

algumas canções e pouco de trabalho filosófico.

309

Na antiguidade os filósofos se ocuparam bastante

com este assunto, mas nos deixaram mais frases que

ideias. Os tratados da 'Vida Feliz' e da 'Tranquilidade

da Alma' de Sêneca contêm muito de espírito e muito

pouco de filosofia.

Os moralistas modernos sujeitados à superstição,

a qual só reina sobre o homem quando o rebaixa e o

amedronta, têm feito a sátira da natureza humana e

não a sua história. Prometem pintá-la e a desfiguram.

Presumem a felicidade no céu e não admitem que ela

habite a terra. De acordo com eles, o merecimento

dessa felicidade colocada além da vida é feito pelo

sacrifício dos prazeres. Assim, para eles o presente

não é nada e o futuro é tudo. E em

310

boa parte do mundo cultiva-se a Ciência da Salvação

em detrimento da Ciência da Felicidade.

Alguns filósofos modernos fizeram pequenos

tratados sobre a felicidade: os mais conhecidos são os

de Fontenelle e de Maupertuis.

Fontenelle, que há muito tempo foi apenas um

belo espírito, não era ainda filósofo quando escreveu o

seu tratado. Ele não sabia então generalizar as ideias.

Espalham-se em sua obra algumas verdades úteis

percebidas com agudeza, porém ele compõe o seu

sistema pelo seu caráter, gostos e situação pessoal. As

almas sensíveis não encontram em seu sistema nada

de proveitoso. Há muita pouca informação sobre como

tornar a felicidade mais geral, mas nos

311

relata bem o quanto Fontenelle era feliz.

Maupertuis era um espírito triste, cioso e infeliz

por não ser o homem do seu século. Maupertuis, com o

auxílio de duas ou três falsas definições, tomando os

nossos desejos como tormentos, o trabalho como um

estado de sofrimento e as nossas esperanças como

fontes de dor, nos representa como sobrecarregados

com o peso dos nossos males. Para ele, a existência é

um mal e ao falar da felicidade, parece desgostoso da

vida.

Após esses tristes e inúteis argumentadores e

outros mais que não falaremos, é prazeroso ouvir um

verdadeiro filósofo, homem amável, amado e

312

feliz falar da Felicidade. Temos a certeza que o público

verá com interesse o Poema que lhe trazemos às

mãos.

O leitor vai encontrar nele uma filosofia íntegra,

grandes ideias, sublimes quadros, inspiração, energia e

uma multidão de imagens e felizes versos. Se o projeto

não está terminado, se detalhes descuidados, alguns

rodeios, expressões vulgares, se a harmonia não é

constantemente variada e verdadeira, esses defeitos

são contrabalançados por belezas de primeira ordem.

As mesmas faltas se encontram no Poema de Lucrécio,

cheio, aliás, de uma falsa filosofia, e, entretanto, seu

poema superou com glória o espaço dos últimos vinte

séculos.

Lucrécio e o senhor Helvétius morreram

313

antes de terminar os seus poemas. Esperamos que o

francês seja tratado com a mesma indulgência que o

romano obteve do seu século e da posteridade. Ele a

merece pelo amor que teve à humanidade, pelo desejo

da felicidade humana espalhado nesta obra, como

também dentro do livro 'Do Espírito' e do qual sempre

esteve animado durante toda a sua vida.

Claude-Adrien Helvétius nasceu em Paris no mês

de janeiro de 1715, de Jean-Adrien Helvétius e de

Gabrielle d’Armancourt. A família dos Helvétius por

causa da perseguição sofrida no Palatinado na época

reforma, se estabeleceu na Holanda, onde numerosos

membros tiveram honrosos empregos.

O bisavô de Helvétius foi o principal médico do

exército e mereceu

314

pelos serviços prestados à República várias medalhas.

O filho deste ilustre homem, ainda muito jovem,

se estabelece em Paris. Conhecido aí como o "Médico

holandês", tornou a ipecacuanha conhecida em toda a

França. Ele havia aprendido o uso desta raiz com um

de seus parentes, governador da Batávia e serviu-se

dela com bastante sucesso em Paris e dentro do

exército. Luis XIV, de onde as graças eram tão

frequentes como devem ser as graças dos reis, lhe deu

título de nobreza e o cargo de inspetor-geral dos

hospitais. Morreu em Paris em 1727, lamentado pelos

pobres e gente de bem.

Um de seus filhos, herdeiro de seus talentos,

cultivou como ele, a medicina com glória. Era jovem

ainda quando salvou

315

o rei de uma doença perigosa adquirida aos sete anos

de idade. Posteriormente foi o médico principal da

rainha da qual merecia a confiança e as bondades. Em

Versalhes, foi amigo de todas as casas em que era

médico. Tratava em sua própria casa grande número

de pobres e visitava com constância aqueles que não

podiam sair das suas.

Amava muito a esposa, que era bela e dedicada

a ele e a todos os seus deveres. Amaram ternamente o

filho e se ocuparam em conjunto de sua educação e do

cuidado de tornar sua infância feliz. Helvétius não tinha

ainda cinco anos quando o confiaram ao senhor

Lambert, homem sábio e sensível, que vive ainda e

chora seu aluno.

316

Não havia trabalho que a vontade de agradar a tal

preceptor não fizesse o discípulo assumir. Ele teve em

boa hora o gosto pela leitura. É verdade que no

começo ele só gostava dos contos de fadas e de livros

onde reinava o prodigioso. Mas logo associou a eles La

Fontaine e Despréaux, cujos trabalhos encantam os

homens de gosto, mas não deveriam agradar às

crianças.

O jovem Helvétius foi para um colégio interno

logo que leu a 'Ilíada' e 'Uma História de Alexandre'.

Essas duas leituras mudaram seu caráter. De tímido,

tornou-se expansivo. O gosto pelo estudo foi suspenso

por algum tempo. Queria entrar para o serviço militar e

só respirava a guerra.

De início o despotismo dos regentes,

317

suas ameaças e coações o revoltaram. As tarefas

pormenorizadas que lhe sobrecarregavam o

aborreciam. Ele fez apenas medíocres progressos.

Mas, iniciada a aula de retórica, o seu regente, Padre

Porée, se percebeu que ele era sensível a elogios e,

elogiando os seus primeiros esforços, lhe fez fazer

outros ainda maiores. Nessa época os exageros de

linguagem estavam em moda no colégio. O Padre

Porée encontrou nos de Helvétius mais ideias e

imagens do que nos dos outros discípulos. A partir daí

ele lhe dá uma educação particular. Lia com ele os

melhores autores antigos e modernos e lhe fazia

observar as perfeições e as imperfeições. Esse padre

não escrevia com primor, mas tinha excelentes

princípios de literatura. Era um bom mestre e um mau

modelo. Ele tinha, sobretudo,

318

o talento de conhecer o alcance do espírito e o caráter

de seus alunos e a França lhe deve muito pelo grande

homem e genialidade que ele adivinhou e apressou.

A primeira experiência de glória aumentou o seu

amor por ela. O jovem Helvétius, elogiado nos

exercícios públicos do colégio, queria triunfar em tudo

em que pudesse ser louvado. Antes ele detestava a

dança e a esgrima, depois se sobressaiu nas duas

artes. Inclusive dançou uma ópera no papel e máscara

de Javillier, na qual obteve muitos aplausos.

Sua competição se estendia a tudo, mas jamais

tomou o caráter de inveja. Ele amava seus

concorrentes e havia obtido sua confiança. Eles

acreditavam em sua discrição nas pequenas artes que

a

319

severidade dos mestres e a necessidade de prazer

tornam tão comuns entre os jovens.

Helvétius tomou conhecimento do livro 'O

entendimento humano' quando ainda estava no

colégio. Esse livro fez uma revolução em suas ideias.

Tornou-se um discípulo fervoroso de Locke como

Aristóteles deve ter sido de Platão, ajuntando

descobertas àquelas de seu mestre.

Ele levou ao estudo do direito o espírito filosófico

que Locke lhe havia inspirado. Desde então ele

procurou as relações das leis com a natureza e a

felicidade dos homens.

Seu pai, cuja fortuna era medíocre e que havia

incorrido no desagrado do cardeal de Fleury pela sua

amizade com o senhor

320

Le Duc, o destinou às finanças como a uma profissão

que poderia lhe enriquecer e ainda deixar-lhe tempo

para o uso de seus talentos. Ele lhe enviou para a casa

do seu tio materno, o senhor d’Armancourt, que era

diretor de fazendas em Caen. Lá, Helvétius ocupou-se

de literatura e da filosofia, mais que de finanças e mais

ocupado de mulheres que de literatura e da filosofia.

Porém, aprendeu em pouco tempo e quase sem

esforço, tudo o que deveria saber um financista.

Ele tinha vinte e três anos quando a rainha Maria

Leckzinska, que gostava do senhor e da senhora

Helvétius, obtém para o filho deles o cargo de

arrematante de impostos régios. Inicialmente Helvétius

só teve o título e meio cargo, mas o senhor Orri logo

lhe deu o cargo inteiro. Foi-lhe dado cem mil escudos

de renda. Seus pais emprestaram-lhe os

321

fundos que um arrematante de impostos régios deveria

antecipar ao rei, com a condição de que Helvétius

pagasse o empréstimo e os encargos com os lucros do

seu posto.

Duas paixões que podiam arruinar o financista

mais opulento: o amor das mulheres e o desejo de

fazer o bem. Mas ele era organizado e probo. Em meio

a tantas diversões, soube usufruir sabiamente. De

início, destinou dois terços de suas rendas ao

reembolso de seus fundos, ficando o restante

destinado às despesas que a sua idade e nobreza do

seu coração lhe faziam necessárias.

Ao sair da infância, Helvétius havia procurado se

ligar a escritores famosos. Marivaux era um desses.

322

Esse escritor espirituoso, sensível e eloquente em seus

romances, era agradável na conversação. Digno dos

amigos pela delicadeza de alma e pureza dos

costumes. Helvétius instituiu-lhe uma pensão de dois

mil francos. Marivaux, embora um excelente homem,

era temperamental e tornava-se rabugento nas

discussões. Era um dos muitos amigos, mas a partir do

momento da instituição da pensão, tornou-se um dos

amigos pelo qual Helvétius dispensava mais atenção e

consideração.

O filho de Saurin da Academia de Ciências não

havia produzido ainda nenhuma obra que lhe tornasse

conhecido, mas era conhecido dos letrados como um

espírito entendido, justo e profundo,

323

de virtude, gosto e amplos conhecimentos. Mas, para

subsistir, tinha apenas um emprego que não convinha

ao seu caráter. Também recebeu de Helvétius uma

pensão de mil escudos que lhe valeu a independência,

o tempo necessário de cultivar as letras e o prazer de

sentir e tornar público que devia sua felicidade ao

amigo. Esse digno amigo, quando Saurin quis se casar,

o presenteou com os fundos da pensão que lhe havia

feito.

Helvétius procurava em tudo o mérito, para amá-

lo e o socorrer. Qualquer que sejam os cuidados feitos

para esconder os benefícios, nós podemos apresentar

uma lista de homens conhecidos obsequiados por ele.

Mas cremos faltar à sua memória se ousarmos nomear

aqueles que têm a fraqueza de ruborizar-se de seus

socorros.

324

Por essa época Fontenelle estava à testa do

império das letras. A extensão de luzes, filosofia

saudável, sabedoria de conduta, variedade de talentos,

a alegria de espírito e facilidade de relacionamento

social, tornavam Fontenelle agradável a muitos e a

diversos grupos sociais. Sua indiferença mesmo era útil

à sua consideração. Os inimigos de seus amigos,

seguros de não serem seus inimigos, lhe viam com

prazer. Ainda tinha o mérito de homem de idade e de

ter visto o século brilhante com que nosso século ama

entreter-se. Sua memória estava cheia de anedotas

interessantes que ele tornava ainda mais interessantes

pela maneira de contá-las. Seus contos e suas

brincadeiras faziam pensar. As mulheres, os homens

da corte, os artistas, os poetas e os filósofos amavam

sua conversação.

325

Helvétius o cortejava. Ia a ele como um discípulo que

vem modestamente propor suas dúvidas. Era com ele

que gostava de falar de Hobbes e de Locke. Acima de

tudo aprendeu com Fontenelle o talento, hoje muito

negligenciado, de exprimir com clareza as ideias.

Montesquieu era então apenas o autor das

'Cartas persas'. Mas nessa obra frívola na aparência e

na conversação, Helvétius percebeu o guia dos

legisladores. Por seu turno Montesquieu adivinha que o

homem será um dia o seu amigo. "Eu não sei se

Helvétius conhece sua superioridade, mas eu sinto que

é um homem acima dos outros", disse ele uma

ocasião.

'La Henriade', poema épico de um gênero

326

totalmente novo, de tragédias que igualam aquelas de

nossos grandes mestres. A 'História de Carlos XII', tão

superior a todas as histórias contadas na França, das

composições passageiras que fazem esquecer essa

multidão de insignificâncias agradáveis tão comuns no

século de Luis XIV. Uma filosofia evidente espalhada

em diversos gêneros, muito talento e muitas formas de

mérito atraíram sobre Voltaire os olhares da França e

da Europa. Ninguém excitou como ele admiração e

inveja. O público não rendido pela reverberação dos

literatos invejosos e os jovens que procuram de boa fé

o prazer ou os modelos eram seus admiradores. O

resto, pouco mais ou menos, compunha o número de

seus inimigos. O amor pelas letras, a arte de louvar da

qual fez muito uso, a civilidade

327

e a vontade de agradar não puderam acalmar a fúria da

inveja. Procurou se esconder no isolamento de Cirey.

Helvétius foi-lhe procurar aí. Confiou-lhe seus segredos

mais íntimos, isto é, o projeto e os dois primeiros

cantos do poema 'Da Felicidade'. Achou um crítico

melhor esclarecido do que todos os que ele havia

consultado até momento e um amigo ardoroso por sua

glória.

Nota-se pelas numerosas cartas de Voltaire,

quanto esse grande homem estava impressionado pelo

talento de Helvétius. Diz-lhe ele: "Vosso primeiro canto,

é repleto de ousadias da razão acima da vossa idade e

mais ainda dos nossos indolentes escritores que rimam

pelos seus livreiros e que se restringem sob o

compasso de um censor real invejoso ou tímido.

328

Miseráveis pássaros a que se cortaram as asas e

querem se levantar e tombam quebrando as pernas!

Vós tendes um talento másculo e eu gosto mais de

vossas faltas sublimes que das medíocres belezas com

que eles querem nos enfadar‖.

Em outras ocasiões Voltaire dá a Helvétius

conselhos excelentes e que reproduzimos porque

podem ser úteis a qualquer um que queira escrever em

versos.

"Eu vos direi em favor do progresso que tal bela

arte pode fazer em suas mãos: Temei em conseguindo

o grande saltar ao gigantesco. Exponha apenas

imagens verdadeiras. Utilizeis sempre da palavra

correta. Quereis vós uma pequena regra infalível? Aqui

está: Quando um pensamento é exato

329

e distinto é necessário ver se a maneira como é

expresso em verso será belo em prosa e se o verso,

despido da rima e da cesura, vos parece carregado de

uma palavra supérflua. Se há na construção a menor

falta. Se uma conjunção está esquecida. Enfim, se a

palavra mais apropriada não foi colocada no seu lugar,

conclua que vosso diamante não está bem engastado".

Em outra carta Voltaire repreende Helvétius que

lhe havia falado mal de Boileau. Diz ele: "Eu convenho

convosco que ele não é um poeta sublime, mas ele tem

feito muito bem o que queria fazer. Ele tem colocado a

razão em versos

330

harmoniosos e cheios de imagens. É claro,

consequente, fácil e feliz em suas expressões. Não se

eleva muito, mas também não cai e, além do mais,

seus assuntos não comportam essa elevação que os

vossos são suscetíveis. Vós sentistes o vosso talento

como ele tem sentido o seu. Sois filósofo; vedes tudo

ampliado. Vosso pincel é forte e arrojado. A natureza

vos tem dotado, digo-vos com a maior sinceridade,

muito acima de Despréaux. Mas esses talentos, por

maiores que sejam, não serão nada sem os seus.

Portanto, vos recomendo com ênfase esta arte de

escrever que Despréaux bem conheceu e bem

ensinou, esse respeito pela língua, esta sucessão de

ideias, essas ligações, essa arte fácil com que conduz

seu leitor e esse natural que é o fruto da genialidade.

Mande-me, meu caro amigo,

331

qualquer coisa assim, bem trabalhada, como só vós

podeis com rigor imaginar".

Homens de boa agudeza intelectual, mas cujas

ideias não eram muito extensas, volta e meia diziam a

Helvétius que a metafísica e principalmente a filosofia

não podiam ser tratadas em versos. Ele não acreditava,

mas algumas vezes duvidava. Voltaire tranquilizou-o.

Disse-lhe ele: ―Não duvideis que a sublime

filosofia possa muito bem falar a linguagem dos versos.

Ela é algumas vezes poética na prosa do Padre

Mallebranche. Por que não terminaríeis vós o que

Mallebranche esboçou? Ele era um poeta pela metade

e vós um poeta por inteiro‖.

Voltaire tinha razão.

332

Lucrécio junto aos romanos e Pope junto aos ingleses

fizeram dois poemas filosóficos e, todavia, admiráveis?

Homens pouco esclarecidos e amigos, talvez

invejosos, repetiam a Helvétius que ele devia empregar

seu tempo a outros estudos que não fossem a poesia e

a filosofia. Voltaire escreveu-lhe: ―Continueis a encher

vossa alma com conhecimentos de todas as artes e de

todas as virtudes. Não tenhais medo de honrar o

Parnaso com os vossos talentos. Eles vos honrarão

sem dúvida porque não negligenciareis jamais vossos

deveres. As funções do vosso cargo não são difíceis

para uma alma como a vossa? Esse trabalho se faz

como a organização da dispensa de vossa casa ou no

livro de controle de despenseiro.

333

O que! Para ser arrematante dos impostos régios não

se terá liberdade de pensar? Ah! Ático era arrematante

de impostos régios. Os cavalheiros romanos eram

arrematantes de impostos régios. Continue então

Ático‖.

Ático continua. Era usual que a companhia dos

arrematantes mandasse para as províncias os

arrematantes mais jovens. Eles se obrigam a se

instruírem em diferentes tipos de rendas, a controlar os

empregados locais e a implementar as ordens de

serviço. Nessas visitas de inspeção, Helvétius percorre

continuamente a Champagne, as duas Borgonhas e

Bordéus e em parte nenhuma tomou como norma de

ação dar sempre razão aos empregados da companhia

e estarem sempre os contribuintes errados. Não

recebia dinheiro de confiscos e muitas vezes

334

compensou os infelizes arruinados pelas afrontas dos

prepostos. De início a companhia não aprovava tanta

grandeza de alma, mas como Helvétius fazia as belas

ações com o seu próprio dinheiro, os arrematantes

concordaram tolerar esta conduta.

Não raro teve a coragem de ser o intermediário

do povo junto à própria companhia e ao ministro.

Empregou-se nas salinas de Lorena e do Franco

Condado certa máquina chamada "graduação" que

diminuía o consumo de lenha, mas também a

qualidade do sal. Helvétius propôs a destruição a

máquina ou a diminuição do preço do sal. É fácil

deduzir que nada obteve.

Ele chegou a Bordéus quando

335

passava a vigorar uma nova legislação sobre dos

vinhos, que alarmou a cidade e a província. Escreveu à

companhia contra o novo direito e indignou-se com as

respostas. Escapou-lhe um dia dizer a alguns

vinicultores de Bordéus: ―Enquanto apenas se

lastimarem, não se concordará com a vossa demanda.

Fazei-vos temer. Vós podeis juntar mais de dez mil.

Ataqueis os nossos empregados. Eles não são

duzentos. Colocar-me-ei à frente deles e nós nos

defenderemos, mas enfim vós nos batereis e ser-vos-á

feita justiça‖.

Por felicidade, o conselho do jovem Helvétius não

foi seguido. Mas de retorno a Paris, Helvétius apoiou

tão bem as

336

queixas dos bordelenses que conseguiu a extinção do

imposto.

Fez mais. Reprimiu a avidez dos subalternos.

Indicou os meios de diminuir o seu número. Propôs dar

maiores valores às terras de domínio do Estado e

assim se fez útil tanto à companhia dos arrematantes

quanto à nação. Seus serviços não impediram de ter

alguns desgostos. Trabalhando com pessoas de

pequeno espírito, propôs grandes objetivos e falou de

humanidade a homens endurecidos pela idade e pelo

dinheiro. Os infelizes consolados por ele, o trato com

pessoas de letras, seus estudos e suas amantes o

faziam mal suportar as inconveniências do serviço. Seu

pai, que lhe havia feito um arrematante de impostos

régios,

337

não o pode jamais fazê-lo financista. Helvétius já havia

reembolsado o empréstimo inicial e, malgrado suas

despesas com prazeres e obras de beneficência, se

encontrava muito rico. Comprou terras e concebeu o

projeto de se demitir da função de arrematante para se

dedicar inteiramente às letras e à filosofia. Mas lhe

faltava uma esposa que pudesse amar e que fosse feliz

no retiro em que viveriam.

Em casa de senhora Graffigni, autora do lindo

romance 'Cartas peruvianas', Helvétius viu a senhorita

de Ligniville e foi tocado pela beleza e adornos do

espírito. Mas antes de esposá-la quis conhecê-la. Ele a

via com frequência sem lhe falar de suas intenções e

do gosto que tinha por ela. Finalmente, após um ano

338

observando-a, concluiu ser a senhorita de Ligneville de

a alma nobre, sem orgulho, que suportava sua má

sorte com dignidade e que tinha coragem, bondade e

simplicidade. Acreditando que partilharia de seu

recolhimento lhe fez a proposta. Ela foi aceita. Mas,

antes de se casar, ele quis se demitir do emprego de

arrematante de impostos.

Helvétius, para satisfação de seu pai, comprou o

cargo de mordomo da rainha. Contudo, não era mais

bem feito para a corte que para as finanças. Foi muito

sensível às bondades da rainha. Esta princesa amava

pessoas de espírito e tratou bem Helvétius, que não

teve de início tantos inimigos quanto merecesse. Foram

perdoadas durante muito tempo suas luzes e suas

virtudes. Seu cargo não exigia muito

339

serviço e lhe deixava o emprego do seu tempo.

Casou-se no mês de julho de 1751 e partiu

imediatamente para suas terras de Voré. Levou

consigo dois secretários, mesmo que desnecessários já

que não era mais arrematante de impostos régios.

Porém, ele lhes era necessário. Um deles, chamado

Baudot, era rabugento, mordaz e irrequieto. Sob o

pretexto de que tinha conhecido Helvétius desde

criança, se permitia tratá-lo sempre como um preceptor

brutal trata uma criança. Um dos prazeres de Baudot

era discutir com o patrão a conduta, o espírito, o

caráter e os trabalhos do indulgente patrão. A

discussão sempre terminava na mais violenta sátira.

Helvétius o escutava com paciência e, por vezes, em o

deixando,

340

dizia à senhora Helvétius: ―Mas, é possível que eu

tenha todos os defeitos e todos os erros que o Baudot

me encontra? Não, sem dúvida. Mas enfim, eu tenho

alguns. E quem é que os dirá se eu não conservar

Baudot?‖.

Em suas terras, Helvétius se ocupava apenas dos

seus trabalhos, da felicidade dos vassalos, da sua e da

senhora Helvétius. Ele poderia dizer como milorde

Bolingbroke em uma de suas cartas a Swift: ―Eu tenho

por minha mulher o amor que outrora tive por todas as

do seu sexo‖.

Fazia dois anos que interrompera o trabalho do

poema 'A Felicidade'. Esse trabalho havia-lhe

conduzido a pesquisas sobre o homem. Desde as suas

primeiras meditações tinha vislumbrado novas

verdades. Estas verdades tornaram-se

341

mais claras e o conduziram a outras. E ele estava

inteiramente entregue à filosofia quando, em 1765,

perdeu o pai. Eu só acrescentarei uma palavra ao que

já disse desse ilustre médico. Ele conhecia

perfeitamente o seu filho, isto é: que tinha muito saber

e inteligência e que era sem preconceitos. Ele viu com

prazer esse filho sacrificar uma grande fortuna na

esperança de fama. Helvétius lamentou muito tão

excelente pai. Recusou recolher a sucessão e a deixou

ficar inteiramente com a mãe. Após longos debates,

obteve que ela conservasse a maior parte. A morte do

pai foi a primeira desventura que até então ocorreu em

sua feliz vida e suspendeu suas ocupações. Ele as

retomou logo que teve forças e, enfim, em 1758, ele

entrega

342

o livro 'Do espírito', que passo a analisar.

Helvétius começa examinando o que se entende

pela palavra 'espírito': É tanto a faculdade de pensar

quanto a somatória das ideias e de conhecimentos

existentes na cabeça de um homem.

Essas ideias são adquiridas pela impressão dos

objetos exteriores sobre os sentidos. Elas se

conservam pela memória que é apenas a primeira

impressão continuada, porém enfraquecida. Essa

faculdade natural de adquirir ideias pelos sentidos e de

conservá-las pela memória nos daria apenas

conhecimentos limitados e nos deixaria sem

habilidades, sem costumes e sem civilização, se a

natureza nos houvesse conformado como a maior parte

dos animais. É à flexibilidade das nossas mãos

343

que devemos nossa destreza, e sem essa habilidade,

ocupados com a própria defesa nas florestas e

disputando a subsistência, teríamos apenas formado

sociedades fracas e desumanas.

Os objetos de que os sentidos transmitem ideias

tem relações entre eles e conosco. O espírito humano

constrói o conhecimento com essas relações. Aí está

sua potência e limites. Chama-se julgamento a

percepção dessas relações.

Julgar é sentir.

A cor que eu chamo de vermelha age sobre meus

olhos de maneira distinta da cor que eu nomeio de

amarela. A ideia desta diferença é um julgamento. Esse

julgamento é

344

uma sensação composta de sensações recebidas em

ato ou conservadas na memória. De igual modo as

noções de força, de potência, de justiça, de virtude,

etc., quando se as analisa se reduzem a quadros

colocados na imaginação ou na memória.

Tudo no homem se reduz, portanto a sentir.

O homem está sujeito a erros. Eles têm três

causas: as paixões, a ignorância e o abuso das

palavras.

As paixões nos enganam porque nos fazem

observar os objetos de um único modo. A ambição faz

o príncipe fixar sua atenção no brilho da vitória e no

esplendor da vitória. Ele esquece as inconstâncias da

fortuna e as desgraças da guerra.

345

O medo mostra fantasmas e não deixa a verdade

apresentar-se. O amor é fértil em ilusões. ―Vós não

mais me amais, disse a senhorita de Caumont à

Poncet. Acreditais menos no que eu digo do que no

que vedes‖.

A ignorância é a causa de erros em questões

difíceis. É por falta de conhecimentos que a questão do

luxo é discutida há tanto tempo sem ser esclarecida.

Grandes homens têm feito dela apologia, outros sátira.

Em relação ao abuso das palavras, terceira causa

de erros, Helvétius se remete a Locke e não diz uma

palavra em favor daqueles que não querem recorrer ao

filósofo inglês. É necessário ver que os falsos sentidos

dados às palavras 'espaço', 'matéria',

346

'infinito', 'amor-próprio' e 'liberdade' têm sido a origem

de muitos erros na metafísica e na moral. Matéria é

apenas a coleção das propriedades comuns a todos os

corpos. Espaço é apenas o nada ou o vazio. A palavra

'infinito' apresenta apenas a ideia de falta de limites. O

amor-próprio, gravado em nós pela natureza, é um

sentimento que se torna virtuoso ou vicioso, segundo a

diferença de gosto, de paixões e de circunstâncias. A

liberdade do homem consiste no exercício voluntário de

suas faculdades.

Passemos ao segundo discurso.

Conforme sejam as ideias novas, úteis ou

agradáveis, o espírito tem maior ou menor estima

pública. Não se ganha a nossa estima pela quantidade

347

e extensão das ideias. É a relação que elas têm com a

nossa felicidade que nos força a lhas conceder o nosso

respeito. Desse modo, é o reconhecimento ou a

vingança que louva ou despreza.

As ideias mais estimáveis são as que agradam as

nossas inclinações. É sobre a vida de Alexandre que

trata o primeiro livro para Carlos XII. É por uma bela

mulher que o poeta pinta o amor. É por interesse

próprio que adotamos ou rejeitamos a opinião dos

demais.

É verdade, mas é raro existir na a terra filósofos

que se conduzem por amor da verdade, que estimam

preferencialmente as ideias brilhantes. Porém, são em

tão pequeno número que não é necessário

348

levar em conta. O restante dos homens estima apenas

as ideias que lisonjeiam sua opinião ou seu interesse.

Um tolo só tem amigos tolos. Augusto, Luís XIV e o

grande Condé viviam com gente de espírito. Sob um

monarca estúpido, disse a rainha Cristina, toda a sua

corte é ou virá a ser estúpida.

Quando a reputação de um homem ou de um

trabalho se estabelece, é comum nós o louvarmos sem

estima. Não temos por ele uma estima sentida, mas

uma estima de palavra. Assim é a estima geral por

Homero, que todo mundo louva e que só é lido por

homens letrados.

Todo homem estima apenas a sua própria

imagem nos outros, ou o que pode ser-lhe útil porque,

por natureza, tem de si a mais alta ideia.

349

O faquir e o sibarita se desprezam, assim como a

mulher recatada e a provocante. O filósofo que viva no

meio de jovens será imbecil e o ridículo da sociedade.

Separadamente, o magistrado, o militar e o negociante,

acreditam firmemente ser o seu espírito o mais

estimável.

Assim a sociedade nacional se divide em

pequenas sociedades, que, segundo suas ocupações,

classe e estado, estimam a espécie de espírito com

que mantêm relações.

Na corte estimam-se os homens de maneiras

elegantes, embora sejam em sua maior parte frívolos,

ineptos e ignorantes.

Enquanto as pequenas sociedades estimam

apenas o espírito que é o mais próximo ao seu, já o

350

público só concede sua estima ao espírito que é útil ao

bem público.

Em decorrência desta verdade, o espírito que

triunfa nas pequenas sociedades raramente triunfa

junto ao público.

Tal homem ou tal obra, pelo contrário, fazem

honra à nação, mas não obtêm êxito nas sociedades

particulares.

Se o público não considera o espírito medíocre é

porque ele não é útil nunca. Se porventura algum

espírito medíocre tornar-se general ou ministro, ele

será reverenciado porque teve a ventura de tornar-se

útil. Além do que, é costume ter-se indulgência para

com os grandes. Não se exige da comédia italiana os

mesmos talentos que da comédia francesa.

351

Entre a morte de altos funcionários e de artistas, os

últimos são os mais enaltecidos porque a posteridade

usufruirá de seus trabalhos, ao passo que os primeiros

só são úteis ao seu tempo.

Certos espíritos célebres em um lugar ou em um

século, não o são em outros séculos ou em outros

lugares. Os sofistas e os teólogos, tão ilustres outrora,

recolhem o desprezo dos séculos esclarecidos. As

farsas de Scarron fizeram sucesso antes do tempo de

Molière.

Existe ideias que agradam em todos os lugares e

em todos os tempos: umas são instrutivas e outras

agradáveis. Existe das duas em Homero, Virgílio,

Cornélio, Tasso e Milton, que não são

352

limitados à expressão de uma nação ou de um século,

mas pintam a humanidade. Poucos homens são

insensíveis à harmonia e aos quadros de grandes

objetos. Os quadros voluptuosos que chamam à

memória os prazeres dos sentidos e, sobretudo, os do

amor, estão igualmente no gosto de todos os povos. Os

filósofos que descobrem verdades úteis têm a estima

de todos os séculos e, em todos os séculos, amam-se

os poetas que fazem a virtude ser amada.

Mas o que é a virtude? Com esse nome se

nomeia as ações úteis nas pequenas sociedades. Um

homem que esconde do rigor das leis um parente

culpado passa por virtuoso nessas sociedades.

Um ministro que recuse amigos, parentes e

cortesãos para em seus lugares preferir um homem de

mérito e o bem do estado,

353

deve ter na corte a reputação de um homem duro, inútil

e desonesto.

Na corte chama-se prudência a falsidade, loucura

a coragem de dizer a verdade. Dá-se aí o título de bom

ao príncipe que prodigaliza os recursos do Estado, o

nome de amável ao príncipe que concede aos seus

favoritos ou à sua amante, cargos importantes à

felicidade da nação.

Como então saber se alguém é virtuoso? Guiais

todas as vossas ações ao bem do maior número?

Então sois virtuosos. Sim, a virtude é unicamente o

hábito de dirigir as ações ao bem geral. É em

consideração a este ponto de vista que se pode formar

ideias nítidas e precisas das quais os moralistas não

obtiveram a posse até o momento presente.

Uns, à frente dos quais se encontra Platão,

354

só recitaram engenhosos devaneios. A virtude,

segundo eles, é ideia de ordem, de harmonia, do bem

essencial. Outros, à testa dos quais está Montaigne,

sustentam que as leis da virtude são arbitrárias porque

observam que uma ação viciosa ao norte é com

frequência virtuosa ao sul. Os primeiros, por não terem

consultado a história, vagueiam num labirinto de

palavras. Os segundos, por não terem meditado sobre

a história, pensam que o capricho decidiu sobre a

bondade e a maldade das ações humanas.

O amor da virtude é então unicamente o desejo

da felicidade geral. As ações virtuosas são aquelas que

contribuem a esta felicidade. Os povos, por mais

atrasados que sejam, em seus costumes mais

singulares, sempre têm em vista unicamente a sua

felicidade. E se, em

355

certos países e lugares se honram ações que nos

parecem culpáveis, é que nesses países, essas ações

são úteis. O furto feito com habilidade era louvado em

Esparta, porque nesta república toda militarizada e

onde não havia espírito de propriedade, a vigilância e a

destreza eram qualidades úteis. Na China, onde a

população é excessiva, é permitido ao pai enjeitar ou

matar os filhos. Esta lei, tão cruel na aparência, evita

um mal maior e é, por consequência, útil. Enfim, em

todos os lugares, é a utilidade que torna as ações

criminosas ou virtuosas.

Mas em todos os lugares se liga a ideia de virtude

a ações que não podem produzir bem algum. É

verdade. Mas é que se está persuadido que essas

ações produzem um

356

bem, seja para esse mundo, seja para o outro. Eu

chamo de virtudes preconceito a esses hábitos e ações

que necessitam ser eliminadas.

Esses hábitos fundamentam-se na preferência

dada a sociedades particulares em detrimento da

sociedade geral. É isso que as torna viciosas.

Que bem faz ao mundo e à pátria a severidade

dos monges e dos faquires? De que utilidade pode ser

a loucura dos indianos que se fazem devorar pelos

crocodilos?

Trata-se de crimes de preconceito como se trata

de virtudes de preconceito.

Eu chamo de crimes de preconceito as ações

condenáveis pela opinião, embora não

357

prejudiquem ninguém. Que mal faz um brâmane que

toma por esposa uma virgem ou um homem que come

um pedaço de carne de vaca em vez de uma porção de

batatas?

As virtudes de preconceito são por vezes

costumes cruéis, como o costume dos Giagues de

esmagar crianças em um pilão para compor uma pasta

que, segundo os sacerdotes, os torne invulneráveis.

Há poucos povos que não tenham pelos crimes

de preconceito mais horror que pelas ações mais

nocivas à sociedade e mais estima pelas práticas

minuciosas e indiferentes que pelas ações úteis à

nação.

358

Da existência de virtudes reais e virtudes de

preconceito segue-se que há nos povos duas espécies

de corrupção: uma política e outra religiosa. Esta última

pode não ser criminal quando ela se alia ao amor do

bem público, aos talentos e às verdadeiras virtudes.

A corrupção política prepara, ao contrário, a

queda dos impérios. O povo é corrompido e logo os

particulares separam os seus interesses do interesse

geral.

Às vezes, esta corrupção se une à outra. Então

os moralistas ignorantes as confundem. Mas elas com

frequência encontram-se separadas. A corrupção

religiosa é, não raro, apenas o amor do prazer e é

inspirada pela natureza que ela satisfaz sem a aviltar.

Já a corrupção política é o efeito do modo de governar.

É dentro da legislação e da administração

359

dos impérios que é necessário procurar a causa dos

vícios e das virtudes dos homens.

As recitações dos moralistas só satisfazem a sua

vaidade e não produz nenhum bem. Seus discursos

afrontosos não podem mudar nossos sentimentos.

Nossos sentimentos são efeito da natureza e das leis.

É preciso condenar menos o luxo, que pode ser

necessário a um grande Estado e a arte da cortesia, a

que os homens devem suas artes, gosto e virtudes

políticas do que a instituição que faz do homem um

frouxo, um escravo, um velhaco ou um tolo.

É típico de moralistas hipócritas, ver com

indiferença os males que conduzem sua pátria à ruína

e se enfurecer contra

360

qualquer excesso de prazer.

Depois de colocados os princípios acima, pode se

fazer um catecismo em que os preceitos estarão claros,

verdadeiros e invariáveis. O povo, instruído por ele, não

será contaminado por vícios políticos e nem por

virtudes de preconceito. E o legislador, mais

esclarecido, fará apenas leis úteis. E as leis serão

respeitadas.

A inexecução das leis prova sempre a inépcia do

legislador. A recompensa, a punição, a glória e a

infâmia são as quatro divindades que podem inspirar as

virtudes e criar homens ilustres de todos os tipos.

Para aperfeiçoar a moral, os legisladores

361

dispõem de dois recursos: um é unir os interesses

particulares ao interesse geral; o outro é de apressar o

progresso do espírito. Mas, para acelerar esse

progresso, é preciso saber se o espírito é um dom da

natureza ou efeito da educação.

Esse é o assunto do terceiro discurso.

Todos os homens têm os sentidos

suficientemente bons para a percepção das mesmas

relações nos objetos. Possuem as mesmas

necessidades e teriam a mesma memória, se eles

tivessem a mesma atenção.

Todos os homens bem constituídos são capazes

de atenção. Todos aprendem sua língua. Todos

aprendem a ler e compreendem ao menos as primeiras

proposições de Euclides. É suficiente para elevarem-se

362

às mais importantes idéias, contanto que esforcem a

atenção. E para fazer esforço é necessário ter paixão.

São as paixões que fecundam o espírito e o

elevam a grandes ideias. São elas que formaram e

conduziram Licurgo, Alexandre, Epaminondas, etc. São

elas que inspiram os grandes projetos, os meios

extraordinários e as palavras sublimes, que são

arrebatamentos de almas fortemente passionais.

Tornamo-nos estúpidos na ausência das paixões.

Por vezes os príncipes mostram espírito para o

despotismo, Mas, uma vez que seus desejos estão

saciados, não têm mais

363

coragem de se arrancarem às delícias da ociosidade e

se embrutecem em suas grandezas.

Mas todos os homens são capazes do mesmo

grau de paixão?

A origem das paixões está na sensibilidade física,

no amor do prazer e no medo da dor, que movimentam

igualmente todos os homens.

O avaro, em se privando de tudo, se propõe a

assegurar os meios do usufruto dos prazeres e da

ausência dos males. O ambicioso tem o mesmo intento

na procura das procurar as grandezas. O amor da

glória e da virtude é apenas o desejo de desfrutar as

vantagens que a glória e a virtude acarretam.

Todos os homens são capazes do

364

mesmo grau paixão. Todos podem amar doidamente a

glória e a virtude. Então, todos têm a potência de se

elevar às maiores ideias e de fazer coisas

excepcionais, Nascidos iguais, os homens tornam-se

diferentes pelas leis e pela educação. Esta, a

educação, deve preparar à obediência e ao respeito

para com as leis. Contudo, é muito negligenciada. Para

saber o que ela pode fazer nos espíritos é importante

determinar de maneira precisa as ideias que se

assentam aos diversos nomes dados ao espírito. É o

que nos vamos apreciar no quarto discurso.

O nome de gênio é dado apenas aos espíritos

inventores. Sua invenção se apóia nos detalhes ou no

fundamento das coisas. É o trabalho provocado pelas

paixões e, sobretudo, pela paixão da glória que impele

a alma à

365

intensa meditação e faz descobrir novas verdades e

novas combinações. Os objetos que rodeiam o gênio e

as circunstâncias onde ele se encontra colocado

determinam e limitam a sua genialidade.

A imaginação é a invenção de imagens, como o

espírito é a invenção de ideias. Ela brilha nas

descrições, nos quadros. As pinturas são ou grandes

ou voluptuosas.

O sentimento é a alma da poesia. O autor que

está dela privado, está sempre aquém ou além da

natureza. Aquele que tem apenas espírito está sempre

afastado da simplicidade.

O espírito é apenas um conjunto de novas ideias

que não é suficientemente extenso,

366

nem importante para merecer o nome de genialidade.

Assim Maquiavel e Montesquieu são gênios. La

Rochefoucauld e La Bruyère são homens de espírito.

O talento é uma aptidão a um só gênero, dentro

do qual resulta apenas uma invenção medíocre.

O espírito é fino quando percebe pequenas

coisas e as dá à existência.

O espírito é forte quando produz ideias próprias a

causar fortes impressões.

Ele é luminoso quando produz claramente as

ideias abstratas.

É extenso quando discerne um conjunto e vê nele

relações afastadas.

É penetrante e profundo quando vê tudo nos

objetos.

367

O belo espírito tem mais escolhas de palavras e

rodeios de frases do que tem de ideias.

O espírito do século, o espírito do mundo é frívolo

e se ocupa de coisas pequenas. Se por acaso se

ocupa de grandes homens ou de obras célebres, é

para rebaixá-los. É o deus da zombaria que considera

com um riso maligno e um olho zombeteiro o Panteão,

a igreja de São Pedro, o júpiter de Fídias.

A genialidade e o espírito são efeitos da força ou

da vivacidade das paixões. O bom senso é efeito de

sua moderação e se restringe quase ao espírito de

conduta.

Mas é natural, dizem, das pessoas parecerem

insensíveis às paixões da

368

virtude e da glória. É culpa do clima? É do modo de

governar?

Em suas repúblicas Horácio Cocles e Leônidas

só podiam ser heróis. Nessas repúblicas, os homens

pouco apaixonados eram os menos bons cidadãos.

As repúblicas se corrompem quando as honras e

os prazeres estão atrelados ao poder e à tirania, Os

mesmos homens que teriam sido Cipiões e Camilos

serão Mários e Catilinas.

A consideração é uma glória atenuada. Quando

ela está unida à autoridade faz aduladores e

intrigantes. O dinheiro torna-se mais venerado que a

virtude. Vêem-se aos Cincinatos e Catões sucederem-

se

369

Crassos e Sejanos. A mais alta virtude e o vício mais

odioso são ambos, efeito do prazer que encontramos

aos nos entregarmos a um ou a outro.

Todos os homens possuem um desejo secreto de

ser déspota, porque todo homem tem, uns mais outros

menos, o desejo de se fazer servir dos outros para a

sua felicidade.

Nem sempre é preciso talentos e coragem para

estabelecer uma tirania. Só é necessário um

atrevimento comum e vícios. O príncipe começa por

dividir as classes de cidadãos, por espalhar anarquia e

por fazer desejar a uma parte da nação o descrédito da

outra parte. Faz em seguida brilhar a espada do poder,

coloca as virtudes no rol dos

370

crimes, multiplica os delatores, ordena a sufocação das

informações e exila os Sênecas e os Traseias.

Porém, os déspotas dão aos militares, que lhe

são sempre devotados, o sentimento de força e

acabam sendo suas vítimas.

A história dos imperadores de Roma e de

Constantinopla, dos sultões dos turcos, dos czares,

etc., são provas desta verdade. O homem mais culpado

de lesa-majestade é, por conseguinte, aquele que

aconselha o príncipe o uso de excessos e de não ter

limites no uso de sua autoridade.

Os déspotas, senhores absolutos dos povos que

não ousam censurá-los, não têm interesse em se

tornarem esclarecidos. Seus ministros, colocados por

intriga, não têm conhecimento

371

de justiça e de administração e ideia alguma de virtude.

Por conseguinte, a corrupção do povo sustenta a

ignorância e a inépcia dos príncipes e seus ministros.

Só há virtude nas sociedades onde a legislação

une o interesse particular ao interesse geral. Nos povos

em que o poder é repartido entre o povo, os grandes e

os reis, a necessidade das diversas classes de se

ocuparem dos assuntos importantes e a liberdade de

tudo pensar e tudo dizer, dão às almas força e nobreza.

Uma pequena cidade na Grécia produziu grandes

homens e as mais belas ações que todos os ricos e

vastos impérios do Oriente.

372

A força das paixões é proporcional às

recompensas que lhe são correlacionadas. As pilhas de

ouro do México e do Peru, exaltando a avareza dos

espanhóis, lhes têm feito fazer prodígios. Os discípulos

de Maomé e de Odin, na esperança de possuírem as

huris ou as valquírias, não se importavam com a morte.

Em todo lugar onde as letras resultam em consideração

e sucesso, elas são cultivadas com êxito.

O bom senso, que é efeito das paixões fracas,

não cria, não inventa, não muda e nem esclarece.

Quando tudo está em ordem, ele preenche bem os

lugares importantes. Se for necessário combater

abusos, o bom senso é inepto.

Somente gênios inspirados por fortes paixões

fundam ou recuperam os impérios.

373

O gosto é o conhecimento do que agrada a todos

os homens ou a um determinado povo. Adquire-se o

gosto deste último tipo pelo hábito de comparar os

julgamentos e se adquire o gosto do primeiro tipo, que

é o verdadeiro gosto, pelo conhecimento profundo da

humanidade.

Para se ter êxito nas artes, nas ciências e nos

negócios, primeiro é necessário se persuadir de que

não há excelência simultânea em todos os gêneros.

Newton não é reputado entre os poetas, nem Milton

entre os geômetras.

Há talentos exclusivos. Há certas qualidades e

mesmo, se atrevo dizer, certas virtudes particulares

exclusivas para determinados talentos. A ignorância

desta verdade é a causa de mil

374

injustiças. Elogia-se a moderação do filósofo e ao

mesmo tempo se lastima sua pouca emotividade, não

se apercebendo que ele deve o talento da observação

à tranquilidade de sua alma. Pretende-se que o homem

excepcional seja sempre sábio, mas se esquece que a

genialidade é a força da paixão, raramente compatível

com a sabedoria.

Pode-se saber por três sinais, se acaso se

nasceu para realizar grandes feitos: 1º. Se muito se

ama a glória para sacrificar todas as outras paixões; 2º.

Se ardentemente se admira as belas ações ou os

trabalhos consagrados pelo apoio de todos os tempos;

3º. Se verdadeiramente se ama os grandes homens do

seu tempo.

Após essas ideias sobre as diferentes espécies

de talentos, o autor termina, como ele havia prometido,

falando da ciência da

375

educação. Que ela é o conhecimento dos meios

próprios para formar corpos robustos, espíritos

esclarecidos e almas virtuosas. Esses meios

dependem absolutamente do governo. Sob um mau

governo, a natureza e a educação não podem produzir

homens esclarecidos e virtuosos, porque esses

homens sempre querem a felicidade própria e, debaixo

do jugo das tiranias, a luz e a virtude não conduzem de

maneira alguma à felicidade.

Está aí um extrato fiel do livro 'Do Espírito'. Não é

próprio da obra humana e do homem serem vistos

maior e melhor observados nos detalhes. Tem-se dito

de Descartes que ele criou o homem. Pode-se dizer de

Helvétius que ele o conheceu. Foi o primeiro que

fundou a moral sobre a base inquebrantável do

interesse pessoal.

376

Helvétius é um dos filósofos que mais tem esclarecido

esse assunto e colocado em xeque os sistemas que

nos escondem de nós mesmos e nos dão ideias falsas

de virtude. Seu livro é a produção de uma alma

verdadeiramente tocada pelos infortúnios que afligem

as grandes sociedades. Nenhuma pessoa fez sentir

melhor sobre que princípios é preciso estabelecer um

governo e os inconvenientes de toda constituição

política onde as vantagens de um pequeno número são

preferidas à felicidade do maior número. Sólon disse;

―Atenienses, vós estareis tão convencidos de que é do

vosso interesse seguir minhas leis, que não sereis

tentados a transgredi-las‖.

Eis o que devem dizer todos os legisladores e o

que Helvétius receita a eles. Seu livro tem ainda uma

vantagem que

377

o coloca acima de muitos outros. É o estilo sempre

claro e nobre. Quando o autor fala de uma verdade

nova ou abstrata, ele é simples e preciso. Acostumado

o vosso espírito a essas novas ideias, seu estilo torna-

se majestoso, forte e gracioso. Tendo-vos apresentado

uma dessas verdades particularmente interessantes

aos homens, ele a abrilhanta com as riquezas de sua

imaginação. E essa imaginação, sempre submissa à

filosofia, a embeleza sem a desencaminhar. Ela serve

apenas para tornar as verdades mais sensíveis e, por

assim dizer, mais evidentes. É com essa mesma

intenção que ele espalha no seu livro tantos contos

agradáveis e interessantes. Seus contos são apologias

e se ele os não tem poupado, é preciso se lembrar que

ele escreveu na França e que ele falava a um povo

ainda criança.

378

Logo que esta obra apareceu em Paris, os

verdadeiros filósofos a apreciaram. Os pequenos

moralistas ficaram enciumados, a alta sociedade,

enquanto aguardava que fosse julgado, comentava

depreciativamente e os hipócritas se alarmavam e com

razão. Uma mulher famosa por seu espírito prendado e

firmeza de caráter (senhora Du Deffant) disse a

respeito de Helvétius: ―É um homem que disse o

segredo de todos‖.

Os teólogos prepararam um plano de

perseguição que fizerem anteceder por críticas

absurdas. Disseram no 'Jornal cristão' e em enfáticas

pastorais: ―Que o prejudicial livro 'Do Espírito' era um

vapor saído do abismo. Que o autor era um leão que

atacava a virtude à viva força. Uma serpente que

caçava por emboscada. Que ele colocava

379

o homem no nível das bestas, sem respeito por

Orígenes que disse expressamente que o homem

opera pela razão e os animais por instinto. Que o autor

estava errado ao falar de legislação visto que se acha

nos Evangelhos tudo o que é preciso saber disso. Que

não há nada nos livros sagrados, nem nos Santos

Padres da igreja do que está contido no livro 'Do

Espírito'. Que o amor da glória e o amor da pátria

devem ser condenados como paixões, porque todas as

paixões são frutos do pecado‖.

Outros teólogos de igual clareza e lucidez

disseram: ―Que a filosofia dos enciclopedistas e de

Helvétius espalhavam um odor de morte que infectaria

toda a posteridade e que era uma planta maldita que

sufocaria de tempos em tempos o bom

380

grão semeado no campo do pai de família‖.

De início Helvétius recebeu todas essas críticas

com tranquilidade. Ele nem mesmo pensou em

responder a acusações tão vagas e absurdas. Como

faria isto? Como provar, disse Pascal, que não se está

à porta do inferno? Ele ficou um pouco apreensivo

quando foi ameaçado de censura pela Sorbona. Ele a

viu aparecer e só achou-a ridícula. Uma sequência de

algumas das proposições condenadas por esta

faculdade justificará bem o desprezo de Helvétius.

―A sensibilidade física produz as nossas ideias.

Ou, o que é o mesmo; nossas ideias nos vêm através

dos sentidos‖.

―O desejo de nossa própria felicidade é suficiente

para nos conduzir à virtude‖.

381

―É por boas leis que se produzem homens

virtuosos‖.

"A dor e o prazer fazem os homens pensar e

agir".

―É preciso tratar a moral como as outras ciências

e fazer uma moral como uma física experimental‖.

―É à maneira diferente pela qual o desejo de

felicidade se modifica que se devem os vícios e as

virtudes‖.

―Os homens não são maus, apenas submissos

aos seus interesses‖.

―As ações virtuosas são as ações úteis ao

público‖.

―De todos os prazeres dos sentidos, o amor é o

mais arrebatador‖.

382

―É preciso lamentar menos a maldade dos

homens do que a ignorância dos legisladores, que têm

colocado sempre em oposição o interesse particular ao

interesse geral‖.

―Um tolo produz tolices como uma planta

selvagem produz frutos amargos, etc. etc.‖.

Depois do aparecimento dessa censura, alguns

padres e o jesuíta chamado Neuville, pregaram em

Paris e na corte contra o livro 'Do Espírito'.

O ódio dos molinistas e dos jansenistas estava

então em plena ebulição. Essas duas facções se

acusavam reciprocamente de trair os interesses da

religião e, para se justificar, uns e

383

outros se excitavam com grande fervor contra os

filósofos. Os jansenistas tinham mais crédito no

parlamento e os molinistas em Versalhes. Os

jansenistas queriam fazer queimar o autor do livro e os

jesuítas, perseguindo-o, queriam se fazer honrados na

corte.

É necessário lhes fazer justiça. Muitos dentre eles

eram amigos de Helvétius, tanto quanto podem os

jesuítas serem amigos. Ele havia tratado sua ordem

com deferência e, na sua obra, onde ele gracejava de

tantos pregadores e doutores, não havia citado um

único jesuíta. Esses padres eram-lhe gratos por isto e

no começo falaram do seu livro com moderação.

Deram-lhe mesmo alguns elogios. Mas os jansenistas,

declarando-se perseguidores de Helvétius, estimularam

a rivalidade

384

dos jesuítas contra ele. A 'Gazeta Eclesiástica' se

desprendeu contra Helvétius. Berthier não podia se

calar com decência. Afinal, estando o parlamento

prestes a atuar severamente no caso, os jesuítas

sentiam-se humilhados de não terem participado da

maquinação.

Um deles, amigo a vinte anos de Helvétius (e

esta qualidade me impedirá de nomeá-lo), imaginou

que seria uma honra infinita a si mesmo e à sua ordem,

se pudesse fazer um filósofo retratar-se. Tramou uma

intriga contra o seu amigo benfeitor e a executou com a

diligência e a perfídia afetuosa de um padre da corte.

De início, propôs a Helvétius a assinatura de uma

pequena retratação, que devia, dizia ele, lhe reconduzir

às bondades da rainha e lhe preservar dos furores

jansenistas.

385

Helvétius consentiu em repetir num escrito particular o

que ele havia dito no seu prefácio do seu livro. ―Que se,

contra a sua expectativa, alguns dos princípios não

fossem concordes ao interesse do gênero humano, ele

declarava já, antecipadamente, os reprovar e que, sem

garantir a verdade de nenhuma de suas máximas, ele

só garantia a retidão e a pureza das suas intenções‖.

O jesuíta de início, se fez valer de ter obtido uma

espécie de retratação, mas queria outra mais precisa,

mais detalhada e sobretudo humilhante. Ele sugeriu à

rainha a vontade de exigi-la. Mostrou a Helvétius a

necessidade de se resolver a fazê-la e não obteve

resultado. Escreveu então à senhora Helvétius para

assustá-la, mas ele escreveu a uma mulher corajosa e

386

determinada a viver com seu marido e crianças no

exílio. Conseguiu melhor intento junto à mãe de

Helvétius. Ela foi persuadida que seu filho devia à

rainha o que esta princesa lhe exigia. Ela insistiu com

Helvétius e afligiu por muito tempo o seu coração, sem

poder abalá-lo.

Ele acreditava ter-se expressado no livro com

conveniência e reserva suficiente para colocá-lo ao

abrigo da censura. E mais: havia se submetido a todas

as formalidades jurídicas. Havia tido um censor real, de

quem ele acatara os julgamentos. Como então poderia

ser culpado? Mesmo quando seu livro tornou-se

repreensível, só se poderia culpar o censor. Porém, era

isso que ele mais temia. Não podia suportar

387

a ideia que ia ser a causa da desgraça, talvez mesmo

da perda de um homem estimável. Assim, para salvá-

lo, ele assinou o que se queriam.

Assim, por ter demonstrado que a única maneira

de tornar os homens virtuosos e felizes era

combinando o interesse particular com o interesse

geral, Helvétius foi tratado como Galileu o foi por ter

demonstrado o movimento da terra. Galileu, após ter

pedido perdão de joelho, disse em se levantando, "E

però si muove". A posteridade tem sido de sua opinião.

Do mesmo modo, quanto mais ela se esclareça, mais

pensará como Helvétius.

Bem se crê que a sua submissão não apaziguou

os padres. Ele recebeu ordem de se desfazer do cargo

e o senhor Tercier, seu censor,

388

foi destituído do cargo de primeiro funcionário de

assuntos estrangeiros. Esses rigores foram trabalho

dos jesuítas. Os jansenistas queriam ir mais longe. O

parlamento, que com certeza não entendeu o livro 'Do

Espírito', ia processar o senhor Tercier e Helvétius,

quando uma decisão do conselho que se restringia a

suprimir o livro, salvou o autor e o censor.

Enquanto uma seita de teólogos usufruía o prazer

de humilhar Helvétius e a outra se deleitava na

esperança de fazê-lo queimar, os jornalistas franceses

misturavam suas vozes com as de seus tigres.

Trataram o livro 'Do Espírito' como eles tratam todo

trabalho que se eleva acima da mediocridade. Suas

críticas foram repetidas e são ainda pelos homens de

boa fé, que só têm em

389

comum com os jornalistas o fato de não entenderem

Helvétius.

Acusaram-no de ter dito o que os antigos já

tinham dito antes dele. Sem dúvida, várias verdades

que se encontram no seu livro se acham também nos

antigos, mas lá, elas são esparsas e isoladas, sem que

se apercebam as relações que há entre elas. Em

Helvétius, ao contrário, elas estão ligadas, elas se

apóiam e formam o sistema do homem.

Esta verdade, "todas as nossas ideias nos vêm

dos sentidos", se encontra em Aristóteles e em

Epicuro, mas é só em Locke que ela é desenvolvida,

demonstrada e fundamenta o conhecimento do espírito

humano. Por consequência, é a Locke que ela

pertence.

390

"O que é vício ao norte é virtude ao sul", está em

Montaigne como em Helvétius, mas em Montaigne,

esta verdade é dada como um fenômeno do qual se

ignora a causa. Em Helvétius a causa é consignada. As

verdades pertencem menos àqueles que as proferem

como simples asserções do que àqueles que as

demonstram, as desenvolvem, as ligam a outras

verdades e as tornam mais fecundas.

Acusa-se Helvétius de falta de método. E se fez a

mesma censura a Montesquieu. Essas reprovações só

puderam ter sido feitas por homens que, por falta de

atenção e de capacidade, não compreenderam o

conjunto dos livros 'Do Espírito' e 'O Espírito das Leis'.

A sequência de ideias escapa em Montesquieu porque

ele é

391

obrigado a omitir frequentemente as intermediárias,

mas este encadeamento não deixa de existir. Ela

escapa em Helvétius porque as ideias intermediárias,

sendo ou muito novas ou muito importantes, ele

desenvolve-as, estende-as e embeleza-as. Sendo o

espírito, surpreendido por numerosos detalhes, perde

de vista a sequência das ideias principais, mas essas

sequências, nem por isso, estão menos em sua obra.

Atreveu-se a dizer que Helvétius reduziu a nada

todas as virtudes porque fez do interesse o móbil de

todas as ações. Mas o que Helvétius entende pela

palavra 'interesse'? O amor do prazer, a aversão à dor.

A que se reduz então o que ele diz? A esta verdade

eterna que, seja na virtude, seja nos prazeres, o desejo

de nossa felicidade é sempre o nosso móbil.

392

Acusaram-lhe também de favorecer a corrupção dos

costumes e a libertinagem porque ele fala do

entusiasmo da virtude e da glória que o amor das

mulheres tem com frequência inspirado junto aos

espartanos, aos samnitas e junto aos nossos

ancestrais. Entretanto se vê nos princípios de Helvétius

que, se a liberdade reinava junto a um povo, as

mulheres eram aí muito pouco estimadas para que o

desejo de lhes agradar viesse a ser um motor possante

e que, quando os prazeres são comuns ou fáceis, não

se os compra nem por trabalhos e nem por perigos.

Reprova-se em Helvétius ter ele falado friamente

das virtudes privadas e úteis somente nos pequenos

grupos sociais. Não é que não sentisse a estima que

lhes é devida. Ele as possuía todas, mas elas são

menos

393

seu assunto que as virtudes que contribuem à

felicidade e à glória das nações. Além do que, uma vez

estabelecidas essas grandes virtudes por boas leis, as

outras também, por decorrência, se estabelecerão.

O que o comum dos leitores tem menos perdoado

em Helvétius é ter pretendido que todos os homens

nascem com a mesma disposição de espírito e que não

haveria homem que a educação e o trabalho não

pudessem elevar ao nível de gênio. Segundo ele, só a

educação distingue os homens. A natureza os tem feito

iguais. Helvétius não leva em consideração as

diferenças de temperamento e de constituição física.

Supõe que o órgão interior recebedor das sensações é

o mesmo em todas as cabeças, que recebe as

sensações da mesma maneira e

394

que opera em todas com a mesma facilidade. Supõem

ainda, enfim, que só as circunstâncias e a educação

têm feito Newton geômetra, Homero poeta, Rafael

pintor e tal crítico um tolo. Ele emprega toda sua força

para estabelecer esta opinião, mas, infelizmente, até o

presente não tem conseguido. Mas dos esforços que

fez para prová-la, resulta a evidência de uma grande

verdade. Que para desenvolver e formar os nossos

talentos e qualidades, nós contamos muito com a

natureza, mas não o suficiente com a educação. A

máxima de Locke, que nós nascemos discípulos dos

objetos que nos rodeiam, é proclamada por Helvétius.

Além do que, se acontecer de cada homem não nascer

com as mesmas disposições dos outros homens, todos

os homens em conjunto são reputados iguais. O

legislador

395

que comanda vinte milhões de homens deve ver em

todos as mesmas faculdades. E suas leis, como

aquelas da natureza, devem ser gerais. Não devem

escolher pessoas para inspirar unicamente nelas a

virtude ou a genialidade. Cabe ao filósofo, que observa

os homens em detalhe, ver as diferenças que a

natureza colocou entre eles. Mas essas diferenças

desaparecem aos olhos do legislador.

Sem me deter mais nas críticas feitas contra um

dos melhores trabalhos deste século, direi que ele foi

condenado em Roma pela Inquisição, mas que esta

condenação, solicitada pelo clero francês, não teve

nenhum efeito na Itália. Lá o livro foi traduzido,

admirado e reimpresso. Vários homens revestidos das

principais dignidades da Igreja, e entre outros, o

396

cardeal Passionei, apressaram-se em escrever ao

autor para lhe agradecer o prazer que lhes havia dado.

Outro cardeal, que nós não nomeamos porque ainda é

vivo, lhe comunicou "que não se concebia em Roma a

tolice e a maldade dos padres franceses". Todos os

jornais da Itália o cobriram de elogios.

Um disse, falando do livro: ―Questa è un opera

che all’umanità apporterà infallibilmente un gran

vantaggio‖. Outro diz do autor: ―Il grande autore deé

rallegrars, essendo sicuro della gratitudine e della stima

che per lui avranno i veri dotti e quelli che ben

comprendono le di lui grande idee‖.

O sucesso foi o mesmo na Inglaterra. Traduzido

em Londres, se fez aí numerosas

397

edições no primeiro ano. Na Escócia, Hume e

Robertson falaram como de um trabalho superior.

Vários poetas ingleses o comemoraram. Não houve

críticas nesta ilha esclarecida a não ser por um

pequeno número de partidários da filosofia de Platão,

que lá se conserva embelezada e tornada sedutora

pelo milorde Shaftesbury.

Na Alemanha, logo de início apareceram duas

edições do livro de Helvétius. O famoso Gottscheid

colocou no frontispício de uma dessas traduções um

prefácio em que ele diz que ―se o livro 'Do Espírito' foi

condenado na França e num país que crê na

infalibilidade do papa, ele deve fazer sucesso entre os

protestantes e nos países onde os homens conservam

seus direitos‖. Ele acrescenta que ―o autor vem destruir

398

vários preconceitos funestos à sua pátria e esclarece o

mundo sobre os princípios da moral e da legislação‖.

Seu livro foi lido com avidez em todas as cortes

da Alemanha e recebido com os mesmos

arrebatamentos na Suécia e mesmo na Rússia. A

rainha da Suécia disse a um homem que ela honrava

com a sua confiança: ―Como eu gostaria de conversar

com Helvétius! Queria ao menos que ele soubesse do

prazer que me tem dado. Escreva-lhe de minha parte o

quanto eu o admiro‖.

O embaixador francês em Petersburgo lhe

escreveu: ―Ao chegar encontrei o espírito russo tão

ocupado com o vosso quanto todo o resto da Europa. É

com grande prazer que me encarrego de ser o

intérprete das pessoas esclarecidas desta nação. Eu

tomo

399

a liberdade de engrandecer as vossas qualidades junto

a eles. Eu devo como cidadão e como ministro,

conhecer e fazer conhecido tudo o que honra minha

pátria‖.

É pequeno número de franceses cujos apoios

merecem ser contados, mencionando com elogio em

seus trabalhos o livro 'Do Espírito' e ou defendendo

com calor nas conversas. Voltaire deu a Helvétius os

testemunhos mais carinhosos de sua estima.

Parecem vossos versos de Apolo feitos pela mão.

Tereis apenas meu reconhecimento por fruto.

Vosso livro é ditado por íntegra e reta razão,

Partais depressa e deixeis na França tudo.

Voltaire lhe oferece um amparo. Ele lhe consola,

apóia, encoraja, deseja e propõe de viver em inteira

independência, onde possa fazer

400

uso de seu amor pela verdade, da eloquência e da

genialidade. Ao mesmo tempo ele escreve a outras

pessoas que é o partidário mais zeloso de Helvétius.

Que a França é bem ridícula porque, logo que aparece

uma verdade entre nós, todo mundo fica alarmado

como se os ingleses estivessem nos invadindo. Na

Inglaterra, acrescenta ele, o livro 'Do Espírito' só tem

feito discípulos e amigos para o autor porque, em lugar

de hipócritas e pequenos importantes, os ingleses têm

filósofos que nos instruem e marinheiros que nos

castigam nas orelhas. Voltaire convida, sobretudo, os

seus compatriotas a imitarem os ingleses na nobre

liberdade de pensar e no profundo desprezo pelas

frivolidades de escola. Assegura que há muito tempo

não tem visto um só homem de sociedade que, sobre

as coisas essenciais, não pense como Helvétius.

401

Tantas aprovações ilustres, edições do livro 'Do

Espírito' que se sucederam rapidamente, seu sucesso

em todas as nações: Testemunhos que o autor podia

estar convicto de ter feito um livro útil ao gênero

humano. Sinais evidentes do reconhecimento universal.

Assim, o doce sentimento de sua glória sarou logo as

feridas que a intriga e a inveja tinham feito em

Helvétius. Ele tornou-se mais feliz como jamais foi.

Ele passava a maior parte do ano em suas terras

em Voré. Bom marido e bom pai, contente de sua

esposa e de suas crianças, lá saboreava os prazeres

da vida doméstica. A felicidade desta família era

percebida até mesmo por aqueles que estavam menos

preparados para a sentirem. Uma senhora da

sociedade disse, falando deles:

402

―Essa gente não pronuncia como nós as palavras 'meu

marido, minha esposa, minhas crianças'‖.

Helvétius tinha se preparado desde há muito

tempo para outra espécie de felicidade. Logo que ele

tomou posse de suas terras em Voré, ele se entregou a

seu caráter de beneficência.

Nesta terra havia um fidalgo de nome Senhor de

Vasseconcelle. Ele possuía apenas uma pequena

propriedade foreira e há muito tempo não fazia os

devidos pagamentos ao senhorio. Helvétius,

comprando a terra, comprou também os direitos sobre

as somas que eram devidas à Voré. Os

administradores, para mostrarem serviço ao novo

senhor, não deixaram de exigir com rigor tudo o que lhe

403

era devido. Fazia poucos dias que ele havia chegado,

quando lhe foi anunciado o senhor de Vasseconcelle.

Este conta ao senhor Helvétius que a situação de seus

negócios não lhe havia permitido de pagar o foro que

devia à Voré já há alguns anos e que no momento não

estava em condição de acertar tudo, mas se

comprometia para dali em diante pagar exatamente o

ano corrente e os atrasados de um ano. Acrescentou

que se lhe fosse exigido mais e se continuasse os

procedimentos de cobrança, estaria arruinado

irremediavelmente. Ele pediu a Helvétius que desse

ordem aos administradores de cessassem os

procedimentos de execução. ―Eu sei, lhe diz o filósofo,

que você é um homem de sociedade e que não é rico.

Daqui para diante, você me pagará como puder. Eis

aqui um papel que deve impedir os meus

administradores de lhe importunarem‖. Ele lhe

404

deu uma quitação geral. O senhor de Vasseconcelle se

joga seus joelhos gritando: ―Ah! Senhor, vós salvais a

vida de minha esposa e de cinco crianças‖. Helvétius o

ergue abraçando-o. Fala-lhe com o interesse mais

nobre e terno e lhe faz aceitar uma pensão de mil libras

para criar os filhos.

Outros homens de sociedade ou vizinhos, ou

vassalos do senhor Helvétius, recorreram a ele em

suas necessidades. Muitos respondiam processos.

Alguns, que suspensa a guerra, tinham um rebanho a

refazer ou equipamentos a recuperar e outros que

tinham crianças a educar ou um bem em desordem

podiam contar com a ajuda do senhor de Voré. Entre

todos os homens desta condição, que lhe deviam

obrigações, nomeamos apenas MM. De L'Étang, que

não quis jamais calar os

405

benefícios que ele recebeu de Helvétius.

Se os seus rendeiros tiveram alguma perda ou se

o ano não fora fecundo, lhes perdoava as dívidas e

com frequência lhes dava dinheiro. Ele fixou em suas

terras um cirurgião, homem de valor. Montou uma

farmácia bem abastecida para distribuição de remédios

a todos que necessitassem. Quando um camponês

caia doente, recebia carne, vinho etc., tudo o que

convinha ao seu estado. E Helvétius ia visitá-lo com

frequência, consolando e se preocupando que tivesse

bons cuidados e que fosse bem servido. Algumas

vezes lhe servia ele mesmo. Tinha uma maneira bem

segura de terminar quaisquer processos: Pagava de

imediato o preço da coisa contestada.

406

Ele era amigo zeloso e atencioso de pequeno número

de camponeses que mostravam bons costumes e

bondade. Gostava de ter à mesa homens idosos e

senhoras muito velhas que tinham toda a rudeza de

sua idade, mas que eram justas e praticavam o bem.

Com frequência fazia os seus amigos

desfrutarem um espetáculo deleitoso. O da sua

chegada à campanha. Mulheres, velhos e crianças

vinham rodeá-lo, abraçá-lo, soltando gritos e

derramando lágrimas de alegria. À sua partida, seu

coche era seguido, por muito tempo, por uma multidão

de vassalos ou de vizinhos.

Ele estimulava o trabalho em suas terras. E

queria provocar a industrialização de Voré porque só

assim se podia dar

407

aos habitantes a suficiência que lhes era recusada pela

esterilidade do solo. Tentou implantar uma fábrica de

rendas d’Alençon, mas até o momento não obteve

sucesso. Foi mais feliz num outro empreendimento.

Após ter sido enganado por agentes infiéis, ou pouco

inteligentes, finalmente estabeleceu uma fábrica que

emprega mão de obra não especializada, que faz dia a

dia, novos progressos.

Passava todas as manhãs a meditar e escrever.

O resto do dia procurava distração. Amava a caça e

para torná-la mais agradável, não imaginava aumentar

as caçadas. É verdade que não gostava de vê-la

destruída nem pelos outros e nem por ele próprio.

Entretanto, estava cercado de caçadores ilegais.

Estabeleceu severas proibições, mas os guardas, que

o conheciam, não levavam à risca o estabelecido.

408

Um dia, um camponês veio caçar justamente

debaixo das janelas do castelo. Helvétius ficou irritado

e ordenou que este homem fosse vigiado de perto e

preso na primeira ocasião. No dia seguinte, trouxeram-

lhe o culpado. Helvétius, muito irado, se levanta e dirige

apressadamente ao caçador que dois guardas

seguravam no pátio do castelo. Após o ter olhado um

momento disse: ―Meu amigo, você procedeu mal

comigo. Se tinha necessidade de caçar, por que não

me pediu autorização? Eu lhe teria dado‖. Em seguida

às essas palavras, ordenou que o libertassem e lhe

devolvessem o que havia caçado.

Entretanto a senhora Helvétius, indignada com o

atrevimento dos caçadores, assegurou ao marido que

caso não houvesse punição, continuariam a caçar em

suas propriedades.

409

Ele concordou e prometeu usar de rigor. Ordenou aos

guardas que multassem e desarmassem qualquer um

que atirasse em suas terras. Poucos dias após as

novas ordens, prenderam um camponês que caçava.

Tomaram-lhe a espingarda e conduziram-no à prisão,

de onde não saiu até ter quitado a multa. Helvétius,

informado deste acontecimento, vai procurar o aldeão,

receando incorrer nas censuras da senhora Helvétius.

Após obter a promessa do caçador de que não falaria

do que iria se passar entre eles, pagou-lhe o preço da

arma e lhe deu o dinheiro correspondente à soma da

multa e das custas totais do processo. A senhora

Helvétius, por seu lado, não estava tranquila. Disse às

suas filhas: ―Eu sou a causa desse pobre homem estar

arruinado. Eu estimulei vosso pai a

410

fazer punir os caçadores ilegais‖. Ela se fez conduzir à

morada daquele caçador, interroga a quanto monta a

soma da multa e das custas e o preço da arma de fogo.

Paga tudo. O camponês recebeu o dinheiro sem faltar

ao acordo com Helvétius

No mesmo ano, quando retornava à Paris, lhe

ocorreu um pequeno incidente que prova que sua

filosofia e sua bondade não o abandonariam jamais.

Sua carruagem foi parada numa rua por uma charrete

carregada de lenha que podia ser desviada facilmente

e deixar livre a rua. Mas não se fazia nada disso.

Helvétius, impaciente, chamou de tratante o condutor.

―Tem razão, lhe diz o aldeão. eu sou um velhaco e o

senhor um homem de sociedade, visto que eu estou a

pé e o senhor de carruagem. Meu amigo,

411

lhe diz Helvétius, vos peço perdão. Mas, tu vieste me

ensinar uma excelente lição que devo pagar‖. Entrega-

lhe seis francos e fez sua gente ajudar o carroceiro a

realocar a charrete.

Depois de passar sete ou oito meses em suas

terras, tornava a trazer a família para Paris onde vivia

em razoável isolamento com alguns amigos de

variadas condições, que lhe convinham por suas luzes

do saber e costumes. Somente dava um dia por

semana para as relações sociais. Nesse dia, sua casa

era um lugar de encontro da maioria dos homens de

mérito da nação e de muitos estrangeiros: príncipes,

ministros, filósofos, grandes senhores e literatos,

ansiavam por conhecer Helvétius.

Tal gênero de vida tão delicioso só foi

interrompido por duas viagens agradáveis.

412

Helvétius queria ver a Inglaterra e conhecer esta

famosa nação a quem a Europa deve tanto as luzes.

Queria ver o efeito das boas leis e de uma vigilante

administração. Partiu para Londres em de março de

1764. Foi recebido pelo rei, por altos funcionários e

sábios, como devia ser um homem ilustre cuja

reputação sempre o antecede. Viu as terras do país.

Não as achou melhor cultivadas que as da França, mas

encontrou os camponeses mais felizes. Reparou no

povo do interior da Inglaterra muita humanidade e nada

daquela arrogância que, certas vezes, os estrangeiros

reprovam nos habitantes de Londres.

Atravessando uma vila da província de Yorkshire,

um carregador desajeitado o derruba. Os vidros da

liteira

413

estilhaçaram-se e o carregador muito machucado,

soltava gritos. Helvétius, que os estilhaços de vidro

haviam machucado, saindo de sua cadeira, as mãos

sangrando, só se ocupava do carregador. Alguns

camponeses que tinham acorrido para lhes socorrer,

observaram esse traço de humanidade que lhe fizeram

notar outros. Num instante, Helvétius foi cercado por

todos os habitantes da vila. Todos se apressaram em

lhe oferecer suas casas, seus cavalos, mantimentos,

enfim, socorros de toda espécie. Muitos, mesmo os

mais ricos, queriam lhe servir de carregadores.

Observou nos ingleses um amor extremo por

suas crianças. O que nós chamamos na França de

espírito de sociedade lhes é quase desconhecido, mas

eles desfrutam muito dos prazeres da vida doméstica.

414

O espírito de sociedade reúne em Paris homens que

tem necessidades de entretimentos frívolos. O espírito

de sociedade congrega os ingleses para se ocuparem

dos interesses de Estado e da prosperidade da sua

pátria. Eles não procuram distrações porque eles têm

prazeres sólidos. Vê-se pouco na Inglaterra desse riso,

mais frequentemente sinal de tolice que de expressão

de felicidade. Mas se vê bem-estar e um sábio

emprego do tempo. Vê-se um povo sério, ocupado e

contente. Helvétius, ao sair desse país onde não tinha

visto a humanidade humilhada e sofrida, derramou

lágrimas.

Consentiu, no ano seguinte, às solicitações do rei

da Prússia (Frederico II) e de diversos príncipes, que

desde há muito tempo lhe convidavam a fazer uma

viagem para a Alemanha. Depois que se

415

ficou sabendo que podia se determinar a viajar, as

insistências tornaram-se mais vivas e assim, partiu no

fim do inverno de 1765. Estava com pressa de seguir

para Berlin e de ver um grande homem. O rei da

Prússia queria lhe hospedar e não permitiu que tivesse

outra mesa a não ser a sua. Ele o entreteve com

frequência e teve por sua pessoa e por seu caráter a

estima que já tinha por seu espírito. Helvétius foi

acolhido com a mesma consideração junto a diversos

príncipes da Alemanha e, sobretudo, em Gotha.

Ele observou em todas as cortes e nas nobrezas

alemãs a filosofia, o amor, a ordem e a humanidade.

Resulta deste espírito que, sob o domínio de vários

príncipes, a maioria dos quais déspotas, o povo não é

miserável. Por essa época Helvétius tinha ainda

416

receio de ser perseguido na França. Todos os príncipes

da Alemanha se ofereceram a lhe enviar uma

autorização de asilo. Todos queriam lhe reter. Ele ficou

muito agradecido a todos. Entretanto, se a perseguição

contra ele fosse renovada, a Inglaterra seria o país que

ele escolheria para asilar-se.

Apesar do medo, retornou à França. Havia-se

dissolvida a ordem dos jesuítas. Esta sociedade de

intrigantes, esta eterna cabala à qual se congregavam

só ambiciosos sem mérito, esta sociedade funesta aos

costumes e aos progressos das luzes, não foi proscrita

pelos filósofos. Estes destruíram a ordem, mas

trataram bem os indivíduos. O parlamento, por causa

da maioria dos jansenistas, tratou a ordem como ela

merecia, mas os indivíduos com barbárie.

417

Helvétius tomou conhecimento que aquele jesuíta que

tinha abusado de sua confiança e traído sua amizade,

aquele jesuíta que lhe havia feito perder as bondades

da rainha e posto contra ele os hipócritas da corte,

estava confinado numa aldeia onde sofria a mais

extrema pobreza. Procurou um dos amigos deste infeliz

e lhe deu cinquenta luíses. ―Leve-os, lhe diz, ao padre

***, mas não lhe diga que vieram de mim. Ele me

ofendeu e será para ele uma humilhação receber meus

socorros‖.

Helvétius, em seu isolamento em Voré, se

ocupava a desenvolver, a provar os princípios do livro

'Do Espírito'; mas não queria publicar mais nada. Via a

filosofia, perseguida por cabalas poderosas, formar

poucos discípulos e nenhum protetor. Ele ficava

418

aflito, mas não espantado. Dizia ―A verdade, que nunca

pode prejudicar o gênero humano, nem mesmo as

grandes sociedades que chamamos de nações, é com

frequência oposta aos interesses do pequeno número

de homens que estão à frente dos povos. Aí vocês têm

grandes corporações repletas de espírito corporativo.

Elas usurpam continuamente uns aos outros e todos

contra a pátria. São como uma grande família onde os

mais velhos querem excluir os mais novos da partilha.

Como será recebido nessas corporações um filósofo

que venha dizer-lhes: Acima de tudo, sede cidadãos!

Realizeis com dedicação as vossas obrigações.

Conservai os vossos direitos sem os aumentar‖? Lá,

ministros com espírito limitado e arrogante, incapazes

de ver os abusos que são introduzidos e

419

os que estão contidos na constituição do Estado. São

conduzidos pela rotina e as seguem. Eles não têm o

hábito da meditação: irão eles o possuir? Isto é o que é

necessário, entretanto, para corrigir esses abusos que

a filosofia vem lhes mostrar. Eles possuem fantasias,

projetos para seus favoritos e parentes. Crêem vocês,

que possam escutar sem impaciência, que eles só

devem ter em vista o bem do Estado? Que hão de

desejar? De não sofrerem contradição. E para isso o

que é necessário fazer? Suprimir da autoridade todas

as limitações, retirar toda a sua solidez. Mas esses

abusos que os ministros respeitam ou toleram, a quem

são prejudiciais? À pátria, que é apenas um nome

inútil. A quem podem ser úteis? Aos grandes. Julgue o

que os grandes pensarão de um grupo de homens que

lhes demandem

420

serem moderados e justos. O príncipe e os grandes

estão cercados de padres, que, nos séculos de

ignorância, reinaram sobre príncipes e povos. Se o

mundo se esclarecer serão menos respeitados e os

ver-se-á como homens em geral perigosos. Pode-se

imaginar com que fúria eles difamam a filosofia? Se

deve se espantar que sejam bem recebidos nas cortes

onde dizem: Deus vos tem dado o poder e a nós ele

nos encarrega de ensinar os povos. Em vez de vos

fatigar em fazer boas leis e em dar o exemplo de amor

pela pátria obrigai as nações a crer em nós e deixai

conosco. É mais cômodo.

―Vejam a cobiça dos homens do meu velho

Estado, dos cortesãos e de outros. Essas pessoas

deixarão que se decida em paz que suas fortunas nem

sempre são legítimas e que eles fazem

421

um odioso uso delas? Poderão consentir que se lhes

façam ruborizar dessas riquezas que são o alimento de

seu orgulho? Vocês percebem que a filosofia deve ser

perseguida nos palácios e até nas cabanas pelas

classes da sociedade que, ao menos por enquanto,

determinam a opinião pública? E diante de quem a

filosofia há de se defender? O que são seus juízes?

Tolos. Mas, dirão vocês, há na nação escritores

estimáveis que, sem ser do número dos filósofos,

adotam seus princípios, com que se adornam e os

reproduzem. Eu respondo que há poucos. Os homens

que têm apenas espírito são os rivais humilhados dos

homens que possuem genialidade e os detestam.

Vocês contariam mais de um belo espírito entre os

difamadores de Descartes e de Cornélio e, bem perto

de nós, entre aqueles de Voltaire, de Montesquieu, de

Buffon e de Fontenelle. A filosofia reduz o belo espírito,

os pequenos talentos, a seu justo valor e

422

assim, o interesse deles é unir suas vozes às dos

homens frívolos e corrompidos contra toda liberdade de

pensar. Sabem vocês por que a filosofia é honrada e

feliz na Inglaterra depois da revolução? É que na

Inglaterra o interesse geral e o interesse particular não

estão opostos. É que lá reina o amor da ordem e da

pátria. Se a honra verdadeira, se o espírito de

cidadania e se as verdadeiras virtudes não

renascessem nas nações onde a filosofia é perseguida,

lá ela teria a devida consideração. Se essas nações, ao

contrário, caírem no despotismo e, por consequência,

se corromperem cada vez mais, a filosofia estará

proscrita para sempre nelas".

Foi depois dessas ideias que Helvétius retornou

ao seu primeiro talento e se ocupou apenas do seu

poema 'Da Felicidade'. Esse talento que ele havia

deixado sem fazer uso, não estava enfraquecido. Pode-

se julgar pelo sexto canto e

423

e por uma parte do quarto, que ele compôs no verão

passado. Ele pensava trabalhar ainda vários anos

nesta obra e só entregar quando seus amigos e ele

estivessem contentes. E a que grau de perfeição não o

teria levado!

Observa-se no começo de 1771, algumas

mudanças no seu humor e nos seus gostos. Não se

achava mais nele a ordinária serenidade. Das

conversações que tanto tinha amado, gostava menos.

Tanto o fatigava o exercício que quase não ia mais

caçar. Essa mudança não alarmou sua família e seus

amigos. Estava-se bem longe de olhá-la como um sinal

de decadência. Atribuía-se a causas morais. Esses

últimos anos foram de desgraças públicas às quais

Helvétius era muito sensível. A desordem das finanças

e a mudança de constituição do Estado aumentaram a

consternação geral. Um grande

424

número de suicídios no reino e na capital são tristes

provas desta consternação. Os maus físicos

aumentaram ainda mais. As colheitas não foram

abundantes. Enquanto a penúria durou, as esmolas de

Helvétius não permitiram que seus vassalos sofressem.

Prolongou nesses anos infelizes a sua permanência na

aldeia que se lhe tornara tão cara pela necessidade

que tinha dele. Além de que, em Paris, o espetáculo de

uma miséria que não podia aliviar, lhe tornava triste a

sua permanência. Porém, fazia grandes bens. Todos

os dias se introduziam nele, com bastante mistério,

algumas novas finalidades em sua generosidade. Com

frequência, na presença delas, dizia a seu criado de

quarto: ―Cavalheiro, eu vos proíbo de falar disso,

mesmo após a minha morte‖.

Algumas vezes aconteceu dele estender suas

425

liberalidades a sujeitos muito maus. E, em se lhe

fazendo censuras, dizia: ―Se eu fosse rei eu os

corrigiria, mas sou apenas rico e eles pobres. Devo

lhes socorrer‖.

Sua boa constituição e uma saúde raramente

alterada lhe prometiam uma longa vida. Entretanto, dia

a dia, sentia que perdia as forças. Um ataque de gota

que se localizava na cabeça e no peito, lhe tirou

primeiro a consciência e logo da vida.

No dia 26 de dezembro de 1771 foi arrancado de

sua família e de seus amigos, dos infortunados e da

filosofia.

Poucos homens foram tratados pela natureza tão

bem quanto Helvétius. Ele havia recebido a beleza, a

saúde e a genialidade. Em sua mocidade, era muito

bem apessoado. Seus traços eram nobres e regulares.

426

Seus olhos exprimiam o que dominava em seu caráter,

isto é, a doçura e a benevolência. Tinha uma alma

corajosa e naturalmente voltada contra a injustiça e a

opressão.

Nenhuma pessoa poderia estar mais convencida

do que ele que para ter sucesso em tudo, é preciso

apenas querer fortemente. Havia sido um bom

dançarino, hábil na esgrima, atirador habilidoso,

financista esclarecido, bom poeta e grande filósofo,

desde que havia desejado ser. Havia amado muitas

mulheres, mas sem paixão e arrasto dos sentidos. Não

tinha nas amizades uma preferência exclusiva. Tinha

nelas mais procedimentos que ternura. Seus amigos,

em suas dificuldades, lhe achavam sensível porque ele

era bom. No curso ordinário da vida, eles lhe foram

pouco necessários. Com frequência, sua conversação

era a de um homem cheio de ideias e, às vezes, as

possuía num mundo que não era digno delas.

427

Gostava muito de debates e propunha paradoxos para

vê-los serem debatidos. Gostava de provocar o

pensamento naqueles que acreditava capazes e dizia ir

com eles à caça de ideias. Tinha o maior respeito pelo

amor-próprio dos outros e mostrava tão pouco a

superioridade que tinha, que muitos homens de espírito

que o viam frequentemente, passavam muito tempo

sem percebê-la. Temia a intimidade dos grandes. À

primeira vista, tinha com eles o ar de embaraço e de

contrariedade. Amou a glória passionalmente e esta foi

a única paixão que experimentou. Lhe fez amar o

trabalho, mas não lhe inspirou os seus favores.

Ninguém os tem escondido com mais cuidado. Ele não

deu a seus prazeres o tempo que dedicou ao estudo e,

na sua própria juventude, quando se retirava ao seu

escritório, só os infelizes eram permitidos de lhe

interromper.

428

A FELICIDADE, POEMA

PRIMEIRO CANTO

ARGUMENTO

O poeta procura em que condição e em que bens a natureza colocou a

felicidade. Interroga a Sabedoria que lhe mostra as vantagens e as desvantagens

daquilo que os homens chamam de bens. De início os prazeres do amor fazem os

homens felizes por algum tempo, mas o desgosto e os aborrecimentos os seguem. E os

que são entregues a esses prazeres se encontram na velhice sem recursos para a

felicidade. A Sabedoria lhe mostra os prazeres e as inquietações da ambição, seus

estragos e seus crimes. O poeta conclui que, embora as grandezas sejam uma fonte de

prazer, elas proporcionam menos felicidade que as volúpias dos sentidos.

Mergulhado nos dissabores, o homem, dizia eu um

dia,

está então à infelicidade condenado sem volta?

429

Que ventos impetuosos, ó poderosa Sabedoria,

da ilha da felicidade repelem-me sem cessar?

Que baixios ameaçadores defendem as margens!

Ó se todos os mortais jogados longe de seus portos,

pelas diversas correntes de doidas opiniões,

são, no meio dos mares, navios sem bússolas,

Vem me servir de guia: eia, que posso eu sem ti!

Procurei a Felicidade. Ela fugiu diante de mim.

Tendo na mão o fio de uma falsa esperança,

vagueio pelos meandros de um imenso labirinto.

É nos prazeres, nos bens ou na grandeza

que o homem deve procurar e achar a felicidade?

Sabedoria, a ti compete resolver minhas dúvidas,

da Felicidade dignar-se abrir os caminhos:

Eu disse. E num sono sonhos consoladores,

acalmaram a agitação dos meus sentidos.

Os céus se abrem, e do azul de uma nuvem

a Sabedoria rápida se oferece à minha vista.

Simples no discurso, e amável no acolhimento,

não ostenta de modo algum vaidosa presunção.

430

De uma falsa virtude desdenhando o embuste,

ela mesma aplaude as lições de Epicuro.

Indulgente com os humanos, sua nobre fronte

de seu sossegado palácio não tira os olhos.

Venho, diz ela, aqui partilhar teus receios,

e de teus úmidos olhos secar as lágrimas.

Saiba que no acaso que sustenta teus passos,

procuras a Felicidade onde ela não está.

Vá aos vários lugares que habitam a indolência,

a presunçosa ambição e a sórdida riqueza;

verás que nesses lugares o insano só persegue

o fantasma vão de uma Felicidade fugidia.

Ela diz. Eu me acho no centro de um bosque

e uma brisa forte e pura refresca a sombra.

Sob uma latada de murtas um trono de flores,

onde a arte com a mão combinou as cores.

De canto de pássaros meu ouvido se deleita.

De arbustos odorantes a terra se perfuma

e suas essências excitadas aromatizam os ares.

Às graças do amor os meus sentidos estão abertos.

431

Nesses lugares encantados tudo respira êxtase.

É aqui, diz minha guia, onde reina a indolência.

Eu a vejo: que encantos aos meus olhos surpresos?

O cor-de-rosa de sua pele dá vida aos lírios.

Seu corpo está seminu, sua boca semi-aberta;

sobre um cândido braço sua cabeça repousa.

Das chamas do desejo seus olhos brilhando,

Chamam o prazer para seu seio palpitante.

Do brincalhão Zéfiro o sopro acariciante,

levanta devagar sua echarpe esvoaçante:

Seu galante pudor às exaltações dos amantes,

opõe seus sorrisos, suas recusas excitantes,

seus rogos, seus gritos, esta fraca defesa,

que animando a espera e provocando agravo,

ao desejo encorajado permite de tudo ousar.

Mas que encanto desconhecido me força parar?

Eu vejo nos campos em flores, deleitosa cena:

Variando recreios, a vivaz Hebe galhofeira.

Lá conduzido pelos risos, eu avanço e vejo

ninfas encerrarem-se na escuridão da mata.

432

Seus belos corpos estão cobertos por leve gaze,

que em dobras nos seios prende a arte do agrado.

Obstáculo ao doce prazer, mas fraco obstáculo.

O tecido se rasga, o amor é triunfante.

O amante dá e recebe mil beijos fogosos

sobre seu ardente lábio, sente flutuar sua alma,

e de seus suspiros prensados o arvoredo ecoa.

Nos braços do prazer, a beleza se enfeita.

Adiante, perto dum arroio, brincadeiras de luta.

É lá que ao seu amante uma amante disputa

a murta de cheiros que sua mão quer colher.

Eu os vejo alternadamente se evitar, se acometer.

A ninfa tomba enfim sobre a relva estendida.

Que secretos encantos são oferecidos à vista!

A gritos impotentes seu pudor tem recorrido

e as águas refletem seus folguedos e amores.

Eu sei, digo então, todo sábio cita o sibarita.

Procura-se a felicidade? É aqui que ela habita.

433

Rainha desse paraíso: Eu estou a seis joelhos.

Sacerdotisas do prazer: Eu a vós me consagro.

Agora os amantes mais frios em suas carícias,

no seio das volúpias exauriram suas ternuras.

Os olhos já não brilham das chamas do desejo

e a languidez neles sucedeu ao prazer.

Nesses lugares felizes, ai, digo eu, ó Sabedoria.

A ligeira Felicidade é só um êxtase momentâneo.

Pois quê! Para reanimar as carências satisfeitas

a formosura tem apenas impotentes atrativos!

Aqui nada é durável. É verdade, diz minha guia,

quando a esses jogos diversos a juventude preside,

se tu vês ao prazer suceder os langores,

se os espinhos já crescem entre as flores.

Quando Hebe desaparece o céu aqui só envia

desgostos pungentes sem mistura de alegrias.

E esse templo onde teus olhos buscam a ventura,

pisado pelos desgostos, é só a morada do horror.

434

Ela diz: Hebe foge; já por esses arvoredos.

Bóreas ao cume nevado acumula nuvens.

E num carro sombrio conduzido pelos ventos

o frio invernal destrói o palácio da primavera.

De seus ramos então a folha é destacada,

o vento se consolida e a erva é ressecada,

um negro nevoeiro sucede à clareza do dia.

No trono onde reinava a indolência e o amor,

que vejo eu? É o tédio, monstro que se devora,

que se procura em tudo, se encontra e se detesta.

Sua fronte lívida é cingida por um ramo de cipreste.

Os amantes juntos dele carregam inúteis remorsos.

Esses infelizes que agora nenhum enlevo inflama,

indagam com assombro o vazio das suas almas.

Já a enfermidade, os olhos apagados e vazios,

o corpo meio curvado sobre uma bengala nodosa,

da idade caduca tem apressado o lento ultraje,

e de seu dedo de bronze sulcado suas fisionomias.

Eles invocam a morte, esperança dos infelizes,

e a morte muito lenta se recusa às suas súplicas.

435

Ah! exclamo então, nesse templo campesino,

a felicidade só faz, pois luzir e desaparecer!

Sibarita, porque esses queixumes impotentes?

Prazeres passados são infortúnios presentes.

Ele podia ser feliz, responde a Sabedoria,

mas o amor dos prazeres dissipou seu vigor;

O amor é uma dádiva da divindade.

Ele podia desfrutar, mas devia sensatamente

poupar-se então dos prazeres de toda vida.

Que lhe servem ai, esses pesares supérfluos?

O inútil remorso é só um infortúnio a mais.

Ó meu filho, ele só fez na primavera da vida

saborear de um só prazer; a fonte esgotou.

Sensível aos seus males, tu lastimas um infeliz,

entretanto, ele é menos que um louco ambicioso.

É de instantes felizes, onde cheio de ternura,

um amante gostaria de eternizar o êxtase.

436

Mas não há lugar algum, onde livre do desejo,

O ambicioso quisesse parar para usufruir.

A grandeza que ele obtém sempre leva com ela,

a impaciente esperança de uma nova grandeza.

Desta esperança completa nasce um novo desejo.

E de esperança em esperança, ele chega ao túmulo.

Ela diz; e do templo onde reinava a indolência,

transportado de repente no carro da Sabedoria

nós voamos. Seus corcéis atravessando os ares,

Debaixo de suas velozes patas faíscam clarões.

Mas submissos nos ímpetos à mão que lhes guia,

eles reaparecem de súbito numa árida planície.

Lá se elevam montes cobertos de muitas partes,

de destroços e mortos confusamente espalhados.

Suas cumeadas devastadas e seus soberbos topos

são clareados por raios e batidos por tempestades.

Que medo me assalta! Que gritos tumultuosos!

Que esperança guia a esses montes tempestuosos,

437

esses heróis que tentam escalar seus cumes?

Que é esse grandioso penhasco rodeado de abismos,

que sobressai dentre esses montes e atinge os céus?

É este célebre obstáculo onde os ambiciosos

sufocando do remorso a voz tão importuna,

vêm, diz a Sabedoria, implorar a fortuna?

Revestir seu orgulho desses bens aparentes,

de títulos pomposos, dignidades, e posições,

dessa púrpura enfim, desse poder supremo,

fantasma da felicidade e não felicidade mesma?

Ao pé dessa rocha, sobre esses destroços esparsos,

Tu vês a ambição dotada de olhos desvairados.

Esse monstro vagando sempre por esses abismos,

corroído pelos desgostos, escoltado por crimes,

aflito pelo presente, raramente pode notar

o futuro embelezado por raios de esperança.

O prevenido receio, através das trevas,

mostra-lhe isso iluminado por luzes fúnebres.

438

A si mesmo odioso, muitas vezes para puni-lo,

o céu lhe torna presente todos os males futuros.

Ó louca ambição, replicou a Sabedoria,

Já ribomba sobre ti o raio vingador.

Em vão a traição, a velhacaria e os furores

aplainaram para ti a estrada das grandezas.

No trono onde te assentas, carregas teus receios.

Vejo aí teu véu dourado inundado de lágrimas.

Ela diz; e eu ouço nesses montes cavernosos,

a ambição soltar bramidos horríveis.

Seus gritos ecoam nas duas pontas da terra

com um barulho parecido ao som do trovão.

Todos os ambiciosos acorrem à sua voz

por três caminhos diversos adiantam-se de vez

Os primeiros, precedidos do pálido terror,

o braço ensanguentado, a cabeça ameaçadora,

marcha disparando as flechas mortíferas.

A desolação se espalha aos seus passos.

A servidão os segue puxando grossas cadeias

e conjurando a morte para findar suas penas.

439

Tu vês, diz a Sabedoria, avançar os guerreiros

que a vitória tem coroado com criminosos louros.

Flagelos do mundo, seus males são seu trabalho.

Mas que tristes cenas! Que medo! Que estragos

que a terra à vista oferece em aspectos vários!

Diante deles palácios, atrás deles desertos.

Aqui vejo o terror, olho fixo, pele descorada,

que foge, para, escuta e se assusta dele mesmo.

Mais longe é a fúria, a indiferente crueldade,

que com pés de bronze pisoteia a humanidade.

O cego desespero que educou para a guerra

o braço nu, o olho nublado, míope, luta e se espeta.

Vês esses altivos ganhadores, soberbos romanos,

sob o peso de sua glória oprimir os humanos.

Vês os passos dos heróis marcados pela matança.

A morte, sob mil aspectos, mostra à sua passagem

os templos da paz tombando a seus olhares

e as artes confusas fugindo em toda a parte.

440

Eis os mortais dos quais a terra em silêncio

adora os decretos e elogia o poder!

Para eles constrói túmulos magnificentes,

de um poder que é só monumentos soberbos.

Os eleva aos céus; o universo os admira.

Com seus destruidores, é assim que conspira

e divinizando os furores dos heróis,

o homem os encoraja a novos crimes.

Ó vós de uma falsa honra imprudentemente ávido,

que nos campos de Marte consagra o homicídio,

pudessem vós, ó mortais, medir daqui em diante

o heroísmo dos reis na felicidade dos súditos.

Mas ao longe que turba humilde em sua postura,

por atalhos obscuros até esses montes avança?

Que mortais fingindo desprezar os grandes,

pensam por esse desdém chegar às honras?

441

Quem marcha diante deles? A dupla hipocrisia,

monstro ético e cruel, cuja alma é empedernida

ao horror de perversidades que parece detestar.

Como o desprezo de Deus que ele finge respeitar?

Sua fronte sombria e lívida é manchada de pó,

seu firme orgulho está escondido sob o cilício.

Ele guia por esses montes outros ambiciosos.

Insensível no seu ódio, ele descarta longe de si

a terna compaixão que ardendo de um santo zelo,

rende aos homens o amor que os deuses têm por ela.

Dos cegos mortais seu trono respeitado

é estabelecido sobre a fraude e a estupidez,

sobre o medo de um Deus que em sigilo ele ultraja.

e sobre a credulidade que cega a si mesma.

De todas as virtudes zeloso perseguidor,

a paz está em seu rosto e a guerra em seu coração.

Com horror o céu o contempla e o escuta.

Mas desvie a vista e veja por este caminho,

nesse mesmo rochedo, subir esse bajulador

ao palácio de um vizir, camaleão mutável,

442

que rastejando à corte, desdenhoso da cidade,

é enganador a seus amigos, ao Estado inútil

e vaidoso do jugo dos reis que ele leva com orgulho,

aguarda-lhes suspender sua felicidade ao acaso.

Que a ventura amiúde está longe da ordem suprema!

Veja este infortunado absorto em si mesmo:

o remorso inquieto assusta e o persegue,

se oculta em suas cortinas e o corrói no leito.

Entretanto, até ao pé do funesto rochedo

a que cerca o raio, onde a Sorte espalha

esses títulos, grandezas tão caras aos prejuízos,

todos os ambiciosos estão já posicionados.

Prestes a escalar, eles avançam amontoados.

A terra sob eles não muge, treme, desaba-se;

Eu os vejo, ao desafio, subindo esses montes,

entrar e precipitar-se em abismos profundos.

Eu vejo brilhar o aço em suas mãos mortíferas,

orgulhosos Sejanos batidos pelos Tibérios;

Aarãos a seus pés derrubarem os Darthans,

Bajazés tombarem aos ferros dos Tamerlãos.

443

Por todo lugar eu encontrei objetos de pavor.

O terror me parou, quando de sua possante mão,

a Fortuna depressa, com venda sobre os olhos;

procura e prende ao acaso um desses orgulhosos.

Ela mesma o coloca no mais alto de seu trono.

É lá que, sob o dossel, a ambição se surpreende:

se queixa de aí estar onde seu coração deve sentir

a desventura imprevista de existir sem desejo.

Que! Diz ela, batido por terrores legítimos,

consumido de remorsos acesos pelos meus crimes,

rodeado de inimigos prestes a me dilacerar.

Terei então tudo a perder e nada a desejar?

Que desgraça é a minha? Ah que! Meu plano

de grandezas me fez deleite por antecipação?

Que eu sou insensível agora ao que me vem?

Devo eu me ruborizo das honras que obtenho?

Trabalho do acaso, desprezível a mim mesmo,

Queria me ignorar em minha grandeza suprema.

Que rigoroso tormento para um ambicioso,

que desgraça constante ser abjeto aos próprios olhos!

444

Carregado de respeitos, que lhes rende? A baixeza,

a dupla traição, a necessidade, a fraqueza.

Desses frouxos respeitos os serviçais tributos

são pagos ao meu posto e não às minhas virtudes.

Se aos meus talentos é devo a minha coroa,

é a intriga, diz alguém. É a sorte que a dá,

quando por minhas virtudes eu soube merecê-la.

A terra há muito tempo tem o direito de duvidar.

Sim: esses ambiciosos a quem se rende homenagem,

sábios aos olhos do tolo, são tolos aos olhos do sábio.

Um grande é, por vezes, pequeno nas altas posições!

Como ele se anula frente aos grandes talentos!

Um anão é mais anão colocado nas montanhas,

um gigante mais gigante de pé nas campinas.

Ó grande, de qualquer honra que estejas revestido,

tu não impões nada aos olhos da virtude!

Em ti, da tua grandeza, eu só vejo fósforo

que brilha à centelha do fogo que o devora.

Exposto a contratempos, abatido sob seus pesos,

tu sofres cada instante dos males que tu previste.

445

Sou dos teus tormentos o doloroso espectador.

Sabedoria, me tira deste lugar que eu detesto

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

A terra se abre então, o mar sobe e brame,

A ambição sai voando e o monte desaparece.

446

SEGUNDO CANTO.

ARGUMENTO.

As riquezas são menos reais que o meio de adquiri-las. A busca por elas

mesmas prova o desconhecimento de sua aplicação. O rico ignorante sofre

aborrecimento e o desprezo dos homens de talento e dos sábios. Não é necessário

conhecimentos numa fortuna limitada. A natureza indica o usufruto dela. É preciso

inteligência para usufruir de uma grande fortuna que será apenas uma

responsabilidade, se ela não oferecer novos gostos. Procure então a intimidade dos

filósofos e dos sábios. Aprenda a pensar com eles desconfiando dos seus sistemas. Os

estóicos colocaram a felicidade na calma de uma alma impassível, estado quimérico

que o orgulho quis convencer da existência, sem estar ele mesmo convencido.

Se o amor, seus prazeres, o fausto e a grandeza,

não abrem aos mortais o templo da Felicidade,

447

é possível investigar o interior da riqueza?

Ali não acha nada, replica a Sabedoria.

A riqueza não é nada: os áridos metais

não guardam em seu seio os bens e os males.

O ouro tem por preço o que se deve ao seu uso.

É troco de prazer nas as mãos do sábio,

nas mãos do avaro, é de arrependimento.

Sem encanto para as artes, de que pode ele fruir?

Não, não é para ele que Bouchardon desenha,

que Rameau pega a lira e Milton imagina,

que Urânia elevou o plano dos vastos céus,

que no seu rochedo ainda árido e nebuloso

Fontenelle distribui flores e claridade,

e que ao pé de um olmo coroado de hera,

ele ensina os pastores a cantar seus prazeres.

O opulento oprimido pelo peso de seu descanso,

é às beiras do enfado conduzido pela ignorância,

procura em vão a ventura no seio da abundância.

448

Fatigado do seu ser, ele não desfruta mais

que do prazer rude das saciadas carências.

Sua imbecilidade cresce com sua riqueza.

Não te espantes, acrescenta a Sabedoria,

o homem à ignorância ao nascer está entregue.

Discípulo dos objetos que lhe rodeiam,

se do dom de pensar não faz emprego,

se seu zeloso orgulho o afasta do sábio,

à caducidade chega sem talento,

seu corpo é de velho, seu espírito de criança.

Inimigo do saber, este lhe parece frívolo.

O dinheiro é tudo para ele, o estudo é inútil.

Mantendo, novo Midas, sempre o olho preso

no o ouro, esse vil objeto de sua cobiça,

sob seus ricos lambris, que faz ele? Vegeta.

Lá, sua estupidez tranquila e satisfeita

gostaria com seu desdém de aviltar os sábios.

Do seio da opulência ele insulta os talentos.

Mas admira em segredo o escritor que avilta.

O desdém é, por vezes, confissão de estima.

449

Do brilho, meu filho, com que o ouro bate nos olhos,

seu possuidor cobiçoso é raramente feliz.

Há pouco de virtudes. Faustoso, submisso e desleal,

tirano com o escravo, escravo com o chefe,

como o ambicioso, invejoso de seus rivais,

sem ter seus talentos, o rico tem seus defeitos.

Talvez ele não seja para os golpes do acaso,

tal como o altivo vencedor sempre perto da queda.

Às grandes desgraças, por certo é menos exposto.

Mas, diz minha guia, ele é mais desprezado.

Os perigos que se afronta enobrecem os crimes.

Todos os ambiciosos passam por magnânimos,

mais das vezes criminosos, são menos odiados.

A fortuna um dia os perde, nos vingamos deles,

e a esperança de sua queda arrefece nosso rancor.

Qual a alma ademais tão livre e altiva,

para ver as grandezas só com o olho do desprezo?

Seu brilho se impõe e por um tão grande preço,

450

que cada um tendo em si a semente do crime,

a justifica em outro, e por vezes a estima.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Não: a Felicidade não é. .. .. . .. .. . .. ..

relegada pelo céu ao palácio de Plutão.

Onde a procurar, dizia eu? É junto a esses sábios,

cujos nomes são ainda respeitados pelos tempos?

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Eles têm sido com frequência ousados impostores

admirados na terra, eles estão cheios de erros.

Fizeram na vã esperança de explicar a natureza,

sob o nome de sabedoria adorar a impostura.

Um persa, o melhor, se disse amigo dos deuses,

ladrão da chama e dos segredos dos céus,

o primeiro da Ásia, convoca os mágicos;

ensina doidamente a ciência dos sábios.

Pinta o abismo sombrio, berço dos elementos,

o fogo, secreto autor de todos os movimentos.

451

O grande Deus, disse ele, com sua rápida asa

fendeu antes dos tempos os vastos mares do vazio.

Uma flor aí flutuava desde toda a eternidade.

Deus a apercebeu, de fato uma divindade

por nome, Brama, a bondade em essência.

Esse soberbo universo é filho de seu poder.

Por ele o movimento sucede o repouso.

Com o pavilhão dos céus coroou as águas.

Com a lama dos mares o deus modelou a terra.

As nuvens espessas, essas fornalhas dos trovões,

são pelo choque dos ventos, inflamadas nos ares.

O ardente Equador coroa o vasto universo.

Brama do primeiro dia abre enfim a barreira.

Os sois alumiados começam as suas carreiras

dando aos vastos céus suas formas e suas cores,

às florestas sua verdura, aos campos suas flores.

Amigo do maravilhoso, fraco, ignorante, crédulo,

o mago acreditou sempre nesse conto ridículo

e Zoroastro, também por orgulho inspirado,

enganará todo um povo após ter-se enganado.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . ..

452

Foi nesse momento que o cego sistema,

na sua fronte altiva cinge o diadema.

Com enigma de palavras cobrindo a falsidade,

menos se fazia entender mais se era respeitado.

Mas da Pérsia enfim expulso pela indolência,

ele atravessa os mares e se fixa na Grécia.

Lá conheceu, lá viu a causa e seus efeitos.

E a terra e os céus são para ele sem segredos.

Hesíodo sustenta que sobre o abismo imenso,

reinava o sombrio Érebo e o profundo silêncio,

quando das entranhas do caos tenebroso,

o amor foi gerado para governar os deuses.

Já a veterana noite que cobre o etéreo,

é pelos fogos do dia à metade devorada.

Eles alumiam enfim o ar, a terra e os mares,

e o fogo do amor dá vida ao universo

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Ai! Se do conhecer os limites são prescritos,

se o espírito é finito, o orgulho é sem limites.

453

É por orgulho que Platão outrora se apossou,

crendo que nada escapava à sua sagacidade,

do poder de pensar despido da matéria.

Nossa alma, ensinava ele, é só uma luz

que nasce, se enfraquece e cresce com o corpo.

Substância inextensa, princípio de atividade,

espírito indivisível, ela é então imortal.

A alma é umas vezes uma viva fagulha,

outras vezes um átomo sutil, um sopro aéreo.

Todos falam dela, mas ninguém prova nada.

Não é suficiente. E o homem em sua audácia,

após ter transposto os desertos do espaço,

da alma, por degraus, se eleva até Deus.

Deus preenche o universo, mas não ocupa lugar,

nada é Deus, nos dizem, mas ele é cada coisa.

Depois de longas provas, discute, propõem,

forma enfim seu Deus de um agrupamento

de atributos diferentes, de virtudes contrárias.

Não raro ofuscado por sua falsa eloquência

oculta sob grandes palavras sua ignorância.

454

Ele engana a si mesmo e surdo à razão,

crê formar uma idéia e só forma um som.

No labirinto sombrio de uma inútil ciência,

é preciso perder um tempo que a razão humana

nos primeiros dias do mundo teria melhor usado,

a procurar a verdade que a se fazer deuses.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Se o céu em um poço esconde a verdade,

quem de lá poderá tirá-la? A curiosidade,

louca num falso espírito, esclarecida num sábio.

Locke que ela encoraja nos mostrará o uso.

Escolhamo-lo por mestre dos primeiros anos,

ele guia até a verdade nossos trêmulos passos.

Locke não consegue atingir o fim da carreira;

mas sua possante mão franqueia a barreira.

Para melhor conhecer o homem, o pega no berço

e o segue da infância até as portas do túmulo.

455

Observe seu espírito, veja como o pensamento

pelo cinzel dos sentidos é na alma lavrado,

e quantos dos sábios os dogmas impostores

e quantos abusos de palavras erros geraram.

Com um braço abaixa o orgulho do Platonismo,

Com o outro limita o campo do Pirronismo.

Ele nos descobre enfim o caminho descartado,

e a entrada do templo onde brilha a verdade.

Penetremos com ele sob sua abóbada sagrada.

que de monstros diversos defende a entrada!

A preguiça derramando o suco de suas papoulas,

Embota os espíritos de um estúpido repouso.

O sistema cercado de relâmpagos e nuvens,

em os deslumbrando dispensa os sábios.

O odioso Despotismo cercado de cadafalsos,

comanda pelo terror o fechamento do acesso.

A superstição no fundo de uma pequena cela

caça, amedrontando o espírito débil e crédulo.

Com seus gritos aflitos a carência ameaçante,

na entrada do templo coloca o indigente.

A obstinação a porta esconde da velhice

e o amor defendendo o acesso da juventude.

456

Mas ele se abre aos mortais que com desdém,

pisam os vãos prazeres e prejuízos infames,

esperando o sucesso deles em sua constância.

Faz-se diante deles marchar a experiência.

Ela lhes tem conduzido até a verdade.

Pois seja: mas lhes conduz à felicidade.

De um astro autoritário o poder inimigo,

ou semeia de dores o curso da nossa vida,

ou pelo menos aí derrama mais males que bens.

Se eu quero ser feliz e jamais consigo,

se apenas posso usufruir da esperança de ser,

infortunados mortais, eu não sei, mas pode ser

que a ventura para vós é só a falta de males.

Sem dúvida que debilita num perfeito repouso

a sábio que é inacessível ao amor e ao ódio,

rico na indigência e livre sob correntes,

porta indiferentemente a coroa ou os ferros.

Sob a égide estóica, ao abrigo de reveses,

esse mortal deve fruir de uma calma imutável.

Que o universo desabe, ele resta inabalável.

457

Aprenda, diz a Sabedoria, a se julgar melhor,

que fingir ser insensível é sempre orgulhoso.

Como ainda iludido por sua aparente gravidade,

tomas por sábio um louco soberbo, atrabiliário,

que sensível aos prazeres, deles foge para evitar

o perigo de os perder e deles se arrepender.

Que procura por tudo a aflição e a injúria,

como os únicos crisóis onde a virtude se depura,

que sempre preparado contra o mal vindouro,

se habitua ao opróbrio e se exercita ao sofrer.

Louco aos pés da riqueza e incitando a miséria,

Quer enfim, diz ele, que o destino contrário,

que sob o fardo pesado de uma súbita desgraça,

possa talvez um dia subjugar a sua virtude,

e se achar para sempre calmo em sua solidão,

indiferente aos males que tranquilizam o hábito.

Entregue àos amores ardentes de vãos combates,

Veja esses loucos insultarem os gozos que não têm,

se embriagarem dos vapores de seu falso heroísmo.

Apóstolos e mártires de um morno Zenonísmo,

preferindo tolamente as dores aos prazeres

e o orgulho de maldizer a felicidade de gozar.

458

Mas com suas inúteis falas, como, ó Sabedoria,

puderam eles sempre enganar Roma e Grécia?

Teu espírito, replica ela, está surpreso disso?

Junto a povos orgulhosos o Estoicismo nasceu.

Como um ser inerte, eles pintam sua sabedoria;

tem sobre sua fronte a máscara da coragem;

sua atitude é selvagem, a gravidade imperiosa:

Que mais necessita para fascinar os olhos?

Mas veja a que excesso pode a perseverança.

Aprenda como sempre seduzido pela aparência

e pelo jugo do engano, tarda a se escapar

o imbecil universo é fácil de enganar.

A essas palavras me acho num lugar imenso,

que pessoas curiosas enchem com sua presença.

Lá se ergue uma pira onde, com tocha na mão,

um altivo mortal se senta com a fronte serena.

Nessa pira fúnebre onde teu olho me contempla,

povo, exclamou ele, aprenda com o meu exemplo,

que um sábio sempre igual em tudo aos deuses,

é calmo, independente e impassível como eles.

459

Nada pode lhe perturbar: a voraz chama,

que penetra seu corpo não atinge sua alma.

O medo que submete um cavalo indomado,

que deita o urso aos pés do domador irritado

e curva um povo inteiro ao jugo da servidão,

pode tudo na matéria e nada na minha coragem.

Ele diz: sua fogueira ele mesmo põem fogo.

A multidão espantada nele crê ver um deus.

Ela avança, se prensa, ela grita, admira.

Que é então, diz ele, o terror que eu inspiro?

Que poderá a dor contra minha firmeza?

Apesar de mim eu admirei sua intrepidez,

Sua coragem feroz aturdiu minha fraqueza,

Quando da pira a poderosa Sabedoria,

dispersando a multidão acalma o clamor.

O estóico a enxerga e treme de horror.

A esse golpe súbito seu ânimo desfalece,

ele solta um grito de dor, a força o larga.

Seu orgulho o deixou só com a agonia

e o deus desapareceu com o admirador.

460

TERCEIRO CANTO

ARGUMENTO O homem mais feliz é aquele que torna sua felicidade a menos dependente

dos outros e ao mesmo tempo possui diversos gostos que governa. É o homem que

ama o estudo e as ciências. Ele é ao mesmo tempo independente e mais esclarecido. A

Filosofia concede intensos prazeres, seja a filosofia que estuda a natureza, seja a que

estuda o homem. O filósofo desfruta mesmo em se enganando. Ela ama a história que

serve ao estudo experimental do homem. Ele não renuncia aos prazeres dos sentidos,

mas os domestica. A Poesia, a Música, a Pintura, a Escultura e a Arquitetura são para

ele novas fontes de prazeres.

No topo das grandezas, no seio da riqueza,

com frequência infeliz, o homem, diz a Sabedoria,

461

é atacado de um mal cuja origem está nele

e esse mal tão cruel, qual é ele? É o enfado

de seus sombrios vapores a maligna influência,

até no seu palácio devora a opulência.

Ela a persegue com frequência no seio dos amores.

E o que poderia sarar esse mal de todos os dias?

Qual o remédio para o enfado? O estudo, diz ela.

Não crês, entretanto, que obstinadamente fiel

só aos divertimentos que o espírito possa oferecer,

minha alma esteja fechada a todo outro prazer?

Tudo tem em mim direitos, a tudo eu homenageio,

todos os vários gozos são divinos para um sábio.

Aos encantos do estudo ele abre assim seu coração.

no estudo ele reconhece a mina da felicidade,

nele ele vai pegar esse prazer que a prática,

convém a todo estado, em todo lugar, a toda idade,

prazeres de todos instantes cujo germe está em si.

Infortúnio do insensato que os espera dos outros.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. ..

462

Mas quem me trouxe às bordas do Parnaso?

Tudo é charme aqui. Aprenda, diz a Sabedoria,

que esta sombra verde, das musas habitada,

é de igual modo a morada da Felicidade.

A montes íngremes, a essas palavras, ela avança.

Em seu cimo eu percebo a dúvida, o silêncio,

a meditação com olho penetrante e intenso,

a sábia experiência com olhar cuidadoso.

Juntas elas garantem com trabalhos imensos,

os novos fundamentos do palácio das ciências,

onde penetrou já o novo dia das verdades.

Esses montes pelos mortais serão eles habitados?

Que vejo eu em seu cume? Sábios, responde ela.

Eles saciam-se aqui de uma alegria imortal.

À sua possante voz a natureza obedece.

Seu véu é transparente ao olho do seu espírito.

Eles venceram de um salto o espaço que separa,

a verdade comum da verdade última e mais rara.

Nos segredos do céu seus olhos souberam penetrar,

Dos efeitos à sua causa, fogosos a se lançarem.

463

Sua razão destruiu o reino dos sortilégios;

aos olhos do seu gênio não há mais prodígios.

Semelhantes a deuses eles pesaram os ares,

mediram sua altura, firmaram o universo.

Com uniformes leis sujeitaram a natureza

na variedade que forma sua apresentação

nas minas, nas águas, nos montes, nos céus.

Quantos prazeres ocultos sentidos só por eles!

Um examina aqui que forças poderosas

suspendem no éter essas estrelas errantes,

como enquanto se livrando do imóvel caos.

a atração rompeu as cadeias do repouso.

Este outro reproduziu as chamas da vida.

Da rápida morte a carreira é retardada.

A arte enfraquece já o corte da sua foice,

e o tempo é mais lento a cavar as sepulturas.

Ao longe, reconheces tu essas almas corajosas

que fenderam ao norte essas ondas preguiçosas,

464

cujas vagas erguidas e endurecidas pelos ventos,

sobrenadam em mares como rochas transparentes,

em um eixo mais curto elas suspendem o mundo.

Belezas físicas que o princípio é fecundo!

Esses globos sem conta que pasmam meu espírito!

Eu sinto que à sua vista minha alma se eleva.

Aqui eu poderei então espiar a natureza,

penetrar de seus segredos o fundo obscuro;

e mesmo sem atingir o cume da Felicidade.

Tenho apenas um só gosto; basta pro meu coração

Uma dúvida entretanto me prende e me oprime:

Eu bem sei que ao erro ninguém é impenetrável,

que ele abre um acesso no maior espírito:

É a onda que por tudo se filtra e se introduz.

É o erro, sob os nomes de Zenon, de Epicuro,

que desenhou outrora o plano da natureza.

O mais sábio é enganado, Certamente a vaidade

deve misturar os dissabores à sua felicidade.

Descartes me entendeu, eu tenho, disse-me ele,

andado com a faixa do sistema sobre os olhos.

465

Substitui com um erro os erros de um antigo.

Construí meu universo nos destroços do dele.

Mas que me aflige? Eu falhei como um sábio,

mas deixei marcado o baixio com meu naufrágio.

É necessário, dizia Malbranche, aqui confessar:

Nada vive em mim quando vivo tudo em Deus.

Se eu brilhei apenas com enganosas luzes,

e Locke murchou minhas glórias efêmeras,

meus enganos o guiaram à devida verdade.

É de erro em erro que se pode avançar.

Se eu me enganei; se minha razão escrava

dos preconceitos não pode quebrar os entraves,

perdão, ó Verdade! Quando eu admiti a lei,

eu não te desconsiderei. Eu as assumi por ti.

Ele disse e, entretanto, vários dentre os sábios,

já substituíram sob as espessas folhagens

as volúpias dos sentidos pelos prazeres do espírito.

O que é que, sob esses divinos dosséis, os conduz?

466

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Como tem ele alcançado os montes de Urânia?

Os sábios gostariam de se exilar desses lugares?

Não: mas, diz a Sabedoria, estão na idade feliz,

onde a ardente Venus os queima com suas chamas.

Devem eles as extinguir em suas almas?

Minhas mãos entrelaçaram do sagrado vale,

os mirtos do amor com os louros apolíneos.

O amor é um dos deuses a quem homenageio.

É o tirano de um louco, mas o escravo de um sábio;

ele premia um com ferros, o outro com prazeres.

Aqui dos sentidos, do coração, dominando os desejos,

o feliz Anacreonte, conduzido pela Sabedoria,

das rosas do prazer embeleza sua amada,

torna público suas belezas e celebra o amor.

O panegirista de Teos comanda nesse lugar.

Usufrua os gostos que o desejo faz nascer,

a flor mal desabrocha e rápida, desaparece.

467

Em seus corações, dizia ele, que feliz lembrança

de um prazer que extinto, reascende um desejo.

Conversai com Zenão, dançai com as Graças.

Possa o amor doido, atencioso em vossas pegadas,

de vosso entusiasmo prolongar os instantes.

Vês tu essa borboleta no retorno da primavera.

Como ela volteja em torno de uma rosa nova.

Balança-se no ar, se suspende em sua asa,

contempla algum tempo sua forma e suas cores

e voa sobre seu seio para deleitar seus perfumes.

Igual quando a aurora alumiando o hemisfério,

vem prestar à beleza o dom feliz do agradar.

Essa borboleta sou eu, a rosa, ela é a Dóris,

admirando de seu seio o encarnado e o lírio,

meu ávido olhar contempla com entusiasmo,

os membros arredondados e as brandas mãos.

Não posso eu do desejo moderar os furores.

Eu vôo aos seus braços e roubo seus favores.

No excesso de prazer nossas almas crêem

se unir, se penetrar e formar um único ser.

Nós dois expiramos no altar dos amores.

Podes tu, digo eu, ó Sabedoria, assim os ouvir?

468

Das falsas volúpias tal era a linguagem.

Não, não é aqui a habitação do sábio.

e o remorso sem dúvida misturou no seu seio,

ao néctar do prazer o veneno do desgosto.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

O desgosto que sempre segue o sibarita

não entra, retoma ela, no lar que habito.

E quando a regozijo esfria seus desejos,

o sábio procura alhures outros prazeres.

Aprendas que um gosto quando é único

se transforma em paixão e fica tirânico.

Que a variedade torna vivo um doce prazer!

Um homem tem em si, muitos gostos juntos?

Se ele perde um, essa perda é menos sentida.

Ao fim dessas palavras um poder invisível

rápido me transportou a um vasto palácio.

As entradas escondiam-se em grossa nuvem.

Apenas se apercebia ao longe ruínas antigas,

destroços empilhados em forma de pórticos.

469

E esse palácio famoso por sua antiguidade

foi construído pela mitologia e pela verdade.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Minha alma, exclamo, está surpresa e feliz!

Se for bom observar dos montes de Urânia,

os meios empregadas para mover o universo,

de enumerar os sois suspensos nos ares,

de ver, de calcular qual força os dirige,

os faz flutuar dispersas no oceano do vazio,

Como dos vastos céus furando a profundeza,

tantos astros diferentes em forma e grandeza,

separados entre si por desertos ilimitados,

têm para se equilibrar poderes desiguais.

É menos belo ver quais recursos eternos,

e que agente comum move todos os mortais?

De desvelar dos tempos a escuridão profunda,

de ver o amor próprio nos princípios do mundo,

470

De vê-lo em nossos corações criar as paixões,

esclarecer os humanos e formar as nações.

Contra o ultraje aqui, liberar a vingança,

lá, contra o assassino couraçar a prudência,

e forjar com sua mão a balança das leis,

a corrente do escravo e o cetro dos reis?

De ver as nações alternadamente na terra

se ilustrarem com suas leis, artes e guerra,

de ver seus costumes e ousar antes do tempo

predizer sua grandeza ou seu descrédito.

De descobrir a causa ainda imperceptível,

e pela previdência a que tudo é visível,

revelar presente os séculos vindouros?

Que lugares prazerosos, ó Clio, tu me mostras!

Não: jamais nesses montes da celeste Urânia

haverá maiores objetos a elevar meu gênio.

Sabedoria, no momento eu sou duas vezes feliz,

Tenho dois gostos diversos. Porém, a meus olhos

o templo da felicidade não os oferece ainda.

Por certo um Deus o habita. É vão implorar?

471

Da minha felicidade o paraíso tem ciúme?

Porque teria? É formado por todos os gostos.

Não, tu não és tão feliz quanto tu podes ser.

Sempre, ó meu filho, tua ventura pode crescer.

Vem tu, te restam ainda prazeres a sentir.

A carreira das artes a teus olhos vai se abrir.

Acho-me, a essas palavras, no meio de um campo,

num círculo prateado como descreveu Hipocrene.

É um bosque de palmeiras, cujas palmas espessas,

entrelaçadas com arte, são tecidas em dosséis.

Uma folhagem agradável sombreia os caminhos.

Mil grinaldas de flores pensas em suas arcadas,

perfumando ao longe os bafejos dos ventos.

Que mão arqueou esses palácios da primavera?

Nesses gramados em flor, quem é esta deusa?

A imaginação, responde a Sabedoria,

que pode reabrir ainda os abismos do caos,

tirando a seu bel-prazer cem novos universos.

472

Seu olhar vai além do mundo que abraça.

Transpõe com um salto o tempo e o espaço.

É ela que curva todos os círculos dos céus,

que constrói o império e cria todos os deuses,

que furando o Etna até a morada das almas,

escava o Tártaro inflamando as chamas.

Depois de lá, subindo à claridade do dia,

dança com as silvanas, brinca com o amor.

No retorno da primavera canta Zéfiro e Flora

e as planícies pelorizadas pela aurora.

Aqui o julgamento ao seu lado sentado,

a domina, a dirige em seus firmes esforços.

Os trabalhos do gênio, com ela ele preside.

Nesses diversos arvoredos onde o destino te guia

eu tenho reunido as artes: cada uma tem seu altar.

E quais são, digo então, esses venturosos mortais,

que na arte de Linnus instruído por Polímnia,

por seus sublimes cantos fez calar a inveja?

473

São autores, diz ela, cujos versos significativos,

têm suportado, sustentado as provas do tempo.

Tu vês Lucrécio aqui exprimir aos olhos do sábio,

a verdade mais abstrata sob a mais viva imagem;

Milton com um fogo firme envolver os infernos,

prender o ponto que une o Érebo ao universo;

os Priores, os Boileaux, os Popes, os Horácios,

prenderem a verdade com a echarpe das Graças.

O atrevido Crébillon fazer aparecer o terror,

e dar aos seus versos os charmes do horror.

Além Pérsio está sentado. Crianças dum só gênio,

que meus versos, dizia ele, agradam sem harmonia.

Eu não imitarei esses versejadores sem talentos,

que pródigos de sons, são avaros de sentido,

cuja inspiração espalha do seu pleno curso

um dilúvio de palavras num deserto de ideias.

E não misturarei com certeza, imbecil orador,

o ouro puro das verdades ao chumbo vil do erro.

Semelhante ao Deus brilhante que colore e pensa,

Quem promove os versos meus? O que na França,

474

o primeiro colocou na boca o trompete de Marte;

nascido para os gostos, ele canta todas as artes.

Sua mão colhe de uma só vez o louro e a rosa,

pinta as obras de Henrique, as graças de Monrose,

as fúrias dos Clementes, as desgraças de Valois;

os turbilhões destruídos pelo Descarte Anglois,

o raio que Denis bifurcou para a encenação,

e o prisma onde Newton mostrou a estrutura.

Tal se vê num lago especialmente projetado,

o objeto mais próximo e o mais afastado,

a colina que o rodeia, a floresta que o sombreia,

a erva, o junco, a flor que ladeia sua margem,

E o astro cintilante que atravessa os céus.

A atmosfera ressoa então com sons maviosos.

Reconheço Quinaut. O amor montou sua lira.

Do Deus que o inspirou ele louvou o império,

e construiu seus altares em matizáveis palácios.

Obras de todas as artes, prazeres dos sentidos.

Repetirei seus versos e seguirei meu caminho.

Do palácio da Felicidade eu descobri o sobrecéu.

475

De lá saíram os fogos, que por tudo repartidos,

sobre aqueceram os lugares por onde andei.

Lá, eu portei meus passos, guiado pela Sabedoria,

quando o enxame de prazeres que voltejantes

e sempre metamorfoseantes nesses belos lugares,

retiveram meu curso se doando aos meus olhos.

Era um ateliê onde a afortunada Pintura,

sempre imitando embelezava a natureza.

Mil grupos diversos, obras primas de arte,

do espectador maravilhado retendo o olhar,

acreditando ver corpos, sua impaciente mão

toca, quer se assegurar que a tela está viva;

e seu espírito ainda assim irresoluto, curioso,

receia que o tenham logrado o toque e os olhos.

Nesse quadro ousado vejo mares comovidos

lançarem-se, chocarem-se e se vaporizarem

e por nuvem negra o céu ao longe coberto,

apenas iluminado pelo fogo de relâmpagos.

Uma tela de Reinaldo subjugado por Armide,

em outra uma Eumênide por serpente coroada.

476

Ao longe vejo o tempo que, vingador dos heróis,

arrasta e sufoca a inveja junto seus túmulos.

Do berço diáfano de uma vaga espumante

Venus se eleva aqui sobre a onda bramante.

O amor nasce com ela e por ela é armado,

do fogo de seus olhos o mundo é animado.

Já Pan nos montes tem agarrado Oréade;

Netuno, sob as águas arrebatado Náiade;

Íxion na sua nudez perseguido a Juno

e Prosérpina aos infernos se lança com Plutão.

Como ai, digo então, amo ver a pintura

dar corpos aos deuses e alma à natureza!

Dos abismos do esquecimento retirar heróis

e por essa nobre esperança formar novos!

Que prazeres diversos um só gosto faz nascer!

Do templo da felicidade se estou longe ainda,

ao menos a cada passo que dei nesses lugares,

me sinto ao mesmo tempo mais sábio e feliz.

477

Eu digo e provo uma alegria desconhecida

quando a Sabedoria apresenta-me um herói.

Que vejo? Um príncipe aqui?... Um rei glorioso,

que protetor das artes e celebrado por elas,

restaura seus altares que edificara a Grécia.

Deuses! Como foi grande, ajuntou a Sabedoria.

Se Sócrates no conselho e Alcides nos combates,

o ardor de conquistar não armou seu braço!

De César por muito tempo segue os vestígios.

Seu século era ao menos o século dos prodígios,

quando Luis pelas artes se deixou encantar.

Embelezou o universo e cansou de maravilhá-lo.

Mas vêm, olhes perto dele esses que na sua vida,

por excelentes trabalhos ilustraram sua pátria.

Já que enfim não é de gosto que no seu coração,

cem novos prazeres aumentem a sua felicidade.

Já a Arquitetura toma na mão seu esquadro,

e executa seus projetos. Lá, do seio da terra,

veja essas longas alavancas em harmonia,

arrancar gemendo essas informes rochas.

478

Sob os golpes do cinzel o mármore se forma,

Perraut curva a abóbada, arredonda a coluna,

eleva, junta, une e apresenta aos olhares

um palácio, a obra-prima e o abrigo das artes.

Veja Le Nautre cercar esses salões de verdura,

nos palácios de primavera variar os adereços,

veja as tílias em bola e os teixos arredondados.

Cibele sob teus passos estendeu seus tapetes,

cem pompas de cada vez extraiu dos campos.

Esse rio impetuoso assentado nas montanhas,

de onde se precipita por extensos canais,

rola em cascata ou se eleva em jatos d’água.

Musas, como esta abóbada é por vós enfeitada!

Le Pujet foi ai que recebeu o cinzel do gênio.

Veja dentro do seu ateliê a rocha transformada

sob os golpes do martelo gradualmente animada,

tudo a golpes desaparecer e só oferecer à vista,

Adônis moribundo ou então, Dido desvairada.

Quantos quadros apresentados a meus olhos!

Castas filhas do céu, que presidis às artes,

479

Musas, que fogo novo me penetra e me inflama?

Sinto que todos os gostos entraram na minha alma.

Se eu creio no êxtase que se eleva de meu coração,

vossas mãos me abrem enfim o paço da Felicidade.

Eu provo dos teus gostos, ó sublime Sabedoria.

Como as paixões são também o seu entusiasmo,

e com mil prazeres o homem ainda nesses lugares,

junta o prazer novo de se sentir venturoso.

Findando essas palavras nos passos de minha guia,

eu marcho. E sem poder no meu curso ligeiro

fixar a hora precisa que eu fui transportado,

eu me encontro no palácio da Felicidade.

As artes e os prazeres rodeavam seu trono:

Apolo e o Amor sustentavam sua coroa.

A serenidade estava pintada em seus olhos,

e a alegria aí brilhava sempre com o mesmo fogo.

Ó afortunado mortal, o tempo, diz a Sabedoria,

por todo o universo da alegria e da tristeza

480

alternadamente aumenta ou diminui o curso,

para de prazeres iguais medir aqui os dias.

E eu, da verdadeira ventura a fonte inesgotável,

que à felicidade o destino imutável

amarro a toda hora com o mais forte laço,

habito esse palácio e esse trono é meu.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. ..

Do mundo, digo eu antão, evitarei o enlevo.

Na senda florida que me abre a Sabedoria,

Quero levar meus passos resoluto de buscar

os prazeres que a sorte não me arrancará,

suave para agitar, e ardente para agradar.

De ir sucessivamente do Parnaso à Citera,

e de ser em minha primavera atento a colher

os frutos da razão e as flores do prazer.

Mas já perto de mim, o amigo da ignorância,

do templo da Felicidade desterrou a ciência.

481

Ele afirma que as artes aos homens perigosas

fazem de seus amantes outro tanto infelizes,

que eu devo renunciar a uma louca Sabedoria,

que a ventura repousa no seio da indolência.

482

QUARTO CANTO

ARGUMENTO

Os talentos, diz a Indolência, são a infelicidade daqueles que os possuem. A

inveja os persegue. O homem não nasceu para o estudo. As ciências são inúteis à

felicidade do gênero humano. Assim fala o povo, mas ele ignora que as artes devem

seu progresso às ciências. Elas introduziram o uso dos metais, da agricultura, etc. Mas

a química tem dado os venenos e a pólvora do canhão. Deve-se a ela também os

remédios. E a pólvora do canhão tornou a guerra menos mortífera e os povos ficaram

ao abrigo das frequentes invasões. Mas as artes são as origens do luxo. O luxo só é um

mal nos Estados mal governados. Ele tem a sua origem no amor do prazer, motor do

universo.

Pode-se, diz a indolência, estimar os talentos,

mas, infortúnio do mortal orgulhoso, imprudente,

483

que loucamente inflamado do desejo de glória,

quer escrever seu nome no templo da memória,

a quantos desgostos ele deve se preparar!

Se eu quero ser feliz eu devo pouco desejar.

De seus ramos frondosos quando da tempestade,

de um carvalho sobranceiro despojou o topo,

que valor oferece ele aos golpes dos furacões?

Que podem contra ele seus esforços impotentes?

Afrontando dos Aquilões o furor implacável,

ele opõem ao sopro deles um tronco inabalável.

Tal deve ser o sábio, e sua única preocupação

é de podar em si os ramos da necessidade.

Ele não deve atribuir merecimento à fortuna.

deve fugir do vão brilho d’uma glória importuna.

Obscuramente contente se o verá preferir,

ao orgulho de inventor, o prazer do admirador.

Vivei vós longe das fainas no seio da indolência,

nascestes ignorantes, sejais assim por sabedoria.

Nosso espírito não é feito para penetrar e ver.

Basta que aprenda que não pode nada saber.

Do círculo que percorre os pontos são prescritos;

Deus com seu dedo poderoso delineou os limites.

484

Esta a nobre razão de quem se obstina a louvar:

Onde o olho cessa de ver, cessa de discernir.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. .

Escutai esse marquês alimentado na ignorância.

Ébrio de vinho, de amor, orgulho e de opulência,

ao sair de um jantar onde o abrasado desejo,

vem extinguir seus fogos no altar do prazer.

Esse galante mentor dos ócios da alta sociedade,

com eles ao acaso discorre, aprova ou critica.

Ele nada distingue nos discursos do impostor

de antigos preconceitos moderno aprovador.

A verdade até ele dardeja em vão sua luz.

O dedo da ignorância fechou sua pálpebra.

Ele não a descerra aos sublimes destaques,

dos semideuses mortais, egrégios pelos talentos.

Para que serve, dirá ele, o estudo das ciências,

e esse montão incerto de falsos conhecimentos?

Que mudança, que bem suscita aos Estados,

e desses longos cálculos só inúteis resultados.

485

E esses sábios tão altivos, espíritos indóceis,

incômodos com frequência, sempre inúteis,

indolentes orgulhosos, tolerados pelas leis.

Acolhidos pelos bobos, desprezados pelos reis?

Os vejo em segredo corroídos pela indigência,

da inutilidade, tão legítima recompensa.

Ei! Como não sofrerão esses soberbos espíritos,

coroados de louros fora dos muros de Paris!

O vulgo ignorante, assim fala e se engana.

Longe de condená-lo, eu o lastimo e desculpo.

Sabe ele que no seu cálculo esse sábio absorto,

que multiplica, a, a, por x, x, mais b, b,

deve, tendo nas mãos o compasso e esquadro,

traçar sobre o papel a figura de um copo,

que quebrando os raios em sua espessa curva,

e da cúpula dos ares abaixando a altura,

deve dar aos nossos olhos uma força nova?

Diz ele que com olho fixo na abóbada eterna,

o piloto atencioso apenas procura nos céus,

prender a altura do pólo com seus novos olhos,

para em um plano mais correto reconverter,

e desenhar dos mares o vazio e o vasto império.

486

A morte já tem seguido da planura das águas.

Eu percebo os escolhos cobertos pelas vagas,

dos lugares onde o sol começa sua carreira

até as regiões escuras onde se apaga sua luz.

O caminho está aberto, o oceano habitado.

O tímido navegante no porto parado,

corre afrontar os ventos reunidos sobre a cabeça.

Ele já dobrou o cabo das tormentas,

e passou esses montes que, a cara nos ares,

são altivos gigantes defensores desses mares.

O piloto construiu nesses férteis litorais

sucursais que, como lojas de nossas cidades,

tornarão comuns a todos as artes e os presentes

repartidos pelo céu aos diferentes povos.

É o mesmo comércio, a cada povo proveitoso,

que nutre o batavo no seu pântano improdutivo.

Ele fundou seu império e ai permanece em apoio.

A Holanda lhe deve o que ela é hoje em dia.

Ele a subtrai do jugo que a Espanha a oprime,

ele assalaria um exército e a torna temível,

E derramando a riqueza no seio de seus Estados,

aí semeia os louros colhidos pelos seus soldados.

487

As artes comandam? A natureza é dócil.

As vagas lhes obedecem, o metal é dúctil.

Amigas de nossos prazeres, suas mão liberais,

Têm com mimos sem conta agraciado os humanos, A desdenhar essas artes, é em vão que se obstina.

Quem não lhes deve? Elas escavaram a mina,

dos abismos da terra arrancaram os metais.

Elas os colocam em camadas em vastos fornos.

De crisóis inflamados derrama-se a matéria.

Contém ela ainda uma escória grosseira?

É para lhe desembaraçar de toda impureza

que o ferro pelas artes à fornalha é levado.

Já o fluxo prensado do elemento líquido,

deságua, espuma, ruge, vira o eixo rápido,

dessas alavancas aladas no seu centro rolante.

Os malhos erguidos por seus esforços possantes,

tombam em tempos iguais, a iguais distâncias;

e o ferro sob seus golpes se apura e condensa. Ignaro, veja as artes cercarem os nossos canteiros

Veja-as levantar os mastros, curvar os pranchões,

Fundir a ancora, arqueá-la e de mãos inumeráveis,

Aqui confeccionar as velas e lá tecer os cabos.

488

Da soberba embarcação as partes isoladas,

pelas mãos dessas artes são apenas montadas,

que não estando mais acorrentado no estaleiro,

o navio cedendo a seu peso que o arrasta,

em um valado de fogo se lança, e o oceano

esguicha, espuma ao longe e o abraça bramindo.

Nossos navios pelas artes armados para guerra,

açoitam Mahon e confrontam a Inglaterra,

eles são aparelhados para procurar combates.

A frota abriu a onda e seus soberbos mastros

oferecem ao olhar apenas uma floresta errante,

que alumia golpe sobre golpe uma chama troante.

Ah bem! Dir-se-á, as artes têm por um momento

Talvez merecido as honras que lhe concederam.

Mas sempre nós louvamos suas maravilhas

de modo que seu elogio ensurdece nossos ouvidos!

Vejamos os males que elas fazem. Só em seu sótão,

observai esse químico rodeado de balões de ensaio.

Se ele tem purificado as exalações da terra,

triturado os minerais e modelado o trovão,

489

não têm desses fogos armado os celerados?

Pois seja. Mas estreitou as portas da morte,

e se ele não pode dos reis sufocar as disputas,

ele empresta a seus furores armas menos cruéis.

A guerra é menos sangrenta e Marte apresenta,

golpes mais temíveis, mas golpes menos certeiros.

Infelizes mortais, se lê numa antiga história,

vê-se em todos os lugares a implacável vitória

quebrar o orgulho de reis, lançá-los a ferros,

e transformar de repente cidades em desertos.

Um só combate outrora decidiu um império.

Sem defesa, sem fortes, sem a arte de construí-los,

os Estados são todos abertos aos conquistadores.

Dos confins do universo essas rápidas torrentes,

que nada param todavia o bando vagabundo,

se sucedem uma as outras e devastam o mundo.

Um Vauban é nascido? O gênio e as artes,

cavando os fossos, constroem muralhas.

490

opõe em todo país os diques contra as tormentas,

e em um círculo estreito concentra coragens.

Não é mais hoje o tempo dos conquistadores.

Os reis são coroados com louros menos sangrentos.

Para manter a paz entre todas as potências,

A esperta Europa na mão segura sua balança

em um justo equilíbrio e sustenta os Estados

Não se respira mais o sangue e os combates.

O guerreiro sacrifica em uma paz duradoura

o orgulho de ser terrível ao desejo de ser amável.

Um herói no norte angaria os talentos:

como a pólvora em fogo faz esforço por igual,

por igual Frederico faz esforço para a glória.

Favorito de Apolo ele o é na vitória.

Capitão, orador, das Musas visitado,

ele abre dois caminhos à imortalidade.

C'as mãos que divulgou a águia da Germânia,

ele acaricia as artes e aplaude o gênio.

Mas seu elogio incomoda o ignorante.

Eu entrevejo seu humor e seu riso insultante.

491

Acreditem-me, dirão, as grandes descobertas,

por um feliz acaso nos são sempre oferecidos.

E vossos sábios enfim, com grandes palavras,

apenas acharam a arte de se impor aos tolos.

Do seu soberbo espírito a orgulhosa fraqueza

faz dos dons do acaso honra à sua sabedoria.

Indignado, revoltado de seus vãos argumentos,

vejo que tudo na terra é um benefício do tempo.

O tempo nos faz seus dons, certo: Mas um sábio,

faz o mais precioso: ele mostra seu emprego.

Sem ele, sem seu socorro, espírito fraco e cioso,

o pródigo azar não teria feito nada por nós.

Eu vejo que ele abriu uma rica estrada:

foi preciso que as artes talhassem a pedra.

Eu o repito ainda, sem as artes beneficentes,

o céu nos teria acumulado de inúteis presentes.

Em que tempo, que país, as Artes e as Ciências

não da felicidade distribuíram as sementes?

Essa ventura deve crescer. Ela enfim germinou?

O ignorante não sabe mais a mão que a semeou.

492

Esse lento crescimento é sempre insensível.

O sábio vê a causa às pessoas invisível.

Tudo se move para ele, mas aos olhos dos tolos,

o movente universo está sempre em repouso. Tem olhos obstinados em vão a natureza,

que ao sinal dos gêmeos se cobre de verdor,

que o astro da noite desfralda no alto dos ares

as velas prateadas que estende sobre os mares,

que o amante de Tétis, despertado pela Aurora,

restitui a forma ao mundo e suas cores à Flora,

quebra os raios de luz nos prismas das águas

e espalha rubis sobre a altura das vagas.

O universo diante dele despido de sua forma,

apenas lhe apresenta uma noite uniforme.

Semelhante a este obstinado e bem mais infeliz,

para a beleza das artes o estúpido é sem olhos,

para o estudo dos costumes nunca se dignou,

e o momento presente é o único que ele conhece.

Ele leu no futuro, esse ousado Richelieu,

cujo favor pródigo acolheu em todos os lugares,

as artes e os talentos para fixá-los na França.

Ele esperava com eles consolidar seu poder.

493

Ele sentiu seus poderes e que em todos os países,

as artes mudam os hábitos e os hábitos os Estados.

As artes fecundaram nossos campos estéreis,

de ricos monumentos encantaram nossas cidades

e dentro dos corações onde havia à ferocidade,

substituíram a atenciosa e nobre humanidade.

E mais, para nosso prazer, que não é nada ainda,

essas artes que não obstante, o ignorante honra.

Para o encanto dos olhos, eu vejo nos fornos,

o industrioso artífice amolecer os metais,

lhes dar a seu grado cem formas agradáveis.

Ele tem nos crisóis vitrificado essas areias,

que devem repetir nos meus olhos encantados,

os objetos de meu luxo e de minha vaidade.

O artista bateu o ouro estendendo-o em lâminas:

de nossos ricos brocados sua mão urde as tramas,

ele aí cruza os fios e seus felizes esforços,

de diversos novelos parece tirar as formas.

Amigas do rico ocioso as artes buscam sem cessar,

lhe subtrair aos males do sossego que lhe oprime.

494

De tudo o que a terra encerra em sua grandeza,

sua mão compôs a doçura de sua felicidade.

Colombo no seu desígnio fende o plano da onda,

e traz com ele, do seio de um outro mundo,

novas necessidades e novas aspirações,

germes que darão nossos males e nossos gostos.

Mas para que, dirão, esse comércio, esse fausto,

com nossas leis que não raro lutam e se opõem?

Esse luxo tão louvado em mil escritos diversos,

tem ele do sofrimento livrado o universo?

Que multidão de males prestes a se introduzir

nos povos onde o luxo estabeleceu seu império!

O artesão aí geme sob o peso dos impostos,

a coragem se humilha e se perde no repouso.

O poderoso sem pudor intriga a escravidão,

da sua submissão, seu luxo é uma garantia.

Essas superfluidades, essa pompa, esses gostos,

essas vãs distrações que encantam os lazeres,

esse comércio, essas artes que cada cidade tem,

são menos benfeitores que flagelos do mundo.

495

O mal que às nações faz um luxo descarado,

ao luxo propriamente, deve ser imputado?

Não. Esse mal só é, não raro fruto da miséria,

o produto de um poder ávido e sanguinário

e de uma causa enfim da qual o luxo é efeito.

De sua destruição o que pode ser o objeto?

Nas nossas felizes regiões o luxo, o consumo,

diverte a riqueza e alimenta a indigência.

O que pode contra o luxo armar os soberanos?

Seriam esses os gostos que ele causa nos homens?

Útil às nossas cidades, o prazer as anima;

ele dilata os corações, a aflição os comprime,

sem o prazer, admite-se, pai do movimento,

o espírito fica sem energia e o mundo estagnado.

496

QUINTO CANTO

ARGUMENTO

É o prazer que nos chama ao trabalho. É a esperança de prazeres que é a

causa das riquezas e das grandezas e que nos leva a procurá-las. Na história resumida

da sociedade, desde sua origem até no estado em que se encontra, se vê o amor pelo

prazer, móbil de todas as ações e energia necessária das sociedades. Ele faz a

felicidade e a glória, a vergonha ou a infelicidade, conforme é dirigido pelos

legisladores. A perfeição da legislação torna a felicidade dos indivíduos útil à

felicidade da sociedade. O despotismo, onde tudo tem por objeto a felicidade de um

só, e a superstição, que tem por fim o império e a felicidade dos padres, são

igualmente opostos a esta boa legislação.

Se o homem por pendor é arrastado ao crime,

dos desejos indiscretos com frequência vítima,

sob o peso de seus males parece prostrado,

será ao prazer que é necessário incriminar?

497

No tribunal do justo em vão se o denuncia

Ele vê na satisfação o motor da humanidade,

que submete às suas leis os variados povos.

Adoremos então nele a alma do universo.

Se sua potente voz a todos se faz entender,

se a esperança de gozo nos faz tudo fazer,

se criador das artes ele nos concede os gostos,

devo eu os imolar aos caprichos dos loucos?

Dessas artes negadas, se o estudo fecundo,

só desse nada mais que prazeres ao mundo,

as artes teriam saciado nosso primeiro desejo.

Quem pode de suas precisões distinguir o prazer?

É um presente do céu feito pelo Ser supremo.

Embora diga um beato; É um bem em si mesmo.

Existe aí prazer assim como honestidades:

pelos cuidados atentos de seus concessores,

é o preço de um feito injusto ou legítimo,

nos leva às virtudes ou nos arrasta ao crime.

Dos mortais iluminando ou enganando a razão,

alternadamente torna-se remédio ou veneno.

A satisfação dirigida por uma hábil mão,

em todo governo é um recurso proveitoso.

498

Nos campos idumeus, olhai este impostor

que por tudo espalhou o terror e o engano,

e que nos combates coroados pela glória,

tem com bandeiras sangrentas atado a vitória

Com que arte abusando dos seres humanos,

aqueceu os corações desses altivos sarracenos,

que sempre famintos e desejosos de carnificina,

dobravam o orgulho de reis ao jugo da servidão?

Se tudo se tornou viável a seus potentes esforços,

é que souberam do prazer empregar os recursos.

Ele conheceu o seu uso e seguro de sua força,

ao lado dos trabalhos colocando a recompensa,

ao sanguinário vencedor abrindo o paraíso,

para lá dos perigos lhe manifestou as huris.

Quer tu, curioso te instruíres e melhor conhecer

os efeitos do prazer, o que isso pode no teu ser

e que princípio ativo poderoso e geral,

desde toda eternidade moveu o mundo moral?

499

Penetra no teu coração. Que teu olho sonde

da sociedade o remonte à procedência,

ao momento em que Deus criou o universo.

Ele manda o fogo, a água, a terra e os mares

que se arredondem em globo, e o espaço dócil

recebeu em seus flancos a matéria imóvel.

De mil astros espalhados, Deus acordando,

aí deposita o calor, a força e os motivos.

Por habitante, por rei desse mundo visível,

sua mão criou o homem. Ele nasce, é sensível;

ele conhece o prazer e experimenta a dor,

e já o amor próprio germinou no seu coração.

Este amor sempre preparado para sua defesa,

até no seu berço protege a sua infância

e contra todo perigo se torna o seu apoio,

e na decrepitude ele vela ainda sobre ele.

Devo a este amor minha alegria e tristeza,

meus medos, impulsos, talentos, sabedoria.

Todo tempo este amor guiando meus desejos,

me faz fugir da dor e procurar os prazeres.

500

Entre aqueles que eu gosto, há um supremo.

Todo outro à sua aparência retira-se de si mesmo,

como um fantasma ligeiro foge ao aspecto do dia.

E essa delícia suprema é aquela do amor.

Seus fogos queimam Adão. Ele vê Eva, a admira,

a ama, a abraça e cede ao encanto que o seduz.

Ele é pai e seus filhos se alimentam de bolotas.

Em cavernas profundas e cavadas pelo tempo,

uns dos outros antes de tudo separados na terra,

sem ouro e precisões, eles viveram sem guerra:

vítimas ou vencedores de ursos e de leões

Ao mesmo tempo reis e súditos em vastas regiões,

seguem em tudo o instinto da simples natureza.

Seu número enfim cresce. A terra sem cultura,

não lhes rende mais bastantes e férteis presentes,

para prover às precisões de todos os habitantes.

A arte vem ao seu socorro. Ela escavou a mina.

Ela daí extrai o ferro, ela o funde, ela o afina.

Esse metal à fundição é em relha preparada.

Atrelado sob a canga o boi anda inclinado.

501

A necessidade, o prazer, fontes da indústria,

têm fecundado a planície, adornado a pradaria,

embelezado os jardins, levado às nossas searas

as cores de Vertumno e os frutos de Palas.

Mas os primeiros mortais, logo a raça inteira,

de uma marcha rápida completou sua carreira.

Quando enfim pelos anos arrastados ao túmulo,

Têmis transferiu a terra a novos mortais

e uma nova arte ensina à mão inábil,

a repartir o campo já tornado fértil.

O homem se fez dono. Ele o chamou seu bem.

É quando se conheceu o teu e o meu:

e que pela necessidade a terra semeada,

entre seus habitantes foi logo dividida.

Um fosso largo e profundo cerca seu recinto.

É lá que se dando às doçuras do repouso,

eles vivem algum tempo em paz profunda.

Mas como foi curto esse tempo tão especial!

502

Nesses lugarejos já eu vejo a sorte se armar.

Ela quer com ferro em mão recolher sem semear.

Com sua rude audácia ousando, tudo se espera.

Aos mais ásperos trabalhos seu orgulho submete

o fraco que reclama em vão o apoio dos deuses.

Têmis, diz-se, então se elevou aos céus.

A terra nesse momento é entregue à pilhagem.

Nenhum direito que não se deva à coragem.

O vencedor insensível ao grito da razão,

rouba o seu vizinho, sua mulher e sua casa.

De facções está por tudo alumiada a terra,

não da luz do amor, mas da luz da guerra;

e o universo inteiro só apresenta a meus olhos,

apenas viúvas em lágrimas e casas em fogo.

A morte que profere ao longe gritos terríveis,

percorre o universo sob cem formas horríveis.

Infelizes, esclarecidos por suas calamidades,

os humanos entraram em pactos, tratados.

503

A segurança de todos, eis a sua primeira lei,

sem a lei, sem esse jugo, indigno, mas necessário,

o fraco é oprimido e o vigoroso opressor.

Assim em todo Estado, a arte do legislador,

é que cada indivíduo ao andar na arena,

de que a rápida inclinação ao prazer o arrasta,

apenas possa dar um passo de cada vez em

direção à ventura pública, a obra-prima das leis.

Segundo um príncipe seja mais ou menos hábil

em fundar, em penetrar nesta arte tão difícil

de reunir e prender por um vínculo comum,

ao interesse de todos o interesse de cada um,

segundo se é ditoso em seguir a justiça

e se ama as virtudes ou se entrega ao vício.

É para reprimi-los que se vive nos Estados.

O público interesse cria os magistrados,

confiados a proteger a mais fraca inocência,

e a lei lhes encarrega do gládio e do poder.

Se jura entre suas mãos de suster seus direitos,

eles afiançam por sua vez de manter a lei.

Mas nesse vão juramento o magistrado perjuro,

esquece que esse era um direito da natureza.

504

O poder deixou de ser logo em suas mãos,

o recurso venturoso da felicidade dos homens.

Sentiu-se ele poderoso? Eu o vejo tentar,

destruir as leis que ele afiançou defender,

ou antes, dessas leis se armar para escravizar

os covardes cidadãos que deveriam lhe punir.

É então que à sua fronte colocando a coroa

se o viu transformar seu tribunal em trono,

e o amor ao bem público um crime a seus olhos.

Quem recusa seus ferros é um sedicioso.

O universo teve por reis a força e o disfarce;

eles aí reinam ainda sob o nome de justiça.

O criminoso feliz foi por tudo reverenciado.

Enfim no seu palácio, o tirano massacrado

morre sob os golpes daqueles que ele oprime.

A força era seu direito, a fraqueza seu crime.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. .

Se o orgulho edifica o poderio despótico,

O medo o fortalece. Sendo assim a política,

505

esta arte antes tão sábia em suas intenções,

esta nobre arte de livrar a ventura dos humanos:

é só a arte impenetrável, odiosa, que funda

o poder dos tiranos sobre os infelizes do mundo.

O homem adorou os braços que o humilhou,

e da sua escravidão ele fez uma virtude.

Do povo desafortunado a cegueira extrema

parece lhe despojar do amor de si mesmo.

Pareceu esquecer que a esperança de ser feliz,

da união publica havia formado os nós.

Sob o nome de virtudes ele ignorou os crimes.

Eu vos pego por testemunhas, infelizes vítimas,

vós que de vossos sultões bajulam a crueldade.

Colocais a arte de reinar na desumanidade;

e pareceis preferir nos vossos desejos ilícitos,

a arte terrível dos Sejanos à bondade dos Titos.

Neste relato rápido onde meu pincel ousado;

tem do mundo nascente esboçado o quadro,

506

vede que o prazer, única força da nossa alma,

espalha seu fogo intenso, nos move e inflama,

desde o escravo vil até o orgulhoso potentado.

Como comanda todos, comanda o magistrado

cobiçoso do prazer, empenha-se pelo poder,

ambiciona tudo sujeitar à sua obediência,

profana com seu orgulho o templo de Têmis,

e da espada, em suas mãos pelo povo posta,

para vingar a virtude do grande que o oprime,

ele faz um instrumento de vingança e de crime,

dela se serve para curvar sob um jugo ilegal,

o homem livre de nascimento e criado seu igual.

Mas esse mesmo prazer de que só a esperança

inspira no magistrado o amor do poderio,

e que na grandeza ata sempre seus olhos,

do padre muitas vezes faz um ambicioso.

Para elevar a púlpito ele abaixa o trono,

Á mitra dentro em pouco escraviza a coroa;

e mestre dos espíritos esse padre faz dos reis,

escravos titulares, mas submissos a suas leis.

507

Quem dos decretos do céu se diz depositário,

pode sempre a seu agrado mandar no povo.

Sob o respeito sagrado que oculta os altares,

a hábil ambição se esconde aos olhos mortais.

O arredio derviche sob o burel e o cilício,

suas vastas intenções dissimula o mistério.

Que olho agudo pode ver em seu acolhimento,

quanto a humildade oculta nele de orgulho?

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

508

SEXTO CANTO

ARGUMENTO

O progresso dos conhecimentos pode sozinho fazer a felicidade geral e a

particular. Os reis instruídos verão que o prazer de fazer o bem é o único prazer real

que dão as grandezas. Os homens esclarecidos e bem governados se tornam contentes

em contribuir para a felicidade dos outros. Mas o mundo está ainda longe desse

estado. Sob o jugo da opressão dos reis e dos padres, o sábio deverá usufruir das artes,

do prazer de amar e daquele de esclarecer os homens tanto quanto lhe for possível.

Fábula de Oromaze de Ariman.

Companheira das virtudes, sublime verdade,

que instruído por tuas lições, guiado por tua luz,

o homem aprende de ti que é o prazer mesmo,

a alma do universo, o dom de um Deus supremo,

509

que lhe será achado, longe dos mortais ciosos,

sua felicidade pessoal na felicidade de todos.

Ó santa verdade! É no teu templo augusto,

que o homem deve extrair as noções de justo.

Cegado pelo erro, há muito tempo se viu ele

desgarrar-se no crime procurando a virtude.

Está na hora da tua mão abrir-lhe os olhos.

Mostre-lhe que aqui em baixo uma era de luz,

pode sozinha renovar uma era de felicidade.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .

Oromaze engendrado deste imenso incêndio,

que se move, pensa, quer, vivifica, é Deus,

assim que nos céus tinha suspenso o mundo,

em favor dos mortais sua mão sábia e fértil,

dotou com seus dons todas as diversas regiões.

Entre os habitantes desse vasto universo,

há dois, sobretudo, que ama e que ele inspira.

Um seu nome é Elidor e o outro Netzanire.

510

Que bendito seja o céu, se diziam eles um dia,

unidos ao mesmo tempo pelo himeneu e o amor,

casal de cônjuges amantes, que ventura é a nossa!

Nós vivemos Netzanire e vivemos um para o outro.

Recorde ao teu espírito aquele dia na floresta,

em que me dei a teus olhos pela primeira vez.

Eu te vi. E o amor circulou nas minhas veias.

Impaciente de amar, eu te pedi em casamento.

Tu dignaste me escutar. Meus suspiros e votos,

não foram desviados por ventos invejosos.

Tu ardias do amor que devorava minha alma;

o himeneu longe de apagar mais irrita a chama.

Ela resiste ao tempo, todo dia eu te encontro

mais adorável ainda que a primeira vez.

O raio prateado da recém-nascida aurora,

é menos tonificante, menos agradável à Flora,

que o teu olhar o é ao teu esposo venturoso.

Ser encantador. Sabes o que pode o teu olhar,

tua forma, tua beleza, tua graça fascinante?

Sabes tu que em um coração ela leva o êxtase?

Desses corpos moldados por Venus e os amores,

Não tens jamais no banho admirado a forma?

511

Minha alma até o céu é muitas vezes lançada,

plena de ti, eu tenho frequentemente o pensar,

querendo tudo comparar nesse mundo habitado.

Não tenho visto nada que te iguale em beleza.

Se distraído um instante do objeto que adoro,

Eu prendo o meu olhar na brilhante Aurora,

nos círculos dos céus, nos imensos oceanos,

nos orbes brilhantes que atravessam os ares.

Apesar da surpresa que sente minha alma,

este espetáculo não me comove e me inflama.

Eu não sinto em mim o particular movimento,

meu ser não sente nenhuma grande mudança.

Esse soberbo espetáculo incitando a admiração,

me afogueia de um prazer que a alma domina.

Como eu sou diferente quanto eu te avisto!

Todo meu ser se altera em se chegando a ti

O céu ao meu amor ligou minha existência.

É por ti que eu sinto, é por ti que eu penso.

Longe de ti eu te procuro e tudo me é odioso.

Mas quando o teu porte adorna esses lugares,

ela aí derrama o espírito, amor e alegrias.

Às mágoas vorazes, meu coração está exposto?

512

Do desgosto, perto de ti perdendo a lembrança,

Meus olhos só são molhados do pranto do desejo.

Arrebatado, eu te observo e extasiado te toco.

À noite quando o himeneu me conduz ao teu leito,

teu ingênuo pudor irrita, exaspera meu fogo.

A graça está no teu gesto e o céu nos teus olhos.

Ocupado de ti somente, ó alma da minha vida,

o dom de te encantar é o único que eu invejo!

Que servem o saber, o espírito e o talento,

te amar, te agradar é tudo, o resto é nada.

Dos sábios às vezes eu ouço a voz sublime,

cantar os deuses, o tempo, o caos, o abismo,

e pintar as belezas do recém-nascido universo.

Não sei. Mas o enfado se junta à exposição.

Em confronto com a tua beleza o que é o gênio?

Discorrendo perto de ti a sabedoria é loucura.

Tudo é criado para ti. A rosa desse jardim

feita por quem a compara às rosas da tua tez.

Perto dela o Zéfiro sussurrando sua ternura,

do seu sopro amoroso reacende meu êxtase.

513

O amor, os doces beijos, o canto dos pássaros,

a vinha entrelaçada nos troncos dos olmeiros,

a sombra dos bosques, essas flores, a verdura,

e essas camas de relvas, e toda a natureza

me leva ao objeto do meu coração apaixonado.

O sol dourado e o astro argênteo das noites,

obras-primas que criou a palavra fecunda,

sobem eles aos céus para embelezar o mundo?

Não. Mas para iluminar com suas cores,

de manhã tuas belezas e à noite seus sabores.

A onda que reflete neste venturoso recanto,

a imagem exposta no seu espelho móvel,

com suas claras ondas só abraça esse lugar,

para multiplicar o objeto do meu amor.

Mas o sol já se eleva em sua carreira,

ao poderoso Oromaze, ao Deus da luz,

é tempo de pagar o tributo dos nossos votos,

é ele que te criou, por ele eu sou venturoso.

É um deus da bondade que Netzanire adora.

Os gozos são dons seus, e quem os frui o honra.

514

No templo do amor ele colocou seus altares.

Oromaze é ditoso da felicidade dos mortais.

Elidor a essas palavras abraça sua amada.

Os dois alcançam as abas de uma montanha,

que a alvor matinal iluminava com seu lume.

Por um charme sedutor causado nesses sítios,

a gente se sentia forçado para lá seguir o curso.

Da cumeeira do monte brotava uma fonte,

de que as águas caiam de alturas diversas,

numa pequena lagoa bordada de flores.

Os ares eram perfumados por ervas odorantes.

Ao redor se elevavam plátanos esplêndidos,

cujos troncos iluminados pelos primeiros raios,

tais como árvores de ouro enfeitando seu redor.

Do lago rebentavam ondas murmurantes,

que descendo primeiro em lençóis transparentes,

se dividiam em seguida em diferentes canais.

Os raios da aurora abrilhantando as águas,

e elas, por cem rodeios, rolando para o campo,

de lagos de diamante cercavam a montanha.

515

Em frente se elevava o santuário do amor;

é para lá que esses amantes iam diariamente.

Eles iam fazer invocações ao deus da luz,

em seus sagrados altares enunciar suas preces.

Um grito foi ouvido, saído de antros cavernosos.

Alguns sinais medonhos chegaram aos céus.

Dos abismos do Tênaro um vapor obscuro,

nos ares espalhado escondeu a natureza.

A montanha se sacode e a terra estremece.

Era o momento fatal pelo destino predito,

onde o soberbo Ariman, deus do erro e do ódio,

deus terrível aos mortais, quebraria sua cadeia.

Com o universo submetido à sua divindade,

o templo do amor seria a única exceção.

E é no seu vestíbulo que ao medo obediente,

o feliz casal de amantes procurou abrigo.

Mal eles chegam lá e seus olhos espantados,

volvem na direção dos lugares que deixaram.

Que espetáculo amedrontador, a estrela da luz

empalidece, para seu curso e recua para trás.

516

Os céus só brilham do fogo dos relâmpagos.

Um ruído surdo se escuta do fundo do mar.

O ar subterrâneo muge, se aquece, se dilata,

com um barulho terrível a montanha explode

e deixa perceber no seu flanco carbonizado

o feroz Ariman sobre uma rocha acorrentado

Seu corpo sem ação, sua alma sem pensares

do adormecimento da morte parecia oprimido,

quando um trovão abala e racha os céus.

A esse golpe Ariman desperta, abre os olhos.

Seu estado nessa hora o humilha e atordoa,

mas sua força renasce, ele coloca a coroa.

A rocha cai no abismo, os ferros se quebram.

Ele lança ao seu redor olhares enfurecidos

que espalham em tudo o medo e o pânico.

O céu pelo seu aspecto verteu umas lágrimas.

Céus, elementos, diz ele, e vós orbes ardentes,

que fecundais a terra e mensurais os anos;

Ariman é vencedor, reverenciais vosso senhor;

Que o universo enfim aprenda a me conhecer.

O cetro de Oromaze passou às minhas mãos;

terra, hoje recepcione teu novo soberano.

517

Vossos montes que florestas coroam de verde,

grutas que uma aragem animada e pura resfria,

bosques sempre verdes que mostram pela manhã

templos pelo prazer consagrados ao amor,

Jardim delicioso, paraíso que se celebra,

ornamento da terra e delícias do homem:

Desaparecei. Os males, as lágrimas do universo

vão me vingar do deus que me acorrentou.

Mortais, é hoje que meu reino tem começo.

Raios, que seus estrondos me proclamem.

Céus, estejai vós atentos aos meus comandos.

Vós rugidores mares e vós fogos vorazes,

regularmente afundeis e consumais a terra.

Elementos, entre vós, eu espalho a guerra.

Eu te ordeno, ó Morte, disparar tuas flechas:

Que tudo seja confuso! E eu quero que doravante,

a física ao procurar na profundeza das minas,

só descubra em tudo um montão de ruínas

e leia com medo nos bancos subterrâneos,

a história da terra e a história dos humanos.

518

Mortais, rastejareis nos destroços do mundo.

Na sua destruição que o inferno me auxilie.

Oromaze não é mais. Eu derrotei meu rival.

Que o universo físico e o universo moral,

sintam juntos os golpes da minha vingança.

Homem, que má sorte governe o teu nascer,

Que a fome e que a sede estorvem teu berço,

Eu encarrego a dor de cavar tua sepultura.

De tuas várias necessidades todo dia vítima,

que elas levem aos corações o germe do crime.

Quero do seu trono arrancada a equidade,

acima das virtudes assistir o vício exaltado,

a força triunfando e a inocência oprimida,

a paz enfim banida e a guerra inflamada,

o cruel despotismo armado contra as leis,

e despovoada a terra e massacrado os reis.

Que o homem aviltado se dobre à escravidão,

privado de virtude e privado de coragem.

Se seu espírito for inútil, saberei humilhá-lo,

embrutecido pelo medo, não ouse mais pensar.

Que a noite do espírito siga a noite da luz:

Homem, crédulo e vil, cubra-te da poeira

519

do teu próprio inimigo, viva na aflição,

por soberana reconheça a superstição.

Ao seu cetro brônzeo submeto a natureza.

O espírito se nutrirá do erro e da impostura,

o rebelde às suas leis arrastado às prisões.

Doravante por seus gritos e seus soluços,

por sua estúpida fé, que todo mortal me honre.

Banhai Padres, em sangue os meus altares.

Indulgente, sem dúvida, Oromaze outrora,

só impôs aos homens os seus desejos por leis.

Adorava-se esse deus sem medos e alarmes.

Meu culto mais severo é o culto das lágrimas.

Isto dito; e de imediato as cidades outrora,

agradáveis pelas artes, felizes pelas leis,

oferecem em toda a parte à vista confusa,

um mundo devastado no qual o terror habita.

520

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. ..

Que espetáculo de horror, gritou Elidor,

tudo mudado, morto: Mas vivemos ainda.

Nós vivemos, amamos, ó potência celeste!

Tu me preservaste. Netzanire me resta

inteira ao meu amor neste palácio de flores

que a arte e o prazer misturaram as cores.

Esqueço os mortais, os males e eu mesmo.

Não há pesar perto do pessoa que se ama.

Junto amiúde nesses leitos perfumados

as volúpias da alma e as dos sentidos.

Jura-me, quando a morte no seguir da idade,

se chegando devagar a essa calma sombra.

na sepultura contigo virá me sepultar,

que ela me encontre nos braços do prazer.

Desta espera tão doce teu amor é penhor.

O amor é dos mortais o mais belo símbolo,

521

é o êxtase dos sentidos, o dom mais belo dos céus,

o único bem que nos é comum com os deuses.

Provemos. Tu o sabes, lhe responde Netzanire.

Por ti, até esse dia, tenho vivido e respirado.

O mundo não me é nada. Ai! por minha ventura,

só desejei apenas um deserto e seu coração.

Minha alma, só para ti, para o amor acessível,

só ao infortúnio dos humanos é mais sensível.

Parece que o amor que meu coração sente,

Exalta também em mim o amor da virtude.

Tu vês por toda parte a terra saqueada.

Ah! meu querido Elidor, ela não está vingada.

Do deus que servimos, derrubando os altares,

Ariman para o seu jugo submeteu os mortais.

Seu furor que neste instante parece abrandado,

para lhes dar a desgraça lhes devolve à vida.

522

Dos vícios que ele infunde os fez seus algozes,

e quer que cada um seja o autor de seus males.

Para multiplicá-los, ele deixa à ignorância

o cuidado de fecundar sua funesta semente.

Do poder de Ariman desobrigue os humanos:

que seus ferros vis se partam por tuas mãos.

Urge que com tua presença alivies suas dores,

socorrer os mortais, eles são nossos irmãos.

Seja para eles na terra um deus consolador.

Se o teu desvio de mim custa ao teu coração,

creias que custa ao meu e estejas seguro que,

sinto no momento todas as dores da ausência.

Mas não importa, quero que no meu coração

o amor por instantes conceder à humanidade.

Seu esposo, a estas palavras, reconhece Netzanire:

Não; não duvido mais, é o céu que te inspira.

Ele me fala e eu vou ao teu comando

até os seus altares desafiar Ariman.

523

Em suas mãos, se puder, apagarei o trovão.

Eu vou me dedicar à felicidade da terra.

Tu o queres. Teu desejo é minha suprema lei.

Possa eu retornar mais digno ainda de ti.

A deixa a essas palavras. A compaixão o guia.

Ele cruza a grandes passos uma região estéril,

ele aí procura por seus pomares e seus campos

que retinham perfumes d'uma eterna primavera,

onde Flora cativava o ligeiro deus que ela ama,

onde sem arte e cuidados, a terra dela mesma,

coloria as flores e amadurecia os frutos.

Que diferença perceberam seus olhos surpresos!

Vê a enxada na mão, o trabalho e o estorvo,

enjoando-se da fadiga para semear o campo.

A pestilência, a escassez e as aflições cruéis

têm a diferentes mortes condenado os mortais.

O astro brilhante do dia, percorrendo a elíptica

lança no universo uma luz oblíqua, de través,

524

faz aí suceder debaixo dos céus sem calor,

os invernos às primaveras, as geadas às flores.

Elidor porém avança, ele quer se instruir

das leis e costumes que Ariman prescreveu

para os novos habitantes de um novo universo.

De um terreno fabuloso que cruza os desertos,

dirige seus passos para um bosque de plátanos.

Ao pé de uma montanha viu algumas cabanas.

Achega-se. Ele ouve umas torrentes que pulando,

de cima das rochas caem em pequenas várzeas.

O astro brilhante dos céus do alto do seu curso

nesse monte dardeja em vão uma pálida luz.

Carvalhos enormes, monarcas das florestas,

absorvem seus raios em suas densas folhagens.

Dos estéreis rochedos se vê cadeias de montanhas

misturarem seus cumes às copas dos carvalhos.

Lugares que um dia sombrio consagra ao terror,

a vasta solidão aumenta ainda mais o horror.

Lá, guiado pela esperança de ajudar os irmãos,

enxugando seus prantos, aliviando seus males.

525

Elidor escalou alguns montes sobranceiros,

cujos cimos se perdem num céu tempestuoso.

De seus cumes escarpados ele viu um grotão,

mina, abismo fundo, cavado pela ganância,

que com picareta aí persegue um filão de ouro,

Ela não nem parou seus olhos sobre Elidor.

Enquanto ele se extraviava nessa solidão,

um espectro se lhe oferece. Era a inquietude,

monstro que pelas próprias mãos dilascerado,

deve o seu ser aos tormentos com que é devorado.

Uma turvação interior anunciou sua presença.

Elidor desconheceu sua angustiosa presença.

Ele vê os opulentos que este monstro persegue,

e nas suas tristes sortes, sua alma se enternece.

Entretanto ele alcança o cume das montanhas.

Que espetáculo de horror! Ele vê nas planícies

guerreiros reunidos sob diferentes estandartes

atacando, defendendo e morrendo como heróis.

526

De corpos e sangue eles cobriram a planície.

Deus, exclama Elidor, que glória desumana

chama esses guerreiros nos campos da morte!

Vão eles arrancar o fraco ao jugo do forte?

Não. Eles combateram para decidir talvez,

de dois tiranos cruéis qual será seu mestre.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. .

O padre corrompido, na sua perversidade,

só admite uma virtude, é a credulidade.

Ele proscreve a justiça e a altiva ignorância

faz dobrar ao seu jugo a cega obediência.

A soturna hipocrisia exige dos humanos,

ao culto do coração as oferendas das mãos.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Elidor afasta-se daí e retorna à sua casa,

onde o amor inquieto esperava seu retorno.

Ariman venceu; a terra é o seu império,

e eu volto, diz ele, minha querida Netzanire.

527

Esquecer se eu puder, o espetáculo amedrontador

dos mortais oprimidos sob do jugo de Ariman.

Seus males aos olhos se apresentam sem cessar.

Tudo, mesmo em teus braços, me enche de tristeza.

Oromaze o escuta e das alturas celestes

desce, envolvido num turbilhão de fogo.

É à esperança, diz ele, a reanimar teu zelo.

Não. A noite do erro não pode ser eterna.

Estejas certo que o homem, ó sensível Elidor,

ao seu primeiro estado pode se elevar ainda.

Se o bem é da verdade sempre inseparável,

o extravio desse bem não é irreparável.

Um século de luz um dia deve retornar.

O século de ventura que parece se afastar.

Nessas precisões cujos gritos te estorvam,

em que Ariman pôs o pomo do infortúnio,

seu olho apesar da noite que se avoluma,

nota já o germe de uma felicidade vindoura.

Sim. Essas carências unidas às vossas vidas,

de vossos espíritos despertarão a diligência,

528

e arrancar-lhes-ão um dia da indolência,

onde os mantém o medo e o nome de Ariman.

Do dia da verdade vejo despontar a aurora;

E se do seu meio-dia esse dia está distante,

acredite que o inferno não pode alterar

esse dia, que se crê suspender o progresso.

Quando por esforços e trabalhos imensos,

os mortais abrirem o palácio das ciências,

que alcança a verdade degrau por degrau,

do fogo de seus raios tudo será iluminado.

Eles saberão então por qual arte se reúne

e com qual laço secreto se pode unir junto,

o interesse de cada um ao interesse de todos.

Mais justos, humanos, mais unidos entre vós,

seus dias fluirão sem mistura de sofrimentos.

Pode ser que esse fruto da sabedoria humana,

numa terra estéril terá uma lenta maturação.

Mas enfim quando a fruta estiver madura,

esclarecido, virtuoso, tanto quanto possa ser,

o homem merecerá de me possuir como mestre.

Soberbo demais Ariman, teu reino é passado.

Eu vejo teu trono em pó e teu cetro quebrado.

529

Tu ergueste até os céus tua orgulhosa cabeça.

Receie. Meu olho em ti vê desabar a tormenta.

Privado de poderio, desterrado do universo,

meu braço vingador te segue até os infernos.

Tu tombas, devorado por enxofres de raios.

O inferno se dissolve e o céu se aloja na terra.

Fim

530

FRAGMENTO

De uma epístola sobre 'O Amor próprio'.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . Alguém com olho curioso

vê como o amor-próprio, sempre e em tudo,

531

pai único e comum das virtudes e crimes,

escava nossos males e entulha os abismos,

compõem os cidadãos, os submete aos reis,

Faz, rompe, reaperta o nó sagrado das leis,

extingue e reacende as chamas da guerra,

e excita em desigual todos os filhos da terra.

Dos romanos, outro observando os costumes,

e sua ferocidade, germe de suas grandezas,

vê neles das virtudes suceder a abundância,

vê esse povo vencedor, vencido pelo torpor,

e seu trono construído do trono de cem reis,

desabar de repente, vergado sob seu peso.

Alguns, menos amigos de um estudo fundo,

percorrem de relance os séculos do mundo,

que iguais a vagas sobre outras rolando,

parecem se abismar no turbilhão do tempo,

e em seus cursos rápidos arrastam e destroem,

as artes, leis, costumes, os reis e seus impérios.

532

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. .

Aprenda que a um homem livre, urge dar algemas.

Eu me envergonho, mas enfim ao culpado universo,

é preciso os grandes, os reis. É um mal necessário.

A injustiça sem eles eleva uma cabeça arrogante.

O amor-próprio regressa aos primeiros direitos,

apanha a força por juiz e seus desejos por lei.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . ..

Contemple de uma maneira saudável e calma,

as duas extremidades que limitam a tua vida.

Saiba o pouco que carece o teu ser imperfeito:

Ao teu nascimento, um peito, um cueiro e leite;

à morte, uma mortalha, uma cova, um caixão;

Eis aí tudo o que sobeja aos donos da terra.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

533

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Quando de remorso um rei não é combatido,

quando só admite por lei a sua ordem total,

toda a diferença se julga então pela guerra,

todo mortal é escravo ou tirano sobre a terra.

Não há mais virtudes, equidade, descanso,

e o universo moral regressa à desordem.

534

FRAGMENTO

De uma epístola sobre 'O Luxo'.

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. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

É o prazer que só ao trabalho nos coordena.

No deserto dos mares, perigos e nas penas,

só a espera de fruir sustem os comerciantes.

Esperam um dia, mais ricos, mais contentes,

sob lambris dourados ter à mão a fortuna

e o prazer que estar ao abrigo da indigência.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Às grandes nações o luxo é, dizem, essencial.

Da pompa e do dinheiro o desejo salutar

nos tira do repouso que nos mantêm calmos.

É uma energia ativa, que motor dos espíritos

e nos nossos cidadãos excitando a indústria,

nas corporações do Estado faz circular a vida.

O ouro é pois um deus? Se lhe deve os desejos?

E o homem enfim sem ouro, não pode ser feliz?

535

Nos ermos do norte, o livre e altivo selvagem,

se contenta com as pedras de suas margens.

Ele não vai procurar em regiões abrasadoras,

os diamantes, as artes e os maiores prazeres.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Tem tanta sorte este imponente inútil,

que a pompa insultante baniu das cidades.

Que num carro dourado passeou por Paris.

Põe sua fortuna nos pés dos nossos jovens,

que sempre oprimidos de dívidas usuárias,

convertem em fitas os tesouros de seus pais.

Tombam e logo expiam carências urgentes,

o erro dos prazeres fruídos na primavera.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

A videira cresce, sobe e se verdeja as montes.

As espigas ondeantes amarelam os campos.

e o trabalho por fim de todas as temporadas,

da improdutiva terra arranca as colheitas.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. ..

536

FRAGMENTO

De uma epístola sobre 'A Superstição'.

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. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Em todo Estado um corpo, de qualquer saber,

à sua grandeza deve progredir sem suspensão,

Sob o pretexto ilusório do interesse dos deuses

É o seu interesse que aprecia esse corpo ambicioso.

Em seus ousados projetos, constante, invariável,

a seus sócios empresta um suporte tremendo.

Com leis severas não é ele em nada contido?

Não. Caminha ocultamente ao poder absoluto.

Que pode armar para ele a pública ignorância,

dos príncipes ultrajados não teme a vingança.

O que há para temer dos magistrados, das leis?

O intérprete dos deuses está bem acima dos reis.

537

Só ele da virtude consegue distinguir o vício.

Só ele se coloca então como árbitro da justiça.

Com esse título teve o direito de guiar a todos.

Para conservar esse direito do qual era cioso,

para tê-los submissos à sua dura escravidão,

deles, do uso da razão proscreveu o emprego.

Quis que desdenhando seu impotente amparo,

eles só pudessem ser instruídos apenas por ele.

A terra nesse momento se cobriu de escuridão.

O fanatismo nasceu sobre lúgubres sepulcros.

No templo dos deuses, pelo engano aleitado,

ai ele recebia as deferências da credulidade.

O cetro é em suas mãos um dom da ignorância.

No universo receoso ele estende seu poderio.

Sua cabeça está nos céus, seu pé nos infernos.

O paraíso é seu dossel, seu trono é o universo.

Cativo mais seguro quanto menos pensa o ser,

esse mundo se crê livre, em o tendo por senhor.

Ele caminha cercado de ardentes fantasias.

Ema sua testa está escrito. Príncipe das nações.

538

Em Lisboa, em Goa é o seu poder que troveja,

que forma, que destrói, que pune, que perdoa.

O viram noutro tempo nas praias africanas,

encerrar sua vítima num bronze abrasado,

Do punhal de Calcas assassinar Ifigênia,

enterrar a vestal nos campos de Ausônia,

De Sócrates virtuoso determinar a morte,

Levar o medo a tudo, armar todos os Estados.

Mas, dirão, o padre atroz e sanguinário,

tem ele sempre na mão o machado mortal?

Faz ele correr sempre o sangue nos altares?

Se parece às vezes benigno com os mortais,

é quando no mundo ele mandou como senhor.

Mas tão cedo da verdade o dia veio aparecer,

que o sábio quis desenraizar a autoridade

de um império fundado sobre a imbecilidade.

O padre então se tornou cruel, impiedoso,

armado pelo interesse ele foi implacável.

Ele ordena o assassínio, disso faz um dever.

Diante do seu tribunal o príncipe é sem poder.

Ao seu socorro então é em vão que se apela

a esta mesma razão que baniu o falso zelo

539

Às mentes iluminadas em vão tem recurso.

Exilados de um Estado, o são para sempre.

Um rei permanece cercado indivíduos idiotas,

contra um clero poderoso, defensores inábeis.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

O intérprete dos deuses determina um crime?

Ele é muito obedecido, tudo se torna legítimo.

Também c'o sangue humano vertido pelos pagãos,

tem ele amiúde humilhado o templo dos cristãos.

Cremos durante muito tempo, cegos como somos,

que se reverenciava o céu chacinando os homens,

que se podia no altar de um Deus de caridade,

santificar a execração e a desumanidade.

Lá para se vingar do senado de Inglaterra

Garnet contraiu alguns raios debaixo da terra.

Agarrou ele esse monstro? Ele pronto a perecer?

Incendiário em Londres; em Roma, é o mártir.

Mas por qual arte enfim o audacioso sacerdote

do mortal que instrui, faz dele um homem cruel?

540

Ele o persuade que um Deus seu protetor,

tenha à sua ignorância atado a felicidade?

Ao ministro dos deuses nada é impossível;

seu interesse diz que o espírito é pernicioso,

diz que se um povo não for cego, é furioso,

que deve sempre andar de olhos vendados.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

. .. .. . .. .. . .. ..

Embora sustente ainda a imbecil ignorância

é ao amor da verdade; é ao seu conhecimento

que o céu até aqui, constante em seus desígnios,

tem sempre prendido a felicidade dos humanos.

. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . .. .. . . . . . .

Na planície, Almançor viu um imenso templo,

que parecia habitado por deuses enfurecidos.

Os muros construídos de ossadas empilhadas.

Ouve-se ressoar suas abóbadas subterrâneas,

de assobios de chicotes, do arrasto de correntes,

de golpes dos algozes, dos gritos de sua fúria,

unidos aos gritos agudos produzidos pela dor.

Pois quê! Diz ele, o quê! Ainda o raio vingador

reverencia outra vez o altar da perversidade?

541

E desde quando os deuses hostis aos humanos,

molham em sangue as suas benéficas mãos?

Que senado reunido sob essa abóbada obscura?

Quem se senta no altar? Que vejo? A hipocrisia.

É ele, dizem. Eblis, sumo sacerdote de Ariman,

que pontífice e monarca, aí reina insolentemente.

Uma jovem indiana a esses lugares trazida,

deve ser neste instante às chamas condenada.

E tu a vês comparecer. É preciso, lhe diz Eblis,

incensar hoje, sem falta, o Deus do meu país.

Que eu o incense ou não, que importa, diz ela?

Eu tenho até este momento à virtude constante

reverenciado, como Eblis, um ser beneficente,

em um lugar sob um nome talvez diferente.

Se o Deus que tu serves protege a inocência,

é o crime que pode provocar a sua vingança.

Contra um culto inocente, que motivo teria?

O que se crê lhe dever é tudo o que se lhe deve.

Se teu Deus pode tudo que se faça conhecer.

Meu coração está em suas mãos, ele é o senhor.

Às ordens de um tal Deus, ninguém se subtrai.

Creio quando ele quer e não quando eu quero.

542

Eu fechei, dirás tu, meus olhos para a luz.

Que teu Deus então abra minhas pálpebras.

Tu sabes. A crença é em todos os momentos,

o trabalho de sua bondade, não de tormentos.

Eu te conheço Eblis. Meu olho enfim clareia.

É o interesse que te move por teu falso fervor.

A terra está contra ti pronta a se revoltar.

Para dominá-la, tu queres a amedrontar.

Tu queres ser poderoso, e o ser pelo crime.

De tua ambição, tu me fazes tua vítima.

Sem ordem do céu, não creio que minha mão

ousa, replica Eblis, derramar sangue humano.

Contra ti, de meu Deus, a cólera está armada.

Sobre esta horrível fogueira se eu for consumido,

é por ordem de Eblis, não pela dos deuses.

Que teu culto seja santo, tu o dizes, eu o quero.

Mas desse culto, qual que seja a excelência,

responda. Teu Deus pode punir como ofensa,

a infração inocente de não tê-lo conhecido?

Eu torno te perguntar. Condenar-me-ias tu,

se relegado ainda em vastas regiões vivento,

desses funestos lugares, por mares separados,

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eu tivesse, atendendo a rumores hipócritas,

desprezado teu poder, teu nome e grandezas?

Tu tremes. Essa suspeita te parece uma injúria.

Se eu tenho inocência aos olhos da hipocrisia,

se eu obtenho a graça de um monstro como tu,

o que teria eu a temer do nosso rei em comum?

Ele castiga os malfeitos, perdoa a ignorância.

e se ele não tem uma igual sabedoria, poderio,

esse deus é sem dúvida bom. É a tua impiedade

que cede a esse deus santo sua desumanidade.

Aos esforços do trabalho nada é impossível?

Eles tornam ao homem, a verdade acessível.

Dos Aquilões e dos correntes vencedoras,

Malta vê em seus mares robustos remadores

que com repetidos esforços, vencendo as ondas,

o volúvel elemento endurecem sob seus remos,

e a pá do remo apoiada nas sólidas águas,

nos seus admirados portos rebocam os navios.

FIM.

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CENSURA

DA FACULDADE

DE TEOLOGIA DE PARIS

Contra o Livro que tem por título

DO ESPÍRITO

— 1759 —

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CENSURA

DA FACULDADE

DE TEOLOGIA DE PARIS

Contra o Livro que tem por título

DO ESPÍRITO

PREFÁCIO

O decano e os doutores da Faculdade de Teologia de Paris a todos os fieis saudação em Jesus Cristo.

Tem-se visto nos séculos precedentes "insensatos que disseram no íntimo no seu coração, Deus não existe". Mas é reservado à corrupção do nosso século produzir homens que fazem profissão pública de impiedade e que fizeram até de seus

549

discursos ímpios e sacrílegos uma prova de sua sabedoria.

Esses homens sem consideração pelas leis, sem medo dos castigos, sem respeito pelas pessoas de bem, sem receio de sua ignorância, inventam todos os dias blasfêmias novas e ousam de tudo contra a religião.

A lhes crer, a fé não é o "fundamento das nossas esperanças", ela é o túmulo da razão, ela não é o princípio da salvação, ela é apenas o apanágio de homens simples e supersticiosos. Pode-se ser sinceramente religioso apenas quando se tem o espírito limitado e a alma fraca.

Não é somente na capital que esta doença tem feito seus estragos. Surgida como epidemia, ela tem passado até pelas províncias mais distantes, onde os escritos desses atrevidos autores, semelhantes a negros vapores e exalações infectas, formam nuvens espessas que carregam consigo o contágio e a desolação em todos os lugares onde se descarregam.

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Hábitos morais, religião e práticas sociais as mais respeitáveis, nada é poupado. Tudo é passivel de saque ao furor desses escritores.

Se tratam sobre a natureza do homem: Segundo eles, o homem é apenas uma porção de matéria organizada jogada ao acaso na superfície da terra. Difere apenas do macaco do na mesma proporção que o macaco difere dos outros animais. O que, dentro do seu sistema, não degrada o homem porque o que ele tem a mais do que os outros animais ele deve à educação, à invenção das artes e ao uso da linguagem. É dessas belas descobertas que se vê sair uma História Natural da alma "como esta espuma salgada que as ondas de um mar agitado produzem".

Se falam da religião, eles tomam de assalto os dogmas mais sagrados, combatem as suas leis mais santas e a reduzem a um inutil fastasma: "Impostores que seguem suas paixões desregradas e plenas de impiedade".

Se escrevem sobre os hábitos morais, é com a intenção formada

551

de combater os princípios e as máximas que devem regrá-los, "corrompendo o que eles conhecem naturalmente como as bestas".

Se empreendem fixar os limites que separam os direitos respectivos dos príncipes e dos súditos, "sofrendo impacientemente toda dominação e desprezando os que são elevados em dignidade", eles transferem aos povos o que pertence apenas aos soberanos.

"Blasfemando o que ignoram", eles são suficientemente temerários para chamar a juízo em seu tribunal o Criador de todas as coisas, lhe demandando contas de suas obras, por se acreditarem em estado de corrigir a ordem admirável que ele colocou no universo.

"Entretanto, eles têm conhecido o que se pode descobrir de Deus e o próprio Deus se lhes tem feito conhecer. Mas porque eles não o têm glorificado e lhe rendido graças, se extraviaram em seus inuteis raciocínios e seus insensatos corações têm estado cheios de trevas. E se tornaram tolos em se atribuindo o nome de sábios: ...

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eles têm colocado a mentira no lugar das verdades divinas e têm recusado ao Autor de seu ser a adoração e o culto soberano que lhe são devidos... É porque eles se entregaram às paixões vergonhosas... Como eles não querem reconhecer Deus, Deus também os tem abandonado a um sentido depravado e eles praticaram ações indignas do homem. Eles estiveram repletos de toda sorte de injustiça e de maldade,... de inveja e de artifícios e se tornaram caluniadores, inimigos de Deus, soberbos, arrogantes, inventores de novos meios de praticar o mal... sem prudência, sem modéstia, sem sentimentos e sem fé".

Tais são esses autores importantes, esses filósofos profundos que estão encarregados de nos fazerem renunciar à religião dos nossos pais, de nos fazerem mudar de costumes morais e de ponderar os direitos, a autoridade e o poder dos nossos reis em presença do próprio povo e de encerrá-los em limites que julgam a propósito lhes prescrever. Em uma palavra, colocam tudo em obra para tudo mudar, não importando o que possa custar ao Estado e aos particulares, porque a religião é apenas um sustentáculo menos essencial aos impérios que a lei e o poder.

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Atentos em usar todos os meios de perverter os espíritos, eles

são mestres da sedução, mestres infatigáveis para todas as idades, para os diferentes sexos e para toda sorte de condições. Eles usaram sua atenção para comporem uma gramática destinada a formar ímpios: Não há livro que saia de suas mãos sob qualquer título e assunto, que não contenha um veneno pronto para a se insinuar no espírito dos que o lêem sem precaução. É uma conspiração formada contra a fé e a moral do cristianismo e contra a obediência devida à autoridade soberana, conspiração que tende a tudo perturbar e que vai livre ao seu objetivo, se não for barrada em seu projeto de arrancar do coração do homem toda estima da virtude, todo amor da pátria e os sentimentos mais caros da natureza. Daí que confusão! Que desordem! Porque quebrar os laços que unem entre si as diferentes partes da sociedade civil é atacar a constituição e a expor a uma dissolução integral.

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Mas é aos homens do Estado que compete prestar atenção sobre

esses excessos e a prever as consequências. Na qualidade de cidadãos nos é permitido fazer ouvir a nossa voz de passagem. Nós retornamos às nossas funções de teólogos.

Entre todos esses conspiradores que parecem distribuídos cada um em seu posto, há um que para nos servirmos da expressão de São Leão, parece ter misturado na mesma taça tudo aquilo que as modernas opiniões têm de mais detestável, para engolir de uma vez o veneno que os outros só beberam em parte. Reconhece-se por esse único indício o autor do livro que tem por título 'Do Espírito': esse homem que no seu trabalho parecer ter desejado se mostrar tão incrédulo quanto os ateus, tão entregue aos sentidos quanto as bestas, tão corrompido quanto os libertinos e tão ousado quanto os súditos mais sediciosos. A seita de Epicuro ficaria ruborizada em Atenas por tais violências. Tudo lhe é bom desde que se imponha a pessoas pouco instruídas ou que agrade a espíritos corrompidos. Ele despreza igualmente a honestidade pública, as leis, a pátria

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e a própria reputação e faz exibição de um descaramento que só se encontra nas consequências dos vícios mais enraizados, que abafam até o menor sentimento de virtude.

E depois de ter vomitado tantos paradoxos monstruosos ousa ainda afetar pudor. Ele faz ouvir "que tendo se erguido frequentemente até as grandes ideias, ele foi forçado de silenciá-las ou ao menos constrangido a enfraquecer a força por causa da ambiguidade, obscuridade e fraqueza da expressão". Mas esta precaução cuja arte não é nova é apenas uma maneira mais segura de atiçar a curiosidade e de ensinar o erro sem se comprometer.

O restante do livro que ele disponibilizou ao público lhe pertence apenas por arranjo de materiais que outros houveram empregado antes dele. É trabalhando sobre o fundamento dos outros que ele tem pretendido fazer o nome.

Que nome! É um nome capaz de afagar a vaidade de quem quer que seja, um nome que se sabe, estar nutrido de mil venenos que outros já se serviram, e de lhes tornar mais pestilentos pela estadia que fizeram dentro de um estômago corrompido.

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Mas por receio que este autor não proteste contra tal imputação,

é necessário colocar sob os olhos dos nossos leitores as origens envenenadas de onde ele tem retirado toda a doutrina de seu funesto trabalho.

Não diremos nada do seu estilo porque o nosso objetivo não é censurar seus ornamentos pueris, seus rodeios de frase afeminados, esses aparatos inúteis de grandes palavras indignos de uma matéria séria e que são bons apenas para enganar os espíritos superficiais. Que o autor desfrute desse mérito, se aqui há algum.

DA ALMA

"Os sentidos são a origem de todos os pensamentos, porque não há nenhuma ideia do espírito que não tenha antes sido produzida nos sentidos, inteira ou em parte. Dos pensamentos produzidos nos sentidos nascem todos os outros... a causa da sensação são os corpos exteriores ou o objeto que comprime o órgão e que, agindo sobre ele, comunica o movimento para os nervos e as membranas até o cérebro e de lá ao coração... o esforço do coração que, pelo movimento de fora repugna a impressão que recebeu, parece ser alguma coisa exterior e é esta aparência que nós chamamos de sensação". (Hobbes, Do Homem, capítulo I, p. 3).

"Nós temos apenas ideias que devemos aos nossos sentidos. (Fábula das Abelhas", tomo III, p. 236).

"Julgar é somente perceber e reconhecer as relações, as quantidades e qualidades ou maneiras de ser dos objetos... é então evidente que são as sensações mesmas que produzem os julgamentos. O que se chama consequência numa sequência de julgamentos é apenas o acordo das sensações em relação a esses julgamentos.

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Todas as apreensões ou percepções são apenas funções puramente passivas do ser sensitivo. Parece, entretanto, que as afirmações, as negações e as argumentações marcam a ação do espírito, mas é a nossa linguagem e, sobretudo, as falsas noções... que nos impõem isto... eu percebo nos animais o exercício das mesmas funções sensitivas que eu reconheço em mim mesmo... nossos conhecimentos evidentes não são suficientes sem a fé para nos conhecer a nós mesmos, para descobrir a diferença que distingue essencialmente o homem ou o animal racional dos outros animais, porque, a consultar apenas a evidência, a razão, ela mesma sujeita às disposições do corpo, não pareceria essencial aos homens". (Dicionário Enciclopédico, artigo evidência).

"Não conhecemos a essência da matéria e nem todas as propriedades que Deus pode lhe dar. Nós não temos, portanto, o direito de assegurar que uma de suas faculdades não seja a faculdade de pensar". (Locke, Ensaio Sobre o Entendimento Humano).

"Nós só conhecemos muito imperfeitamente a matéria, ignoramos uma parte de seus atributos. Um filósofo moderno veio descobrir um que lhe é também tão essencial quanto à extensão, é a atração... quem sabe se não se descobrirá novas propriedades (nela) e se uma dessas propriedades não será a de pensar". (Nota acrescentada na última edição do Ensaio sobre o Entendimento Humano).

"Não se trata de saber se a alma é material ou espiritual. Concorda-se que ela é espiritual porque a religião assim nos tem ensinado, mas pergunta-se se ela não poderia ser material, se Deus assim o desejasse. Porém, sustentar o contrário... é limitar mal a propósito do poder de Deus... é raciocinar mal e supor como certo o que está em disputa". (Marquês D'Argens, Memória secreta da República das Letras).

"O homem é dotado de uma razão destinada a lhe tornar sociável... a natureza de suas faculdades, assim como os princípios naturais de suas operações nos é desconhecido... há somente processos desta razão que podem ser seguidos e observados por uma atenção meditada desta mesma faculdade... nós ignoramos o que é em nós a base e o amparo desta faculdade, como nós ignoramos o que acontece com esse princípio na morte: dir-se-á que talvez esse princípio inteligente subsista novamente após a vida... mas é inútil procurar conhecer um estado sobre o qual o Autor da natureza não nos instruiu com algum fenômeno". (Código da Natureza, p. 228).

"O primeiro momento da vida (do homem) o encontra envolvido numa indiferença total, até mesmo com a sua própria existência. Um sentimento

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cego que não difere daquele dos animais é o primeiro motor que faz cessar esta indiferença." (Código da Natureza, p. 20).

"O desejo de ser feliz é um efeito da nossa sensibilidade". (Código da Natureza, p. 156).

"As necessidades (do homem) o despertam gradativamente, o tornam atento à sua conservação e é dos primeiros objetos desta atenção que ele tira suas primeiras ideias". (Código da Natureza, p. 21).

"Dos animais aos homens a transição não é violenta: o que era o homem antes da invenção das palavras e o conhecimento da linguagem? Um animal de sua espécie que só se distinguia do macaco e de outros animais como o macaco é distinto de si mesmo". (O Homem Máquina, p. 30).

"A alma é apenas um termo inútil de que não se tem ideia e do qual um bom espírito deve somente se utilizar para nomear a parte que pensa em nós. Colocado o menor princípio do movimento, os corpos animais terão tudo o que lhes falta para se mover, sentir, pensar, se arrepender e se conduzir, em uma palavra, física e moralmente, conforme o caso". (O Homem Máquina, p. 71).

"Ser máquina, sentir, pensar, saber distinguir o bem do mal, em uma palavra, ter nascido com inteligência e um instinto moral e ser apenas um animal são coisas que não são mais contraditórias que ser um macaco ou um papagaio e saber se dar prazer... Eu creio ser o pensamento tão pouco incompatível com a matéria organizada que ele parece ser uma propriedade, igual à eletricidade, à faculdade motriz, à impenetrabilidade, à extensão, etc.". (O Homem Máquina, p. 97).

"Eu sei que a figura dos animais não é totalmente humana, mas não é necessário ser bem limitado, bem igual ao povo, bem pouco filósofo para conformar-se assim às aparências... os sentidos internos não fazem mais falta aos animais do que os externos. Por consequência, eles são dotados como nós de todas as faculdades espirituais das quais dependem. Eu quero dizer da percepção, da memória, da imaginação, do julgamento e do raciocínio. De onde se segue... que os animais têm uma alma feita pelas mesmas combinações que a nossa". (Os Animais mais que Máquinas, pp. 4, 5).

"A alma é sempre necessária. Ela é necessária a deliberar quando ela delibera. Ela é necessária a se determinar quando ela se determina. Os objetos igualmente desejáveis a colocam em suspensão, se eles parecem desiguais em bondade, a alma não deixa de escolher aquele que merece a preferência... todo mundo concorda que as percepções da alma não são livres. Ora, é o mesmo dos julgamentos, que são apenas uma espécie de percepção. Porque julgar é decidir sobre a conveniência ou não dos objetos que se comparam, o que só se faz percebendo a conveniência, ou a inconveniência. Então a alma não tem liberdade, porque jamais age sem percepção e sem julgamento. Seus motivos a determinam...

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ora, os motivos se reduzem a suas ideias e suas ideias se reduzem a percepções e a julgamentos que não são nada livres.

A maior parte dos autores que escreveram sobre a liberdade fica embaraçada em infinitas dificuldades e, para a defenderem, falam numa linguagem onde colocam princípios que a contradizem". (Collins, Escrito sobre a Liberdade na Coleção de Papeis sobre a filosofia de Desmaiseaux).

"Não é inverter a ordem da questão que concerne à liberdade e à necessidade, começar como se tem feito, pelo exame das faculdades da alma e da influência do entendimento sobre as operações da vontade, em vez de discorrer antes uma questão mais simples, aquela que diz respeito à operação dos corpos e da matéria organizada? De não procurar se formar com ideias de causalidade e de necessidade distintas da ligação constante dos objetos e desta indução que é a consequência? Se toda necessidade que nós concebemos na matéria se reduz a esses dois pontos, que, de acordo com todo o mundo, têm igualmente lugar nas operações da alma, a disputa fica encerrada". (Hume, Ensaio Filosófico sobre o Entendimento Humano, tomo I, pp. 234, 235).

"Pode-se desenvolver outra razão para a grande fama que a doutrina da liberdade adquiriu. Há uma sensação enganosa de um estado indiferente, fundada em uma falsa luz da experiência, que acompanha, ou pode ao menos acompanhar várias de nossas ações... na maior parte das ocasiões nós sentimos nossas ações sujeitas à nossa vontade e nos imaginamos sentir que a vontade não é sujeita a nada. Em razão de que, logo que negamos esse ponto e que nos provoquem a experimentar, nós experimentamos que ela se adapta facilmente em todos os sentidos... nós achamos bom ter um sentido íntimo de nossa liberdade. Mas raramente um espectador aí se enganará e mais frequentemente, estará em estado de inferir nossas ações dos seus motivos e do nosso caráter. Ou, se ele não puder, em geral concluirá que é apenas por falta de conhecimento perfeito das circunstâncias da nossa situação e do nosso humor. Ora, é precisamente nisso, segundo eu, que consiste a essência da necessidade". (ibid, notas às pp. 236 a 238).

"Que se entende por liberdade quando se nomeia os atos da vontade livre? Pode-se apenas entender por liberdade o poder de agir ou de não agir em conformidade com as determinações da vontade. É dizer que se nós escolhermos permanecer em repouso, nós o podemos e que se a escolha for de nos mover, nós o podemos também. Ora, ninguém nega que todos os homens não tenham esta liberdade hipotética a menos que estejam aprisionadas ou acorrentadas. Assim, nada de disputa sobre esse assunto". (ibid, pp. 239, 240).

"Há concordância universal de que nada existe sem causa e que o termo acaso, a bem entender, é apenas um termo negativo que não pode significar nenhum poder real e existente na natureza.

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Mas pretende-se que haja causas necessárias e causas não necessárias, de onde surge a maravilhosa utilidade das definições. Que se me defina uma causa sem fazer entrar na definição a relação necessária com o efeito... é uma coisa impossível... nossa definição sendo admitida, a liberdade, por mais que alguém se oponha não a constrange. Mas a liberdade constrange à necessidade e será a mesma coisa que o acaso que, segundo a aprovação de todo o mundo, é equivalente ao nada". (ibid, pp. 240 a 242).

DA MORAL. "Eu não entendo outra coisa por direito natural do que as regras da

natureza de cada indivíduo... como há uma lei geral para todas as coisas naturais, que cada um em particular se perpetue no seu estado tanto quanto nele esteja, sem ter outra consideração que a sua própria conservação, segue-se dai que o direito natural de cada indivíduo é de subsistir e de agir segundo as forças que a natureza lhe houver dado. Dentro deste estado não distinguimos os homens dos outros seres naturais, nem os homens dotados da verdadeira razão daqueles que não a têm". Espinosa, ed. francesa do Tratado Teológico-político, cap. 16).

"Deus a respeito das ações dos homens, como dentro da ordem física do mundo, tem estabelecido uma lei geral, um princípio infalível de todo movimento... Como entregou os seres inanimados a um movimento cego e mecânico, ele tem do mesmo modo entregue os homens a um guia que os penetra, por assim dizer, e lhes possui por inteiro. É o sentimento do amor de nós mesmos... A sensibilidade física é em nós o que é o movimento primitivo impresso na matéria e que bem cedo perde a sua uniformidade para dar nascimento à variedade das mais belas combinações entre os corpos. É sobre regras quase todas semelhantes que a Divindade construiu e governa o mundo moral". (Código da Natureza, pp. 128, 129 e 157).

"Nossos órgãos são suscetíveis de um sentimento ou de uma modificação que nos agrada e nos faz amar a vida. Se a impressão desse sentimento é pequena é o prazer, se longa é a volúpia, se permanente é a felicidade. É sempre a mesma sensação que difere apenas pela sua duração e vivacidade. Eu acrescento esta palavra, porque não há um bem supremo com mais encanto que o prazer do amor: Quanto mais esse sentimento é durável, delicioso, lisonjeiro, ininterrupto e imperturbável, mais se é feliz. Quanto mais é curto e vivo mais ele tem da natureza do prazer e quanto mais é longo e tranquilo mais se afasta e se aproxima da felicidade... ter tudo o que se deseja. Uma feliz organização, beleza, espírito, graças, talentos, honras, riquezas, saúde, prazer e glória. Tal é a felicidade real e perfeita". La Metrie, (Anti Sêneca ou Discurso sobre a Felicidade, p. 7).

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"Nós não dispomos sobre o que nos governa. Não comandamos as nossas sensações. Reconhecendo seu império e a nossa sujeição, procuramos torná-las agradáveis a nós, persuadidos que é nisto que consiste a felicidade da vida. E enfim, nós nos acreditaremos igualmente mais felizes, que seremos mais homens ou mais dignos de o ser, que nós sentiremos a natureza, a humanidade e todas as virtudes sociais. E não admitiremos outras virtudes, nem outra vida que esta aí". (ibid, pp. 5, 6).

"Se diz com razão que um homem que despreza a vida pode destruir o que bom lhe parece. É o mesmo caso do homem que despreza seu o amor próprio. Adeus a todas as virtudes se vier a este ponto de indolência, a fonte secará necessariamente. O amor próprio pode apenas conservar o gosto que fez nascer. Sua falta é muito mais temível que o seu excesso... o bem estar é o próprio motivo da maldade. Ele conduz tanto o pérfido, o tirano e o assassino quanto o homem da sociedade... é então evidente, que em relação à felicidade o bem e o mal são indiferentes e que aquele que tiver uma grande satisfação fazendo o mal, será mais feliz do que aquele que tiver menos satisfação de fazer o bem. Isto explica porque tantos velhacos são felizes neste mundo e faz ver que é uma felicidade particular e individual que se obtêm sem virtude e no próprio crime... (tal) deve ser a origem das deferências, das indulgências, das desculpas, dos perdões, das graças, dos elogios, da moderação nos suplícios que se ordena com pesar e das recompensas devidas à virtude e que não se saberá conceder com a melhor das vontades". (Anti Sêneca, depois da p. 50 até a p. 56).

"Vejamos em que consiste a famosa disputa que reina na moral entre os filósofos e os que não o são. Coisa surpreendente! Se trata só de uma simples distinção, distinção sólida, quase escolástica. Só ela, acreditava-se, pode por fim a essas espécies de guerra civil e reconciliar todos os nossos inimigos. Eu me explico: não há nada de absolutamente justo, de injusto, nenhuma equidade real, vícios, grandeza, e crimes absolutos. Políticos protestantes, concedeis esta verdade aos filósofos e não vos deixeis ficar em trincheiras onde sereis vergonhosamente derrotados. Concebeis de boa fé que isto é justo, que pesa a justiça ao peso da sociedade e os filósofos, a seu turno, concordarão, que na ocasião em que negaram isto, tal ação é relativamente justa ou injusta, honesta ou desonesta, viciosa ou virtuosa, louvável, infame, criminosa, etc. Que vocês discutam a necessidade de todas essas belas relações arbitrárias?... Sim, vocês têm razão magistrados, ministros e legisladores de excitar os homens por todos os meios possíveis, menos a fazer um bem de que vocês se inquietam talvez pouco do que concorrer ao favorecimento da sociedade que é vosso ponto capital, porque vocês aí encontram o vosso interesse". La Metrie, (Discurso Preliminar, pp. 31, 32).

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"Porque nós sabemos não duvidar... que o que tem de legal não supõe

absolutamente nenhuma equidade, a qual só é reconhecível pelo caráter que eu disse, eu quero dizer o interesse da sociedade. Eis então finalmente as trevas da Jurisprudência e os caminhos cobertos da política iluminados pela chama da filosofia. Assim todas as disputas inúteis sobre o bem e o mau moral terão terminado". (ibid, p. 59).

"Porque a moral tira sua origem da política, como as leis dos carrascos. Segue disto que ela não é um trabalho da natureza, nem por consequência da filosofia ou da razão. Todos termos sinônimos". (ibid, p. 6).

Os vícios dos particulares trabalhados com destreza por hábeis políticos podem ser transformados em vantagens do bem público.

Será absolutamente impossível tornar uma nação populosa, rica e florescente, se não se banir o que nós chamamos de mal, seja físico ou moral.

Uma nação sóbria e temperante será pobre, ignorante e sem vícios consideráveis, mas também sem virtudes.

Jamais o homem se anima com tanto ardor do que quando é excitado pelos desejos. Sua excelência e capacidade permanecem escondidas se nenhum motivo considerável não as acorde. Sem a influência das paixões a nossa máquina é semelhante a um grande moinho numa calmaria.

A felicidade de uma nação consiste na opulência, no poder, na glória e no esplendor... Ora, a virtude, a probidade, a frugalidade, a moderação e a modéstia não produzirão esses efeitos. Mas bem! a prodigalidade, a avareza, a inveja, a ambição, a vaidade, o orgulho e outros vícios temperados uns pelos outros.

O orgulho e a vaidade construíram mais hospitais que todas as virtudes juntas.

Se as mulheres forem modestas, razoáveis e obedientes aos seus maridos, em uma palavra, se elas tiverem todas as virtudes, não contribuirão a milésima parte para tornar um reino opulento, poderoso e florescente do que elas contribuem com as qualidades que as desonram.

A obra prima do legislador tem sido a de ensinar os homens a combater seus apetites e de lhes persuadir que melhor convêm ter consideração pelo interesse público do que se limitar ao seu próprio interesse particular.

O gênero humano concordou em dar o nome de vício a toda ação que o homem cometa para satisfazer alguns de seus apetites, sem respeito ao interesse público e o nome de virtude a todas as ações que, sendo contrárias aos movimentos da natureza, tendem a causar vantagens ao próximo.

Quanto mais examinarmos de perto a natureza do homem, mais nos convenceremos que as virtudes morais são produções políticas e que a lisonja gera o orgulho,

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O 'pulchrum' e o 'honestium' mudam como as modas. É o mal, seja moral, seja físico que é o fundamento de todas as sociedades. "Para vigiar a nossa própria conservação, o Autor da natureza nos fez

nascer com o amor de nós mesmos acima de todas as coisas". (Fábula das Abelhas, primeiro vôo).

"É o cúmulo de a tolice propor a ruína das paixões". (Pensamentos filosóficos, p. 6, pensamento 6º).

"De ordinário, os moralistas invectivam contra as paixões e não se cansam de elogiar a razão. Não temerei de antecipar que, ao contrário, são as paixões que são inocentes e a nossa razão culpada. (Os Costumes, p. 75, I parte).

"Olhar-se-á como uma aflição incômoda essa aflição insuperável que arrasta um sexo para o outro... consentir a satisfazer a necessidade é o único meio razoável para se livrar de sua importunidade". (Os Costumes, p. 65, I parte).

"Se o acaso quis que o (filósofo) fosse tão bem organizado quanto possa a sociedade e que todo homem razoável deve desejar, o filósofo desejará e mesmo se deleitará, mas sem presunção e vaidade. Pelo contrário, como ele não se fez a si próprio, se as peças da sua máquina trabalham mal, ele ficará marcado, embaraçado na qualidade de cidadão. Como filósofo, ele se achará como não responsável. Bem esclarecido para se considerar culpável por pensamentos e ações que nascem e existem malgrado ele, suspirando sobre a funesta condição do homem, ele não se deixará corroer por esses remorsos torturantes... Nós não somos mais criminosos seguindo a impressão dos movimentos primitivos que nos governam que o Rio Nilo o é pelas suas inundações e o mar pelos seus estragos". (La Metrie, Sistema de Epicuro, art. 47 e 48).

"A continência, embora voluntária, não é estimável por ela mesma. Ela não surge a menos que convenha acidentalmente à prática de algumas virtudes ou à execução de alguns propósitos generosos. Fora desses casos ela merece com frequência mais censura do que elogios". (Os Costumes, p. 303, II parte).

"Que fazer para ser feliz! Ser mau se tiver espírito, alma, coração e inclinações para a maldade. Ser bom se tiver uma alma, coração e inclinações para a bondade e morrer como se tem vivido... Será em vão dizer aos carneiros para comportarem-se como os lobos, eles serão sempre carneiros. E aos lobos de serem doces como as ovelhas, eles permanecerão sempre como lobos". (Os Caracteres, I parte, pp. 132, 133).

"As leis (estabelecidas contra aqueles que se suicidam) são bem injustas. Quando eu estiver acabrunhado de dor, de misérias e de desprezo, porque querer me impedir de colocar fim às minhas penas e me privar cruelmente de um remédio que está em minhas mãos"... (Cartas persas, carta 74, edição 1722).

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Querem me condenar a receber odiosas graças que me oprimem (em separando a minha alma do meu corpo). Perturbo eu a ordem da Providência quando altero as modificações da matéria e porque deixo quadrada uma bola que as primeiras leis do movimento... fizeram redonda? Não sem dúvida. ; Faço apenas uso de um direito que me foi dado... sem que se possa dizer que me oponho à Providência.

"Quando minha alma for separada do meu corpo (pelo suicídio) haverá menos ordem e arranjo no universo? Todas essas ideias não têm outra origem que o nosso orgulho... nós imaginamos que a anulação de um ser tão perfeito como nós degradará toda a natureza". (ibid, carta 74).

Esta ação (o suicídio) entre os romanos era efeito da educação e tinha a ver com a maneira deles pensarem e com seus costumes. Entre os ingleses ela é efeito de uma doença e tem a ver com o estado físico da máquina independentemente de qualquer outra causa.

"É claro que as leis civis de qualquer país podem ter razões para desestimular o homicídio de si mesmo. Mas na Inglaterra não se pode mais punir, como não se pune os efeitos da demência". (O Espírito das Leis, tomo II, livro 14, cap. 11).

DA RELIGIÃO.

"A religião poderia ter falado a linguagem da razão. Nicele, esta bela pluma

do século passado que a tem tão bem imitada, a fez falar". (La Metrie, Discurso Preliminar de suas Obras, p. 59).

"O apego mal entendido ao culto exterior no qual ele foi educado é uma fonte de ódio entre aqueles que professam diferentes... Cobre-se com o nome de zelo o que é apenas apego à sua própria opinião, cega obstinação, fanatismo e barbárie". (Os Costumes, III parte, p. 444).

"O espírito de intolerância é um espírito de desvario, de que os progressos não podem ser olhados como um eclipse total da razão humana". (Cartas Persas, carta 73).

"Juliano Apóstata valia menos que um cristão? Ele era ao menos um grande homem e o melhor dos príncipes... Crer em um Deus acreditando em vários, olhar a natureza como uma causa cega e inexplicável de todos os fenômenos ou ser seduzido pela ordem maravilhosa que eles nos oferecem, reconhecer uma inteligência suprema mais incompreensível ainda que a natureza... Eis o campo onde os filósofos têm feito a guerra entre eles depois que conheceram a arte de raciocinar. E esta guerra durará tanto quanto esta rainha dos homens, a opinião, que reinará sobre a terra. Eis o campo onde cada um pode ainda hoje em dia se bater e seguir entre tantos estandartes aquele que rirá mais de sua sorte ou dos seus preconceitos, sem que não se tenha nada a temer de tantas frívolas e vãs escaramuças; mas é o que pode

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compreender desses espíritos que não vêem mais longe do que seus próprios olhos". (La Metrie, Discurso preliminar, pp. 26, 27).

DO GOVERNO

"Magistrados, grandes de uma república, monarcas: que sois no Direito natural em relação dos povos que governais? Simples ministros delegados para cuidar de felicidade deles, destituídos de todo emprego e os mais vis membros desse corpo, visto que executais mal a vossa comissão... Uma nação que coloca um desses cidadãos à frente, não está ela no direito de lhe dizer... se nós achamos de nossa utilidade vos prorrogar no governo; se nós julgamos que qualquer um de vós seja capaz, depois de vós, nós podemos agir em consequência, por uma escolha livre e independente de toda pretensão. E eu pergunto qual capitulação, qual título, qual direito de antiga possessão pode prescrever contra a verdade desta carta divina, pode livrar os soberanos?... Que se julgue por essa exposição a forma ordinária dos governos". (Código da Natureza, pp. 117, 120, 121).

"Toda autoridade surge de outra origem que da natureza. Que se examine bem e se verá que ela sempre remonta a uma dessas duas origens: ou à força e à violência daquele que se apoderou ou do consentimento daqueles que aí estão submissos por um contrato feito ou suposto entre eles e aquele a quem eles deferiram a autoridade... O poder que vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que produzam o seu uso legítimo, útil à sociedade, vantajoso para a república e que a fixem e a coloquem dentro de limites... O verdadeiro e legítimo poder tem necessariamente limites... Enoque e Elias que resistirão (ao Anti-Cristo) não serão nem homens rebeldes e nem sediciosos... mas homens razoáveis, firmes e piedosos, que saberão que todo poder cessa de ser a partir do momento que sai dos limites que a razão prescreveu e que ele se afasta das regras que o Soberano dos príncipes e dos súditos tem estabelecido. Homens, enfim, que pensarão como São Paulo, que todo poder só é de Deus enquanto for justo regrado. O príncipe tem de seus súditos a autoridade que ele tem sobre eles e esta autoridade é limitada pelas leis da natureza e do estado. As leis da natureza e do estado são as condições sob as quais eles estão submissos". (Dicionário Enciclopédico, artigo Autoridade).

"Ninguém promete sem fraudes renunciar ao direito que tem sobre todas as coisas e ninguém garantirá efetivamente sua promessa se não for incitado pelo medo de um grande mal ou pela esperança de um bem maior... Nenhuma convenção é válida a menos que ela seja útil, sem esta circunstância todo contrato é por defeito nulo. Por consequência, não se deve exigir das pessoas uma fé inviolável a menos que se faça introduzir que o infrator não sofra novamente mais prejuízo

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do que lucro". Espinosa (Tratado Teológico-político, cap. 10).

"Um prudente e avisado Senhor não pode e nem deve guardar tão estritamente sua fé, quando tal observância lhe é prejudicial e que as ocasiões e necessidades que lhe a fizeram prometer são já passadas e extintas, porque se todos os homens são bons, este preceito então é censurável. Mas, visto sua ordinária maldade e que eles próprios não a guardarão, você também não estará obrigado a observá-la e não é preciso ter medo que um príncipe não ache sempre razão suficiente para tolerar esta infração de fé. Podem-se trazer infinitos exemplos a esse propósito. Quanta paz, tréguas e promessas foram rompidas pela infidelidade dos príncipes e aquele que melhor fez a raposa é o que melhor executa seus trabalhos, se tem ele, todas às vezes a necessidade de disfarçar bem esta natureza e usar de grande fingimento e dissimulação". (Maquiavel, O Príncipe, ed. in-4º, de 1634, cap. 18, pp. 64, 65).

"Que mal? Eu pergunto aos grandes inimigos da liberdade de pensamento e de escrever, haverá de consentir com o que parece verdadeiro quando se reconhece com a mesma inocência e se prossegue com a mesma fidelidade o que parece sábio e útil... Não se pode tentar explicar e adivinhar o enigma do homem? Nesse caso, quanto mais for filósofo aquele que nunca pensou, mais será um mau cidadão. Enfim, que funesto presente será a verdade se ela não é sempre boa. Isto é: que apanágio supérfluo será a razão se ela foi feita para ser cativa e subordinada? Sustentar esse sistema é querer corromper e degradar a espécie humana... mas escrever sobre Filosofia é ensinar o materialismo? Ei bem! Que mal?". (La Metrie, Discurso Preliminar, p. 17 e seguintes).

Nós não nos absteremos de indicar as outras fontes onde bebeu o autor que propomos censurar, por temor que os vapores envenenados dessas cloacas de impureza e de irreligião não se tornem funestas aos nossos leitores. Os espíritos são hoje em dia tão suscetíveis às más impressões, que se deve temer de lhes fornecer a menor ocasião de cair

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nas delícias da filosofia dos nossos dias.

À frente então, sectários vãos e orgulhosos de uma falsa filosofia, escravos abjetos de uma louca sabedoria da qual sois brinquedos, sucessivamente panegiristas exagerados e detratores injustos da razão. Vão! a simplicidade cristã não tem necessidade de vossas lições. Ela sabe sem vocês e melhor que vocês o que é bom, o que é santo, o que contribui à salvação das almas e à felicidade do gênero humano. Quando vocês nos falam de Deus, vocês o pintam como um ser ocioso e inútil que se pode se dispensar de procurar conhecer a existência e os atributos e que não tem nenhuma espécie de influência sobre a sociedade humana. Vocês desfiguram o homem e o distinguem das bestas apenas pelos aparelhos de seus órgãos exteriores. Vocês só conhecem por recompensa da virtude o gozo de prazeres vergonhosos que só, dizem vocês, podem vos consolar da infelicidade de existir. Enfim, vocês querem que os reis peguem ou larguem ao desejo do capricho de um povo cego e injusto os direitos do exercício da realeza.

O cristianismo resulta de outros princípios:

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princípios. Ele professa um Deus único dotado de todas as perfeições; um Deus bom, justo, cuja providência se estende sobre tudo e principalmente sobre as coisas humanas. Ele sabe que o gênero humano, inocente e puro ao sair das mãos de Deus, foi manchado pelo crime do primeiro homem e resgatado pelo sangue de Jesus Cristo e restituído à sua primeira destinação. Ele crê que a alma do homem é feita por Deus, que ela só pode ser saciada por Deus e que seu coração não encontra repouso a não ser que repouse em Deus. Enfim, o Cristianismo reconhece que o poder dos reis é uma emanação do poder do próprio Deus. Que é preciso obedecer aos reis para agradar a Deus e que se os resiste, o próprio Deus pune pessoalmente essa resistência.

Esses são os sentimentos de que um coração cristão se nutre. Ele os tem do próprio Deus que falou pelos profetas, pelo seu filho e pelos apóstolos. E não se o acusará de se entregar imprudentemente à fé que lhe persuade, a menos que se suponha que Deus pode enganar os homens ou que o universo inteiro pode ser seduzido por homens fracos e ignorantes, por simples pescadores que não têm outras armas que

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a paciência, outras riquezas que a pobreza e outro conselho que a simplicidade. Que anunciavam do verbo da vida apenas o que eles tinham entendido, o que haviam visto, o que haviam tocado com suas mãos e que selando com o próprio sangue a verdade que eles pregavam, convenceram os grandes e os pequenos, os sábios e os ignorantes e forçaram o gênero humano a renunciar a idolatria para crer em Jesus Cristo crucificado.

Mas os livros sagrados são bastante claros por eles mesmos para dissipar as nossas dúvidas e fixar a nossa crença? E se eles não são, qual será a luz que poderá nos esclarecer?

Jesus Cristo fundou sua igreja com a qual ele prometeu estar até a consumação dos séculos. Sempre se pode reconhecê-la pelas características que lhe são próprias e que a distinguem de todas as outras sociedades que possam ter algum traço de semelhança com ela. Pode-se a consultar porque ela está sempre presente. Ela tem seus pastores, ela tem seus mestres que Deus instituiu para trabalhar "na perfeição dos santos e nas

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funções do seu ministério... afim de que nós não sejamos como crianças, como pessoas inconstantes e que se deixam levar por todos os ventos das opiniões humanas, pela fraude dos homens e pela habilidade que eles têm de comprometer artificialmente no erro". É suficiente saber se ela falou porque quando ela já falou, as pesquisas são inúteis, a resistência uma loucura e uma única dúvida um crime.

.Que cessem então esses filósofos (porque eles amam quem os chama assim), esses filósofos saídos, não da academia de Platão, nem do pórtico de Zenão, mas do estábulo

13 de Epicuro! Que eles cessem de

nos reprovar a nossa cegueira no que concerne à natureza e à Divindade. Nós não temos outra doutrina que aquela dos nossos pais, aquela que eles mesmos professaram antes de renunciar ao seu batismo. Que cessem de nos fazer molesta demanda sobre uma religião, sobre princípios de costumes que um longo uso e um direito incontestável nos asseguram. Que eles cessem de abalar a fidelidade devida ao melhor dos reis, a que toda nação tem dado

13

Esta expressão que parece forte é apenas justa porque esses autores se colocam eles mesmos ao nível das bestas.

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por acordo, o nome de 'Bem amado'. Que eles ponderem sobre eles mesmos, que examinem o que são, que direitos têm, que missão e, sobretudo, a que inimigo eles ousam declarar guerra.

É a esta igreja santa que Jesus Cristo fundou sobre a pedra, que sustentou tantos assaltos, a esta igreja que enfrentou tempestades mil vezes mais terríveis que esta e que, longe de diminuir a sua solidez, apenas a fez se afirmar ainda mais em seus fundamentos.

Não é só hoje em dia que ela tem servido de alvo aos tiros daqueles que o século chama de filósofos. Ela se viu em combate com esses mesmos inimigos logo que nasceu e estava encerrada em limites muitos estreitos. Quando foi entregue ao furor dos carrascos e se empregava o ferro e o fogo para destruí-la. Nesses momentos críticos ela repeliu os ataques dos sábios do paganismo, mas que sábios! Homens profundos em todas as ciências, armados da mais sutil dialética e da mais forte eloquência, sustentados pelo esforço unânime de todas as seitas conjuradas contra o cristianismo. O cisma tentou

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mil vezes lhe tomar de assalto suas milícias. A heresia frequentemente apoiada pela autoridade dos reis e dos imperadores quis arrombar seus redutos. O inferno armou contra ela todo seu furor. Durante todos os tempos nada de repouso, nada de trégua, mas sempre sustentada pela mão de Deus e, mais terrível que um exército colocado em ordem de batalha, ela viu seus inimigos fugirem como a mentira foge diante da verdade.

É todavia, esta mesma igreja que se apóia hoje em dia em tantos troféus, que está protegida por tantos reis, sobretudo pelo rei muito cristão e que é defendida até pelas leis civis, enfim, que está estabelecida nos costumes dos povos a dezoito séculos. É esta igreja que se encontra nos tempos presentes atacada pelas práticas secretas de um pequeno número de homens sem nome, a maior parte desprezível, mercenária e fazendo tráfico de sua impiedade, porque eles não têm outro recurso. A posteridade, sem dúvida, censurará o nosso século pela sua paciência excessiva e por sua fraqueza.

A maior parte desses homens não é desconhecida. A igreja os admite ainda, embora com desgosto, em seu seio como insetos venenosos. O Estado lhes deixa ainda dentro da sociedade, entretanto,

573

o soberano pontífice, o ilustre arcebispo desta capital, o rei e o parlamento acabam de lhes fazer sentir sua indignação e o que devem esperar se perseverarem em seus furores. Este aviso deve ser suficiente, se eles forem ainda capazes de reflexão, para se voltarem a si mesmos e para fazê-los renunciar ao projeto que formaram de perverter os espíritos e corromper os corações. Que eles temam sobretudo, que não se lhes obsequiem de compor esta república de que eles amam traçar o plano, onde tais homens ocupados unicamente do interesse pessoal, sem leis, sem religião e sem freio para deter o fogo das paixões, se destruiriam uns aos outros, os mais fortes usando espadas e os mais fracos se servindo de venenos e por esse modo livrariam a terra de uma raça inumana que a desonra.

Para nós, encarregados que somos pelo Senhor de guardar seu campo e vigiar sob armas, para estar sempre prestes ao combate, é nosso dever de nos opor às empreitadas do inimigo e deter, assim também se ele estiver no meio de nós, os seus progressos.

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É por esta razão que nós escolhemos o livro 'Do Espírito' como

reunindo todas as espécies de venenos que se encontram espalhados em diferentes livros modernos. Extraímos certo número de proposições que assinalamos como a Faculdade tem costume de fazer, mas com as qualificações extraordinárias que a natureza dos erros tem exigido de nós.

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... o homem de toda liberdade de suas deliberações. Elas submetem todos os julgamentos humanos a uma fatal necessidade. Supõem que o homem não tem e não pode ter nenhum conhecimento de Deus e das coisas espirituais, porque esses objetos não lhes são evidentes. Destroem toda regra comum da verdade, regra que não pode ser a sensação, a qual varia de acordo as disposições diferentes do sujeito que ela afeta, é sempre determinada a um objeto particular e deve ser submissa ao tribunal da razão que pode decidir sozinha a verdade da sua relação. Elas destroem, por consequência, os fundamentos de toda verdadeira ciência. Elas contêm enfim o veneno do materialismo e conduzem ao ateísmo.

VI

Essas faculdades (a sensibilidade física e a memória), que considero como as causas produtoras dos nossos pensamentos e que nos são comuns com os animais, nos ocasionarão, no entanto, apenas um número muito pequeno de ideias se elas não estivessem juntas em nós por certa organização externa. Se a natureza em lugar de mãos e de dedos flexíveis tivesse terminado os nossos punhos por patas de cavalo, quem duvida que os homens... não estivessem ainda vagando pelas florestas como rebanhos fugitivos. (Disc. I, cap. I, p. 1)

VII Sem uma correta organização exterior, a sensibilidade e a

memória seriam apenas faculdades estéreis em nós. (Disc. I, cap. I, p. 4).

VIII

Tem-se escrito muito sobre a alma das bestas. Foi-lhes alternadamente retirada e dada a faculdade de pensar e talvez não se tenha procurado suficientemente e escrupulosamente, nas diferenças físicas do homem e do animal, a causa da inferioridade daquilo que se chama a alma dos animais. (Disc. I, cap. I, p. 2, nota a).

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IX

É combinando todas as diferenças da parte física do homem e das bestas que se pode explicar porque a sensibilidade e a memória, faculdades comuns nos homens e animais, são por assim dizer nos últimos, apenas faculdades estéreis. (Disc. I, cap. I, p. 3, nota).

CENSURA

Essas proposições onde se assegura "que a sensibilidade física e a memória são igualmente comuns ao homem e aos animais, que não há outra causa da inferioridade daquilo que se chama de alma das bestas e que a superioridade do homem sobre a besta, que a diferença exterior dos órgãos, de maneira que esta única diferença de organização exterior torna essas faculdades menos estéreis nos homens que nos animais".

Essas proposições são falsas e temerárias. Elas ultrajam a humanidade. Elas aviltam a dignidade da alma criada à imagem de Deus e tendem a destruir a fé na sua imortalidade. Elas cheiram a materialismo.

X

No transcorrer do tempo tem-se volta e meio sustentado que a matéria sentia ou não sentia... Só se tratava de saber se a extensão, a solidez e a impenetrabilidade eram as únicas propriedades comuns a todos os corpos. E se a descoberta de uma força, como por exemplo, a da atração, não poderia provocar a suspeita de que os corpos tivessem ainda outras propriedades desconhecidas, tal como a faculdade de sentir que, se manifestando apenas nos

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corpos organizados dos animais, poderia ser, entretanto, comum a todos os indivíduos. Com a questão reduzida a esse ponto sentiu-se então que se é a rigor, impossível de demonstrar que todos os corpos sejam absolutamente insensíveis. Todo homem que não esteja sobre esse assunto esclarecido pela revelação, só pode decidir a questão calculando e comparando a probabilidade desta opinião com a probabilidade da opinião contrária. (Disc. I, cap. 4, pp. 31, 32).

CENSURA Esta proposição onde ele diz "Que não se pode demonstrar que a

faculdade de sentir não é uma propriedade comum a todos os corpos, embora ela só se manifeste nos corpos organizados dos animais. Que a descoberta de uma força como a da atração pode nos fazer suspeitar que os corpos tenham ainda outras propriedades desconhecidas como a faculdade de sentir. E por consequência, que só se pode decidir esta questão calculando e comparando a probabilidade desta opinião com a probabilidade da opinião contrária".

Esta proposição é falsa e contrária à razão. Ela revela a temeridade e a má fé do autor que, para destruir a religião, abusa da filosofia de Newton contra a intenção expressa desse filósofo e de seus discípulos mais célebres. E relacionada com as precedentes já condenadas, apresenta aos leitores um sistema completo de materialismo igualmente funesto à religião e à sociedade.

580

XI Talvez alguém me pergunte se essas duas faculdades (a

sensibilidade física e a memória) são modificações de uma substância espiritual ou material... O que eu tenho a dizer do espírito concorda bem com uma e outra dessas hipóteses. Observarei somente a esse respeito que, se a igreja não tivesse fixado nossa crença nesse ponto e se alguém tivesse que, somente através das luzes da razão, se elevar até o conhecimento do princípio pensante, não se poderia deixar de concordar que nenhuma opinião desse gênero é suscetível de demonstração. Que se devem ponderar as razões a favor e contra, examinar as dificuldades e se determinar em favor do maior número de verossimilhanças. E por consequência, apoiar-se apenas em julgamentos provisórios. E se fará desse problema, como de uma infinidade de outros que só se pode resolver com a ajuda do cálculo das probabilidades. (Disc. I, cap. I, pp. 4, 5).

XII

Por mais arrojado estóico que fosse, Sêneca não estava

totalmente seguro da espiritualidade da alma. "Vossa carta, escreveu ele a um de seus amigos, chegou fora de propósito: Logo que a recebi eu caminhava deliciosamente no palácio da esperança. Estava seguro da imortalidade da minha alma. Minha imaginação, docemente aquecida pelos discursos de alguns grandes homens, já não duvidava mais desta imortalidade que eles prometem, mas não provam. Já começava a me desagradar de mim mesmo, desprezar os restos de uma vida infeliz e me comunicava com as delícias das portas da eternidade. Vossa carta chega. Eu acordo e de um sonho tão agradável me resta o desgosto de reconhecer que era um sonho. (ibid, pp. 4, 5, nota d).

XIII

Uma prova, diz o senhor Deflandes na sua 'História Crítica da

Filosofia', que antigamente não se acreditava na imortalidade e na imaterialidade da alma é que, no tempo de Nero, queixavam-se em Roma que a doutrina do outro mundo, introduzida recentemente, desanimava a

581

coragem dos soldados os tornando mais tímidos, eliminava a principal consolação dos infelizes e dobrava enfim a morte com a ameaça de novos sofrimentos após esta vida.(ibid, mesma nota, p. 5).

CENSURA

Essas proposições no que respeita a "representam a espiritualidade da alma como uma opinião problemática para qualquer um que a julgue apenas pelas luzes da razão e que elas enunciam que os princípios do autor sobre o espírito concordam igualmente bem com as duas hipóteses da alma espiritual ou material".

Essas proposições são falsas, contrárias às luzes evidentes da razão e degradam a natureza humana.

E no que respeita ao autor nessas mesmas proposições, após acobertar-se com máscara de católico, "apresenta o sentimento de imortalidade da alma como uma opinião duvidosa e insinua sob um nome estrangeiro que esta imortalidade é apenas um sonho. Que antes do surgimento da religião cristã, esta crença não tinha partidários no império romano. Que o dogma de uma vida futura recentemente introduzida foi considerado, sob o reinado de Nero, contrária aos interesses da república".

Essas proposições contêm uma doutrina, falsa e escandalosa, que contradiz a crença universal de todos os tempos e lugares e oposta aos sentimentos dos filósofos mais célebres da antiguidade pagã. Doutrina que tira da virtude seus motivos

582

mais fortes e afrouxa a rédea a todos os vícios. Que é igualmente injuriosa à sabedoria, à bondade e à justiça de Deus. Que destrói os princípios da religião natural. E que só foi imaginada para tornar odiosa a religião cristã. A respeito do que o autor progride com o nome de Sêneca e do que ele atribui ao povo romano. Só se vê imputações falsas e de má fé, ou ao menos, grossa ignorância da história romana e um engano no sentido que ele dá à passagem da carta do filósofo citado com complacência

14.

XIV

O que será... a liberdade? Pode-se entender por este termo apenas a faculdade livre de querer ou de não querer uma coisa. Mas essa faculdade iria supor que aí pode haver vontades sem motivos e, por consequência, efeitos sem causa. Pelo menos (dirá alguém), somos livres sobre a escolha dos meios que empregamos para nos tornarmos felizes? Sim, responderei, mas livre é então apenas sinônimo de esclarecido... São necessários que todos os nossos pensamentos e vontades sejam efeitos imediatos ou de consequências necessárias das impressões que nós recebemos. Não se pode então formar ideia alguma desta palavra "liberdade' aplicada à vontade. É necessário considerá-la como

14

Quando o dia vier em que será separado o humano do divino, eu deixarei esse corpo onde tenho estado e me entregarei aos Deuses. Não é que eu esteja atualmente sem eles. Estou no momento retido por uma massa pesada e terrestre. A estadia que se faz nesta vida mortal é apenas uma preparação a uma melhor e mais longa vida... Esse dia que vocês temem como se fosse o último da vossa vida é aquele do vosso nascimento para a eternidade. (Tradução de Sêneca por Duryer).

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um mistério. Exclamar como São Paulo 'O altitudo!' E concordar que só a Teologia pode discorrer sobre tal matéria e que um tratado filosófico da liberdade será um tratado apenas de efeitos sem causas. (Disc. I, cap. 4, pp. 36 a 38).

XV Há ainda pessoas que olham a suspensão do espírito como prova

da liberdade. Eles percebem apenas que a suspensão é tão necessária quanto a precipitação nos julgamentos. Quando, por faltar exame ficou-se exposto a alguma desgraça, o amor de si instruído pelo infortúnio, deve nos induzir à suspensão. A gente se engana semelhantemente com a palavra 'deliberação'. Nós acreditamos deliberar quando temos, por exemplo, que escolher entre dois prazeres mais ou menos iguais e quase em equilíbrio. Entretanto, não se faz mais que tomar por deliberação a lentidão com que, entre dois pesos quase iguais, o mais pesado arrasta um dos pratos da balança.

CENSURA

Essas proposições onde se sustenta "Que os homens não são livres nas escolhas dos meios que podem empregar para serem felizes e nem na suspensão dos julgamentos do espírito. Que quando se crê deliberar, não se faz mais que tomar por deliberação a lentidão com que, entre dois pesos quase iguais, o mais pesado arrasta um dos pratos da balança. Que todos os nossos pensamentos e todas as ações da nossa vontade são ou efeitos imediatos ou consequências necessárias das impressões involuntárias que recebemos. Que um tratado filosófico da liberdade será uma produção tão ridícula quanto um tratado

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de efeitos sem causa. Que é necessário considerar a liberdade como um mistério e exclamar como São Paulo 'O altitudo!' Que apenas a Teologia pode discorrer sobre semelhante matéria".

Essas proposições (heréticas nelas mesmas) repugnam o sentido íntimo que nós temos da nossa liberdade. São injuriosas aos filósofos, aos teólogos, à sagrada escritura e sobretudo, ao apóstolo São Paulo. Elas são ímpias. Reduzem a nada o mérito e o demérito das ações. Destroem toda a diferença entre os crimes, até entre os maiores e os males físicos que têm uma causa necessária. Estabelecem o fatalismo e destroem toda a legislação moral e por consequência, aquela de Deus, que supõe evidentemente uma verdadeira liberdade no homem. Elas não deixam nenhum lugar à manifestação da santidade da justiça divina. Minam e derrubam abertamente e de um único golpe, todos os princípios da moral cristã e da probidade natural.

SOBRE A MORAL I

Enquanto a Poesia, a Geometria, a Astronomia e geralmente todas as ciências tendem mais ou menos rapidamente à perfeição, a moral parece mal sair do berço. É que os homens, forçados a se reunirem em sociedade e de se darem leis e costumes, tiveram de fazer um sistema moral antes que a observação lhes tivesse levado à descoberta dos verdadeiros princípios. Feito o sistema, cessaram de observar. E assim nós apenas temos, por assim dizer, a moral da infância do mundo. (Disc. II, cap. II, 13, p. 222).

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II

Quais inimigos da humanidade, alguém dirá, se opõem ainda aos progressos da moral? Não são mais os reis, mas duas outras espécies de homens poderosos. Os primeiros são os fanáticos e eu não os confundo com os homens verdadeiramente piedosos. E esses aqui são o sustentáculo das máximas da religião. Aqueles são os destruidores... indiferentes às ações honestas, eles se julgam virtuosos, não sobre o que são, mas sobre o que crêem que são. A credulidade dos homens é, segundo eles, a única medida da sua probidade:... ambiciosos, hipócritas e discretos, eles sentem que para escravizar os povos, devem lhes cegar. Assim esses ímpios gritam sem cessar contra a impiedade e contra todo homem nascido para esclarecer as nações. Toda verdade nova lhes é suspeita. Parecem crianças que tudo assusta no escuro. A segunda espécie de homens poderosos que se opõem ao progresso da moral são os meios-políticos. Entre esses, há os que, naturalmente levados à verdade, só são inimigos das verdades novas porque são preguiçosos e querem se subtrair à fatiga da atenção necessária para examiná-las. Há outros animados de motivos perigosos e esses aqui são os que se devem temer mais. São homens cujo espírito é desprovido de talentos e a alma de virtudes, que, por serem grandes celerados, não lhes faltam coragem. Incapazes de novas e elevadas visões, esses últimos crêem que a sua consideração tem o respeito imbecil ou fingido que ostentam por todas as opiniões e erros recebidos. Furiosos contra todo homem que pode abalar o império, armam contra ele as paixões e até os preconceitos que desprezam e não cessam de assombrar os espíritos fracos com a palavra novidade... Querem que se tenham os povos prostrados diante dos preconceitos recebidos, como diante dos crocodilos sagrados de Mênfis. (Disc. II, cap. 23, pp. 223 a 226).

III

É suficiente para esse efeito (para aperfeiçoar a moral) levantar os obstáculos que colocam ao seu progresso essas duas

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espécies de homens que eu citei. O único modo de ter êxito é lhes desmascarando, de mostrar nos protetores da ignorância, os mais cruéis inimigos da humanidade. (Disc. II, cap. 24, p. 228).

IV

Se o exame das ideias corretas para tornar os homens virtuosos nos é interditado pelas duas espécies de homens poderosos acima citados, o único modo de apressar o progresso da moral será então, como eu já disse acima, fazer ver nesses protetores da estupidez os mais cruéis inimigos da humanidade e de arrancar-lhes o cetro da ignorância que eles têm e do qual se servem para comandar o povo embrutecido. (Disc. II, cap. 24, pp. 238, 239).

V

Porque os nomes de Descartes e de Newton são mais célebres que os de Nicole, de La Bruyere e de todos os moralistas que talvez, em seus trabalhos, tenham feito prova de igual espírito? É, responderei eu, que os grandes físicos têm, com suas descobertas, por vezes servidos o universo e que a maior parte dos moralistas não tem, até o presente, sido de algum socorro à humanidade... Para merecer a estima, os moralistas deviam empregar na pesquisa dos meios próprios à formação de homens bravos e virtuosos, o tempo e o espírito que eles perderam em compor suas máximas sobre a virtude. (Disc. II, cap. 22, pp. 219, 220).

VI

Eu penso que os princípios que estabeleço nesta matéria são conformes ao interesse geral e à experiência. É pelos fatos que eu remontei às causas. Creio que se deve tratar a moral como todas as outras ciências e fazer uma moral como uma física experimental. (Prefácio, pp. 1, 2). Em moral, assim como na física, é sempre sobre os fatos que é preciso estabelecer as opiniões. (Disc. III, cap. 51, p. 296).

VII

Maior conhecimento do mal deve dar aos moralistas maior habilidade para a cura. Eles poderão considerar a moral

587

de um ponto de vista novo e, de uma ciência inútil, fazer uma ciência útil ao universo. (Disc. II, cap. 14, p. 154).

CENSURA

Essas proposições segundo as quais "a moral recebida por todos

os povos, quanto aos primeiros princípios, desde o começo do mundo até o presente dia e mesmo a moral divina que professam as nações cristãs, é apenas uma ciência frívola e inútil, estabelecida ao acaso pelos primeiros homens que se uniram em sociedade e se deram costumes morais antes que a observação lhes tivesse feito descobrir os verdadeiros princípios. De maneira que a moral é ainda mal saída do berço e nós temos apenas a moral informe da infância do mundo. Segundo o que, até o presente, os moralistas têm perdido tempo compondo máximas sobre a virtude e não têm sido de auxílio algum para a humanidade. Por isso é necessário introduzir uma nova moral, uma moral experimental fundada unicamente sobre fatos e deduzida das ações de homens corrompidos e entregues às suas paixões, como mostra os exemplos que o autor relata em seu livro. De acordo com o que, finalmente, aqueles que se opõem a esta nova moral e querem que se reprima a que lhes é contrário, e por consequência a moral cristã, devem ser difamados como ímpios, fanáticos, celerados e como os mais cruéis inimigos da humanidade, de protetores da estupidez, que têm o cetro da ignorância para comandar os povos embrutecidos".

Essas proposições são falsas e absurdas. Elas invertem a ordem

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das coisas ao fundar a regra dos costumes morais sobre as ações dos homens mesmo que corrompidos, no lugar de ações humanas que devem ser conformes regras de costumes. Degradam com impiedade a providência do Criador, no que respeita à suposição de que estiveram os primeiros homens abandonados a si próprios sem nenhuma lei. Insultam sem pudor os homens ilustres que em todos os séculos têm muito bem merecidos da humanidade, insultam mesmo todo o gênero humano. Ultrajam os ministros da igreja e os magistrados cristãos. São blasfematórias contra os profetas e os apóstolos e mesmo contra Jesus Cristo. Elas estão repletas de furor e despropósitos.

VIII

Parece que no universo moral como no universo físico Deus colocou apenas um só princípio em tudo o que tem sido. O que é e o que será é apenas um desenvolvimento necessário. Ele disse à matéria: Eu te favoreço com a força. Imediatamente os elementos, submetidos às leis do movimento, vagantes e desconsertados nos desertos dos espaços formaram mil reuniões monstruosas, produziram mil caos diversos até que finalmente, eles se colocaram em equilíbrio e na ordem física dentro da qual se supõe estar agora o universo arranjado. Parece que ele disse igualmente ao homem. Eu te favoreço com a sensibilidade. É por ela que, cego instrumento das minhas vontades e tu, incapaz de conhecer a profundeza de minhas intenções, deves sem saber, realizar todos os meus desígnios. Eu o coloco sobre a guarda do prazer e da dor. Um e outro vigiarão os teus pensamentos e ações e engendrarão as tuas paixões. Excitarão tuas aversões, amizades, carícias e furores. Alumiarão teus desejos, medos e esperanças. Revelarão a ti verdades e te mergulharão em erros. E após te haver feito conceber mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, te desvendarão

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um dia os princípios simples ao desenvolvimento dos quais estão presas a ordem e a felicidade do mundo moral. (Disc. III, cap. 3, p. 322).

CENSURA

Esta proposição onde é dito que "a suposta ordem em que o

universo físico esteja, após mil ligações extraordinárias dos elementos feitas pela força antecipadamente impressa na matéria; Que de igual modo no universo moral, parece que há apenas um princípio de tudo o que aí se faz, a saber, a sensibilidade física, por meio da qual o homem, cego instrumento da vontade de Deus, cumpre sem o saber, todos os seus desígnios; Que os homens colocados sob a guarda do prazer e da dor, após ter sido o joguete de mil paixões e mil furores e após ter criado mil sistemas absurdos e diferentes de moral e de legislação, devem descobrir um dia os princípios simples ao cujo desenvolvimento estão ligadas a ordem e a felicidade do mundo moral":

Esta proposição é falsa e contrária à razão. Ela apresenta para a formação do mundo físico um sistema insensato que retira de Deus a especialidade na qual despedaça o melhor da sua sabedoria e só pode agradar aos ateus. Submete à necessidade e ao fatalismo o mundo moral e toda a sucessão das ações humanas e torna Deus manifestadamente o autor de todos os erros, crimes e furores dos homens. Ela rejeita, por consequência, com

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impiedade e blasfêmia a providência de Deus dentro da ordem moral e contém, quantos aos costumes, todo o veneno do Ateísmo.

Como esta proposição dá a entender que "do desenvolvimento dos princípios explicados no trabalho resultará a ordem e a felicidade do universo moral", ela mostra um orgulho inacreditável e a louca presunção do autor que se atreve a preferir suas ideias à sabedoria de todo o gênero humano e até mesmo à legislação divina.

IX

A dor e o prazer dos sentidos fazem os homens agirem e pensarem e são os únicos contrapesos que movem o mundo moral. (Disc. III, cap. 16, p. 366).

X Os homens por natureza, sendo apenas sensíveis aos prazeres

dos sentidos, têm por consequência, esses prazeres como o único objeto de seus desejos. (Disc. III, cap. 10, p. 326).

XI

É necessário... revelar às nações os verdadeiros princípios da

moral. Ensinar-lhes que insensivelmente arrastados em direção da felicidade aparente ou real, a dor e o prazer são os únicos motores do universo moral. E que o sentimento do amor de si é a única base em que podem ser colocados os fundamentos de uma moral útil. (Disc. II, cap. 14, p. 230).

XII É só à maneira diferente em que o interesse pessoal se modifica

que se devem seus vícios e suas virtudes. (Disc. II, cap. 5, p. 52). O vulgo limita comumente o significado dessa palavra 'interesse'

ao amor pelo dinheiro... eu tomo essa palavra num sentido mais extenso... eu a aplico geralmente a tudo o que pode nos proporcionar prazeres ou nos poupar de aflições. (Disc. II, cap. II, nota b, p. 46).

591

XIII

Que outro motivo (que interesse pessoal) poderá determinar um

homem a agir generosamente? É-lhe tão impossível amar o bem pelo bem quanto amar o mal pelo mal. (Disc. II, cap. 5, p. 73).

XIV Os homens não são maus, mas submissos aos seus interesses. Os

gritos dos moralistas não mudarão certamente esse motivo do universo moral. Não é então da maldade dos homens que é necessário se lastimar. (Disc. II, cap. 5, nota a, p. 73).

CENSURA Essas proposições nas quais se assegura que "o prazer e a dor

dos sentidos são o princípio de todas as afecções e de todos os movimentos do espírito humano e são o único objeto dos desejos dos homens; Que essas duas impressões (o prazer e a dor dos sentidos) são igualmente a causa de todas as ações humanas, que não tem outro motivo que possa determinar os homens a ações generosas e que lhes é tão impossível amar o bem pelo bem quanto amar o mal pelo mal; Que os homens, seja o que for que façam, não são malvados, mas somente submissos aos seus interesses e que não é de sua maldade que é preciso se lastimar; Que o prazer e a dor dos sentidos são os únicos motores, os únicos contrapesos, os únicos motivos do universo moral; E que assim o sentimento do amor de si, isto é: da inclinação aos prazeres dos sentidos, é a única base sobre a qual se pode fundar uma moral útil":

Essas proposições são falsas.

592

Elas extinguem o sentimento íntimo do bom e do honesto. Sufocam nos homens a benevolência mútua que a natureza lhes inspira e todas as afecções de bondade, reconhecimento, equidade, compaixão e de deferência, em uma palavra de humanidade que são neles os germes das virtudes morais e os laços de união e paz. Só lhes deixam por princípio de suas ações a cupidez, fonte de divisões e de todos os vícios. Elas destroem a vontade, esta faculdade a que compete moderar o apetite sensitivo e pela qual rebaixam o homem à condição das bestas, o homem nascido para Deus e capaz de bens espirituais. Destroem nos primeiros princípios, todos os deveres da sociedade civil e da religião.

XV

A virtude é apenas o desejo de felicidade dos homens... eu considero (a probidade) como a virtude colocada em ação. (Disc. II, cap. 13, pp. 140, 141).

Eu considerarei a probidade... relativamente a: 1º a um particular; 2º a uma pequena sociedade; 3º a uma nação; 4º aos diferentes séculos e aos diferentes países; 5º ao universo inteiro. E tomando sempre a experiência por guia nas minhas pesquisas, mostrarei que, sob cada um desses pontos de vista, o interesse é o único juiz da probidade. (Disc. II, cap. I, pp. 47, 48).

XVI Eu me acredito no direito de concluir que o interesse pessoal é

único e universal apreciador do mérito das ações dos homens. E que assim a probidade, em relação a um particular é... apenas o hábito das ações pessoalmente úteis a esse particular. (Disc. II, cap. I, p. 54).

XVII

A probidade (em relação a uma sociedade particular) é apenas o hábito maior ou menor de ações particularmente úteis a esta pequena sociedade. (Disc. II, cap. 5, p. 73).

593

XVIII

Não é mais da probidade em relação a um particular ou a uma pequena sociedade, mas da verdadeira probidade, da probidade considerada em relação ao público, do que se trata... Esta espécie de probidade é a única que realmente merece e que obtêm geralmente o nome. (Disc. II, cap. II, p. 119).

XIX Que importa ao público a probidade de um particular? Esta

probidade não lhe é quase de nenhuma utilidade. (Disc. II, cap. 6, pp. 81, 82).

XX Em todos os séculos e países diversos a probidade apenas pode

ser o habito de ações úteis à sua nação. Por mais certa que seja essa proposição, para fazer sentir mais evidentemente a verdade, tentarei dar ideias claras e precisas da virtude... o bem público é o objeto da virtude... as ações que ela comanda são os meios de que ela se serve para cumprir seu objetivo. (E um pouco mais acima o autor disse se referindo às opiniões dos filósofos sobre a virtude). Eles teriam de sentir que os séculos devem necessariamente ocasionar no físico e na moral, revoluções que mudam a face dos impérios; Que, nas grandes perturbações, os interesses de um povo sofrem sempre grandes mudanças; E que as mesmas ações podem lhe ser úteis ou nocivas e por consequência ter, alternadamente, o nome de virtuosas ou de viciosas. (Disc. II, cap. 13, pp. 133, 134).

XXI A gente poderia se ouso dizer compor um catecismo da

probidade em que as máximas simples, verdadeiras e disponíveis a todos os espíritos, ensinariam as pessoas que a virtude, invariável no objetivo que se propõe, não está nos meios próprios a preencher esse objetivo. Que se deve, por consequência, olhar as ações como indiferentes nelas mesmas. Sentir que é à necessidade do Estado que deve determinar aquelas que são dignas de estima ou de desprezo. E sentir enfim que é ao legislador, pelo conhecimento que ele deve ter

594

do interesse público em fixar o instante no qual cada ação cessa de ser virtuosa e torna-se viciosa. Esses princípios uma vez admitidos, com que facilidade o legislador apagará as luzes do fanatismo e da superstição, suprimirá os abusos e reformará os costumes bárbaros, que foram talvez úteis quando do seu estabelecimento e tornaram-se depois tão funestos ao universo? (Disc. II, cap. 17, p. 168).

XXII

Pode-se tornar apenas (os homens) virtuosos unindo o interesse pessoal ao interesse geral. Colocado esse princípio, fica evidente que a moral é apenas uma ciência frívola, se acaso não se confundir ela com a política e a legislação. (Disc. II, cap. 15, p. 161).

XXIII

Esta utilidade (pública) é o princípio de todas as virtudes humanas... é... a esse princípio que é necessário sacrificar todos os sentimentos, até mesmo o sentimento de humanidade... tudo se torna legítimo e até virtuoso para a salvação pública. (Disc. II, cap. 6, pp. 80, 81).

XXIV

Se existisse uma probidade em relação ao universo, esta probidade seria apenas o hábito das ações úteis a todas as nações. Porém não há ação que possa influir de imediato na felicidade ou infelicidade de todos os povos... não há portanto, probidade prática em relação ao universo. A respeito da probidade de intenção, que se reduz ao desejo constante e habitual da felicidade dos homens... eu digo que esta espécie de probidade é ainda, apenas uma quimera platoniana... de onde eu concluo que não pode haver a probidade prática e nem mesmo a probidade de intenção, em relação ao universo. (Disc. II, cap. 25, pp. 140, 141).

XXV De todos os interesses particulares se forma um interesse

comum que deve dar às diferentes ações os nomes de justas, permitidas e injustas, segundo elas sejam úteis, indiferentes ou nocivas às sociedades. Uma vez chegado a esta verdade, descubro facilmente a origem das

595

virtudes humanas. Vejo que, sem a sensibilidade à dor e ao prazer físico, os homens, sem desejos, sem paixões e igualmente indiferentes a tudo, não teriam conhecido o interesse pessoal. Vejo também que sem o interesse pessoal, eles não teriam se congregado em sociedade, não teriam feito entre eles convenções e não teriam nenhum interesse geral. Por consequência, não haveria ações justas ou injustas. Vejo ainda que assim, a sensibilidade física e o interesse pessoal foram os autores de toda justiça. (Disc. III, cap. 4, p. 276).

CENSURA

Essas proposições em que se ensina que "o interesse pessoal, isto é, segundo o autor, tudo o que pode nos proporcionar prazeres dos sentidos ou nos subtrair aflições, é o único e universal apreciador do mérito das ações humanas; Que a probidade alheia, em relação a um particular, é apenas o hábito das ações pessoalmente úteis a esse particular; Que o mesmo acontece nas sociedades particulares e nas nações, que só chamam de probidade o hábito maior ou menor das ações que lhe são úteis; Que a probidade de um particular em relação a outro particular é apenas pouco ou mesmo nada interessante para o público; Que a probidade, em relação a uma nação é a única probidade verdadeira, a única virtude verdadeira, a única probidade que realmente é digna do nome e que geralmente o obtêm; Que esta verdade invariável no objetivo a que se propõem, a saber, a utilidade pública, não está nos meios próprios a atingir este

596

objetivo; Que assim, se tem de olhar as ações como indiferentes nelas mesmas, que elas tornam-se sucessivamente úteis ou nocivas segundo as diversas mudanças que acontecem nos estados e tomam, naturalmente e alternadamente o nome de virtuosas ou de viciosas; Que é ao legislador, pelo conhecimento que deve ter do interesse público, que cabe fixar o instante no qual cada ação cessa de ser virtuosa e torna-se viciosa; Que é evidente que a moral é apenas uma ciência frívola, se ela não for confundida com a política e a legislação; Que é preciso sacrificar (ao interesse público) todos os sentimentos, até mesmo o sentimento de humanidade; Que tudo se torna legítimo e mesmo virtuoso a este fim; Que não pode haver probidade em relação ao universo, porque não há ação que possa influir imediatamente na felicidade de todos os povos; Que se deve então reconhecer que é da sensibilidade física que nasce o interesse pessoal; Que na sequência, o interesse pessoal produz as sociedades políticas e as convenções; Que as sociedades políticas e as convenções levam ao nascimento do interesse comum ou nacional; E que se deve dar às diferentes ações os nomes de justas, permitidas e de injustas, segundo elas sejam úteis, indiferentes ou nocivas às sociedades, e dedutivamente, a sensibilidade física e o interesse pessoal são os autores de toda virtude e de toda justiça".

Essas proposições são falsas, absurdas e contrárias às mais nobres inclinações da alma e às claras noções do espírito. Elas destroem toda diferença entre o bem e o mau moral, diferença essa fundada na própria natureza das coisas e confirmada pela revelação divina. Retiram do homem todos os

597

motivos repressivos que o senso moral, a razão e a religião lhe fornecem. Elas convidam-no a se entregar em segredo a toda sorte de perversidade, a cometer clandestinamente toda sorte de crimes e até a se utilizar abertamente, seja com violência, seja com artifícios, de ações as mais negras contra todo cidadão e até mesmo contra o Estado, todas as vezes que tiver esperança de um sucesso feliz e que acredite aos menos, poder escapar às penas estipuladas nas leis civis. São então, a todo respeito, perniciosas aos cidadãos e aos Estados. Elas destroem todo Direito natural e divino. E são ímpias, detestáveis blasfematórias.

XXVI

Toda a arte do legislador consiste... em forçar os homens, pelo sentimento de amor deles mesmos, a serem sempre justos uns em relação aos outros. Ora, para produzir semelhantes leis é necessário... com antecipação saber... que a sensibilidade física produziu em nós o amor do prazer e o ódio à dor. Que o prazer e a dor depositaram em seguida e fizeram despontar em todos os corações o germe do amor de si, cujo desenvolvimento deu nascimento às paixões, de onde saíram todos os vícios e todas as virtudes... A moral e a legislação que considero como um uma só ciência farão... apenas progressos insensíveis.

É só o tempo que poderá lembrar esses séculos felizes designados pelos nomes de Astreia ou de Rhéa que são apenas o engenhoso emblema da perfeição dessas duas ciências. (Disc. II, cap. 24, pp. 237 a 239).

XXVII

Não é... da maldade dos homens que é preciso se lastimar, mas da ignorância dos legisladores que tem sempre colocado o interesse particular em oposição ao interesse geral. Se os citas eram mais virtuosos que nós

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é porque sua legislação e seu gênero de vida lhes inspiraram mais probidade. (Disc. II, cap. 5, p. 73, nota a).

XXVIII

São somente as fortes paixões que fazem executar ações corajosas e conceber essas grandes ideias que fazem o assombro e a admiração de todos os séculos. (Disc. III, cap. 5, p. 196).

XXIX

Eu entendo por esta expressão 'paixão forte' uma paixão da qual o objeto seja tão necessário à nossa felicidade que a vida nos fica insuportável sem a posse deste objeto. Tal é a ideia que Omar formou das paixões quando disse: "Quem quer que tu sejas, que, apaixonado da liberdade, queres ser rico sem bens, poderoso sem súditos, vassalo sem senhor e ousar desprezar a morte, os reis tremerão diante de ti e apenas tu não temerás pessoa alguma". Essas são, com efeito, as únicas paixões que, possuídas a esse grau de força, podem executar as maiores ações e afrontar os perigos, a dor, a morte e até mesmo o céu. Dicearco, general de Felipe, levanta na presença de suas tropas dois altares, um à impiedade e o outro à injustiça, sacrifica e marcha contra os cíclades. (Disc. III, cap. 6, p. 298).

XXX

As penas e os prazeres dos sentidos podem nos inspirar toda espécie de paixões, de sentimentos e de virtudes... Que recurso mais possante para mover nossas almas? A Fenícia não tem... edificado altares para a beleza? Esses altares só puderam ser derrubados pela nossa religião. Que objeto (para quem não é esclarecido pelos raios da fé) é, com efeito, mais digno de nossa adoração... a fruição somente (dos prazeres do amor) pode nos fazer suportar com delícias o penoso fardo da vida e nos consolar da infelicidade de ser. (Disc. III, cap. 15, p. 364 a 366).

XXXI

O amor das mulheres é nas nações civilizadas, o recurso quase único que impele (e em nota relativa a esta proposição) o desejo vago de felicidade... reduz-se hoje em dia,

599

como já tenho provado, aos prazeres dos sentidos... Ora, por meio desses prazeres, eu estou, sem dúvida, no direito de escolher aquele das mulheres, como o mais vivo e o mais forte de todos. Uma prova que, com efeito, são os prazeres dessa espécie que nos animam é que se é suscetível da aquisição de grandes talentos e capaz de resoluções desesperadas, necessárias para subir aos primeiros postos apenas durante a primeira juventude. (Disc. III, cap. 13, pp. 339, 340).

XXXII

Se o prazer do amor é para os homens o mais vivo dos prazeres, qual germe fecundo de coragem encerrado nesse prazer e qual ardor pela virtude não pode inspirar o desejo das mulheres?... a força da virtude é sempre proporcional ao grau de prazer que se lhe destina por recompensa. (Disc. III, cap. 15, pp. 363, 364).

XXXIII

Que se abra a História e se verá que em todos os países onde

certas virtudes eram encorajadas pela esperança de prazeres dos sentidos, essas virtudes eram as mais comuns e causaram a maior ostentação. Porque os cretenses, os beócios e em geral todos os povos mais favoráveis ao amor têm sido os mais corajosos?... é que os prazeres do amor, como observam Plutarco e Platão, são os mais apropriados para elevar a alma dos povos e a mais digna recompensa dos heróis e dos homens virtuosos... É também sobre isso que, segundo os costumes gregos, foi feito Platão dizer que o mais belo dever, ao se sobressair nos combates, é a recompensa do mais valente. (Disc. III, cap. 15, p. 361).

CENSURA

Essas proposições em que se assegura que "é das nossas paixões que saem todos os vícios e todas as virtudes; Que o desejo vago de felicidade se reduz sempre ao prazer dos sentidos; Que as únicas paixões fortes que enfrentam os perigos, a dor,

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a morte e mesmo o céu, fazem executar essas ações corajosas que são o assombro e a admiração de todos os séculos; Que entre todas as paixões o amor das mulheres é nas nações civilizadas o recurso quase único que as impele; Que uma prova de que, com efeito, são as paixões desta espécie que nos animam, é que só se é suscetível da aquisição de grandes talentos e capaz dessas resoluções desesperadas, necessárias algumas vezes para assumir os primeiros postos, na primeira juventude onde esta paixão predomina; Que só o gozo desses prazeres pode nos fazer suportar com prazer o difícil fardo da vida e nos consolar da infelicidade de ser; Que, para quem não é esclarecido pelos raios da fé, não há objeto mais digno da nossa admiração que a beleza; Que assim toda a arte de uma legislação perfeita consiste em encorajar os cidadãos a fazerem ações generosas, em lhes propondo por recompensa o gozo de volúpias corporais e sobretudo, os prazeres do amor, a força da virtude estando sempre em proporção ao grau do prazer dos sentidos à que se consigna por recompensa".

Essas proposições são falsas, insensatas, ímpias, obscenas e ditadas pelo furor da libertinagem. Elas degradam a razão, esta faculdade mais nobre da alma e lhe tira a autoridade para colocar em seu lugar, por um desarranjo monstruoso, o desejo desregrado dos prazeres mais brutais. O soberano bem da alma razoável, imortal e destinada ao gozo

601

de Deus, elas estabelecem nas voluptuosidades frágeis e passageiras que desdenham e desprezam uma alma elevada, voluptuosidades que não são de nenhum socorro contra as enfermidades do corpo, os sofrimentos do espírito e os sonhos da fortuna; Elas apresentam a ideia de uma legislação infame, cheia de absurdos e contradições, nas quais os maiores homens, após serem consumados por longos trabalhos feitos pela pátria, não terão nenhuma recompensa a esperar, ou não se encontrará nenhum motivo pelo qual possa levar um cidadão a sacrificar sua vida pelo bom êxito público e onde se verá em cessar, ao intento das mesmas recompensas, se elevarem divergências no seio do Estado igualmente tão funestas à sociedade, que as paixões de cada pretendente serão mais fortes e ao mesmo tempo menos reprimidas. A lei natural, todas as leis divinas e humanas são aí calcadas aos pés e as expressões faltam para qualificá-las como merecem. Elas mostram qual é o caráter desses homens que rejeitam a religião e a que excessos odiosos são capazes de se ater nos sistemas que inventam contra ela.

XXXIV

Eu desejo que a razão nos dirija nas ações importantes da vida. Mas que se abandonem os detalhes a seus gostos e a suas paixões. (Disc. IV, cap. 15, p. 619).

XXXV

Nada mais perigoso num Estado do que esses moralistas declamadores enfáticos e sem espírito, que concentrados numa pequena esfera de ideias, repetem continuamente o que ouviram dizer a seus miolos, recomendam sem cessar a moderação dos desejos e querem exterminar as paixões em todos os corações. Eles não imaginam que seus preceitos,

602

úteis a alguns particulares em determinadas circunstâncias, serão a ruína das nações que as adotarem. (Disc. II, cap. 16, p. 164).

XXXVI

De todos os dons que o céu pode derramar sobre uma nação, o

dom mais funesto será sem contradição a prudência, se o céu a tornar comum a todos os cidadãos. O que é, com efeito, o homem prudente? Aquele que conserva dos males afastados uma imagem bastante viva para que ela balance nele a preferência de um prazer que lhe será funesto... é... à imprudência e à loucura que o céu prende a conservação dos impérios e a duração do mundo. Parece então que ao menos na constituição atual da maior parte dos governos a prudência é desejável apenas em um muito pequeno número de cidadãos. Que a razão sinônima da palavra 'bom senso' e elogiada por tanta gente merece somente pouca estima. Que a sabedoria que se lhe supõe resulta da sua indolência e que sua infalibilidade aparente é com frequência apenas uma apatia. (Disc.IV, cap. II, pp. 582, 583).

XXXVIII

Quem sabe se o caráter formado e os hábitos fixados, cada um não se conduz o melhor possível mesmo quando parece o mais louco?... Quanta gente cuja felicidade está... ligada a paixões que devem lhes mergulhar em grandes infelicidades e que, entretanto, se ouso dizer, estavam loucos querendo ser mais sábios! Há inclusive homens e a experiência apenas demonstra bastante, que são tão desafortunadamente nascidos para serem felizes apenas com ações que os levam a pique... Em se abandonando ao seu caráter, se economiza ao menos os esforços inúteis que se fariam resistindo. (Disc. IV, cap. II, pp. 573, 574).

XXXVIII

O caráter uma vez formado (diria o ambicioso) é impossível de alterá-lo... Quaisquer razões que ele alegue o homem moderado lhe repetirá sempre: "Não é preciso ser ambicioso". Parece-me (diz o autor) ouvir um

603

médico dizendo ao seu paciente: "Senhor, não tenha febre". (Disc. IV, cap. II, p. 571).

CENSURA

Essas proposições onde é dito "que se vê bem que a razão nos dirige nas ações importantes da vida, mas que é necessário abandonar os detalhes aos seus gostos e paixões; Que o preceito da moderação das paixões será a ruína dos Estados que a adotarem; Que de todos os bens que o céu pode derramar sobre uma nação, o dom, de todos o mais funesto será, sem contradição, a prudência, se o céu a tornar comum a todos os cidadãos; Que a razão, sinônimo da expressão 'bom senso' e a sabedoria que se lhe supõe, merecem apenas pouca estima; Que é à imprudência e à loucura que o céu une a conservação dos impérios e a duração do mundo. Que o caráter uma vez formado ao mal não pode se conformar ao bem e que, quando o homem moderado diz ao ambicioso "não é preciso ser ambicioso", é tão ridículo quanto quando um médico diz ao seu paciente, "Senhor, não tenha febre"; Que a felicidade de muita gente está ligada a paixões que lhes devem mergulhar em grandes desgraças, os quais, entretanto, estavam loucos para serem mais sábios; Que ocorre o mesmo com os homens tão desgraçadamente nascidos para só poderem ser felizes através de ações que os levam a naufrágio. E que se abandonando ao seu caráter, se economiza ao menos os esforços que se faz para resistir".

Essas proposições estão cheias de loucura e de impudência. Elas contêm não somente o fatalismo

604

destrutivo de toda religião, segundo o próprio autor, como se verá mais adiante, mas anunciam ainda, abertamente, uma das mais perniciosas consequências. A saber, que é preciso se abandonar ao seu caráter por mais depravado que ele seja. Fazem a apologia de todos os crimes e de todos os celerados. São igualmente perniciosas à segurança dos particulares e à salvação do Estado. Elas são blasfematórias contra Deus, legislador e vingador de crimes. Elas devem ser detestadas por todo mundo pela execração que fazem do gênero humano.

XXXIX Eles devem (os moralistas) fazer sentir que o pudor é uma

invenção do amor e da volúpia refinada. (Disc. II, cap. 14, p. 159).

XL Não há nação que não conheça e não confunda duas diferentes

espécies de virtude. Uma que chamarei de 'virtude de preconceito' e a outra de 'verdadeira virtude'... (Disc. II, cap. 15, p. 141). Em consequência dessas duas espécies de virtude, eu distinguirei duas diferentes espécies de corrupção dos costumes. Uma eu chamarei de 'corrupção religiosa' e a outra de 'corrupção política'. Mas antes de entrar neste exame declaro que é na qualidade de filósofo e não de teólogo que escrevo. E que assim pretendo apenas, nesse capítulo e nos seguintes, tratar das virtudes puramente humanas. Este aviso dado, eu entro na matéria e digo que, em matéria de costumes, dá-se o nome de corrupção religiosa a toda espécie de libertinagem e principalmente àquela dos homens com as mulheres. Esta espécie de corrupção da qual eu não sou apologista e que é sem dúvida criminosa porque ofende a Deus, não é, entretanto, incompatível com a felicidade de uma nação... (Disc. II, cap. 14, p. 146). Quantos males, dir-se-á, ligados a esta espécie de corrupção! Mas apenas se poderá responder que a libertinagem só é politicamente perigosa a um Estado

605

quando ela está em oposição com as leis do país ou quando ela se encontra unida a qualquer outro vício de governo. (ibid. p. 150).

XLI

Nenhuma proporção entre as vantagens que o comércio e o luxo proporcionam ao Estado constituído como ele é (vantagens que são necessárias renunciar para banir a libertinagem) e o mal infinitamente pequeno que ocasiona o amor das mulheres. É de se lastimar encontrar em uma mina rica algumas palhetas de cobre misturadas ao ouro... Com efeito, que se examine politicamente a conduta das mulheres galantes. Ver-se-á que, censuráveis em determinados aspectos, elas são, em outros, muito úteis ao público. Que elas fazem, por exemplo, de suas riquezas um emprego comumente mais vantajoso ao Estado que as mulheres mais sensatas. O desejo de agradar que conduz a mulher galante até Rubanier, até o negociante de tecidos ou de modas, lhe faz não somente arrancar uma infinidade de trabalhadores da indigência, onde os reduziria a prática de leis suntuárias, mas lhe inspira ainda atos de uma caridade mais esclarecida. Na suposição de que o luxo seja útil a uma nação, não são as mulheres galantes que movem a indústria dos artífices do luxo, os tornando dia a dia mais úteis ao Estado? As mulheres ponderadas, em fazendo liberalidades a mendigos ou a malandros, são então bem menos aconselhadas pelos seus diretores (espirituais) que as mulheres galantes pelo seu desejo de agradar. Essas aqui alimentam cidadãos úteis e aquelas lá homens inúteis ou até mesmo inimigos desta nação. (Disc. II, cap. 15, pp. 157, 158).

XLII

Diferentes povos acreditaram e acreditam ainda que esta espécie de corrupção (a libertinagem dos homens com as mulheres) não é criminosa. Ela é sem dúvida na França porque ofende as leis do país, mas ela o seria menos se as mulheres fossem comuns e as crianças declaradas filhas do Estado; esse crime não seria então, politicamente nada perigoso. (Disc. II, cap. 14, pp. 146, 147).

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XLIII

É o único meio (em quebrando todos os laços de parentesco

entre os homens e declarando todos os cidadãos filhos do Estado) de sufocar os vícios que permitem uma aparência de virtude, de impedir a subdivisão de um povo em uma infinidade de famílias ou de pequenas sociedades, de que os interesses quase sempre opostos ao interesse público, estenderão por fim nas almas toda espécie de amor pela pátria. (Disc. II, p. 75).

XLIV

Os homens desgostosos com a vida que se matam... merecem tanto o nome de sensatos como de corajosos. Neles, o desprezo da vida não é o efeito de uma forte paixão, mas de uma falta de paixões. É o resultado de um cálculo pelo qual provam a si mesmos que é melhor não ser, que serem infelizes. (Disc. III, p. 450).

CENSURA

Essas proposições onde é dito que "o pudor é uma invenção do amor e da volúpia refinada e que é isso que os moralistas deveriam fazer saber. Onde se assegura que a corrupção religiosa, isto é, a libertinagem de toda espécie e principalmente aquela dos homens com as mulheres não é oposta à virtude verdadeira, mas somente a uma virtude de preconceito e que em se considerando as coisas, não como teólogo, mas como filósofo, não se pode olhar a libertinagem como uma corrupção política perigosa no Estado, nem contrária à honestidade moral, porque, segundo o autor, a moral é apenas uma ciência frívola se não se a confundir com a política

607

e a legislação. Segundo elas, as despesas que as mulheres galantes fazem pelo desejo de agradar são muito mais úteis do que as esmolas feitas pelas mulheres bem comportadas e piedosas. Onde se pretende que o único meio de abafar em um Estado os vícios que apresentam uma aparência de virtude em lhe proporcionando as maiores vantagens será quebrando todos os laços de parentesco entre os homens, tornando as mulheres comuns e declarando todos os cidadãos filhos do Estado. Onde enfim se ousa afirmar que aqueles que, por desgosto para com a vida, se suicidam merecem o nome de sensatos e corajosos".

Essas proposições são falsas, contrárias à honestidade e aos mais nobres sentimentos da natureza. Rejeitam com uma insolência cínica o pudor, esse dom precioso da natureza, esta virtude que é a protetora dos bons costumes e freio natural dos desejos desregrados. Elas são um elogio licencioso da libertinagem e preferem ao vínculo sagrado do matrimônio, à sua fecundidade e à felicidade de uma união bem conveniente e à daquela dos filhos uma desordem que o pudor impede de nomear, que os pais e as mães devem ter em horror e que será perniciosa às crianças que daí poderão nascer. Por uma inumanidade espantosa elas estimam mais as despesas vãs e criminosas das mulheres galantes e os desejos que têm de agradar que o amor ao próximo e as esmolas das mulheres ponderadas e piedosas. Rompem os laços invioláveis do casamento e do sangue, que são necessários à conservação do gênero humano. Reduzem a nada os deveres recíprocos dos pais e dos filhos, em uma palavra, todos os deveres da vida doméstica e por isso,

608

eliminam uma das principais doçuras da vida, aquela do cumprimento dos seus deveres e destroem os mais prementes motivos que animam os homens ao trabalho e a colocar em obra uma habilidade onde os particulares e o Estado encontram sua utilidade. Elas esbanjam com o maior absurdo os nomes de sábios e corajosos àqueles que têm o furor de se matar. Furor que, segundo os filósofos pagãos

15 só acontece por

uma falta de coragem e de firmeza e que devem reprimir um amor regrado da fé, o amor da pátria e a vontade divina que a lei natural e a revelação nos fazem conhecerem. Enfim, por uma perversidade sem exemplo, elas derrubam de vez todos os deveres da vida privada, doméstica e política, sem relação a toda espécie de lei que as estabelecem.

SOBRE A RELIGIÃO I

Os turcos que em sua religião admitem o dogma da necessidade, princípio destrutivo de toda religião... podem, em consequência, serem olhados como deístas. (Disc. II, cap. 14, p. 233).

II

A derradeira causa da indulgência do homem de mérito tem à vista claramente que existe a necessidade nos julgamentos humanos... O homem de espírito sabe que os homens são aquilo que eles devem ser. Que todo ódio contra eles é injusto. Que um tolo carrega em si tolices como a planta brava os frutos amargos, que insultá-lo é

15

Veja Platão, Aristóteles, Josefo e no livro do Direito natural e das gentes, do barão de Pussendorf, tradução de Barbeyrac, livro 1, cap. 4, pp. 250, 251.

609

censurar o carvalho de produzir a bolota em lugar de azeitonas. (Disc. II, cap. 13, pp. 114, 115).

CENSURA

Essas duas proposições das quais a última encerra o "Dogma da necessidade em todos os julgamentos e em todas as ações dos homens" erro que, já condenado nas proposições XIV e XV sobre a alma, é claramente expressa aqui e repetida em vários lugares do livro. E do qual a primeira assegura que esse "dogma da necessidade é um princípio destruidor de toda religião. Que por consequência, aqueles que admitem esse dogma podem ser olhados como deístas que desprezam igualmente todas as religiões:".

Essas proposições reunidas mostram evidentemente que o autor adota esta espécie de Deísmo, que se diverte com todas as religiões e que se comporta com a fé com todo o veneno e impiedade do Ateísmo.

III

O homem humano e moderado é um homem muito raro, se ele encontra um homem de outra religião diferente da sua. É, diz ele, um homem que, sobre essas matérias, tem outras opiniões diferentes das minhas. (Disc. II, cap. II, p. 58, nota e).

IV

A diferença de religião e por consequência de opinião

determinou, ao mesmo tempo, os cristãos, mais zelosos que justos, a difamar com mais infames calúnias, a memória de um príncipe (Juliano, o apóstata) que, diminuindo os impostos, restabelecendo a disciplina militar e reavivando a virtude moribunda dos romanos, tão justamente

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mereceu ser colocado na categoria de seus maiores imperadores. (Disc. II, cap. II, p. 209).

CENSURA

Essas duas proposições que "representam todas as religiões, inclusive a religião cristã, como de simples opiniões sobre as quais a humanidade e a moderação exigem que se permita a cada um pensar e dizer o que lhe agrada".

Essas proposições são absolutamente contrárias à reta razão, da qual a luz é suficiente para fazer rejeitar todas as falsas religiões e demonstra que somente a religião cristã é evidentemente crível. Elas contêm também esta detestável impiedade que se chama o 'indiferentismo' de todas as religiões.

A última dessas proposições das quais "o objeto é fazer passar por calúnias infames todas as acusações que autores muito dignos da fé e muito santos doutores da igreja intentaram contra um imperador apóstata e o mais supersticioso idólatra, que empregou artimanha e força para perseguir injustamente os cristãos".

Esta última proposição é falsa e injuriosa aos autores e aos doutores da igreja que têm falado desse príncipe. Ela manifesta um espírito animado do ódio mais arrojado contra a religião cristã.

V

É apenas contemplando a terra desse ponto de vista, em se elevando a esta altura, que ela se reduz insensivelmente diante do filósofo a um pequeno espaço e toma a seus olhos a forma de um pequeno burgo habitado por diferentes

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famílias que tomam o nome de chinesa, inglesa, francesa, italiana, enfim todos aqueles nomes que se dão às diferentes nações. (Disc. II, cap. 10, pp. 110, 111).

É daí que, vindo considerar o espetáculo dos costumes morais, das leis, dos hábitos, das religiões e das diferentes paixões, um homem, sendo quase insensível ao elogio e à sátira das nações, pode quebrar todos os vínculos dos preconceitos e examinar com um olhar tranquilo a contrariedade das opiniões dos homens e contemplar com prazer a extensão da tolice humana.

CENSURA

Esta proposição que apresenta "um filósofo elevado a certa altura, contemplando desse ponto de vista os costumes morais, as leis, os hábitos e mesmo todas as religiões (no rol das quais a religião cristã está compreendida). Tal filósofo, desprendido de todos os laços de preconceitos, passa sem surpresa do serralho ao convento dos cartuxos e se repasta com prazer da extensão da tolice humana".

Esta proposição é escandalosa e ímpia. Ela faz olhar com o mesmo olho as mais vergonhosas voluptuosidades e os santos exercícios da perfeição do evangelho. Ela acrescenta ao 'indiferentismo' religioso o horrível 'indiferentismo' dos costumes morais e das ações.

VI

Dos motivos de interesse temporal, manuseados com destreza por um legislador hábil, são suficientes para formar homens virtuosos. O exemplo dos turcos... dos chineses materialistas. Aquele dos saduceus que negavam a imortalidade da alma... enfim, o exemplo dos gimnosofistas que

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sempre acusados de ateísmo e sempre respeitados por sua sabedoria e sua moderação, cumpriam com a maior exatidão os deveres da sociedade. Todos esses exemplos e milhares de outros semelhantes provam que a esperança ou o medo dos sofrimentos ou dos prazeres temporais são tão eficazes e tão próprios para formar homens virtuosos quanto os sofrimentos e os prazeres eternos. (Disc. II, cap. 24, pp. 232, 233).

VII

É então unicamente por boas leis que se podem formar homens virtuosos. (e em nota relativa a esta proposição) Não se terminaria nunca se acaso se desejasse dar a lista de todos os povos que, sem a ideia de Deus, não deixam de viver em sociedade mais ou menos felizes, segundo a habilidade menor ou maior de seu legislador. (Disc. II, cap. 29, pp. 236, 237).

CENSURA

Essas proposições que ensinam que "os motivos de interesse temporal (isto é, como o autor no seu sistema o explica em vários lugares de seu livro, o prazer e a dor dos sentidos,) manejados com destreza por um legislador hábil são suficientes para produzir homens virtuosos. Que os homens apenas podem ser formados na virtude através de leis humanas que fazem agir de acordo com esses recursos do prazer e da dor. Que os exemplos dos turcos, dos chineses materialistas, dos saduceus, dos gimnosofistas e de mil outros povos que, sem nenhuma ideia de Deus, vivem, entretanto, em sociedade, mais ou menos felizes segundo a habilidade menor ou maior de seu legislador. Que todos esses exemplos

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provam que a esperança ou o medo dos prazeres ou dos sofrimentos temporais são tão apropriados para formar homens virtuosos quanto os sofrimentos e os prazeres eternos".

Essas proposições são falsas, escandalosas e blasfematórias contra o evangelho. Elas favorecem o Ateísmo. Desviam os homens do pensamento de um Deus que recompensa a virtude e pune o vício eternamente. Fornecem um exemplo do atrevimento e da malignidade prodigiosa do autor em forjar fatos ou a ajustá-los a seus pontos de vista.

VIII

Nada de mais sábio do que o fundador do império dos incas inicialmente se anunciando aos peruanos como o filho do sol e de lhes persuadir que lhes trazia leis que lhe haviam sido ditadas pelo seu pai. Essa mentira imprimiu nos selvagens mais respeito pela sua legislação. Essa mentira foi então muito útil a este estado nascente não olhado provavemente como virtuoso. (Disc. II, cap. 13, pp. 139, 140).

CENSURA

Esta proposição que "coloca no rol das virtudes e que honra com o nome da mais alta sabedoria as mentiras e as fraudes de um impostor que, para prender um povo e o submeter a suas leis, lhe persuadiu que as leis que lhes propunha lhe haviam sido ditadas por Deus seu pai".

Esta proposição contem uma doutrina abominável e, sob o véu de um fato histórico, apresenta ao espírito uma blasfêmia que causa horror.

IX

(Sob o título dos meios de aperfeiçoar a moral).

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A que desprezo é necessário então condenar todo aquele que quizer reter os povos nas trevas da ignorância? Não se tem até o presente momento insistido nesta verdade com suficiente força. Não que se deva destruir num dia todos os altares do erro. Eu sei com que cautela se deve promover uma opinião nova. Sei inclusive que, em os destruindo, se deve respeitar os preconceitos e que, antes de atacar um erro geralmente acatado, é necessário enviar, como as pombas da arca, algumas verdades à descoberta, para ver se o dilúvio dos preconceitos ainda não cobre a face do mundo, se os erros começam a escoar-se e se acaso se apercebe aqui e ali no universo algumas ilhas onde a virtude e a verdade possam desembarcar para se comunicarem com os homens. Mas apenas se toma tantas precauções com os preconceitos pouco perigosos. O que se deve aos homens que, ciosos da dominação, querem tornar estúpidos os povos para os tiranizar? É preciso, com uma mão arrojada, quebrar o talismã da imbecilidade que está ligado ao poder desses gênios malfazejos. Desvendar às nações os verdadeiros princípios da moralidade. (Disc. II, cap. 24, pp. 229, 230).

CENSURA

Esta proposição que supõe que se"ignora os verdadeiros princípios da moral e que esta ignorância provem do poder de gênios malfazejos que espalham de propósito espessas trevas no espírito dos povos; Que o dilúvio dos preconceitos cobre ainda a face do mundo; Que há em toda parte altares construídos ao erro, mas que entretanto, não devem ser destruídos de uma só vez e que é com bastante cautela que se deve promover uma opinião nova; Que, em se destruindo os preconceitos, deve-se os respeitar e que é necessário enviar algumas verdades à descoberta, para ver se

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acaso se descobre aqui e ali ilhas no universo, onde a virtude e a verdade possam arribar para se comunicarem com os homens".

Esta proposição é falsa. Ela insulta os filósofos moralistas que têm sido tão merecedores da humanidade. São injuriosas aos príncipes e aos magistrados cristãos, afrontosa contra os ministros da igreja, ímpia e blasfema contra Jesus Cristo e os apóstolos. Revela além disso os artifícios e os disfarces do autor e de tantos outros pretensos filósofos que, mesmo quando fazem todos os esforços para destruir a religião, querem parecer respeitá-la. Mostra claramente por qual razão eles têm o costume de se revestir e de apresentar com frequência sua perniciosa doutrina, tratando de assuntos que lhes são estranhos.

X

Qual homem virtuoso e qual cristão... não tentaria fundamentar a probidade, não sobre princípios tão respeitáveis como os da religião, mas sobre princípios que sejam menos fáceis de enganar, tais como são os motivos do interesse pessoal? Sem serem contrários aos princípios da nossa religião, esses motivos são suficientes para levar necessariamente os homens à virtude. (Disc. II, cap. 14, pp. 235, 236).

XI

Sobre que outra base... poder-se-ia apoiá-los? (Esses princípios da probidade) seria sobre os princípios das falsas religiões?... Não se a apoiará mais (a virtude) sobre os princípios da verdadeira religião. Não que a moral não seja excelente,... mas porque esses princípios apenas seriam convenientes a um pequeno número de cristãos espalhados sobre a terra. E que um filósofo que, nos seus escritos, é sempre considerado como falando ao universo, deve dar à virtude os fundamentos sobre os quais todas

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as nações possam igualmente construir e, por consequência, edificar sobre a base do interesse pessoal. (Disc. II, cap. 14, p. 131).

CENSURA

Essas proposições segundo as quais "os princípios da probidade

não podem ser apoiados na religião cristã, embora ela seja respeitável, mas sobre o fundamento do interesse pessoal (que não é outra coisa que a impressão do prazer dos sentidos, segundo a doutrina do autor já exposta). Seja porque é menos fácil de enganar a impressão que vem desses prazeres e porque, sem ser contrário aos princípios da religião cristã, ela é suficiente para induzir os homens à virtude. Seja porque os princípios da religião cristã apenas poderão convir a um pequeno número de cristãos espalhados por toda a terra e um filósofo, sempre suposto como falando ao universo, deve dar à virtude os fundamentos nos quais todas as nações possam igualmente construir, e por consequência, edificá-la sobre a base do interesse pessoal".

Essas proposições aliam um desprezo horrivel pela religião cristã com um respeito aparente por essa mesma religião. Elas destroem totalmente a moral do evangelho que está destinada pelo seu autor a esclarecer o universo. Elas são falsas, absurdas, ímpias, blasfematórias, inimigas de todas as religiõese e perniciosas aos bons costumes e à sociedade.

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SOBRE O GOVENO

I A igreja e os reis pensam que os homens estão uns em relação

aos outros, tal como no caso dos primeiros homens antes que tivessem formado sociedades e conhecessem outros direitos que a força e a sagacidade, que houvesse alguma convenção entre eles, alguma lei, alguma propriedade e que pudesse por consequência, haver algum roubo e alguma injustiça. (Disc. III, cap. 4, p. 279).

II

Cada nação... pode... se persuadir que a infração de um tratado que lhe é vantajoso violar é uma cláusula tácita em todos os tratados, que são na verdade simples tréguas... É evidente que cada nação pode mesmo se crer igualmente mais autorizada a essas conquistas que se chamam de injustas, não encontrando nada na garantia de, por exemplo, duas nações contra uma terceira. De igual modo, a segurança que um particular encontra na garantia de sua nação contra outro particular, esse tratado deve ser tanto menos sagrado quanto a execução é mais incerta. (Disc. III, cap. 4, pp. 279, 280).

III

Ele sabe (o público esclarecido) quanto é útil de tudo pensar e tudo dizer. (prefácio, p. 6).

Sempre se é forte num estado livre, onde o homem concebe os mais altos pensamentos e pode exprimi-los tão vivamente quanto os concebe. Não é assim nos estados monárquicos. Nesses países, o interesse de certos grupos, aquele de particulares poderosos e mais frequentemente ainda, uma falsa e exígua política, se opõe aos arrebatamentos do espírito. Seja quem for que nesses governos, se eleve até as grandes ideias, é com frequência forçado a silenciá-las, ou ao menos constrangido a trocar a força pela ambiguidade, obscuridade e fraqueza de expressão. Assim lord

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Chesterfield, numa carta endereçada ao senhor Abade de Guasco, diz, falando do autor do 'O Espírito das Leis': "É pena que o senhor presidente de Montesquieu, retido sem dúvida pelo receio do ministério, não tenha tido a coragem de tudo dizer. Sente-se bem, no geral, o que ele pensa sobre certos assuntos, mas ele não se exprime tão claramente e tão fortemente. A gente saberia bem melhor o que ele pensava se tivesse escrito em Londres e se tivesse nascido inglês". (Disc. IV, cap. 4, p. 518).

IV É com frequência apenas pela boca da licença que as queixas

dos oprimidos podem se elevar até o trono. (nota b relativa a esta proposição), "Não é, diz o poeta Saadi, a voz tímida dos ministros que deve levar à orelha dos reis as queixas dos infelizes. É preciso que o grito do povo possa dar-se a conhecer diretamente no trono". (Disc. II, cap. 6, p. 79).

V

Se vocês estivessem realmente animados (diz o autor aos moralistas que ele chama de hipócritas) desta paixão, (a paixão do bem público) a sua aversão por cada vício seria sempre proporcional ao mal que este vício faz à sociedade. E se a vista das faltas menos nocivas ao Estado fosse suficiente para lhes irritar... de qual desgosto seriam vocês afetados quando apercebessem qualquer imperfeição na Jurisprudência ou na distribuição dos impostos?... então, penetrados da mais viva dor, a exemplo de Nerva, nós os veríamos, detestando o dia que lhes transformou em testemunhas dos males da vossa pátria, vocês mesmos acabando com isso. Ou ao menos, a exemplo dos chineses virtuosos que, precisamente irritados pelas humilhações dos grandes, se apresentam ao imperador levando-lhe suas reclamações: Diz o queixoso: "Eu venho me oferecer ao suplício que iguais representações têm levado seiscentos de meus concidadãos. E te aviso para se preparar a novas execuções. A China possui ainda dezoito mil bons patriotas que, pela mesma causa, virão sucessivamente te requerer o mesmo castigo. A essas palavras ele se calou e o imperador admirado com a sua

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firmeza, lhe concede a recompensa mais lisonjeira para um homem virtuoso: a punição dos culpados e supressão dos impostos. (Disc. II, cap. 16, pp. 162, 163).

VI

Entre os antigos persas... o mais abjeto e o mais negligente de todos os povos, é permitido aos filósofos encarregados de inaugurar os príncipes, de lhes dizer essas palavras no dia do seu coroamento: "Saiba, ó rei, que tua autoridade cessará de ser legítima o dia mesmo que tu cessares de tornar os persas felizes. Verdade das qual Trajano parecia compenetrado". (Disc. III, cap. 17, p. 386).

VII Em que regiões do globo este amor virtuoso da pátria não tem

executado destas ações heróicas? Na China um imperador, perseguido pelas armas vitoriosas de um cidadão, quer se servir do respeito supersticioso que nesse país um filho tem pelas ordens de sua mãe, para obrigar esse cidadão a se desarmar. Mandado a esta mãe um oficial do imperador vem de punhal na mão lhe dizer que ela apenas tem a escolha de morrer ou obedecer. Responde-lhe ela com um sorriso amargo: "Teu mestre ficará lisonjeado que eu ignore as convenções tácitas, mas sagradas, que une os povos aos soberanos, pelas quais os povos se empenham de obedecer e os reis de lhes tornar felizes? Ele violou essas convenções por primeiro. Negligente executor das ordens de um tirano, aprende de uma mulher o que em semelhante caso se deve à pátria. "A essas palavras, arrancando o punhal das mãos do oficial ela se fere e lhe diz": "Escravo, se te resta ainda alguma virtude leva a meu filho esse punhal ensanguentado. E lhe diga para vingar sua nação e que ele puna o tirano. Ele não tem nada a temer por mim, nada mais a se preocupar. É agora é livre para ser virtuoso. Se o nobre orgulho, a paixão do patriotismo e a da glória determinam os cidadãos a ações tão corajosas, que constância e que força as paixões não inspiram, etc.... (Disc. III, cap. 6, pp. 300, 301).

VIII

Entre tantos romanos que se davam voluntariamente

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à morte, não são poucos os que para massacrar os tiranos, ousassem torná-la útil à pátria. Em vão, dir-se-ia, que a guarda que cercava todo o palácio da tirania lhes impedia o acesso. Era o medo dos suplícios que desarmava seus braços. (Disc. III, cap. 16, p. 450).

CENSURA

Essas proposições no que respeita ao que elas asseguram "que a igreja e os reis pensam que não há, entre os soberanos, outros direitos além da força e da sagacidade e que não pode haver nenhuma injustiça entre eles. Que a própria religião não forma dos tratados uma obrigação que ligue os príncipes e que a infração das convenções mais solenes é uma cláusula tácita em todos os tratados, todas as vezes que a utilidade se achar junto com a perfídia".

Essas proposições solapam o direito das gentes "comuns e necessárias" que não é diferente do direito natural. Destruindo a boa fé entre as potências contratantes, elas tornam as guerras intermináveis e suprimem todo o meio de manter a paz. São impudentemente caluniosas para com a igreja e os soberanos. E renovam a doutrina de Maquiavel.

Essas mesmas proposições no que respeita ao que elas declaram "que num Estado deve ser permitido a cada um pensar e dizer o que bom lhe parece; Que, quando o povo se crê tratado muito duramente, é necessário que seus gritos possam pela boca da licença penetrar diretamente até o trono; Que então, todo cidadão,

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animado pela paixão do bem público deve, sem ser detido pela magestade do trono, se apresentar ao soberano e cansá-lo com seus queixumes e suas censuras; Que nesse caso a autoridade dos príncipes cessa de ser legítima; Que então o nobre orgulho e a paixão da glória devem armar contra eles os seus súditos e até mesmo levá-los aos mais negros atentados".

Essas proposições abalam o direito político nos seus fundamentos. Perturbam a paz pública. Anulam o poder dos príncipes, chanchelada pela autoridade das leis naturais e divina

16. Arrancam do

coração dos súditos os sentimentos de respeito, obediência e de fidelidade devida ao seu príncipe. Excitam-lhes à facções, a sedições, à revolta e a desmedidos crimes. E levam abertamente à ruína completa do Estado e portanto, devem ser abominadas por todos os homens.

As proposições, além disso, que a pouco foram censuradas, não são as únicas repreensíveis no livro 'Do Espírito'. Aí se acha quase em todas as páginas e a própria

16

O santo concílio, desejando abolir, de alto a baixo, tais máximas, (que se pode suprimir a vida de um tirano, etc.) e posto em deliberação o assunto, declara tal doutrina cheia de erros na fé e nos costumes morais, condena-a como herética, escandalosa, introdutora de traições, sedições e perfídias e condena também a todos aqueles que obstinadamente a sustentam como heréticos e como tais puníveis segundo os santos decretos. Tradução do encarregado da França em 1615.

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faculdade de teologia tem relacionado um grande número que, sem que se tenha acreditado dever ser relatada, são merecedoras, assim mesmo, de fortes qualificações. Pode-se dividir em quatro classes principais a maior parte dessas proposições.

1º. Umas tem relação com as proposições que a faculdade vem condenar e exprimem ora menos claramente, ora em termos formais uma doutrina igualmente perniciosa. (Ver pp. 7, 8, 35, 148, 174, 206, 358, 359, 362, 554, 598, 599, 607, 608, etc.).

2º. Em outras são apresentados fatos controversos ou alterados como verdadeiros. Dá-se por certo coisas incertas e duvidosas, onde se diz que a igreja e os príncipes têm estabelecido o que eles jamais estabeleceram, que os santos doutores ensinaram o que sempre foi oposto aos seus sentimentos e essas exposições falsas e artificiosas são utilizadas para atacar a igreja, o governo, as leis, os bons costumes e a religião. (Ver pp. 138, 214, 225, 229, 233, 236, 468, etc .).

3º. Há muitas que contêm traços de obsenidade tão revoltantes que é preciso ter mais que uma impudência cínica para se comprazer em apresentá-las aos leitores. (Ver pp. 173, 186, 294, 390, 392, 411, 519, etc.).

4º. Há enfim várias onde o autor dá a

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entender o que não ousa dizer expressamente e essas alusões são tão ímpias e tão contrárias aos estados monárquicos que um homem que tem respeito por sua religião e amor pela sua pátria não pode, sem estremecer, discernir o sentido delas.

A faculdade de teologia não julgou ser conveniente censurar todas essas proposições em detalhes. Se deve à decência, ao Estado e à religião não se permitir desenvolver os horrores que contem em grande parte o livro e nem mesmo de se fazer extratos. Ademais uma condenação particular de todas essas proposições lhe pareceu inútil, após ter exposto e censurado as que contem o sistema do autor e os principais corolários do sistema.

Ela rejeita entretanto, todas essas espécies de proposições e tudo o que se encontra de condenável no trabalho, protestando que seu silêncio não deve e não pode ser olhado como uma aprovação do que ela não assinalou. A faculdade declara também, que condena

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o livro 'Do Espírito' como um trabalho dos mais detestáveis que já pode ter aparecido.

Faça o Deus de misericórdia que o autor que já se viu obrigado a fazer diversas retratações, reconheça sinceramente quanto ele terá de se afastar de suas leituras e das amizades que lhe têm estragado o espírito e corrompido o coração.

Faça o céu que ele renuncie a este orgulho insuportável que se manifesta em cada página do seu livro, que se separe para sempre de seus mestres que lhe têm seduzido e que abjure enfim, o que aprendeu com eles: "Que tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é santo e tudo o que é de edificação e de bom odor... seja o objeto de seus pensamentos e de suas ações". Que para uma vida penitente e exemplar ele repare, tanto quanto lhe seja possível, o escândalo que deu com o seu livro. "E que o Deus da paz esteja com ele".

De Mandato D. Decani & Magistrorum Sacrae Facultatis Parisiensis.

Herissant, Scriba

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