36
SUMÁRIO 1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS - CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL 1.1 - Breve histórico da violência institucionalizada 1.2 - Compreensão do contexto político, econômico e social 1.3 - Meios de comunicação e a propagação do discurso do medo como ferramenta de construção da política criminal 1.4 - Apropriação política do medo na sociedade de riscos 2. DIREITO PENAL DO INIMIGO E SEUS REFLEXOS NA POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA 2.1 - Direito penal do inimigo 2.2 - Estrutura constitucional do aparato de segurança pública 2.2 - Legislação penal e direito penal do autor 2.3 - população carcerária 3. CONCLUSÃO 3.1 Reformas institucionais 3.2 PEC 51/2013 – Desmilitarização da polícia militar 3.3 PL 7.270/2014 – Regulamentação da cadeia produtiva da Cannabis sativa

SUMÁRIO 1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS -CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL NO

Embed Size (px)

Citation preview

SUMÁRIO

1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS - CONSTRUÇÃO DA

POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL

1.1 - Breve histórico da violência

institucionalizada

1.2 - Compreensão do contexto político,

econômico e social

1.3 - Meios de comunicação e a propagação do

discurso do medo como ferramenta de construção

da política criminal

1.4 - Apropriação política do medo na

sociedade de riscos

2. DIREITO PENAL DO INIMIGO E SEUS REFLEXOS NA

POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA

2.1 - Direito penal do inimigo

2.2 - Estrutura constitucional do aparato de

segurança pública

2.2 - Legislação penal e direito penal do

autor

2.3 - população carcerária

3. CONCLUSÃO

3.1 Reformas institucionais3.2 PEC 51/2013 – Desmilitarização da polícia

militar3.3 PL 7.270/2014 – Regulamentação da cadeia

produtiva da Cannabis sativa

1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS – CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA

CRIMINAL NO BRASIL

Para compreendermos o atual sistema de política

criminal no Brasil, é necessário absorvermos as raízes da

sua construção. Para atingirmos este objetivo, esta

primeira parte do trabalho servirá para demonstrarmos

alguns elementos teóricos que, a nosso ver, subsidiam de

maneira clara esta compreensão. No decorrer desta primeira

parte, apresentamos os tópicos que consideramos relevantes

no cumprimento deste objetivo.

1.1 ESBOÇO HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONALIZADA COMO

MECANISMO DE DISSOLUÇÃO DE TENSÕES SOCIAIS NO BRASIL.

O sistema penal brasileiro, historicamente, tem

sido construído a partir de argumentos apoiados em

premissas deturpadas ao sabor daqueles que, direta ou

indiretamente, detem o controle do Estado. Este controle

estatal já se põe de maneira mais ou menos duvidosa. Seja

porque duvidosa é a legitimidade deste exercício, pois

atende a interesses que nem sempre se coadunam com os

interesses da nação, seja porque exercido de forma obscura

por forças encasteladas nas estrutura do poder estatal que

assumem certa influência junto aos governos.

Seja durante o período colonial, monárquico ou já

na República, em boa parte das etapas históricas da

formação do Estado brasileiro, a violência sempre foi a

resposta primeira (se não a única) a qualquer alteração na

constância com que o Estado foi se consolidando,

desprezando qualquer forma alternativa de solução de

conflitos entre governos e sociedade. Exemplo disso são a

Conjuração Mineira de 1789, que tinha por objetivo a

instauração de um governo republicano, tomando a

constituição dos Estados Unidos como modelo; Conjuração

Baiana de 1817, em que seus idealizadores desejavam a

autonomia do Brasil em relação a Portugal; e a Revolução

Pernambucana de 1817 que buscava igualmente instaurar uma

república cuja sede seria instalada em Recife. Estes

movimentos buscavam naquele momento a separação da colônia

do império lusitano, movimentos alimentados por um

sentimento (ainda que embrionário) de identidade nacional,

ainda que o pano de fundo das revoltas fosse o sufocamento

econômico provocado pela instalação da Coroa Portuguesa no

território de sua colônia. Igualmente durante a monarquia

que se instalou com a independência do Brasil frente a

Portugal, algumas insurreições eclodiram com o propósito de

libertação, dessa vez econômica, de territórios

estratégicos para o escoamento da produção econômica

brasileira. Embora o principal interesse fosse econômico,

havia ainda a pretensão separatista, desta vez em relação

ao governo monárquico que se conduzia pela regência

delegada, já que o rei Pedro de Alcântara estava

impossibilitado de governar, pois contava apenas cinco anos

de idade quando da abdicação do trono por D. Pedro I. Temos

no referido período, a título de exemplo: Cabanagem:

Segundo Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, “o levante

ocorrido no Pará entre os anos de 1835 e 1840 teve como

ponto de partida a divisão da elite paraense em torno da

nomeação do presidente da província. Contou com a adesão da

população pobre da província: indígenas, mestiços e negros

da região”. Participaram da Cabanagem, predominantemente

pessoas pertencentes às classes mais humildes da região e

“acabou fracassando pela traição de vários participantes,

pela falta de consenso entre seus líderes e pela

indefinição quanto aos rumos do governo da província. Foi

violentamente sufocado por tropas governamentais enviadas à

região, e, em 1840, o Pará foi ´pacificado´ à custa da

morte de 30 mil pessoas, perto de 20% da população total da

província.” (Vicentino e Dorigo, 2001). Outros movimentos

em que havia descontentamento com a situação vigente e cujo

avanço representava risco ao estado de estabilidade

política durante o período monárquico foram a Sabinada,

ocorrida na Bahia entre 1837 e 1838 e que não fugiu à

lógica da dissipação pela violência, em que milhares de

pessoas foram executadas; e a Balaiada, que se formou no

Maranhão entre 1838 e 1841 e teve seu líder Cosme Bento

enforcado em 1842, sob ordens do já Imperador D. Pedro II.

No período republicano não foi diferente. A

desigualdade social e regional fez eclodir diversas

revoltas que desembocaram em conflitos entre o povo e o

governo. Durante os primeiros anos deste período, ocorre o

conflito de Canudos, verdadeira guerra entre a população

sertaneja do Nordeste - concentradas na Bahia - e o

Exército. A revolta dos sertanejos foi provocada pela

injusta situação fundiária do Brasil e pela já histórica

situação de abandono a que os governos vinham relegado esta

região do país, forçando-os a uma vida de miséria e fome

provocadas pela seca. Embora tenha conseguido relativo

sucesso frente a várias investidas do Exército contra o

arraial estabelecido na antiga fazenda de Canudos, batizado

de aldeia de Belo Monte, os habitantes liderados por

Antonio Conselheiro sucumbiram em 5 de outubro de 1897.

Outras lutas sociais do período republicano (República

Velha) são: Revolta da Vacina (1904), Revolta da Chibata

(1910) e Revolta do Contestado (1914). Em 1964, o clima de

tensão mundial provocado pela chamada Guerra Fria, em que

dois sistemas político-econômicos - capitalismo e comunismo

- disputavam a hegemonia mundial, representados por Estados

Unidos e União Soviética respectivamente, estendeu seus

efeitos até o Brasil. Temerosos das reformas de base

anunciadas pelo presidente João Goulart, pelas quais o

governo pretendia ampliar a participação social nas

políticas públicas e, desta forma conceder aos

trabalhadores condições que naquele momento representariam

a afirmação do Brasil como uma nação forte, as Forças

Armadas instauram uma ditadura que durou 21 anos (1964-

1985). Durante este período qualquer oposição ao regime era

duramente reprimida pelos governos dos generais que

sucederam no poder sem eleições. Censura, torturas e

assassinatos a opositores são as maiores marcas deste

período. Movimentos organizados em guerrilhas foram sendo

montados numa tentativa frustrada de fazer frente à

repressão. Entre outros, destacam-se neste período os

líderes insurgentes Carlos Lamarca e Carlos Marighella; e

os movimentos guerrilheiros Aliança Libertadora Nacional

(ALN), Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8),

Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).

Nos anos 1990, destaca-se a atuação de movimentos

sociais organizados a partir da consciência de determinados

setores da sociedade de que a despeito de a Constituição de

1988 ter-lhes outorgado uma gama imensa de direitos

(notadamente direitos destinados a fortalecer a cidadania

da população) e da necessidade de mobilização de seus

integrantes na defesa daqueles direitos, o poder público

tem se mostrado omisso ou incapaz de garantir-lhes a

efetividade, muito em função da instabilidade política

decorrente de uma ditadura que durou duas décadas, passando

pelo período conturbado que representou o processo de

redemocratização, com a frustração do movimento Diretas Já,

e também da instabilidade econômica provocada por

sucessivos planos econômicos fracassados (terminando no

relativo sucesso do Plano Real) e principalmente pela

adoção de políticas neoliberais a partir dos primeiros anos

da década de 1990.

Esta lógica, de repressão movida à violência

institucionalizada pelo Estado Brasileiro a movimentos de

insatisfação surgidos no meio social é a regra no nosso

país. Atualmente, tem sido aplicada de maneira obscura,

para que aqueles a quem não convem que sejam atingidos pela

força cheguem mesmo a apoiá-la. Desta forma, a repressão

oficial ganha ares de legitimidade, como será demonstrado a

seguir. Entretanto, esta aparente legitimidade é construída

de maneira que se apresente sólida. Esta solidez,

entretanto, é apenas aparente.

Para percebermos esta estrutura que, ao que os

próximos tópicos demonstrarão resta falida e ultrapassada,

é necessário compreendermos as circunstâncias que

atualmente a envolvem. Para tanto, indispensável se torna a

compreensão dos fatores ordem social, econômica e política

que contribuem para a adoção deste sistema.

1.2 POLÍTICA CRIMINAL: COMPREENSÃO A PARTIR DO CONTEXTO

ECONÔMICO, POLÍTICO E SOCIAL

A fim de conhecermos a construção do modelo de

repressão criminal brasileiro e a política criminal que o

norteia, torna-se indispensável a apresentação de um

panorama a respeito do contexto político, econômico e

social em que o país se insere, pois a maneira como o

Estado se porta frente às demandas que lhe são apresentadas

e os fatores que dão origem a estas demandas estão

umbilicalmente conectados.

O processo conhecido como “globalização”, embora

não se tenha noção exata do momento histórico em que se

iniciou, decerto representa um estágio a ser considerado na

História e como tal, sua compreensão nos remete, para os

propósitos que se buscam atingir no presente trabalho, aos

fatores que representam o delineamento da estrutura

estatal.

Este processo (globalização) se caracteriza pelas

sucessivas revoluções tecnológicas que possibilitaram uma

maior facilidade na circulação da informação, tanto entre

cidadãos, como entre Estados

Com o fim da dicotomia capitalismo/comunismo, em

que a queda do Muro de Berlim, em 1989, representa um

episódio emblemático, o sistema capitalista de mercado teve

terreno vasto para tornar-se hegemônico e, a partir daí, a

corrente denominada Neoliberalismo, capitaneada por

Margareth Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (E.U.A.)

exerce enorme influência no Brasil, sob o primado da

desregulamentação da economia, redução de gastos

governamentais e de investimentos em áreas sociais, como

saúde, previdência e educação, e privatização de empresas

estatais.

O problema da adoção pura e simples da referida

teoria econômica, assim como qualquer medida que obedeça a

modelos prontos e acabados, é a desconsideração das

realidades de cada país, e a falta de adaptações

condizentes com suas peculiaridades. A implementação do

Neoliberalismo pelo Brasil no início dos anos 1990, embora

tenha tido o mérito de estabilizar a economia marcada

principalmente por taxas de inflação inimagináveis

atualmente, trouxe custos sociais que talvez a população

não estivesse pronta para assumir. O relativo sucesso no

campo econômico em países mais maduros politicamente, no

Brasil, que acabara de sair de um período traumático em que

perdurou um regime ditatorial de governo, revelou uma

encruzilhada para os mandatários eleitos: havia a

necessidade premente de estabilização da economia e a saída

encontrada foi uma política econômica que tornou refém o

Estado, obrigando-o a castrar a participação social nas

decisões do governo que optou por adotar ou manter posturas

como desregulamentação de mercados; regimes de metas que

provocaram desemprego; aumento da carga tributária –

penalizando os mais pobres – diminuição de investimentos na

área social, como saúde e previdência social; sucateamento

das universidades públicas; privatização de empresas

estatais de caráter estratégico para o desenvolvimento

nacional etc.

A este conjunto de fatores na economia globalizada

de uma nação, que diminui a margem de atuação dos

governantes na condução dos rumos do país, Zaffaroni chama

de fenômeno de poder, e aponta consequências sociais e

políticas. Para o jurista argentino:

A principal consequência social deste fenômeno de

poder é a geração de um amplo e crescente setor

excluído da economia. A relação explorador-explorado

foi substituída por uma não relação incluído-excluído. A

bibliografia especializada – especialmente a alemã

e a europeia em geral – fala com frequência da

brasileirização como generalização de um modelo com

20% de incluídos e 80% de excluídos (sociedade 20

por 80), que dá lugar a uma sociedade com guetos de

ricos fortificados em um mar de pobreza. Em

semelhante modelo praticamente não há espaços para

classes médias. O excluído não é o explorado: o

último é necessário ao sistema; o primeiro está

demais. Sua existência mesma é desnecessária e

molesta, é um descartável social.

Como já fora dito, os governos ficam reféns de umsistema em que o dever de suprir carências básicastraduzidas na Constituição Federal como DireitosFundamentais esbarram na necessidade de se manter umambiente propício à atração de investimentos estrangeiros,porque a quantidade de investidores sediados no país não ésuficiente, ou as condições oferecidas pelo Estado para queestes possam empreender enfrentam obstáculos de ordemtributária, dificuldade para conseguir financiamentosdestinados a investimentos, infraestrutura precária, o queabre portas para que o capital especulativo, que é volátil,seja uma das principais fontes de recursos para que oEstado produza divisas econômicas necessárias à manutençãoda máquina pública, o que o obriga a comprometer parcelasignificativa do seu orçamento, ano após ano, paraamortizar juros ou remunerar empréstimos contraídos atravésde lançamento, no mercado, de títulos da dívida pública.Nesse sentido, sustenta Zaffaroni que:

a principal consequência política da globalização éa impotência do poder político nacional frente aoeconômico globalizado. Isto se explica porque ospolíticos do primeiro mundo dos anos 80 cederam seupoder, renunciaram a exercê-lo e, com isso,liberaram forças econômicas que, ao se concentrarsupranacionalmente, não podem controlar nemregular. É dize que, existe um poder econômicoglobalizado, mas não existe uma sociedade globalnem tampouco organizações internacionais fortes emenos ainda um estado global.

Um dos principais reflexos que se revela como fenômenode poder é a acentuação de uma preexistente e já histórica

segregação social em que, de um lado se encontram aquelesque, desde sempre, conseguem se defender de criseseconômicas sem sofrer grandes perdas no seu potencial deconsumo e os que, também historicamente, acabam por pagar aconta de uma festa para a qual não foram convidados(trabalhadores assalariados, desempregados, negros,pobres), sobre cujos ombros recaem os prejuízos de umEstado social mínimo, traduzido em desemprego, tributaçãoregressiva e serviços públicos precários e ineficientes, eque são excluídos de uma sociedade de consumo.

É esta doutrina econômica de Estado mínimo, em que asprioridades do governo passam a ser a criação de umambiente propício à atração de investimentos derivados decapital especulativo em vez de capital produtivo, uma dasmarcas mais forte da globalização. Resiste-se a qualquertentativa de construção de um Estado de Bem-Estar Social(Welfare State), e quaisquer esforços que poderiam serempreendidos para a politização da sociedade, paraproporcionar a todos oportunidades igualitárias deprogresso e melhoria da qualidade de vida da população deforma equânime passam a ser empregados quase queexclusivamente para manter a lei e a ordem num país onde adesigualdade social cria bolsões de marginalidade,segregando a sociedade e dividindo-a em consumidores e nãoconsumidores. Esta posição é corroborada por Callegari eWermuth:

O contexto social no qual se produzem os novossentimentos de insegurança e consequente expansãodo Direito Penal coincide com o desmantelamento doEstado de Bem-Estar, que redunda em umadesigualdade social que cada vez mais se agudiza. Oprocesso de globalização coloca-se como ocontraponto das políticas do Welfare State, visto querepresenta uma lógica altamente concentradora,responsável pela exclusão de grandes contingentespopulacionais do mundo econômico, pelo desemprego epela precarização do mercado de trabalho.

A divisão social decorrente destas disfunções trazidaspela globalização, onde a inclusão ou exclusão social édefinida pela capacidade das pessoas serem ou nãoconsumidores, fez emergir no Brasil o que, segundo AndréLuís Callegari e Maiquel Ângelo Wermuth, Ulrich Beckclassifica como sociedade de risco, premindo da necessidadeda expansão das leis de caráter penal que assegurem amanutenção do Estado de polícia acima mencionado. CitandoBeck, Callegari e Wermuth explicam que:

O conceito de sociedade de risco, portanto, designaum estágio da modernidade em que começam a tomarcorpo as ameaças produzidas até então no caminho dasociedade industrial, impondo-se a necessidade deconsiderar a questão da autolimitação dodesenvolvimento que desencadeou essa realidade. Apotenciação dos riscos da modernização caracteriza,assim, a atual sociedade de risco, que está marcadapor ameaças e debilidades que projetam um futuroincerto.

O que origina, portanto, esta sociedade de risco, é ainsuficiência dos esforços praticados pelos governos paraatenderem a demandas as mais diversas surgidasprincipalmente, nos estratos sociais menos favorecidos,traduzidos basicamente em direitos básicos como saúde,educação, trabalho, moradia. Estes grupos sofrem anecessidade de atuação forte do Estado em forma depolíticas públicas que amenizem a situação devulnerabilidade daqueles grupos. Por outro lado, estaausência de um Estado provedor de serviços públicosessenciais àqueles que dele necessitam, cria um clima deinsegurança, principalmente dentro daqueles grupos que jáse encontram “incluídos” pela globalização na sociedade deconsumo, ou de lá nunca saíram, e passam a exigir, daquelemesmo Estado, atuação forte no sentido de propiciar ummodelo de segurança pública que garanta a manutenção do quepor eles foi conquistado naquela sociedade de consumo. Demodo que a marginalização de grupos esquecidos pelo Estado,

acuados e sem muita perspectiva e a necessidade dos“incluídos” de resposta estatal a sinais de tensão cria umaatmosfera de insegurança e incerteza. Zaffaroni reforçaeste entendimento:

Os sentimentos de incerteza produzidos pelaincapacidade das políticas públicas de atenderemnecessidades de uma convivência humana solidáriatêm gerado uma fragmentação da cidadania em escalaglobal, redundando na caracterização contemporâneada sociedade do risco mundial, especialmente nospaíses mais pobres, onde o almejado propósito deintegração e homogeneização, como eixo fundamentalda globalização, vem se tornando progressivamentecomprometido em razão da existência de problemascomplexos de desigualdades sociais e econômicas.[...] Desta forma, a sociedade do risco mundial comseu duplo problema, a saber: a exclusão social e aperigosa influência progressiva da insegurançasocial têm demonstrado ser profundamentepreocupantes.

Somando-se a isso, temos como agravante, acontinuidade de uma cultura política em que para darrespostas rápidas contra a sensação de insegurança, mantem-se dentro das forças oficiais de segurança (políciasmilitares e civis) métodos de “elucidação” de crimes (leia-se tortura) que remontam a períodos em que o Brasil viviasob a égide de regimes ditatoriais de governo. No entanto,respostas imediatistas causam efeito reverso. Longe deapaziguar o sentimento de insegurança, para Loic Wacquant,tais práticas, que vem acompanhadas da seletividade dosalvos que serão atingidos por este modus operandi, tem comoresultado apenas o agravamento da situação.

[...] a insegurança criminal no Brasil tem aparticularidade de não ser atenuada, masnitidamente agravada, pela intervenção das forças daordem. O uso rotineiro da violência letal pelapolícia militar e o recurso habitual à tortura porparte da polícia civil (através do uso da´pimentinha´ e do ´pau-de-arara´ para fazer

suspeitos ´confessarem´), as execuções sumárias eos ´desaparecimentos´ inexplicados gera um clima deterror entre as classes populares, que são seualvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado.

Neste ambiente de hostilidade, as forças de segurança(polícias civis e militares), muitas vezes o único sinal dapresença do Estado em pontos geográficos especificamentedeterminados pelos “departamentos de inteligência”,encontram-se numa situação paradoxal em que se tornam aomesmo tempo vítimas do aparato governamental e algozes dapopulação marginalizada pelo processo de globalização.

A polícia se torna vítima a partir do momento em que émal remunerada e mal preparada pelos governos para bemcumprir seu dever constitucional de proteção e vigilância.Se há aumento de investimento na polícia, isso se resume aoaumento quantitativo dos efetivos nas corporações,desacompanhado de investimentos que se traduzam emmelhorias nas suas condições de trabalho ou de saláriosdignos.

Concomitantemente, a polícia é também algoz quandoresume o cumprimento do seu mister ao emprego da violênciacontra as camadas hipossuficientes, desrespeitando direitosbásicos para cumprir metas determinadas por burocratas degabinete que não conhecem a realidade do enfrentamento aocrime nas ruas. Não faltam exemplos que ilustram essasituação. O ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza,detido na porta de casa na Favela da Rocinha, no Rio deJaneiro, por policiais militares quando chegava dotrabalho, até hoje com paradeiro desconhecido; ou o daauxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, baleadatambém por policiais quando descia a favela para comprarpão, e arrastada pelo camburão da PM por algumas centenasde metros, morrendo em seguida.

1.3 MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA E A PROPAGAÇÃO DA

CULTURA DO MEDO COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DO

SISTEMA PENAL

Os meios de comunicação de massa, especialmente o

rádio e a televisão aberta, exercem um papel fundamental na

formação e manutenção da atual sociedade de riscos em que

se vive hoje, e participam de maneira decisiva na

elaboração de políticas repressivas elaboradas pelo Estado

brasileiro para dar respostas aos “transtornos sociais”

frequentemente noticiados. Se por um lado, a globalização

facilitou universalmente o acesso da população aos mais

diversos meios de comunicação, por outro, provocou a

necessidade de filtros que aquela mesma população, na sua

maior parte, historicamente privada de uma educação escolar

de qualidade, talvez não tenha aprendido a fazer. Como uma

ditadura militar que durou mais de vinte anos nos ensinou -

por vias tortas, através da odiosa prática da censura

prévia - o valor de uma imprensa livre, não se deve em

qualquer momento sequer cogitar a volta do controle de

conteúdo, até mesmo porque a própria Constituição, em

linhas genéricas, assegura em seu artigo 5º, inciso IX que

“é livre a expressão da atividade intelectual, artística,

científica e de comunicação, independentemente de censura

ou licença” (grifo nosso), e especificamente no Capítulo

destinado a traçar as diretrizes gerais da Comunicação

Social, no art. 220 dispõe: “A manifestação do pensamento,

a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,

processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição,

observado o disposto nesta Constituição.” Cabe, portanto, à

população, que é o consumidor final do produto que lhe

chega aos lares através do rádio ou da televisão, depurar o

que lhe apraz do que não lhe é útil naquilo que lhe é dado

como informação.

Ocorre, porém, que a mídia extrapola os limites do bom

senso, e a liberdade de imprensa tem servido a interesses

outros, que não necessariamente bem informar os cidadãos. O

manto da livre expressão tem servido de pretexto para que

os meios de comunicação de massa passem a inundar sua

programação com programas policialescos de qualidade

duvidosa, geralmente exibidos em horários em que o

trabalhador, exausto depois de uma jornada intensa de

labor, e após enfrentar horas a fio dentro de um transporte

coletivo que não lhe oferece o mínimo de conforto, para

descansar liga a TV e depara com crimes de morte, rebeliões

em presídios, apreensão de grandes quantidades de drotas

etc. Este trabalhador, passa a crer, então, passa a crer,

que o que ocorre fora dos seus lares é um caos para o qual

não há solução, e desta forma as emissoras de televisão

impingem-lhe o medo da “criminalidade que assola o país”.

Nesse sentido, Callegari e Wermuth afirmam que:

Uma das características da sociedade globalizada é

a influência cada vez maior dos meios de

comunicação de massa nos processo de formação da

opinião sobre os mais diversos assuntos. Na

sociedade de consumo contemporânea, os meios de

comunicação são utilizados como mecanismos para

fomentar crenças, culturas e valores, de forma a

sustentar os interesses – invariavelmente

mercadológicos – que representam.

E citando Peter-Alexis Albrecht, sobre a cultura do

medo imposta à população, baseada em um conjunto de fatos

os mesmos autores prosseguem:

Nesse diapasão, a criminalidade, ou melhor, o medo

de tornar-se vítima de um delito, transforma-se em

mercadoria da indústria cultural, razão pela qual a

imagem pública dessa mercadoria é traçada de forma

espetacular e onipresente, superando, não raro, a

fronteira do que é passível de constatação empírica

(Albrecht, 2000).

Esta atuação da mídia funciona sempre se utilizando

dos mesmos mecanismos, sempre buscando os mesmos objetivos.

Veicula-se à exaustão os já mencionados programas

policialescos, concentrando-se esforços das equipes

jornalísticas sempre para a cobertura de crimes violentos

ou crimes contra o patrimônio praticados nos grandes

centros urbanos; apreensões recordes de grandes quantidades

de drogas; crimes de morte envolvendo menores de idade. Ou,

quando o crime repercute mais fortemente do que o comum,

explora-se a notícia e espetaculariza-se a cobertura dos

fatos que lhe deram origem (vide a cobertura

sensacionalista feita sobre os casos João Hélio e Isabella

Nardoni). A influência questionável se exerce e a cultura

do medo incute-se no inconsciente coletivo sempre com o

intuito de levantar as mesmas bandeiras: repressão mais

firme (entenda-se penas cada vez maiores) contra o agente

do delito, intensificação de política de guerra às drogas e

diminuição da maioridade penal são alguns exemplos.

Fosse apenas a baixa qualidade do que a TV e o rádio

nos trazem, talvez a solução estivesse simplesmente nas

mãos do telespectador/ouvinte, ao trocar de canal ou mudar

a estação. No entanto, a questão que se apresenta é mais

profunda. Ao alardear a notícia do crime, a mídia o faz

engendrando um clima de furor, de clamor social a partir de

representações que nem sempre condizem com a realidade, ou

extraindo o conjunto de fatos de um contexto amplo, sem

analisar questões de fundo, dando aos fatos que reportam,

em certa medida, dimensão maior do que eles tem. Desta

forma, fazem com que os seu público alvo julgue o todo por

uma parte, tome o efeito pelas causas, não reflita sobre a

origem da criminalidade. Interessa apenas que se mostre o

“assassino”, o “traficante”, o “menor”. Destarte, poupa-se

o cidadão “de bem” de refletir sobre quais são as

circunstâncias que cercam aquela gama de delitos

diariamente noticiadas. Esta postura é bem explicada por

Callegari e Wermuth:

As representações midiáticas dos ‘problemas

sociais’, assim, permitem, de acordo com a análise

de Bourdieu (1997), grandes ‘recortes’ na

realidade, de forma a apresentar ao público

consumidor apenas os fatos que interessem a todos

quais sejam, os fatos omnibus, que, por essa

característica, não dividem, mas, pelo contrário,

formam consensos, mas de um modo tal que não tocam

– como denunciado por Glassner – na essência do

problema. Trata-se, na perspectiva de Garland

(2005), de uma fusão imperceptível entre notícia e

entretenimento.

Isso desencadeia enorme influência no sistema penal,

uma vez que a busca incessante por altos níveis de

audiência (critério para atrair receita derivada de

propaganda) conduz as mídias a assumir determinadas

posturas em relação a reportagens sobre crimes nem sempre

dotadas da devida cautela, como “[...] transformar casos

absolutamente sui generis em paradigmas, aumentando, assim, o

catálogo dos medos e, consequentemente e de forma simplista

como convém a um discurso vendável, o clamor popular pelo

recrudescimento da intervenção punitiva”, segundo Callegari

e Wermuth, que exemplificam:

O caso Isabela Nardoni, no Brasil, bem ilustra a

forma como a mídia nacional explora o crime e a

criminalidade: o caso isolado de uma menina que foi

assassinada violentamente passou a ser visto como

uma forma de criminalidade bastante freqüente no

país e, mesmo contrariando a realidade objetiva –

visto que casos semelhantes são bastante raros no

país -, serviu como “espetáculo” midiático por mais

de dois meses consecutivos, espetáculo esse marcado

pelas pressões populares por justiça – leia-se

vingança – contra o pai e madrasta da menina,

acusados pela prática do crime.

Para dar ares de credibilidade a esta exposição

exploratória, cria-se um discurso midiático em que a falta

de qualquer embasamento teórico no que diz respeito às

reais causas da criminalidade é suprida por entrevistas em

que se indagam a especialistas de última hora, para

legitimar bravatas ao vivo e maquiar a real pretensão de

quem veicula a informação, qual seja, a busca desenfreada

pela audiência. Desta forma, citando Zaffaroni, Callegari e

Wermuth explicam que “Reveste-se, assim, o discurso leviano

da mídia com a autoridade dos especialistas, credenciados

pelo exercício profissional, pela academia, pela ocupação

de um cargo público, ou até mesmo por um episódio de vida

privada”.

Essa exacerbação do discurso midiático acerca do

crime, ao provocar na sociedade um medo além do

compreensível reflete-se na política e abre portas para o

surgimento de leis penais ou de programas de governo

propositalmente desconectados da realidade, elaboradas

muitas vezes sem o devido estudo criminológico que lhes

possam lastrear, e com o único intuito de “tranqüilizar”

uma população que exige do poder público respostas

imediatas a problemas cujas origens remontam à própria

história do Estado brasileiro.

Ao apropriarem-se do discurso do medo difundido pelas

grandes mídias, governantes e parlamentares constroem suas

plataformas de campanha, apoiados por aqueles meios de

comunicação e, uma vez eleitos, utilizam o receio

generalizado na sociedade como arma política na construção

de reformas penais que enfatizam, pura e simplesmente, o

papel punitivo do Estado, sem se questionar a real

efetividade de tais medidas, privilegiando muitas vezes o

encarceramento quando medidas alternativas já presentes no

ordenamento jurídico pátrio seriam suficientes para o

apaziguamento de tensões sociais. Concordamos, assim, com

Callegari e Wermuth (2010, p.52), que, nesse sentido,

apontam o seguinte:

Torna-se possível, assim, a afirmação de que o

fenômeno da expansão do Direito Penal também se

deve à busca incessante de resolução dos conflitos

sociais através de políticas populistas, isto é,

que servem para aplacar o clamor social, mas que

não apresentam qualquer resolução efetiva para o

problema. Os legisladores de plantão estão sempre

prontos com seus pacotes de medidas de resolução da

criminalidade que se traduzem, normalmente, em

aumento de penas e restrições de garantias.

Nesse sentido, o Direito Penal, em vez de cumprir sua

função primordial, qual seja, demonstrar, a partir de

exemplos concretos, “o propósito de criar no espírito dos

potenciais criminosos um contraestímulo suficientemente

forte para afastá-los da prática do crime” (prevenção

geral) e “intimidar o condenado para que ele não torne a

ofender a lei penal” (Masson, 2010) (prevenção específica),

antes disso, serve de instrumento de controle social em que

o alvo do aparato estatal, em sua quase totalidade se

resume aos estratos sociais marginalizados quando do

surgimento da já explicada sociedade de riscos (negros, pobres,

usuários de drogas), ou a grupos em que o Estado enxerga

ameaça à manutenção do capital político-eleitoral de que

gozam os mandatários. Utiliza-se, nesta ordem de fatores, o

Direito Penal desprezando-se sua característica de ultima

ratio e de fragmentariedade, passando a fazê-lo instrumento

de administração política das angústias hospedadas no corpo

social.

Percebe-se, portanto, nesta resposta estatal

desconectada da realidade, sinais claros de adoção da

doutrina denominada Direito Penal do Inimigo, desenvolvida

pelo jusfilósofo alemão Günther Jakobs, cujas diretrizes

gerais serão a diante identificadas em exemplos concretos

da legislação penal brasileira.

2. DIREITO PENAL DO INIMIGO

Levantadas as premissas necessárias à compreensão do

modelo de política criminal no Brasil, cumpre-nos apontar

as linhas gerais da teoria que, ao nosso entender, exerce

influência significativa na construção da legislação

criminal, servindo de orientação também à arquitetura das

forças de segurança pública no nosso país.

A teoria desenvolvida pelo penalista alemão Günther

Jakobs demonstra uma estrutura do direito penal

considerando que a sociedade globalizada passou por

transformações que exigem respostas que vão além do

expansionismo da intervenção penal, pois também a

criminalidade experimentou alterações substanciais contra

as quais os mecanismos de combate mostram-se insuficientes.

Na concepção de Jakobs, as transformações da sociedade

moderna provocaram uma divisão entre cidadãos e inimigos. Esta

divisão exige o surgimento de uma dicotomia conceitual,

compreendida pela coexistência de um Direito Penal do Cidadão e

de um Direito Penal do Inimigo, a partir da qual se encontre a

definição de autor que deverá servir de paradigma a ser

empregado nos métodos de punição, dada a evolução da

criminalidade, que o sistema convencional não foi capaz de

acompanhar. conforme nos trazem André Luís Callegari e

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, citando Luís Greco:

(...) o direito penal pode ver no autor um cidadão,

isto é, alguém que dispõe de uma esfera privada

livre do direito penal, na qual o direito só está

autorizado a intervir quando o comportamento do

autor representar uma perturbação exterior; ou pode

o direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é,

uma fonte de perigo para bens a serem protegidos,

alguém que não dispõe de qualquer esfera privada,

mas que pode ser responsabilizado até mesmo por

seus mais íntimos pensamentos.

No mesmo sentido, Zaffaroni explica que, para o

teórico alemão,

[...] o direito penal deveria habilitar o poder

punitivo de uma maneira para os cidadãos e de outra

para os inimigos, reservando o caráter de pessoa para

os primeiros e considerando não-pessoas os segundos,

confinando, porém, esta habilitação, num

compartimento estanque do direito penal, de modo

que todo o resto continue funcionando de acordo com

os princípios do direito penal liberal. Tratar-se-

ia de uma quarentena penal do inimigo.

Nesta ordem de ideias, portanto, o cidadão seria o

indivíduo desprovido do elemento volitivo que o faria

delinqüir de maneira, constante, habitual. Seria aquele

que, ainda que tenha cometido algum delito, “apresenta

garantias de que vai se administrar como pessoa da

sociedade e, ainda, atuar com total zelo ao Direito”1. O

inimigo, por sua vez, seria aquele que, ao se recusar a

viver em sociedade conforme as suas leis, abandonando o

1 SANTOS, Juarez Cirino dos. O Direito Penal do Inimigo – ou o discursodo direito penal desigual. Disponível em: <http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf>. Acesso em: 05 set. 2014.

Direito de forma permanente, abre mão do seu status de

cidadão.

O penalista alemão defende que não é papel do direito

penal preservar bens jurídicos, isto seria apenas um

reflexo do seu mister de manutenção da sociedade e da

coadunação dos diversos interesses nela expressos, o que só

seria possível quando da constante afirmação da força

coativa da norma penal, e nesta ordem, diferenciando o

cidadão que por um desvio de conduta que constitui um ponto

fora da curva na sua vida em sociedade comete um delito - e

ao qual deve ser aplicado o Direito Penal do Cidadão, para

que, oferecendo garantias de sua índole à sociedade repare

o dano causado – do inimigo, que delinque de forma habitual

e constante, negando a vigência da norma penal, e ao qual

deve ser aplicado o Direito Penal do Inimigo. Nessa ótica,

Luiz Flávio Gomes nos traz que, segundo Jakobs, os inimigos

seriam “criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes

organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações

penais perigosas”2, e descreve, ainda, qual o tratamento

deve ser dispensado aos inimigos:

o indivíduo que não admite ingressar no estado de

cidadania, não pode participar dos benefícios dos

conceitos de pessoa. O inimigo, por conseguinte,

não é um sujeito processual, logo, não pode contar com

direitos processuais, como por exemplo o de se

comunicar com o seu advogado constituído. Cabe ao

Estado não reconhecer seus direitos, “ainda que de

2 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo. Disponível em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/penal/direito_penal_inimigo_luiz_flavio_gomes.pdf acesso em 19.nov.2014

modo juridicamente ordenado – p. 45” (sic). Contra

ele não se justifica um procedimento penal (legal),

sim, um procedimento de guerra. Quem não oferece

segurança cognitiva suficiente de um comportamento

pessoal, não só não deve esperar ser tratado como

pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como

pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à

segurança das demais pessoas). (Gomes, ob. cit.,

p.1. Grifos do autor).

Sobre a negação do atributo da personalidade ao

inimigo, Zaffaroni comenta o seguinte:

A essência do tratamento diferenciado que se

atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega

sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o

aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a

ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a

distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-

pessoas), faz-se referência a seres humanos que são

privados de certos direitos individuais, motivo

pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e

esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação

do hostis, no direito, apresenta com relação ao

princípio do Estado de direito.

Günther Jakobs utiliza como argumento para defender a

negação da qualidade de pessoa ao inimigo, o fato de ele

obrigar o Estado a agir contra ele como se uma guerra fosse

travada entre ambos. E, desse modo, é justo que se negue ao

inimigo direitos básicos no seu tratamento penal. Porém,

segundo Zaffaroni:

[...] Jakobs argumenta que, ´embora o tratamento

com o inimigo seja a guerra, trata-se de uma guerra

estritamente delimitada´ em que só se priva o

inimigo do estritamente necessário para neutralizar

seu perigo, mas deixa aberta a porta para seu retorno

ou incorporação, mantendo-se todos os seus demais

direitos.

Este tratamento de guerra é elemento fundamental na

teoria do direito penal do inimigo, dado o contexto em que

o professor da Universidade de Bonn a desenvolveu. A

princípio um crítico do expansionismo ameaçador do direito

penal resultante do fenômeno da globalização, Jakobs passou

a defender medidas excepcionais em casos específicos para

reter aquele avanço, ou como explica Zaffaroni, “passou a

defender a necessidade de sua legitimação parcial como modo

de deter o crescimento do próprio direito penal do inimigo.”

(Zaffaroni, 2007, p. 157)

Esclareça-se, ainda, que a teoria foi formulada, a

princípio, como crítica ao expansionismo (como acima já

mencionado), mas passou a ser defendida pelo professor

alemão como modo de legitimar posturas antiterroristas,

sobretudo após o aumento vertiginoso dos atentados após o

ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001.

Denota-se claramente da essência da teoria do Direito

Penal do Inimigo a concepção de uma estrutura de direito

penal do autor. Não se cogitando a proteção, a partir da

norma penal, de bens jurídicos relevantes e merecedores de

tutela legal, admite-se, ao revés, a presunção absoluta de

periculosidade do indivíduo antecipadamente à sua conduta

delitiva, ao qual deverá ser atribuída não uma eventual

pena (retribuição estatal ao mal cometido), mas imposta a

devida medida de segurança (cerceamento de sua liberdade e

tolhimento de direitos em virtude do prejuízo que,

futuramente, ele poderá provocar) pelo simples fato de ser

ele, um potencial agente danoso à manutenção da sociedade,

ao qual se deve negar até mesmo, segundo a teoria, a

qualidade de pessoa. Nesta lógica,

O Direito penal do Inimigo irá se diferenciar do

modelo clássico do Direto (sic) Penal, principalmente

por suas características de enfrentamento aos

“inimigos” e segundo o posicionamento de Luis

Gracia Martin as principais características deste

modelo de direito pnal são: a) antecipação da

punibilidade com a tipificação de atos

preparatórios, criação de tipos de mera conduta e

perigo abstrato; b)desproporcionalidade das penas;

c) legislações, como nos explícitos casos europeus,

que se autodenominam de “leis de luta ou de

combate”; d)restrição de garantias penais e

processuais penais; e)determinadas regulações

penitenciárias ou de execução penal, como regime

disciplinar diferenciado adotado no Brasil.3

Explicadas as diretrizes gerais básicas da teoria

formulada por Günther Jakobs, pode-se afirmar que adotando:

a) como premissa maior, o discurso e a teoria apregoada por

Jakobs, admitindo que para o Estado atuar de forma eficaz

para fazer frente à cada vez mais acentuada evolução da

criminalidade é necessário distinguir entre aqueles que3 LEONELLO, Caroline; MARQUES, Fernando Tadeu; O direito penal do inimigo frente ao Estado Democrático de Direito. Disponível em http://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/jus_humanum/article/viewFile/27/17 acesso em 19.nov.2014

serão atingidos pelo direito penal do cidadão ou pelo direito penal

do inimigo, aceitando essa distinção como única solução

possível para a manutenção de uma sociedade globalizada e

dividida; b) como premissa menor a existência de uma

sociedade em que essa divisão é visível; teremos como

conclusão que ao Estado, qualquer esforço se justifica para

que o inimigo seja descartado da sociedade, até mesmo

negar-lhe o atributo de ser pessoa, subtraindo-lhe, assim,

direitos e garantias básicos para que este processo se dê

da maneira mais rápida e eficiente possível. Nesse sentido

é a lição de Callegari e Wermuth:

Legitima-se, pois, com base no discurso de Jakobs,

tudo aquilo que de alguma forma seja funcional para

a manutenção do sistema social formado,

independentemente das características por ele

apresentadas. Nesse sentido, qualquer ordem,

social, por mais injusta e/ou autoritária que seja,

pode legitimar-se, desde que o conjunto normativo

assim o preveja.

3. DIREITO PENAL DO INIMIGO – REFLEXOS NO BRASIL

O advento de políticas neoliberais no Brasil trouxe

consigo, além de dogmas no campo econômico, modelos de

respostas do sistema político ao problema da escalada da

criminalidade que os custos sociais de um Estado mínimo

provocaram. Estas respostas são condizentes com a visão

imposta à sociedade, e que por ela foi aceita, de que para

conter o avanço da criminalidade, deve-se enfrenta-la de

forma enérgica, ou seja, enrijecendo o sistema penal. Seria

necessário, segundo o presente raciocínio, a edição de leis

mais severas no tocante à aplicação de penas e regimes de

cumprimento, independentemente da relevância do bem

jurídico lesado ou posto sob perigo de lesão.

Essas políticas de endurecimento da legislação penal

sofreram notória influência do movimento de Lei e Ordem e

da política de Tolerância Zero, ambas desenvolvidas nos

E.U.A nas décadas de 70 e no início dos anos 90,

respectivamente. Estas políticas são baseadas na ideia da

máxima intervenção punitiva do Estado a qualquer crime, por

mais irrelevante que seja, sob o pretexto de que se deve

penalizar exemplarmente o menor delito para que o agente

seja desestimulado a praticar crimes mais graves e

construir uma trajetória de vida criminosa profissional.

Seguem, nos próximos tópicos, exemplos da influência

exercida pelas políticas acima mencionadas na legislação

brasileira.

3.1 TOLERÂNCIA ZERO E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS

A propalada política da Tolerância Zero, implantada

pelo então prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani exerceu

influência no Brasil com a criação da Lei nº 8.072/90 (Lei

de Crimes Hediondos).

Pode-se dizer que seria dos maiores exemplos da

política neoliberal de fortalecimento de um Estado policial

em detrimento de um Estado social, direcionado a exercer

uma justiça seletiva, pois direcionada a destinatários bem

definidos, quais sejam, os excluídos da sociedade de

consumo, a parcela da população não agraciada com os

benefícios de um progresso econômico que beneficiou somente

a uma minoria privilegiada. Nasceu da propagação do ideário

neoliberal, por meio da divulgação, por um grande instituto

de pesquisas (Manhattan Institute) ligado aos segmentos

conservadores da política nova-iorquina dedicados a

pesquisar e publicar soluções para problemas urbanos

baseados no livre mercado, do livro Restoring Order and

reducing Crime in Our Communities ["Consertando as vidraças

quebradas: como restaurar a ordem e reduzir o crime em

nossas comunidades"], que popularizou a teoria das

“vidraças quebradas” segundo a qual, “é lutando passo a

passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz

recuar as grandes patologias criminais”, adaptando o dito

popular “quem rouba um ovo, rouba um boi”. Segundo

Wacquant,

Essa teoria, jamais comprovadaempiricamente, serve de álibi criminológicopara a reorganização do trabalho policialempreendida por William Bratton,responsável pela segurança do metrô de NovaYork, promovido a chefe da políciamunicipal. O objetivo dessa reorganização;refrear o medo das classes médias esuperiores - as que votam - por meio daperseguição permanente dos pobres nosespaços públicos (ruas, parques, estaçõesferroviárias, ônibus e metrô etc.).

Wacquant nos explica, ainda, os pressupostos e arepercussão positiva dessas medidas:

De Nova York, a doutrina da “tolerânciazero”, instrumento de legitimação da gestãopolicial e judiciária da pobreza queincomoda – a que se vê, a que causaincidentes e desordens no espaço público,alimentando, por conseguinte, uma difusasensação de insegurança, ou simplesmente deincômodo tenaz e de inconveniência -,propagou-se através do globo a umavelocidade alucinante. E com ela a retóricamilitar da “guerra” ao crime e da"reconquista" do espaço público, queassimila os delinqüentes (reais ouimaginários), sem-teto, mendigos e outrosmarginais a invasores estrangeiros - o quefacilita o amálgama com a imigração, semprerendoso eleitoralmente.

Aureolado pelo lustro do "êxito" deNova York (exageradamente apresentada comoa metrópole-líder da criminalidadesubitamente transformada em exemplo das"cidades seguras" nos Estados Unidos, aopasso que estatisticamente jamais foi nemuma nem outra),24 esse tema proporciona aospolíticos de cada um dos paísesimportadores a oportunidade de dar ares de"modernidade" à paradoxal pirueta retóricaque lhes permite reafirmar com poucoprejuízo a determinação do Estado em puniros "distúrbios" e, ao mesmo tempo, isentaresse mesmo Estado de suas responsabilidadesna gênese social e econômica da insegurançapara chamar àresponsabilidade individual os habitantes daszonas incivilizadas", a quem incumbiriadoravante exercer por si mesmos um controlesocial próximo.

A influência da tolerância zero resultou, no Brasil,

na criação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90).

Esta lei foi editada para regulamentar o disposto no art.

5º., inciso XLIII, da Constituição Federal de 1988. Reza o

referido dispositivo que “a lei considerará crimes inafiançáveis e

insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por

eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se

omitirem”.

Criada de forma açodada para punir mais severamente os

crimes elencados no seu art. 1º, representa um claro

exemplo de medida emergencial, produto do expansionismo do

direito penal adotado como um remédio para atacar os

sintomas, ao invés das causas do aumento da criminalidade.

Suas providências representaram uma tentativa de

resposta do governo neoliberal que se instalara naquele

momento à onda de crimes violentos que se espraiava pelo

país. Mas não quaisquer crimes. Crimes que atingiam

sobretudo às classes economicamente mais fortes. Alguns

episódios que ilustram esta circunstância são os sequestros

do empresário Abílio Diniz, executivo do Grupo Pão de

Açúcar, em 11 de dezembro de 1989; e do publicitário

Roberto Medina, em 6 de junho de 1990.

Exemplo da influência nefasta exercida pela mídia

sobre o Estado, em semelhança à gênese da tolerância zero

nova-iorquina, foi a modificação na redação legal em

virtude da grande comoção popular causada pelo assassinato

da atriz Daniella Perez, em 1994. Sua mãe, a autora de

novelas Glória Perez, encabeçou uma campanha, apoiada

massivamente pela emissora em que trabalhava, o que

resultou na mudança na redação da lei por emenda popular

para incluir no rol dos crimes definidos como hediondos o

homicídio qualificado.

Com medidas repressivistas na redação originária da

lei, prevendo o cumprimento da pena integralmente em regime

fechado (redação alterada em 2007, prevendo a progressão de

regime) e a vedação à concessão de anistia, graça, indulto

e fiança, buscou-se dar uma satisfação à sociedade,

buscando mostrar-lhe que o Estado brasileiro, ao enfatizar

o papel punitivo através de normas inclementes para com a

delinquência, estava sensível ao seu clamor, enfatizando o

papel punitivo estatal sem qualquer rigor científico. Nas

palavras de Francisco Assis Toledo, citado por Alberto da

Silva Franco:

A lei 8.072/90, na linha dos pressupostosideológicos e dos valores consagrados peloMovimento da Lei e da Ordem, deu suporte à idéia deque leis de extrema severidade e penas privativasde alto calibre são suficientes para pôr cobro ácriminalidade violenta. Nada mais ilusório.Avaliando os efeitos da lei 8.072/90, WalterFranganiello Maierovitch salientou que acriminalidade aumentou. ‘As extorsões medianteseqüestro se vulgarizaram’ e ‘a adicção, nometécnico dado à dependência de drogas, cresceu deforma alarmante’. Na nova lei, as penas foramaumentadas e previsto o cumprimento integral empenitenciárias. Criou-se, também, formas de direitopremial a contemplar co-autores e participantes,eufemisticamente denominados ‘arrependidos’,prestadores de auxílio ao resgate de seqüestradosou no desbaratamento de quadrilhas, e nadaadiantou.As conseqüências de uma guerra sem quartel, contradeterminados delitos e certas categorias dedelinqüentes, serviram para estiolar direitos egarantias constitucionais e para deteriorar opróprio direito penal liberal, dando-se azo a

incrível convivência, em plenoEstado Democrático de Direito, de um Direito Penalautoritário.4

3.2 A POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS

4 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 4ª edição. Editora RT. 2000.p. 97- 99