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SUMÁRIO
1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS - CONSTRUÇÃO DA
POLÍTICA CRIMINAL NO BRASIL
1.1 - Breve histórico da violência
institucionalizada
1.2 - Compreensão do contexto político,
econômico e social
1.3 - Meios de comunicação e a propagação do
discurso do medo como ferramenta de construção
da política criminal
1.4 - Apropriação política do medo na
sociedade de riscos
2. DIREITO PENAL DO INIMIGO E SEUS REFLEXOS NA
POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA
2.1 - Direito penal do inimigo
2.2 - Estrutura constitucional do aparato de
segurança pública
2.2 - Legislação penal e direito penal do
autor
2.3 - população carcerária
3. CONCLUSÃO
3.1 Reformas institucionais3.2 PEC 51/2013 – Desmilitarização da polícia
militar3.3 PL 7.270/2014 – Regulamentação da cadeia
produtiva da Cannabis sativa
1. LEVANTAMENTO DE PREMISSAS – CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA
CRIMINAL NO BRASIL
Para compreendermos o atual sistema de política
criminal no Brasil, é necessário absorvermos as raízes da
sua construção. Para atingirmos este objetivo, esta
primeira parte do trabalho servirá para demonstrarmos
alguns elementos teóricos que, a nosso ver, subsidiam de
maneira clara esta compreensão. No decorrer desta primeira
parte, apresentamos os tópicos que consideramos relevantes
no cumprimento deste objetivo.
1.1 ESBOÇO HISTÓRICO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONALIZADA COMO
MECANISMO DE DISSOLUÇÃO DE TENSÕES SOCIAIS NO BRASIL.
O sistema penal brasileiro, historicamente, tem
sido construído a partir de argumentos apoiados em
premissas deturpadas ao sabor daqueles que, direta ou
indiretamente, detem o controle do Estado. Este controle
estatal já se põe de maneira mais ou menos duvidosa. Seja
porque duvidosa é a legitimidade deste exercício, pois
atende a interesses que nem sempre se coadunam com os
interesses da nação, seja porque exercido de forma obscura
por forças encasteladas nas estrutura do poder estatal que
assumem certa influência junto aos governos.
Seja durante o período colonial, monárquico ou já
na República, em boa parte das etapas históricas da
formação do Estado brasileiro, a violência sempre foi a
resposta primeira (se não a única) a qualquer alteração na
constância com que o Estado foi se consolidando,
desprezando qualquer forma alternativa de solução de
conflitos entre governos e sociedade. Exemplo disso são a
Conjuração Mineira de 1789, que tinha por objetivo a
instauração de um governo republicano, tomando a
constituição dos Estados Unidos como modelo; Conjuração
Baiana de 1817, em que seus idealizadores desejavam a
autonomia do Brasil em relação a Portugal; e a Revolução
Pernambucana de 1817 que buscava igualmente instaurar uma
república cuja sede seria instalada em Recife. Estes
movimentos buscavam naquele momento a separação da colônia
do império lusitano, movimentos alimentados por um
sentimento (ainda que embrionário) de identidade nacional,
ainda que o pano de fundo das revoltas fosse o sufocamento
econômico provocado pela instalação da Coroa Portuguesa no
território de sua colônia. Igualmente durante a monarquia
que se instalou com a independência do Brasil frente a
Portugal, algumas insurreições eclodiram com o propósito de
libertação, dessa vez econômica, de territórios
estratégicos para o escoamento da produção econômica
brasileira. Embora o principal interesse fosse econômico,
havia ainda a pretensão separatista, desta vez em relação
ao governo monárquico que se conduzia pela regência
delegada, já que o rei Pedro de Alcântara estava
impossibilitado de governar, pois contava apenas cinco anos
de idade quando da abdicação do trono por D. Pedro I. Temos
no referido período, a título de exemplo: Cabanagem:
Segundo Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, “o levante
ocorrido no Pará entre os anos de 1835 e 1840 teve como
ponto de partida a divisão da elite paraense em torno da
nomeação do presidente da província. Contou com a adesão da
população pobre da província: indígenas, mestiços e negros
da região”. Participaram da Cabanagem, predominantemente
pessoas pertencentes às classes mais humildes da região e
“acabou fracassando pela traição de vários participantes,
pela falta de consenso entre seus líderes e pela
indefinição quanto aos rumos do governo da província. Foi
violentamente sufocado por tropas governamentais enviadas à
região, e, em 1840, o Pará foi ´pacificado´ à custa da
morte de 30 mil pessoas, perto de 20% da população total da
província.” (Vicentino e Dorigo, 2001). Outros movimentos
em que havia descontentamento com a situação vigente e cujo
avanço representava risco ao estado de estabilidade
política durante o período monárquico foram a Sabinada,
ocorrida na Bahia entre 1837 e 1838 e que não fugiu à
lógica da dissipação pela violência, em que milhares de
pessoas foram executadas; e a Balaiada, que se formou no
Maranhão entre 1838 e 1841 e teve seu líder Cosme Bento
enforcado em 1842, sob ordens do já Imperador D. Pedro II.
No período republicano não foi diferente. A
desigualdade social e regional fez eclodir diversas
revoltas que desembocaram em conflitos entre o povo e o
governo. Durante os primeiros anos deste período, ocorre o
conflito de Canudos, verdadeira guerra entre a população
sertaneja do Nordeste - concentradas na Bahia - e o
Exército. A revolta dos sertanejos foi provocada pela
injusta situação fundiária do Brasil e pela já histórica
situação de abandono a que os governos vinham relegado esta
região do país, forçando-os a uma vida de miséria e fome
provocadas pela seca. Embora tenha conseguido relativo
sucesso frente a várias investidas do Exército contra o
arraial estabelecido na antiga fazenda de Canudos, batizado
de aldeia de Belo Monte, os habitantes liderados por
Antonio Conselheiro sucumbiram em 5 de outubro de 1897.
Outras lutas sociais do período republicano (República
Velha) são: Revolta da Vacina (1904), Revolta da Chibata
(1910) e Revolta do Contestado (1914). Em 1964, o clima de
tensão mundial provocado pela chamada Guerra Fria, em que
dois sistemas político-econômicos - capitalismo e comunismo
- disputavam a hegemonia mundial, representados por Estados
Unidos e União Soviética respectivamente, estendeu seus
efeitos até o Brasil. Temerosos das reformas de base
anunciadas pelo presidente João Goulart, pelas quais o
governo pretendia ampliar a participação social nas
políticas públicas e, desta forma conceder aos
trabalhadores condições que naquele momento representariam
a afirmação do Brasil como uma nação forte, as Forças
Armadas instauram uma ditadura que durou 21 anos (1964-
1985). Durante este período qualquer oposição ao regime era
duramente reprimida pelos governos dos generais que
sucederam no poder sem eleições. Censura, torturas e
assassinatos a opositores são as maiores marcas deste
período. Movimentos organizados em guerrilhas foram sendo
montados numa tentativa frustrada de fazer frente à
repressão. Entre outros, destacam-se neste período os
líderes insurgentes Carlos Lamarca e Carlos Marighella; e
os movimentos guerrilheiros Aliança Libertadora Nacional
(ALN), Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8),
Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
Nos anos 1990, destaca-se a atuação de movimentos
sociais organizados a partir da consciência de determinados
setores da sociedade de que a despeito de a Constituição de
1988 ter-lhes outorgado uma gama imensa de direitos
(notadamente direitos destinados a fortalecer a cidadania
da população) e da necessidade de mobilização de seus
integrantes na defesa daqueles direitos, o poder público
tem se mostrado omisso ou incapaz de garantir-lhes a
efetividade, muito em função da instabilidade política
decorrente de uma ditadura que durou duas décadas, passando
pelo período conturbado que representou o processo de
redemocratização, com a frustração do movimento Diretas Já,
e também da instabilidade econômica provocada por
sucessivos planos econômicos fracassados (terminando no
relativo sucesso do Plano Real) e principalmente pela
adoção de políticas neoliberais a partir dos primeiros anos
da década de 1990.
Esta lógica, de repressão movida à violência
institucionalizada pelo Estado Brasileiro a movimentos de
insatisfação surgidos no meio social é a regra no nosso
país. Atualmente, tem sido aplicada de maneira obscura,
para que aqueles a quem não convem que sejam atingidos pela
força cheguem mesmo a apoiá-la. Desta forma, a repressão
oficial ganha ares de legitimidade, como será demonstrado a
seguir. Entretanto, esta aparente legitimidade é construída
de maneira que se apresente sólida. Esta solidez,
entretanto, é apenas aparente.
Para percebermos esta estrutura que, ao que os
próximos tópicos demonstrarão resta falida e ultrapassada,
é necessário compreendermos as circunstâncias que
atualmente a envolvem. Para tanto, indispensável se torna a
compreensão dos fatores ordem social, econômica e política
que contribuem para a adoção deste sistema.
1.2 POLÍTICA CRIMINAL: COMPREENSÃO A PARTIR DO CONTEXTO
ECONÔMICO, POLÍTICO E SOCIAL
A fim de conhecermos a construção do modelo de
repressão criminal brasileiro e a política criminal que o
norteia, torna-se indispensável a apresentação de um
panorama a respeito do contexto político, econômico e
social em que o país se insere, pois a maneira como o
Estado se porta frente às demandas que lhe são apresentadas
e os fatores que dão origem a estas demandas estão
umbilicalmente conectados.
O processo conhecido como “globalização”, embora
não se tenha noção exata do momento histórico em que se
iniciou, decerto representa um estágio a ser considerado na
História e como tal, sua compreensão nos remete, para os
propósitos que se buscam atingir no presente trabalho, aos
fatores que representam o delineamento da estrutura
estatal.
Este processo (globalização) se caracteriza pelas
sucessivas revoluções tecnológicas que possibilitaram uma
maior facilidade na circulação da informação, tanto entre
cidadãos, como entre Estados
Com o fim da dicotomia capitalismo/comunismo, em
que a queda do Muro de Berlim, em 1989, representa um
episódio emblemático, o sistema capitalista de mercado teve
terreno vasto para tornar-se hegemônico e, a partir daí, a
corrente denominada Neoliberalismo, capitaneada por
Margareth Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (E.U.A.)
exerce enorme influência no Brasil, sob o primado da
desregulamentação da economia, redução de gastos
governamentais e de investimentos em áreas sociais, como
saúde, previdência e educação, e privatização de empresas
estatais.
O problema da adoção pura e simples da referida
teoria econômica, assim como qualquer medida que obedeça a
modelos prontos e acabados, é a desconsideração das
realidades de cada país, e a falta de adaptações
condizentes com suas peculiaridades. A implementação do
Neoliberalismo pelo Brasil no início dos anos 1990, embora
tenha tido o mérito de estabilizar a economia marcada
principalmente por taxas de inflação inimagináveis
atualmente, trouxe custos sociais que talvez a população
não estivesse pronta para assumir. O relativo sucesso no
campo econômico em países mais maduros politicamente, no
Brasil, que acabara de sair de um período traumático em que
perdurou um regime ditatorial de governo, revelou uma
encruzilhada para os mandatários eleitos: havia a
necessidade premente de estabilização da economia e a saída
encontrada foi uma política econômica que tornou refém o
Estado, obrigando-o a castrar a participação social nas
decisões do governo que optou por adotar ou manter posturas
como desregulamentação de mercados; regimes de metas que
provocaram desemprego; aumento da carga tributária –
penalizando os mais pobres – diminuição de investimentos na
área social, como saúde e previdência social; sucateamento
das universidades públicas; privatização de empresas
estatais de caráter estratégico para o desenvolvimento
nacional etc.
A este conjunto de fatores na economia globalizada
de uma nação, que diminui a margem de atuação dos
governantes na condução dos rumos do país, Zaffaroni chama
de fenômeno de poder, e aponta consequências sociais e
políticas. Para o jurista argentino:
A principal consequência social deste fenômeno de
poder é a geração de um amplo e crescente setor
excluído da economia. A relação explorador-explorado
foi substituída por uma não relação incluído-excluído. A
bibliografia especializada – especialmente a alemã
e a europeia em geral – fala com frequência da
brasileirização como generalização de um modelo com
20% de incluídos e 80% de excluídos (sociedade 20
por 80), que dá lugar a uma sociedade com guetos de
ricos fortificados em um mar de pobreza. Em
semelhante modelo praticamente não há espaços para
classes médias. O excluído não é o explorado: o
último é necessário ao sistema; o primeiro está
demais. Sua existência mesma é desnecessária e
molesta, é um descartável social.
Como já fora dito, os governos ficam reféns de umsistema em que o dever de suprir carências básicastraduzidas na Constituição Federal como DireitosFundamentais esbarram na necessidade de se manter umambiente propício à atração de investimentos estrangeiros,porque a quantidade de investidores sediados no país não ésuficiente, ou as condições oferecidas pelo Estado para queestes possam empreender enfrentam obstáculos de ordemtributária, dificuldade para conseguir financiamentosdestinados a investimentos, infraestrutura precária, o queabre portas para que o capital especulativo, que é volátil,seja uma das principais fontes de recursos para que oEstado produza divisas econômicas necessárias à manutençãoda máquina pública, o que o obriga a comprometer parcelasignificativa do seu orçamento, ano após ano, paraamortizar juros ou remunerar empréstimos contraídos atravésde lançamento, no mercado, de títulos da dívida pública.Nesse sentido, sustenta Zaffaroni que:
a principal consequência política da globalização éa impotência do poder político nacional frente aoeconômico globalizado. Isto se explica porque ospolíticos do primeiro mundo dos anos 80 cederam seupoder, renunciaram a exercê-lo e, com isso,liberaram forças econômicas que, ao se concentrarsupranacionalmente, não podem controlar nemregular. É dize que, existe um poder econômicoglobalizado, mas não existe uma sociedade globalnem tampouco organizações internacionais fortes emenos ainda um estado global.
Um dos principais reflexos que se revela como fenômenode poder é a acentuação de uma preexistente e já histórica
segregação social em que, de um lado se encontram aquelesque, desde sempre, conseguem se defender de criseseconômicas sem sofrer grandes perdas no seu potencial deconsumo e os que, também historicamente, acabam por pagar aconta de uma festa para a qual não foram convidados(trabalhadores assalariados, desempregados, negros,pobres), sobre cujos ombros recaem os prejuízos de umEstado social mínimo, traduzido em desemprego, tributaçãoregressiva e serviços públicos precários e ineficientes, eque são excluídos de uma sociedade de consumo.
É esta doutrina econômica de Estado mínimo, em que asprioridades do governo passam a ser a criação de umambiente propício à atração de investimentos derivados decapital especulativo em vez de capital produtivo, uma dasmarcas mais forte da globalização. Resiste-se a qualquertentativa de construção de um Estado de Bem-Estar Social(Welfare State), e quaisquer esforços que poderiam serempreendidos para a politização da sociedade, paraproporcionar a todos oportunidades igualitárias deprogresso e melhoria da qualidade de vida da população deforma equânime passam a ser empregados quase queexclusivamente para manter a lei e a ordem num país onde adesigualdade social cria bolsões de marginalidade,segregando a sociedade e dividindo-a em consumidores e nãoconsumidores. Esta posição é corroborada por Callegari eWermuth:
O contexto social no qual se produzem os novossentimentos de insegurança e consequente expansãodo Direito Penal coincide com o desmantelamento doEstado de Bem-Estar, que redunda em umadesigualdade social que cada vez mais se agudiza. Oprocesso de globalização coloca-se como ocontraponto das políticas do Welfare State, visto querepresenta uma lógica altamente concentradora,responsável pela exclusão de grandes contingentespopulacionais do mundo econômico, pelo desemprego epela precarização do mercado de trabalho.
A divisão social decorrente destas disfunções trazidaspela globalização, onde a inclusão ou exclusão social édefinida pela capacidade das pessoas serem ou nãoconsumidores, fez emergir no Brasil o que, segundo AndréLuís Callegari e Maiquel Ângelo Wermuth, Ulrich Beckclassifica como sociedade de risco, premindo da necessidadeda expansão das leis de caráter penal que assegurem amanutenção do Estado de polícia acima mencionado. CitandoBeck, Callegari e Wermuth explicam que:
O conceito de sociedade de risco, portanto, designaum estágio da modernidade em que começam a tomarcorpo as ameaças produzidas até então no caminho dasociedade industrial, impondo-se a necessidade deconsiderar a questão da autolimitação dodesenvolvimento que desencadeou essa realidade. Apotenciação dos riscos da modernização caracteriza,assim, a atual sociedade de risco, que está marcadapor ameaças e debilidades que projetam um futuroincerto.
O que origina, portanto, esta sociedade de risco, é ainsuficiência dos esforços praticados pelos governos paraatenderem a demandas as mais diversas surgidasprincipalmente, nos estratos sociais menos favorecidos,traduzidos basicamente em direitos básicos como saúde,educação, trabalho, moradia. Estes grupos sofrem anecessidade de atuação forte do Estado em forma depolíticas públicas que amenizem a situação devulnerabilidade daqueles grupos. Por outro lado, estaausência de um Estado provedor de serviços públicosessenciais àqueles que dele necessitam, cria um clima deinsegurança, principalmente dentro daqueles grupos que jáse encontram “incluídos” pela globalização na sociedade deconsumo, ou de lá nunca saíram, e passam a exigir, daquelemesmo Estado, atuação forte no sentido de propiciar ummodelo de segurança pública que garanta a manutenção do quepor eles foi conquistado naquela sociedade de consumo. Demodo que a marginalização de grupos esquecidos pelo Estado,
acuados e sem muita perspectiva e a necessidade dos“incluídos” de resposta estatal a sinais de tensão cria umaatmosfera de insegurança e incerteza. Zaffaroni reforçaeste entendimento:
Os sentimentos de incerteza produzidos pelaincapacidade das políticas públicas de atenderemnecessidades de uma convivência humana solidáriatêm gerado uma fragmentação da cidadania em escalaglobal, redundando na caracterização contemporâneada sociedade do risco mundial, especialmente nospaíses mais pobres, onde o almejado propósito deintegração e homogeneização, como eixo fundamentalda globalização, vem se tornando progressivamentecomprometido em razão da existência de problemascomplexos de desigualdades sociais e econômicas.[...] Desta forma, a sociedade do risco mundial comseu duplo problema, a saber: a exclusão social e aperigosa influência progressiva da insegurançasocial têm demonstrado ser profundamentepreocupantes.
Somando-se a isso, temos como agravante, acontinuidade de uma cultura política em que para darrespostas rápidas contra a sensação de insegurança, mantem-se dentro das forças oficiais de segurança (políciasmilitares e civis) métodos de “elucidação” de crimes (leia-se tortura) que remontam a períodos em que o Brasil viviasob a égide de regimes ditatoriais de governo. No entanto,respostas imediatistas causam efeito reverso. Longe deapaziguar o sentimento de insegurança, para Loic Wacquant,tais práticas, que vem acompanhadas da seletividade dosalvos que serão atingidos por este modus operandi, tem comoresultado apenas o agravamento da situação.
[...] a insegurança criminal no Brasil tem aparticularidade de não ser atenuada, masnitidamente agravada, pela intervenção das forças daordem. O uso rotineiro da violência letal pelapolícia militar e o recurso habitual à tortura porparte da polícia civil (através do uso da´pimentinha´ e do ´pau-de-arara´ para fazer
suspeitos ´confessarem´), as execuções sumárias eos ´desaparecimentos´ inexplicados gera um clima deterror entre as classes populares, que são seualvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado.
Neste ambiente de hostilidade, as forças de segurança(polícias civis e militares), muitas vezes o único sinal dapresença do Estado em pontos geográficos especificamentedeterminados pelos “departamentos de inteligência”,encontram-se numa situação paradoxal em que se tornam aomesmo tempo vítimas do aparato governamental e algozes dapopulação marginalizada pelo processo de globalização.
A polícia se torna vítima a partir do momento em que émal remunerada e mal preparada pelos governos para bemcumprir seu dever constitucional de proteção e vigilância.Se há aumento de investimento na polícia, isso se resume aoaumento quantitativo dos efetivos nas corporações,desacompanhado de investimentos que se traduzam emmelhorias nas suas condições de trabalho ou de saláriosdignos.
Concomitantemente, a polícia é também algoz quandoresume o cumprimento do seu mister ao emprego da violênciacontra as camadas hipossuficientes, desrespeitando direitosbásicos para cumprir metas determinadas por burocratas degabinete que não conhecem a realidade do enfrentamento aocrime nas ruas. Não faltam exemplos que ilustram essasituação. O ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza,detido na porta de casa na Favela da Rocinha, no Rio deJaneiro, por policiais militares quando chegava dotrabalho, até hoje com paradeiro desconhecido; ou o daauxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, baleadatambém por policiais quando descia a favela para comprarpão, e arrastada pelo camburão da PM por algumas centenasde metros, morrendo em seguida.
1.3 MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA E A PROPAGAÇÃO DA
CULTURA DO MEDO COMO INSTRUMENTO DE CONSTRUÇÃO DO
SISTEMA PENAL
Os meios de comunicação de massa, especialmente o
rádio e a televisão aberta, exercem um papel fundamental na
formação e manutenção da atual sociedade de riscos em que
se vive hoje, e participam de maneira decisiva na
elaboração de políticas repressivas elaboradas pelo Estado
brasileiro para dar respostas aos “transtornos sociais”
frequentemente noticiados. Se por um lado, a globalização
facilitou universalmente o acesso da população aos mais
diversos meios de comunicação, por outro, provocou a
necessidade de filtros que aquela mesma população, na sua
maior parte, historicamente privada de uma educação escolar
de qualidade, talvez não tenha aprendido a fazer. Como uma
ditadura militar que durou mais de vinte anos nos ensinou -
por vias tortas, através da odiosa prática da censura
prévia - o valor de uma imprensa livre, não se deve em
qualquer momento sequer cogitar a volta do controle de
conteúdo, até mesmo porque a própria Constituição, em
linhas genéricas, assegura em seu artigo 5º, inciso IX que
“é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença” (grifo nosso), e especificamente no Capítulo
destinado a traçar as diretrizes gerais da Comunicação
Social, no art. 220 dispõe: “A manifestação do pensamento,
a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição.” Cabe, portanto, à
população, que é o consumidor final do produto que lhe
chega aos lares através do rádio ou da televisão, depurar o
que lhe apraz do que não lhe é útil naquilo que lhe é dado
como informação.
Ocorre, porém, que a mídia extrapola os limites do bom
senso, e a liberdade de imprensa tem servido a interesses
outros, que não necessariamente bem informar os cidadãos. O
manto da livre expressão tem servido de pretexto para que
os meios de comunicação de massa passem a inundar sua
programação com programas policialescos de qualidade
duvidosa, geralmente exibidos em horários em que o
trabalhador, exausto depois de uma jornada intensa de
labor, e após enfrentar horas a fio dentro de um transporte
coletivo que não lhe oferece o mínimo de conforto, para
descansar liga a TV e depara com crimes de morte, rebeliões
em presídios, apreensão de grandes quantidades de drotas
etc. Este trabalhador, passa a crer, então, passa a crer,
que o que ocorre fora dos seus lares é um caos para o qual
não há solução, e desta forma as emissoras de televisão
impingem-lhe o medo da “criminalidade que assola o país”.
Nesse sentido, Callegari e Wermuth afirmam que:
Uma das características da sociedade globalizada é
a influência cada vez maior dos meios de
comunicação de massa nos processo de formação da
opinião sobre os mais diversos assuntos. Na
sociedade de consumo contemporânea, os meios de
comunicação são utilizados como mecanismos para
fomentar crenças, culturas e valores, de forma a
sustentar os interesses – invariavelmente
mercadológicos – que representam.
E citando Peter-Alexis Albrecht, sobre a cultura do
medo imposta à população, baseada em um conjunto de fatos
os mesmos autores prosseguem:
Nesse diapasão, a criminalidade, ou melhor, o medo
de tornar-se vítima de um delito, transforma-se em
mercadoria da indústria cultural, razão pela qual a
imagem pública dessa mercadoria é traçada de forma
espetacular e onipresente, superando, não raro, a
fronteira do que é passível de constatação empírica
(Albrecht, 2000).
Esta atuação da mídia funciona sempre se utilizando
dos mesmos mecanismos, sempre buscando os mesmos objetivos.
Veicula-se à exaustão os já mencionados programas
policialescos, concentrando-se esforços das equipes
jornalísticas sempre para a cobertura de crimes violentos
ou crimes contra o patrimônio praticados nos grandes
centros urbanos; apreensões recordes de grandes quantidades
de drogas; crimes de morte envolvendo menores de idade. Ou,
quando o crime repercute mais fortemente do que o comum,
explora-se a notícia e espetaculariza-se a cobertura dos
fatos que lhe deram origem (vide a cobertura
sensacionalista feita sobre os casos João Hélio e Isabella
Nardoni). A influência questionável se exerce e a cultura
do medo incute-se no inconsciente coletivo sempre com o
intuito de levantar as mesmas bandeiras: repressão mais
firme (entenda-se penas cada vez maiores) contra o agente
do delito, intensificação de política de guerra às drogas e
diminuição da maioridade penal são alguns exemplos.
Fosse apenas a baixa qualidade do que a TV e o rádio
nos trazem, talvez a solução estivesse simplesmente nas
mãos do telespectador/ouvinte, ao trocar de canal ou mudar
a estação. No entanto, a questão que se apresenta é mais
profunda. Ao alardear a notícia do crime, a mídia o faz
engendrando um clima de furor, de clamor social a partir de
representações que nem sempre condizem com a realidade, ou
extraindo o conjunto de fatos de um contexto amplo, sem
analisar questões de fundo, dando aos fatos que reportam,
em certa medida, dimensão maior do que eles tem. Desta
forma, fazem com que os seu público alvo julgue o todo por
uma parte, tome o efeito pelas causas, não reflita sobre a
origem da criminalidade. Interessa apenas que se mostre o
“assassino”, o “traficante”, o “menor”. Destarte, poupa-se
o cidadão “de bem” de refletir sobre quais são as
circunstâncias que cercam aquela gama de delitos
diariamente noticiadas. Esta postura é bem explicada por
Callegari e Wermuth:
As representações midiáticas dos ‘problemas
sociais’, assim, permitem, de acordo com a análise
de Bourdieu (1997), grandes ‘recortes’ na
realidade, de forma a apresentar ao público
consumidor apenas os fatos que interessem a todos
quais sejam, os fatos omnibus, que, por essa
característica, não dividem, mas, pelo contrário,
formam consensos, mas de um modo tal que não tocam
– como denunciado por Glassner – na essência do
problema. Trata-se, na perspectiva de Garland
(2005), de uma fusão imperceptível entre notícia e
entretenimento.
Isso desencadeia enorme influência no sistema penal,
uma vez que a busca incessante por altos níveis de
audiência (critério para atrair receita derivada de
propaganda) conduz as mídias a assumir determinadas
posturas em relação a reportagens sobre crimes nem sempre
dotadas da devida cautela, como “[...] transformar casos
absolutamente sui generis em paradigmas, aumentando, assim, o
catálogo dos medos e, consequentemente e de forma simplista
como convém a um discurso vendável, o clamor popular pelo
recrudescimento da intervenção punitiva”, segundo Callegari
e Wermuth, que exemplificam:
O caso Isabela Nardoni, no Brasil, bem ilustra a
forma como a mídia nacional explora o crime e a
criminalidade: o caso isolado de uma menina que foi
assassinada violentamente passou a ser visto como
uma forma de criminalidade bastante freqüente no
país e, mesmo contrariando a realidade objetiva –
visto que casos semelhantes são bastante raros no
país -, serviu como “espetáculo” midiático por mais
de dois meses consecutivos, espetáculo esse marcado
pelas pressões populares por justiça – leia-se
vingança – contra o pai e madrasta da menina,
acusados pela prática do crime.
Para dar ares de credibilidade a esta exposição
exploratória, cria-se um discurso midiático em que a falta
de qualquer embasamento teórico no que diz respeito às
reais causas da criminalidade é suprida por entrevistas em
que se indagam a especialistas de última hora, para
legitimar bravatas ao vivo e maquiar a real pretensão de
quem veicula a informação, qual seja, a busca desenfreada
pela audiência. Desta forma, citando Zaffaroni, Callegari e
Wermuth explicam que “Reveste-se, assim, o discurso leviano
da mídia com a autoridade dos especialistas, credenciados
pelo exercício profissional, pela academia, pela ocupação
de um cargo público, ou até mesmo por um episódio de vida
privada”.
Essa exacerbação do discurso midiático acerca do
crime, ao provocar na sociedade um medo além do
compreensível reflete-se na política e abre portas para o
surgimento de leis penais ou de programas de governo
propositalmente desconectados da realidade, elaboradas
muitas vezes sem o devido estudo criminológico que lhes
possam lastrear, e com o único intuito de “tranqüilizar”
uma população que exige do poder público respostas
imediatas a problemas cujas origens remontam à própria
história do Estado brasileiro.
Ao apropriarem-se do discurso do medo difundido pelas
grandes mídias, governantes e parlamentares constroem suas
plataformas de campanha, apoiados por aqueles meios de
comunicação e, uma vez eleitos, utilizam o receio
generalizado na sociedade como arma política na construção
de reformas penais que enfatizam, pura e simplesmente, o
papel punitivo do Estado, sem se questionar a real
efetividade de tais medidas, privilegiando muitas vezes o
encarceramento quando medidas alternativas já presentes no
ordenamento jurídico pátrio seriam suficientes para o
apaziguamento de tensões sociais. Concordamos, assim, com
Callegari e Wermuth (2010, p.52), que, nesse sentido,
apontam o seguinte:
Torna-se possível, assim, a afirmação de que o
fenômeno da expansão do Direito Penal também se
deve à busca incessante de resolução dos conflitos
sociais através de políticas populistas, isto é,
que servem para aplacar o clamor social, mas que
não apresentam qualquer resolução efetiva para o
problema. Os legisladores de plantão estão sempre
prontos com seus pacotes de medidas de resolução da
criminalidade que se traduzem, normalmente, em
aumento de penas e restrições de garantias.
Nesse sentido, o Direito Penal, em vez de cumprir sua
função primordial, qual seja, demonstrar, a partir de
exemplos concretos, “o propósito de criar no espírito dos
potenciais criminosos um contraestímulo suficientemente
forte para afastá-los da prática do crime” (prevenção
geral) e “intimidar o condenado para que ele não torne a
ofender a lei penal” (Masson, 2010) (prevenção específica),
antes disso, serve de instrumento de controle social em que
o alvo do aparato estatal, em sua quase totalidade se
resume aos estratos sociais marginalizados quando do
surgimento da já explicada sociedade de riscos (negros, pobres,
usuários de drogas), ou a grupos em que o Estado enxerga
ameaça à manutenção do capital político-eleitoral de que
gozam os mandatários. Utiliza-se, nesta ordem de fatores, o
Direito Penal desprezando-se sua característica de ultima
ratio e de fragmentariedade, passando a fazê-lo instrumento
de administração política das angústias hospedadas no corpo
social.
Percebe-se, portanto, nesta resposta estatal
desconectada da realidade, sinais claros de adoção da
doutrina denominada Direito Penal do Inimigo, desenvolvida
pelo jusfilósofo alemão Günther Jakobs, cujas diretrizes
gerais serão a diante identificadas em exemplos concretos
da legislação penal brasileira.
2. DIREITO PENAL DO INIMIGO
Levantadas as premissas necessárias à compreensão do
modelo de política criminal no Brasil, cumpre-nos apontar
as linhas gerais da teoria que, ao nosso entender, exerce
influência significativa na construção da legislação
criminal, servindo de orientação também à arquitetura das
forças de segurança pública no nosso país.
A teoria desenvolvida pelo penalista alemão Günther
Jakobs demonstra uma estrutura do direito penal
considerando que a sociedade globalizada passou por
transformações que exigem respostas que vão além do
expansionismo da intervenção penal, pois também a
criminalidade experimentou alterações substanciais contra
as quais os mecanismos de combate mostram-se insuficientes.
Na concepção de Jakobs, as transformações da sociedade
moderna provocaram uma divisão entre cidadãos e inimigos. Esta
divisão exige o surgimento de uma dicotomia conceitual,
compreendida pela coexistência de um Direito Penal do Cidadão e
de um Direito Penal do Inimigo, a partir da qual se encontre a
definição de autor que deverá servir de paradigma a ser
empregado nos métodos de punição, dada a evolução da
criminalidade, que o sistema convencional não foi capaz de
acompanhar. conforme nos trazem André Luís Callegari e
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, citando Luís Greco:
(...) o direito penal pode ver no autor um cidadão,
isto é, alguém que dispõe de uma esfera privada
livre do direito penal, na qual o direito só está
autorizado a intervir quando o comportamento do
autor representar uma perturbação exterior; ou pode
o direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é,
uma fonte de perigo para bens a serem protegidos,
alguém que não dispõe de qualquer esfera privada,
mas que pode ser responsabilizado até mesmo por
seus mais íntimos pensamentos.
No mesmo sentido, Zaffaroni explica que, para o
teórico alemão,
[...] o direito penal deveria habilitar o poder
punitivo de uma maneira para os cidadãos e de outra
para os inimigos, reservando o caráter de pessoa para
os primeiros e considerando não-pessoas os segundos,
confinando, porém, esta habilitação, num
compartimento estanque do direito penal, de modo
que todo o resto continue funcionando de acordo com
os princípios do direito penal liberal. Tratar-se-
ia de uma quarentena penal do inimigo.
Nesta ordem de ideias, portanto, o cidadão seria o
indivíduo desprovido do elemento volitivo que o faria
delinqüir de maneira, constante, habitual. Seria aquele
que, ainda que tenha cometido algum delito, “apresenta
garantias de que vai se administrar como pessoa da
sociedade e, ainda, atuar com total zelo ao Direito”1. O
inimigo, por sua vez, seria aquele que, ao se recusar a
viver em sociedade conforme as suas leis, abandonando o
1 SANTOS, Juarez Cirino dos. O Direito Penal do Inimigo – ou o discursodo direito penal desigual. Disponível em: <http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf>. Acesso em: 05 set. 2014.
Direito de forma permanente, abre mão do seu status de
cidadão.
O penalista alemão defende que não é papel do direito
penal preservar bens jurídicos, isto seria apenas um
reflexo do seu mister de manutenção da sociedade e da
coadunação dos diversos interesses nela expressos, o que só
seria possível quando da constante afirmação da força
coativa da norma penal, e nesta ordem, diferenciando o
cidadão que por um desvio de conduta que constitui um ponto
fora da curva na sua vida em sociedade comete um delito - e
ao qual deve ser aplicado o Direito Penal do Cidadão, para
que, oferecendo garantias de sua índole à sociedade repare
o dano causado – do inimigo, que delinque de forma habitual
e constante, negando a vigência da norma penal, e ao qual
deve ser aplicado o Direito Penal do Inimigo. Nessa ótica,
Luiz Flávio Gomes nos traz que, segundo Jakobs, os inimigos
seriam “criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes
organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações
penais perigosas”2, e descreve, ainda, qual o tratamento
deve ser dispensado aos inimigos:
o indivíduo que não admite ingressar no estado de
cidadania, não pode participar dos benefícios dos
conceitos de pessoa. O inimigo, por conseguinte,
não é um sujeito processual, logo, não pode contar com
direitos processuais, como por exemplo o de se
comunicar com o seu advogado constituído. Cabe ao
Estado não reconhecer seus direitos, “ainda que de
2 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo. Disponível em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/penal/direito_penal_inimigo_luiz_flavio_gomes.pdf acesso em 19.nov.2014
modo juridicamente ordenado – p. 45” (sic). Contra
ele não se justifica um procedimento penal (legal),
sim, um procedimento de guerra. Quem não oferece
segurança cognitiva suficiente de um comportamento
pessoal, não só não deve esperar ser tratado como
pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como
pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à
segurança das demais pessoas). (Gomes, ob. cit.,
p.1. Grifos do autor).
Sobre a negação do atributo da personalidade ao
inimigo, Zaffaroni comenta o seguinte:
A essência do tratamento diferenciado que se
atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega
sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o
aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a
ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a
distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-
pessoas), faz-se referência a seres humanos que são
privados de certos direitos individuais, motivo
pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e
esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação
do hostis, no direito, apresenta com relação ao
princípio do Estado de direito.
Günther Jakobs utiliza como argumento para defender a
negação da qualidade de pessoa ao inimigo, o fato de ele
obrigar o Estado a agir contra ele como se uma guerra fosse
travada entre ambos. E, desse modo, é justo que se negue ao
inimigo direitos básicos no seu tratamento penal. Porém,
segundo Zaffaroni:
[...] Jakobs argumenta que, ´embora o tratamento
com o inimigo seja a guerra, trata-se de uma guerra
estritamente delimitada´ em que só se priva o
inimigo do estritamente necessário para neutralizar
seu perigo, mas deixa aberta a porta para seu retorno
ou incorporação, mantendo-se todos os seus demais
direitos.
Este tratamento de guerra é elemento fundamental na
teoria do direito penal do inimigo, dado o contexto em que
o professor da Universidade de Bonn a desenvolveu. A
princípio um crítico do expansionismo ameaçador do direito
penal resultante do fenômeno da globalização, Jakobs passou
a defender medidas excepcionais em casos específicos para
reter aquele avanço, ou como explica Zaffaroni, “passou a
defender a necessidade de sua legitimação parcial como modo
de deter o crescimento do próprio direito penal do inimigo.”
(Zaffaroni, 2007, p. 157)
Esclareça-se, ainda, que a teoria foi formulada, a
princípio, como crítica ao expansionismo (como acima já
mencionado), mas passou a ser defendida pelo professor
alemão como modo de legitimar posturas antiterroristas,
sobretudo após o aumento vertiginoso dos atentados após o
ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001.
Denota-se claramente da essência da teoria do Direito
Penal do Inimigo a concepção de uma estrutura de direito
penal do autor. Não se cogitando a proteção, a partir da
norma penal, de bens jurídicos relevantes e merecedores de
tutela legal, admite-se, ao revés, a presunção absoluta de
periculosidade do indivíduo antecipadamente à sua conduta
delitiva, ao qual deverá ser atribuída não uma eventual
pena (retribuição estatal ao mal cometido), mas imposta a
devida medida de segurança (cerceamento de sua liberdade e
tolhimento de direitos em virtude do prejuízo que,
futuramente, ele poderá provocar) pelo simples fato de ser
ele, um potencial agente danoso à manutenção da sociedade,
ao qual se deve negar até mesmo, segundo a teoria, a
qualidade de pessoa. Nesta lógica,
O Direito penal do Inimigo irá se diferenciar do
modelo clássico do Direto (sic) Penal, principalmente
por suas características de enfrentamento aos
“inimigos” e segundo o posicionamento de Luis
Gracia Martin as principais características deste
modelo de direito pnal são: a) antecipação da
punibilidade com a tipificação de atos
preparatórios, criação de tipos de mera conduta e
perigo abstrato; b)desproporcionalidade das penas;
c) legislações, como nos explícitos casos europeus,
que se autodenominam de “leis de luta ou de
combate”; d)restrição de garantias penais e
processuais penais; e)determinadas regulações
penitenciárias ou de execução penal, como regime
disciplinar diferenciado adotado no Brasil.3
Explicadas as diretrizes gerais básicas da teoria
formulada por Günther Jakobs, pode-se afirmar que adotando:
a) como premissa maior, o discurso e a teoria apregoada por
Jakobs, admitindo que para o Estado atuar de forma eficaz
para fazer frente à cada vez mais acentuada evolução da
criminalidade é necessário distinguir entre aqueles que3 LEONELLO, Caroline; MARQUES, Fernando Tadeu; O direito penal do inimigo frente ao Estado Democrático de Direito. Disponível em http://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/jus_humanum/article/viewFile/27/17 acesso em 19.nov.2014
serão atingidos pelo direito penal do cidadão ou pelo direito penal
do inimigo, aceitando essa distinção como única solução
possível para a manutenção de uma sociedade globalizada e
dividida; b) como premissa menor a existência de uma
sociedade em que essa divisão é visível; teremos como
conclusão que ao Estado, qualquer esforço se justifica para
que o inimigo seja descartado da sociedade, até mesmo
negar-lhe o atributo de ser pessoa, subtraindo-lhe, assim,
direitos e garantias básicos para que este processo se dê
da maneira mais rápida e eficiente possível. Nesse sentido
é a lição de Callegari e Wermuth:
Legitima-se, pois, com base no discurso de Jakobs,
tudo aquilo que de alguma forma seja funcional para
a manutenção do sistema social formado,
independentemente das características por ele
apresentadas. Nesse sentido, qualquer ordem,
social, por mais injusta e/ou autoritária que seja,
pode legitimar-se, desde que o conjunto normativo
assim o preveja.
3. DIREITO PENAL DO INIMIGO – REFLEXOS NO BRASIL
O advento de políticas neoliberais no Brasil trouxe
consigo, além de dogmas no campo econômico, modelos de
respostas do sistema político ao problema da escalada da
criminalidade que os custos sociais de um Estado mínimo
provocaram. Estas respostas são condizentes com a visão
imposta à sociedade, e que por ela foi aceita, de que para
conter o avanço da criminalidade, deve-se enfrenta-la de
forma enérgica, ou seja, enrijecendo o sistema penal. Seria
necessário, segundo o presente raciocínio, a edição de leis
mais severas no tocante à aplicação de penas e regimes de
cumprimento, independentemente da relevância do bem
jurídico lesado ou posto sob perigo de lesão.
Essas políticas de endurecimento da legislação penal
sofreram notória influência do movimento de Lei e Ordem e
da política de Tolerância Zero, ambas desenvolvidas nos
E.U.A nas décadas de 70 e no início dos anos 90,
respectivamente. Estas políticas são baseadas na ideia da
máxima intervenção punitiva do Estado a qualquer crime, por
mais irrelevante que seja, sob o pretexto de que se deve
penalizar exemplarmente o menor delito para que o agente
seja desestimulado a praticar crimes mais graves e
construir uma trajetória de vida criminosa profissional.
Seguem, nos próximos tópicos, exemplos da influência
exercida pelas políticas acima mencionadas na legislação
brasileira.
3.1 TOLERÂNCIA ZERO E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS
A propalada política da Tolerância Zero, implantada
pelo então prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani exerceu
influência no Brasil com a criação da Lei nº 8.072/90 (Lei
de Crimes Hediondos).
Pode-se dizer que seria dos maiores exemplos da
política neoliberal de fortalecimento de um Estado policial
em detrimento de um Estado social, direcionado a exercer
uma justiça seletiva, pois direcionada a destinatários bem
definidos, quais sejam, os excluídos da sociedade de
consumo, a parcela da população não agraciada com os
benefícios de um progresso econômico que beneficiou somente
a uma minoria privilegiada. Nasceu da propagação do ideário
neoliberal, por meio da divulgação, por um grande instituto
de pesquisas (Manhattan Institute) ligado aos segmentos
conservadores da política nova-iorquina dedicados a
pesquisar e publicar soluções para problemas urbanos
baseados no livre mercado, do livro Restoring Order and
reducing Crime in Our Communities ["Consertando as vidraças
quebradas: como restaurar a ordem e reduzir o crime em
nossas comunidades"], que popularizou a teoria das
“vidraças quebradas” segundo a qual, “é lutando passo a
passo contra os pequenos distúrbios cotidianos que se faz
recuar as grandes patologias criminais”, adaptando o dito
popular “quem rouba um ovo, rouba um boi”. Segundo
Wacquant,
Essa teoria, jamais comprovadaempiricamente, serve de álibi criminológicopara a reorganização do trabalho policialempreendida por William Bratton,responsável pela segurança do metrô de NovaYork, promovido a chefe da políciamunicipal. O objetivo dessa reorganização;refrear o medo das classes médias esuperiores - as que votam - por meio daperseguição permanente dos pobres nosespaços públicos (ruas, parques, estaçõesferroviárias, ônibus e metrô etc.).
Wacquant nos explica, ainda, os pressupostos e arepercussão positiva dessas medidas:
De Nova York, a doutrina da “tolerânciazero”, instrumento de legitimação da gestãopolicial e judiciária da pobreza queincomoda – a que se vê, a que causaincidentes e desordens no espaço público,alimentando, por conseguinte, uma difusasensação de insegurança, ou simplesmente deincômodo tenaz e de inconveniência -,propagou-se através do globo a umavelocidade alucinante. E com ela a retóricamilitar da “guerra” ao crime e da"reconquista" do espaço público, queassimila os delinqüentes (reais ouimaginários), sem-teto, mendigos e outrosmarginais a invasores estrangeiros - o quefacilita o amálgama com a imigração, semprerendoso eleitoralmente.
Aureolado pelo lustro do "êxito" deNova York (exageradamente apresentada comoa metrópole-líder da criminalidadesubitamente transformada em exemplo das"cidades seguras" nos Estados Unidos, aopasso que estatisticamente jamais foi nemuma nem outra),24 esse tema proporciona aospolíticos de cada um dos paísesimportadores a oportunidade de dar ares de"modernidade" à paradoxal pirueta retóricaque lhes permite reafirmar com poucoprejuízo a determinação do Estado em puniros "distúrbios" e, ao mesmo tempo, isentaresse mesmo Estado de suas responsabilidadesna gênese social e econômica da insegurançapara chamar àresponsabilidade individual os habitantes daszonas incivilizadas", a quem incumbiriadoravante exercer por si mesmos um controlesocial próximo.
A influência da tolerância zero resultou, no Brasil,
na criação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90).
Esta lei foi editada para regulamentar o disposto no art.
5º., inciso XLIII, da Constituição Federal de 1988. Reza o
referido dispositivo que “a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por
eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se
omitirem”.
Criada de forma açodada para punir mais severamente os
crimes elencados no seu art. 1º, representa um claro
exemplo de medida emergencial, produto do expansionismo do
direito penal adotado como um remédio para atacar os
sintomas, ao invés das causas do aumento da criminalidade.
Suas providências representaram uma tentativa de
resposta do governo neoliberal que se instalara naquele
momento à onda de crimes violentos que se espraiava pelo
país. Mas não quaisquer crimes. Crimes que atingiam
sobretudo às classes economicamente mais fortes. Alguns
episódios que ilustram esta circunstância são os sequestros
do empresário Abílio Diniz, executivo do Grupo Pão de
Açúcar, em 11 de dezembro de 1989; e do publicitário
Roberto Medina, em 6 de junho de 1990.
Exemplo da influência nefasta exercida pela mídia
sobre o Estado, em semelhança à gênese da tolerância zero
nova-iorquina, foi a modificação na redação legal em
virtude da grande comoção popular causada pelo assassinato
da atriz Daniella Perez, em 1994. Sua mãe, a autora de
novelas Glória Perez, encabeçou uma campanha, apoiada
massivamente pela emissora em que trabalhava, o que
resultou na mudança na redação da lei por emenda popular
para incluir no rol dos crimes definidos como hediondos o
homicídio qualificado.
Com medidas repressivistas na redação originária da
lei, prevendo o cumprimento da pena integralmente em regime
fechado (redação alterada em 2007, prevendo a progressão de
regime) e a vedação à concessão de anistia, graça, indulto
e fiança, buscou-se dar uma satisfação à sociedade,
buscando mostrar-lhe que o Estado brasileiro, ao enfatizar
o papel punitivo através de normas inclementes para com a
delinquência, estava sensível ao seu clamor, enfatizando o
papel punitivo estatal sem qualquer rigor científico. Nas
palavras de Francisco Assis Toledo, citado por Alberto da
Silva Franco:
A lei 8.072/90, na linha dos pressupostosideológicos e dos valores consagrados peloMovimento da Lei e da Ordem, deu suporte à idéia deque leis de extrema severidade e penas privativasde alto calibre são suficientes para pôr cobro ácriminalidade violenta. Nada mais ilusório.Avaliando os efeitos da lei 8.072/90, WalterFranganiello Maierovitch salientou que acriminalidade aumentou. ‘As extorsões medianteseqüestro se vulgarizaram’ e ‘a adicção, nometécnico dado à dependência de drogas, cresceu deforma alarmante’. Na nova lei, as penas foramaumentadas e previsto o cumprimento integral empenitenciárias. Criou-se, também, formas de direitopremial a contemplar co-autores e participantes,eufemisticamente denominados ‘arrependidos’,prestadores de auxílio ao resgate de seqüestradosou no desbaratamento de quadrilhas, e nadaadiantou.As conseqüências de uma guerra sem quartel, contradeterminados delitos e certas categorias dedelinqüentes, serviram para estiolar direitos egarantias constitucionais e para deteriorar opróprio direito penal liberal, dando-se azo a