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Revista do CEJ, nº 16, 2011, pp. 285 – 332 1 «SALAS VAZIAS E DECLARAÇÕES ANÓNIMAS». NOTAS SOBRE A PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS E O PROCESSO EQUITATIVO NO JULGAMENTO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA SANDRA OLIVEIRA E SILVA Assistente da FDUP Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela FDUC I Delimitação do problema. O conceito de «testemunha» e as fontes de perigo 1. No contexto de um debate sobre a prevenção e a investigação da Criminalidade Organizada, o tema da protecção de testemunhas, que nos propomos discutir, apresenta-se como iniludível. Não se tratando de tema novo ― a adopção de medidas de tutela é tão antiga quanto o perigo de intimidação ( 1 ) ― o problema em análise só adquiriu virtualidades dogmáticas e autonomia discursiva nesta nossa era, potenciado pelas especiais dificuldades na investigação de fenómenos criminais de maior danosidade. O estudo que agora se publica corresponde, no essencial, à comunicação apresentada em 18 de Novembro de 2011 na Sessão relativa à «Criminalidade Organizada, Económica ou Violenta» do Curso de Especialização em Temas de Direito Penal e Processual Penal promovido pelo Centro de Estudos Judiciários. Agradecemos à Direcção do CEJ a honra do convite formulado. 1 Pode dizer-se, por isso, que o tema da protecção das testemunhas ultrapassa as fronteiras da nossa época e perde a sua história na noite dos tempos. Não é inteiramente nova, também, a argumentação expendida no presente texto, em que se recupera e espelha as aquisições de um nosso trabalho anterior sobre o mesmo assunto (SANDRA OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas no processo penal, Coimbra Editora, 2007). Nas linhas que se seguem, acompanharemos de perto aquela nossa investigação sem grandes preocupações de referência à fonte originária.

Silva, Sandra Oliveira e (2011), «\"Salas vazias e declarações anónimas\": notas sobre a protecção de testemunhas e o processo equitativo no julgamento da criminalidade organizada»,

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Revista do CEJ, nº 16, 2011, pp. 285 – 332

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«SALAS VAZIAS E DECLARAÇÕES ANÓNIMAS». NOTAS SOBRE A

PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS E O PROCESSO EQUITATIVO NO

JULGAMENTO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA ∗∗∗∗

SANDRA OLIVEIRA E SILVA

Assistente da FDUP

Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela FDUC

I

Delimitação do problema. O conceito de «testemunha» e as fontes de perigo

1. No contexto de um debate sobre a prevenção e a investigação da Criminalidade

Organizada, o tema da protecção de testemunhas, que nos propomos discutir, apresenta-se

como iniludível.

Não se tratando de tema novo ― a adopção de medidas de tutela é tão antiga quanto o

perigo de intimidação (1) ― o problema em análise só adquiriu virtualidades dogmáticas e

autonomia discursiva nesta nossa era, potenciado pelas especiais dificuldades na

investigação de fenómenos criminais de maior danosidade.

∗ O estudo que agora se publica corresponde, no essencial, à comunicação apresentada em 18 de Novembro de 2011 na Sessão relativa à «Criminalidade Organizada, Económica ou Violenta» do Curso de Especialização em Temas de Direito Penal e Processual Penal promovido pelo Centro de Estudos Judiciários. Agradecemos à Direcção do CEJ a honra do convite formulado. 1 Pode dizer-se, por isso, que o tema da protecção das testemunhas ultrapassa as fronteiras da nossa época e perde a sua história na noite dos tempos. Não é inteiramente nova, também, a argumentação expendida no presente texto, em que se recupera e espelha as aquisições de um nosso trabalho anterior sobre o mesmo assunto (SANDRA OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas no processo penal, Coimbra Editora, 2007). Nas linhas que se seguem, acompanharemos de perto aquela nossa investigação sem grandes preocupações de referência à fonte originária.

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De facto, a imprescindibilidade da prova pessoal e da sua adequada tutela, comum a

todos os procedimentos criminais (2), é ainda mais visível em certas formas de criminalidade

(violenta, organizada e transnacional), cujas complexas metodologias praticamente

inviabilizam a tarefa de aquisição de material probatório a partir de outras fontes, tornando

absolutamente decisiva a colaboração das pessoas envolvidas (vítimas, infiltrados,

arrependidos). É nota distintiva destes sectores específicos da fenomenologia criminal, quer

um rigoroso sistema de hierarquias, apto a circunscrever o acesso a informações relevantes

no interior do grupo, quer a sistemática eliminação física ou intimidação de eventuais

depoentes com vista à obtenção da impunidade ― em particular dos informadores e

arrependidos, punidos de modo cruel e ritualizado como exemplo para os demais (i. é, para

circunscrever as possibilidades de futuras dissociações). Em consequência resultando muito

limitadas as possibilidades investigatórias das autoridades judiciárias (3).

Não surpreende, assim, que o crescendo da criminalidade violenta e organizada, a que é

conatural a aludida «cultura de supressão da prova» (Fassone), se tenha convertido num

desafio novo para os sistemas jurídico-penais, justificando a previsão de mecanismos

excepcionais, mais estruturados e consistentes, de tutela das testemunhas.

2. Uma primeira leitura do problema sugere que as medidas de protecção se destinam à

testemunha tout court, figura cujos contornos conceituais são moldados pela dogmática

processual. A noção adoptada para este efeito pela doutrina (e pelo legislador, como

veremos) é, todavia, bastante mais ampla: as pessoas designadas sob o vocábulo

«testemunha» formam uma categoria heterogénea, na qual se incluem todos os que,

independentemente da veste processual, disponham de informação relevante para a prova

2 Mesmo no domínio da criminalidade comum, as informações probatórias que o juiz pode adquirir através de documentos escritos, coisas materiais e vestígios proporcionam, na generalidade dos casos, apenas uma imagem muito fragmentária e incompleta dos factos em investigação. A reconstrução probatória dos factos nunca dispensou, assim, o recurso a meios de prova pessoal, senão noutros aspectos, pelo menos como elemento coadjuvante à decisão sobre a culpa e as circunstâncias subjectivas do tipo-de-ilícito. Cf. SANDRA

OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas…, cit., p. 34, com outras indicações bibliográficas. 3 Nestas formas de actuação criminosa, as vítimas e testemunhas ocasionais não existem de todo ou não são possuidoras de informações com relevo para a investigação na medida em que desconhecem as estruturas e hierarquias próprias da organização criminal (o behind man ou «homem de trás»). Porém, nos casos em que a sua contribuição possa ser útil para a descoberta da verdade (pensemos, p. ex., nos casos de extorsão e tráfico de pessoas), um «muro de silêncio» é erguido, seja através da sua eliminação física, seja por meio de ameaças mais ou menos explícitas.

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dos factos (4). Assim, também o co-arguido, o assistente, as partes civis, os peritos e

consultores técnicos podem ser beneficiários de medidas de protecção.

É este conceito autónomo e extensivo de «testemunha» que orientará doravante a nossa

intervenção (5), sem que tal signifique, bem entendido, esquecer as diferenças entre a posição

processual de cada uma destas pessoas, nem tão-pouco os seus reflexos na ponderação dos

interesses em causa. Pelo contrário, é conveniente «atender a quaisquer situações em

particular, nas quais o estatuto do participante processual possa exercer influência sobre as

condições da sua audição» e sobre o valor probatório das suas declarações (6).

3. Não pretendemos discutir nesta sede toda a problemática inerente à protecção das

testemunhas ― que sempre demandaria tempo mais alargado do que o reservado a esta

comunicação ―, mas apenas um segmento específico dessa matéria: a protecção das pessoas

intimidadas em razão dos seus conhecimentos probatórios e da sua (actual ou eventual)

colaboração no processo.

Partindo da sistemática da «Lei de Protecção de Testemunhas» (7), devemos começar

por autonomizar, de entre as possíveis situações de risco para a testemunha, dois núcleos

típicos, a que correspondem outras tantas categorias normativas. Por um lado, a das

designadas «testemunha vulneráveis», pessoas a quem a mera intervenção nos actos

processuais causa de per si um considerável dano, atenta a imaturidade das suas estruturas

psíquicas (crianças, doentes mentais) ou a especial natureza dos actos criminosos observados

(crimes sexuais, violência familiar, etc.). Por outro lado, a das «testemunhas intimidadas ou

ameaçadas», em que o risco de lesão, embora agravado pela colaboração com a

administração da justiça, deverá ser imputado a uma actuação do arguido ou outra pessoa.

4 Nos dizeres de PEREIRA E SOUSA, Primeiras Linhas sobre o processo criminal, 4.ª ed., Impressão Régia, 1831, p. 132, «testemunha he a pessoa idonea para certificar a verdade por seus ditos». 5 O mesmo entendimento amplo de testemunha, finalisticamente orientado pela necessidade de protecção, emerge, desde logo, da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [= TEDH] e, entre nós, encontra confirmação na «Lei de Protecção de Testemunhas» (cf., em sede de definições, o artigo 2.º, al. a), da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho): «para os efeitos da presente lei considera-se testemunha qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimentos necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte perigo para si ou para outrem». 6 ROTH, «Protection procédurale de la victime e du témoin: enjeux et perspectives», Revue Pénale Suisse (1998), p. 398. 7 Trata-se da Lei n.º 93/99, de 13 de Julho, entretanto alterada pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho, e pela Lei n.º 42/2010, de 3 de Setembro. Referem-se à «Lei de Protecção de Testemunhas», na sua versão actualmente em vigor, as disposições legais mencionadas sem indicação do diploma a que pertencem.

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Breviatis causa, deixaremos (aqui) em silêncio o tema das testemunhas vulneráveis. E

isto para centramos a nossa reflexão sobre as restantes hipóteses, cujo étimo comum reside

na circunstância de o risco advir do exterior — i. é, do comportamento intencional de

terceiro com o objectivo de condicionar o sentido do testemunho —, e não de uma «simples

disposição da realidade com efeitos bloqueadores sobre certa pessoa» (8).

II

O dever do Estado de protecção de testemunhas. Tutela da fonte de prova ou da pessoa

do declarante?

4. Recortado o espectro de análise, coloca-se, desde logo, a questão de saber qual o

fundamento do dever do Estado de protecção das testemunhas intimidadas em virtude dos

seus conhecimentos ou da colaboração no esclarecimento do crime.

A primeira via de resposta a esta interrogação é logo fornecida ao nível da articulação

das finalidades do processo penal, concebido como um campo de tensão bipolar entre dois

fins de igual valência: por um lado, a protecção dos direitos fundamentais das pessoas que

são alvo de perseguição judiciária; por outro lado, a tutela do interesse do Estado na

realização da justiça criminal, i. é, na punição dos culpados e na absolvição dos inocentes (9).

Nesta perspectiva, a protecção das testemunhas advém como meio essencial para a boa

administração da justiça, assaz importante no processo penal onde se jogam valores

revestidos de dignidade constitucional. Pode dizer-se que a manutenção da comunidade

politicamente organizada — a qual postula a descoberta da verdade, como elemento

fundamental para a correcta administração da justiça — constitui ela mesma também uma

vertente informadora da própria ideia de Estado-de-Direito (10). E que a protecção das

8 Cf., a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 218/VII (que deu origem à «Lei de Protecção de Testemunhas»). 9 Como se disse, não pode ver-se a perseguição e punição dos crimes como a vertente única da finalidade de realização da justiça, «como se a condenação de um inocente não fosse um perigo tanto maior quanto mais a probabilidade de inocência supera a probabilidade do crime» (BECCARIA, Dos delitos e das penas (tradução de José de Faria Costa), Calouste Gulbenkian, 1998, p. 132). Por isso, «se ao Estado interessa punir os culpados, não interessa menos punir só os verdadeiros culpados» (EDUARDO CORREIA, «Les preuves en droit pénal portugais», Revista de Direito e Estudos Sociais (1967), p. 8). 10 Nas palavras de Figueiredo Dias, «o Estado-de-Direito não exige apenas a tutela dos interesses das pessoas e o reconhecimento dos limites inultrapassáveis, dali decorrentes, à prossecução do interesse oficial na perseguição e punição dos criminosos. Ele exige também a protecção das suas instituições e a viabilização de uma eficaz administração da justiça penal», sobretudo em face da criminalidade mais grave (FIGUEIREDO DIAS, «Para uma reforma global do processo penal português: da sua necessidade e de algumas orientações

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testemunhas — garantia da máxima genuinidade do seu conhecimento probatório e, por

vezes, até mesmo da sua simples existência — configura um dever indeclinável das

instâncias oficiais, na estrita medida da salvaguarda de um elemento de prova irrenunciável e

decisivo. Um dever que assim se reclama de fundamento constitucional indirecto, enquanto

expressão materializada do princípio do Estado-de-Direito (art. 2.º da CRP).

A compreensão meramente político-processual do problema não basta, todavia, para

fundar um modelo de equilíbrio adequado à correcta conciliação dos interesses em conflito:

reduzindo a testemunha à condição de fonte de prova, esta teorização não legitima a

protecção do declarante quando o seu depoimento seja de escassa valia probatória (11), nem

tão-pouco se mostra suficientemente fundada do ponto de vista constitucional para autorizar

a compressão dos direitos de defesa do arguido além de determinados limites materiais ou

temporais (p. ex., depois de findo o processo).

Deste modo, torna-se premente o reconhecimento de um dever estadual de protecção

dos direitos fundamentais das testemunhas, entendido não apenas como uma dimensão

instrumental da estratégia criminal e da procura da verdade no processo, mas sobretudo

como uma directa e autónoma imposição constitucional.

5. O desiderato de ancorar directamente na Lei Fundamental o dever do Estado de

protecção dos participantes processuais revela-se concordante com a autonomização de uma

específica dimensão objectiva aos direitos constitucionalmente garantidos (12). Na verdade, a

dogmática constitucional tem assinalado uma dupla natureza ou dupla dimensão às normas

fundamentais», in Para uma nova justiça penal (Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados), Reimp., Livraria Almedina, 1996, p. 206). Discordante aqui do entendimento de Grünwald que, confrontado com a jurisprudência «permanente» do Tribunal Constitucional alemão, critica a relativização até à perversão dos tradicionais princípios jurídico-estaduais do processo penal e a dissolução do princípio do Estado-de-Direito enquanto «baluarte contra o qual esbarram os interesses da perseguição penal» (GRÜNWALD, «Anmerkung», Juristenzeitung (1976), pp. 772 ss., apud COSTA ANDRADE, Sobre as proibições

de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pp. 35-6). 11 Perspectivando a testemunha como simples meio de prova, «as medidas cautelares destinadas a assegurar a existência e a atendibilidade do testemunho seriam prioritariamente desenhadas em função da capacidade demonstrativa das informações obtidas», tal como acontece em relação a provas materiais ou vestígios. «Assim, a adopção de instrumentos de protecção não seria sequer admitida quando a testemunha não viesse afinal a intervir no processo (ou o seu depoimento não pudesse influir sobre a decisão) e cessaria de imediato após a prestação da informação probatória, ainda que se demonstrasse ou mantivesse um elevado o risco de lesão dos direitos fundamentais» (SANDRA OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas…, cit., p. 37). 12 Sobre a dupla dimensão dos direitos fundamentais, em pormenor, ISENSEE, «Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflict», in Handbuch des Staatsrechts, Band V, 2.ª ed., C. F. Müller Juristischer Verlag, 2000, pp. 145-63, e ALEXY, «Grundrechte als subjektive Rechte und als objektive Normen», Der Staat (1990), pp. 49-68, e, na doutrina portuguesa, VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos

fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Livraria Almedina, 2001, pp. 109 ss., e CRISTINA

QUEIROZ, Direitos fundamentais (teoria geral), Coimbra Editora, 2002, pp. 96 ss.

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consagradoras de direitos fundamentais: estas não se limitam a atribuir posições jurídicas

subjectivadas aos indivíduos, antes configuram igualmente decisões valorativas da

comunidade, que se projectam para além daquela subjectivação como bases ordenadoras da

vida social (13). Em suma: «Em vez de reduzidos à unidimensionalidade da sua referência

subjectivo-individual de étimo liberal, os direitos fundamentais passaram a emergir

enriquecidos duma incindível referência sistémico-social. E a perfilar-se como valores ou

fins de tutela ou promoção do próprio Estado» (14).

Mais do que uma fórmula enfática, pensada para sublinhar a natureza dos direitos

individuais como reflexo subjectivado das normas da Constituição ou para sustentar a

existência de «deveres fundamentais», a referência a uma dimensão objectiva mostrou-se

susceptível de suportar efeitos jurídicos autónomos, que constituem um reforço da

«imperatividade» dos direitos fundamentais (15).

13 Em traços largos muito largos, pode afirmar-se que os direitos fundamentais surgiram como pretensões individuais de omissão dirigidas contra o Estado, de modo a garantir uma esfera de liberdade e autonomia subtraída a toda a ingerência dos poderes públicos. Alicerçadas nesta compreensão, as Constituições liberais destacavam sobretudo a dimensão subjectiva dos direitos fundamentais, entendidos como possibilidades reforçadas de actuação individual. O quadro não é diverso quando se inaugura na Europa a idade das Constituições interventivas em matéria social. Pese embora a profunda intenção conformadora e o alargamento do núcleo de bens protegidos, os textos constitucionais continuavam a formular e garantir os direitos fundamentais como posições de vantagem, condensadoras do poder de exigir a omissão de intromissões estaduais na esfera individual (no campo dos direitos de liberdade) ou da faculdade de pretender das autoridades públicas uma actuação positiva para a realização ou promoção de interesses particulares (no âmbito dos direitos a prestações). Não se desconhece, todavia, que à tutela constitucional destas pretensões correspondiam já conteúdos objectivos vinculantes: por um lado, os deveres estaduais de omitir intervenções nos espaços de autonomia delimitados e de conformar a organização, procedimento e processo de efectivação das pretensões subjectivadas das pessoas; por outro lado, a identificação de garantias institucionais destinadas a assegurar a protecção do núcleo essencial de determinados complexos do direito civil (o casamento, a família, a propriedade) organizados em torno de direitos fundamentais. O enriquecimento do conteúdo normativo dos direitos com a referência a deveres estaduais e a garantias institucionais pôs em evidência a sua função legitimadora de todo o sistema jurídico. Mas só a recente autonomização doutrinal de um específico substrato valorativo das normas da Constituição converteu os direitos individuais em princípios jurídicos de ordenação

objectiva, dotados de intencionalidade conformadora da ordem social. Com efeito, na base da tese da pluridimensionalidade a que nos referimos está a ideia de que os direitos fundamentais, primariamente pensados como direitos das pessoas em face do Estado, integram e exprimem uma «ordem de valores objectiva» (objektives Wertordnung) ou um «sistema de valores» (Wertsystem), que adquire ampla «eficácia de irradiação» (Ausstrahlungswirkung) em toda a ordem jurídica, muito para lá das fronteiras do direito constitucional, proporcionando «directrizes e impulsos para a legislação, a administração e a jurisprudência» (BVerfGE 7, pp. 198 ss. (p. 203)). Deste modo, é possível discernir, como substrato de cada direito individual, o apelo normativo a um bem jurídico (dignidade, liberdade, vida, integridade pessoal) e a um valor comunitário com significado objectivo ou estrutural; pelo que um «direito sem o correlativo referente jurídico-objectivo se apresenta, no verdadeiro sentido da expressão, “destituído de valor” (wertlos)» (ZACHARIAS, Der gefärhdete

Zeuge im Strafverfahren, Duncker & Humbolt, 1997, p. 113). A nova coloração objectiva das normas, porém, não elimina, nem atenua, a referência primária dos direitos com sede constitucional ao indivíduo e aos seus interesses, como refracção da dignidade humana que está na base do processo de sedimentação histórico-espiritual dos direitos fundamentais. 14 COSTA ANDRADE, Sobre a valoração…, cit., p. 13. 15 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, cit., p. 111, na linha do Tribunal Constitucional alemão que concebe a ordem objectiva de valores como um «reforço básico da força de validade dos direitos

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Um dos corolários da tese da «dupla natureza» ou «dupla dimensão» prende-se com a

identificação de uma autónoma função de protecção perante terceiros: a vinculação das

entidades públicas ao conteúdo dos preceitos constitucionais comporta um específico dever,

não só de respeito, como de promoção daqueles direitos, ou seja, de adopção das medidas

positivas adequadas a assegurar a sua efectividade perante quaisquer ameaças ou actividades

lesivas (ainda que provenientes de terceiros) (16).

A teoria dos «deveres de protecção de direitos fundamentais» (grundrechtliche

Schutzpflichten Theorie) põe, assim, em relevo a existência de uma dimensão prestacional a

cargo do Estado também no domínio dos «clássicos» direitos de liberdade (17). Antes

perspectivados como direitos de defesa (Abwehrechte), como proibições de agressão ou

ingerência estadual, os direitos fundamentais importam, numa concepção de Estado

«antropologicamente amigo», um imperativo de tutela (Schutzgebot), i. é, a imposição às

entidades públicas de deveres de protecção e promoção perante terceiros.

Pode facilmente encontrar-se a base dogmática comum dos deveres de protecção no

encargo estatal de promoção da segurança dos cidadãos, associado ao monopólio do uso da

força nas sociedades organizadas, e na compreensão dos direitos individuais como valores

comunitários estruturantes (18). Não significa isto todavia que, perante uma lesão causada

fundamentais» (BVerfGE 7, p. 205). De facto, a compreensão das normas constitucionais como imperativos de tutela comporta uma evidente mais-valia estrutural. Mais-valia que se traduz no alargamento do conteúdo normativo, vale dizer, numa extensão do âmbito de protecção e das funções que classicamente são apontadas aos direitos fundamentais. 16 Com o que sobressai a vertente positiva da ideia — corporizada no artigo 3.º, n.º 2 e n.º 3, da CRP — de subordinação do Estado, nos seus diversos poderes, às normas constitucionais: o «princípio da constitucionalidade» dos actos de poder confirma de forma bem clara a superioridade da Lei Fundamental e adverte os órgãos públicos para a existência de parâmetros de vinculação jurídico-material, destinados a impregnar o sistema legal com as opções valorativas vazadas nos preceitos constitucionais. Com efeito, para não ser uma banalidade, a afirmação genérica de que os preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias vinculam as entidades públicas (art. 18.º, n.º 1, da CRP) «deve ser entendida como um reforço do [seu] carácter obrigatório» (VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, cit., p. 212), naturalmente implicado na tarefa estadual de «“realizar” os direitos, liberdades e garantias, optimizando a sua normatividade e actualidade» (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, cit., p. 432), o que significa a autonomização de deveres públicos de actuação para a tutela de direitos fundamentais (grundrechtliche Handlungsgebote), na área de protecção por eles coberta, contra as agressões que lhes possam ser dirigidas por entidades privadas ou mesmo por outros Estados. 17 No desenvolvimento dogmático destes deveres, é fundamental a obra de ISENSEE, Das Grundrecht auf

Sicherheit: zu den Schutzpflichten des freiheitlichenVerfassungstaates, publicada em 1983 (cf. IDEM, «Das Grundrecht als Abwehrrecht…», cit., pp. 145-240), e a síntese de STERN, Das Staatsrecht der Bundesrepublik

Deutschland, Band III/1, C. H. Beck, 1988, pp. 931 ss. Foram, porém, as decisões do Bundesverfassungsgericht que abriram caminho à teoria dos deveres de protecção, moldando, no essencial, os contornos da figura. Para uma referência circunstanciada a essas decisões, vide ISENSEE, «Das Grundrecht als Abwehrrecht…», cit., pp. 181-4, e BUGGISCH, Zeugenbedrohung und Zeugenschutz in Deutschland und den

USA, Duncker & Humbolt, 2001, pp. 115-6. 18 É este o entendimento da doutrina dominante. Veja-se, entre nós, GOMES CANOTILHO, «Omissões normativas e deveres de protecção», in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues II, Coimbra Editora, 2001, pp. 111-2,

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por particulares, se deva fazer equivaler uma qualquer omissão estadual de tutela a uma

autêntica ofensa pública dos direitos (staatlicher Eingriff). Numa ordem jurídica fundada na

autonomia privada, a co-responsabilização do Estado pelas lesões de direitos causadas por

terceiros torna necessária uma fundamentação adicional, que depende, em última análise, da

natureza das posições jurídicas ameaçadas, da proximidade e intensidade do perigo de lesão

e dos meios de auto-tutela ao dispor do titular dos direitos (19).

No domínio da protecção de testemunhas, a afirmação de tais deveres estaduais encontra

uma fundamentação mais fácil, em virtude da íntima conexão entre a ofensa dos direitos do

declarante e a colaboração que lhe é pedida na tarefa pública (estadual) de administração da

justiça. Embora não possa ainda afirmar-se a existência de uma opinio communis a este

propósito, entendemos que o fundamento do dever especial de protecção é aqui a maior

probabilidade de determinada pessoa se tornar vítima de intimidação por causa da sua

intervenção no processo, atentos os deveres e prescrições que estão inerentes ao estatuto

assumido (20) (21).

VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, cit., p. 248, PAULO MOTA PINTO, «O direito ao livre desenvolvimento da personalidade», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra [= BFD], Portugal-Brasil

ano 2000 (Tema Direito), Coimbra Editora, 1999, p. 191, e REIS NOVAIS, As restrições aos direitos

fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, pp. 88-9. 19 Enfatizando esta ideia, VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, cit., p. 250, e PAULO MOTA PINTO, «O direito ao livre desenvolvimento da personalidade», cit., pp. 231-2, nota 233. 20 Uma primeira resposta neste sentido foi encontrada nos Estados Unidos, onde a problemática em análise assume especial relevância. Com efeito, o Supreme Court extrai do dever genérico de os indivíduos colaborarem na investigação dos crimes, expondo-se ao risco de represálias, um «reciprocal duty of protection» que se liga não a um qualquer comportamento lesivo das instâncias oficiais, mas à «special relationship» que intercede entre o Estado e a testemunha na pendência do processo. São paradigmáticas a este respeito as decisões do caso In Re Quarles (1895), do Supreme Court, e Schuster v. City of New York (1958), do New

York Court of Appeals. A ulterior referência à «special relationship» nas decisões Miller v. United States (1982) e Wallace v. City of Los Angeles (1993) tornou mais claro o fundamento do «dever recíproco» de protecção das testemunhas. Cf., com outras indicações, BUGGISCH, Zeugenbedrohung und Zeugenschutz…, cit., pp. 90-103 e 133-4. Partindo de um distinto enquadramento dogmático, que assenta no alargamento do âmbito de tutela e do conceito de lesão de direitos fundamentais, a doutrina alemã tem atingido idênticos resultados. Cf., por todos, as opiniões de ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., 103 ss., e de DIETLEIN, Die Lehre von

den Grundrechtliche Schutzpflichten, Duncker & Humbolt, 2005, pp. 164 ss. Outras indicações bibliográficas podem encontrar-se em SANDRA OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas…, cit., pp. 56-63. 21 Esclarecida a existência de um dever específico de protecção, emerge para o Estado a obrigação de adoptar as medidas suficientes, de natureza normativa ou de índole material, a garantir uma tutela adequada dos direitos atingidos, moldando-se ou graduando-se tais medidas concretas em função da concreta «necessidade de protecção» (Schutzbedarf). Não se exige, todavia, que através do cumprimento do dever de protecção sejam afastados com inteira e absoluta segurança todos e quaisquer perigos para os direitos das testemunhas: as entidades sobre quem recai um dever de protecção estão «apenas» obrigadas a adoptar medidas suficientes a assegurar standards mínimos, constitucionalmente adequados, de tutela dos direitos fundamentais, sob pena de responsabilidade por violação do princípio da proibição de défice (Prinzip des Untermaßverbots). Entre o «mínimo de tutela constitucionalmente exigido» e o «máximo de ingerência constitucionalmente permitido», moldura fornecida pelo princípio da proporcionalidade na sua dupla vertente de proibição de defeito e proibição do excesso, é deixada aos poderes públicos uma ampla liberdade constitutiva, quer na identificação da forma jurídica a revestir pela actividade protectora — actos normativos, medidas administrativas, decisões

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Desta forma, o dever de protecção das testemunhas aparece como uma obrigação

estadual solidamente fundada, e não apenas em considerações de carácter endo-processual

de descoberta da verdade ― como uma leitura mais apressada do problema poderia induzir

―, antes sobretudo em razões de natureza substantiva, directamente radicadas na garantia

dos direitos fundamentais. Razões e fundamentos que se articulam e entretecem na

estruturação das concretas medidas de protecção entre nós consagradas (22).

III

A tutela de testemunhas no campo de tensão de interesses conflituantes. Avaliação

crítica da «Lei de Protecção de Testemunhas»

6. Eis-nos assim chegados à análise do sistema de protecção instituído no nosso

ordenamento jurídico após a aprovação da Lei n.º 93/99, de 13 de Julho, entretanto alterada

pela Lei n.º 29/2008, de 4 de Julho, e pela Lei n.º 42/2010, de 3 de Setembro (23).

judiciais, intervenções fácticas —, quer na eleição dos instrumentos e dos meios adequados para a sua realização — medidas sancionatórias (de natureza penal ou contra-ordenacional), mecanismos de ordem processual, providências de carácter policial ou administrativo, mecanismos diplomáticos, etc. Este espaço de autónoma concretização poderá reduzir-se a zero apenas quando determinada medida estadual constitua o único meio adequado, necessário e proporcional à tutela efectiva dos direitos fundamentais de uma determinada testemunha. E, em particular, quando em causa esteja a garantia da dignidade da pessoa, princípio axiológico que o legislador inscreveu no pórtico da Constituição como esfera constitutiva da República Portuguesa (art. 1.º da CRP). Sobre o princípio da proibição de défice (Prinzip des Untermaßverbots), cf., na doutrina germânica, CANARIS, Direitos fundamentais e direito privado (tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto), Livraria Almedina, 2003, pp. 60 ss., ISENSEE, «Das Grundrecht als Abwehrrecht…», cit., pp. 191 ss., e DIETLEIN, «Der Untermaßverbot: Bestandaufnahme und Enticklungschancen einer neuen Rechtsfigur», Zeitschrift für Gesetzgebung (1995), pp. 131 ss.; e, entre nós, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional…, cit., p. 271, e PAULO MOTA PINTO, na declaração de voto ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 288/99 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 18 de Abril de 1999). 22 Em sentido oposto, RUI PATRÍCIO, «Protecção de testemunhas em processo penal», in Jornadas de Direito

processual penal e Direitos fundamentais, Livraria Almedina, 2004, pp. 284 ss. (também publicado, com «ligeiras alterações de redacção» (expressão do autor) em Boletim da Ordem dos Advogados [= BOA], n.º 31 (2004), pp. 35 ss.). O autor retira da análise dos mecanismos introduzidos pela Lei n.º 93/99 a conclusão de que a protecção de testemunhas surge aí como instrumental em relação aos interesses da repressão penal. 23 A «Lei de Protecção de Testemunhas», a que nos referimos em texto, foi regulamentada pelo Dec.-Lei n.º 190/2003, de 22 de Agosto, alterado pelo Dec.-Lei n.º 227/2009, de 14 de Setembro. Sobre o conteúdo e o sentido das soluções legais, podem citar-se na doutrina portuguesa, sem grande rigor de ordenação, ANABELA

MIRANDA RODRIGUES, «A defesa do arguido: uma garantia constitucional em perigo no “Admirável Mundo Novo”», Revista Portuguesa de Ciência Criminal [= RPCC] (2002), pp. 549 ss., IDEM, «Justiça penal internacional e protecção de vítimas-testemunhas por meios tecnológicos», BOA, n.º 21 (2002), pp. 16 ss., GERMANO MARQUES DA SILVA, «Nota sumária sobre a lei de protecção de testemunhas em processo penal: prudência é fundamental», BOA, n.º 28 (2003), p. 12 ss., LOPES DA MOTA, «Protecção das testemunhas em processo penal», in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues I, Coimbra Editora, 2001, pp. 661 ss., IDEM, «Protecção das testemunhas em processo penal», Revista do Centro de Estudos Judiciários (2006), pp. 33 ss.), MOURAZ LOPES, Garantia judiciária do processo penal: do juiz e da instrução, Coimbra Editora, 2000, pp. 46 ss., NUNO MAURÍCIO, «O equilíbrio entre a protecção de testemunhas e as garantias da defesa: desafios suscitados por uma nova realidade», Polícia e Justiça (2003), pp. 79 ss., PINTO ABREU, «A lei de protecção de

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É importante referir que no código genético daquele diploma legal se encontra a

necessidade de respeitar compromissos internacionais de harmonização legislativa, mais do

que uma necessidade reclamada pela nossa fenomenologia criminal e pelos operadores

judiciários internos. Poderão encontrar-se nessa génese singular subsídios para compreender

os contornos de algumas específicas soluções e, quiçá, para explicar a sua tão reduzida

aplicação prática (24).

Em concreto, a exigência de protecção das testemunhas (sobretudo, as vítimas) encontrou,

desde logo, directa concretização nos regulamentos e estatutos dos organismos de justiça

internacional, na perseguição e julgamento de crimes contra a paz e a humanidade, em cujo

âmbito o problema reveste, como se intui, particular delicadeza. Nos Regulamentos de

Processo e de Prova dos tribunais constituídos para julgar os crimes praticados na ex-

Jugoslávia e no Ruanda podiam já encontrar-se específicas previsões destinadas à tutela das

testemunhas (25). Uma significativa confirmação da imprescindibilidade de tal disciplina

avulta com a aprovação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (1998) (26), que impõe a

adopção das «medidas adequadas para garantir a segurança, o bem-estar físico e psicológico, a

dignidade e a vida privada das vítimas e testemunhas», desde que essas medidas se revelem

compatíveis com os «direitos do arguido» e com a «realização de um julgamento equitativo e

imparcial» (art. 68.º, n.º 1) (27).

testemunhas: o triste fim do contraditório e o princípio da desconfiança no advogado. Crónica de uma morte anunciada», BOA, n.º 28 (2003), pp. 14 ss., e RUI PATRÍCIO, «Protecção de testemunhas em processo penal», cit., pp. 281 ss. 24 Poderá mesmo afirmar-se, em tom de cordial provocação, que a «Lei de Protecção de Testemunhas» terá sido mais vezes modificada do que aplicada. 25 Destacam-se a Rule 69, que autoriza, «em circunstâncias excepcionais», a não revelação ao arguido da identidade das testemunhas em risco até ao julgamento (at the pre-trial stage), a Rule 71, que legitima a tomada de declarações para memória futura (deposition) quando a testemunha não possa ou não queira prestar depoimento em audiência pública (open court), e a Rule 75, que permite ao tribunal, durante o julgamento (at

the trial stage), adoptar as medidas adequadas a impedir a divulgação pública da identidade dos declarantes (p. ex., não indicação desses elementos no dossier, distorção da imagem, prestação de depoimento através de closed circuit television, atribuição de um pseudónimo). Paradigmática, a decisão preliminar no caso Prosecutor v. Tadić («Protective Measures Decision») definiu as linhas de força nesta matéria, admitindo (aparentemente contra legem) o anonimato total da testemunha, desde que cumpridos determinados requisitos e respeitadas estritas condições. Para uma análise circunstanciada da «Protective Measures Decision», com outras indicações jurisprudenciais, CHRISTINE CHINKIN, «The protection of victims and witnesses», in Substantive and procedural aspects of International Criminal Law, I, Klumer Law International, 2000, pp. 455 ss., e JONES, «Protection of victims and witnesses», in The Rome Statute pf the International Criminal Court: a

commentary, II, Oxford University Press, 2002, pp. 1355 ss. 26 Aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/2002, de 18 de Janeiro. 27 Para um elenco das possíveis medidas de protecção, para além das expressis verbis referidas no artigo 68.º, n.º 2 e n.º 5 do Estatuto (exclusão da publicidade, produção de prova através de meios electrónicos, ocultação de elementos probatórios e informações nas fases anteriores ao julgamento), poderá ver-se a jurisprudência do Tribunal internacional para a ex-Jugoslávia (cf. nota anterior). Sobre a história e a interpretação do artigo 68.º do Estatuto, JONES, «Protection of victims and witnesses», cit., pp. 1355 ss. Numa perspectiva mais geral, sobre

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É ainda de destacar no plano internacional, sob a égide da Organização das Nações

Unidas, a Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000) e a

Convenção contra a Corrupção (2003) (28), nas quais se prevê o dever de cada Estado Parte de

adoptar as medidas apropriadas para assegurar uma protecção eficaz das testemunhas (e seus

familiares) contra eventuais actos de represália ou intimidação, nelas se podendo incluir a

protecção física, a atribuição de novo domicílio, a reserva das informações sobre a identidade e

paradeiro e a prestação de depoimento à distância com recurso a meios técnicos adequados

(cf., respectivamente, arts. 24.º e 32.º).

Mas é no espaço europeu, embora a nível exclusivamente programático, que podemos

encontrar a matriz da nossa legislação. Nos quadros da União Europeia, importa referir, em

primeiro lugar, a Resolução do Conselho 95/C 327/04, de 23 de Novembro de 1995, relativa à

protecção das testemunhas na luta contra o crime organizado internacional, que convida os

Estados membros a predispor diversos instrumentos idóneos à tutela das testemunhas contra

qualquer forma de ameaça, pressão ou intimidação, durante e após o processo, sugerindo, entre

os meios possíveis, a não revelação do endereço ou de todos os elementos de identificação da

testemunha, a «mudança de identidade» e o depoimento à «distância» com recurso a meios

audio-visuais desde que assegurado o respeito pelo princípio do contraditório (como definido

pela jurisprudência do TEDH). Posteriormente, em 2007, esteve prevista a possibilidade de

adopção de um mecanismo vinculativo, sob a forma de Decisão-Quadro, destinado a

harmonizar o elenco de medidas de protecção no quadro da União Europeia. No entanto, pelas

razões que se espelha no Documento de Trabalho da Comissão COM (2007) 693, de 13 de

Novembro de 2007, uma tal iniciativa legislativa imediata foi considerada «prematura».

É ainda de especial importância a Recomendação n.º R (97) 13, do Comité de Ministros

do Conselho da Europa, de 10 de Setembro de 1997, sobre a protecção das testemunhas e os

direitos de defesa. Nela se estabelece alguns princípios gerais a observar no direito interno e na

praxis judiciária, sugerindo-se inter alia, como medidas de tutela das testemunhas intimidadas,

a utilização de depoimentos video-registados anteriores à audiência, a leitura de declarações

prestadas em fases anteriores do processo perante juiz, a exclusão da publicidade da audiência

e, com particular importância, o anonimato da testemunha, fixando-lhe, de modo claro, os

limites, os contornos e as condições de admissibilidade. Não muito distinta desta no seu

conteúdo, a Recomendação Rec (2005) 9, de 20 de Abril de 2005, reconhecendo

expressamente o relevo especial da prova «testemunhal» e a importância da sua protecção no

o Tribunal Penal Internacional, FERNANDA PALMA, «Tribunal Penal Internacional e Constituição Penal», RPCC

(2001), pp. 7 ss., e WLADIMIR BRITO, «Tribunal Penal Internacional: uma garantia jurisdicional para a protecção dos direitos da pessoa humana», BFD (2000), pp. 81 ss. 28 Aprovadas, para ratificação, respectivamente, pelas Resoluções da Assembleia da República n.ºs 32/2004, de 2 de Abril, e 47/2007, de 21 de Setembro.

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domínio da criminalidade grave, aprofunda as condições e requisitos para a adopção de

medidas de protecção, referindo-se em especial à elaboração de Programas Especiais de

Segurança (29).

Não surpreende, por isso, que as opções concretas do legislador nacional tenham como

referente imediato as linhas de política criminal esboçadas pelo Conselho da Europa e pela

União Europeia, e tanto na definição do âmbito de aplicação das medidas propostas, como na

previsão das cautelas indispensáveis a minimizar os inevitáveis custos sob o plano das

garantias defensivas do arguido.

Ensaiando uma arrumação sistemática da matéria, é possível discernir na «Lei de

Protecção de Testemunhas» duas categorias fundamentais de medidas, integrantes de outros

tantos níveis de tutela: a protecção policial ou administrativa e os instrumentos de natureza

processual.

a) A protecção policial ou administrativa. Entre as medidas pontuais de segurança e

os witness protection programs

7. No tocante à protecção policial ou administrativa, disciplinada em todo o Capítulo IV

(«Medidas e Programas Especiais de Segurança»), a novidade reside essencialmente na

estruturação e alargamento das possibilidades, já implicitamente contidas nas normas

constitucionais e estatutárias, de intervenção das entidades policiais na segurança da

testemunha e dos seus bens (30).

29 No texto destas Recomendações é notória a intenção de encontrar um eixo de concordância prática entre as finalidades em conflito que respeite as tradições jurídicas dos diversos sistemas nacionais e a jurisprudência (se preferirmos a case-law) do TEDH sobre testemunhas anónimas. Assume especial relevo, para o nosso problema, o Acórdão de 26/3/1996 (Caso Doorson C. Países Baixos) Veja-se, ainda, sobre a problemática em análise, os casos Kostovski C. Países Baixos (1989), Windisch C. Áustria (1990), Lüdi C. Suiça (1992), Van Mechelen e outros C. Países Baixos (1997), Kok C. Países Baixos (2000), Visser C. Países Baixos (2002), Taal C. Estónia (2005) e, mais recentemente, Mirilashvili C. Rússia (2008) e Taxquet C. Bégica (2010). Para uma síntese crítica da jurisprudência do TEDH nesta matéria, RENATO STANZIOLA VIEIRA, «Testemunha anónima e paridade de armas na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: encontros e desencontros», RPCC (2010), pp. 415 ss. 30 E isto porque, como já se disse, a protecção administrativa é tão antiga quanto o próprio risco de intimidação das testemunhas, integrando uma das vertentes da garantia da segurança e da ordem de que a polícia é tradicionalmente incumbida, até por imperativo constitucional (art. 272.º, n.º 1, da CRP). No cumprimento dessa imposição constitucional, uma multiplicidade de medidas esparsas de protecção pode ser adoptada a este nível, desde a simples presença de forças policiais na sala de audiência até à vigilância permanente da testemunha.

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7.1. Em primeiro lugar, refiram-se as medidas pontuais de segurança, de que a

testemunha pode beneficiar em processos cabidos no círculo de jurisdição do tribunal

colectivo ou do júri, «sempre que ponderosas razões de segurança o justifiquem», devendo,

assim, o conteúdo das medidas a adoptar ser ajustado à gravidade do crime, à intensidade do

risco resultante da prestação de declarações e ao estatuto do participante processual, segundo

um princípio de proporcionalidade, na sua tripla dimensão de necessidade, adequação e

proporcionalidade em sentido estrito (arts. 2.º, n.º 4, e 20.º, n.º 1). É atribuída à autoridade

judiciária que presida à fase processual a competência para ordenar cada uma destas

medidas e, embora nada se esclareça a esse propósito na lei, poderá fazê-lo decidindo

oficiosamente ou a requerimento da testemunha intimidada ou, sendo caso disso, do arguido

ou do assistente (31).

No fundo, trata-se aqui de clarificar o regime de requisição da força pública para a

manutenção da ordem nos actos processuais e garantia da segurança dos participantes, já

previsto no artigo 85.º, n.º 4, do Código, estendendo os seus efeitos às operações

instrumentais de deslocação dos declarantes e permanência no local da prestação de

depoimento (art. 20.º, n.º 1, als. b) e c) (32). No elenco de medidas possíveis, inovadora é

apenas a possibilidade de a autoridade judiciária determinar a vigilância e protecção

contínuas da testemunha e seus familiares (art. 20.º, n.º 1, al. b)), bem como a previsão de

um especial regime de segurança no interior do estabelecimento prisional (art. 20.º, n.º 1, al.

d)).

Em virtude da alteração de 2008 à «Lei de Protecção de Testemunhas», ao que parece

sob o influxo dos trabalhos da Comissão de Programas Especiais de Segurança, passou a

prever-se também a este título a possibilidade de ser temporariamente atribuída uma

residência diferente à testemunha (art. 20.º, n.º 1, al. f)) (33). Esta nova medida de segurança

não pode confundir-se com a mera indicação no processo de morada diferente da residência

habitual, já prevista no artigo 20.º, n.º 1, al. a) (e a que nos referimos a propósito do

anonimato). Está aqui em causa, diversamente, a concessão como medida meramente

31 É essa a solução adoptada pela lei a respeito da ocultação da testemunha (art. 4.º, n.º 1). 32 Veja-se o transporte em viatura fornecida pelo Estado para intervenção em qualquer acto processual e a disponibilização de compartimento próprio que permita à testemunha estar isolada nos locais aos quais tenha que se deslocar para prestar declarações. 33 Pelas suas implicações, para a testemunha e para os poderes públicos, a efectivação desta medida depende da colaboração da Comissão de Programas Especiais de Segurança e do Instituto de Gestão Financeira e Infra-Estruturas da Justiça (art. 10.º-A, do Dec.-Lei n.º 190/2003).

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pontual de nova habitação (no país), medida essa que poderia ser conteúdo de um Programa

Especial de Segurança caso o mesmo se justificasse (art. 20.º, n.º 2, al. c)).

Passou ainda a ser possível, mesmo no âmbito destas medidas esparsas, a imposição de

regras de comportamento a observar pelo beneficiário, «implicando a sua inobservância

dolosa a suspensão das medidas aplicadas» (art. 20.º, n.º 7). Neste como em todos os casos

de suspensão, modificação ou revogação das medidas, a decisão da autoridade judiciária é

precedida da audição da testemunha, salvo manifesta impossibilidade (art. 20.º, n.º 8) (34).

Não se prevê, estranhamente, o mesmo direito de audiência prévio à aplicação das medidas,

nem mesmo quando elas sejam acompanhadas da imposição de regras de comportamento ―

uma lacuna que se deverá a lapso legislativo e que incumbe ao intérprete integrar por

analogia com as situações previstas.

Por fim, veio estabelecer-se ainda que, quando a protecção deva previsivelmente

prolongar-se por mais de três meses, a corporação policial responsável, colocada em

melhores em condições de saber das efectivas necessidades de tutela do caso concreto, «pode

propor às autoridades judiciárias a adopção de outras medidas pontuais de segurança que

reduzam o perigo para a testemunha» (art. 20.º, n.º 6).

7.2. Um destaque especial merece o estabelecimento de programas especiais de

segurança que, sendo ainda praticamente desconhecidos entre nós, encontram já longa

experiência no direito norte-americano (35) e também na Alemanha (36) e em Itália (37).

34 Era diferente (menos exigente) a redacção da Proposta de Lei quanto à incidência do direito de contraditório: as decisões de modificação, revogação e suspensão seriam, sempre que possível, precedidas de audição da testemunha (art. 20.º, n.º 8, da Proposta de Lei n.º 179/X). 35 Instituído pelo Organized Crime Control Act de 1970, o Witness Protection Program visa assegurar a tutela efectiva das Crown Witnesses (em risco por causa da contribuição probatória prestada em processos respeitantes à criminalidade organizada), através de um plano individual que normalmente envolve o realojamento da testemunha e da sua família, a mudança de identidade e a ajuda financeira durante a fase de integração no novo meio social. De salientar que o cerne destes planos de protecção, coordenados pelo U. S.

Marshals Service, especificamente criado para o efeito, é a assinatura de um «Memorandum of

Understanding», um acordo quase-contratual sobre os direitos e os deveres de cada participante. 36 Na Alemanha, os primeiros programas de protecção foram delineados pela polícia de Hamburgo, em 1984, a propósito do complexo processo Hell’s Angels, que envolvia vinte arguidos, acusados pela prática de crimes muito graves (associação criminosa, extorsão, etc.), e trezentas e vinte testemunhas, a maioria das quais havia sido objecto de intimidação. Mais tarde, e seguindo o exemplo paradigmático de Hamburgo, outros estados legislaram no sentido de institucionalizar programas de tutela das testemunhas, harmonizados sob as «gemeinsamen Richtlinien der Innenminister und – senatoren der Länder zum Schutz gefärhrdeter Zeugen» (1990). Para uma análise mais circunstanciada da história, conteúdo e organização dos programas policiais de protecção nos EUA e na Alemanha, cf. BUGGISCH, Zeugenbedrohung und Zeugenschutz…, cit., 213-305, e ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., 157-94. 37 De modo semelhante, em Itália, a exigência de assegurar a incolumità dos collaboratori della giustizia, sobremodo evidenciada na perseguição judiciária dos grupos terroristas e, mais recentemente, da delinquência de tipo mafioso, justificou a adopção, pelos serviços secretos e forças policiais, de medidas especiais de tutela

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Estes programas de segurança são estruturados para proteger o interveniente processual,

os seus familiares e outras pessoas próximas, «durante a pendência do processo ou mesmo

depois de este se encontrar findo», mas apenas quando as declarações, dizendo respeito a

crimes especialmente graves ou cuja investigação revista especial complexidade (38),

constituam um contributo probatório essencial para a descoberta da verdade e da sua

prestação resulte grave perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou para a

liberdade do depoente (art. 21.º).

Cada programa individual é constituído por um plano articulado composto por uma ou

várias medidas de protecção e apoio (o fornecimento de documentos oficiais nos quais

constem diferentes elementos de identificação, a alteração do aspecto fisionómico ou da

aparência do corpo, a concessão de nova habitação no país ou no estrangeiro, a criação de

condições para a angariação de subsistência e a concessão de um subsídio por um período

limitado) (art. 22.º, n.º 1 e 2 (39)). Essas medidas são eventualmente associadas a regras de

comportamento (não frequentar certos meios ou lugares, não contactar determinadas pessoas,

etc.), cuja inobservância dolosa determina a supressão do programa (art. 22.º, n.ºs 1 e 3).

Bem se compreende, por isso, que a concordância da testemunha, formalizada pela

assinatura de uma declaração de aceitação, seja requisito indispensável ao estabelecimento

do plano policial de protecção (art. 24.º, n.º 3).

7.3. O simples elencar das novas medidas administrativas de tutela deixa entrever

inúmeras dúvidas e dificuldades, e isto tanto no plano organizacional de articulação da

competência entre as entidades envolvidas (autoridades judiciárias, Comissão de Programas

Especiais de Segurança, Direcção Geral dos Registos e Notariado, Instituto de Gestão

dos chamados «arrependidos» (pentiti), entre as quais a expatriação clandestina, a modificação dos dados pessoais e do aspecto fisionómico do declarante. Medidas que vieram a integrar um sistema administrativo de protecção, instituído ex legibus pelo d.l. n.º 8, de 15/1/1991 («Novas medidas em matéria de sequestro de pessoas com o fim de extorsão e para a protecção daqueles que colaboram com a justiça»). Vide, sobre este aspecto, MAZZA, «Pubblicità e collaboratori della giustizia», Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale [= RIDPP] (1994), pp. 1521 ss. 38 Os crimes incluídos no «catálogo» são, por força da remissão legal para o artigo 16.º, exactamente os mesmos que legitimam o anonimato das testemunhas. Existe, aliás, um forte paralelismo entre o elenco de condicionalismos de que depende a reserva da identidade da testemunha, por um lado, e o estabelecimento de um programa especial de segurança, por outro. 39 Algumas medidas de tutela revelam-se altamente limitativas dos direitos pessoais das testemunhas, podendo atingir não só a liberdade de deslocação, de escolha de profissão, de expressão, a inviolabilidade de domicílio, como até o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do sujeito, na sua dimensão de respeito pela identidade ou individualidade física e jurídica da pessoa.

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Financeira e Infra-Estruturas da Justiça, etc.), como sob o prisma material da legitimidade

dos próprios instrumentos utilizados (40).

Estas hesitações revestem-se de especial melindre quando referidas a concretas medidas,

em si mesmas — como o isolamento do recluso (41), a emissão de documentos oficiais com

elementos de identificação fictícios (designadamente, a questão da responsabilidade penal

dos funcionários que intervêm na sua elaboração (42)), a alteração da aparência do corpo do

declarante (e a liberdade consentimento para o efeito (43)) —, bem como na sua articulação

com o compromisso de respeito de regras de comportamento, considerada a sua natureza, as

suas implicações e as consequências da sua inobservância dolosa. É certo que se pode traçar

limites, quer na definição primária da natureza destas regras (que devem ser ajustadas e

proporcionais às finalidades de protecção), quer na determinação das consequências do seu

incumprimento (a supressão do programa só pode ter lugar se não implicar um agravamento

da situação inicial de risco para a testemunha). Mas, ainda assim, julgamos que alguns dos

problemas suscitados pelas medidas de protecção administrativa ultrapassam em dignidade e

complexidade os que estão associados à tutela da testemunha no processo (44).

O véu de dúvida e incerteza adensa-se com a crescente afirmação de uma cultura de

emergência na perseguição da criminalidade mais violenta e organizada, em que a concessão

de determinados benefícios (a reintegração num novo meio social, a atribuição de um

subsídio de subsistência, etc.) surge como contrapartida real da prestação de um serviço ao

40 Fazendo ressonância de dúvidas semelhantes, ZACHARIAS, Der gefärhdetfe Zeuge…, cit., pp. 178 e ss. 41 Senão leia-se o artigo 92.º, n.º 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro): «a colocação do recluso em cela de separação da restante população prisional só pode ter lugar quando exista perigo sério de evasão ou quando, devido ao seu

comportamento, exista perigo sério da prática de actos de violência contra bens jurídicos pessoais, do próprio ou de terceiro, ou patrimoniais, se os meios especiais menos gravoso se revelarem ineficazes ou inadequados» (itálico nosso). 42 O crime de falsificação de documento é um crime de intenção ou resultado cortado ― a norma incriminadora exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que não integra a factualidade típica («com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para

outra pessoa benefício ilegítimo») ―, pelo que as hipóteses pensáveis parecem nem sequer atingir o limiar da tipicidade. Não obstante, o artigo 16.º, n.º 5, do Dec.-Lei n.º 190/2003, estabelece uma causa de exclusão da pena, afastando expressamente a punibilidade daquelas condutas. 43 Partindo de um «paradigma dualista» de consentimento (mas sem querer tomar partido na questão de saber se, no caso concreto, estaremos perante um acordo, que exclui a tipicidade, ou apenas perante um consentimento, que afasta a ilicitude), sempre se dirá que a decisão da testemunha (i. é, do titular do bem jurídico) pode não ser aqui expressão da autonomia pessoal ou acto de auto-determinação autêntica. Geralmente, o declarante encontra-se numa tal situação de perigo que é no mínimo duvidoso poder falar-se de uma autêntica liberdade de decisão e vontade ― em particular, a testemunha (stricto sensu), colocada perante a contingência de escolher entre os actos violentos de terceiros (se declarar com verdade), as sanções criminais do Estado para o falso testemunho (em caso de recusa de depoimento) e as limitações inerentes ao programa policial de protecção (com as suas limitações e regras de comportamento).

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Estado na realização do ius puniendi, circunstância que a ocorrer entre nós, poderá suscitar a

questão da proibição de valoração das provas obtidas (cf. art. 126.º, n.º 2, al. d), do CPP:

«condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto») (45).

b) A protecção no plano das normas processuais. Prelúdio de um «novo ponto de

equilíbrio» entre as garantias de defesa e a eficácia da justiça criminal?

8. É a respeito da protecção no âmbito das normas processuais, disciplinadas nos

Capítulos II («Ocultação e Teleconferência») e III («Reserva do reconhecimento da

identidade da testemunha»), que se colocam as maiores dificuldades do ponto de vista do

equilíbrio dos interesses antinómicos (46) inerente à estrutura acusatória do processo

constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP).

44 Neste ponto, discordamos, portanto, do entendimento de RUI PATRÍCIO, «Protecção de testemunhas em processo penal», cit., 304-5. 45 Nos textos produzidos pelas instâncias internacionais a que o nosso país se encontra vinculado avultam orientações e sugestões no sentido da adopção de medidas adequadas a encorajar a «colaboração com a justiça» das pessoas que tenham cometido crimes graves, designadamente mediante a atenuação ou a isenção de pena. É o que sucede, p. ex., no âmbito da Resolução do Conselho 97/C 010/01, de 20 de Dezembro de 1996, relativa às pessoas que colaboram com a justiça na luta contra a criminalidade organizada transnacional, e no âmbito das Convenções das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000) e contra a

Corrupção (2003). Entre nós, a figura do «arrependido» tem amparo legal, com a previsão de casos de atenuação especial ou mesmo dispensa de pena, a respeito dos crimes de corrupção e recebimento indevido de vantagem (art. 374.º-B, do CP, e art. 19.º-A, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho), dos crimes de associação criminosa e organização terrorista (art. 299.º, n.º 4, do CP, e art. 2.º, n.º 5, da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto), bem como no âmbito do combate à criminalidade económica e financeira (art. 8.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro). Uma primeira tentativa de associar uma componente «premial» à protecção de testemunhas surgiu com a Proposta de Lei n.º 179/X, em que se previa, a par da concessão de uma moratória à testemunha impossibilitada de cumprir as suas obrigações para com o Estado em resultado da sua colaboração com a justiça (que passou a texto de lei: cf. art. 31.º-A), ainda um caso de atenuação especial e dispensa de pena, que não ficou a constar da versão final do diploma dada à estampa no Diário da República (e isto muito em razão do parecer desfavorável da Ordem dos Advogados, relatado por Germano Marques da Silva). Fortemente crítico em relação à figura, censurando em particular natureza aparentemente sinalagmática entre as «prestações» do Estado e do arguido, GERMANO MARQUES DA SILVA, «A criminalidade organizada e a investigação criminal», in Memórias do I Congresso de processo penal, Livraria Almedina, 2005, pp. 406-7. 46 E que são, por um lado, os interesses da descoberta da verdade e de tutela dos direitos e liberdades fundamentais do declarante, e, por outro lado, o respeito pelos direitos fundamentais do arguido que emergem da sua dignidade intocável. A concretização destes objectivos assume, no processo, um carácter intrinsecamente ambivalente ou antinómico, devendo respeitar o «princípio da concordância prática» (K. Hesse): sacrifício mínimo e proporcionado dos interesses em conflito, de modo a salvaguardar o essencial de cada um e a máxima eficácia do sistema constitucional no seu todo. A garantia do «processo equitativo» (art. 20.º, n.º 4, da CRP) surge, neste contexto, como um elemento de unidade valorativa de todos os mecanismos destinados a garantir uma protecção alargada, segundo um princípio de harmonização, dos direitos fundamentais dos participantes no processo, i. é, as prerrogativas do arguido e (talvez com não menor intensidade) os direitos de quem presta um contributo à descoberta da verdade. Por isso se diz, com inteira justeza, que «um fair trial não é só um direito do arguido: é também algo devido à testemunha» (ANABELA

MIRANDA RODRIGUES, «Justiça penal internacional…», cit., p. 16).

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«Um tal processo há-de ser um processo equitativo (a due processo of law), que tenha

como preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito

pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias

de defesa e que não se admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório e pela

percepção directa e pessoal do juiz (princípios da oralidade e da imediação)» (47). Vejamos

então se, na disciplina de cada uma das medidas de protecção, o legislador logrou respeitar o

modelo de concordância prática precipitado nas normas constitucionais.

8.1. Em relação a crimes que devam ser julgados pelo tribunal colectivo ou do júri, é

admissível o recurso à teleconferência nos actos processuais revestidos de publicidade ou

sujeitos a contraditório (audiência, debate instrutório, tomada de declarações para memória

futura, etc.), sempre que ponderosas razões de protecção o justifiquem (art. 5.º, n.º 1).

Embora a lei não o diga expressamente, a decisão deverá competir ao juiz que presida ao

acto, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou da testemunha

(art. 6.º, n.º 1). Havendo requerimento, este deve ser fundamentado com a indicação das

circunstâncias concretas que justificam a medida (art. 6.º, n.º 2), sendo a decisão precedida

da audição dos sujeitos processuais não requerentes (art. 6.º, n.º 3).

Não parece especialmente problemática a mera utilização de instrumentos tecnológicos

na protecção de testemunhas (icasticamente denominada «teleconferência»), já que estes

mecanismos possibilitam a transmissão «à distância» dos depoimentos prestados sem

prejudicar a contextual visibilidade do declarante e o reconhecimento da sua fisionomia por

todos os que intervêm ou assistem ao acto processual. Não se trata, de resto, de uma

autêntica novidade processual: a teleconferência é já recorrentemente usada para a tomada de

declarações a pessoas residentes fora do círculo judicial, se forem previsíveis graves

inconvenientes na deslocação e não houver razões para reputar a sua presença essencial à

descoberta da verdade (art. 318.º, n.º 5, do CPP) (48). Podemos afirmar que o fundamento

político-criminal de tutela das testemunhas se sobrepõe (ou, pelo menos, se equipara), em

valor e dignidade, à consideração dos inconvenientes associados à deslocação da testemunha

residente em círculo judicial diferente. O que seria suficiente, pensamos nós, para legitimar a

47 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/92, de 6 de Maio, publicado em BMJ, n.º 427(1993). Itálico nosso. 48 Os «graves inconvenientes» associados à prestação presencial de declarações, a que o texto legal se refere, podem ser de natureza objectiva ou funcional (p. ex., resultantes da inexistência ou impraticabilidade dos meios

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teleconferência (sem ocultação) mesmo em processos da competência do tribunal singular

(como o são, p. ex., alguns crimes de violência doméstica, em que pode ser sério o risco de

intimidação).

Embora o simples recurso à teleconferência não se encontre ferido de um insuperável

juízo de censura do ponto de vista constitucional, a medida não está ainda assim isenta de

críticas. Deixando de lado a questão das eventuais dificuldades técnicas de disponibilidade e

funcionalidade dos aparelhos a utilizar, não podemos ignorar, sob o prisma estritamente

jurídico, a singularidade, rectius, a incoincidência dos instrumentos audiovisuais com a

estrutura tradicional do processo penal. De facto, a introdução de mecanismos de gravação

ou transmissão audiovisual, com fins de documentação dos actos processuais (arts. 101.º, n.º

1, e 364.º do CPP) ou substituição da proximidade física por uma proximidade

«electronicamente produzida» (art. 318.º, n.º 5, do CPP), representa uma relativa novidade

formal na actividade dos tribunais, que se arrisca hoje a perder a sua originária conotação de

fisicidade, essencial à dimensão simbólica inerente aos ritualismos da justiça. O caminho

trilhado pelo «processo penal electrónico» (Dahs) parece conduzir-nos do ambiente solene e

austero dos Palácios da Justiça para os ultra-modernos e informais «chat-rooms».

Não podemos, todavia, acompanhar neste contexto a doutrina alemã mais

«conservadora», que aponta à teleconferência, quase axiomaticamente, a violação do

princípio da imediação em sentido formal (formelle Unmittelbarkeit) (49). Entendemos que a

simples protecção através de teleconferência «não se afigura merecedora de veto de

ilegitimidade — já que, em si, apenas impede uma relação de proximidade física com o

tribunal, os sujeitos processuais e o público» (50), mas não a experiência e a impressão

pessoal da prova que o artigo 355.º do Código quis tutelar. De facto, o princípio da produção

das provas em audiência, mais do que um estéril formalismo, é tradução positiva da

necessidade de favorecer o controlo in itinere da atendibilidade dos resultados probatórios

pelo tribunal e pelos sujeitos processuais. À semelhança da presença física, a transmissão do

testemunho à distância consente a percepção pessoal do comportamento do examinado ― as

de transporte), bem como respeitar a circunstâncias subjectivas ou pessoais do declarante (estado de saúde precário, idade avançada, etc.). 49 Com amplas indicações bibliográficas, ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., pp. 254-6. Cf., ainda, BEULKE, «Empirische und normative Probleme der Verwendung neuer Medien in der Hauptverhandlung», Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenshaft (2001), pp. 732-6, MEURER, «Zeugenschutzgesetz und Unmittelbarkeitsgrundsatz», Juristische Schuldung (1999), pp. 937-41, e RAFARACI, «I mezzi audiovisivi nel processo penale tedesco», RIDPP (2000), pp. 268-9. Entre nós, a imediação formal exprime-se na regra segundo a qual «não valem em julgamento, nomeadamente para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência» (art. 355.º, n.º 1, do CPP).

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suas reacções mímicas, os movimentos corporais, as hesitações e pausas no discurso, a

loquacidade ―, permitindo ao tribunal firmar as suas conclusões próprias sobre a

credibilidade da fonte de prova. Daí que o legislador tenha equiparado os depoimentos e

declarações prestados por videoconferência à audição presencial das pessoas na sala de

audiência (art. 15.º).

Parece-nos também inquestionável a compatibilidade das medidas de separação espacial

com o princípio do contraditório, na sua vertente subjectiva de direito à prova, ou seja,

enquanto «faculdade que têm os sujeitos processuais de participar activamente na produção

da prova, quer requerendo a sua admissão no processo, quer participando na sua produção»

(51). Não obstante a influência conceptual e terminológica dos ordenamentos de common law

sobre o texto da Convenção Europeia (que integra o nosso direito, por força do art. 8.º, n.º 2,

da CRP), o «direito a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a

convocação e interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as

testemunhas de acusação» (art. 6.º, n.º 3, al. d), da CEDH) não impõe como nota essencial o

confronto face-a-face entre o arguido e a testemunha (52). Esta ideia resulta confirmada pela

mais recente jurisprudência do Tribunal Europeu, que rejeita uma construção formalista para

enunciar, como núcleo irrenunciável do contraditório, a possibilidade adequada e suficiente,

dada ao arguido, de pôr em dúvida a credibilidade dos depoimentos prestados pelas

testemunhas de acusação (53).

Paradoxalmente, e como veremos de seguida, estabelece-se para a aplicação da

teleconferência requisitos mais exigentes do que os previstos para as medidas de ocultação

50 ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «Justiça penal internacional…», cit., p. 17. 51 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de processo penal II, 4.ª ed., Editorial Verbo, 2008, p. 133. 52 Nesse sentido tem evoluído também a interpretação da VI Emenda da Constituição Americana, em que se exprime o right of confrontation e o right to compulsory process e onde texto da Convenção Europeia foi beber inspiração. Depois de ter levado quase ao paroxismo a ideia de confrontation, atribuindo-lhe o significado de um eye contact between the defendant and an accusing witness (p. ex., no Caso Coy v. Iowa (1988)), o Supreme Federal Court considerou conforme à Constituição, no Caso Maryland v. Craig (1990), a transmissão à distância, via closed-circuit television, do testemunho de um menor que havia sido vítima de abuso sexual (child abuse). É certo que o confronto face-to-face entre o arguido e as testemunhas constitui garantia da maior atendibilidade do depoimento obtido (a tensão psicológica derivada da solenidade do acto e a força sugestiva do ambiente cénico criado diminuem consideravelmente o risco de falsas declarações). Porém, entende a jurisprudência americana prevalente, mais do que a exigência de uma physical confrontation entre as partes e os meios de prova, a Confrontation Clause traduz a possibilidade concreta, atribuída ao arguido, de exercer os seus direitos em contraditório com a acusação através do método da cross examination. Desde que assegurado o direito de contra-interrogar as testemunhas, a presença física do declarante pode ser dispensada, sem que se incorra em ilegitimidade constitucional, quando o determinem interesses superiores. 53 Neste sentido, também, a Recomendação do Comité de Ministros R (97) 13 afirma que «os preceitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a case-law dos seus órgãos (…) reconhecem os direitos da defesa a interrogar a testemunha e discutir a credibilidade do seu depoimento mas não exigem um confronto face-a-face entre o declarante e o presumível agressor».

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presencial da imagem (em que o comportamento processual do declarante não pode, por

definição, ser aprofundado e controlado com rigor). O que reflecte, da parte do legislador,

uma equívoca interpretação do sentido e do alcance da imediação e do contraditório na

formação da prova, claramente tributária de uma compreensão conceptualista dos princípios

orientadores do processo penal.

8.2. Na verdade, o recurso à ocultação da imagem e ou à distorção da voz pode, em

abstracto, ter lugar em todo e qualquer procedimento criminal (e já não apenas nos processos

da competência do tribunal colectivo ou do júri), sempre que se torne necessária a tomada de

declarações em acto processual público ou sujeito a contraditório e se verifiquem factos ou

circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha (54)

(art. 4.º, n.ºs 1 e 2). Também aqui vigora um princípio de judicialidade, podendo a decisão

ser proferida oficiosamente ou a requerimento de um círculo mais amplo de legitimados, que

inclui Ministério Público, o arguido, a testemunha e ainda o assistente (art. 4.º, n.º 1).

Em nossa opinião, este concreto mecanismo de protecção só adquire verdadeira

relevância quando se liga ao anonimato da testemunha (e, eventualmente, à teleconferência),

mantendo reservadas perante os sujeitos processuais (sobretudo o arguido e o seu defensor)

certas características fisionómicas ou linguísticas do declarante. Encontrando-se a

testemunha identificada no processo, a ocultação visual e acústica apresenta-se como um

simples sucedâneo da exclusão da publicidade (com sérios inconvenientes, quando

comparado com esta) (55). Poderá ter algum significado autónomo apenas no caso dos

agentes infiltrados, possibilitando a intervenção em ulteriores acções ocultas de investigação

(art. 4.º, n.º 4, da Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto).

54 Entende-se aqui por intimidação «toda a pressão ou ameaça, directa, indirecta ou potencial, que alguém exerça sobre a testemunha com o objectivo de condicionar o seu depoimento ou declaração» (art. 2.º, al. a)). Segundo a exposição de motivos (da Proposta de Lei n.º 218/VII), o conceito adoptado é propositadamente amplo para incluir no âmbito de protecção da norma todo e qualquer comportamento intencional dirigido a condicionar o comportamento da testemunha, ainda que não subsumível à descrição típica da ameaça ou da coacção. 55 Impõe-se então uma clarificação do regime legal no sentido de prever expressis verbis a possibilidade de exclusão da presença do público nos actos processuais, designadamente na audiência de julgamento, com a finalidade de «salvaguarda da segurança dos participantes processuais» e pelo tempo indispensável à consecução desse desiderato, à semelhança do que sucede já em outros ordenamentos no espaço jurídico europeu (p. ex., o art. 472, 3, do CPP italiano, e o § 172, 1, a, da GVG alemã) e parece consentido pelas convenções internacionais a que nos encontramos vinculados (cf. arts. 6.º, n.º 1, CEDH, e 14.º, n.º 1, PIDCP). Esta clarificação permitiria, simultaneamente, reservar o âmbito de aplicação das medidas de ocultação a um círculo muito restrito de hipóteses, conexionadas com a protecção do anonimato e dos agentes infiltrados, em que a adequada tutela da testemunha impõe que a sua imagem não seja acessível aos próprios sujeitos processuais.

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Uma primeira objecção que se pode colocar à previsão legal deste tipo de mecanismos

respeita a uma ideia de dignidade dos tribunais: determinados procedimentos de alteração da

imagem física da testemunha ou de ocultação do seu aspecto exterior (a utilização de

máscaras ou perucas, a colocação de biombos ou telas, etc.) podem converter os actos

processuais, sobretudo os actos públicos nos processos de grande repercussão mediática, em

autênticas sessões de «teatro judiciário» (56). Esta questão meramente técnica, solucionável

no momento da escolha dos modelos operacionais (i. é, na definição do âmbito e da forma

exterior dos procedimentos protectivos), não nos parece um argumento decisivo na discussão

sobre a (i)legitimidade da utilização processual de meios de separação óptica.

Num plano mais fundo, a ocultação do aspecto exterior da testemunha pode configurar

um desvio aos princípios da imediação e do contraditório ou, subjectivando o discurso, uma

compressão do «direito de defesa» do arguido (art. 32.º, n.º 1, da CRP). E isto porque as

medidas de ocultação presencial da imagem dificultam a aquisição de informação não-verbal

necessária à verificação da credibilidade do declarante, designadamente a detecção de

determinadas manifestações comportamentais — como a posição, os gestos das mãos, os

movimentos e a expressão do rosto, a sudação, o tremor, a congestão facial, etc. Objecções

análogas podem fazer-se, mutatis mutandis, para a teleconferência com obscurecimento

técnico da imagem ou da voz da testemunha (art. 5.º, n.º 2). Reconhecendo o handicap, o

legislador procurou garantir a eficácia gnoseológica da prova ao prever a possibilidade de ser

facultado ao tribunal o «acesso, em exclusivo, ao som e à imagem não distorcidos» (art. 14.º,

n.º 1). O que, se atenua os defeitos desta medida no plano da imediação judicial, não obsta a

que fiquem diminuídas as possibilidades de percepção própria do material probatório pelos

restantes participantes processuais (57).

Parece-nos ainda assim legítimo o pontual afastamento de alguns aspectos do regime

tradicional e preferível de produção de prova, como forma de conciliar os interesses e

valores conflituantes. À sua utilização deverão corresponder, todavia, maiores cautelas do

56 Em tom fortemente crítico, diversos autores qualificam estas «mascaradas» (Tiedmann/Sieber) como verdadeiras «degenerações processuais» (Bruns). Para estas observações, ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., 246, que, todavia, se manifesta favorável à ocultação. 57 Nas palavras de CORDERO, Procedura penale, 6.ª ed., Giuffrè Editore, 2001, p. 660, «os rituais da cross-

examination exigem óptica e acústica perfeitas»: a actuação do defensor na condução do interrogatório cruzado só é inteiramente eficaz se lhe for permitido percepcionar a reacção do declarante às perguntas formuladas. Daí a preferência, manifestada por ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., p. 251, na escolha dos métodos de ocultação visual, pela simples modificação do aspecto exterior do declarante, que tem, em face dos obstáculos físicos, a vantagem de permitir a consideração de uma parte valiosa das reacções mímicas, linguísticas e nervosas do sujeito, tanto para efeito da valoração da prova pelo juiz, como de possibilidades de defesa.

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julgador na valoração dos resultados probatórios, de modo a «contrabalançar» o relativo

enfraquecimento dos mecanismos de fiscalização da prova (o contraditório, a imediação).

8.3. Muitíssimo mais delicado se mostra o problema da admissibilidade de anonimato

do declarante, sobretudo nos termos, muito amplos, em que surge consagrado no nosso

ordenamento jurídico.

Na aferição da validade constitucional desta medida de protecção, impõe-se uma

primeira distinção entre o anonimato em sentido próprio, entendido como a ocultação de

todos os elementos que permitam individualizar a pessoa do depoente (aí incluídos os traços

fisionómicos), e a confidencialidade de concretos dados normalmente irrelevantes para a

aferição da credibilidade do testemunho, mas cuja revelação incondicionada poderia ampliar

o risco de intimidação (com significado particular, o local de residência).

Não nos parece de repudiar neste contexto a possibilidade, prevista entre as medidas

pontuais de protecção (art. 20.º, n.º 1, al. a)), de a referência ao local residência da

testemunha ser omitida no processo e substituída, para efeitos de comunicação e convocação

para actos processuais, pela indicação do domicílio profissional (no caso dos agentes

infiltrados) ou de outro local que não coincida com os lugares de domicílio previstos na lei

civil (p. ex., a sede da entidade responsável pela investigação) (58). De facto, o conhecimento

do lugar onde reside o declarante potencia o risco de actos de violência ou intimidação; em

contrapartida, o ocultamento dessa informação não prejudica os interesses do arguido na

discussão contraditória das provas, já que, em princípio, «o conhecimento da morada

(Wohnortes) não é relevante na avaliação da veracidade do testemunho» (59).

Pelo contrário, «a “testemunha anónima” [em sentido próprio] é uma contradição nos

termos: a testemunha, definida como a pessoa que pode fornecer ao juiz informações

pertinentes para estabelecer um estado de facto, nunca deverá ser anónima. Uma testemunha

tem uma identidade no sentido forte do termo, que o anonimato esconde», impedindo tanto o

58 Veja-se, para o assistente e as partes civis, já o artigo 145.º, n.º 5, do CPP. O direito francês e o direito alemão permitem também que a testemunha intimidada seja autorizada a indicar nos autos, em vez do seu domicílio pessoal, «l’adresse du service chargé de l’enquête» (arts. 62.º, 1, e 153.º do CPP francês), «seinen

Geschäfts- oder Dienstort bzw. eine andere ladunsfähige Anschrift» (§ 68, II, StPO). 59 BGHSt 37, 1, 3 ss., citado por ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge..., cit., p. 268. Não será assim apenas quando exista um ponto de ligação entre o domicílio do declarante e os factos que integram o thema

probandum (imagine-se uma testemunha que afirma ter observado os factos da varanda do seu apartamento). Aqui a verificação de determinadas circunstâncias atinentes ao contexto da observação com relevância na apreciação da validade probatória do depoimento (a visibilidade, proximidade em relação ao objecto da percepção, etc.) parece supor a indicação do local exacto onde a testemunha reside (ou residia ao tempo do cometimento da infracção).

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acesso à sua história e teia de interesses, como a compreensão e contextualização do seu

comportamento ou atitude processual (60). Mantendo-se secretos, ou melhor, reservados a

um número restrito de pessoas, os elementos de identificação da testemunha, impede-se aos

«não titulados» (aí incluído o arguido) o conhecimento da personalidade, estado psíquico,

capacidades cognitivas da testemunha, dos seus vínculos familiares e de amizade ou

remuneração, com reflexos ao nível da determinação da razão de ciência, bem como na

interpretação das respectivas reacções psicológicas e mímicas, linguísticas e nervosas.

Por isso, e na falta de indicações legais expressas num ou noutro sentido, entendemos

que a reserva sobre a identidade não se estende aos juízes a quem incumbe ouvir o

depoimento e determinar o seu valor probatório (61). Para além de prejudicar a tarefa de

avaliação da prova, a extensão do segredo ao julgador revela-se desnecessária

(desproporcional) do ponto de vista do cumprimento do dever estadual de protecção porque

a testemunha intimidada não precisa de ser defendida das próprias autoridades judiciais.

Por outro lado, para justificarem derrogações tão significativas ao regime normal de

aquisição de prova, os imperativos de protecção dos direitos fundamentais das testemunhas

e de realização do ius puniendi deverão revestir aqui especial densidade. É o próprio

legislador que insiste no carácter excepcional da medida, limitando a sua aplicabilidade aos

casos de testemunhos abstractamente credíveis e relevantes para a descoberta da verdade, na

perseguição da criminalidade organizada ou altamente violenta, quando haja grave perigo de

lesão de bens jurídicos essenciais do declarante ou dos seus familiares ou pessoas próximas.

É, assim, imposta a observância cumulativa de estritas condições.

Em primeiro lugar, o anonimato só será assegurado em relação a crimes de elevadíssima

danosidade social, descritos num catálogo legal taxativo (art. 16.º, al. a)) sucessivamente

ampliado (62). Trata-se de crimes para os quais os instrumentos tradicionais de tutela das

testemunhas parecem não dar resposta eficaz, levando o intérprete a «reequacionar os termos

60 ROTH, «Protection procédurale de la victime e du témoin…», cit., pp. 394-5. 61 A exigência resulta clara da tanto da «Protective Measures Decision», do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (supra, em nota), como da jurisprudência do TEDH (veja-se, a contrario, o Acórdão de 20/11/1989 (caso Kostovski C. Países Baixos), § 43, sobre a audição de uma testemunha por um juiz que desconhecia a sua identidade). O § 68, III, StPO, parece, pelo contrário, supor a ocultação da identidade da testemunha também em relação ao tribunal. 62 Os crimes do catálogo são, actualmente, os de tráfico de pessoas, associação criminosa, terrorismo, terrorismo internacional ou organização terrorista ou, desde que puníveis com pena de prisão igual ou superior a oito anos, os crimes contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade das pessoas, contra a liberdade ou auto-determinação sexual, de corrupção, de burla qualificada, de administração danosa que cause prejuízo superior a 10 000 unidades de conta, ou cometidos por quem fizer parte de associação criminosa no âmbito da finalidade ou actividade desta.

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da polarização direitos fundamentais/eficácia», no sentido da «procura de um “novo ponto de

equilíbrio” entre a protecção dos direitos de defesa do arguido e a máxima realização da

justiça penal» (63). Na enumeração legal incluem-se, então, as tipologias delituosas que, no

entender do legislador, se quadram no conceito, de coloração mais criminológica do que

dogmática, da «criminalidade organizada». Um conceito multiforme em cujos contornos,

ainda difusos, imprecisos e mutáveis, devem conter-se as infracções criminais muito graves

tipicamente cometidas no seio de estruturas ordenadas de expressão tentacular e

transnacional. E que corresponde, grosso modo, à definição legal de «terrorismo»,

«criminalidade especialmente violenta» e «criminalidade altamente organizada», enunciada

nas alíneas i), l) e m) do artigo 1.º do CPP (64). Não existe, todavia, uma sobreposição

completa dos conceitos e realidades criminais que, revestindo especial opacidade, admitem

maiores possibilidades de intervenção da máquina judiciária (alargamento dos prazos de

inquérito e da prisão preventiva, formalidades das revistas e buscas, admissibilidade de

meios mais invasivos de obtenção de prova: escutas telefónicas, registo de voz e imagem,

acções encobertas, etc.) (65). É tal a profusão dos catálogos legais, e tão heterogéneas e

desencontradas as suas previsões, que as instâncias oficiais correm o risco de encontrar no

emaranhado legislativo, não o pretendido factor de eficácia da justiça criminal, mas um

elemento adicional de complexidade na investigação e perseguição do crime organizado.

63 ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «A defesa do arguido…», cit., pp. 16-7. Dizer isto não significa, todavia, acolher o discurso extremado daqueles que, reivindicando-se de uma ética de justiça, acabam por admitir como válidos «na luta contra o crime» todos os mecanismos preventivos e repressivos que se comprovem eficazes. O postulado de algumas medidas especificamente reservadas à criminalidade mais grave, quase consensual entre os autores, não pode significar o abrir brechas nos princípios que constituem o suporte e tornam legítima a intervenção do direito processual. É o caso do «respeito pelo núcleo irredutível da dignidade humana, que pertence também ao criminoso mais brutal e empedernido» (FIGUEIREDO DIAS, «Sobre a revisão de 2007 do Código de Processo Penal português», RPCC (2008), p. 384). 64 Para uma tentativa de recorte conceitual da «criminalidade organizada», FARIA COSTA, «O fenómeno da globalização e o direito penal económico», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares (número especial do BFD), Coimbra Editora, 2001, 540 ss, e LEONOR ASSUNÇÃO, «Do lugar onde o sol se levanta, um olhar sobre a criminalidade organizada», in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 93 ss. 65 A possibilidade de edição de normas especiais para os casos de «terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada» foi salvaguardada logo na versão originária do CPP. No entanto, o legislador parece ter levado a efeito a sua tarefa «sem afinada consciência dogmática, renunciando a uma regulamentação global e adequada dos pontos processuais de crise (sobretudo em matéria de validação das provas), preenchendo a fórmula com índices demasiado largos tanto em matéria de catálogo, como de pena aplicável» (FIGUEIREDO

DIAS, «Sobre a revisão de 2007…», cit., pp. 384-5). É sobretudo em legislação avulsa, editada sob o impulso imediato da emergência de novos fenómenos criminais, que se pode encontrar o elenco dos instrumentos e métodos de investigação especificamente reservados à criminalidade grave e organizada (p. ex., a Lei n.º 101/2011, de 25 de Agosto, sobre o uso de agentes infiltrados, a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que autoriza a quebra de segredo e o registo de voz e imagem na perseguição da criminalidade organizada e económico-financeira). Um elenco dominado por uma nota de «casuímo legislativo», traduzido na disparidade de catálogos

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Dissemos que tem sido sucessivamente alargado pelo legislador o numerus clausus dos

crimes a respeito dos quais se admitem testemunhos anónimos (e, dada a remissão legal,

também o âmbito de aplicabilidade dos programas especiais de segurança). Por força da

primeira alteração à «Lei de Protecção de Testemunhas», introduzida pela Lei n.º 29/2008,

passou a legitimar-se o anonimato também na perseguição de crimes contra as pessoas e de

corrupção, desde que puníveis com prisão de máximo não inferior a oito anos e ainda que

não cometidos no âmbito de uma associação criminosa. Pretendia-se, dessa forma, assegurar

a possibilidade de reserva da identidade das testemunhas no julgamento de infracções como

o homicídio, as ofensas corporais graves, a escravidão, o sequestro e o rapto, os crimes

sexuais contra menores e a corrupção, obviando às consabidas dificuldades práticas na

demonstração probatória do crime de associação (sobretudo sensíveis no que concerne à

prova do «dolo de associação») (66). Na segunda modificação legal, operada pela Lei n.º

42/2010, o legislador, surpreendido pela emergência de casos mediáticos de criminalidade

económica e financeira (67), alargou esta mesma possibilidade à burla qualificada e à

administração danosa (que cause prejuízo superior a 10 000 unidades de conta), desde que

puníveis com pena de prisão não inferior a oito anos. Pensamos, todavia, que a novel

ampliação do elenco normativo peca por excesso e, ao mesmo tempo, por defeito, atentos os

fenómenos criminais a que se dirige. Por excesso, quanto ao crime de administração danosa

(art. 235.º do CP), já que, independentemente do valor do prejuízo causado, o limite máximo

da moldura não atinge o limiar de gravidade exigido (oito anos) para a permissão do

anonimato (admitimos, aliás, que esta referência ao crime de administração danosa se tenha

ficado a dever a simples desatenção ou precipitação do legislador). Por defeito, na medida

em que não contempla, p. ex., o branqueamento de capitais (art. 368.º-A do CP), crime

legais e na multiplicação de distintos requisitos de admissibilidade e critérios de decisão nem sempre consistentes com o grau relativo de danosidade social de cada uma das medidas. 66 A intenção do legislador ao renunciar à conexão destas infracções com uma associação criminosa não foi, julgamos nós, a de abrir o leque de situações de admissibilidade de testemunhos anónimos à criminalidade comum, i. é, aos crimes cometidos fora do enquadramento do «terrorismo, criminalidade altamente violenta ou organizada», em que a intimidação das testemunhas é um fenómeno espúrio. Um tal alargamento estaria, aliás, constitucionalmente vedado ao legislador ordinário, por exceder o equilíbrio entre as garantias de defesa e as exigências de perseguição criminal imposto pelo princípio da concordância prática. 67 Na exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 228/XI, da autoria do Grupo Parlamentar do PCP, é expressamente mencionada a occasio legis que inspirou a modificação legal, a saber: «os acontecimentos ocorridos na última década no sistema bancário nacional ― em especial nos casos mais conhecidos do Banco Comercial Português, do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Privado Português». Não resistiu o legislador nacional, também aqui, a produzir apressadamente normas «para o caso», o que poderá justificar, pela irreflexão e reduzido amadurecimento da proposta, o lapso de escrita a que nos referimos em texto.

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económico-financeiro normalmente conotado com a existência de redes delituosas de grande

complexidade (68).

Embora a ampliação do catálogo não se revele ainda comunitariamente insuportável,

entendemos que a objecção da dificuldade de prova no crime de associação criminosa não

deve aqui impressionar o intérprete, nem muito menos condicionar as opções legislativas no

sentido da tipificação de novos casos de admissibilidade de testemunhos anónimos. Para a

decisão sobre o anonimato, em regra situada muito a montante do julgamento e da decisão

final, não se impõe um grau de convicção para além de toda a dúvida razoável sobre a

verificação dos elementos típicos da associação criminosa (como sucede para a condenação),

mas apenas a elevada probabilidade de tais elementos típicos se verificarem, ou seja, a

existência de indícios suficientes de cometimento da infracção ― ou seja, exactamente o

grau de confirmação da hipótese acusatória necessário para a sujeição dos factos e do agente

a julgamento (art. 283.º, n.º 1, do CPP).

Em segundo lugar, a reserva da identidade supõe que a testemunha, os seus familiares

ou outras pessoas próximas (69), estejam expostos a «grave perigo de atentado contra a vida,

a integridade física, a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado»

(art. 16.º, al. b)). Este ponto merece duas notas muito breves. A primeira, para sublinhar que

consideramos questionável a concessão do anonimato em caso de risco para bens jurídicos

de natureza patrimonial, ainda que de valor consideravelmente elevado. É outro, aliás, o

sentido da Recomendação R (97) 13 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que a

nossa lei parece ter pretendido decalcar, ao prever que «l’anonymat ne devrait seulement être

accordé que lorsque l’autorité judiciaire competente (…) aura estimé que la vie ou la liberté

d’une personne concernée est sérieusement menacée», a menos que se entenda que a

liberdade aqui referida é a não a liberdade de movimentos mas a liberdade pessoal, pois essa,

já se sabe, pode ser comprimida através de actos de violência sobre as coisas (bens

patrimoniais) (70). A segunda nota respeita ao grau de exigência na verificação da

razoabilidade dos receios invocados pela testemunha, devendo esclarecer-se que, se a norma

68 Fora do catálogo ficam também, p. ex., o tráfico de armas e o tráfico de drogas, que o Código inclui na definição de «criminalidade altamente organizada» (art. 1.º, al. m), do CPP) ― a menos que se logre demonstrar (nos termos enunciados em texto) a sua prática no contexto de uma associação criminosa. 69 Parece-nos supérflua a precisão introduzida pela Lei n.º 29/2008, no sentido de acrescentar a referência à «pessoa que com ela [testemunha] viva em condições análogas às dos cônjuges», por a inclusão de tais pessoas já resultar da locução «outras pessoas que lhes sejam próximas» constante da versão originária do diploma. 70 Cf., ainda, a lei alemã, neste ponto mais conforme ao espírito da Recomendação, que autoriza o anonimato quando haja receio de que «a vida, o corpo ou a liberdade da testemunha ou de outra pessoa sejam postos em perigo» (§ 68, III, 1, StPO).

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não impõe a materialização do perigo em actos concretos (i. é, a efectiva lesão dos bens

jurídicos que de seguida se pretende proteger), também não se basta com a mera

consideração da gravidade das infracções, sob pena de resultar incompreensível a

autonomização do requisito (sendo de extrema gravidade os crimes incluídos no catálogo,

todos justificariam de per si a concessão da medida) (71).

Em terceiro lugar, é necessário que o depoimento da testemunha em risco constitua um

«contributo probatório de relevo» (art. 16.º, al. d)). Não basta para o efeito, julgamos nós, a

verificação dos critérios gerais de relevância para a admissibilidade da prova (que o art.

340.º do CPP enuncia). Estamos aqui perante uma exigência adicional, sucessiva a um

primeiro juízo sobre a admissibilidade da prova: o testemunho anónimo só é admitido caso

apresente um relevo especial ou determinante para a comprovação dos enunciados factuais

controvertidos (72). Em caso prognose negativa sobre o relevo probatório daquela parcela de

conhecimento, julgamos que o juiz de instrução, a quem cabe a decisão, deverá não só

indeferir o pedido de não revelação da identidade, como uno acto recusar a aquisição

daquele meio de prova. Num modelo processual em que a descoberta da verdade material

não se perfila como um valor absoluto, a omissão de tutela tem de significar a total renúncia

à aquisição da parcela de informação probatória que a testemunha estaria em condições de

oferecer (73). E isto porque impor coactivamente ao indivíduo um sacrifício sério dos seus

direitos em prol de um objectivo comunitário, recusando ao mesmo tempo a garantia mínima

71 É este o entendimento que resulta do Acórdão de 26/3/96 (caso Doorson C. Países Baixos) do TEDH, onde se considera adequado a fundamentar o receio de perigo para a vida das testemunhas a circunstância de que é comum entre os traficantes de droga o recurso a ameaças ou à violência efectiva contra aqueles que prestam depoimentos desfavoráveis aos seus interesses, tanto mais que os declarantes haviam já sido vítimas de actuações intimidatórias dessa índole (cf. § 71). Ao invés, no Acórdão de 23/4/1997 (caso Van Mechelen e outros C. Países Baixos), o mesmo Tribunal concluiu que o facto de as testemunhas (agentes especiais da polícia) terem sido gravemente feridas na perseguição dos arguidos não configura motivo sério e adequado para justificar a concessão do anonimato (§ 61). 72 Em nosso entender, a autonomização deste critério especial de relevância tem, assim, em vista uma dupla função: a delimitação do âmbito de aplicação do anonimato e o estabelecimento de condições mais exigentes do que as impostas pelo artigo 340.º do CPP para a admissibilidade deste particular meio de prova. Esta cautela adicional é, aliás, ditada pelo bom senso: só quando a informação é decisiva, por inexistirem outros elementos probatórios suficientes para a decisão, será razoável admitir materiais que ab origine se sabe susceptíveis de desviar a correcta formação do convencimento. 73 A não concessão de uma medida de protecção numa situação de grave perigo para os direitos fundamentais não se compagina, em nosso entender, com o dever penalmente sancionado de colaborar na descoberta da verdade com declarações verdadeiras. Pensamos, por isso, que o legislador deverá prever expressamente, para este e demais casos de impossibilidade ou insuficiência das medidas de tutela, um direito de recusa de depoimento (cf., amplamente, nesse sentido, número marginal 11 destas notas). Esta asserção é já, em certa medida, confirmada pela disciplina legal: no caso de o juiz de instrução decidir não conceder a medida (ou de esta ser revogada) «são destruídos todos os autos que identifiquem ou possam identificar a testemunha, assim como o envelope que contém aquela identificação» (art. 5.º, n.º 1, do Dec-Lei n.º 190/2003). Para todos os efeitos, tudo se passará daí em diante como se a testemunha nunca tivesse existido para o processo.

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da posição ameaçada em virtude desse contributo, parece ofender a credibilidade, reputação

e imagem do Estado-de-Direito, as suas «mãos limpas» (Radbruch) na veste de promotor da

justiça penal.

Por fim, impõe-se que não haja motivos sérios para duvidar da credibilidade ou

sinceridade da testemunha, requisito a cuja verificação se dirige o processo complementar de

não revelação da identidade (art. 18.º). Com efeito, a decisão sobre o anonimato supõe um

mecanismo independente de verificação dos pressupostos de concessão da medida e controlo

da atendibilidade do declarante, i. é, um processo secreto e urgente, autónomo em relação ao

processo «principal», que inclui um debate oral e contraditório destinado a assegurar à

defesa uma intervenção constitutiva na fiscalização dos requisitos de aplicação da reserva de

identidade, na avaliação da credibilidade do próprio declarante e na comprovação da sua

razão de ciência. É louvável o objectivo auspiciado pelo legislador; mas será suficiente o

expediente técnico esboçado para o atingir?

Uma primeira leitura da lei poderá suscitar de imediato uma resposta negativa. Senão

vejamos: na discussão contraditória que antecede a decisão, intervém um advogado nomeado

para representar os interesses da defesa exclusivamente neste processo complementar,

circunstância que parece conflituar com o direito, constitucionalmente consagrado, de

escolher defensor e ser por ele assistido em todos os actos do processo (art. 32.º, n.º 3, da

CRP) (74). Em nossa opinião, a inconstitucionalidade invocada é apenas aparente: o arguido

não tem o direito de se fazer representar pelo advogado escolhido em todas as diligências do

processo, tem, isso sim, o direito de ser auxiliado e aconselhado pelo defensor ao longo de

toda a marcha processual e de por ele ser assistido (apenas) naqueles actos ou incidentes em

que deva intervir ou estar presente (p. ex., interrogatórios judiciais, exames, reconhecimento,

audiência). Pense-se nas diligências de investigação e recolha de prova efectuadas durante o

inquérito: não podendo assistir ao seu desenvolvimento, o arguido também não tem aí o

direito de fazer-se representar pelo defensor escolhido.

O núcleo do problema não é, assim, o dos limites da defesa técnica ou formal no

processo complementar, mas o de saber se esse processo é adequado a equilibrar ou

compensar as limitações, decorrentes do anonimato, ao direito de defesa material (art. 32.º,

n.º 1, da CRP).

74 Veja-se a discussão na generalidade da Proposta de Lei n.º 218/VII, onde esta temática foi discutida, sem que as objecções levantadas à opção governamental fossem consideradas suficientes para abalar o argumento retirado da relação de confiança entre o advogado e o seu constituinte, que «ficaria comprometida caso se fornecesse a identidade da testemunha ao defensor, proibindo-se este de a revelar ao arguido».

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Propendemos a entender que sim. Embora a fiscalização da credibilidade da prova pela

defesa não seja, nos casos de anonimato, contemporânea à sua produção em audiência (como

tipicamente sucede), ela não deixa aqui de realizar-se com anterioridade em processo

autónomo. Um processo em que, obviamente, não intervém o arguido, mas em que a

protecção dos seus interesses é assegurada não só pelo Ministério Público e pelo juiz de

instrução, obrigados a actuar com total objectividade e imparcialidade (75), como também

por um advogado incumbido de evitar, até onde é humanamente possível, erros

desfavoráveis à defesa na decisão sobre a oportunidade da medida e na fiscalização da

credibilidade da testemunha. E — repare-se — um advogado nomeado não por uma entidade

dependente dos poderes públicos, mas pela Ordem dos Advogados, a quem incumbe

escolher, de acordo com critérios de competência profissional, um causídico «com perfil

adequado para a representação dos interesses da defesa» (art. 18.º, n.º 3) (76).

Não se desconhece, todavia, que esta cisão entre a aquisição e a fiscalização das

informações probatórias de testemunhas anónimas torna muito mais débil a sua eficácia

persuasiva, ou seja, a legitimidade para nelas se apoiar a decisão do tribunal (77). E, por isso,

as declarações das testemunhas anónimas configuram um material probatório de qualidade

inferior, tanto no plano epistemológico de validade racional da prova, como sobretudo na

75 De salientar os impedimentos rigorosos associados a este processo ancilar com vista a garantir a máxima imparcialidade do juízo sobre o preenchimento das condições. Poder-se-á mesmo dizer, quase sem faltar ao rigor, que o magistrado não pode ter tido qualquer intervenção anterior no processo, atenta a extensão dos impedimentos previstos no artigo 17.º, n.º 3. Por outro lado, a decisão de um juiz sobre o pedido de não revelação da identidade impede-o de intervir ulteriormente a qualquer título no processo principal, evitando-se a suspeita de existência de um eventual pré-juízo sobre a força probatória das declarações produzidas. 76 No fundo, pretende-se neste processo complementar dar cumprimento efectivo ao comando estabelecido no artigo 1.º, n.º 5: «a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa», no sentido de possibilidade que aos sujeitos processuais deve ser dada de discutir oralmente quanto à necessidade de medidas de processuais de protecção e quanto ao relevo e à fiabilidade abstracta das provas a produzir, designadamente apresentando provas e requerendo as diligências que reputem necessárias «para o apuramento dos pressupostos de concessão da medida» (art. 18.º, n.º 3). 77 Se repararmos, aqui a sindicância sobre a atendibilidade do declarante não se exerce uno acto em audiência pelo julgador, ficando a cargo de diferentes entidades ao longo dos diversos momentos processuais: o juiz de instrução, a quem compete apreciar o pedido de anonimato e os seus fundamentos; o «magistrado acompanhante», incumbido de identificar o depoente, assegurar a liberdade e espontaneidade do testemunho e comunicar quaisquer incidentes que possam inquinar a sua eficácia; e, por fim, o tribunal que vai proferir a decisão. E as dificuldades adensam-se ainda mais quando considerado o estrito plano da defesa, já que apenas ao defensor nomeado ad hoc é revelada a identidade e «biografia» da testemunha, apesar de não ser a este advogado, «com intervenção limitada ao processo complementar», que cabe a representação dos interesses do arguido no processo «principal. O conhecimento dos elementos determinantes do grau de fiabilidade da testemunha pelo defensor nomeado faculta tão-só à defesa uma verificação perfunctória, deslocada para um momento muito anterior ao da valoração, sobre a credibilidade da testemunha. Em contrapartida, é facultada ao defensor escolhido pelo arguido, confortado apenas pela garantia de atendibilidade fornecida por outrem, uma ampla possibilidade de questionar directamente a testemunha, nos termos do formalismo do processo, quer sobre o conteúdo da sua memória dos factos, quer sobre aspectos úteis para aferir da sua atendibilidade genérica (desde que das respostas não resulte a revelação indirecta da identidade: arts. 11.º e 13.º).

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perspectiva político-constitucional da tutela dos direitos de defesa do arguido. Não é de

estranhar que sobre elas incida, como veremos, um juízo de desvalor legal ou normativo.

8.4. Um caso especial de anonimato é aquele que se encontra no artigo 4.º, n.º 3, da Lei

n.º 101/2001 («a autoridade judiciária competente pode, mediante decisão fundamentada,

autorizar que o agente encoberto que tenha actuado com identidade fictícia (…) preste

depoimento sob essa identidade»). Aqui o procedimento contraditório prévio à medida é,

compreensivelmente, dispensado: a razão de ciência da testemunha, bem como outras

informações relevantes na avaliação da sua credibilidade abstracta (o contexto da

observação, motivação do observador, etc.), são conhecidas pela defesa, permanecendo

inacessíveis apenas os dados pessoais de identificação (nome, local de residência), pouco

importantes na fiscalização da atendibilidade da prova (78).

Uma vez legitimado o recurso a técnicas ocultas de investigação no combate à

criminalidade mais grave (79), colocava-se de imediato a questão da eficácia processual-

probatória das informações reunidas.

Da colocação do problema na doutrina e jurisprudência nacionais parecia resultar

inequívoco o enquadramento dos agentes infiltrados ou encobertos na categoria legal dos «meios

de obtenção de prova», discutindo-se apenas a sua legitimidade à luz do artigo 32.º, n.º 8, da

Constituição (80). No fundo, estes «homens-de-confiança» eram vistos como técnicas específicas

78 Também o TEDH, no Acórdão de 15/6/1992 (caso Lüdi C. Suiça), sentiu necessidade de traçar uma distinção entre a prestação de depoimento por uma testemunha anónima sob designação codificada e a intervenção processual dos agentes infiltrados sob identidade fictícia, em que está em questão «um funcionário policial cuja função é conhecida» (§ 49). Nota definidora que tem um carácter bifronte porque, na opinião do Tribunal, torna desnecessário o anonimato completo, i. é, a ocultação da própria imagem ou aparência física do declarante (cf. § 49). Cf., ainda, o Acórdão de 23/4/1997 (caso Van Mechelen e outros C. Países Baixos), em que o tribunal considerou que a utilização de uma maquilhagem ou de um disfarce seria garantia suficiente para os undercover agents, ao mesmo tempo permitindo ao arguido um contacto visual directo com as testemunhas, designadamente a observação das suas reacções, com vantagens do ponto de vista da avaliação da credibilidade (§ 60). 79 Durante muito tempo permaneceu sem regulamentação a actividade dos agentes policiais ou civis que actuavam na execução de tarefas de investigação criminal com ocultação da sua verdadeira identidade. O artigo 52.º do Dec.-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, relativo ao combate ao tráfico de drogas, estabeleceu a primeira disciplina legal desta matéria. Disciplina que, mantida pelo artigo 59.º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, transitou, através do artigo 6.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, para o domínio da criminalidade económica e financeira. Finalmente, a Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, introduziu uma regulamentação comum para todas as «acções encobertas com fins de investigação e prevenção criminal», disciplinando ao mesmo tempo a aquisição no processo da informação probatória dos infiltrados. 80 Sobre a questão processual dos investigadores ocultos, pode ver-se, entre nós, COSTA ANDRADE, Sobre as

proibições de prova…, cit., pp. 219 ss., GERMANO MARQUES DA SILVA, «A fundamentação das decisões judiciais. A questão da legitimidade democrática dos juízes», Direito e Justiça (1994), pp. 27 ss., AUGUSTO

MEIREIS, O regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal», Livraria Almedina, 1999,

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de investigação policial, destinados (tal como as buscas, apreensões, escutas telefónicas) a tornar

possível a recolha de declarações, vestígios, coisas materiais, esses sim autênticos elementos

probatórios valoráveis em sede de decisão (claro está, quando se considerasse legítima a

actuação dos infiltrados). E as declarações do próprio investigador sobre os factos

percepcionados serão meios válidos de prova?

A confidencialidade da actuação ou identidade do funcionário de polícia criminal parecia

ter como contrapartida a não inclusão dos seus conhecimentos pessoais entre os chamados

«meios de prova», susceptíveis de influir de forma imediata sobre o sentido da convicção do

tribunal. Diferentemente do que entendem a doutrina e jurisprudência alemãs (que contemplam

como legítima a introdução em julgamento dos saberes probatórios dos V-Männer através da

leitura dos autos de investigação ou do testemunho indirecto), o aproveitamento processual das

declarações dos agentes encobertos apresentava-se entre nós como uma via muito difícil, atento

o princípio da ineficácia processual das informações anónimas (de que é mero afloramento o

artigo 129.º, n.º 3, do CPP).

De facto, o testemunho do funcionário policial ou do terceiro infiltrado só seria um meio

admissível de prova se prestado oralmente em julgamento, renunciando-se à protecção oferecida

pelo segredo sobre a identidade (81). O relato escrito da intervenção, ainda que levado aos autos,

destinava-se apenas, como hoje, a permitir o controlo da regularidade da actuação oculta, nos

seus pressupostos e no seu modo de execução, e a contextualizar os elementos ou indícios

recolhidos, nunca podendo conter (nem substituir) o testemunho ou as declarações pessoais do

agente sobre os eventos observados (82). Assim: na hipótese de o depoimento do infiltrado ser

indispensável como meio de prova, deveria o mesmo ser prestado oralmente em audiência

(mediante resolução fundamentada do juiz), não podendo esta actividade probatória ser

substituída pela leitura do relato escrito da intervenção, que se assemelha a uma prova secreta,

pré-constituída e obtida inaudita parte. E isto pese embora a letra da lei induzir a uma diversa

leitura, quando estabelece como critério de decisão da autoridade judiciária a absoluta

indispensabilidade «em termos probatórios» da junção do relato (83).

pp. 95 ss., e SUSANA AIRES DE SOUSA, «Agent provocateur e meios enganosos de prova. Algumas reflexões, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1207 ss. 81 A Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro, que introduziu modificações ao Dec.-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro («Lei de combate à droga»), previa expressamente a possibilidade de o funcionário de investigação criminal infiltrado prestar testemunho em audiência, decorrendo esta, na sua totalidade ou durante a realização do depoimento, com exclusão da publicidade (art. 59.º-A). 82 Veja-se o lugar paralelo do artigo 356.º, n.º 1. al. b), do CPP. 83 Cf. artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 101/2001. Como se diz em texto, entendemos que o relato escrito da intervenção do agente infiltrado nunca tem eficácia probatória directa, mas deve, em princípio, ser junto aos autos para permitir o controlo da regularidade da actuação oculta. A junção só deverá ser dispensada se: (1) for previsível um grave prejuízo para a tarefa de investigação criminal, decorrente da impossibilidade da utilização daqueles agentes em ulteriores acções encobertas; (2) existir um elevado risco pessoal para o funcionário ou a sua família; (3) ou a operação oculta se tiver revelado absolutamente infrutífera do ponto de vista da recolha de

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Embora não tenha sido esta a cronologia dos acontecimentos entre nós, a medida de

ocultamento da identidade surgiu no espaço europeu precisamente como resposta ao problema

da aquisição e valoração probatória dos conhecimentos dos infiltrados, possibilitando a elevação

destas técnicas de investigação ao plano dos meios de prova ― o mesmo é dizer, ao patamar dos

saberes com eficácia processual. E isto na medida em que tornou possível que o funcionário de

investigação criminal declare de acordo com os formalismos típicos da prova testemunhal (i. é,

de viva voz, em audiência, com contra-interrogatório), sem ao mesmo tempo renunciar à

confidencialidade da sua identidade. Nesta medida, e apesar da cautela e circunspecção com que

deve ser visto, o ocultamento traduz uma clarificação do regime das provas obtidas pelo agente

infiltrado, evitando a duplicidade inerente à circunstância de os seus conhecimentos pessoais,

pese embora servirem aos fins subterrâneos da investigação dos factos, nunca integrarem o nível

luminoso dos fundamentos da decisão (84).

c) A valoração das declarações probatórias de testemunhas protegidas. A

corroboration e a livre apreciação da prova

9. A análise crítica do modelo de concordância prática desenhado pelo legislador não

prescinde da referência à exigência de corroboração dos testemunhos anónimos: só depois

da leitura completa e integral da disciplina normativa se pode avaliar com justeza a solução

proposta.

Ora, a introdução de uma regra legal de valoração da prova constitui, sem dúvida, um

dos aspectos mais salientes do regime traçado pela Lei n.º 93/99. Foi intenção confessa do

legislador adequar o normativo interno à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem, que insiste na necessidade de «tratar com extrema prudência» o conhecimento

probatório de testemunhas anónimas (85). Daí que nunca o juízo valorativo e consequente

decisão condenatória «poderá fundar-se, exclusivamente, ou de modo decisivo, no

provas. O mesmo princípio deve valer a propósito da documentação dos restantes procedimentos de investigação. Embora o artigo 275.º, n.º 1, do CPP, pareça atribuir ao Ministério Público uma certa margem de liberdade na decisão sobre que diligências de prova devem ser documentadas, julgamos que apenas é legítima a não redução a escrito dos actos, elementos e informações totalmente inócuos do ponto de vista das investigações ou, então, daqueles cuja revelação implique perigos desproporcionais para concretas pessoas. 84 Esta argumentação pode ser encontrada, com outras indicações, em SANDRA OLIVEIRA E SILVA, A protecção

de testemunhas…, cit., 149 ss. 85 Acórdão de 26/3/96 (caso Doorson C. Países Baixos), § 76, onde se recorda que, «even when

“counterbalancing” procedures are found to compensate sufficiently the handicaps under wich the defence

labours, a conviction should not be based either solely or to a decisive extent on anonymous statements» (§ 76).

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depoimento ou nas declarações produzidas por uma ou mais testemunhas cuja identidade não

foi revelada» (art. 19.º, n.º 2). A contrario, as declarações deverão ser corroboradas numa

medida determinante por elementos provenientes de fontes probatórias distintas que

permitam concluir pela sua veracidade.

Esta especial exigência de corroboração traduz-se numa derrogação do princípio da

livre apreciação da prova, ao impedir que o juiz possa firmar a sua convicção em declarações

de testemunhas anónimas quando constituam a única prova disponível ou a prova decisiva

dos factos imputados. E isto, sublinhe-se, mesmo quando esteja pessoal e intimamente

seguro da veracidade do conteúdo: neste domínio, para sustentar a condenação, a «certeza

moral» do julgador tem que combinar-se com a «certeza legal» (86).

9.1. No entanto, a existência de elementos corroborantes dos testemunhos anónimos só é

legalmente imposta caso se pretenda fundar nas informações probatórias assim obtidas uma

decisão condenatória: preocupado apenas com os riscos de uma condenação injusta, o

legislador não estendeu a exigência de corroboração às declarações de conteúdo favorável ao

arguido. Esta disciplina parece congruente com a natureza jurídica da regra da corroboração,

entendida como um critério legal destinado a «compensar», no interesse da defesa, os riscos

de uma decisão errónea associados à utilização do conhecimento probatório desta classe de

testemunhas (87).

Embora a informação introduzida por testemunhas anónimas se destine, em primeiro

plano, a comprovar a tese acusatória, pode suceder que, num caso particular, se mostre

favorável a algum ou alguns arguidos. Poderá o juiz valorar livremente aqueles depoimentos,

considerando-os na formação de uma convicção absolutória, mesmo que não estejam

verificados in casu os elementos adicionais requeridos pelo legislador para confortar a sua

atendibilidade? Dito de outro modo: poderá uma decisão de absolvição fundar-se,

86 Para a compreensão do sentido e alcance da livre apreciação e seus limites lógicos e normativos, cf. SANDRA

OLIVEIRA E SILVA, A protecção de testemunhas…, cit., 296 ss. 87 Este aspecto particular aproxima a exigência de corroboração à «teoria das provas legais negativas» proposta pela doutrina germânica e italiana dos princípios de oitocentos para circunscrever o perigo de decisões erróneas ou arbitrárias sobre a culpabilidade. A citada teoria proscrevia que a condenação se fundasse em exclusivo na convicção pessoal do julgador se desacompanhada da verificação da prova legalmente pré-determinada, mas mantinha a possibilidade de absolvição mesmo que tal prova não tivesse sido produzida. «Afastava-se, assim, o perigo de condenações impostas à consciência do juiz pela omnipotência do legislador: o respeito pelas regras probatórias legais não bastava para condenar, enquanto a sua observância preludiava a absolvição» (AMODIO, «Libertà e legalità della prova nella disciplina della testimonianza», RIDPP (1973), p. 323). Na mesma linha, a corroboração parece hoje assumir o valor de uma confirmação exterior, apenas imposta pela lei como necessária para sufragar a veracidade da hipótese condenatória.

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exclusivamente ou de modo decisivo, nos depoimentos não corroborados de testemunhas

anónimas?

Não existindo previsão expressa a impor a corroboração dos materiais úteis para a

absolvição do arguido, parece que as declarações favoráveis de testemunhas anónimas

deverão ser valoradas de acordo com o princípio geral da livre convicção da entidade

judicante (art. 127.º do CPP), válido para todos os meios de prova que a lei não sujeite a um

critério valorativo diverso.

É preciso reconhecer, ainda assim, que os perigos associados à valoração daquela fonte

de conhecimento não são eliminados quando as informações probatórias sejam favoráveis:

afastada a possibilidade de uma condenação arbitrária, subsiste o risco de uma decisão

absolutória materialmente mal fundada, desconforme às exigências da justiça (hoc sensu,

injusta). Por isso, apesar do silêncio da lei, pensamos que o juiz deverá ser especialmente

cauteloso e ponderado na verificação daquele material probatório: trata-se, aliás, de dar

concretização às regras de experiência a que se refere o artigo 127.º do CPP, em especial à

máxima segundo a qual os meios de prova menos controlados no seu modo de formação são

especialmente falíveis. E assim se desfazendo a perplexidade que poderia instalar-se no

espírito do julgador perante a possibilidade de um mesmo dado ontológico (o testemunho

anónimo) ser considerado ou não atendível consoante represente para o arguido uma

vantagem ou uma desvantagem (88).

De qualquer modo, ainda que as declarações da testemunha anónima não se mostrem

suficientes para sustentar o juízo de negação da hipótese acusatória, podem justificar a

dúvida razoável do julgador em relação à sua veracidade, com a consequente absolvição por

força do princípio in dubio pro reo (89).

9.2. Uma outra dificuldade interpretativa que se suscita é a de saber que qualidades

devem revestir os dados probatórios adicionais para que se possa concluir não ter a decisão

condenatória sido fundada de modo decisivo em testemunhos anónimos.

Postulando uma diferenciação ontológica (e não meramente quantitativa) de tais

elementos em relação à declaração, a «Lei de Protecção de Testemunhas» exclui apenas que

88 De facto, da previsão expressa de uma proibição de valoração in damnosis de um determinado elemento cognoscitivo (neste caso, as declarações não corroboradas de testemunhas anónimas), nem sempre podemos retirar a contrario a indiscriminada possibilidade da sua valoração in utilibus. 89 Propondo esta solução, a propósito das declarações prestadas por co-arguidos em favor de outros co-arguidos, MEDINA DE SEIÇA, O conhecimento probatório do co-arguido, Coimbra Editora, 1999, pp. 226-7.

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os elementos de corroboração possam ser constituídos pelo depoimento de outra testemunha

anónima (art. 19.º, n.º 2: proíbe-se o juízo condenatório fundado «nas declarações

produzidas por uma ou mais testemunhas cuja identidade não foi revelada) (90). A exclusão

da corroboração cruzada tem aqui o propósito claro de prevenir o perigo de à aparente

convergência de declarações acusatórias anónimas estar subjacente um acordo

incriminatório entre os depoentes. Conluio que dificilmente o juiz ou o arguido poderiam

deslaçar dadas as limitações inerentes à aquisição deste meio de prova.

Persiste, todavia, a questão de saber se basta que o elemento externo corroborante

conforte a atendibilidade da fonte ou se será necessário, mais especificamente, que confirme

a proposição factual enunciada pelo declarante. Estaremos, neste último caso, perante a

exigência de uma verdadeira prova autónoma, que se distingue e transcende a simples

corroboração (91).

É certo que a confirmação por prova independente, mais exigente que a corroboração

(porquanto exige que a comprovação se estenda a todos os factos narrados), aumenta a

eficácia persuasiva das declarações de testemunhas anónimas no sentido da veracidade de

uma certa representação histórica (92). Porém, a interpretação do artigo 19.º, n.º 2, no sentido

de aí se exigir a produção de uma prova autónoma torna rara, e praticamente inútil do ponto

de vista da perseguição penal, a efectiva utilização deste material probatório.

90 Neste sentido, já as indicações jurisprudenciais que vimos citando: tanto no Acórdão de 26/3/1996 (caso Doorson C. Países Baixos), como no Acórdão de 23/4/1997 (caso Van Mechelen e outros C. Países Baixos), se nega a possibilidade de fundar uma condenação em «anonymous statements», independentemente do seu número. Embora os textos desses Acórdãos sejam menos explícitos do que a nossa lei quanto a este ponto, deles se depreende que nunca o depoimento de uma testemunha anónima deverá bastar para estabelecer a atendibilidade de outro ou outros testemunhos da mesma natureza ainda que no caso concreto o julgador esteja convencido, para além de toda a dúvida razoável, da veracidade das informações produzidas. 91 De facto, os elementos corroborantes «são factos que por si só nada têm a ver com o tema histórico do processo mas de cuja existência (adquirida ao processo mediante um qualquer meio de prova: documento, testemunho, perícia, inspecção judicial) se conclui que o autor da declaração a verificar foi verdadeiro» (DOMINIONI, «La valutazioni delle dichiarazioni dei pentiti», Rivista di Diritto Processuale (1986), 747, citado por MEDINA DE SEIÇA, O conhecimento probatório…, cit., p. 200). Um caso paradigmático retirado da jurisprudência britânica (caso R v. Mc Innes (2002)) serve para ilustrar o conceito: uma menina de sete anos de idade, vítima de rapto e violação, ao narrar os factos consubstanciadores dos crimes, descreveu com incisivo pormenor o interior do carro onde teriam sido perpetrados os abusos sexuais, afirmando que o mesmo estava cheio de cobertores macios, que a base da alavanca de velocidades estava rasgada e a maçaneta descentrada. Inspeccionada a viatura, verificou-se que o seu interior correspondia exactamente à descrição, tendo o tribunal considerado suficientemente corroboradas as declarações da criança e condenado o arguido pelos factos que lhe eram imputados. 92 Cf. MEDINA DE SEIÇA, O conhecimento probatório…, cit., p. 200, nota (525). O autor rebate, desta forma, a crítica que acusa esta técnica de constituir uma autêntica aporia: pois, diz-se, ou a segunda prova, empregue como meio de verificação, é suficiente para demonstrar o facto contido na declaração a comprovar e, então, seria desnecessária a primeira fonte probatória; ou, como nova prova, requer também uma ulterior comprovação e, nesse caso, o problema está destinado a reproduzir-se até ao infinito.

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Para que à testemunha seja garantido o anonimato, a lei exige que as suas declarações

«constituam um contributo probatório de relevo», que elas se mostrem importantes ou

determinantes no estabelecimento da base factual da decisão. Pelo que, destinando-se a

informação probatória de uma testemunha anónima a comprovar (como normalmente

acontecerá) a tese acusatória, exige-se do intérprete um cuidado labor hermenêutico para

averiguar se, constituindo aquelas declarações um «contributo probatório de relevo», nelas

se sustenta ou não «de modo decisivo» a condenação (93).

O ponto de equilíbrio hermenêutico capaz de preservar a utilidade prática daquela fonte

de conhecimento e, simultaneamente, a função de garantia da regra probatória, poderá exigir

que o elemento exterior de prova, suportando a credibilidade das declarações da testemunha

consideradas no seu complexo (a narração global dos eventos percepcionados), confirme

especificamente alguns dos pontos da declaração: os enunciados factuais atinentes à

determinação dos autores da infracção (que constituem afinal, tema principal de prova).

Quando existam elementos de prova autónomos a respeito da responsabilidade criminal do

arguido, essencial para a demonstração probatória do crime, é possível afirmar que o

depoimento da testemunha anónima não é o fundamento único ou a fonte decisiva da

condenação. Sendo assim, o preceito legal deve ler-se como a tradução da exigência de

corroboração das declarações das testemunhas anónimas no seu todo, desde que fique

comprovado, com uma prova independente, um aspecto muito concreto dos que integram o

relato global, considerado essencial à responsabilização pessoal do arguido: a sua

identificação como comparticipante na infracção (94).

93 Na opinião dissidente que formulou ao Acórdão de 23/4/97 (caso Van Mechelen e outros C. Países Baixos), o juiz Van Dijk enfrentou esta perplexidade, afirmando que o critério cristalizado na expressão «em medida determinante», «é de difícil aplicação, porque se as declarações das testemunhas anónimas são usadas como prova, será sempre por o tribunal considerar que se trata de uma parte “determinante” das provas, que as completa, ou, ao menos, as torna suficientes». Assim, o tribunal enfrentaria um verdadeiro dilema: se considerasse não determinante a informação prestada por declarantes anónimos estar-lhe-ia vedado o uso dessa fonte de conhecimento; repousando nela de forma determinante a sua convicção, violaria a regra que proíbe a valoração das declarações não corroboradas de testemunhas anónimas. 94 Eis-nos assim chegados a um resultado semelhante ao defendido pelo TEDH no controverso caso Van Mechelen, em que se considerou que deve necessariamente ser submetido a confirmação por fonte de prova independente a identificação formal dos arguidos enquanto autores dos factos em investigação. A solução é ainda caucionada pela tradição anglo-americana da rule of evidence, que conhece duas versões ou modalidades de corroboration: a corroboração em sentido fraco (weak), impondo apenas a comprovação por terceira fonte da veracidade genérica do depoimento ou das declarações, e a corroboração em sentido forte (strong), que supõe a existência de elementos de confirmação independentes da declaração corroboranda capazes de implicar o acusado no cometimento da infracção. Sobre estas duas modalidades de corroboração, DENNIS, The law of

evidence, 2.ª ed., Sweet & Maxwell, 2002, pp. 526-7.

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9.3. Na falta de expressa previsão legal em sentido contrário, as declarações probatórias

feitas pelas testemunhas protegidas cuja identidade é conhecida no processo devem ser

valoradas, nos termos gerais do artigo 127.º, de acordo com «as regras da experiência e a

livre convicção da entidade competente», traduzida esta «na ausência de critérios legais pré-

determinados do valor a atribuir à prova» (95).

Não será ocioso repetir, todavia, que a protecção de testemunhas no processo implica

desvios significativos ao método que o Código definiu como preferível para a realização da

tarefa de aquisição das provas. Ainda que não revistam a mesma danosidade que o

anonimato, as restantes medidas de protecção (a teleconferência, a ocultação da imagem, o

afastamento do arguido, etc.) fogem ao esquema normal do conhecer judicial. Circunstância

que não pode deixar de ser tida em conta na avaliação judicial das provas, devendo o tribunal

exprimir na fundamentação as razões intrínsecas ou exteriores pelas quais, apesar de tudo,

considerou digna de crédito a testemunha e fiáveis as suas declarações.

Do mesmo modo, deve atender-se ao estatuto particular de cada participante que

incluímos sob o nomen testemunha (co-arguido, testemunha-vítima, assistente, perito), às

prescrições inerentes a esse estatuto (a imposição ou não do juramento, a existência ou não

de um dever de verdade) e à forma como esse estatuto influi na credibilidade abstracta das

informações prestadas. Não queremos com isto afirmar uma distinção no plano gnoseológico

entre as declarações dos diversos participantes processuais, dependente da posição formal do

declarante no processo, como pretendia o sistema das provas legais positivas. Pretendemos

tão-só deixar sublinhado que, de acordo com as máximas da experiência, a eficácia

persuasiva dos resultados probatórios não é de modo nenhum alheia à fonte de onde nasce

(96).

III

A protecção de testemunhas e o «processo equitativo». As insuficiências do

modelo?

10. Fomos antecipando que, no domínio da criminalidade organizada, o dever

constitucionalmente ancorado de protecção das testemuhas, entendido sob o duplo prisma da

95 FIGUEIREDO DIAS, Direito processual penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, p. 139. 96 Cf. MEDINA DE SEIÇA, O conhecimento probatório…, cit., pp. 207-8.

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salvaguarda de uma fonte de prova decisiva e da tutela da pessoa do declarante, é

susceptível de legitimar a definição de novos pontos de equilíbrio entre os interesses

antinómicos que se digladiam no processo.

Não pretendendo escamotear a necessidade de respostas de descontinuidade no

tratamento da criminalidade violenta e organizada (97), importa sublinhar que a protecção das

testemunhas há-de, ainda assim, concretizar-se de acordo com os cânones de um «processo

equitativo» (art. 20.º, n.º 4, da CRP). Ou seja, não pode justificar o aniquilamento das

prerrogativas de defesa, nem o total afastamento dos formalismos que condicionam o

procedimento probatório, na linha de um «direito penal de inimigos» (Jakobs) à margem de

todo o Direito (98).

Em nossa opinião, as soluções encontradas na «Lei de Protecção de Testemunhas»

representam um (ainda) cauto equilíbrio entre eficácia repressiva e justo garantismo na

perseguição dos crimes mais graves. A teleconferência, a ocultação da imagem, o anonimato,

etc., não podem, todavia, ser vistos como inócuas variantes em relação aos esquemas

tradicionais, reflexo da vontade decisionista e conformadora do legislador. Como vimos, a

adopção de medidas de tutela dificulta o controlo dialéctico da actividade heurística pelos

sujeitos processuais e, ressalvada a simples teleconferência, torna mais complexa a formação

de uma impressão pessoal sobre a atendibilidade das provas. Por isso, parece-nos correcta a

opção do legislador ao impor particulares escrúpulos na valoração destes resultados

probatórios, dessa forma preservando o equilíbrio valorativo inerente ao modelo processual.

11. Postas as coisas neste plano, suscita-se, inarredável, uma última interrogação. Quid

iuris se as medidas legalmente previstas, e em particular a reserva da identidade da

testemunha, não se mostrarem in concreto suficientes?

97 «Uma descontinuidade que é, de resto, reclamada pela heterogeneidade da fenomenologia criminal», oscilante entre o limiar da criminalidade bagatelar, de reduzida ofensividade social, manifestação característica da sociedade moderna — «urbanizada, diferenciada, anónima e anómica» (COSTA ANDRADE, «Consenso e Oportunidade», in Jornadas de Direito Processual Penal: o novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, 1988, p. 334) —, e as formas mais violentas de crime organizado e terrorismo, fenómenos excepcionais mas que «atacam o Estado-de-Direito mesmo nos seus fundamentos» (FIGUEIREDO DIAS, «Para uma reforma global…», cit., p. 203). 98 Em que, sob a invocação de um «estado de necessidade de investigação» (Ermittlungsnotstand), o retículo de valores fundamentais do iluminismo é definitivamente postergado em homenagem à máxima eficácia funcional da justiça. É especialmente elucidativo deste fenómeno de «medo institucional» o Patriot Act de 2 de Outubro de 2001, aprovado nos Estados Unidos, onde pululam regras que contrariam frontalmente as ideias subjacentes ao «due process», designadamente por ofensa dos princípios do juiz natural, da publicidade, do contraditório. Sobre a temática do «direito penal do inimigo», JAKOBS/MELIÁ, Derecho penal del enemigo, Hammurabi,

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Apesar de constituir medida-limite nos quadros de um «processo equitativo», o

anonimato pode não bastar para garantir a adequada protecção da testemunha. Pensemos, p.

ex., nos processos relativos a organizações terroristas ou outras formas de criminalidade com

dimensão transnacional, que inscrevem sistematicamente nos seus projectos criminais, como

finalidade essencial, a obtenção da impunidade através da supressão de todas as fontes de

prova (documentos, vestígios e, claro está, as eventuais testemunhas). Para a realização

eficiente desse objectivo contribui também a inevitável dispersão de fontes de informação

(pessoal técnico, funcionários judiciais, elementos de segurança, defensor nomeado, etc.),

quer no decurso do processo de apreciação preliminar da medida de reserva da identidade,

quer durante a prestação do testemunho anónimo (99).

Julgamos que a resposta não passa pela previsão de medidas ainda mais compressoras

dos direitos do arguido, respondendo-se à criminalidade com as mesmas armas de que se

servem os delinquentes na prossecução dos seus objectivos. Parece-nos seguro que a

confiança comunitária nas normas implica a superioridade ética do Estado, a sua irrestritível

lealdade na realização do ius puniendi e o respeito por um núcleo essencial de autonomia das

pessoas que colaboram com as instâncias de perseguição criminal.

«Não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser

investigada a todo o preço» — escreve-se com inteira razão numa das mais marcantes

decisões do Supremo Tribunal Federal alemão (100). É certo que a obtenção de provas e o

esclarecimento dos crimes assumem no Estado-de-Direito o mais alto significado; não são,

todavia, um valor absoluto ― a perda de material probatório relevante para a eficiente

administração da justiça criminal será de aceitar sempre que se mostre necessária à tutela de

2003, pp. 79-80, definindo-o em três notas: a antecipação da barreira de punibilidade, a desproporcionalidade das penas e a relativização ou a absoluta supressão de determinadas garantias processuais. 99 Não obstante a absoluta confidencialidade dos procedimentos ― assegurada pelos formalismos de tramitação (designação de um funcionário responsável pelos actos de secretaria, entrega de peças processuais em mão, depósito do processo em cofre: art. 2.º a 6.º do Dec.-Lei n.º 190/2003) e pela ameaça penal do crime de violação do segredo de justiça (art. 371.º do CP) ―, a reserva sobre a identidade da testemunha nem sempre é efectivamente assegurada. A realidade judiciária mostra-nos que são muito frequentes os casos de fuga de informação processual detectados mas não punidos, fenómeno que se acentua quando o processo respeita a membros de organizações criminosas, dotadas de um aparelho mais ou menos sofisticado votado a garantir a sua protecção face às instâncias de administração da justiça e que beneficiam de canais privilegiados de comunicação na estrutura estadual mediante a utilização de funcionários corruptos. É, aliás, recorrente a ideia de que «não há crime organizado sem corrupção», promiscuidade que «fragiliza sobremaneira a própria autoridade estadual, põe em causa a administração da justiça porque questiona o seu exercício relativamente àqueles cujo comportamento deveria ser o mais impoluto, mina as estruturas das instituições e das democracias» (CLÁUDIA SANTOS, «A corrupção [Da luta contra o crime na intercepção de alguns (distintos) entendimentos da doutrina, da jurisprudência e do legislador]», in Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 963-4). 100 Citada por COSTA ANDRADE, Sobre as proibições de prova…, cit., p. 117.

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bens mais valiosos, tais como a vida ou a integridade física da testemunha ou dos seus

familiares (101). Daí que, nas hipóteses-limite de impossibilidade de uma protecção adequada

das testemunhas, deva essencialmente recuar a própria aspiração de verdade, que justifica o

dever penalmente assistido de colaboração dos particulares na realização da justiça.

Esta ideia, que se funda no imperativo constitucional de tutela dos direitos fundamentais

e no princípio da prevalência do valor concretamente preponderante (princípio da

proporcionalidade), não encontra, quanto a nós, adequado reflexo na disciplina dos deveres

das testemunhas e demais participantes processuais. Não prevendo a lei expressis verbis um

«direito ao silêncio» em caso de risco fundado de lesão ou ofensa de bens jurídicos pessoais,

as testemunhas, o assistente, as partes civis, etc., que se recusem a declarar preenchem o tipo

objectivo dos crimes de falso testemunho ou falsas declarações (cf. arts. 359.º e 360.º do

CP). Para afastar a punição, pode aqui intervir, quando muito, o instrumentarium «normal»

da ordem penal substantiva, sobretudo a ideia de inexigibilidade (estado de necessidade

desculpante) ou mesmo o direito de necessidade (estado de necessidade justificante) (102).

No entanto, acompanhando a jurisprudência e a doutrina alemãs maioritárias (103),

pensamos que o perigo de lesão de bens jurídicos essenciais da testemunha ou dos seus

familiares (a que as medidas de protecção não possam satisfatoriamente acorrer) justifica

uma proibição de prova (Beweisverbot) na forma de um direito de recusa de depoimento,

resolvendo-se em sede de (falta) de tipicidade o problema da punição daqueles que se

recusem a prestar a informação probatória com este motivo (104).

101 Para lá de uma determinada fronteira ― a da garantia da dignidade das pessoas, da sua intocabilidade ―, o esforço de conciliação ou concordância prática deve ceder, havendo simplesmente que dar cumprimento à injunção constitucional de respeito e protecção dos direitos fundamentais (do arguido, das testemunhas, etc.) (cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito processual penal, cit., pp. 25-6). 102 Estas as vias trilhadas pela jurisprudência portuguesa, diferenciando-se as respostas concretas consoante a intensidade da lesão do bem jurídico realização da justiça (atendendo à gravidade da infracção, à complexidade da prova, ao relevo probatório do testemunho, etc.), a natureza do bem a salvaguardar (vida, integridade física, liberdade), o grau probabilidade da lesão (considerando o tipo e o significado das ameaças: sinais velados, como referências à família, telefonemas nocturnos, ou actos concretos e violentos, v.g. cartas ameaçadoras, disparos, destruição de bens, ofensas corporais; o tipo de criminalidade em investigação, etc.) e a extensão do

perigo (no caso das ofensas corporais, a natureza da agressão ameaçada: desde o simples pontapé até à amputação). Estes, afinal, os critérios determinantes para se aferir da «sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado» de que depende a justificação do facto (art. 34.º, al. b), do CP). 103 Com amplas indicações, cf. ZACHARIAS, Der gefährdete Zeuge…, cit., pp. 141-49, e pp. 277-84. 104 Pressupostos do direito de recusa seriam: a) a existência de um risco sério para a vida, a integridade física ou a liberdade da testemunha ou dos seus familiares (i. é, a alta probabilidade de uma lesão grave destes bens jurídicos pessoais) e b) a inexistência ou a insuficiência das medidas legais de protecção (p. ex., por não estarem preenchidos os respectivos pressupostos de aplicação). Dúvidas poderão surgir no momento prático da fiscalização do fundamento da recusa pela entidade que procede à inquirição, pois se o interesse público requer uma comprovação, ainda que perfunctória, da consistência dos motivos da recusa (para que se evite a fraude à

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Um direito de recusa que não pode ser visto na perspectiva redutora da melhor

atendibilidade da prova, antes como reflexo do dever estadual de tutela dos direitos

fundamentais, em particular do núcleo irredutível de autonomia pessoal, sc., da liberdade de

declaração da pessoa chamada a colaborar no processo, sob pena de toda a verdade ser

comunitariamente insuportável (105). Perante tais condicionamentos jurídico-normativos da

verdade do acontecimento histórico, não surpreende a afirmação axiomática de Cordero, de

que, no processo criminal, il problema della giustizia della sentenza sia in fondo secondario

(106).

lei e a desnecessária perda de prova), o interesse da testemunha impõe o absoluto silêncio sobre os factos objecto da imputação (sob pena de se poder vir a produzir o resultado danoso que se pretendia afinal evitar). 105 É certo que a participação do indivíduo numa tarefa que interessa a toda a comunidade — a correcta administração da justiça — justifica deveres legais e pequenos incómodos ou prejuízos (pessoais, profissionais, financeiros. Todavia, deve renunciar-se em absoluto a qualquer contributo probatório que redunde no sacrifício da integridade física ou moral dos participantes processuais (cf. arts. 32.º, n.º 8, da CRP, e 126.º, n.º 1, do CPP, como expressão parcelar desta ideia). A renúncia à aquisição de prova em função de necessidades de tutela de bens jurídicos mais valiosos (a vida, a integridade física, a liberdade) granjeia com facilidade argumentos a

fortiori nas hipóteses de recusa de depoimento já previstas no Código para determinadas categorias de testemunhas: os portadores privilegiados de segredo (art. 135.º e ss. do CPP), os parentes e afins do arguido (art. 134.º do CPP) e aqueles que aleguem que das respostas resulta a sua auto-incriminação (art. 132.º, n.º 2, do CPP). A asserção é válida em particular quanto a este último preceito, já que as consequências de uma pena criminal, aplicada no termo de um processo «equitativo», são consideravelmente menos graves do que as dos actos de violência do arguido ou de terceiros. 106 CORDERO, «Problemi dell’istruzione», in Ideologie del processo penale, Giufrrè Editore, 1966, p. 220. Reflecte o autor, explicitando o sentido da sua controversa afirmação: «julgar um nosso semelhante é empresa terrível que supera os limites da condição humana; também aqui a caça vale mais que a presa, isto é, o modo de agir conta mais que o resultado. Pode imaginar-se um processo em que, seja como for que as coisas vão, a dignidade humana é humilhada, e um outro no qual é respeitada: o que torna toleráveis, por isso, os inevitáveis erros» (ob. loc. cit.).