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Regimes de diferenciação, registros de identificação: identidades, territórios, direitos e exclusão social Véronique Boyer (CNRS-UMR 8168/EHESS-CERMA) O ponto de partida desta discussão sobre os regimes de diferenciação e os registros de identificação é a reflexão suscitada pelo título que as organizadoras deram a este colóquio: “Presos do lado de fora”: periferias, quilombos, favelas e ocupações . Inicialmente, pode parecer estranho que populações tão diferentes sejam reunidas sob um único rótulo. Pois se são de fato consideradas diferentes, à parte das regras que regem habitualmente a sociedade, é por razões bastante diferentes. Algumas são isoladas em razão de sua suposta periculosidade para o resto do corpo social: é o caso das favelas, com o argumento da predominância do narcotráfico, e das ocupações, com o argumento do respeito à propriedade privada. Para outras, ao contrário, o objetivo buscado é o inverso: não se trata de separar determinados grupos para proteger as populações ao redor, mas sim de proteger os grupos em questão de agressões exteriores. Aí a delimitação de fronteiras espaciais visa a dar segurança a quem está do lado de dentro: é o que acontece com a demarcação das terras das chamadas minorias, /a? quem se atribui uma história e uma cultura diferenciadas. A intenção do Estado é sem dúvida virtuosa, e só se pode concordar em amparar por lei os mais frágeis. Mas, quando a proteção é concedida 1

Regimes de diferenciação, registros de identificação: identidades, territórios, direitos e exclusão social

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Regimes de diferenciação, registros de identificação:

identidades, territórios, direitos e exclusão socialVéronique Boyer

(CNRS-UMR 8168/EHESS-CERMA)

O ponto de partida desta discussão sobre os regimes de

diferenciação e os registros de identificação é a reflexão

suscitada pelo título que as organizadoras deram a este

colóquio: “Presos do lado de fora”: periferias, quilombos, favelas e ocupações.

Inicialmente, pode parecer estranho que populações tão

diferentes sejam reunidas sob um único rótulo. Pois se são de

fato consideradas diferentes, à parte das regras que regem

habitualmente a sociedade, é por razões bastante diferentes.

Algumas são isoladas em razão de sua suposta periculosidade

para o resto do corpo social: é o caso das favelas, com o

argumento da predominância do narcotráfico, e das ocupações,

com o argumento do respeito à propriedade privada. Para outras,

ao contrário, o objetivo buscado é o inverso: não se trata de

separar determinados grupos para proteger as populações ao

redor, mas sim de proteger os grupos em questão de agressões

exteriores. Aí a delimitação de fronteiras espaciais visa a dar

segurança a quem está do lado de dentro: é o que acontece com a

demarcação das terras das chamadas minorias, /a? quem se

atribui uma história e uma cultura diferenciadas. A intenção do

Estado é sem dúvida virtuosa, e só se pode concordar em amparar

por lei os mais frágeis. Mas, quando a proteção é concedida

1

dentro dos limites de um território determinado e em nome de

uma diferença intrínseca, essa não pode ser lida e vivenciada

também, de certa forma e em alguns casos, como um

aprisionamento “do lado de fora”?

Essa observação é inspirada pelo argumento de Veena Das e

Deborah Poole (2004:24) quando afirmam que o Estado desenvolve

técnicas de conhecimento e de poder para tornar as populações

situadas nas suas margens legíveis. Pois se a entidade chamada,

outrora e ainda hoje, de “povo” é percebida como festiva,

corajosa, religiosa, ela aparece também muitas vezes, no

discurso do Estado e dos dominantes, como incontrolável,

multiforme, ameaçadora – um sentimento reconstituído no título

Classes laboriosas e classes perigosas dado pelo historiador Louis

Chevalier ([1958]) a seu livro sobre a França do século XIX.

E nessa perspectiva que gostaria de examinar as

orientações políticas atuais onde o Estado adota as categorias

jurídicas e legais baseadas no pressuposto de identidades

obviamente diferenciadas, historicamente e culturamente

fundamentadas. Parece-me, na verdade, que podemos e devemos

/indagar se essas políticas, enunciadas como tentativas de

reverter a desigualdade resultante da história do país, através

da atribuição de diversos direitos especiais, não remetem

também a tentativas renovadas de colocar ordem na desordem do

“povo”. Essa organização das margens passa pela busca de

correspondências entre os agenciamentos territoriais e

populacionais. Por um lado, procura-se homogeneizar, ou afirmar

a homogeneidade de uma população ocupando um dado território.

Por outro lado, busca-se desenhar e confortar limites claros

2

entre os “grupos-territórios” identificados: aqui a terra de

indígenas, aí de quilombolas, lá de povos tradicionais, etc.

Este processo, que pode ser qualificado de territorialização

cultural, para retomar a expressão de Akhil Gupta e James

Ferguson (1997:4), ou ainda de mapeamento cultural, leva à

criação de um mosaico de espaços com qualidades diferentes.

Na primeira parte deste artigo, irei discutir as bases da

construção e aplicação das categorias legais, em particular o

papel atribuído à história e a cultura. Considerando a

inscrição espacial dessas diferenças a partir de exemplos

amazonenses, irei em seguida abordar as tensões surgidas entre

os grupos que assumem identidades distintas, mas ocupam

posições sociais análogas. Terminarei retornando ao denominador

comum entre esses grupos e seus vizinhos sem identidade

jurídica, à saber sua fragilidade social e sua situação de

dependência.

1 – A diferença em busca de igualdade como base da ação do Estado

Com a Constituição de 1988, os direitos fundamentais de

vários grupos minoritários são reconhecidos e/ou reafirmados.

No intuito de concretizar estes direitos e de facilitar a sua

efetivação, o Estado consolida ou cria categorias jurídicas,

tais como os povos indígenas, as comunidades remanescentes de

quilombo e os povos tradicionais, onde se encaixarão grupos

sociais reais. A definição legal destas primeiras categorias

coloca uma ênfase maior sobre dois elementos, isto é, a

história e a cultura. Por um lado, cada uma delas é associada a

3

uma história específica dentro da formação histórica do país: a

história da conquista para os povos indígenas, a história da

escravidão para comunidades remanescentes de quilombo. Mais

difícil a princípio é caracterizar com uma palavra só a

singularidade da história dos povos tradicionais no Brasil

inteiro, mesmo se, para a Amazônia, a consolidação do sistema

socioeconômico do aviamento, que vigora do século XIX até os

anos 1970 (em algumas regiões), parece uma boa proposta. Por

outro lado, afirma-se que os grupos representativos de uma ou

outra categoria têm uma cultura própria que, sem muita

dificuldade, poderia ser distinguida da cultura brasileira no

geral: como prova disto, aponta-se às vezes para o uso de um

idioma outro que o português, outras vezes para uma organização

social (sistema de parentesco, sistema religioso, etc.) ou

práticas econômicas peculiares (agroextrativismo ou

autoconsumo, por exemplo). Nessa esfera da “cultura” encontra-

se também a relação específíca com o território, a natureza e o

meio ambiente que os grupos viriam a desenvolver (através da

“comunhão”, do “respeito”, da “memória”, etc.).

É :necessário notar que os termos história e cultura não

parecem participar da mesma forma da sustentação das

classificações jurídicas. A primeira noção permite situar as

categorias na História nacional, possibilitando traçar seus

contornos administrativos (se tratando da história da

conquista, o objeto da categoria será logicamente os indígenas,

se tratando da história da escravidão, o objeto serão os

quilombolas; e se for considerado plausível a proposta do

aviamento para a última categoria, essa acolherá os povos

4

tradicionais) enquanto a segunda deveria contribuir para lhes

dar um conteúdo a partir de um conjunto de traços obviamente

imprecisos. De fato, excetuando-se a diferença linguística

reservada aos indígenas, os elementos “culturais” indicados

como sinais de diferença são análogos para todas as categorias:

as populações, quer elas sejam indígenas, quilombolas ou

tradicionais, teriam relações mais harmoniosos com seu meio

ambiente que as outras; elas produziriam antes de mais nada

para seu próprio consumo; seu sistema de parentesco ou seu

sentimento religioso contrastaria com as formas “habituais”,

etc. - sem maiores considerações a respeito do que faria A

especificidade de cada categoria1, esta sendo supostamente

previamente estabelecida pelas histórias diferenciadas2.

Portanto, o Estado não apreenderia tão claramente as bases

da diferença entre a “cultura” própria de cada categoria quanto

aquelas referidas à sua “história” e, conseqüentemente, a

referência à cultura revela-se menos eficaz que o recurso à

história para distribuir os grupos concretos entre as

categorias jurídicas. Aliás, a qualificação dessas últimas,

enquanto “étnica” ou “etnoracial”, parece remeter não a uma

cultura que não se deixa definir, mas sim à forma como suas

histórias são caracterizadas (pela conquista, que aniquila, ou

1 Tal incapacidade das categorias administrativas de dotar-se de conteúdoque as distinga de outras não tem nada a ver com a singularidade de umgrupo social que a pesquisa etnográfica pode, ou não, evidenciar.

2 A indefinição em torno da caracterização das culturas não significa, deforma nenhuma, que o princípio de sua diferença não tenha importância. Aocontrário, a inclusão de um grupo social em uma categoria jurídica, eassim a sua associação à uma história específica, dá início a uma sériede expectativas por parte das autoridades sobre o tipo de “cultura” quedeveria apresentar. Mas então, trata-se mais de estereótipos do que dareal organização do grupo ou da maneira que ele se vê a si mesmoi. Verabaixo.

5

pela escravidão, que corrompe): o registro da etnia é

suficiente para manter à distância os povos indígenas, que o

senso comum representa como afastados; ele é intensificado pela

introdução da raça, no caso dos quilombolas e dos negros em

geral, percebidos como mais próximos da fantasmagórica norma

branca. De modo estranho, os povos tradicionais

(geograficamente distante, como os indígenas, mas com múltiplas

raízes, como os quilombolas) se distinguem novamente, já que

não seriam nem exatamente etnia nem precisamente raça.

Como antropólogos, nós estamos numa posição

particularmente privilegiada para compreender as hesitações a

respeito das classificações. Com efeito, sabemos que, muitas

das vezes, esses critérios culturais não são tão evidentes em

sua aplicação, e até nem pertinentes para as realidades com as

quais lidamos, para as situações concretas que observamos.

Estamos/somos? conscientes que grupos incluídos em categorias

legais diferentes podem apresentar um “baixo grau de

distintividade” cultural (João Pacheco de Oliveira, 1999:92) e

nenhum de nós se se admira quando as pessoas se referem

eventualmente a diversas “identidades” em função dos seus

interlocutores e do contexto. Compreendemos enfim que os grupos

se consideram diferentes quando a sociedade lhes nega esse

direito (problema que enfrentam os “índios ressurgidos”), bem

como não nos surpreeende que outros não se vêem como

diferentes, e que eles sejam discriminados assim mesmo (os

“caboclos”, sistematicamente inferiorizados, por exemplo). A

lista certamente poderia se estender, mas o objeto deste artigo

6

não é a teoria antropológica – até porque uma vasta literatura

nacional e internacional já trata deste tema.

Gostaria de retornar aos termos história ou cultura,

mencionados acima, não mais para sublinhar a diferença do papel

desempenhado por cada um na construção das categorizações

institucionais, mas para tentar precisar as maneiras pelas

quais, em conjunto, aqueles se articulam à essas. Parece-me que

podemos distinguir entre duas modalidades onde a relação entre,

de uma parte, o social estudado pela história e pela

antropologia e, de outra parte, as categorias jurídicas e

administrativas se invertem quase que completamente. Essas

modalidades remetem, na verdade, à momentos diferentes do

trabalho do Estado. No primeiro deles, parte-se da posição de

um segmento da população na História e/ou do tipo de cultura

que deveria supostamente apresentar para tentar definir os

contornos de uma categoria legal. É o tempo da consultação e,

entre outros interlocutores, a antropologia foi bastante

solicitada para se chegar a propostas de definições mais

abertas. A ressemantização do quilombo3, partindo da noção

histórica e dilatando-a cada vez mais para abranger um maior

número de populações, me parece um bom exemplo de uma lógica

que abre espaços para a negociação e renegociação de sentidos.

Na base de tal diálogo (por vezes robusto) efetua-se o trabalho

legislativo durante o qual se reflete sobre a maneira adequada

de responder às necessidades dos grupos que serão incluídos

numa categoria. Levando em conta a especificidade que já é

de uma categoria legal e não mais dos grupos concretos, define-

3 Ver, por exemplo, o texto clássico de Afredo Wagner Berno de Almeida(2002).

7

se os direitos aos quais ela dá acesso, e a forma que vão

assumir. Para dar o exemplo da educação, o número de alunos

para abrir uma nova turma escolar é de seis crianças para os

indígenas e de vinte para os quilombolas. Também pode-se

mencionar o regime territorial que vigorará: trata-se, para os

indígenas, de Terras Indígenas com uma concessão de uso

permanente sem propriedade do sub-solo; para os quilombolas, de

uma propriedade plena e coletiva da terra e, para os povos

tradicionais, de Reservas Extractivistas com concessão de uso

de dez anos renovável mediante o respeito do manejo florestal.

No entanto, existe também uma outra modalidade onde o

ponto de partida encontra-se, desta vez, na própria

nomenclatura institucional. Neste caso, e este comentário vai

no sentido do argumento de Talal Asad (2004: 283)4, é do

pertencimento de um grupo a uma categoria juridíca que se deduz

que ele apresentará tais traços culturais e que ele se origina

em tal história. Essa lógica não corresponde mais ao momento da

reflexão e da elaboração de uma tipologia, mas sim ao tempo da

ação do Estado. E é nesta fase que se constrói de modo visível

o mosaico espacial, a territorialização cultural que evoquei na

introdução. A implementação de uma “divisão administrativa do

trabalho” com uma especialização institucional, em função das

categorias legais, reflete esse processo. Assim, os povos

indígenas dependem da Funai, enquanto os dossiês quilombolas

são tratados num departamento reservado pelo Incra, e os povos

tradicionais são geridos pelo ICMBio. Vale notar que, nesse

último caso, a proteção dada pelo Estado é mais ambivalente que

4 ?“But the act of categorizing always involve abstraction from one contextand its application to another context.

8

nos precedentes, pois não têm a segurança total de conservar o

domínio da área onde vivem e trabalham.

O objetivo anunciado é compensar as injustiças que, no

passado, o Estado, seus representantes e aliados cometeram;

permitir que os descendentes daqueles que sofreram e foram

espoliados possam agora viver em paz, do jeito que querem. E de

fato, os grupos sociais que conseguem incluir-se em uma dessas

categorias especiais, e levar até o fim o processo do seu

reconhecimento oficial, beneficiam-se de direitos e programas

governamentais – os quais, me permito repetir, são diferentes

em função da escolha feita.

2 – A inscrição espacial das diferenças: a formação dos “grupos-territórios”

Durante um seminário sobre conflitos socioambientais e

direitos humanos numa cidade da Amazônia, onde estavam

presentes militantes de ONGs, universitários, representantes de

instituições públicas e lideranças, um padre da Comissão

Pastoral da Terra afirmou que 99% dos conflitos são gerados

pelo governo. Citando exemplos clássicos de madeireiras e

sojeiros ocupando a região através de “laranjas”, e de

fazendeiros grilando terras com altas cumplicidades, explicou

que as políticas de colonização tinham por objetivo fornecer

matérias primas e que o governo tinha interesse “no lucro, e

não nas pessoas”. Várias outras pessoas interviram também para

denunciar a venda de terras públicas pelas autoritades do

estado, a falta de vontade de fiscalização por parte dos órgões

responsáveis, bem como a sua extrema lentidão na demarcação das

9

terras. Não é necessário insistir nesse aspecto pois uma ampla

bibliografia trata deste tema5.

O que mais me chamou atenção na fala do padre foi quando,

após ter denunciado o governo, que “nos trata como lixo”, ele

encerrou detalhando este coletivo de “pequenos” padecendo da

ausência de visão politica: “o povo quilombola, o povo

indígena, o povo tradicional”. A enumeração visava sem dúvida

salientar a riqueza e a diversidade da população amazónica, mas

ela estava ao mesmo tempo tornando “invisíveis” no seu discurso

todos aqueles que não se enquadram nas categorias

administrativas. Ela estava além disto postulando uma

convergência tão grande de interesses entre os “povos” citados

que qualquer dissensão entre eles era simplemente inconcebível.

Contudo, um pouco mais cedo, uma líder indígena fez uma

intervenção que, para além dos conflitos com os fazendeiros,

designava claramente – mas sem citar nenhum nome – os

“quilombolas” vizinhos à sua “aldeia” como os adversários:

“Alguns dizem que não somos índios, mas os nossos bisavós

nasceram lá e os quilombolas querem pegar a nossa frente”, i.e.

o seu acesso a várzea. Essa declaração é interessante de

diversos pontos de vista, à começar por jogar luz sobre as

possíveis fricções entre os “pobres” pertencentes à diferentes

categorias jurídicas6.

Ora, pouca atenção foi dada, até agora, às tensões

surgindo eventualmente entre grupos que ocupam posições sociais5 Como exemplo, consultar Cavignac (2006), Ayala & Brustolin (2008) ou

Zigoni (2008).6 ?Outro elemento é a utilização pelo padre do pronome “nós”, que indica

uma identificação pessoal com os “pequenos”, numa variante da “realidadediscursiva da emoção”, perceptível, segundo André Corten (1995:13), nalinguagem da teologia da libertação e no pentecostalismo.

10

análogas, mas que, perante a administração, pretendem assumir

ou assumiram identidades distintas e aparecem, assim,

diferenciados. No entanto, com um pouco de atenção é possível

notar como menções a esse tipo de casos se tornam mais

recorrentes nas listas de discussão sobre o tema das minorias,

e também na literatura especializada7. O assunto em si

constitui portanto um objeto de reflexão antropológica.

Deparei-me com vários conflitos desse tipo, mais ou menos

abertos segundo a situação, no decorrer de uma pesquisa

desenvolvida nos últimos anos na Amazônia, primeiro entre

grupos quilombolas e, mais recentemente, entre grupos

indígenas8. Para ficar mais claro ao leitor, ilustrarei meu

argumento com uma curta descrição de exemplos. Num povoado, a

comunidade se encontrava dividida entre dois campos, um

desejando ardentemente “se tornar” quilombola, e outro lutando

para que “nada mudasse”. Bem distante de lá, em outra vila, a

metade dos habitantes ansiava da mesma forma obter seu

reconhecimento enquanto quilombolas, mas a outra metade

defendia sua integração a uma Reserva Extrativista próxima, o

que implicava fazer valer uma identidade de seringueiros. Numa

outra parte ainda da Amazônia, o problema estava entre duas

comunidades vizinhas, ligadas por inúmeros laços de parentesco,

uma delas querendo “se assumir” indígena após a outra ter

conseguido o seu reconhecimento pela Fundação Palmares como

7 Alguns exemplos podem ser citados: Figueroa (2007), Dos Santos (2006),Da Silva 2008.

8 O fato de algumas demandas de reconhecimento estarem tramitando emdiversos órgões governamentais impõe o sigilo a fim de não arriscarqualquer interferência com o processo. Por razões éticas, não dareiportanto precisão nenhuma sobre o nome dos povoados ou das regiões ondese localizam.

11

quilombola. Poderiamos acrescentar a esta lista o caso de

pessoas ou famílias, moradores de um lugarejo até agora sem

identidade, que, depois de se filiarem à associação quilombola

do povoado vizinho e ficarem “decepcionados”9, queriam juntar-

se ao movimento indígena ou, no Acre, o de seringueiros que se

afirmam doravante indígenas (PANTOJA, 2004).

Alguns antropólogos interpretam o número crescente de

pedidos de reconhecimento junto à FUNAI ou à Fundação Palmares

como a reivindicação de uma identidade já presente como

virtualidade, ou até então escondida por causa da

discriminação. Outros, cientes das críticas ao risco de

essencialização incorrida, sugerem apreender o fenômeno como

uma disputa para tornar incontestável a existência de seres

sociais no palco politíco (ALMEIDA, 2007). Apesar de receber

muito favoravelmente esta última análise, parece-me que ela não

permite responder às duas perguntas sucitadas pelos exemplos

apresentados acima: Como entender que grupos de parentes

morando num mesmo território optem por diferentes “identidades”

legalizadas? E como explicar essas sucessivas identificações à

várias categorias?10

9 Eles recriminavam a associação quilombola por lhes ter deixado de forados “benefícios” obtidos, como as cestas básicas.

10 Responder a estas perguntas requer levar em conta as trajetórias sociaisdos grupos e das pessoas, bem como as suas relações com a sociedade maisampla, sejam elas de patronagem, de cumplicidade politíca, de dependênciaeconomica, etc. Para um exemplo onde o “étnico” é considerado como umarelação social entre outras, ver Boyer (2008). Na medida em que estaabordagem coloca em relação a emergência de grupos sociais determinadosatravés da execução de políticas públicas, ela vai ao encontro detrabalhos sobre as lógicas sociais que engendram outras categorias que asétnicas, como a reflexão desenvolvida por Cynthia Sarti (2011) sobre aconstrução da figura da vítima de violência.

12

Pois, apesar da divergência da segunda proposta com a

primeira, vigora ainda nela de modo implícito o pressuposto de

uma relação fortissíma entre identidade e território. Dito de

outra forma, se a identidade é tão pronta a ressurgir ou a ser

investida, é porque a relação do grupo com o seu território –

e, mais ainda, com seus limites - foi forjada por um passado

histórico e uma cultura singular.

Os conflitos que observei entre grupos que todos,

reconhecem compartilhar uma mesma situação de dominação

sugerem, porém, um outro viés de interpretação. Eles não chamam

exatamente atenção para a afirmação de uma identidade singular

que coincidiria com os limites do espaço geográfico que cada um

deles ocupa. Melhor dizer que chamam atenção – e aí sim com

muita força - sobre a importância dos recursos naturais usados

por essas populações para sua subsistência: árvores frutíferas,

pesca, caça, etc. Trata-se então de mobilizar-se para manter

livre o acesso a essas áreas e/ou conservar o seu controle.

Nessa perpectiva, o problema foge da identidade para se

focalizar sobre as condições de reprodução dos grupos sociais.

Pode-se considerar em seguida que, para alcançar este objetivo,

seja lançado mão de várias estratégias, inclusive mudar de

categoria legal. Por exemplo, os seringueiros cuja coperativa

fracassou “assumirem-se” como indígenas. Ou um povoado,

ameaçado pelo processo de demarcação de vizinhos que se

tornaram quilombolas, resolver seguir uma trilha análoga. Esses

rearranjos, que evocam as “subversões classificatórias”

estudadas anos atrás por José Maurício Arruti (1998) no

13

Nordeste, enunciam-se em termos identitários, mas concernem

primordialmente o domínio de recursos naturais.

Esta atual focalização sobre a identidade (seja ela dita

real ou usurpada, ressurgida ou construída) não deixa de

surpreender, já que propostas análiticas mais flexíveis foram

avançadas há mais de 10 anos atrás. Uma expressão como

“aquilombamento da propriedade dos donos”, que Berno de Almeida

(2002:29) criou para designar a multiplicação de situações de

autoconsumo por parte de famílias de escravos nas fazendas (mas

poderia também se pensar em outras), abriu com efeito pistas

que ficaram inexploradas para questionar o que achamos

evidente: a propriedade privada como modelo dominante e

aspiração da maioria, e as outras formas de relação com o

território como exceção, caracterizando grupos restritos da

população. Ora, sem evidentemente negar que os meios de

sobrevivência dos habitantes de um povoado se situem num

território dado, há de convir que, para eles, a definição dos

limites deste último não passa necessáriamente pela exclusão do

grupo vizinho: um e outro podem compartilhar, por exemplo, o

mesmo espaço de pesca e de coleta. O que os moradores de dois

vilarejos aceitam então como divisas não impede excursões do

outro lado, configurando-se desta forma áreas de uso comum onde

diversas linhas se cruzam. Tal colocacão implica esclarecer

como e em que casos essas linhas se tencionam a ponto de gerar

fortes dissensões, um objetivo que só pode ser alcançado

através do exame minucioso das diferentes definições do

pertencimento e dos sucessivos modelos de organização dos

14

grupos: família, comunidade, associação de moradores,

aldeia/comunidade quilombola.

Em consequência da falta de esforço antropólogico para

pensar essas questões de um modo mais amplo, é agora

literalmente que se deve entender que o território revela a

identidade e que a identidade revela o território. Pois as

populações que se reivindicam de uma categoria legal (a sua

“identidade”) devem indicar aos representantes dos órgões

públicos os limites das suas terras (o seu “território”), o que

vai desvelando, atestando ou construindo a sua “diferença” – ou

melhor dizer “a mobile, often unstable relation of difference”

(Gupta e Ferguson, 1997:13).

Identidade e território devem se sobrepor para se

conformarem à lógica das instituições que conferem a

propriedade ou o usofruto das terras. Pois, para o Estado, o

espaço, quer seu uso seja particular ou coletivo, só é

concebido como fechado e estável11. É nessa condição que ele se

torna “administrável”. O ordenamento dos “grupos-territórios”

se prolonga dentro das categorias legais. Assim, é preciso

declarar-se Cocama para ficar numa TI Cocama, mesmo que você se

considere e fale tikuna12. Constitui-se assim um mosaico de

terras com estatutos distintos, ocupadas por uma população que

o Estado pensa como homogênea por dentro, e diferente dos seus

vizinhos por fora– e a quem ele atribui direitos especiais. É

preciso, portanto, insistir no fato de que não é a declaração11 ? Esta obervação vai no sentido da análise de Arjun Appadurai: os «États

[...] s’efforcent de contenir la diversité ethnique dans des territoiresculturels fixes et fermés [...] Le culturalisme, pour le dire simplement,c’est la politique identitaire élevée au niveau de l’État-nation»(2005:48).

12 ? Philippe Léna (comunicação pessoal).

15

identitária em si que suscita os desentendimentos – as pessoas

pensando que, na verdade, cada um é livre de se definir como

quiser – mas sim as suas implicações13.

3 – As dinâmicas locais de diferenciação perante a ação do Estado

O que, de modo evidente, é comum a todos os integrantes

destas categorias legais é a sua situação de fragilidade

social. Como é claramente também o caso dos seus vizinhos não

labelizados. Aliás, uns e outros têm expectativas analógas em

relação à ação do Estado: o que eles pedem e esperam são

melhorias no atendimento nas áreas da saúde e da educação,

segurança territorial, construção de estradas, auxílio para o

escoamento da produção, formas de exercício do poder, etc.

Todavia, existe uma grande diferença entre eles. Os

primeiros insistem sobre o fato de que, com o reconhecimento do

Estado, eles são “amparados por lei” (qualquer que seja a

efetividade desse amparo). Os segundos, ao contrário, tendo

como único atributo sua condição de “pobres”, ficam soltos,

misturados no “povo”, compartilhado com ele a condição de serem

“esquecidos pelas autoridades”. Dissolvidos na grande massa dos

destituídos, sem poder almejar um tratamento diferenciado e

preferencial, encontram-se sem defesa não apenas face às

ameaças que emanam dos “grandes”, mas também face a outros

“pequenos” que, por? sua parte, já se encaixaram nas categorias

do Estado. Assim, à propósito das fortes tensões entre dois

povoados amazonienses que, após a declaração identitária de um

13 ?Por isto, no caso de tensões entre “pequenos”, é a identidadereivindicada em reação a uma outra que constitui uma boa ilustração das“identidades construidas no conflito” estudadas por Berno de Almeida(2002).

16

deles, reivindicaram um o controle e outro o acesso aos

recursos naturais anterioremente compartilhados, uma advogada

funcionária de uma ONG fornecendo apoio jurídico às comunidades

da região admitiu, à contragosto: “o direito dos quilombolas

[mas poderia ser dos indígenas, permito-me acrescentar] sempre

prevalece sobre o direito do cidadão comum”. Pois, em caso de

contestação, o “cidadão comum” não tem recursos institucionais,

nem agentes de mediação, para ajudá-lo. No caso mencionado, a

advogada não enxergava solução nenhuma,a não ser a adesão

(poderíamos falar de conversão?) de um dos grupos à identidade

legal do outro por razões simplesmente institucionais: esse

último se encontrava com efeito mais avançado no processo de

demarcação de suas terras.

O reconhecimento de direitos relativos à diversidade

cultural permite de fato vislumbrar a garantia da proteção de

populações historicamente marginalizadas em nome de sua

exceção. Todavia, tal avanço político tem um efeito perverso, o

de levar exclusão daqueles que, também marginalizados, não

estão incluídos nas categorias legais, como bem levantou Pedro

Castelo Branco Silveira (2007: 17). Para os grupos sociais,

torna-se portanto imperativo integrar-se a uma delas para gozar

de direitos sociais – especiais na forma, mas no fundo

elementares. É bem provável que sejam os constrangimentos

impostos por essa nova situação - onde a única maneira de

chamar atenção num caso de conflito é conseguir opor um

direito especial a outro - que levam povoados a “se definirem”,

isto é, a se mobilizarem para obter a sua afiliação a uma

categoria jurídica diferente da dos outros “pequenos” a quem se

17

confrontam. Aliás, no exemplo rapidamente exposto acima, a

solução proposta pela advogada, que permitiria eventualmente a

coabitação dos dois vilarejos no seio de um território

quilombola expandido, foi recusada com veemência por aquele que

se considerava prejudicado, e tinha resolvido “assumir-se” como

indígena. O caique da vila não poderia exprimir mais claramente

a posição do conjunto dos moradores: “Ninguém tira o direito de

ser o que eu sou, de dizer o que eu sou. E eu sou índio!”.

Nos casos amâzonicos que estou acompanhando, vale notar

que nem os quilombolas, nem os indígenas tentam desqualificar a

“identidade legal” do outro. Cada um só se esforça em se situar

melhor na genealogia histórica local, os indigenas afirmando

que já estavam lá antes dos negros chegarem; os quilombolas

dizendo que naquela área nunca teve índios. Em outros termos,

trata-se essencialmente de saber quem tem mais “direitos”

frente ao Estado, num jogo complexo entre categorias legais,

grupos locais e indíviduos - um jogo de vai-e-vem no qual cada

um tenta firmar a sua própria posição.

À diferença das instituições, a principal questão das

populações não diz portanto respeito a uma “verdade” intrínseca

e absoluta à revelar ou à “resgatar”, qualquer que seja ela.

Nos pequenos povoados da região, são feitos comentários sobre a

“cor esquisita” e a cultura ainda balbuciante dos outros, mas

sempre com um tom de brincadeira, jamais como uma denúncia.

Aliás, as pessoas admitem, sem parecerem incomodadas ou

ofendidas, que poderiam se ligar a qualquer categoria jurídica,

se tivessem “vontade”14. Não há necessariamente, em sua

14 Isto nem sempre acontece em se tratando dos quilombolas, cujo discurso ébastante mais radical, talvez porque sua mobilização seja mais antiga. A

18

identidade atual, a manifestação de uma escolha existencial,

mas sobretudo a adesão (mais ou menos espontânea) a uma decisão

coletiva, tomada em seguida à encontros com estranhos ao lugar

(freis católicos ou universitários), à aproximações

estratégicas com organizações de militantes e com

circunstâncias imprevistas (acesso aos recursos naturais

cruciais, por exemplo). Frente a dificuldade de combinar esses

múltiplos parâmetros, num jogo que parece as vezes um tanto

aleatório, as pessoas adotaram o local de moradia como critério

de definição da identidade “étnica”, numa possível reformulação

das suas práticas anteriores. Assim, se o povoado dotou-se de

uma associação quilombola, os habitantes se considerarão como

tal; se trata-se de uma associação indígena, eles serão

indígenas15. E se eles mudam de local de residência, em função

de um casamento, por exemplo, eles adererirão à categoria de

seu cônjuge.

Isto não significa que a referência à “cultura” não tem

importância, e para se convencer disso é só observar o trabalho

de "conscientização” operado pelos líderes, apoiados por freis

católicos, e o desempenho admirável dos povoados. Os moradores

de uma aldeia indígena podem construir uma maloca, usar colares

de dentes e sementes, se pintar nas ocasiões importantes, e

tentar organizar oficinas para “aprender a língua”. Os

habitantes de uma comunidade quilombola, por sua vez,

procurarão ter alguém que entende de candomblé, formar uma

turma de capoeira, resgatar lembranças da escravidão. A

pesquisa em curso se propõe a esclarecer essas diferenças. 15 ?Este não é evidentemente o caso dos poucos indivíduos que, por diversas

razões, recusam-se a participar da associação. Nesse caso, eles secolocam à parte da vida comunitária.

19

sinceridade do trabalho sobre si mesmo não é passível de

dúvida, e compartilho por completo a opinião de Mauro Almeida

(2007:14) quand descarta definitivamente a caracterização

destas novas identidades como sendo simplesmente “de balcão” ou

ainda de fachada. Com efeito, se o autor admita que a auto-

consciência vem primeiro de fora, ele frisa também que “para

constituir-se em uma essência autônoma, ocorre uma luta para

suprimir aquela sua existência que se dá através do outro.

[...] Trata-se de um agir, mas de um agir que deve exerce-se

‘contra si tanto como contra o outro’, ao mesmo tempo que é o

fazer de um e um fazer do outro” (ibid.). É de fato

incontestável que, à medida da elaboraração dessas

“identidades” ou dessas “auto-consciências”, as pessoas se

apropriam delas até as investirem plenamente.

No entanto, quando considerarmos o início desse processo,

isto é, o momento em que a representação de si é reconsiderada,

e antes que a nova “identidade” se sedimente, um observação

deve ser colocada: os elementos apontados como representativos

de cada “cultura” adquirem sentido, antes de mais nada,

enquanto prova da legitimidade do pedido para pertencer a uma

categoria legal. Pois, num contexto onde o Estado atrela a

concessão de direitos à qualidades culturais ou étnicas, as

populações não têm escolha, a não ser se adequar com as

categorias da administração, e a maneira pela qual estão sendo

definidas. Portanto, trata-se de uma cultura substancializada

que, como escreve Arjun Appadurai (2005:43), coloca-se do lado

da raça.

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Essencializadas ao serem colocadas em relação com uma

dentro das várias histórias, essas culturas, representadas sob

a forma de grupos-territórios, parecem facilmente apreendíveis,

e portanto mais facilmente administráveis. O credo

multiculturalista da “igualdade na diferença” favorece desta

forma uma gestão diferenciada de uma população diferenciada

pelo próprio Estado. Um breve parêntese: nesta associação de

categorias legais à regimes territorais especifícos, nada é

feito para facilitar a vida dos grupos sociais concretos.

Assim, o direito não prevê possibilidade nenhuma de criar zonas

de uso comum entre terras de estatuto diferente, o que teria

ajudado a resolver o conflito mencionado acima16.

A fragmentação da figura do pobre...

Sem pretender avaliar a ação das instituições, gostaria de

lembrar que a demarcação de terras indígenas ou quilombolas é

extremamente longa e que, com muita frequência, ela só se

realiza sob pressão dos movimentos sociais mobilizados (ONGs,

igreja, partidos, etc.). Tal comentário a respeito da lentidão

das administrações leva à outro, voluntariamente provocativo,

já que trata-se de indagar se, sob aparências mais sedutoras,

não seria possível identificar aqui uma nova variante da lógica

de exceção que, segundo Das e Poole (2004:10), opera nas

margens do Estado.

A implementação das políticas públicas dirigidas às

minorias significa com certeza que alguns grupos conseguem

gozar de direitos garantidos pelaConstituição. Esses podem

16 ? Esta possibilidade constitue, todavia, um tema de reflexão para algunsantropólogos do Ministério Público Federal.

21

ser considerados, num certo sentido, como os “eleitos”, uma

palavra que deve ser entendida literalmente em razão da

dificuldade de alcançar as vantagens associadas ao

reconhecimento oficial. Pois os empecilhos na execução destas

políticas, a complexidade dos procedimentos e, às vezes, a má

vontade das instituições, implica também que outros, ainda se

encontrando na fila de espera, não conseguem escapar do que é a

norma comum do atendimento ao cidadão –i.e, nada ou quase nada

-, norma a qual, evidentemente, estão submetidos igualmente

todos aqueles, bem mais numerosos, que nem mesmo sonharam (até

agora?) em fazer valer uma particularidade.

Forçando apenas o traço, poder-se-ia sugerir que dar a

raros grupos em nome da sua singularidade, e deixar outros

esperando sob o pretexto de reunir as evidências, condena a

grande maioria à permanecer na exclusão. Precisaria então – o

que é bastante difícil, convenho eu – aceitar que essa politica

diferencialista, com suas pretensões de reparação e

redistribuição, foi concebida para ser limitada17. Nós teríamos

aí um bom exemplo da importância, para o Estado-nação moderno,

dos dispositivos classificatórios e disciplinares – sobre os

quais Foucault e Appadurai já chamaram atenção.

Tal fato aponta para a necessidade de investigar mais o

papel do Estado, os interesses, nem sempre isentos de

concorrência, das instituições que o compõe e dos seus

representantes nesses processos, bem como as eventuais

17 ? À respeito das comunidades quilombolas, Jean-François Véran indica quea promulgação do artigo 68 na ocasião do centenário da abolição “apareceucomo uma concessão simbólica obtida pelos movimentos militantes”(1999 :54) e não teria forçosamente uma vocação para ser largamenteaplicada.

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divergências entre as definições dadas pelo Direito, as

interpretações que são feitas e as ações que elas justificam –

sem nunca abrir mão da obrigação de restituir o ponto de vista

das populações e de analisar as suas estrátegias. Tal abordagem

permitiria também incluir num mesmo objeto de reflexão os

grupos etnicamente labelizados e os grupos marginalizados. No

caso dos “favelados”, o discurso e a prática do Estado não

deixam dúvidas sobre a vontade de cercar o território para

extirpar dele o que é considerado como o mal da sociedade: o

que está sendo procurado é o desaparecimento dos indesejáveis.

Mas, se aceitarmos a proposta acima, será que no fundo o

tratamento reservado aos primeiros não visa a um objetivo

analógo? Em que medida a ventilação dos “pobres” entre várias

categorias legais não remete a um desejo de fazê-los sumir,

através da sua fragmentação e da sua exotização?

Por enquanto, uma coisa parece certa : seja ele

considerado como “fonte do mal” ou seja ele valorizado como

representante de um “bem raro”, o “pobre” é necessariamente

diferente.

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