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Quando o Regresso é Progresso: a formação do
pensamento conservador saquarema e de seu modelo
político (1834-1851).
Christian Edward Cyril Lynch1
In: BOTELHO, André; FERREIRA, Gabriela Nunes. (Org.). Revisão
do Pensamento Conservador: ideias e Política no Brasil -. São
Paulo: Hucitec, 2010, p. 25-53.
Introdução. Estudadas a partir de autores arquetípicos de cada
uma delas, como Bonald, Burke, Stuart Mill, Proudhon,
Kropotkine ou Marx, reacionarismo, conservadorismo, liberalismo, socialismo,
anarquismo, comunismo são ideologias conhecidas de qualquer
leitor familiarizado com a tradição política ocidental. Para
além de seus “tipos ideais”, isto é, do ângulo de uma teoria
política de vocação “universal”, as ideologias também podem ser
estudadas de forma particular a cada nação, buscando-se
compreender a trajetória particular de dada uma daquelas
correntes no curso de seus particulares percursos na busca da
1 Christian Edward Cyril Lynch é doutor em Ciência Política pelo InstitutoUniversitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professorpermanente do programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade GamaFilho (UGF) e colaborador do programa de pós-graduação em Direito eSociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É também professor daEscola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro (Uni-Rio).
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modernidade política. Com efeito, os diferentes processos de
construção estatal, nacional, liberal e democrática de cada
sociedade conferem às suas experiências cores próprias em
relação àqueles arquétipos “universais”, sem deixarem, porém,
de integrá-los. De modo que, para além de uma teoria ou
pensamento político de alcance universal, devamos estudar e
nos referir também aos pensamentos ou teorias políticas
propriamente nacionais, ou mesmo regionais.
O caso do Brasil não é diferente. No que se refere à ideologia
conservadora, por exemplo, sua versão nacional mais
característica parece ter sido produzida a partir de certo
discurso ou linguagem oitocentista, calcada na valorização
positiva da formação política brasileira sob o regime imperial
instalado logo depois da independência. Firmado entre as
décadas de 1830 e 1850, na forma de um modelo institucional, o
discurso político conservador que o firmou conformou um tipo
particular de conservadorismo liberal, que parte de um
determinado diagnóstico dito realista ou sociológico da
sociedade brasileira, considerada em menoridade pelos males da
sua formação social. A partir dessa constatação, prega-se a
organização de um Estado tutelar, relativamente autônomo da
sociedade, incumbido de fundar a ordem nacional de cima para
baixo e, a partir dela, promover reformas efetivas, mas
seguras, no sentido de veicular o progresso nacional.
No presente artigo, pretendo revisitar as primeiras décadas do
regime monárquico brasileiro para descrever contextualmente
como se consolidou entre nós a matriz daquela que se tornou a
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principal vertente brasileira do conservadorismo. Na tentativa
de conferir uma denominação particular a esta tradição
conservadora brasileira, comprometida simultaneamente com o
Estado de direito e com o princípio da autoridade, buscaram
qualificá-las alguns dos mais notáveis estudiosos da
experiência política brasileira: “verdadeiro liberalismo”
(Visconde de Uruguai); “idealismo prático” (Joaquim Nabuco);
“idealismo orgânico” (Oliveira Viana e, mais recentemente,
Gildo Marçal Brandão); “pragmatismo crítico” (Guerreiro
Ramos); “liberalismo de transição ou conciliação” (Raimundo
Faoro); “autoritarismo instrumental” (Wanderley Guilherme);
“ideologia do Estado” (Bolívar Lamounier); e, finalmente,
“iberismo” (Werneck Viana). De minha parte, vou denominá-la,
pura e simplesmente, saquarema. Partindo do apelido conferido
aos primeiros chefes do Partido Conservador do Império no
final da década de 1830, tal denominação possui sobre as
demais a vantagem de aludir à origem histórica reconhecida
daquela matriz, sem suscitar questionamentos acerca da
propriedade dos termos empregados para denominá-la, do ponto
de vista da teoria política, nem valorações a priori acerca da
positividade ou negatividade de seus conteúdos. Daí poder-se
falar na existência de um “pensamento saquarema”, de uma
“historiografia saquarema”, de um “modelo político saquarema”,
e de uma ideologia: o “saquaremismo”,
O Primeiro Reinado: coimbrões ou realistas versus brasilienses
ou liberais. A passagem do Antigo Regime para o governo
constitucional e representativo no Brasil caracterizou-se pela
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concomitância de dois processos: no plano internacional, a
independência da América Portuguesa frente à metrópole
européia; no plano interno, a transição da monarquia absoluta
para a monarquia constitucional. Nos últimos anos, a
historiografia vem precisando os contornos da luta e dos
debates que marcaram esses eventos que desde cedo opuseram
dois partidos, portadores de distintos projetos de nação e
aspirando à direção do país: a “elite coimbrã” e a “elite
brasiliense” (CARVALHO, 1996; NEVES, 2004). Tal como nos EUA,
quarenta anos antes, a divergência decorria dos diferentes
enfoques conferidos às relações entre a sociedade preexistente
e o Estado a ser criado. Em nome da Coroa, os coimbrões
valorizavam o governo geral em nome da ordem e da autoridade,
por meio de uma política unitária de subordinação do interesse
provincial aos imperativos do reformismo imperial, ao passo
que, em nome das elites provinciais, brasilienses
privilegiavam, ao revés, o vínculo federativo na formação do
Império. A elite brasiliense sugeria, assim, ao invés de um
Estado unitário de burocracia autônoma, um Estado federativo
dominado pelas elites locais. No Brasil, escamoteada a
princípio, no contexto da guerra de independência, a
divergência entre os dois grupos acentuou-se paulatinamente na
Constituinte de 1823, ficando por fim patente no episódio da
sua dissolução pelo Imperador.
O eixo do debate político entre os dois partidos se
desenvolveu basicamente em torno da natureza do governo
representativo estabelecido na Constituição de 1824: à direita, os
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coimbrões, agora realistas, entendiam-no como um governo misto
garantido pela separação de poderes e pela autonomia de uma
Coroa atuante, ao passo que, a partir da literatura whig do
período, os brasilienses, agora liberais, entendiam-no como
sinônimo de governo parlamentar, ou seja, de predomínio da
Câmara dos Deputados. Os realistas eram chefiados basicamente
pela antiga burocracia luso-brasileira, cujos expoentes haviam
pertencido ao segundo escalão do governo joanino. Seu projeto
político remontava às teorias do despotismo ilustrado,
caracterizado pela centralização política em torno da Coroa,
entendida como motor de um processo de modernização da
sociedade brasileira pelo alto, que passava pela abolição do
tráfico negreiro e da própria escravidão num futuro não muito
distante. Seus principais integrantes haviam sido inicialmente
os irmãos Andrada (José Bonifácio, Antônio Carlos e Martim
Francisco) e, depois, políticos como o Visconde de Cachoeira e
os marqueses de Caravelas, Queluz, Baependi, Inhambupe e
Paranaguá. Já os fazendeiros e senhores de engenho
provinciais, “liberais”, advogavam um modelo oligárquico,
“brasiliense”, predominantemente federalista e cujo governo se
curvasse diante dos interesses econômicos latifundiários e
escravistas. Os brasilienses, depois liberais, se identificariam
prioritariamente com os interesses da grande propriedade rural
e escravista, preferindo uma monarquia descentralizada ou
federativa que lhes garantisse ampla autonomia política,
administrativa e econômica no âmbito das províncias que
compunham o Império; da mesma forma, valorizavam o Parlamento
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e não a Coroa como órgão de representação de seus interesses
(LYNCH, 2005). Esse partido oposicionista, intitulado durante
o Primeiro Reinado partido brasileiro, patriota ou liberal, se compunha
de antigos brasilienses proprietários de terras, como os
padres Diogo Antônio Feijó, José Bento Ferreira de Melo e José
Martiniano de Alencar, que compunham a elite econômica e
política das províncias.
A Regência e as duas alas do Partido Moderado. Com a abdicação
de Dom Pedro I, assumiu o poder uma coalizão intitulada
Partido Moderado, encabeçada à esquerda pelos antigos
brasilienses, e à direita por um grupo de jovens magistrados
que não se identificara com os antigos coimbrões ou realistas.
A esquerda, ainda mesclando o liberalismo doutrinário com a
velha linguagem vintista, pretendia aproveitar a menoridade de
Pedro II para aprovar uma reforma constitucional, de olho no
modelo político norte-americano, que ampliasse a autonomia das
provinciais em benefício das oligarquias agrárias a que
pertenciam (DOHLNIKOFF, 2006:15). Essa orientação americanista
contrastava, todavia, com aquela da ala direita do Partido
Moderado, liderada por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Era
ela integrada por juízes que também eram ou que viriam a ser
fazendeiros, como o pernambucano Pedro de Araújo Lima, o
paulista José de Costa Carvalho, o mineiro Honório Hermeto
Carneiro Leão; e, a partir de meados da década, os fluminenses
José Joaquim Rodrigues Torres (1802-1872), Eusébio de Queirós
Matoso Câmara (1812-1868) e Paulino José Soares de Sousa
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(1807-1866). Na linguagem política francesa, eles seriam
qualificados como moderados de resistência e, como tais, avessos a
grandes alterações na Constituição. Ao contrário da ala
esquerda, eles eram monarquistas por convicção e não por
cálculo - daí que instintivamente simpatizassem com a forma
unitária de governo, sentindo-se mais atraídos pelo modelo
político francês da Monarquia de Julho.
Embora a abdicação de Dom Pedro I em 1831 tenha
representado a vitória dos moderados, o fato foi que a
permanência do círculo dos envelhecidos marqueses burocratas
no Senado vitalício obrigou os novos do poder a negociarem com
os antigos realistas sua proposta de reforma constitucional,
tendente ao esvaziamento do poder monárquico pela erradicação
do Poder Moderador e da centralização política. Na
impossibilidade de obrigar os senadores à votação conjunta com
os deputados e inviabilizada a saída golpista aventada pela
esquerda, pela resistência demonstrada pela ala direita, os
moderados negociaram com os realistas uma solução de
compromisso. O resultado foi o Ato Adicional de 1834, que deu
origem a uma forma híbrida de Estado, a meio caminho da
monarquia unitária francesa e da república federal norte-
americana - uma monarquia semifederal. Foram criadas
assembléias provinciais dotadas de competência própria, de
cujo controle de constitucionalidade ficou a Assembléia Geral
encarregada. A reforma substituiu a Regência trina, eleita
pelo Legislativo, por uma Regência una e eletiva, escolhida em
eleição indireta pelo eleitorado nacional; e descentralizou o
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Poder Judiciário. Os Presidentes de Província continuaram
nomeados pela Coroa, e o mandato dos senadores, vitalício; em
compensação, os realistas tiveram de aceitar a extinção do
Conselho de Estado. De alguma forma, o Ato Adicionou corrigia
o sentido de reformismo liberal, que dois anos antes, na
elaboração do Código de Processo Criminal, gerara excesso de
localismo, criando uma classe de juízes eletivos na primeira
instância, com competências judiciárias e policiais (COSER,
2008:61). O resultado foi, assim, uma centralização em nível
estadual, operada às expensas do governo geral e dos
municípios (DOHLNIKOFF, 2005:120).
O final feliz da batalha contra os realistas não passou,
porém, de ilusão para a ala esquerda dos moderados. A
descentralização tornou muito mais virulenta a luta no âmbito
provincial ao mesmo tempo em que retirou do governo central a
capacidade de arbitrá-las ou reprimi-las. Além disso, as
províncias passaram a interpretar o Ato Adicional exorbitando
de sua esfera de competências de molde a ampliar seu campo de
ação e esvaziar o governo geral. Esse quadro foi agravado pela
crise econômica causada pela queda dos preços dos gêneros de
exportação e pelo esgotamento das jazidas de ouro (FAORO,
1997:325). O déficit orçamentário induzia o governo a emitir
papel-moeda para cobrir as despesas, gerando inflação. Essa
desarticulação do pouco que havia sido criado de Estado
brasileiro em nome da liberdade da aristocracia provincial
contra o poder de cima (a Coroa) desencadeou a desordem social, que
era o seu maior pesadelo em relação ao poder de baixo (o povo) .
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Circunscritos às cidades e liderados pela elite letrada,
depois do Ato Adicional os conflitos se alastraram para o
campo, envolvendo pobres, índios e escravos (CARVALHO,
1996:231) – justamente aqueles segmentos sociais que os
coimbrões queriam integrar pela tutela, como partícipes de uma
sociedade atrasada, e que eram excluídos pelos brasilienses,
por não considerá-los parte do povo ou da Nação. Com o país à
beira do precipício, quase metade da Câmara já julgava digno
de consideração, em 1835, um projeto de extinção da monarquia
– leia-se, do Brasil como entidade política (MARTINS, 1978,
II: 217).
Nesse ponto, a ala direita dos moderados começou a se
desentender com a ala esquerda, reivindicando uma parcial
recentralização que permitisse ao Estado imperial reaver o
controle dos conflitos provinciais. Antes mesmo do Ato
Adicional, ela já desconfiava que a descentralização fosse
aumentar a desordem ao invés de reduzi-la. Relator do
anteprojeto do Ato, Bernardo Pereira de Vasconcelos já
protestara contra as emendas propostas pela ala esquerda do
partido por estender demasiado as competências das províncias.
Apoiado pela nova deputação fluminense, o mineiro Vasconcelos
se justificava com a sociologia política de Caravelas, chefe
intelectual dos antigos realistas, relativa às diferenças
entre os Estados Unidos e o Brasil. Além de mais cultas e
organizadas que a ex-colônia portuguesa, as antigas colônias
inglesas haviam se confederado sem abrir mão de suas
soberanias, fato que justificava os amplos poderes detidos
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pelos Estados em relação à União Federal. No Brasil, ao
contrário, a soberania sempre pertencera à União. Por isso
mesmo, as províncias teriam que se contentar com uma
descentralização mais moderada. Dar, em nome do progresso, um
passo que os costumes e a experiência brasileiros não
comportavam, poderia resultar não na americanização, mas na
mexicanização do Império. Neste caso, de verdadeiro “código da
anarquia”, o Ato Adicional passaria a “símbolo da guerra
civil” (VASCONCELOS, 1999:218/224).
O movimento regressista e a fundação do Partido Conservador. A
cisão partidária se acentuou com a eleição, para Regente do
Império, do chefe da ala esquerda dos moderados, o senador
paulista Diogo Feijó, “homem de caráter austero e virtudes
antigas, que unia em boa fé a teorias anárquicas instintos de
ordem” (URUGUAI, 1960:493). Ao mesmo tempo em que se dizia
disposto a debelar “o vulcão da anarquia”, Feijó se recusava a
atender à demanda recentralizadora da ala direita, afirmando
que seria o primeiro a manter as províncias “no gozo das
vantagens que a reforma lhes outorgou” (FEIJÓ, 1999:172).
Nesse meio tempo, chegou ao Rio de Janeiro a notícia da morte
de Dom Pedro I em Portugal, aos 36 anos. Foi o que permitiu
uma completa redefinição do panorama político, ao desmobilizar
os exaltados e disponibilizar os antigos caramurus ou
realistas disponíveis para uma eventual recomposição de
forças, facultando a separação das duas alas moderadas do
Partido Moderado. Defendendo o regresso ao princípio da
unidade nacional em torno da Coroa, a direita moderada aliou-
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se aos políticos realistas sobreviventes, como Francisco
Carneiro de Campos e Miguel Calmon du Pin com o fito de “parar
o carro revolucionário” que Feijó deixava correr. Em breve
chamado também de partido da ordem, cascudo ou saquarema – alusão
ao município onde Rodrigues Torres tinha fazenda e se reunia
com seus colegas -, o novo Partido Conservador combateu o
presidencialismo federalista da ala esquerda dos moderados,
reeditando a campanha pelo governo parlamentar que tivera
lugar no final do Primeiro Reinado; como então, o objetivo era
o de converter o chefe de Estado, de Presidente da República
norte-americano, em Rei constitucional inglês.
Reagindo à defecção da sua ala direita, constituída em
partido, a esquerda moderada também resolveu formar o seu,
adotando o nome de Partido Liberal, com o fito de defender o Ato
Adicional, o presidencialismo regencial e a autonomia das
províncias. Mas a articulação partidária em torno do governo de
Feijó não foi capaz de, por si mesma, conter a nova campanha
parlamentarista de Vasconcelos. Enquanto o Regente sustentava
que o princípio do “governo das maiorias”, sustentado pelos
conservadores, era “absurdo e subversivo de toda a ordem no
Brasil, além de inconstitucional” (In: FAORO, 1997:318), o
jornalista conservador Firmino Rodrigues Silva (1816-1879)
retrucava que, “no sistema representativo, governo sem maioria é
frase absurda que não tem explicação alguma. No Brasil, porém,
que tem tomado a peito demonstrar todos os absurdos, a falsear
todos os princípios do sistema representativo, nos tem dado
exemplo dum governo sem maioria” (In: MASCARENHAS, 1961:17).
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Vasconcelos aditava que, se o governo queria a colaboração dos
parlamentares, seus ministros deveriam comparecer pessoalmente
à Assembléia “para explicar-lhes quais são as necessidades que
ele julga urgentes, o que com mais urgência pedem
providências”, caso em que cada deputado poderia julgar por si
e avaliar sua posição. “Parlamentarmente organizado”, em
regime de coesão do gabinete, seria mais fácil ao governo
formar “as maiorias conscienciosas, as maiorias compactas e
invencíveis” (VASCONCELOS, 1999:235). Fortalecida e
prestigiada, a nova oposição conservadora paralisou o governo
de Feijó. Ao se queixar da falta de cooperação do Parlamento
com as “urgentíssimas necessidades do Estado” (In: JAVARI,
1993:176), repetindo o roteiro de Pedro I, o destino do
primeiro chefe de Estado eleito do Brasil foi idêntico ao do
príncipe que hostilizara – a renúncia.
Disposto a se fazer de monarca constitucional sob um
governo parlamentar, o novo Regente, Pedro de Araújo Lima,
encarregou a Vasconcelos e seus companheiros de organizar o
novo gabinete e implantar o programa do regresso. Esse programa
passava basicamente por uma interpretação autêntica, isto é,
legislativa do Ato Adicional (nos termos do art. 15 VIII da
Constituição), que pusesse fim às invasões provinciais sobre
as competências da União, e pela revisão do Código de Processo
Criminal que, operada pela lei de 3 de dezembro de 1841,
recentralizou as competências judiciárias e policiais nas mãos
do Ministro da Justiça. De acordo com os conservadores, ao
terem sua composição transferida ao eleitorado da localidade
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pelo movimento, a máquina judiciária municipal (juízes de paz,
municipais, de órfãos, jurados), o ministério público e a
polícia haviam se tornado instrumentos para que os senhores
rurais oprimissem os adversários e perpetuassem seu mando.
Obra da esquerda moderada, o Código de Processo teria deixado
o governo nacional de mãos atadas contra o privatismo, que de
local se transmudava em provincial, desde que eram os
potentados que dominavam as assembléias legislativas. Para os
conservadores, a solução passava por retirar das mãos das
localidades a nomeação das autoridades judiciárias e
administrativas e acabar com as usurpações das competências
legislativas do governo geral pelas assembléias provinciais
(URUGUAI, 1960). Essas medidas foram completadas pelo
restabelecimento das prerrogativas do Poder Moderador,
ocorrido automaticamente quando da proclamação da maioridade
do Imperador, em 1840 (que pôs fim à vigência da Lei de
Regência), assim como pela promulgação da Lei n. 234 de 23 de
novembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de Estado
extinto pelo Ato Adicional.
O saquaremismo como meio termo entre os realistas do Primeiro
Reinado e a esquerda moderada regencial. O Regresso pretendia
repor as instituições políticas no ponto em que a ala direita
do partido moderado sempre as pretendera – a meio caminho do
que haviam pretendido os coimbrões ou realistas da geração de
1790, com sua utopia do poderoso Império, e a desconcentração
de poder decorrente do Ato Adicional, pretendida pelos
brasilienses ou liberais da aristocracia rural. Dos
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brasilienses, liberais ou ala direita moderada, e à diferença
dos antigos realistas ou coimbrões, os saquaremas herdaram os
compromissos com o tráfico negreiro como meio de sobrevivência
e expansão da grande lavoura. Não deixa dúvidas a vinculação
dos conservadores com a grande propriedade rural da Bahia, de
Pernambuco e do Rio de Janeiro e os grandes traficantes de
escravos (CARVALHO, 1996). Embora a escravidão não suscitasse
o entusiasmo de Paulino José Soares de Sousa - que viria a ser
nomeado presidente honorário de uma sociedade abolicionista
francesa, o Instituto da África (SOARES DE SOUSA,
1944:213/227) -, o conjunto do partido entendia que ela
precisava ser mantida: o boom cafeeiro permitiria pôr fim à
crise e consolidar a primazia da política fluminense no
cenário nacional. Eram urgentes os investimentos na província
do Rio, onde em 1838 o café já compunha, segundo o próprio
Paulino, “o seu principal ramo de exportação, a qual
presentemente excede a muito mais de dois milhões e trezentas
mil arrobas, quase todas de primeira qualidade” (In: REIS,
1985:350). A exigência de pronta mão-de-obra, de um lado, e as
dificuldades da imigração européia barata e espontânea, de
outro, pareciam confirmar a crença de Vasconcelos de que a
escravidão era fundamental para dinamizar a economia e,
portanto, elemento antes de civilização do que de barbarismo
(VASCONCELOS, 1999:268).
Do ponto de vista estratégico, a aliança da burocracia com
a aristocracia rural fornecia ao Estado imperial a base sólida
de sustentação que lhe faltara durante o reinado de Dom Pedro
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I. O 7 de Abril representara efetivamente o fracasso da
burocracia monárquica em direcionar o país segundo o projeto
ilustrado, sem levar em consideração as aspirações da
aristocracia rural, que se apresentava democraticamente como a
opinião pública, a sociedade brasileira, que era maciçamente
escravocrata. Chefe do primeiro gabinete da Regência de Araújo
Lima, Vasconcelos era o primeiro a enfatizar que, para se
enraizarem, as instituições imperiais precisavam do apoio da
“classe conservadora”, composta “dos capitalistas, dos
negociantes, dos homens industriosos, dos que se dão com
afinco às artes e ciências; daqueles que nas mudanças
repentinas têm tudo a perder, nada a ganhar” (VASCONCELOS,
1999:27). Das páginas do jornal conservador O Brasil, em setembro
de 1843, o jornalista Justiniano José da Rocha (1812-1862)
retomava a teoria de Vasconcelos da “classe conservadora”.
Para ele, o futuro da monarquia só estaria firmado caso ela
firmasse uma aliança sólida com a aristocracia rural e o
comércio agroexportador, fazendo seus os interesses deles. No
conjunto de uma sociedade composta de trabalhadores dispersos,
indolentes e insubordinados, carecedores de educação pelo
trabalho – elas eram as únicas classes que teriam algo a
perder caso a desordem tomasse conta do Império (ROCHA, 1843).
Ou seja, nesse pacto, a Coroa deveria oferecer a garantia da
ordem pública, escravocrata e latifundiária; em retorno, a
lavoura e o comércio de exportação seriam fiéis ao regime,
colaborando com a construção da ordem nacional. Em síntese: a
escravidão era o preço que a monarquia conservadora pagava ao
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latifúndio liberal para que esta aderisse ao seu projeto
nacional.
Justamente por isso, os antigos moderados de direita,
agora conservadores ou saquaremas, não se interessavam pelo
conjunto de medidas de que era composto o pacote dos moderados
de esquerda, agora liberais ou luzias. Os saquaremas criticavam
a subordinação dos interesses do Estado nacional à grande
propriedade rural, debilitando-o na tarefa de assegurar a
ordem pública e da unidade territorial. Era nesse ponto que os
conservadores recorriam à tradição do Primeiro Reinado. Dos
coimbrões, realistas ou caramurus, pois, os conservadores
resgataram principalmente o princípio de autoridade do Estado
imperial, expressa no prestígio do regime monárquico de
governo, simbolizado pela Coroa, para criar um centro
suprapartidário capaz de assegurar a ordem pública e a unidade
territorial do Império, contra as ameaças de secessão ou de
insubordinação. Para tanto, era preciso podar os excessos da
descentralização e restaurar parcialmente a configuração
monarquiana de 1824: o regresso era o progresso. Daí que, numa
revisão positiva da experiência do Primeiro Reinado, o Regresso
fosse beber nos argumentos coimbrões da preeminência do
Imperador e, com ele, do governo nacional sobre o provincial,
recuperando as três representações sobre o chefe de Estado,
que haviam sustentado. O símbolo da política regressista foi a
retomada do antigo costume do beija-mão do Imperador pelo novo
Regente do Império - escandaloso para os liberais que queriam,
contra os corcundas, uma monarquia democrática. De fato, para que os
17
conservadores pudessem chegar ao progresso, recuperando as
instituições que prezavam, teriam de reformar a ordem reformada
pelo movimento para retrogradar à época em que pontificava o
“princípio monárquico” – época do reinado de Pedro I, quando
predominara o discurso monarquiano de civilização na ordem do
Estado.
A adesão dos magistrados e de outros altos funcionários do
Estado imperial, bem como a dos próprios realistas do reinado
de Pedro I, é sintomática dessa afinidade recíproca e da clara
continuidade entre as gerações. Embora ainda não haja estudos
detalhados sobre a origem, a composição e o destino do partido
caramuru; tampouco sobre as relações dos Andradas com os
realistas do Senado e suas eventuais aproximações com
Vasconcelos; a historiografia é unânime em reconhecer que o
Partido Conservador nasceu da união dos moderados de direita
com os antigos realistas ou coimbrões, ou seja, aqueles que
combatiam os moderados pelo discurso político monarquiano.
Atribuído ao movimento, um panfleto de 1835 - A Impostura do Senhor
Bernardo Pereira de Vasconcelos Desmascarada - atribuía a ruptura entre
a direita e a esquerda do partido moderado justamente à
aliança entre o chefe da resistência e os coimbrões do Primeiro
Reinado. O autor do panfleto aludia ao fato de que, tendo
sempre combatido a entourage do ex-Imperador, Vasconcelos agora
criticava Feijó por atacar “os experimentados e velhos
servidores do Estado”. E indagava em seguida: “Quem foram,
porém, estes experimentados e velhos servidores do Estado, que
se esbulhou dos empregos para substituí-los por moderados? São
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os criados de São Cristóvão!” (HOMEM DE MELO, 1978:234). No
Libelo do Povo, em 1848, o jornalista ultraliberal Francisco Sales
Torres Homem (1812-1876) também acusaria os conservadores de
terem formado partido, às vésperas do reinado de Pedro II,
“recorrendo à “mobília estragada e carcomida de seu pai; os
velhos campeões do absolutismo e da recolonização” (INHOMIRIM,
1956:94).
As três linguagens do saquaremismo imperial: conservadorismo
prescritivo, liberalismo doutrinário e monarquianismo. Do
ponto de vista da linguagem ou do discurso, a nova direita
brasileira recorria alternativamente a três fontes mais ou
menos aparentadas. Quando precisavam justificar no terreno das
idéias a oposição que moviam aos governos ou proposições
liberais, os saquaremas recorriam ao conservadorismo
prescritivo de Hume e Burke. A principal característica do
conservadorismo prescritivo era a de constituir, não uma ideologia
de reação ao governo constitucional representativo, mas de
resistência às inovações propostas pelo liberalismo de
esquerda, impregnado de uma filosofia da história otimista e
desdenhadora do passado. Os hábitos, as tradições e os
costumes – e não idéias abstratas – é que eram os responsáveis
pela delicada acomodação de valores decorrentes de paixões
individuais. Sedimentadas no tempo de gerações, esses hábitos
haviam se amalgamado numa cultura de valores comuns, no âmbito
dos quais os indivíduos se orientavam para satisfazer suas
paixões, dentro de regras de convivência vantajosas para
todos. A despeito das disputas partidárias, o homem não
19
deveria, por amor à abstração, pôr em risco instituições que
garantiam de facto os direitos fundamentais, produzindo
dirigentes de qualidade razoável e distribuindo a justiça de
forma a garantir a paz e a ordem. A tensão entre autoridade e
liberdade era uma constante que não tinha como ser resolvida,
porque ambas eram essenciais à existência da sociedade e aos
direitos civis; justificando-se o direito de resistência
apenas frente a um rei inviolável que quisesse extrapolar suas
prerrogativas, tal como se dera em 1688 (HUME, 1985: 245). O
conservador não negava a necessidade de acompanhar a evolução
social – Burke dizia que um Estado privado de meios de se
auto-reformar estava condenado a perecer (BURKE, 1986: 107).
Entretanto, preconizava que as reformas só deveriam ser
admitidas depois de maturadas à luz da experiência,
rejeitando-se as propostas calcadas apenas em princípios
metafísicos.
O grande precursor do conservadorismo prescritivo no
Brasil foi o já referido jornalista, economista e político
baiano José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756-1835).
Também protegido de Linhares, em 1812 foi ele encarregado de
publicar uma primeira seleção de Burke, como “antídoto aos
venenos que se estão vendendo por bálsamos em folhas volantes
e periódicos regulares, em que se transcrevem doutrinas do
intitulado sofista de Genebra, escritor do Contrato Social” (In:
KIRSCHNER, 2003:686). Na época da independência, foi Cairu
quem iniciou a publicação do periódico Roteiro Brasílico ou Coleção de
Princípios e Documentos de Direito Público, composto de textos de autores
20
ligados ao Iluminismo escocês, como Hume, Montesquieu, Stäel,
Ferguson e o próprio Burke. Ele foi o único político
abertamente conservador durante o reinado de Pedro I, época em
que o tom da direita era conferido principalmente pelo
discurso monarquiano. O conservadorismo propriamente dito só
se tornou mais difuso na década seguinte, por conta do
reformismo conservador na Inglaterra promovido por figuras
como Robert Peel (1788-1850), o Duque de Wellington (1769-
1852) e George Canning (1770-1827). Os discursos pronunciados
pelo whig Thomas Babington Macaulay (1800-1859), para forçar a
passagem da Reforma Eleitoral de 1832 na Câmara dos Comuns,
popularizaram os postulados centrais do conservadorismo
burkeano ao descartar o constitucionalismo antiquário e
adaptar a Constituição Inglesa às novas realidades (MORRIS,
1998:85). O principal agente dessa segunda onda de recepção no
Brasil foi, mais uma vez, Bernardo Pereira de Vasconcelos, que
contrapusera os exemplos políticos da Grã-Bretanha e da França
ao modelo americanista com que acenava o movimento por ocasião
do Regresso, lançando mão do conservadorismo para justificar a
debandada da resistência na direção dos realistas. Nas décadas
posteriores, o prestígio da Grã-Bretanha só faria aumentar,
multiplicando-se as citações dos precedentes políticos daquele
reino como igualmente válidos para o funcionamento
institucional brasileiro. Haja vista que “a idéia do mundo não
é a do movimento, e melhor lhe pode caber a denominação de
idéia de resistência” (ASI, 6/07/1841), as reformas políticas
e sociais somente deveriam ser promovidas quando se “chegar ao
21
verdadeiro conhecimento dos verdadeiros interesses do país”
(VASCONCELOS, 1999:253).
Porque lhes fornecia o quadro histórico-filosófico que
justificava a postura conservadora, o conservadorismo prescritivo era
a fonte em que os saquaremas bebiam quando se tratava de
resistir às proposições dos governos liberais. Entretanto,
quando os conservadores brasileiros estavam no governo e
precisavam explicar ou justificar as posturas que adotavam ou
projetos que propunham ao Parlamento; ou quando, na oposição,
criticavam os governos liberais a partir de um determinado
modelo de governo seguro e consciente, eles apelavam para o
conservadorismo doutrinário da Monarquia de Julho, teorizado
depois de 1830 por Guizot. Tomando a Inglaterra como vanguarda
de um progresso histórico político linear, os conservadores
franceses interpretavam os eventos revolucionários de 1789
como equivalentes aos daquele país no século XVII. Por um
lado, eles pretendiam perenizar os frutos liberais da
Revolução, vendo na ascensão da burguesia a consolidação da
civilização em sua forma moderna. Por outro, diferenciavam o
seu conservadorismo do inglês, reputando a Monarquia de Julho
a síntese e a superação da Constituição Inglesa por equilibrar
liberalismo e democracia. No entanto, a democracia que
defendiam era antes uma forma social de igualdade civil (não-
aristocrática) do que política (RÉMOND, 1982:94). Além disso,
eles continuavam a reservar ao Estado um papel ativo na vida
nacional. Atraindo para si o que havia de mais notável em
inteligência e luzes na sociedade, cabia-lhe chamar ao pé de
22
si as capacidades para que pudesse reagir sobre a sociedade e
dirigi-la conforme seu próprio interesse esclarecido. Ao
buscar na sociedade os mais capazes para o exercício do
governo, o Estado se elevava à condição de governo dos espíritos,
forma de governo onde a sociedade era governava por sua
própria elite intelectual (ROSANVALLON, 1985:279).
Pela leitura de discursos parlamentares, pela importação
das obras políticas e pela circulação do Diário de Debates e da
Revista dos Dois Mundos, órgãos de difusão do liberalismo
doutrinário, a influência do conservadorismo francês foi
imensa no Império americano até pelo menos a década de 1870.
Não só o Brasil, em todo o mundo, foi o maior assinante
estrangeiro daquelas duas revistas (CALMON, 1937:23), como as
obras de defesa do orleanismo eram disputadas com avidez pelos
políticos saquaremas. O liberalismo doutrinário francês
fornecia aos saquaremas um modelo de liberalismo de governo
(MANENT, 1997:199) que tornava inteligível a prática
constitucional e representativa moderna, num universo
razoavelmente familiar. Assim, citando o “profundo” Guizot,
Paulino José Soares de Sousa declarava caber ao Estado dar “o
impulso geral aos melhoramentos morais e materiais a que
convém introduzir nos negócios públicos”; que, na esteira do
governo dos espíritos, era sua missão “agir sobre as massas e agir
pelos indivíduos, eis o que se chama governar” (URUGUAI, 1960:
54; 502). Já Firmino Rodrigues Silva alardeava que “a missão
do poder é uma coisa muito séria e grave; de suas relações com
as Câmaras partem a luz e a direção da sociedade, e para esta
23
repousar tranqüila sobre seus destinos, necessita acreditar
que o poder, além de tudo mais que deve ser, é a franqueza e a
lealdade nas alturas; que faz o que diz, diz ao país o que
pensa” (In: MASCARENHAS, 1961:269).
Quando os conservadores, entretanto, precisavam justificar
ações enérgicas na defesa da legalidade ou da soberania
nacional, ou interpretar a Carta de 1824 de modo favorável à
Coroa e ao unitarismo, eles recorriam invariavelmente ao
discurso político monarquiano que norteara os coimbrões. A
década de 1830 havia sido inclemente com a geração nascida
entre 1760 e 1770 e que, com sua retórica monarquiana,
fornecera os primeiros estadistas do Império; foram-se
sucessivamente Queluz (1833); Caravelas (1836); Inhambupe
(1837) e José Bonifácio (1838). Nesse sentido, a geração
nascida na década de 1800 não apenas tomou o seu lugar à
direita do espectro político, como também herdou a sua
linguagem política, que datava do século dezoito e, de certa
maneira, veio a se inserir numa linha de continuidade com os
coimbrões. Se a defesa de Caravelas das instituições
monarquianas em 1832 se fundara na proeza de os coimbrões
terem sido capazes de forjar “uma monarquia sem despotismo e a
liberdade sem anarquia”, os conservadores do Regresso
justificavam as reformas restauradoras daquelas instituições,
seis anos depois, pela necessidade de se “aliar a maior soma
de liberdade com a maior e mais perfeita segurança” (In:
JAVARI, 1993:187). A persistência de determinados argumentos-
chave do discurso monarquiano, a despeito da teoria do governo
24
parlamentar, conferiu à linguagem dos conservadores
brasileiros tonalidades que permitem distingui-lo de seus
congêneres europeus, como o conservadorismo burkeano (prescritivo)
ou guizotiano (doutrinário). O monarquianismo se chocava com o
conservadorismo à francesa na medida em que este reivindicava
o bom legado da Revolução de 1830. Os regressistas, ao
contrário, não viam qualquer conquista a se reivindicar no
movimento de 7 de abril de 1831.
Ao exemplo dos realistas e coimbrões, eles iam buscar no
Primeiro Reinado e no primado da Coroa o princípio da ordem e
da monarquia para contrastar com os de liberdade e de
democracia alardeados pelo movimento, cujos herdeiros, chamados
agora liberais, defenderiam sós a obra do período regencial.
Sintomática dessa identidade com os realistas – e, portanto,
com o despotismo ilustrado - estava na tese de que a
legitimidade do Imperador não derivava da Constituição, mas de
seu título de Defensor Perpétuo e sua aclamação popular. Foi o que
fez Carneiro Leão em 1841, ao negar que a legitimidade do
Imperador decorresse exclusivamente da Constituição: “Não há
tal, a Constituição o reconhece, mas o Imperador é tal por
unânime aclamação dos povos, antes da Constituição. Não é
exato que a autoridade do Imperador só viesse da Constituição;
a Constituição reconheceu em fato preexistente no Brasil, que
foi a sua unânime aclamação” (ACD, 9/7/1841). Como corolário
dessa adesão aos princípios monarquianos, os saquaremas também
aprovavam a dissolução da Constituinte operada pelos
coimbrões. Desprovida das instituições monarquianas, a Carta
25
elaborada por ela teria tornado ingovernável o país (URUGUAI,
1960:483/494).
Ancorado na noção da Coroa como primeira representante da
Nação, o potencial reformador do discurso monarquiano também
se chocava com o discurso conservador à inglesa. Ainda que
formalmente concordassem em preservar o modelo agroexportador
e escravocrata, residia aí o maior ponto de discordância entre
conservadores e liberais. O estatocentrismo saquarema impunha
à própria aristocracia rural a incorporação do mundo do campo
àquele da civilização, isto é, da regulação de suas atividades
pelo Estado. Daí que, como os coimbrões e realistas, entre os
interesses da lavoura e do Estado, os saquaremas ficavam com
este – como em 1850 e 1871, quando a razão de Estado saquarema
sacrificou o interesse da aristocracia rural. Como seus
predecessores, os conservadores também acreditavam que a sorte
do Império dependia exclusivamente de sua hegemonia política,
pois seus adversários liberais não estavam comprometidos com
as instituições. Em 1842, ao organizar a repressão aos
rebeldes de 1842 na província do Rio, Carneiro Leão escreveu a
Paulino que o estava em jogo não era o gabinete saquarema,
“mas sim a causa da monarquia; é esta que se discute com a
espada na mão” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:151). Por isso,
reiterando a doutrina imperial de salvação pública do Primeiro Reinado,
os conservadores precisavam dispor de toda a força que a lei
lhes permita contra os rebelados. Não hesitaram assim ordenar
a prisão e o processo de venerandos chefes brasilienses da
época da independência, como Feijó e Vergueiro, implicados
26
naquelas revoltas; nem em decretar o estado de exceção em São
Paulo, Minas Gerais e Pernambuco (este, em 1848). Também a
exemplo dos realistas, os conservadores determinaram a
deportação dos rebeldes e se opuseram às medidas
contemporizadoras sugeridas pelo Imperador - exceto Rodrigues
Torres, que, dentre os chefes fluminenses, era aquele mais
vinculado aos interesses da lavoura (SOARES DE SOUSA,
1944:151).
Para Paulino José Soares de Sousa, os ideais de justiça
eram impotentes quando desacompanhados da possibilidade de
coerção; por isso, as providências “fortes, violentas” se
justificavam “em circunstâncias muito arriscadas”; num “estado
revolucionário” como aquele que se apresentara em 1842. Mais
tarde, ele escreveria de modo mais sintético: “O essencial
(...) é ter força. O direito é o menos” (In: SOARES DE SOUSA,
1944:563). Esse realismo conservador, que reconhecia a
indispensabilidade de mecanismos de suspensão das garantias,
quando se apresentassem perigos, para os quais a normalidade
normativa não oferecia remédio, não pode ser confundido com
defesa do arbítrio ou do golpismo, nem era um julgado
expediente ordinário de governo contra a oposição. O golpismo
e o arbítrio eram associados pelos saquaremas, ao contrário,
aos seus adversários liberais ou luzias que, periodicamente,
pegavam em armas contra a ordem constitucional – como provavam
os precedentes da abdicação, a 7 de abril de 1831; do golpe de
30 de julho de 1832 (golpe abortado, lembre-se, pelo
conservador Carneiro Leão), do golpe da maioridade de Pedro
27
II, em julho de 1840; e enfim, as chamadas Revoluções Liberais
de 1842. A severidade na repressão promovida pelos
conservadores precisava se circunscrever sempre aos limites
previstos pela própria ordem constitucional para a suspensão
das garantias constitucionais. Do mesmo modo, ele não poderia
ser invocado a torto e a direito, sob pena de comprometer a
legalidade e as instituições. Como faziam da defesa da ordem a
defesa da legalidade, os conservadores ficavam à vontade para
repelir a pecha de absolutistas que lhe assacavam os liberais.
Justamente porque amavam a liberdade, alegava Paulino, é “que
se devem empregar todos os meios para salvar o país do
espírito revolucionário, porque este produz a anarquia e a
anarquia destrói, mata a liberdade, a qual somente pode
prosperar com a ordem” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:163).
O modelo político-institucional saquarema: parlamentarismo
tutelado e centralização política. O discurso saquarema
absorveu assim o discurso monarquiano que o precedera e, com
ele, sua interpretação das instituições constitucionais. Resta
saber como, do ponto de vista jurídico e doutrinário, a
supremacia da autoridade imperial se compadecia com a teoria
do governo parlamentar e, dentro dele, com a figura do
primeiro-ministro, criada por decreto em 1847. As respostas a
estas perguntas passam pela consideração sucessiva de dois
distintos cenários, que correspondem aos períodos anterior e
posterior à maioridade de Pedro II.
Durante a Regência, a prática do governo parlamentar
respondia menos à necessidade de garantir a representatividade
28
da aristocracia rural e do comércio de exportação, assegurada
desde 1831, do que a de compensar a ausência do monarca e
fortalecer a unidade do governo por uma base parlamentar fiel,
com que se poderia apertar a unidade política e firmar a
ordem. Como o núcleo duro do partido lembrava em 1851, a
abdicação de Pedro I trouxera a fraqueza do poder e, com ele,
as “influências de localidades”, a inexperiência dos
estadistas e os excessos de liberalismo; quando o que mais
urgia era, ao revés, “um poder bem constituído e robusto, que
tivesse a força necessária para dirigir com mão firme um país
novo (...) na larga senda dos grandes melhoramentos sociais
que reclama” (In: VIANA, 1968:149). Em 1843, Paulino Soares de
Sousa declarava à Câmara que cabia ao governo exercer sobre o
Parlamento “aquela saudável influência que é indispensável
para que haja acordo e as coisas possam marchar” (ACD,
23/01/1843). Ou seja, de nada adiantavam governos de mandato
fixo, como defendiam então os liberais, se o desprestígio
parlamentar os impediam de ser eficazes. No contexto
regencial, em que o acirramento das disputas prejudicava o
combate à desordem, para Vasconcelos o governo parlamentar
eliminaria os contínuos desencontros com as câmaras,
representativas de grupos e interesses diversos, para
fortalecer o Executivo. Por isso mesmo propôs a criação formal
do cargo de Presidente do Conselho de Ministros quando assumiu
o gabinete do regresso, em 1837 (VASCONCELOS, 1999: 242/243; e
235). Ou seja, o governo parlamentar era visto pelos
saquaremas como um meio de aumentar o prestígio do governo e
29
não de enfraquecê-lo. Esta é a única explicação plausível para
o fato de que a consolidação do governo parlamentar
brasileiro, na passagem da década de 1830 para a de 1840,
tenha coincidido com o predomínio sistemático dos gabinetes
sobre as sucessivas legislaturas na Câmara. Já em 1843 se
queixava um deputado: “Antigamente as câmaras eram tudo, os
governos sujeitavam-se a elas até no que não era de sua
competência; mas hoje as câmaras são nada; o governo é tudo...
Não ouvimos senão – o governo exige – o governo pede – o
governo quer” (In: PINHO, 1936:90).
Depois da maioridade de Pedro II, restabelecida a Coroa e,
com ela, o prestígio do Poder Executivo – autônomo, todavia,
da vontade do Parlamento -, a concepção saquarema do governo
parlamentar sofreu uma correção. Também aqui há dois pontos a
se destacar, faces da mesma moeda. Por um lado, a teoria do
governo parlamentar visava a impedir que uma ênfase demasiada
na autoridade do Imperador, necessária à preservação da ordem,
desandasse em autonomia permanente, dissociando-o dos
interesses da aristocracia rural. O receio era que, por meio
da interpretação monarquiana da Constituição, o monarca
assumisse pessoalmente o governo e impusesse pelo Poder
Moderador reformas assemelhadas àquelas defendidas pelos
coimbrões, como a abolição efetiva do tráfico negreiro ou da
própria escravidão, e a imigração estrangeira subsidiada e
assentada em pequenas propriedades rurais. Em linhas gerais,
era preciso evitar a excessiva autonomia da Coroa, que tão
30
encarniçadamente opusera brasilienses e coimbrões na década de
1820.
Por outro lado, assegurada pela prática do governo
parlamentar, a primazia da aristocracia rural no jogo político
tinha um efeito potencialmente disruptivo, derivado da falta
de cultura institucional e da pouca organicidade social. A
tendência à desagregação e à desordem provinha da falta de
legitimidade dos governos, da falta de capilaridade do Estado
nacional e da descentralização do aparelho repressivo operada
pelo Ato Adicional. Daí a importância, para os conservadores,
do restabelecimento do Poder Moderador e do Conselho de
Estado, bolado pelos monarquianos, e de uma recentralização
parcial do poder. Auxiliado por um grupo estável de
conselheiros, imparcial frente aos partidos e facções, a
legitimidade monárquica do chefe do Estado lhe permitiria
arbitrar as contendas entre os grupos políticos, garantir a
formação de governos na ausência de consenso parlamentar e
reprimir, em último caso, a insubordinação de aristocratas
inconformados ou de setores excluídos. Considerado fonte única
de todo o poder legítimo, mas despojado da dimensão reformista
atribuída pelos coimbrões, o Poder Moderador faria o papel de
agente da ordem, unificando o frágil governo representativo
pelo alto e impedindo-o de novamente se desagregar pela
divisão horizontal ou vertical dos poderes.
Essa acomodação dos princípios da monarquia e do governo
parlamentar passava, portanto, ao largo do modelo parlamentar
guizotiano que, descrevendo o princípio da dupla confiança,
31
fazia do gabinete o veículo de comunicação entre dois poderes
eqüipotentes, a Coroa e o Parlamento. Ao frisarem que as lutas
parlamentares refletiam o atraso do povo e o particularismo
dos potentados que o oprimiam, com prejuízo para a qualidade e
a estabilidade do governo, os conservadores das décadas de 1850
e 1860 elaboraram um modelo de governo parlamentar crítico da
própria representação que o deveria justificar, quase idêntico
àquele formulado pelo Marquês de Caravelas. Enfatizando a
necessidade de uma administração imparcial, proba e
pacificadora, o tanto quanto possível apartada da política
(In: VIANA, 1968:151), os saquaremas minimizavam o papel
diretor da Câmara dos Deputados, que deveria se limitar a uma
função pedagógica e coadjuvante. Ela constituía um recinto no
qual, respeitadas as formalidades parlamentares, os
representantes das parcialidades se reuniam para entrar em
contato com o Estado, assimilar seus valores e, dando maioria
ao ministério, auxiliar o governo imperial na promoção da
civilização nacional. Daí por que, com sua imparcialidade e
autoridade, o Imperador se mostrasse sempre à testa dos
negócios públicos: “Vossa Majestade Imperial não é, não pode,
não deve ser homem de partidos. A Divina Providência o fez
somente o homem do partido da prosperidade e da grandeza do
país que o chamou a governar” (In: VIANA, 1968:151). Era assim o
Estado unitário e europeu que, da Corte, deveria representar a
Nação como tutor, instruindo-a e elevando-a pela difusão das
luzes e dos exemplos. Graças a um realismo sociológico que
verificava a inferioridade da Nação enquanto representada,
32
alterava-se a natureza jurídica da representação. De
mandatário dos seus interesses, o Estado se convertia no seu
tutor judicial, isto é, num representante investido do papel
de zelar pelos interesses da Nação durante a sua menoridade,
encarregado de contribuir para o seu bom crescimento e
preservar seu patrimônio. Para isto, os conservadores
compensavam os eventuais excessos do governo parlamentar por
uma interpretação léxica ou literal do texto constitucional,
como os coimbrões. Era o que queriam geralmente dizer quando
defendiam a “rigorosa observância dos preceitos da
Constituição” (In: BRASILIENSE, 1979:22).
Em síntese: pondo no alto da hierarquia política o Poder
Moderador, entendido como um poder excepcional de dissolução
da câmara e livre nomeação e demissão de ministros pelo
monarca; seguido do Poder Executivo, compreendido como governo
do gabinete supervisionado pelo Imperador; e por fim o Poder
Legislativo, concebido como uma arena de aprendizado,
coadjuvação e esclarecimento, os autores conservadores
lograram conciliar a teoria do governo parlamentar com a do
governo misto e, deste modo, preservaram as três
representações monarquianas do Estado que, espelhadas no
conceito coimbrão de Poder Moderador, haviam sido enunciadas
por Antônio Carlos, Caravelas e Queluz. O resultado era o
modelo de um governo parlamentar, é certo, mas tutelado pela
Coroa.
A doutrina do modelo saquarema: o Marquês de São Vicente e o
Visconde de Uruguai. Obra exemplar desse modelo é o Direito Público
33
Brasileiro e Análise da Constituição do Império, do senador e conselheiro
de Estado conservador José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878),
futuro Marquês de São Vicente, e publicada em 1858. Pimenta
Bueno sustentava que, na medida em que o chefe do Poder
Executivo reconhecido pela Constituição era o Imperador, o
intérprete constitucional deveria relativizar a importância do
cargo de Presidente do Conselho de Ministros, criado em 1847.
Suas únicas atribuições seriam as de organizar o gabinete,
zelar por sua unidade política, dirigir seus trabalhos e
discussões e, por fim, desempatar suas votações. Seria
prejudicial, entendia São Vicente, que o Presidente do
Conselho assumisse uma posição de chefe. Caso ele pudesse
impor sua opinião aos demais ministros, a Coroa ficaria
privada “de meios de ilustração, e o país, do valor de
diversas inteligências, subordinando os seus interesses
porventura a uma só, e reduzindo os outros ministros a meros
subsecretários de Estado” (SÃO VICENTE, 1958:260). É que,
”superior a todas as paixões, a todos os interesses, a toda
rivalidade”, o Poder Moderador era o fiscal do povo soberano
no controle de seus representantes políticos, motivo pelo qual
ele constituía “a mais elevada força social, o órgão político
mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da
nação” (SÃO VICENTE, 1958:202). Fica claro que, para o
marquês, o governo parlamentar deveria se acomodar com uma
interpretação literal do texto constitucional, segundo a qual
a direção da alta política incumbia ao Imperador, ficando o
Presidente do Conselho em segundo plano.
34
O saquaremismo do Marquês de São Vicente foi corroborado
depois por seu colega e amigo Paulino José Soares de Sousa, já
então Visconde de Uruguai, em sua obra Ensaio sobre o Direito
Administrativo. Embora concedesse às câmaras influência na
formação e duração dos gabinetes, Uruguai sequer menciona, no
livro, a existência do Presidente do Conselho. Para ele, a
demissão do ministério ficava sempre a critério da Coroa,
intérprete última da conformidade ou não da política do
governo com o interesse público. Na qualidade de chefe do
Poder Executivo, “o Imperador acompanha, discutindo, fazendo
observações, cedendo até certo ponto, ao movimento que as
maiorias que dominam nas Câmaras imprimem aos negócios,
movimento que não deve contrariar, principalmente quando é
conveniente e justo, conforme a opinião nacional; e necessário
para que o governo se mantenha, segundo as condições do
sistema representativo. Enquanto tais condições duram,
portanto, o Imperador – sempre como chefe do Executivo -
fiscaliza, observa, dirige o Conselho”. No entanto, “quando vê
que o movimento que os ministros ou a maioria da Câmara dos
Deputados querem imprimir aos negócios vai além da justa meta;
que vai causar sérios males difíceis de remediar depois; que
não é conforme a opinião nacional; que há desacordo entre as
Câmaras e o ministério; que os ministros responsáveis não têm
mais a força necessária para gerir os negócios com vantagem
pública, o Imperador intervém como Poder Moderador, e
restabelece a ordem e a harmonia” (URUGUAI, 1960:268).
35
A apoteose política do saquaremismo: o gabinete conservador de
1848-1851. O ponto alto do saquaremismo como ideologia e como
partidarismo se daria entre 1848-1851, durante o ministério
chefiado pelo Marquês de Monte Alegre, mas cuja orientação era
impressa, na verdade, pelos deputados fluminenses Paulino de
Sousa, Rodrigues Torres e Eusébio de Queirós - a trindade
saquarema, em que o primeiro fazia o papel de intelectual ou
doutrinário; o segundo representava a lavoura, e o terceiro, a
burocracia. O ministério mantinha o controle das eleições
provinciais a fim de, pelo alto, eleger bancadas dóceis e
governistas, objetivo conseguido pela ativa intervenção dos
presidentes de província no pleito. A interferência do governo
era justificada pelo argumento de que a luta entre a ordem e a
liberdade continuava no interior do Estado e que por isso
poderia mobilizar seus recursos contra a oposição. A
manipulação era facilitada pelo sistema eleitoral, que tomava
cada província como distrito único: como a apuração dos votos
se concentrava na respectiva capital, o governador esvaziava a
influência da aristocracia local em proveito dos candidatos da
cúpula do partido (In: NABUCO, 1997: 140). Outra força com que
podia contar o gabinete para garantir a maioria parlamentar
era a Guarda Nacional que, reformada em 1850, passara para o
comando do Ministro da Justiça e servia para recrutar os
adversários do governo. Por fim, também como na França
orleanista, a ausência de uma legislação que
incompatibilizasse o funcionalismo público com o exercício do
mandato parlamentar permitia aos conservadores gozarem, tal
como os coimbrões e realistas, do apoio maciço da burocracia
36
e, em especial, da magistratura, que dependia do governo.
Assim, se por um lado os saquaremas homenageavam as luzes do
século, expressas nos manuais de governo parlamentar; por
outro, curvavam-se à realidade política, forjando bancadas
predispostas à situação e delas afastando os que, de braços
com os potentados rurais, teimavam em ameaçar a ordem com seu
golpismo crônico.
Esse gabinete saquarema de quase quatro anos promulgou o
Código Comercial, resolveu questões platinas que se arrastavam
desde o reinado de Pedro I, promulgou uma reforma fundiária -
a Lei de Terras - e aboliu o tráfico negreiro no ano da morte
de Vasconcelos (1850). Estes dois últimos feitos ilustram como
a linguagem monarquiana permitia aos conservadores, no limite,
superar o discurso de resistência às mudanças para operar
reformas que favorecessem o Estado em detrimento da
aristocracia provincial. Posto que abandonasse a proposta
coimbrã de atrair imigrantes pela oferta de terras, o projeto
da lei agrária determinava o pagamento de impostos
territoriais pelos fazendeiros e lhes impunha o ônus de arcar
com a medição das terras, pressuposto para a regularização de
sua situação fundiária. Essas providências deveriam ser
tomadas no prazo de seis anos sob pena de reversão das terras
ao domínio do Estado, isto é, da Coroa. O projeto indica que
os saquaremas da Corte identificavam civilização com regulação do
econômico pelo político. Não por acaso, os fazendeiros das
outras províncias consideraram o projeto lesivo aos seus
interesses - especialmente aqueles situados em zonas de
37
expansão agrícola, que desejavam reproduzir em seu proveito o
ideal da sociedade excludente e escravocrata (FRAGOSO,
2000:151).
Por seu turno, foi a razão de Estado que justificou a
decisão dos saquaremas de decretar o fim do tráfico negreiro,
contra as medidas protelatórias dos luzias, que propunham
negociar uma cota fixa de importação lícita de africanos com a
Inglaterra alegando que não seria possível viver sem o tráfico
de um dia para o outro (ASI, 1º e 2/07/1850). O pensamento e a
iniciativa da abolição da abolição couberam a Paulino Soares
de Sousa, movido, segundo ele, por razões “de moral, de
civilização, da nossa própria segurança e de nossos filhos”.
Como o Marquês de Caravelas, chefe realista das duas primeiras
décadas da monarquia, o futuro Visconde de Uruguai entendia
que, posto que pudesse “de produzir algum abalo”, a extinção
do tráfico poderia ser minorada pelo trabalho livre e pela
imigração; que a medida constituía uma razão de Estado e, como
tal, estava acima de considerações legais e do discurso de
resistência à inovação (URUGUAI, 1960:72). Foi ainda a razão de
Estado que desencadeou a inconstitucional coação exercida pelo
governo contra o Judiciário para assegurar a condenação dos
traficantes e fazendeiros recalcitrantes, contra o tráfico de
influência e as relações de clientela entre a aristocracia
rural e a magistratura local. Capitaneado por Eusébio de
Queirós, ministro da Justiça, o gabinete conservador
pressionou os desembargadores da Relação de Pernambuco por
meio de aposentadorias, remoções e outras sanções para obrigá-
38
los a pôr de lado o compadrio, dando satisfações à opinião
pública e ao governo britânico (PINHO, 1936:213/214).
Crise e fortuna do saquaremismo imperial. Na forma de um
governo parlamentar e centrípeta tutelado pela Coroa,
portanto, a engenharia institucional proposta pelos
conservadores lograva, assim, a proeza de prevenir no âmbito
parlamentar o risco de desordem decorrente da divergência das
aristocracias provinciais, sem comprometer, pelo facciosismo,
o único projeto nacional em torno do qual era possível
consenso; e que passava pela conciliação do ideal civilizador
coimbrão de um poderoso Império unitário com o incremento do
negócio agroexportador ancorado na grande propriedade rural,
monocultora e escravista. O que comprometeria esse modelo,
depois de 1871, seria justamente a sua capacidade de colocar
os interesses do Estado e da modernização pelo alto acima
daqueles da aristocracia rural e do escravismo – fato evidente
durante o gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, que
arrancou contra os liberais e a própria ala agrária de seu
partido a Lei do Ventre Livre. Foi esse predomínio do lado
monarquiano do saquaremismo, manejado pela ala burocrática ou
cortesã, contra os compromissos escravocratas de sua porção
agrária, que desencadearia a cisão e a crise do partido nos
anos que se seguiram. O modelo saquarema seria finalmente
substituído em 1881, quando a Lei Saraiva tentaria fazer a
passagem do modelo monárquico centralizador para outro,
oligárquico e federalista, ideal frustrado que só se
materializaria com o advento do regime republicano. Como
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pensamento, porém, o saquaremismo sobreviveria. Ele
reaparecerá na década de 1920, quando, a partir da leitura de
neossaquaremas como Alberto Torres e Oliveira Viana, outra
formação burocrática – os tenentes – fará dele, no contexto de
luta antioligárquica, uma bandeira de reforma política e
social pelo alto.
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