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1 Quando o Regresso é Progresso: a formação do pensamento conservador saquarema e de seu modelo político (1834-1851). Christian Edward Cyril Lynch 1 In: BOTELHO, André; FERREIRA, Gabriela Nunes. (Org.). Revisão do Pensamento Conservador: ideias e Política no Brasil -. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 25-53. Introdução. Estudadas a partir de autores arquetípicos de cada uma delas, como Bonald, Burke, Stuart Mill, Proudhon, Kropotkine ou Marx, reacionarismo, conservadorismo, liberalismo, socialismo, anarquismo, comunismo são ideologias conhecidas de qualquer leitor familiarizado com a tradição política ocidental. Para além de seus “tipos ideais”, isto é, do ângulo de uma teoria política de vocação “universal”, as ideologias também podem ser estudadas de forma particular a cada nação, buscando-se compreender a trajetória particular de dada uma daquelas correntes no curso de seus particulares percursos na busca da 1 Christian Edward Cyril Lynch é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professor permanente do programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF) e colaborador do programa de pós-graduação em Direito e Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É também professor da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio).

Quando o Regresso é Progresso: a formação do pensamento conservador saquarema e de seu modelo político (1834-1851)

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Quando o Regresso é Progresso: a formação do

pensamento conservador saquarema e de seu modelo

político (1834-1851).

Christian Edward Cyril Lynch1

 In: BOTELHO, André; FERREIRA, Gabriela Nunes. (Org.). Revisão

do Pensamento Conservador: ideias e Política no Brasil -. São

Paulo: Hucitec, 2010, p. 25-53.

Introdução. Estudadas a partir de autores arquetípicos de cada

uma delas, como Bonald, Burke, Stuart Mill, Proudhon,

Kropotkine ou Marx, reacionarismo, conservadorismo, liberalismo, socialismo,

anarquismo, comunismo são ideologias conhecidas de qualquer

leitor familiarizado com a tradição política ocidental. Para

além de seus “tipos ideais”, isto é, do ângulo de uma teoria

política de vocação “universal”, as ideologias também podem ser

estudadas de forma particular a cada nação, buscando-se

compreender a trajetória particular de dada uma daquelas

correntes no curso de seus particulares percursos na busca da

1 Christian Edward Cyril Lynch é doutor em Ciência Política pelo InstitutoUniversitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). É professorpermanente do programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade GamaFilho (UGF) e colaborador do programa de pós-graduação em Direito eSociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). É também professor daEscola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro (Uni-Rio).

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modernidade política. Com efeito, os diferentes processos de

construção estatal, nacional, liberal e democrática de cada

sociedade conferem às suas experiências cores próprias em

relação àqueles arquétipos “universais”, sem deixarem, porém,

de integrá-los. De modo que, para além de uma teoria ou

pensamento político de alcance universal, devamos estudar e

nos referir também aos pensamentos ou teorias políticas

propriamente nacionais, ou mesmo regionais.

O caso do Brasil não é diferente. No que se refere à ideologia

conservadora, por exemplo, sua versão nacional mais

característica parece ter sido produzida a partir de certo

discurso ou linguagem oitocentista, calcada na valorização

positiva da formação política brasileira sob o regime imperial

instalado logo depois da independência. Firmado entre as

décadas de 1830 e 1850, na forma de um modelo institucional, o

discurso político conservador que o firmou conformou um tipo

particular de conservadorismo liberal, que parte de um

determinado diagnóstico dito realista ou sociológico da

sociedade brasileira, considerada em menoridade pelos males da

sua formação social. A partir dessa constatação, prega-se a

organização de um Estado tutelar, relativamente autônomo da

sociedade, incumbido de fundar a ordem nacional de cima para

baixo e, a partir dela, promover reformas efetivas, mas

seguras, no sentido de veicular o progresso nacional.

No presente artigo, pretendo revisitar as primeiras décadas do

regime monárquico brasileiro para descrever contextualmente

como se consolidou entre nós a matriz daquela que se tornou a

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principal vertente brasileira do conservadorismo. Na tentativa

de conferir uma denominação particular a esta tradição

conservadora brasileira, comprometida simultaneamente com o

Estado de direito e com o princípio da autoridade, buscaram

qualificá-las alguns dos mais notáveis estudiosos da

experiência política brasileira: “verdadeiro liberalismo”

(Visconde de Uruguai); “idealismo prático” (Joaquim Nabuco);

“idealismo orgânico” (Oliveira Viana e, mais recentemente,

Gildo Marçal Brandão); “pragmatismo crítico” (Guerreiro

Ramos); “liberalismo de transição ou conciliação” (Raimundo

Faoro); “autoritarismo instrumental” (Wanderley Guilherme);

“ideologia do Estado” (Bolívar Lamounier); e, finalmente,

“iberismo” (Werneck Viana). De minha parte, vou denominá-la,

pura e simplesmente, saquarema. Partindo do apelido conferido

aos primeiros chefes do Partido Conservador do Império no

final da década de 1830, tal denominação possui sobre as

demais a vantagem de aludir à origem histórica reconhecida

daquela matriz, sem suscitar questionamentos acerca da

propriedade dos termos empregados para denominá-la, do ponto

de vista da teoria política, nem valorações a priori acerca da

positividade ou negatividade de seus conteúdos. Daí poder-se

falar na existência de um “pensamento saquarema”, de uma

“historiografia saquarema”, de um “modelo político saquarema”,

e de uma ideologia: o “saquaremismo”,

O Primeiro Reinado: coimbrões ou realistas versus brasilienses

ou liberais. A passagem do Antigo Regime para o governo

constitucional e representativo no Brasil caracterizou-se pela

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concomitância de dois processos: no plano internacional, a

independência da América Portuguesa frente à metrópole

européia; no plano interno, a transição da monarquia absoluta

para a monarquia constitucional. Nos últimos anos, a

historiografia vem precisando os contornos da luta e dos

debates que marcaram esses eventos que desde cedo opuseram

dois partidos, portadores de distintos projetos de nação e

aspirando à direção do país: a “elite coimbrã” e a “elite

brasiliense” (CARVALHO, 1996; NEVES, 2004). Tal como nos EUA,

quarenta anos antes, a divergência decorria dos diferentes

enfoques conferidos às relações entre a sociedade preexistente

e o Estado a ser criado. Em nome da Coroa, os coimbrões

valorizavam o governo geral em nome da ordem e da autoridade,

por meio de uma política unitária de subordinação do interesse

provincial aos imperativos do reformismo imperial, ao passo

que, em nome das elites provinciais, brasilienses

privilegiavam, ao revés, o vínculo federativo na formação do

Império. A elite brasiliense sugeria, assim, ao invés de um

Estado unitário de burocracia autônoma, um Estado federativo

dominado pelas elites locais. No Brasil, escamoteada a

princípio, no contexto da guerra de independência, a

divergência entre os dois grupos acentuou-se paulatinamente na

Constituinte de 1823, ficando por fim patente no episódio da

sua dissolução pelo Imperador.

O eixo do debate político entre os dois partidos se

desenvolveu basicamente em torno da natureza do governo

representativo estabelecido na Constituição de 1824: à direita, os

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coimbrões, agora realistas, entendiam-no como um governo misto

garantido pela separação de poderes e pela autonomia de uma

Coroa atuante, ao passo que, a partir da literatura whig do

período, os brasilienses, agora liberais, entendiam-no como

sinônimo de governo parlamentar, ou seja, de predomínio da

Câmara dos Deputados. Os realistas eram chefiados basicamente

pela antiga burocracia luso-brasileira, cujos expoentes haviam

pertencido ao segundo escalão do governo joanino. Seu projeto

político remontava às teorias do despotismo ilustrado,

caracterizado pela centralização política em torno da Coroa,

entendida como motor de um processo de modernização da

sociedade brasileira pelo alto, que passava pela abolição do

tráfico negreiro e da própria escravidão num futuro não muito

distante. Seus principais integrantes haviam sido inicialmente

os irmãos Andrada (José Bonifácio, Antônio Carlos e Martim

Francisco) e, depois, políticos como o Visconde de Cachoeira e

os marqueses de Caravelas, Queluz, Baependi, Inhambupe e

Paranaguá. Já os fazendeiros e senhores de engenho

provinciais, “liberais”, advogavam um modelo oligárquico,

“brasiliense”, predominantemente federalista e cujo governo se

curvasse diante dos interesses econômicos latifundiários e

escravistas. Os brasilienses, depois liberais, se identificariam

prioritariamente com os interesses da grande propriedade rural

e escravista, preferindo uma monarquia descentralizada ou

federativa que lhes garantisse ampla autonomia política,

administrativa e econômica no âmbito das províncias que

compunham o Império; da mesma forma, valorizavam o Parlamento

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e não a Coroa como órgão de representação de seus interesses

(LYNCH, 2005). Esse partido oposicionista, intitulado durante

o Primeiro Reinado partido brasileiro, patriota ou liberal, se compunha

de antigos brasilienses proprietários de terras, como os

padres Diogo Antônio Feijó, José Bento Ferreira de Melo e José

Martiniano de Alencar, que compunham a elite econômica e

política das províncias.

A Regência e as duas alas do Partido Moderado. Com a abdicação

de Dom Pedro I, assumiu o poder uma coalizão intitulada

Partido Moderado, encabeçada à esquerda pelos antigos

brasilienses, e à direita por um grupo de jovens magistrados

que não se identificara com os antigos coimbrões ou realistas.

A esquerda, ainda mesclando o liberalismo doutrinário com a

velha linguagem vintista, pretendia aproveitar a menoridade de

Pedro II para aprovar uma reforma constitucional, de olho no

modelo político norte-americano, que ampliasse a autonomia das

provinciais em benefício das oligarquias agrárias a que

pertenciam (DOHLNIKOFF, 2006:15). Essa orientação americanista

contrastava, todavia, com aquela da ala direita do Partido

Moderado, liderada por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Era

ela integrada por juízes que também eram ou que viriam a ser

fazendeiros, como o pernambucano Pedro de Araújo Lima, o

paulista José de Costa Carvalho, o mineiro Honório Hermeto

Carneiro Leão; e, a partir de meados da década, os fluminenses

José Joaquim Rodrigues Torres (1802-1872), Eusébio de Queirós

Matoso Câmara (1812-1868) e Paulino José Soares de Sousa

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(1807-1866). Na linguagem política francesa, eles seriam

qualificados como moderados de resistência e, como tais, avessos a

grandes alterações na Constituição. Ao contrário da ala

esquerda, eles eram monarquistas por convicção e não por

cálculo - daí que instintivamente simpatizassem com a forma

unitária de governo, sentindo-se mais atraídos pelo modelo

político francês da Monarquia de Julho.

Embora a abdicação de Dom Pedro I em 1831 tenha

representado a vitória dos moderados, o fato foi que a

permanência do círculo dos envelhecidos marqueses burocratas

no Senado vitalício obrigou os novos do poder a negociarem com

os antigos realistas sua proposta de reforma constitucional,

tendente ao esvaziamento do poder monárquico pela erradicação

do Poder Moderador e da centralização política. Na

impossibilidade de obrigar os senadores à votação conjunta com

os deputados e inviabilizada a saída golpista aventada pela

esquerda, pela resistência demonstrada pela ala direita, os

moderados negociaram com os realistas uma solução de

compromisso. O resultado foi o Ato Adicional de 1834, que deu

origem a uma forma híbrida de Estado, a meio caminho da

monarquia unitária francesa e da república federal norte-

americana - uma monarquia semifederal. Foram criadas

assembléias provinciais dotadas de competência própria, de

cujo controle de constitucionalidade ficou a Assembléia Geral

encarregada. A reforma substituiu a Regência trina, eleita

pelo Legislativo, por uma Regência una e eletiva, escolhida em

eleição indireta pelo eleitorado nacional; e descentralizou o

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Poder Judiciário. Os Presidentes de Província continuaram

nomeados pela Coroa, e o mandato dos senadores, vitalício; em

compensação, os realistas tiveram de aceitar a extinção do

Conselho de Estado. De alguma forma, o Ato Adicionou corrigia

o sentido de reformismo liberal, que dois anos antes, na

elaboração do Código de Processo Criminal, gerara excesso de

localismo, criando uma classe de juízes eletivos na primeira

instância, com competências judiciárias e policiais (COSER,

2008:61). O resultado foi, assim, uma centralização em nível

estadual, operada às expensas do governo geral e dos

municípios (DOHLNIKOFF, 2005:120).

O final feliz da batalha contra os realistas não passou,

porém, de ilusão para a ala esquerda dos moderados. A

descentralização tornou muito mais virulenta a luta no âmbito

provincial ao mesmo tempo em que retirou do governo central a

capacidade de arbitrá-las ou reprimi-las. Além disso, as

províncias passaram a interpretar o Ato Adicional exorbitando

de sua esfera de competências de molde a ampliar seu campo de

ação e esvaziar o governo geral. Esse quadro foi agravado pela

crise econômica causada pela queda dos preços dos gêneros de

exportação e pelo esgotamento das jazidas de ouro (FAORO,

1997:325). O déficit orçamentário induzia o governo a emitir

papel-moeda para cobrir as despesas, gerando inflação. Essa

desarticulação do pouco que havia sido criado de Estado

brasileiro em nome da liberdade da aristocracia provincial

contra o poder de cima (a Coroa) desencadeou a desordem social, que

era o seu maior pesadelo em relação ao poder de baixo (o povo) .

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Circunscritos às cidades e liderados pela elite letrada,

depois do Ato Adicional os conflitos se alastraram para o

campo, envolvendo pobres, índios e escravos (CARVALHO,

1996:231) – justamente aqueles segmentos sociais que os

coimbrões queriam integrar pela tutela, como partícipes de uma

sociedade atrasada, e que eram excluídos pelos brasilienses,

por não considerá-los parte do povo ou da Nação. Com o país à

beira do precipício, quase metade da Câmara já julgava digno

de consideração, em 1835, um projeto de extinção da monarquia

– leia-se, do Brasil como entidade política (MARTINS, 1978,

II: 217).

Nesse ponto, a ala direita dos moderados começou a se

desentender com a ala esquerda, reivindicando uma parcial

recentralização que permitisse ao Estado imperial reaver o

controle dos conflitos provinciais. Antes mesmo do Ato

Adicional, ela já desconfiava que a descentralização fosse

aumentar a desordem ao invés de reduzi-la. Relator do

anteprojeto do Ato, Bernardo Pereira de Vasconcelos já

protestara contra as emendas propostas pela ala esquerda do

partido por estender demasiado as competências das províncias.

Apoiado pela nova deputação fluminense, o mineiro Vasconcelos

se justificava com a sociologia política de Caravelas, chefe

intelectual dos antigos realistas, relativa às diferenças

entre os Estados Unidos e o Brasil. Além de mais cultas e

organizadas que a ex-colônia portuguesa, as antigas colônias

inglesas haviam se confederado sem abrir mão de suas

soberanias, fato que justificava os amplos poderes detidos

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pelos Estados em relação à União Federal. No Brasil, ao

contrário, a soberania sempre pertencera à União. Por isso

mesmo, as províncias teriam que se contentar com uma

descentralização mais moderada. Dar, em nome do progresso, um

passo que os costumes e a experiência brasileiros não

comportavam, poderia resultar não na americanização, mas na

mexicanização do Império. Neste caso, de verdadeiro “código da

anarquia”, o Ato Adicional passaria a “símbolo da guerra

civil” (VASCONCELOS, 1999:218/224).

O movimento regressista e a fundação do Partido Conservador. A

cisão partidária se acentuou com a eleição, para Regente do

Império, do chefe da ala esquerda dos moderados, o senador

paulista Diogo Feijó, “homem de caráter austero e virtudes

antigas, que unia em boa fé a teorias anárquicas instintos de

ordem” (URUGUAI, 1960:493). Ao mesmo tempo em que se dizia

disposto a debelar “o vulcão da anarquia”, Feijó se recusava a

atender à demanda recentralizadora da ala direita, afirmando

que seria o primeiro a manter as províncias “no gozo das

vantagens que a reforma lhes outorgou” (FEIJÓ, 1999:172).

Nesse meio tempo, chegou ao Rio de Janeiro a notícia da morte

de Dom Pedro I em Portugal, aos 36 anos. Foi o que permitiu

uma completa redefinição do panorama político, ao desmobilizar

os exaltados e disponibilizar os antigos caramurus ou

realistas disponíveis para uma eventual recomposição de

forças, facultando a separação das duas alas moderadas do

Partido Moderado. Defendendo o regresso ao princípio da

unidade nacional em torno da Coroa, a direita moderada aliou-

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se aos políticos realistas sobreviventes, como Francisco

Carneiro de Campos e Miguel Calmon du Pin com o fito de “parar

o carro revolucionário” que Feijó deixava correr. Em breve

chamado também de partido da ordem, cascudo ou saquarema – alusão

ao município onde Rodrigues Torres tinha fazenda e se reunia

com seus colegas -, o novo Partido Conservador combateu o

presidencialismo federalista da ala esquerda dos moderados,

reeditando a campanha pelo governo parlamentar que tivera

lugar no final do Primeiro Reinado; como então, o objetivo era

o de converter o chefe de Estado, de Presidente da República

norte-americano, em Rei constitucional inglês.

Reagindo à defecção da sua ala direita, constituída em

partido, a esquerda moderada também resolveu formar o seu,

adotando o nome de Partido Liberal, com o fito de defender o Ato

Adicional, o presidencialismo regencial e a autonomia das

províncias. Mas a articulação partidária em torno do governo de

Feijó não foi capaz de, por si mesma, conter a nova campanha

parlamentarista de Vasconcelos. Enquanto o Regente sustentava

que o princípio do “governo das maiorias”, sustentado pelos

conservadores, era “absurdo e subversivo de toda a ordem no

Brasil, além de inconstitucional” (In: FAORO, 1997:318), o

jornalista conservador Firmino Rodrigues Silva (1816-1879)

retrucava que, “no sistema representativo, governo sem maioria é

frase absurda que não tem explicação alguma. No Brasil, porém,

que tem tomado a peito demonstrar todos os absurdos, a falsear

todos os princípios do sistema representativo, nos tem dado

exemplo dum governo sem maioria” (In: MASCARENHAS, 1961:17).

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Vasconcelos aditava que, se o governo queria a colaboração dos

parlamentares, seus ministros deveriam comparecer pessoalmente

à Assembléia “para explicar-lhes quais são as necessidades que

ele julga urgentes, o que com mais urgência pedem

providências”, caso em que cada deputado poderia julgar por si

e avaliar sua posição. “Parlamentarmente organizado”, em

regime de coesão do gabinete, seria mais fácil ao governo

formar “as maiorias conscienciosas, as maiorias compactas e

invencíveis” (VASCONCELOS, 1999:235). Fortalecida e

prestigiada, a nova oposição conservadora paralisou o governo

de Feijó. Ao se queixar da falta de cooperação do Parlamento

com as “urgentíssimas necessidades do Estado” (In: JAVARI,

1993:176), repetindo o roteiro de Pedro I, o destino do

primeiro chefe de Estado eleito do Brasil foi idêntico ao do

príncipe que hostilizara – a renúncia.

Disposto a se fazer de monarca constitucional sob um

governo parlamentar, o novo Regente, Pedro de Araújo Lima,

encarregou a Vasconcelos e seus companheiros de organizar o

novo gabinete e implantar o programa do regresso. Esse programa

passava basicamente por uma interpretação autêntica, isto é,

legislativa do Ato Adicional (nos termos do art. 15 VIII da

Constituição), que pusesse fim às invasões provinciais sobre

as competências da União, e pela revisão do Código de Processo

Criminal que, operada pela lei de 3 de dezembro de 1841,

recentralizou as competências judiciárias e policiais nas mãos

do Ministro da Justiça. De acordo com os conservadores, ao

terem sua composição transferida ao eleitorado da localidade

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pelo movimento, a máquina judiciária municipal (juízes de paz,

municipais, de órfãos, jurados), o ministério público e a

polícia haviam se tornado instrumentos para que os senhores

rurais oprimissem os adversários e perpetuassem seu mando.

Obra da esquerda moderada, o Código de Processo teria deixado

o governo nacional de mãos atadas contra o privatismo, que de

local se transmudava em provincial, desde que eram os

potentados que dominavam as assembléias legislativas. Para os

conservadores, a solução passava por retirar das mãos das

localidades a nomeação das autoridades judiciárias e

administrativas e acabar com as usurpações das competências

legislativas do governo geral pelas assembléias provinciais

(URUGUAI, 1960). Essas medidas foram completadas pelo

restabelecimento das prerrogativas do Poder Moderador,

ocorrido automaticamente quando da proclamação da maioridade

do Imperador, em 1840 (que pôs fim à vigência da Lei de

Regência), assim como pela promulgação da Lei n. 234 de 23 de

novembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de Estado

extinto pelo Ato Adicional.

O saquaremismo como meio termo entre os realistas do Primeiro

Reinado e a esquerda moderada regencial. O Regresso pretendia

repor as instituições políticas no ponto em que a ala direita

do partido moderado sempre as pretendera – a meio caminho do

que haviam pretendido os coimbrões ou realistas da geração de

1790, com sua utopia do poderoso Império, e a desconcentração

de poder decorrente do Ato Adicional, pretendida pelos

brasilienses ou liberais da aristocracia rural. Dos

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brasilienses, liberais ou ala direita moderada, e à diferença

dos antigos realistas ou coimbrões, os saquaremas herdaram os

compromissos com o tráfico negreiro como meio de sobrevivência

e expansão da grande lavoura. Não deixa dúvidas a vinculação

dos conservadores com a grande propriedade rural da Bahia, de

Pernambuco e do Rio de Janeiro e os grandes traficantes de

escravos (CARVALHO, 1996). Embora a escravidão não suscitasse

o entusiasmo de Paulino José Soares de Sousa - que viria a ser

nomeado presidente honorário de uma sociedade abolicionista

francesa, o Instituto da África (SOARES DE SOUSA,

1944:213/227) -, o conjunto do partido entendia que ela

precisava ser mantida: o boom cafeeiro permitiria pôr fim à

crise e consolidar a primazia da política fluminense no

cenário nacional. Eram urgentes os investimentos na província

do Rio, onde em 1838 o café já compunha, segundo o próprio

Paulino, “o seu principal ramo de exportação, a qual

presentemente excede a muito mais de dois milhões e trezentas

mil arrobas, quase todas de primeira qualidade” (In: REIS,

1985:350). A exigência de pronta mão-de-obra, de um lado, e as

dificuldades da imigração européia barata e espontânea, de

outro, pareciam confirmar a crença de Vasconcelos de que a

escravidão era fundamental para dinamizar a economia e,

portanto, elemento antes de civilização do que de barbarismo

(VASCONCELOS, 1999:268).

Do ponto de vista estratégico, a aliança da burocracia com

a aristocracia rural fornecia ao Estado imperial a base sólida

de sustentação que lhe faltara durante o reinado de Dom Pedro

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I. O 7 de Abril representara efetivamente o fracasso da

burocracia monárquica em direcionar o país segundo o projeto

ilustrado, sem levar em consideração as aspirações da

aristocracia rural, que se apresentava democraticamente como a

opinião pública, a sociedade brasileira, que era maciçamente

escravocrata. Chefe do primeiro gabinete da Regência de Araújo

Lima, Vasconcelos era o primeiro a enfatizar que, para se

enraizarem, as instituições imperiais precisavam do apoio da

“classe conservadora”, composta “dos capitalistas, dos

negociantes, dos homens industriosos, dos que se dão com

afinco às artes e ciências; daqueles que nas mudanças

repentinas têm tudo a perder, nada a ganhar” (VASCONCELOS,

1999:27). Das páginas do jornal conservador O Brasil, em setembro

de 1843, o jornalista Justiniano José da Rocha (1812-1862)

retomava a teoria de Vasconcelos da “classe conservadora”.

Para ele, o futuro da monarquia só estaria firmado caso ela

firmasse uma aliança sólida com a aristocracia rural e o

comércio agroexportador, fazendo seus os interesses deles. No

conjunto de uma sociedade composta de trabalhadores dispersos,

indolentes e insubordinados, carecedores de educação pelo

trabalho – elas eram as únicas classes que teriam algo a

perder caso a desordem tomasse conta do Império (ROCHA, 1843).

Ou seja, nesse pacto, a Coroa deveria oferecer a garantia da

ordem pública, escravocrata e latifundiária; em retorno, a

lavoura e o comércio de exportação seriam fiéis ao regime,

colaborando com a construção da ordem nacional. Em síntese: a

escravidão era o preço que a monarquia conservadora pagava ao

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latifúndio liberal para que esta aderisse ao seu projeto

nacional.

Justamente por isso, os antigos moderados de direita,

agora conservadores ou saquaremas, não se interessavam pelo

conjunto de medidas de que era composto o pacote dos moderados

de esquerda, agora liberais ou luzias. Os saquaremas criticavam

a subordinação dos interesses do Estado nacional à grande

propriedade rural, debilitando-o na tarefa de assegurar a

ordem pública e da unidade territorial. Era nesse ponto que os

conservadores recorriam à tradição do Primeiro Reinado. Dos

coimbrões, realistas ou caramurus, pois, os conservadores

resgataram principalmente o princípio de autoridade do Estado

imperial, expressa no prestígio do regime monárquico de

governo, simbolizado pela Coroa, para criar um centro

suprapartidário capaz de assegurar a ordem pública e a unidade

territorial do Império, contra as ameaças de secessão ou de

insubordinação. Para tanto, era preciso podar os excessos da

descentralização e restaurar parcialmente a configuração

monarquiana de 1824: o regresso era o progresso. Daí que, numa

revisão positiva da experiência do Primeiro Reinado, o Regresso

fosse beber nos argumentos coimbrões da preeminência do

Imperador e, com ele, do governo nacional sobre o provincial,

recuperando as três representações sobre o chefe de Estado,

que haviam sustentado. O símbolo da política regressista foi a

retomada do antigo costume do beija-mão do Imperador pelo novo

Regente do Império - escandaloso para os liberais que queriam,

contra os corcundas, uma monarquia democrática. De fato, para que os

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conservadores pudessem chegar ao progresso, recuperando as

instituições que prezavam, teriam de reformar a ordem reformada

pelo movimento para retrogradar à época em que pontificava o

“princípio monárquico” – época do reinado de Pedro I, quando

predominara o discurso monarquiano de civilização na ordem do

Estado.

A adesão dos magistrados e de outros altos funcionários do

Estado imperial, bem como a dos próprios realistas do reinado

de Pedro I, é sintomática dessa afinidade recíproca e da clara

continuidade entre as gerações. Embora ainda não haja estudos

detalhados sobre a origem, a composição e o destino do partido

caramuru; tampouco sobre as relações dos Andradas com os

realistas do Senado e suas eventuais aproximações com

Vasconcelos; a historiografia é unânime em reconhecer que o

Partido Conservador nasceu da união dos moderados de direita

com os antigos realistas ou coimbrões, ou seja, aqueles que

combatiam os moderados pelo discurso político monarquiano.

Atribuído ao movimento, um panfleto de 1835 - A Impostura do Senhor

Bernardo Pereira de Vasconcelos Desmascarada - atribuía a ruptura entre

a direita e a esquerda do partido moderado justamente à

aliança entre o chefe da resistência e os coimbrões do Primeiro

Reinado. O autor do panfleto aludia ao fato de que, tendo

sempre combatido a entourage do ex-Imperador, Vasconcelos agora

criticava Feijó por atacar “os experimentados e velhos

servidores do Estado”. E indagava em seguida: “Quem foram,

porém, estes experimentados e velhos servidores do Estado, que

se esbulhou dos empregos para substituí-los por moderados? São

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os criados de São Cristóvão!” (HOMEM DE MELO, 1978:234). No

Libelo do Povo, em 1848, o jornalista ultraliberal Francisco Sales

Torres Homem (1812-1876) também acusaria os conservadores de

terem formado partido, às vésperas do reinado de Pedro II,

“recorrendo à “mobília estragada e carcomida de seu pai; os

velhos campeões do absolutismo e da recolonização” (INHOMIRIM,

1956:94).

As três linguagens do saquaremismo imperial: conservadorismo

prescritivo, liberalismo doutrinário e monarquianismo. Do

ponto de vista da linguagem ou do discurso, a nova direita

brasileira recorria alternativamente a três fontes mais ou

menos aparentadas. Quando precisavam justificar no terreno das

idéias a oposição que moviam aos governos ou proposições

liberais, os saquaremas recorriam ao conservadorismo

prescritivo de Hume e Burke. A principal característica do

conservadorismo prescritivo era a de constituir, não uma ideologia

de reação ao governo constitucional representativo, mas de

resistência às inovações propostas pelo liberalismo de

esquerda, impregnado de uma filosofia da história otimista e

desdenhadora do passado. Os hábitos, as tradições e os

costumes – e não idéias abstratas – é que eram os responsáveis

pela delicada acomodação de valores decorrentes de paixões

individuais. Sedimentadas no tempo de gerações, esses hábitos

haviam se amalgamado numa cultura de valores comuns, no âmbito

dos quais os indivíduos se orientavam para satisfazer suas

paixões, dentro de regras de convivência vantajosas para

todos. A despeito das disputas partidárias, o homem não

19

deveria, por amor à abstração, pôr em risco instituições que

garantiam de facto os direitos fundamentais, produzindo

dirigentes de qualidade razoável e distribuindo a justiça de

forma a garantir a paz e a ordem. A tensão entre autoridade e

liberdade era uma constante que não tinha como ser resolvida,

porque ambas eram essenciais à existência da sociedade e aos

direitos civis; justificando-se o direito de resistência

apenas frente a um rei inviolável que quisesse extrapolar suas

prerrogativas, tal como se dera em 1688 (HUME, 1985: 245). O

conservador não negava a necessidade de acompanhar a evolução

social – Burke dizia que um Estado privado de meios de se

auto-reformar estava condenado a perecer (BURKE, 1986: 107).

Entretanto, preconizava que as reformas só deveriam ser

admitidas depois de maturadas à luz da experiência,

rejeitando-se as propostas calcadas apenas em princípios

metafísicos.

O grande precursor do conservadorismo prescritivo no

Brasil foi o já referido jornalista, economista e político

baiano José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756-1835).

Também protegido de Linhares, em 1812 foi ele encarregado de

publicar uma primeira seleção de Burke, como “antídoto aos

venenos que se estão vendendo por bálsamos em folhas volantes

e periódicos regulares, em que se transcrevem doutrinas do

intitulado sofista de Genebra, escritor do Contrato Social” (In:

KIRSCHNER, 2003:686). Na época da independência, foi Cairu

quem iniciou a publicação do periódico Roteiro Brasílico ou Coleção de

Princípios e Documentos de Direito Público, composto de textos de autores

20

ligados ao Iluminismo escocês, como Hume, Montesquieu, Stäel,

Ferguson e o próprio Burke. Ele foi o único político

abertamente conservador durante o reinado de Pedro I, época em

que o tom da direita era conferido principalmente pelo

discurso monarquiano. O conservadorismo propriamente dito só

se tornou mais difuso na década seguinte, por conta do

reformismo conservador na Inglaterra promovido por figuras

como Robert Peel (1788-1850), o Duque de Wellington (1769-

1852) e George Canning (1770-1827). Os discursos pronunciados

pelo whig Thomas Babington Macaulay (1800-1859), para forçar a

passagem da Reforma Eleitoral de 1832 na Câmara dos Comuns,

popularizaram os postulados centrais do conservadorismo

burkeano ao descartar o constitucionalismo antiquário e

adaptar a Constituição Inglesa às novas realidades (MORRIS,

1998:85). O principal agente dessa segunda onda de recepção no

Brasil foi, mais uma vez, Bernardo Pereira de Vasconcelos, que

contrapusera os exemplos políticos da Grã-Bretanha e da França

ao modelo americanista com que acenava o movimento por ocasião

do Regresso, lançando mão do conservadorismo para justificar a

debandada da resistência na direção dos realistas. Nas décadas

posteriores, o prestígio da Grã-Bretanha só faria aumentar,

multiplicando-se as citações dos precedentes políticos daquele

reino como igualmente válidos para o funcionamento

institucional brasileiro. Haja vista que “a idéia do mundo não

é a do movimento, e melhor lhe pode caber a denominação de

idéia de resistência” (ASI, 6/07/1841), as reformas políticas

e sociais somente deveriam ser promovidas quando se “chegar ao

21

verdadeiro conhecimento dos verdadeiros interesses do país”

(VASCONCELOS, 1999:253).

Porque lhes fornecia o quadro histórico-filosófico que

justificava a postura conservadora, o conservadorismo prescritivo era

a fonte em que os saquaremas bebiam quando se tratava de

resistir às proposições dos governos liberais. Entretanto,

quando os conservadores brasileiros estavam no governo e

precisavam explicar ou justificar as posturas que adotavam ou

projetos que propunham ao Parlamento; ou quando, na oposição,

criticavam os governos liberais a partir de um determinado

modelo de governo seguro e consciente, eles apelavam para o

conservadorismo doutrinário da Monarquia de Julho, teorizado

depois de 1830 por Guizot. Tomando a Inglaterra como vanguarda

de um progresso histórico político linear, os conservadores

franceses interpretavam os eventos revolucionários de 1789

como equivalentes aos daquele país no século XVII. Por um

lado, eles pretendiam perenizar os frutos liberais da

Revolução, vendo na ascensão da burguesia a consolidação da

civilização em sua forma moderna. Por outro, diferenciavam o

seu conservadorismo do inglês, reputando a Monarquia de Julho

a síntese e a superação da Constituição Inglesa por equilibrar

liberalismo e democracia. No entanto, a democracia que

defendiam era antes uma forma social de igualdade civil (não-

aristocrática) do que política (RÉMOND, 1982:94). Além disso,

eles continuavam a reservar ao Estado um papel ativo na vida

nacional. Atraindo para si o que havia de mais notável em

inteligência e luzes na sociedade, cabia-lhe chamar ao pé de

22

si as capacidades para que pudesse reagir sobre a sociedade e

dirigi-la conforme seu próprio interesse esclarecido. Ao

buscar na sociedade os mais capazes para o exercício do

governo, o Estado se elevava à condição de governo dos espíritos,

forma de governo onde a sociedade era governava por sua

própria elite intelectual (ROSANVALLON, 1985:279).

Pela leitura de discursos parlamentares, pela importação

das obras políticas e pela circulação do Diário de Debates e da

Revista dos Dois Mundos, órgãos de difusão do liberalismo

doutrinário, a influência do conservadorismo francês foi

imensa no Império americano até pelo menos a década de 1870.

Não só o Brasil, em todo o mundo, foi o maior assinante

estrangeiro daquelas duas revistas (CALMON, 1937:23), como as

obras de defesa do orleanismo eram disputadas com avidez pelos

políticos saquaremas. O liberalismo doutrinário francês

fornecia aos saquaremas um modelo de liberalismo de governo

(MANENT, 1997:199) que tornava inteligível a prática

constitucional e representativa moderna, num universo

razoavelmente familiar. Assim, citando o “profundo” Guizot,

Paulino José Soares de Sousa declarava caber ao Estado dar “o

impulso geral aos melhoramentos morais e materiais a que

convém introduzir nos negócios públicos”; que, na esteira do

governo dos espíritos, era sua missão “agir sobre as massas e agir

pelos indivíduos, eis o que se chama governar” (URUGUAI, 1960:

54; 502). Já Firmino Rodrigues Silva alardeava que “a missão

do poder é uma coisa muito séria e grave; de suas relações com

as Câmaras partem a luz e a direção da sociedade, e para esta

23

repousar tranqüila sobre seus destinos, necessita acreditar

que o poder, além de tudo mais que deve ser, é a franqueza e a

lealdade nas alturas; que faz o que diz, diz ao país o que

pensa” (In: MASCARENHAS, 1961:269).

Quando os conservadores, entretanto, precisavam justificar

ações enérgicas na defesa da legalidade ou da soberania

nacional, ou interpretar a Carta de 1824 de modo favorável à

Coroa e ao unitarismo, eles recorriam invariavelmente ao

discurso político monarquiano que norteara os coimbrões. A

década de 1830 havia sido inclemente com a geração nascida

entre 1760 e 1770 e que, com sua retórica monarquiana,

fornecera os primeiros estadistas do Império; foram-se

sucessivamente Queluz (1833); Caravelas (1836); Inhambupe

(1837) e José Bonifácio (1838). Nesse sentido, a geração

nascida na década de 1800 não apenas tomou o seu lugar à

direita do espectro político, como também herdou a sua

linguagem política, que datava do século dezoito e, de certa

maneira, veio a se inserir numa linha de continuidade com os

coimbrões. Se a defesa de Caravelas das instituições

monarquianas em 1832 se fundara na proeza de os coimbrões

terem sido capazes de forjar “uma monarquia sem despotismo e a

liberdade sem anarquia”, os conservadores do Regresso

justificavam as reformas restauradoras daquelas instituições,

seis anos depois, pela necessidade de se “aliar a maior soma

de liberdade com a maior e mais perfeita segurança” (In:

JAVARI, 1993:187). A persistência de determinados argumentos-

chave do discurso monarquiano, a despeito da teoria do governo

24

parlamentar, conferiu à linguagem dos conservadores

brasileiros tonalidades que permitem distingui-lo de seus

congêneres europeus, como o conservadorismo burkeano (prescritivo)

ou guizotiano (doutrinário). O monarquianismo se chocava com o

conservadorismo à francesa na medida em que este reivindicava

o bom legado da Revolução de 1830. Os regressistas, ao

contrário, não viam qualquer conquista a se reivindicar no

movimento de 7 de abril de 1831.

Ao exemplo dos realistas e coimbrões, eles iam buscar no

Primeiro Reinado e no primado da Coroa o princípio da ordem e

da monarquia para contrastar com os de liberdade e de

democracia alardeados pelo movimento, cujos herdeiros, chamados

agora liberais, defenderiam sós a obra do período regencial.

Sintomática dessa identidade com os realistas – e, portanto,

com o despotismo ilustrado - estava na tese de que a

legitimidade do Imperador não derivava da Constituição, mas de

seu título de Defensor Perpétuo e sua aclamação popular. Foi o que

fez Carneiro Leão em 1841, ao negar que a legitimidade do

Imperador decorresse exclusivamente da Constituição: “Não há

tal, a Constituição o reconhece, mas o Imperador é tal por

unânime aclamação dos povos, antes da Constituição. Não é

exato que a autoridade do Imperador só viesse da Constituição;

a Constituição reconheceu em fato preexistente no Brasil, que

foi a sua unânime aclamação” (ACD, 9/7/1841). Como corolário

dessa adesão aos princípios monarquianos, os saquaremas também

aprovavam a dissolução da Constituinte operada pelos

coimbrões. Desprovida das instituições monarquianas, a Carta

25

elaborada por ela teria tornado ingovernável o país (URUGUAI,

1960:483/494).

Ancorado na noção da Coroa como primeira representante da

Nação, o potencial reformador do discurso monarquiano também

se chocava com o discurso conservador à inglesa. Ainda que

formalmente concordassem em preservar o modelo agroexportador

e escravocrata, residia aí o maior ponto de discordância entre

conservadores e liberais. O estatocentrismo saquarema impunha

à própria aristocracia rural a incorporação do mundo do campo

àquele da civilização, isto é, da regulação de suas atividades

pelo Estado. Daí que, como os coimbrões e realistas, entre os

interesses da lavoura e do Estado, os saquaremas ficavam com

este – como em 1850 e 1871, quando a razão de Estado saquarema

sacrificou o interesse da aristocracia rural. Como seus

predecessores, os conservadores também acreditavam que a sorte

do Império dependia exclusivamente de sua hegemonia política,

pois seus adversários liberais não estavam comprometidos com

as instituições. Em 1842, ao organizar a repressão aos

rebeldes de 1842 na província do Rio, Carneiro Leão escreveu a

Paulino que o estava em jogo não era o gabinete saquarema,

“mas sim a causa da monarquia; é esta que se discute com a

espada na mão” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:151). Por isso,

reiterando a doutrina imperial de salvação pública do Primeiro Reinado,

os conservadores precisavam dispor de toda a força que a lei

lhes permita contra os rebelados. Não hesitaram assim ordenar

a prisão e o processo de venerandos chefes brasilienses da

época da independência, como Feijó e Vergueiro, implicados

26

naquelas revoltas; nem em decretar o estado de exceção em São

Paulo, Minas Gerais e Pernambuco (este, em 1848). Também a

exemplo dos realistas, os conservadores determinaram a

deportação dos rebeldes e se opuseram às medidas

contemporizadoras sugeridas pelo Imperador - exceto Rodrigues

Torres, que, dentre os chefes fluminenses, era aquele mais

vinculado aos interesses da lavoura (SOARES DE SOUSA,

1944:151).

Para Paulino José Soares de Sousa, os ideais de justiça

eram impotentes quando desacompanhados da possibilidade de

coerção; por isso, as providências “fortes, violentas” se

justificavam “em circunstâncias muito arriscadas”; num “estado

revolucionário” como aquele que se apresentara em 1842. Mais

tarde, ele escreveria de modo mais sintético: “O essencial

(...) é ter força. O direito é o menos” (In: SOARES DE SOUSA,

1944:563). Esse realismo conservador, que reconhecia a

indispensabilidade de mecanismos de suspensão das garantias,

quando se apresentassem perigos, para os quais a normalidade

normativa não oferecia remédio, não pode ser confundido com

defesa do arbítrio ou do golpismo, nem era um julgado

expediente ordinário de governo contra a oposição. O golpismo

e o arbítrio eram associados pelos saquaremas, ao contrário,

aos seus adversários liberais ou luzias que, periodicamente,

pegavam em armas contra a ordem constitucional – como provavam

os precedentes da abdicação, a 7 de abril de 1831; do golpe de

30 de julho de 1832 (golpe abortado, lembre-se, pelo

conservador Carneiro Leão), do golpe da maioridade de Pedro

27

II, em julho de 1840; e enfim, as chamadas Revoluções Liberais

de 1842. A severidade na repressão promovida pelos

conservadores precisava se circunscrever sempre aos limites

previstos pela própria ordem constitucional para a suspensão

das garantias constitucionais. Do mesmo modo, ele não poderia

ser invocado a torto e a direito, sob pena de comprometer a

legalidade e as instituições. Como faziam da defesa da ordem a

defesa da legalidade, os conservadores ficavam à vontade para

repelir a pecha de absolutistas que lhe assacavam os liberais.

Justamente porque amavam a liberdade, alegava Paulino, é “que

se devem empregar todos os meios para salvar o país do

espírito revolucionário, porque este produz a anarquia e a

anarquia destrói, mata a liberdade, a qual somente pode

prosperar com a ordem” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:163).

O modelo político-institucional saquarema: parlamentarismo

tutelado e centralização política. O discurso saquarema

absorveu assim o discurso monarquiano que o precedera e, com

ele, sua interpretação das instituições constitucionais. Resta

saber como, do ponto de vista jurídico e doutrinário, a

supremacia da autoridade imperial se compadecia com a teoria

do governo parlamentar e, dentro dele, com a figura do

primeiro-ministro, criada por decreto em 1847. As respostas a

estas perguntas passam pela consideração sucessiva de dois

distintos cenários, que correspondem aos períodos anterior e

posterior à maioridade de Pedro II.

Durante a Regência, a prática do governo parlamentar

respondia menos à necessidade de garantir a representatividade

28

da aristocracia rural e do comércio de exportação, assegurada

desde 1831, do que a de compensar a ausência do monarca e

fortalecer a unidade do governo por uma base parlamentar fiel,

com que se poderia apertar a unidade política e firmar a

ordem. Como o núcleo duro do partido lembrava em 1851, a

abdicação de Pedro I trouxera a fraqueza do poder e, com ele,

as “influências de localidades”, a inexperiência dos

estadistas e os excessos de liberalismo; quando o que mais

urgia era, ao revés, “um poder bem constituído e robusto, que

tivesse a força necessária para dirigir com mão firme um país

novo (...) na larga senda dos grandes melhoramentos sociais

que reclama” (In: VIANA, 1968:149). Em 1843, Paulino Soares de

Sousa declarava à Câmara que cabia ao governo exercer sobre o

Parlamento “aquela saudável influência que é indispensável

para que haja acordo e as coisas possam marchar” (ACD,

23/01/1843). Ou seja, de nada adiantavam governos de mandato

fixo, como defendiam então os liberais, se o desprestígio

parlamentar os impediam de ser eficazes. No contexto

regencial, em que o acirramento das disputas prejudicava o

combate à desordem, para Vasconcelos o governo parlamentar

eliminaria os contínuos desencontros com as câmaras,

representativas de grupos e interesses diversos, para

fortalecer o Executivo. Por isso mesmo propôs a criação formal

do cargo de Presidente do Conselho de Ministros quando assumiu

o gabinete do regresso, em 1837 (VASCONCELOS, 1999: 242/243; e

235). Ou seja, o governo parlamentar era visto pelos

saquaremas como um meio de aumentar o prestígio do governo e

29

não de enfraquecê-lo. Esta é a única explicação plausível para

o fato de que a consolidação do governo parlamentar

brasileiro, na passagem da década de 1830 para a de 1840,

tenha coincidido com o predomínio sistemático dos gabinetes

sobre as sucessivas legislaturas na Câmara. Já em 1843 se

queixava um deputado: “Antigamente as câmaras eram tudo, os

governos sujeitavam-se a elas até no que não era de sua

competência; mas hoje as câmaras são nada; o governo é tudo...

Não ouvimos senão – o governo exige – o governo pede – o

governo quer” (In: PINHO, 1936:90).

Depois da maioridade de Pedro II, restabelecida a Coroa e,

com ela, o prestígio do Poder Executivo – autônomo, todavia,

da vontade do Parlamento -, a concepção saquarema do governo

parlamentar sofreu uma correção. Também aqui há dois pontos a

se destacar, faces da mesma moeda. Por um lado, a teoria do

governo parlamentar visava a impedir que uma ênfase demasiada

na autoridade do Imperador, necessária à preservação da ordem,

desandasse em autonomia permanente, dissociando-o dos

interesses da aristocracia rural. O receio era que, por meio

da interpretação monarquiana da Constituição, o monarca

assumisse pessoalmente o governo e impusesse pelo Poder

Moderador reformas assemelhadas àquelas defendidas pelos

coimbrões, como a abolição efetiva do tráfico negreiro ou da

própria escravidão, e a imigração estrangeira subsidiada e

assentada em pequenas propriedades rurais. Em linhas gerais,

era preciso evitar a excessiva autonomia da Coroa, que tão

30

encarniçadamente opusera brasilienses e coimbrões na década de

1820.

Por outro lado, assegurada pela prática do governo

parlamentar, a primazia da aristocracia rural no jogo político

tinha um efeito potencialmente disruptivo, derivado da falta

de cultura institucional e da pouca organicidade social. A

tendência à desagregação e à desordem provinha da falta de

legitimidade dos governos, da falta de capilaridade do Estado

nacional e da descentralização do aparelho repressivo operada

pelo Ato Adicional. Daí a importância, para os conservadores,

do restabelecimento do Poder Moderador e do Conselho de

Estado, bolado pelos monarquianos, e de uma recentralização

parcial do poder. Auxiliado por um grupo estável de

conselheiros, imparcial frente aos partidos e facções, a

legitimidade monárquica do chefe do Estado lhe permitiria

arbitrar as contendas entre os grupos políticos, garantir a

formação de governos na ausência de consenso parlamentar e

reprimir, em último caso, a insubordinação de aristocratas

inconformados ou de setores excluídos. Considerado fonte única

de todo o poder legítimo, mas despojado da dimensão reformista

atribuída pelos coimbrões, o Poder Moderador faria o papel de

agente da ordem, unificando o frágil governo representativo

pelo alto e impedindo-o de novamente se desagregar pela

divisão horizontal ou vertical dos poderes.

Essa acomodação dos princípios da monarquia e do governo

parlamentar passava, portanto, ao largo do modelo parlamentar

guizotiano que, descrevendo o princípio da dupla confiança,

31

fazia do gabinete o veículo de comunicação entre dois poderes

eqüipotentes, a Coroa e o Parlamento. Ao frisarem que as lutas

parlamentares refletiam o atraso do povo e o particularismo

dos potentados que o oprimiam, com prejuízo para a qualidade e

a estabilidade do governo, os conservadores das décadas de 1850

e 1860 elaboraram um modelo de governo parlamentar crítico da

própria representação que o deveria justificar, quase idêntico

àquele formulado pelo Marquês de Caravelas. Enfatizando a

necessidade de uma administração imparcial, proba e

pacificadora, o tanto quanto possível apartada da política

(In: VIANA, 1968:151), os saquaremas minimizavam o papel

diretor da Câmara dos Deputados, que deveria se limitar a uma

função pedagógica e coadjuvante. Ela constituía um recinto no

qual, respeitadas as formalidades parlamentares, os

representantes das parcialidades se reuniam para entrar em

contato com o Estado, assimilar seus valores e, dando maioria

ao ministério, auxiliar o governo imperial na promoção da

civilização nacional. Daí por que, com sua imparcialidade e

autoridade, o Imperador se mostrasse sempre à testa dos

negócios públicos: “Vossa Majestade Imperial não é, não pode,

não deve ser homem de partidos. A Divina Providência o fez

somente o homem do partido da prosperidade e da grandeza do

país que o chamou a governar” (In: VIANA, 1968:151). Era assim o

Estado unitário e europeu que, da Corte, deveria representar a

Nação como tutor, instruindo-a e elevando-a pela difusão das

luzes e dos exemplos. Graças a um realismo sociológico que

verificava a inferioridade da Nação enquanto representada,

32

alterava-se a natureza jurídica da representação. De

mandatário dos seus interesses, o Estado se convertia no seu

tutor judicial, isto é, num representante investido do papel

de zelar pelos interesses da Nação durante a sua menoridade,

encarregado de contribuir para o seu bom crescimento e

preservar seu patrimônio. Para isto, os conservadores

compensavam os eventuais excessos do governo parlamentar por

uma interpretação léxica ou literal do texto constitucional,

como os coimbrões. Era o que queriam geralmente dizer quando

defendiam a “rigorosa observância dos preceitos da

Constituição” (In: BRASILIENSE, 1979:22).

Em síntese: pondo no alto da hierarquia política o Poder

Moderador, entendido como um poder excepcional de dissolução

da câmara e livre nomeação e demissão de ministros pelo

monarca; seguido do Poder Executivo, compreendido como governo

do gabinete supervisionado pelo Imperador; e por fim o Poder

Legislativo, concebido como uma arena de aprendizado,

coadjuvação e esclarecimento, os autores conservadores

lograram conciliar a teoria do governo parlamentar com a do

governo misto e, deste modo, preservaram as três

representações monarquianas do Estado que, espelhadas no

conceito coimbrão de Poder Moderador, haviam sido enunciadas

por Antônio Carlos, Caravelas e Queluz. O resultado era o

modelo de um governo parlamentar, é certo, mas tutelado pela

Coroa.

A doutrina do modelo saquarema: o Marquês de São Vicente e o

Visconde de Uruguai. Obra exemplar desse modelo é o Direito Público

33

Brasileiro e Análise da Constituição do Império, do senador e conselheiro

de Estado conservador José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878),

futuro Marquês de São Vicente, e publicada em 1858. Pimenta

Bueno sustentava que, na medida em que o chefe do Poder

Executivo reconhecido pela Constituição era o Imperador, o

intérprete constitucional deveria relativizar a importância do

cargo de Presidente do Conselho de Ministros, criado em 1847.

Suas únicas atribuições seriam as de organizar o gabinete,

zelar por sua unidade política, dirigir seus trabalhos e

discussões e, por fim, desempatar suas votações. Seria

prejudicial, entendia São Vicente, que o Presidente do

Conselho assumisse uma posição de chefe. Caso ele pudesse

impor sua opinião aos demais ministros, a Coroa ficaria

privada “de meios de ilustração, e o país, do valor de

diversas inteligências, subordinando os seus interesses

porventura a uma só, e reduzindo os outros ministros a meros

subsecretários de Estado” (SÃO VICENTE, 1958:260). É que,

”superior a todas as paixões, a todos os interesses, a toda

rivalidade”, o Poder Moderador era o fiscal do povo soberano

no controle de seus representantes políticos, motivo pelo qual

ele constituía “a mais elevada força social, o órgão político

mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da

nação” (SÃO VICENTE, 1958:202). Fica claro que, para o

marquês, o governo parlamentar deveria se acomodar com uma

interpretação literal do texto constitucional, segundo a qual

a direção da alta política incumbia ao Imperador, ficando o

Presidente do Conselho em segundo plano.

34

O saquaremismo do Marquês de São Vicente foi corroborado

depois por seu colega e amigo Paulino José Soares de Sousa, já

então Visconde de Uruguai, em sua obra Ensaio sobre o Direito

Administrativo. Embora concedesse às câmaras influência na

formação e duração dos gabinetes, Uruguai sequer menciona, no

livro, a existência do Presidente do Conselho. Para ele, a

demissão do ministério ficava sempre a critério da Coroa,

intérprete última da conformidade ou não da política do

governo com o interesse público. Na qualidade de chefe do

Poder Executivo, “o Imperador acompanha, discutindo, fazendo

observações, cedendo até certo ponto, ao movimento que as

maiorias que dominam nas Câmaras imprimem aos negócios,

movimento que não deve contrariar, principalmente quando é

conveniente e justo, conforme a opinião nacional; e necessário

para que o governo se mantenha, segundo as condições do

sistema representativo. Enquanto tais condições duram,

portanto, o Imperador – sempre como chefe do Executivo -

fiscaliza, observa, dirige o Conselho”. No entanto, “quando vê

que o movimento que os ministros ou a maioria da Câmara dos

Deputados querem imprimir aos negócios vai além da justa meta;

que vai causar sérios males difíceis de remediar depois; que

não é conforme a opinião nacional; que há desacordo entre as

Câmaras e o ministério; que os ministros responsáveis não têm

mais a força necessária para gerir os negócios com vantagem

pública, o Imperador intervém como Poder Moderador, e

restabelece a ordem e a harmonia” (URUGUAI, 1960:268).

35

A apoteose política do saquaremismo: o gabinete conservador de

1848-1851. O ponto alto do saquaremismo como ideologia e como

partidarismo se daria entre 1848-1851, durante o ministério

chefiado pelo Marquês de Monte Alegre, mas cuja orientação era

impressa, na verdade, pelos deputados fluminenses Paulino de

Sousa, Rodrigues Torres e Eusébio de Queirós - a trindade

saquarema, em que o primeiro fazia o papel de intelectual ou

doutrinário; o segundo representava a lavoura, e o terceiro, a

burocracia. O ministério mantinha o controle das eleições

provinciais a fim de, pelo alto, eleger bancadas dóceis e

governistas, objetivo conseguido pela ativa intervenção dos

presidentes de província no pleito. A interferência do governo

era justificada pelo argumento de que a luta entre a ordem e a

liberdade continuava no interior do Estado e que por isso

poderia mobilizar seus recursos contra a oposição. A

manipulação era facilitada pelo sistema eleitoral, que tomava

cada província como distrito único: como a apuração dos votos

se concentrava na respectiva capital, o governador esvaziava a

influência da aristocracia local em proveito dos candidatos da

cúpula do partido (In: NABUCO, 1997: 140). Outra força com que

podia contar o gabinete para garantir a maioria parlamentar

era a Guarda Nacional que, reformada em 1850, passara para o

comando do Ministro da Justiça e servia para recrutar os

adversários do governo. Por fim, também como na França

orleanista, a ausência de uma legislação que

incompatibilizasse o funcionalismo público com o exercício do

mandato parlamentar permitia aos conservadores gozarem, tal

como os coimbrões e realistas, do apoio maciço da burocracia

36

e, em especial, da magistratura, que dependia do governo.

Assim, se por um lado os saquaremas homenageavam as luzes do

século, expressas nos manuais de governo parlamentar; por

outro, curvavam-se à realidade política, forjando bancadas

predispostas à situação e delas afastando os que, de braços

com os potentados rurais, teimavam em ameaçar a ordem com seu

golpismo crônico.

Esse gabinete saquarema de quase quatro anos promulgou o

Código Comercial, resolveu questões platinas que se arrastavam

desde o reinado de Pedro I, promulgou uma reforma fundiária -

a Lei de Terras - e aboliu o tráfico negreiro no ano da morte

de Vasconcelos (1850). Estes dois últimos feitos ilustram como

a linguagem monarquiana permitia aos conservadores, no limite,

superar o discurso de resistência às mudanças para operar

reformas que favorecessem o Estado em detrimento da

aristocracia provincial. Posto que abandonasse a proposta

coimbrã de atrair imigrantes pela oferta de terras, o projeto

da lei agrária determinava o pagamento de impostos

territoriais pelos fazendeiros e lhes impunha o ônus de arcar

com a medição das terras, pressuposto para a regularização de

sua situação fundiária. Essas providências deveriam ser

tomadas no prazo de seis anos sob pena de reversão das terras

ao domínio do Estado, isto é, da Coroa. O projeto indica que

os saquaremas da Corte identificavam civilização com regulação do

econômico pelo político. Não por acaso, os fazendeiros das

outras províncias consideraram o projeto lesivo aos seus

interesses - especialmente aqueles situados em zonas de

37

expansão agrícola, que desejavam reproduzir em seu proveito o

ideal da sociedade excludente e escravocrata (FRAGOSO,

2000:151).

Por seu turno, foi a razão de Estado que justificou a

decisão dos saquaremas de decretar o fim do tráfico negreiro,

contra as medidas protelatórias dos luzias, que propunham

negociar uma cota fixa de importação lícita de africanos com a

Inglaterra alegando que não seria possível viver sem o tráfico

de um dia para o outro (ASI, 1º e 2/07/1850). O pensamento e a

iniciativa da abolição da abolição couberam a Paulino Soares

de Sousa, movido, segundo ele, por razões “de moral, de

civilização, da nossa própria segurança e de nossos filhos”.

Como o Marquês de Caravelas, chefe realista das duas primeiras

décadas da monarquia, o futuro Visconde de Uruguai entendia

que, posto que pudesse “de produzir algum abalo”, a extinção

do tráfico poderia ser minorada pelo trabalho livre e pela

imigração; que a medida constituía uma razão de Estado e, como

tal, estava acima de considerações legais e do discurso de

resistência à inovação (URUGUAI, 1960:72). Foi ainda a razão de

Estado que desencadeou a inconstitucional coação exercida pelo

governo contra o Judiciário para assegurar a condenação dos

traficantes e fazendeiros recalcitrantes, contra o tráfico de

influência e as relações de clientela entre a aristocracia

rural e a magistratura local. Capitaneado por Eusébio de

Queirós, ministro da Justiça, o gabinete conservador

pressionou os desembargadores da Relação de Pernambuco por

meio de aposentadorias, remoções e outras sanções para obrigá-

38

los a pôr de lado o compadrio, dando satisfações à opinião

pública e ao governo britânico (PINHO, 1936:213/214).

Crise e fortuna do saquaremismo imperial. Na forma de um

governo parlamentar e centrípeta tutelado pela Coroa,

portanto, a engenharia institucional proposta pelos

conservadores lograva, assim, a proeza de prevenir no âmbito

parlamentar o risco de desordem decorrente da divergência das

aristocracias provinciais, sem comprometer, pelo facciosismo,

o único projeto nacional em torno do qual era possível

consenso; e que passava pela conciliação do ideal civilizador

coimbrão de um poderoso Império unitário com o incremento do

negócio agroexportador ancorado na grande propriedade rural,

monocultora e escravista. O que comprometeria esse modelo,

depois de 1871, seria justamente a sua capacidade de colocar

os interesses do Estado e da modernização pelo alto acima

daqueles da aristocracia rural e do escravismo – fato evidente

durante o gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, que

arrancou contra os liberais e a própria ala agrária de seu

partido a Lei do Ventre Livre. Foi esse predomínio do lado

monarquiano do saquaremismo, manejado pela ala burocrática ou

cortesã, contra os compromissos escravocratas de sua porção

agrária, que desencadearia a cisão e a crise do partido nos

anos que se seguiram. O modelo saquarema seria finalmente

substituído em 1881, quando a Lei Saraiva tentaria fazer a

passagem do modelo monárquico centralizador para outro,

oligárquico e federalista, ideal frustrado que só se

materializaria com o advento do regime republicano. Como

39

pensamento, porém, o saquaremismo sobreviveria. Ele

reaparecerá na década de 1920, quando, a partir da leitura de

neossaquaremas como Alberto Torres e Oliveira Viana, outra

formação burocrática – os tenentes – fará dele, no contexto de

luta antioligárquica, uma bandeira de reforma política e

social pelo alto.

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