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O sítio da Vala Real (Salvaterra de Magos, Santarém): contributo para o conhecimento do Neolítico antigo no Baixo Tejo Vera Aldeias * Rita Gaspar ** * [email protected] ** [email protected] RESUMO A realização de sondagens arqueológicas levadas a cabo pela Crivarque, Lda no permitiu a identificação de espólio de interesse arqueológico, tendo sido exumado um conjunto artefactual correlacionável com uma ocupação do Neolítico antigo. Salienta-se a componente lítica, predominando o talhe de seixos de quartzito locais. Os depósitos arqueológicos identificados não se encontram in situ, resultando estes depósitos de remobilizações pós-deposicionais correlacionadas com o desenvolvimento de processos de vertente de cariz coluvionar. PALAVRAS CHAVE:???? ABSTRACT In the aim of contract archaeology, a small intervention was undertaken by Crivarque Lda in the site of Vala Real (Salvaterra de Magos, Santarém), situated in the area of the highway A13 - Lote C do sublanço Salvaterra de Magos/A10/Santo Estevão, da A13 – Auto estrada Almeirim/Marateca. The intervention had, as main objectives, the chronological characterization of the artefacts found on the surface, as well as the comprehension of the stratigraphic sequence. The area excavated was very small. Nevertheless, it was possible to get some data with archaeological significance. The artefacts consist of lithic industry mainly in quatzite, whit a quartz and flint component. The few ceramic fragments registed consist of simple forms. The presence of a large amount of heat fractures and structural clay points to the existence of habitational structures on the original site position. In all, the archaeological layout of this assemblage is correlated with an ancient Neolithic chronology. Nonetheless, the stratigraphic sequence demonstrates that these materials are not in situ. In fact, the deposition of the archaeological layers is affected by post depositional features and probably by colluvial movements. KEYWORDS:????? 1. CONTEXTUALIZAÇÃO E INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA Os dados arqueológicos aqui apresentados surgem como um contributo para a construção da malha de povoamento registada durante o Neolítico antigo na margem esquerda do Tejo, resultando de uma análise preliminar do conjunto recolhido. A pequena intervenção arqueológica realizada, em Janeiro de 2004, foi levada a cabo no âmbito da concretização de medidas de minimização de impactes da construção do Lote C do sublanço Salvaterra de Magos/A10/Santo Estevão, da A13 – Auto estrada Almeirim/Marateca. A realização de sondagens arqueológicas de avaliação no local, mais precisamente junto ao Arranque Norte do Viaduto sobre a Vala Real, permitiu a caracterização sumária dos vestígios da ocupação humana detectados à superfície durante o acompanhamento arqueológico da obra em questão. A intervenção passou pela realização de três sondagens arqueológicas de avaliação do local, num total de oito metros quadrados, distribuídas por um eixo de sentido transversal ao eixo da via, ou seja, paralelo ao curso da ribeira de Magos. A dimensão das sondagens 1 e 3 foi de 2 metros quadrados, sendo que a sondagem 2 perfaz um total de 4 metros quadrados. Administrativamente, a jazida arqueológica situa- se na Freguesia de Marinhais, Concelho de Salvaterra de Magos, estando integrada na Folha 391 - Benavente da Carta Militar de Portugal (escala 1:25 000) e na folha 31-C de Coruche da Carta Geológica de Portugal (escala 1:50 000). As coordenadas Gauss correspondem a M 49396.846, P 73016.359. Visto que os trabalhos para construção da Auto- estrada, neste local, eram de alteamento de cota e não de remoção dos sedimentos, à data da realização das sondagens o aterro da área já se

O sítio da Vala Real (Salvaterra de Magos, Santarém): contributo para o conhecimento do Neolítico antigo no Baixo Tejo

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O sítio da Vala Real (Salvaterra de Magos, Santarém): contributo para o conhecimento do Neolítico antigo no Baixo Tejo

Vera Aldeias * Rita Gaspar **

* [email protected]

** [email protected]

RESUMO A realização de sondagens arqueológicas levadas a cabo pela Crivarque, Lda no permitiu a identificação de espólio de interesse arqueológico, tendo sido exumado um conjunto artefactual correlacionável com uma ocupação do Neolítico antigo. Salienta-se a componente lítica, predominando o talhe de seixos de quartzito locais. Os depósitos arqueológicos identificados não se encontram in situ, resultando estes depósitos de remobilizações pós-deposicionais correlacionadas com o desenvolvimento de processos de vertente de cariz coluvionar.

PALAVRAS CHAVE:????

ABSTRACT

In the aim of contract archaeology, a small intervention was undertaken by Crivarque Lda in the site of Vala Real (Salvaterra de Magos, Santarém), situated in the area of the highway A13 - Lote C do sublanço Salvaterra de Magos/A10/Santo Estevão, da A13 – Auto estrada Almeirim/Marateca. The intervention had, as main objectives, the chronological characterization of the artefacts found on the surface, as well as the comprehension of the stratigraphic sequence. The area excavated was very small. Nevertheless, it was possible to get some data with archaeological significance. The artefacts consist of lithic industry mainly in quatzite, whit a quartz and flint component. The few ceramic fragments registed consist of simple forms. The presence of a large amount of heat fractures and structural clay points to the existence of habitational structures on the original site position. In all, the archaeological layout of this assemblage is correlated with an ancient Neolithic chronology. Nonetheless, the stratigraphic sequence demonstrates that these materials are not in situ. In fact, the deposition of the archaeological layers is affected by post depositional features and probably by colluvial movements.

KEYWORDS:?????

1. CONTEXTUALIZAÇÃO E INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA

Os dados arqueológicos aqui apresentados

surgem como um contributo para a construção da malha de povoamento registada durante o Neolítico antigo na margem esquerda do Tejo, resultando de uma análise preliminar do conjunto recolhido. A pequena intervenção arqueológica realizada, em Janeiro de 2004, foi levada a cabo no âmbito da concretização de medidas de minimização de impactes da construção do Lote C do sublanço Salvaterra de Magos/A10/Santo Estevão, da A13 – Auto estrada Almeirim/Marateca. A realização de sondagens arqueológicas de avaliação no local, mais precisamente junto ao Arranque Norte do Viaduto sobre a Vala Real, permitiu a caracterização sumária dos vestígios da ocupação humana detectados à superfície durante o acompanhamento arqueológico da obra em questão.

A intervenção passou pela realização de três sondagens arqueológicas de avaliação do local, num total de oito metros quadrados, distribuídas por um eixo de sentido transversal ao eixo da via, ou seja, paralelo ao curso da ribeira de Magos. A dimensão das sondagens 1 e 3 foi de 2 metros quadrados, sendo que a sondagem 2 perfaz um total de 4 metros quadrados.

Administrativamente, a jazida arqueológica situa-se na Freguesia de Marinhais, Concelho de Salvaterra de Magos, estando integrada na Folha 391 - Benavente da Carta Militar de Portugal (escala 1:25 000) e na folha 31-C de Coruche da Carta Geológica de Portugal (escala 1:50 000). As coordenadas Gauss correspondem a M 49396.846, P 73016.359.

Visto que os trabalhos para construção da Auto-estrada, neste local, eram de alteamento de cota e não de remoção dos sedimentos, à data da realização das sondagens o aterro da área já se

encontrava em parte realizado não permitindo a continuidade da intervenções intrusivas, encontrando-se, actualmente, a jazida sob a referida via rodoviária.

1.1 Contextualização e Integração Geográfica

A região onde se insere o sítio da Vala Real

integra-se, morfo-estruturalmente, na Orla Meso-Cenozóica Ocidental. Em termos de meso-escala, a região enquadra-se no âmbito da bacia sedimentar do Tejo-Sado, designadamente na região de vastas planícies aluvionares que caracterizam a margem esquerda do Baixo Tejo. A evolução Plistocénica é marcada pelo desenvolvimento de Terraços, sendo que a localização do sítio da Vala Real se encontra cartografada na área de desenvolvimento do nível de Q4, cujas altimetrias variam entre os 8-15m (ZBYSZEWSKI, VEIGA FERREIRA, 1968). A sedimentação que caracteriza os depósitos arqueológicos correlaciona-se com a formação das denominadas “Areias superficiais” (As) associadas a cronologias pós-Plistocénicas (ZBYSZEWSKI, VEIGA FERREIRA, 1968) e que estratigraficamente cobrem os níveis de terraço.

A jazida localiza-se numa zona plana sobranceira à Ribeira de Magos, mais concretamente na sua margem direita, a montante da desembocadura da Ribeira do Vale do Zebro numa cota altimétrica absoluta na ordem dos 13,70 metros. Detém uma excelente visibilidade para o vale, actualmente bastante antropizado através de um sistema de canais de irrigação. Efectivamente, o curso da ribeira encontra-se aqui localmente encanado.

2. ESTRATIGRAFIA

A plataforma demonstra uma sequência

estratigráfica uniforme, ainda que se encontrem patentes algumas diferenciações no que respeita à sondagem 2. Assim sendo, será efectuada uma descrição conjunta das sondagens 1 e 3 e, posteriormente, da sondagem 2 – tendo sido utilizada uma sequência numérica distinta para esta última sondagem, a saber, a partir da numeração 100.

2.1 Descrição Estratigráfica

No que respeita às sondagens 1 e 3, a arquitectura estratigráfica presente é a seguinte:

Camada 1: de matriz areno-siltosa, solta, de coloração muito heterogénea apresentando manchas que variam do castanho escuro ao castanho amarelado, com ocasionais contribuições

de matéria orgânica. Surgem pequenos fragmentos de raízes ou caules partidos. Apresenta frequentes seixos rolados de quartzo e quartzito de pequena dimensão (até 5cm), registando-se a presença de alguma pedra lascada e termoclastos. Limite inferior difuso, irregular.

Tratar-se-á da camada de protecção do local depositada aquando da identificação do sítio, por ordem da arqueóloga responsável pelo acompanhamento arqueológico dos trabalhos.

Camada 2: esta camada constituiria a superfície topográfica original da plataforma. Encontrava-se parcialmente decapada pelos trabalhos de obra efectuados previamente à presente intervenção arqueológica. Apresenta um desenvolvimento pedológico, constituindo um Horizonte A. Tabular, matriz areno-siltosa, cor creme alaranjada, com incorporações de alguma matéria orgânica, presença de elementos pétreos de quartzo e quartzito rolados e sub-rolados de dimensões mais frequentes próximas dos 2 cm, estando também presentes seixos rolados de dimensões na ordem dos 5 cm. Os elementos pétreos não apresentam qualquer estruturação. Quanto à resistência trata-se de uma camada solta, com alguma matéria orgânica e raízes de pequenas dimensões. Apresenta, a nível arqueológico, alguns termoclastos, pedra lascada e cerâmica manual. Limite inferior nítido linear.

Camada 3: nível caracterizado pela presença de seixos de média e grande dimensão, em geral rubefactados, bem como por uma concentração mais elevada de material arqueológico (termoclastos, indústria lítica, cerâmica manual e fauna mamalógica- ainda que esta última seja meramente ocasional e apenas presente na sondagem 1). Surgem alguns carvões, ainda que sejam em geral raros e bastante fragmentados. A matriz sedimentar é similar à da camada 2, não apresentando e, ao contrário da maioria dos elementos pétreos que a constituem, qualquer indício de rubefacção.

Integrando-se no perfil de solo presente, a sua caracterização passou pela delimitação deste plano de concentração de material arqueológico, nível facilmente distinguível da realidade até então detectada, onde o material arqueológico exumado surgia disperso aleatoriamente pela camada 2. De facto, somente a presença deste plano permite antever um momento sedimentar distinto, já que as restantes características deposicionais foram dissimuladas pelo desenvolvimento do perfil pedológico. A concentração detectada não apresenta qualquer estruturação, nem por parte dos elementos pétreos, incluindo os termoclastos, nem

da indústria exumada. A espessura desta camada pode atingir os 10 cm, ainda que os 5 cm de espessura seja a situação mais usual.

Camada 4: tabular, solta, de matriz sedimentar idêntica às camadas sobrejacentes, apresenta apenas uma coloração mais clara creme alaranjada. Insere-se ainda no horizonte de solo identificado, sendo a sua distinção efectuada a partir da ausência de material arqueológico e dos seixos rolados que caracterizam a camada 3. Esta camada 4 detém somente seixos rolados e sub-rolados de pequena dimensão (até aos 3 cm). A presença de material arqueológico reduz bastante, surgindo apenas de forma residual. Nota-se a total ausência de raízes, limite inferior gradual.

Camada 5: apresenta uma matriz silto-arenosa, solta de cor branca amarelada, a camada é delimitada, no seu topo, pela presença de seixos rolados de maiores dimensões (até 10 cm) de quartzito que se encontram mais concentrados no centro da sondagem junto ao corte Norte. Na restante potência sedimentar, surgem apenas ocasionais seixos com estas dimensões, situando-se a maioria dos elementos pétreos entre os 2-6 cm. Esta camada não apresenta qualquer indústria lítica, nem fragmentos cerâmicos, registando-se apenas raros termoclastos concentrados no topo da camada, junto à concentração pétrea já descrita.

Camada 6: de matriz silto-arenosa, solta e cor branca amarelada, embala uma cascalheira heterogénea na sua dispersão composta por seixos rolados e sub-rolados de quartzo e quartzito de dimensões que variam dos 2 aos 12 cm. Esta camada não foi alvo de escavação. Limite inferior não observado.

Ainda que apresentando características genericamente similares, a estratigrafia presente na sondagem 2 detém algumas variantes estratigráficas que serão relevantes assinalar:

Camada 101: de matriz arenosa, solta e coloração castanha acinzentada, com ocasionais manchas de cor creme provenientes da camada 102, algum contributo de matéria orgânica, nomeadamente pequenos fragmentos de raízes e caules que não se encontram in situ. Presença de material arqueológico e de esporádicos seixos rolados de quartzito de dimensões que não ultrapassam os 2 cm.

A sua interpretação é a mesma que a já avançada para a camada 1: tratar-se-á da terra colocada recentemente de modo a proteger as camadas preservadas.

Camada 102: não se encontra presente em toda a área da sondagem, encontrando-se confinada ao preenchimento de um pequeno canal que corta a

sondagem com uma direcção aproximadamente Norte-Sul. Apresenta uma matriz arenosa, solta e de cor creme, embala abundantes seixos de quartzo e quartzito de pequena dimensão e algum areão, bem como alguns elementos de pedra lascada e termoclastos.

Camada 103: de matriz areno-siltosa solta e de cor creme alaranjada. No que respeita à presença de elementos pétreos, denota-se a ocorrência reduzida de seixos de dimensões próximas dos 4 cm - sobretudo junto à base da camada. Presença também de pequenas raízes. Embala grande densidade de termoclastos, bem como de indústria lítica e cerâmica manual (nomeadamente dois fragmentos decorados). De forma tabular, esta camada é menos espessa para Sul, atingindo uma maior potência para Nordeste – é esta espessura maior que se evidenciava no corte de uma vala resultante da escorrência de águas pluviais, tendo sido este elemento o principal motivo que condicionou a implantação desta sondagem no local. Os materiais arqueológicos detectados surgem em toda a espessura da camada, ainda que se denote uma maior concentração em cotas mais próximas da base. No entanto, não se detecta nenhum tipo de estruturação dos materiais, nomeadamente, não se verifica uma situação similar à da camada 3.

Camada 104: embala uma concentração de seixos rolados e termoclastos, sendo a indústria lítica residual. A camada apresenta uma matriz semelhante à camada 103, não se encontrando presente na totalidade da sondagem - é menos consistente na zona Norte-Nordeste. Surge uma maior densidade de seixos de quartzo e quartzito de maiores dimensões, variando entre os 2 e os 10 cm, alguns deste seixos apresentam indícios de rubefacção. Os termoclastos presentes são sobretudo de dimensão média (entre os 5 e os 10 cm). Em termos de perturbações pós deposicionais, encontra-se alguma evidência de bioturbação vegetal. Não se encontra presente nenhuma estruturação por parte do material exumado.

A distinção desta camada relativamente à camada subjacente é bastante visível já que existe, na base da camada 104, uma pequena lentícula de sedimento arenoso, solto de coloração creme alaranjada que limita claramente as duas realidades sedimentares. Esta lentícula foi integrada na camada 104, não apresentando, em termos de potência estratigráfica, uma espessura superior a 2-3 cm.

Camada 105: de matriz semelhante às camadas 103 e 104, embala um nível de cascalheira de seixos rolados de quartzo e quartzito. Este nível de

cascalheira é muito heterogéneo granulometricamente (variando entre os 2 e os 15-20 cm), sem nenhum padrão de orientação ou de distribuição delimitável. Surgem sobretudo seixos de quartzito, ainda que o quartzo não seja raro. Distingue-se claramente da camada 104 pela total ausência de termoclastos, bem como de seixos queimados – esta distinção é bastante visível na escavação, sendo, no entanto, mais problemática a sua delimitação nos cortes.

Camada 106: de matriz arenosa, de grão mais grosseiro, solta e de cor creme amarelada, embala um nível de cascalheira de seixos rolados e sub-rolados de quartzo e quartzito de dimensões entre os 2 e os 15 cm. Esta camada, intervencionada somente no quadrado Noroeste, também se revelou arqueologicamente estéril, pelo que foram somente removidos cerca de 10 cm. O plano final da escavação não atingiu o limite desta camada.

2.2 Interpretação Estratigráfica

No que respeita às sondagens 1 e 3, a camada 2

consubstancia o início da estratigrafia original da plataforma, tendo sido, como já foi referida, parcialmente decapada pela realização dos trabalhos de construção da via efectuados previamente à presente intervenção arqueológica. Esta camada apresenta ainda indícios do desenvolvimento de um perfil pedológico (Horizonte A).

A maioria do material arqueológico exumado provem da camada 3. Esta unidade relaciona-se com uma deposição secundária do material arqueológico, num contexto de uma remobilização antiga (não relacionada com os presentes trabalhos de revolvimentos do terreno), estando a superfície topográfica estável a algum tempo, como se atesta pela presença do perfil de solo. A sedimentação da camada 3 resultará provavelmente de uma situação de movimentação de vertente, que terá desestruturado a ocupação humana que, presumivelmente, se localizaria a cotas mais elevadas. O rolamento parcial de algumas das cerâmicas detectadas poderá indicar que a água, designadamente escorrências de tipo torrencial, poderá ter sido o agente de transporte destes materiais até à situação detectada presentemente. Os materiais arqueológicos, sobretudo a elevada presença de termoclastos, poderá apontar para a utilização de estruturas de combustão no que seria o local ocupado.

A sequência estratigráfica parece consubstanciar uma deposição de cariz aluvial para a restante potência sedimentar, como os elevados níveis de

triagem granulométrica indiciam. Não obstante, não será de afastar a possibilidade de realidades como a camada 4 corresponderem ainda a coluviões que remobilizariam material de origem aluvial. A restante arquitectura estratigráfica patenteia uma deposição que apresenta uma gradação positiva, já que aos níveis de deposição clástica que correspondem ao terraço Q4 (camada 6) se sobrepõe uma deposição granulométrica fina (camada 5). A presença de seixos rolados no topo desta última unidade poderá antever situações de deslocação coluvionar ou de pequenas zonas de escorrência e deposição clástica correlacionáveis com a presença de fluxos aquosos de regime não hierarquizado – a efectiva compreensão destas realidades só seria possível com uma maior abrangência da área intervencionada.

No que respeita ao desenvolvimento estratigráfico presente na sondagem 2, será de salientar a presença de um canal de escorrência de águas que atingia uma profundidade até cerca de 1m nesta zona. O desenvolvimento deste canal é bastante recente, encontrando-se relacionado já com a desflorestação da área aquando da desmatação efectuada no contexto dos actuais trabalhos de construção da via. Efectivamente, toda a sequência estratigráfica correlacionável com as camadas 101 e 102 deriva de formações bastante recentes, constituindo a camada 101 a camada de protecção da área e a camada 102 consubstanciando o preenchimento de um canal mais pequeno também resultante do escoamento de águas pluviais após a desmatação da zona. A exumação de materiais arqueológicos, neste canal, poderá demonstrar a presença de espólio arqueológico em posições muito próximas da superfície numa área altimetricamente superior - possivelmente no topo da presente plataforma, numa área que, à época dos trabalhos arqueológicos por nós efectuados, já se encontrava colmatada à cota da obra. Será de salientar a grande semelhança na direcção deste pequeno canal temporário relativamente àquele de maiores dimensões presente junto ao corte Este desta sondagem.

Ao contrário da realidade detectada na camada 3, os materiais arqueológicos não surgem, nesta sondagem, num plano delimitável. A sua presença na camada 103 advém também de remobilizações, cujo processo de deposição poderá resultar igualmente de um transporte relacionado com o escoamento de águas, uma vez que os artefactos apresentam algum rolamento, ainda que de forma alguma se trate de um rolamento intenso. Os materiais exumados na camada 104 inserem-se já

numa realidade de remobilização de elementos de maior dimensão, que, pela presença de aclives, ou por uma eventual diminuição da capacidade do agente de transporte, ficam retidos no topo da camada subjacente. Efectivamente a restante estratigrafia relaciona-se com o desenvolvimento de deposições de cariz clástico, correlacionáveis com a formação do nível de terraço Q4.

Ainda que integrada, obviamente, no mesmo ambiente sedimentar de cariz arenoso correspondente à formação As, a arquitectura estratigráfica presente na sondagem 2 apresenta ligeiras divergências sedimentares cuja explicação poderá estar de facto envolvida com o dado da superfície topográfica desta área apresentar cotas mais baixas1, constituindo-se assim como uma primordial zona de escoamento não hierarquizado e de cariz iminentemente torrencial de águas pluviais.

2. AMOSTRA ARTEFACTUAL

Não obstante a diminuta intervenção realizada foi

recolhida uma elevada densidade de materiais arqueológicos, sobretudo espólio lítico (indústria e termoclastos). Os resultados aqui apresentados são fruto de uma análise preliminar e, consequentemente, superficial da amostra. Deve-se ainda ter em conta o carácter truncado da colecção, não só pela reduzida área intervencionada, como também pela sua posição periférica face ao que seria a localização primária da jazida.

São excluídos desta observação os artefactos provenientes das camadas superficiais 1, 101 e 201 (depósito de protecção da área colocado após identificação da jazida - vide supra). Estes depósitos recentes de origem antrópica embalam, de facto, também alguns materiais arqueológicos, porém, descontextualizados. Excluem-se ainda os materiais provenientes das camadas 104 e 105.

3.1. Indústria lítica

Foram recolhidos, no total, 867 elementos líticos

de pedra talhada, dos quais apenas 716 serão aqui analisados (excluem-se os provenientes das camadas acima mencionadas). Destaca-se, neste

1 As cotas correlacionáveis com a superfície são deduzidas a partir do topo das camadas originais da plataforma (isto é, camada 2 e 103). Será no entanto de ressalvar novamente que esta se tratava de uma área já decapada pelos trabalhos de obra, pelo que as efectivas cotas superficiais não são por nós conhecidas. Não obstante, a realidade estratigráfica detectada parece correlacionar-se com o facto desta zona ser um pouco mais deprimida.

conjunto, a ausência de elementos de pedra afeiçoada ou polida.

Na amostra observada, verifica-se um claro predomínio do quartzito (Quadro 1) enquanto suporte para o talhe, estratégia que se articula em pleno com o tipo de implantação da jazida, sobre um terraço quaternário, junto da fonte de matéria prima. A presença do quartzo e do sílex, ainda que menos representativa, é também significativa apresentando ambos quantitativos idênticos (78 peças). A exploração das matérias primas locais é claramente uma escolha desta população. No entanto, e novamente reiterando a reduzida amostra, parece visível uma exploração diferenciada das distintas matérias primas. Enquanto que o quartzito e o quartzo se encontram associados à produção de lascas, os produtos alongados existentes são exclusivamente sobre sílex (excepção para uma lamela em suporte a identificar).

O quartzo hialino está representado somente através de algumas esquírolas, o que apenas atesta o talhe desta matéria prima no local. Outras rochas surgem de modo meramente residual (2 peças).

Os produtos de debitagem constituem 21,3% (157 peças) da totalidade da colecção. Nestes, as lascas (142) surgem como claramente dominantes em relação aos produtos alongados (15 lamelas).

Embora se registem lascas provenientes de distintos momentos da redução dos volumes encontram-se melhor representadas as lascas não corticais (ou apenas com o talão cortical) seguidas de perto pelas lascas que apresentam menos de 50% de córtex na face dorsal (Quadro 2). As lascas corticais, em número reduzido (apenas 6 lascas), surgem exclusivamente em quartzito. A frequência baixa de lascas de descorticagem bem como provenientes dos momentos iniciais de redução dos volumes pode indicar que os suportes chegariam já ao local testados, porém as condicionantes da amostra não permitem a confirmação desta hipótese.

A frequência de núcleos, na colecção recolhida, é, de facto, diminuta e pouco expressiva. Dos cinco exemplares apenas um apresenta como suporte um seixo rolado de quartzito. Trata-se de um esboço de núcleo. Os dois volumes debitados sobre sílex, de origem aluvionar, correspondem a um núcleo prismático e a um seixo talhado unifacialmente. As diminutas dimensões dos seixos rolados de sílex condicionam a estratégia de talhe utilizada, bem como as dimensões dos produtos obtidos. Os volumes não apresentam preparação das plataformas. Recolheram-se, ainda, três fragmentos de núcleos (dois sobre quartzito e um sobre sílex)

que não permitem a sua integração em qualquer tipo de núcleo pré-estabelecido.

Não se registou a presença de seixos talhados, percutores ou outros macro elementos.

Atestando claramente o talhe na jazida surgem os quantitativos referentes aos sub-produtos de debitagem (fragmentos de núcleos e lascas, esquírolas e resíduos de talhe) (Quadro 1). A sua elevada presença (554 peças, 78%) indica a transformação das três matérias primas principais na jazida. Os quantitativos referentes às esquírolas em sílex (cerca de metade dos subprodutos de talhe desta matéria prima) parecem indiciar uma configuração dos utensílios no local, utensílios estes que são exclusivamente sobre sílex. Dos utensílios formais recolhidos apenas constam duas lascas retocadas (uma fracturada), uma lamela com entalhe (Fig. 5), um pequeno crescente (Fig. 7) e uma ponta de flecha transversal (Fig. 6), idêntica às registadas nos contextos do Sudoeste português (Silva, Soares, 1981). Este tipo de armaduras não parece ter paralelo nos contextos do Neolítico antigo do Maciço Calcário Estremenho, à excepção de um exemplar registado no Abrigo da Pena Apesar de não se terem registado utensílios configurados em quartzito e quartzo, deve-se equacionar a hipótese, já confirmada noutros contextos arqueológicos, de as lascas terem sido utilizadas com os gumes em bruto.

3.2. Cerâmica

A representatividade dos materiais cerâmicos é

baixa, quando integrada na totalidade do conjunto. A cerâmica encontra-se bastante fragmentada, apresentando-se a fractura geralmente sub-rolada. Recolheu-se um total de 42 fragmentos de cerâmica de fabrico manual, donde se salientam 6 fragmentos de bordo (Fig. 2). O elevado grau de fragmentação destes elementos não permite a obtenção de diâmetros nem a sua integração plena em tipologias, porém parecem tratar-se de formas simples, talvez taças em calote ou esféricos. Dos bordos recolhidos apenas um exemplar apresenta decoração (Fig.3), tratando-se de um mamilo sobre o bordo.

Surgem ainda dois fragmentos de bojo decorados, um com aplicação de cordão plástico com incisões (Fig. 4), outro decorado com incisões horizontais (Fig. 2). O escasso espólio cerâmico enquadra-se no conjunto atribuível a uma cronologia do Neolítico antigo.

3.3. Termoclastos

A presença de elementos pétreos com vestígios

de sujeição ao fogo ou mesmo fragmentada pela

acção do calor é bastante significativa, tendo sido recolhidos cerca de 62,500 Kg de termoclastos (correspondentes a 1822 elementos). Salienta-se, claramente, a presença do quartzito (91%), matéria prima abundante localmente. O quartzo, também de origem aluvionar, representa uma pequena fracção da totalidade (9,1%) e outras matérias primas surgem de modo meramente residual (0,1%).

Apesar da elevada concentração não foram registadas quaisquer estruturas de combustão preservadas, resultando a acumulação de termoclastos de movimentações de vertente, que remobilisaram os materiais do seu posicionamento original. A densidade deste tipo de artefacto, associada à presença de fragmentos de barro de revestimento (oriundos na sua totalidade da sondagem 1), parece indiciar a presença de estruturas antrópicas de cronologia neolítica a montante da intervenção realizada. Esta possibilidade não pôde ser confirmada pelo caracter dos trabalhos realizados pela Brisa no local (de aterro e não de remoção de sedimentos, e como tal a tutela entendeu não continuar os trabalhos arqueológicos).

3.4 Fauna

A presença de fauna mamalógica surge como

meramente residual através de alguns pequenos fragmentos. Devido ao seu elevado grau de fragmentação torna-se impossível qualquer identificação taxonómica ou estudo relativo às opções desta comunidade pré-histórica. Os fragmentos surgem calcinados. De salientar que os sete fragmentos recolhidos provêm todos da sondagem 1 (a NO).

Salienta-se a ausência de elementos de fauna malacológica.

4. RESULTADOS

Apresentando um cariz bastante arenoso e solto,

a estratigrafia que embala os materiais arqueológicos caracteriza-se por deter um desenvolvimento pedológico que atesta a estabilidade sedimentar Holocénica desta plataforma. O conjunto artefactual posiciona-se num plano de fraca espessura cuja deposição resulta de movimentos pós-deposicionais. Assim sendo, e ainda que consubstanciando um nível de concentração, a zona sondada não constitui o sítio de povoamento Neolítico original.

Esta sedimentação detectada no sítio da Vala Real deverá corresponder, pelas suas características sedimentares e deposicionais, aos

níveis de Areias superficiais (As) cartografadas nas imediações do sítio arqueológico (CGP, folha 31C). Esta formação é genericamente descrita como areias acumuladas “ a partir do Plistocénico, por transporte fluvial ou torrencial e, em parte, acumuladas pela acção eólica” (Zbyszeswki e Veiga Ferreira, 1968: 9). Em conformidade com esta afirmação, a realidade artefactual detectada permite validar uma cronologia deposicional correlacionável genericamente com o Holocénico, encontrando-se esta formação sedimentar estratigraficamente acima dos níveis de terraço Q4.

A ocupação detectada mostra, aliás, a estreita relação entre as escolhas deste grupo neolítico e o tipo de implantação geográfica. O talhe utiliza quase exclusivamente matérias primas locais (seixos rolados de quartzito, e em menor percentagem de quartzo e sílex) em oposição às rochas exógenas, à semelhança do sucedido em outras jazidas de cronologia idêntica (Carvalho, 1998). Denota-se um claro predomínio do quartzito, em detrimento das outras matérias primas (de presença residual em contexto de cascalheira nos terraços quaternários do Baixo Tejo). A indústria lítica é constituída sobretudo por uma componente de lascas (142 lascas, 90,5%), em detrimento da lamelar e laminar (15 elementos, 9,5%). Esta situação verifica-se também nos contextos do Neolítico antigo evoluído tanto do Sudoeste português como do Maciço calcário Estremenho.

Considerando, ainda, as condicionantes de dimensão dos volumes de sílex explorados na Vala Real (relacionadas com o afastamento geográfico deste local em relação às fontes de sílex conhecidas na Estremadura) as dimensões dos produtos de talhe alongados são reduzidas, quando comparadas com os sítios da área do Maciço Calcário. Esta situação encontra paralelo nas dimensões dos produtos alongados registadas nas jazidas do Neolítico antigo evoluído do litoral alentejano.

A utensilagem é escassa e pouco expressiva. A percentagem de geométricos é reduzida, existindo apenas um crescente sobre sílex de pequenas dimensões. A outra armadura registada, uma ponta de flecha transversal, parece aproximar esta jazida dos tecno-complexos do Sudoeste português. De qualquer modo, uma vez mais se salienta que a intervenção efectuada foi extremamente restrita em termos de área sondada.

Também o tipo de implantação encontra paralelos na realidade do Sudoeste (Silva e Soares, 1981). A implantação numa zona relativamente aplanada e sem condições naturais de defesa surge como distinta das situações verificadas na margem

direita do Tejo, no Maciço Calcário Estremenho (situações que privilegiam o arrife) (Carvalho, 1998).

Ainda que não tenha sido registada a presença de estruturas antrópicas durante a intervenção, a densidade de elementos recolhidos (termoclastos e barro cozido de revestimento) indiciam a sua presença a montante das sondagens, onde seria o local original da ocupação paleo-humana.

BIBLIOGRAFIA CARVALHO, A. F. (1998)- Talhe da pedra no Neolítico antigo do maciço calcário estremenho das serras D´Aire e Candeeiros (Estremadura portuguesa). Um primeiro modelo tecnológico e tipológico, Lisboa, Edições Colibri. DINIZ, M. (2000)- As comunidades neolíticas no interior alentejano: uma leitura cultural e cronológica, Actas do 3º Congresso de Arqueologia Peninsular, Setembro de 1999, Porto, ADECAP. SILVA, C.T.; SOARES, J. (1981)- Pré-História da área de Sines. Trabalhos arqueológicos de 1972 – 77, Lisboa, Gabinete da área de Sines. ZBYSZEWSKI, G.; VEIGA FERREIRA, O. (1968)- Carta Geológica de Portugal. Notícia Explicativa da Folha 31 – C, escala 1/50 000, Serviços Geológicos de Portugal, Lisboa. ZILHÃO, J., CARVALHO, A. F. (1995) O Neolítico do Maciço Calcário Estremenho. Crono-estratigrafia e povoamento. Rubricatum. 1. Actas do I Congrés del Neolític a la Península Ibérica, Gavá-Bellaterra.

Quadro 1: Relação tipo de matérias primas – grupo tecno-tipológico representado

Debitagem Núcleos Residuos Total n % n % n % n %

Quartzito 101 14 3 0,4 441 62 553 76,4 Quartzo 14 2 0 0 64 9 78 11

Quartzo hialino 0 0 0 0 5 1 5 1 Sílex 32 5 2 0,3 44 6 78 11,3

Outras 2 0,3 0 0 0 0 2 0,3 Total 157 21,3 5 0,7 554 78 716 100

Quadro 2: Relação debitagem – tipo de matéria prima

Quartzito Quartzo Sílex Outras Total Debitagem n % n % n % n % n %

Lasca cortical 6 3,8 0 0 0 0 0 0 6 3,8 Lasca > 50% córtex 9 5,7 0 0 5 3,1 0 0 14 8,8 Lasca < 50% córtex 45 29 7 4,4 4 2,5 1 0,6 57 36,5 Lasca não cortical 49 31,2 7 4,4 9 5,7 0 0 65 41,3

Lamelas 0 0 0 0 14 9 1 0,6 15 9,6 Total 109 69,7 14 8,8 32 20,3 2 1,2 157 100

Figura 1: Sequência estratigráfica da Sondagem 1.

Figura 2. Cerâmica com decoração incisa e bordos lisos.

Figura 3. Recipiente cerâmico com mamilo sobre o bordo.

Figura 4. Fragmento cerâmico com cordão plástico.

Figura 5. Lamela sobre sílex com entalhe.

Figura 6. Ponta transversal, em sílex.

Figura 7. Crescente sobre sílex.