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O Lenhador Malvado e a Selva Amazônica:
O que os quadrinhos me ensinaram sobre o meio ambiente* Moana Luri de Almeida
Os conceitos e as ideias expressas neste artigo pertencem à autora e não necessariamente refletem a opinião ou posição oficial de MAURICIO ARAÚJO DE SOUSA e/ou da MAURICIO DE SOUSA PRODUÇÕES.
Auto-etnografia é um método qualitativo que combina autobiografia e etnografia para
investigar como certas experiências pessoais estão relacionadas com específicos contextos
sociais e culturais em um determinado momento (Ellis, Adams & Bochner, parágrafo 1).
O(A) auto-etnógraf@1 geralmente apresenta essas experiências através de escrita
performática, teatro2, ou uma combinação dos dois métodos (Spry). A diferença entre
autobiografia e auto-etnografia é que, além de apresentar validade estética, a auto-etnografia
deve usar ferramentas teóricas e metodológicas extraídas de pesquisa acadêmica (Ellis et al.
parágrafo 8; Madison 109) e ilustrar o uso e entendimento do pesquisador a respeito de
criticalidade, interseccionalidade, contexto e justiça social (Willink, Gutierrez-Perez, Shukri
& Stein 4-5).
Criticalidade significa explorar a história, a ideologia, a política identitária, os
interesses, os propósitos e outros fatores ligados a relações de poder3, para interpretar o
mundo. Interseccionalidade (Crenshaw) procura evidenciar as conexões entre posições
marginalizadas e privilegiadas, como classe, raça, gênero, sexualidade, religião,
nacionalidade e (d)eficiência física ou mental. Contexto liga origens pessoais a
___________________________________________________________________________
* A publicação original em inglês foi traduzida pela própria autora. Leia as notas da tradutora e a maneira de citar este artigo no final do texto. Sobre a autora: Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Pará. Atuação em Publicidade e Propaganda, na área de Criação, por cinco anos. Mestra em Estudos Sociais e Culturais na Universidade de Kyushu como bolsista do Ministério da Educação do Japão (Monbukagakusho). Doutoranda em Comunicação com habilitação em Cultura e Comunicação na Universidade de Denver, Estados Unidos, com bolsa oferecida pela universidade, de setembro de 2014 a agosto de 2015. Professora temporária (Graduate Teaching Instructor) com bolsa, desde setembro de 2015.
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origens culturais e sociais, para descrever imperfeições complexas e possibilidades de
mudança. Justiça social significa dar voz a pessoas em posições marginalizadas, e ao mesmo
tempo encorajar a si mesmo e co-atores (pessoas pesquisadas, leitores, audiência) a refletir,
criticar injustiças, imaginar alternativas e agir politicamente (Ellis et al. parágrafo 25; Pollock
78).
A auto-etnografia tem como objetivos: destacar vozes silenciadas e marginalizadas;
ligar diretamente os níveis micro, meso e macro4; iluminar criticamente a interação em vários
níveis entre performance cultural e identidade5 em um dado contexto; e capturar experiências
corporificadas6 do cotidiano. Desta forma, a auto-etnografia supera o arquétipo do
pesquisador como alguém que observa de fora um fenômeno com objetividade (Willink et al.
15).
Herrmann defende que Auto-etnografia e Estudos de Cultura Pop7 podem ser
combinados e explorados juntos porque a cultura pop influencia nossas identidades: “A
cultura pop nos ajuda a definir quem somos, em que acreditamos, e influencia de quem nos
tornamos amigos” (Herrmann 7). Além disso, muitos acadêmicos estão menos inclinados a
utilizar métodos qualitativos8 para estudar relacionamentos sociais e pessoais, em áreas como
Estudos Familiares e Comunicação Interpessoal (Manning & Kunkel). Este artigo, pelo
contrário, combina auto-etnografia, cultura pop e relacionamentos sociais e pessoais por uma
vertente qualitativa, para compreender como os quadrinhos influenciam fortemente o
desenvolvimento da criança amazônida em suas relações diárias com outros e consigo
mesmas.
Duas décadas atrás, Browne pediu aos pesquisadores de Estudos de Cultura Pop que
internacionalizassem a disciplina, mas poucos seguiram o seu conselho. Neste mundo
globalizado, é urgente que a pesquisa estadunidense dissocie cultura dos limites do estado-
nação. Os Estudos de Cultura Pop nos Estados Unidos devem não somente reconhecer sua
diversidade interna, mas também sua relação com outros países, assim como a existência de
pesquisas e tópicos relevantes fora de suas fronteiras nacionais. Este artigo pretende
contribuir para a internacionalização de Estudos da Cultura Pop e Estudos da Comunicação
nos EUA.
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Este artigo está dividido em seis seções: 1. Uma introdução à Mauricio de Sousa
Produções, que é o estúdio que produz os quadrinhos analisados; 2. Uma auto-etnografia
retrospectiva que descreve os pensamentos e sentimentos que eu tive enquanto lia os
quadrinhos do Chico Bento, e as situações diárias em que a minha mente infantil conectou as
histórias à vida real; 3. Uma auto-etnografia retrospectiva sobre quando eu lia Papa-Capim na
infância; 4. Uma auto-etnografia contemporânea sobre como eu leio e interpreto os
quadrinhos hoje em dia; 5. Uma carta auto-etnográfica e analítica para o Mauricio de Sousa;
e 6. Um epílogo que revisa minha auto-etnografia através do pós-colonialismo. As auto-
etnografias retrospectivas estão em itálico para diferenciá-las da contemporânea. O objetivo
deste artigo é refletir sobre as implicações dos discursos nos quadrinhos para a formação da
identidade de uma criança amazônida.
1. Mauricio de Sousa e o Meio Ambiente
Mauricio de Sousa, um quadrinhista de São Paulo, fundou a Mauricio de Sousa
Produções nos anos 1950s com bastante sucesso. O estúdio multi-mídia fez parceria com as
maiores editoras do país: Abril nos anos 60 e Globo nos anos 80. Em 2007, a parceria foi
transferida para a Panini, uma editora italiana que distribui quadrinhos e animações para
vários países europeus. De acordo com os websites oficiais turmadamonica.uol.com.br (em
português) e monicaandfriends.com (em inglês), Mauricio de Sousa Produções vende mais de
3 mil produtos ao redor do mundo, além de ser o maior estúdio nacional, cobrindo 86% do
mercado de quadrinhos no Brasil. Já vendeu 1 bilhão de revistinhas até hoje e imprime mais
de 2 milhões e meio de unidades por mês.
Vários pesquisadores já escreveram sobre como os quadrinhos de Mauricio de Sousa
podem ser usados como ferramentas metodológicas em Educação Ambiental
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(Lisbôa, Junqueira & del Pino; Smarra, Lotufo & Lopes), Ciências (Reis), História (Palhares)
e outras disciplinas. As lições que os personagens dão sobre plantas e animais, folclore e
agricultura desafiam valores urbanos e introduzem um mundo alternativo onde pessoas vivem
uma vida simples e plena em harmonia com a natureza. Além disso, o sotaque caipira ensina
as crianças a respeitar linguagens diferentes enquanto aprendem o português formal. Porém,
o tom celebratório da maioria dos artigos acadêmicos sobre o uso da Turma da Mônica em
educação é preocupante porque assume que a mídia seja transparente, bem-intencionada e
inocente (de Castro).
Estudiosos em Comunicação e Linguística escreveram sobre os estereótipos nessas
histórias em quadrinhos, em que um binarismo9 urbano-rural pré-concebe o leitor como uma
criança que vive na cidade grande, e os camponeses como protetores inerentes da natureza,
paralisados no passado, inocentes e burros. Apesar de alguns pesquisadores terem escrito
sobre o impacto negativo desses estereótipos nos estudantes do interior (Villela) e indígenas
(Neves; Rodrigues), parece que ninguém jamais publicou sobre o impacto nos leitores da
Amazônia e sua influência sobre a formação de nossas identidades.
Apesar de formar mais de 60% do território brasileiro, a Região Amazônica1 é
pouquíssimo representada na mídia nacional. Quase todas as notícias, as telenovelas, os
filmes, as propagandas e as revistas são produzidas no Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) e
depois distribuídos para as demais regiões. Os quadrinhos de Mauricio de Sousa não são
diferentes, e eu acredito que a pouca e má representação10 de personagens amazônidas nas
histórias são potencialmente prejudiciais, pois os habitantes do Sudeste ficam expostos a uma
imagem estereotipada do Outro11, enquanto as crianças amazônidas podem desenvolver baixa
auto-estima e confusão sobre suas identidades.
1 A Região Pan-Amazônica inclui oito países da América Latina. No Brasil, a Amazônia Legal contém nove Estados: toda a Região Norte, parte do Nordeste e parte do Centro-Oeste.
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2. Chico Bento, o Caipira
Todas as crianças amam Turma da Mônica! Neste ano, a minha mãe, o meu tio e a
minha tia fizeram uma assinatura para mim e a minha prima. A cada duas semanas, a gente
mal pode esperar para que cheguem no correio as revistinhas com nossos queridos
personagens: Magali, Cebolinha, Cascão e outros. A minha revistinha preferida é a Turma
do Chico Bento. O Chico Bento é um menino de sete anos que mora em uma fazenda no
interior de São Paulo. Ele é burro, preguiçoso e casca-grossa, mas também gentil, generoso
e trabalhador quando está ajudando seu pai a arar a terra. Mais importante do que isso, ele
protege o meio ambiente contra lenhadores malvados, cientistas, turistas e outros intrusos da
cidade grande. Eu sei que a minha mãe fica orgulhosa de mim quando eu protejo a natureza,
porque ela tem um jornal com uma foto minha segurando uma placa, em um protesto contra
o desmatamento. Eu sei que a minha professora fica orgulhosa de mim quando eu me ofereço
para cuidar da plantinha da classe. Então, eu quero ser igual ao Chico Bento e fazer com
que as pessoas entendam que todo mundo precisa defender a natureza.
O lenhador é um homem com barba mal-feita, um gorro na cabeça, uma camisa
vermelha quadriculada, calça jeans e botas. Ele tem cara de bravo e está quase cortando
uma árvore, quando o Chico Bento chega bem a tempo! O Chico discute com o homem e
mostra como a terra parece triste com árvore cortadas. Uma lágrima cai do olho do
lenhador, então ele desiste e vai embora envergonhado. A árvore está salva.
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Fig. 1: “Chico Bento em Privilégios da Cidade”. Fonte: turmadamonica.uol.com.br (reimpresso com permissão)
A minha mãe é uma professora de Biologia. De vez em quando, ela precisa coletar
material biológico, então a gente toma um ferryboat e um “popopô” (um barco pequeno que
faz o barulho “po-po-po”) ou uma canoa para a Vila do Carmo. Lá, a gente fica na palafita
do Seu Alderico sobre o Rio Tocantins. Eu amo as longas viagens de ferryboat, onde todo
mundo se balança nas redes, ouvindo as piadas e histórias do mais velhos. Eu também amo a
casa do Seu Alderico, onde eu brinco com seus filhos, netos e outras crianças da
comunidade. A gente corre sobre sementes de açaí entre porcos e galinhas, brinca com os
pequenos camarões que a corrente traz e pula no rio para nadar. Em uma parte calma do
rio, podemos ver o boto-cor-de-rosa. Os meus amigos me fazem companhia e me ajudam o
tempo todo, porque a minha mãe é “a professora”.
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Não tem eletricidade ou água encanada. As mulheres lavam roupa no igarapé, nós
fazemos cocô em um buraco e usamos lâmpadas a óleo à noite. As crianças locais se
refrescam no rio várias vezes ao dia, mas eles nunca usam sabonete ou xampu. A minha mãe
sempre traz o xampu do Snoopy, que os meus amigos adoram porque cheira bem e faz os
cabelos ficarem macios. À noite, ela lê histórias para nós, e até crianças de cinco anos vêm
sozinhas de canoa para escutar. Antes de irmos embora, minha mãe doa os livros para a
professora local.
Na hora do jantar, o Seu Alderico está falando e eu comento: “O senhora fala errado
que nem o Chico Bento!” A minha mãe me belisca sob a mesa. Oh-oh, estou em apuros! Mas
o que foi que eu fiz de errado? Não tenho a menor ideia. Depois do jantar, a minha mãe me
leva para o trapiche lá fora e me diz que eu não deveria ter zombado do sotaque do Seu
Alderico. Oh, eu não sabia que falar errado que nem o Chico Bento era uma coisa ruim!
Na aula de Português, a professora muitas vezes inclui tirinhas nos exercícios:
“Mafalda”, “Calvin e Haroldo”, “Garfield”... Hoje, ela está pedindo que a gente “traduza”
as falas do Chico Bento para o português formal. Depois do exercício, ela diz: “Vocês
precisam usar a linguagem formal na escola, e vocês vão precisar usá-la no trabalho quando
crescerem. Mas essa norma não significa que a linguagem coloquial, os sotaques e os
dialetos sejam inferiores. Vocês devem respeitar todas as formas de linguagem.” Ah,
entendi... Fora daqui, a gente pode falar do jeito que quiser, mas aqui a gente precisa falar
direito. É por isso que eu sou sempre elogiada por falar e escrever bem, enquanto que os
meus coleguinhas são corrigidos por falar errado. Às vezes, a professora me chama para ler
na frente da classe, para ser um exemplo para os outros alunos. Eles não são suficientemente
inteligentes para mudar de uma linguagem para outra. Eu sou inteligente! Eu sou mais
inteligente do que os meus coleguinhas que cometem erros de gramática e escrita.
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3. Papa-Capim, o Indiozinho
Papa-Capim é um menino indígena que mora na floresta, em uma tribo isolada da
civilização. As histórias dele estão normalmente dentro das revistinhas do Chico Bento. Acho
que é porque os dois são tão parecidos, sempre tentando proteger a natureza.
Eu estou na 5a série. Agora, temos uma aula chamada Estudos da Amazônia.
Estudamos a geografia, a história e os problemas que existem nas florestas e cidades da
nossa região. Nós também aprendemos essas coisas em outras aulas. A professora de
História nos contou que, quando os colonizadores chegaram no Brasil, eles pensaram que
era a Índia, então para diferenciar as duas populações, devemos chamar as pessoas da Índia
de indianos e os nativos brasileiros de indígenas. Outro dia, a professora nos mostrou um
documentário sobre algumas tribos que vivem no Parque Nacional do Xingu. Nós também
vemos muitas fotos deles nos livros escolares, em revistas, ou na TV. Cada tribo tem
aparências diferentes, uma língua diferente e costumes diferentes.
Estou confusa... Nas histórias do Papa-Capim, todas as pessoas indígenas parecem
iguais, falam a mesma língua e têm os mesmos costumes...
O Papa-Capim está caminhando pela selva quando vê uma família da cidade fazendo
piquenique. Ele se esconde atrás de uma moita e fica surpreso ao notar que o homem tem
pele branca, cabelo loiro, olhos azuis e pêlos no corpo. Até eu estou chocada – é tão raro ver
gente branca por aqui! E quem é que faz piquenique na selva?! Essa família é tão estranha...
Vai ver que eles são estrangeiros...
Em outra história, um menino branco ensina o Papa-Capim a beber refrigerante,
mascar chiclete e comer quebra-queixo. O Papa-Capim fica com medo porque o gás do
refrigerante faz cócegas na barriga, a bolha de chiclete explode na cara dele e o quebra-
queixo deixa os dentes pegajosos. O Papa-Capim distribui os doces pelas pessoas da tribo e
aí acontece a mesma coisa com elas. Indígenas são tão engraçados! Eles nunca viram
comida industrializada! Não é de se admirar que eles fiquem com medo e pareçam tão bobos
quando tentam ser como nós.
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Fig. 2: “Papa-Capim em: O Menino no Espelho.” Fonte: turmadamonica.uol.com.br (reimpresso com
permissão)
Na minha escola, a maioria dos administradores, professores e alunos têm aparência
meio indígena, meio negra. Alguns são descendentes de japoneses, como a minha melhor
amiga
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Kimie e eu. Tem algumas comunidades japonesas no interior do Estado: Tomé-Açú, Santa
Izabel, Castanhal... Mas a maioria das pessoas tem pele morena. Algumas até sabem que os
seus avós são indígenas, mas não se lembram de qual tribo. Até quando parecem indígenas,
na cidade elas vestem roupas, falam português, moram em casas e compram comida no
mercado. Nós somos todos civilizados na capital.
Hoje, na escola, eu aprendi que a floresta no Sudeste é chamada de Mata Atlântica.
Será que o Papa-Capim mora na Mata Atlântica? Que decepção! Eu quero ver personagens
da Amazônia nas histórias em quadrinhos!
Oh, chegou pelo correio uma revistinha do Parque da Mônica! A Mônica, a Magali,
o Cebolinha e o Cascão (os personagens principais, que moram em São Paulo) vão ao
Parque da Mônica (que fica em São Paulo) e entram em um brinquedo chamado Floresta
Amazônica. Magicamente, com o poder da imaginação, os quatro amigos se transportam
para a selva vestindo roupas parecidas com as do Indiana Jones. Eles estão parecendo
aqueles exploradores em desenhos animados dos Estados Unidos que vão à Índia ou à África
em busca de aventuras. Na floresta densa, a Mônica, a Magali, o Cebolinha e o Cascão
conhecem duas crianças indígenas, um menino e uma menina, e vários animais fofinhos.
Agora eu entendi: o Papa-Capim é da Mata Atlântica, mas agora tem dois personagens da
Amazônia. Espero que eles façam sucesso!
Os dois personagens da Amazônia nunca mais apareceram. Nos quadrinhos do
Mauricio de Sousa, nós nunca aparecemos. Não há crianças da cidade como nós, nem
ribeirinhos, nem quilombolas. Por que não estamos lá? Não somos bons o suficiente? Aposto
que é culpa dos lenhadores e caçadores malvados. Eles sujam a nossa imagem.
Agora uma história diz que o Papa-Capim mora na Amazônia... Estou confusa...
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Fig. 3: Turma da Amazônia. Fonte: turmadamonica.uol.com.br (reimpresso com permissão)
Um caçador branco e gordo está procurando um presente para a sua mãe: pele de
onça, pele de jacaré, penas de pássaros, etc. Mas o Papa-Capim mostra ao caçador que
matar animais é errado e ensina ele a fazer um pote para a mãe. A mãe dele diz que é o
melhor presente que ela já recebeu. A casa dela tem um tapete de pele de urso, uma cabeça
de veado pendurada na parede, uma bolsa de cobra... Hum, que estranho... Não existem
ursos no Brasil, e eu nunca vi tapetes de pele de animais ou cabeças na parede.
Por que os caçadores são tão maus? Eu sei que no interior do Pará, as pessoas
caçam para comer, não só para se divertir. Eu nunca ouvi falar de ninguém na minha cidade
que caça. Quem são esses caçadores brancos que aparecem nas histórias do Chico Bento e
do Papa-Capim? Seja quem for, eles são malvados. Eles são o problema.
A namorada do Chico Bento, Rosinha, e a menina que gosta do Papa-Capim, Jurema,
não fazem nada. A vida delas parece girar em torno dos meninos, e elas
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nunca ajudam a proteger a natureza. Na tribo do Papa-Capim, os homens e meninos andam
por aí com armas (arco e flecha, lança), enquanto que as mulheres e meninas carregam
jarros na cabeça. Os homens e meninos expulsam caçadores e lenhadores, lutam contra
jacarés com as próprias mãos e comandam a tribo! Eles são fortes e corajosos. Nós não
sabemos quase nada sobre as personagens femininas. Bem, eu não quero ser como a Rosinha
ou a Jurema. Eu quero ser valente e fazer coisas emocionantes!
4. Auto-etnografia Contemporânea
Agora eu sou uma mulher confiante, orgulhosa da minha herança nipo-brasileira e
criação na Amazônia. Estou ciente das minhas desvantagens como asiática, latino-americana,
mulher, classe média baixa nos Estados Unidos, vinda de uma região pobre cuja língua não é
a inglesa. Porém, o mais importante é que estou ciente dos meus privilégios como japonesa
(quando comparada com outros grupos asiáticos como cambojanos ou vietnamitas), classe
média em Belém, educada em boas escolas, cis-gênero12, heterossexual e sem deficiências
físicas ou mentais. Em casa, ser criada por uma mãe com educação superior me deu acesso à
língua portuguesa formal em conversas diárias, assim como acesso a livros, revistas, um
computador, ajuda com dever-de-casa e muitas outras vantagens que os meus colegas de
classe não tinham. Além disso, como as regras da língua nacional são definidas em Brasília,
no Rio de Janeiro e em São Paulo, o fato de a minha família materna ser de São Paulo me deu
o privilégio de conversar com meus parentes em português formal fora da escola.
Eu folheio as minhas revistinhas antigas da Turma da Mônica e fico chateada. Eu
tinha uma imagem idealizada do Mauricio de Sousa, com sua face benevolente e seus
discursos sobre o meio ambiente, sobre respeito por diferentes culturas e a importância de
brincar com amigos fora de casa em vez de só assistir televisão e jogar vídeo games. Mas
nesta fase da minha vida, eu posso ver as vozes silenciadas de amazônidas, mulheres,
LGBTQIA13 e
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outras comunidades subalternas. Mauricio, como você pôde fazer isso comigo? Como pôde
fazer isso conosco?
Quadrinhos da Turma da Mônica podem influenciar as crianças na Amazônia que os
leem, mas eles me afetam diferentemente. Como a Cherríe Moraga que demorou muitos anos
para se identificar como Chicana14, a diferença está na possibilidade de escolha (28): eu
posso escolher ou não chamar-me amazônida, enquanto que a maioria dos amazônidas não
tem essa escolha.15 Quando eu estava crescendo, podia “passar”16 como uma autêntica garota
japonesa de São Paulo. Desde que me formei, tive várias oportunidades de dizer a
estrangeiros que sou da Amazônia e escutar “Que legal!” em vez de um desdenhoso “Oh”.
Em contraste com o meu privilégio, crianças amazônidas geralmente não recebem suficientes
mensagens positivas sobre as suas identidades para compensar as mensagens negativas, e
para dar-lhes orgulho de serem quem são.
Quando releio meus quadrinhos antigos, tenho vergonha de mim mesma por ter
acreditado nos estereótipos: o caipira preguiçoso, o indígena que vive em harmonia com a
natureza, o lenhador e o caçador. Tenho vergonha por ter pensado que eu era mais inteligente
que os meus colegas de classe por ser capaz de falar português formal. Tenho vergonha por
ter pensado que o Seu Alderico falava português “errado”. Pior ainda, tenho vergonha por
estar em uma universidade nos Estados Unidos enquanto a maioria dos amazônidas vive na
pobreza.
Eu olho para o Chico Bento e vejo que ele é o arquétipo do caipira. Caipiras ou
sitiantes são pessoas que “sobrevivem precariamente em nichos entre as monoculturas do
Sudeste e Centro-Oeste, em pequenas propriedades em que desenvolvem atividades agrícolas
e de pequena pecuária, cuja produção se dirige para a subsistência familiar e para o mercado”
(Villela 7013). Em contraste com os caipiras, os que vivem no interior da Amazônia são
chamados de caboclos. Quando eu era criança, não conseguia distinguir entre caipiras e
caboclos porque os quadrinhos do Chico Bento e a mídia em geral representava todas as
comunidades interioranas como se fossem iguais. Esta premissa chegou a criar problemas em
meus encontros com caboclos na infância.
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Fig. 4: “Papa-Capim em O Presente Ideal”. Fonte: turmadamonica.uol.com.br (reimpresso com permissão)
Eu olho para o Papa-Capim e vejo que ele é o arquétipo da criança indígena. Ele tem
pele morena e cabelo preto cortado em forma de cuia. Quando seu rosto está pintado, a
pintura se resume a linhas vermelhas paralelas nas
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bochechas. O pajé da tribo usa um cocar enorme na cabeça, veste uma tanga vermelha e fuma
o cachimbo da paz. Nenhum desses costumes existe em tribos brasileiras; essas imagens
foram emprestadas de representações na mídia estrangeira de indígenas norte-americanos
(Simm & Bonin 89), como Disney (ex.: Californy ‘er Bust, Peter Pan, Pocahontas), René
Goscinny (ex.: Oumpah-Pah, o Pele-Vermelha, Lucky Luke, Asterix e a Grande Travessia) e
Quino (Mafalda, quando as crianças brincam de cowboy). Essa fusão entre tribos indígenas
brasileiras e norte-americanas me fazia pensar que todos os indígenas do continente eram
iguais. Em 2001, a Mauricio de Sousa Produções publicou a edição especial Manual do Índio
Papa-Capim, que explica algumas particularidades de várias tribos indígenas brasileiras.
Contudo, a maioria das histórias do Papa-Capim não mostram essa diversidade cultural;
nessas histórias, os indígenas – até os de tribos diferentes – se parecem e se comportam mais
ou menos do mesmo jeito.
Fico estarrecida em perceber o quão ingênua eu era em acreditar na fazenda idílica do
Chico Bento e na floresta intocada do Papa-Capim! Nos quadrinhos do Mauricio de Sousa, os
animais são frequentemente antropomorfizados com comportamento amigável e sorrisos –
até mesmo predadores como onças e jacarés. Plantar, caçar e pescar são reduzidos a prazer,
aventura e divertimento em vez de sobrevivência. Além disso, em algumas histórias, o Papa-
Capim protege tanto os animais que até se recusa a comê-los. Este tipo de ambientalismo é
uma concepção urbana e eurocêntrica da natureza, que sugere uma relação moderna entre
humanos e animais (Descola). Este artigo, pelo contrário, defende que não devemos esperar
que pessoas em áreas rurais protejam a natureza através de ações como: parar completamente
de cortar árvores, tornar-se vegetariano, ou lutar contra caçadores de fora. Em vez disso, os
quadrinhos deveriam ser mais respeitosos para com as formas tradicionais com que os
caipiras e indígenas se relacionam com o meio ambiente.
[página 401]
Fig. 5: As crianças humilham o lenhador para ensiná-lo a não cortar árvores. Fonte: turmadamonica.uol.com.br
(reimpresso com permissão)
Eu me lembro das inúmeras vezes em que alguém de São Paulo, do Japão ou dos
Estados Unidos, ao saber que eu vinha da Amazônia, perguntou: “A sua casa fica no meio da
floresta?” Eu me lembro de histórias que conhecidos me contaram
[página 402]
sobre brasileiros do Sudeste perguntando: “No Norte, os jacarés andam pelas ruas?” ou
“Você não tem medo das piranhas ou da anaconda?” ou “As pessoas lá se penduram em cipós
para pular de árvore em árvore?” Tarzan, Mogli, Anaconda e outros produtos midiáticos
importados apresentam a África, a Índia, a Amazônia e outros lugares “incivilizados” como
se fossem iguais. De acordo com esse estereótipo, nós somos iguais em selvageria, então
temos a mesma necessidade por urbanização, industrialização e esclarecimento intelectual.
Quando eu lia os quadrinhos do Mauricio de Sousa, eu podia sentir que eles não
tinham sido escritos para mim e muito menos para os meus amigos amazônidas. Mesmo na
infância, eu tinha a sensação de que o público-alvo era imaginado como uma criança branca,
classe média, em uma cidade grande do Sudeste. Em Papa-Capim, os heróis das histórias são
nativos “puros”, seus aliados são brancos “bondosos” (geralmente crianças) com quem o
leitor deve se identificar, e os vilões são brancos “malvados” (normalmente adultos). Esta
representação pode encorajar leitores do Sudeste a sentir-se bem sobre si mesmos e pensar
que são intelectualmente esclarecidos em contraste com os lenhadores e caçadores
ignorantes. Desta forma, os leitores acabam não refletindo sobre como eles também fazem
parte de um sistema opressivo que destrói o meio ambiente e as pessoas que vivem nele.17
Nos quadrinhos, os amazônidas são indígenas isolados na selva. Bem, eu cresci na
cidade grande, e quer saber? Ninguém ao meu redor tinha pele branca, cabelo loiro e olhos
azuis. Meus melhores amigos são morenos ou mestiços. Ler esses quadrinhos me dava
alegria, mas também dúvida: “Será que os meus coleguinhas e eu não somos autênticos?”
(Farenzena & Mendes 8) “Se nós não aparecemos na mídia, será que não somos
importantes?” Trinh Min-ha chama de “autenticidade planejada” o processo de introduzir na
mente do subalterno a necessidade de provar a própria genuinidade (268). Ao mesmo tempo,
quando um grupo étnico é apresentado como uma “espécie ameaçada de extinção”, os
brancos de classe média que se dizem de esquerda são apresentados como os salvadores
daquele grupo. Consequentemente, @ oprimid@ se torna “mais preocupado com a imagem
dele/dela de nativo verdadeiro – aquele que é realmente diferente – do que com os problemas
[página 403]
de hegemonia, racismo, feminismo e mudança social” (267, itálico no original).
Eu abro a revista em quadrinhos e, de novo, lá está: Papa-Capim, o pele-vermelha,
encontra um branco da cidade pela primeira vez na vida. Esta representação ignora que, para
os indígenas e seus descendentes, genocídio e enculturação vêm ocorrendo há mais de 500
anos; nenhum menino indígena está esbarrando em um forasteiro branco por acaso, ou
resolvendo suas diferenças em um piscar de olhos.
Nos quadrinhos coloridos, a floresta é um paraíso lindo e tranquilo, sem estresse ou
responsabilidades (de Castro 473). Na vida real, a Amazônia é dominada por conflitos
mortais sobre propriedades de terra, desflorestamento em larga escala por grandes empresas,
êxodo rural e outras doenças sociais. Será que o lugar onde cresci não é genuíno? Quando eu
era criança, instintivamente percebia que havia algo estranho quando a Amazônia que eu via
no dia-a-dia e sobre a qual eu aprendia na escola era tão diferente da Amazônia que eu via
nos quadrinhos, nos desenhos animados e nos filmes. Porém, naquela época, eu ainda não
conseguia explicar por quê isso era estranho. A floresta idílica parecia ser mais real, porque
as historinhas diziam que essa floresta costumava ser intocada antes de os lenhadores
malvados a invadirem, e era assim que ela deveria voltar a ser.
Agora que sou adulta, eu já consigo identificar as dicotomias: sociedade versus
natureza (Procópio), civilizado versus incivilizado (de Lima; Luíndia & Oliveira;
Torrecillas), moderno versus atrasado (Manthei), protetor da natureza versus destruidor da
natureza (da Silva et al.; de Castro & Oliveira; Natal), e razão versus intuição (Procópio).
Quando criança, eu me identificava com a primeira opção de cada par dicotômico: a parte
considerada boa. Hoje em dia, penso diferente. Eu rejeito ambas as opções, pois elas não são
realmente opções. Em vez de escolher uma identidade rígida e limitada que me foi imposta,
eu escolho identidades mais fluidas, complexas e interseccionais. Entretanto, podemos dizer
que todas as crianças amazônidas têm a oportunidade de aprender a identificar esses
estereótipos e ter orgulho de suas identidades? Infelizmente, não.
[página 404]
5. Uma Carta para o Mauricio de Sousa
Caro Sr. Mauricio de Sousa,
Sou uma grande fã sua. Eu cresci lendo seus histórias em quadrinhos e assistindo seus
desenhos animados, milhões de vezes.
Sou de Belém do Pará. O senhor tem ido à Amazônia nos últimos anos, não tem? O
senhor tem falado sobre o seu desejo de criar personagens com que podemos nos identificar:
um menino indígena, o filho de um seringueiro, um grupo de pequenos ribeirinhos. Por que
não meninas? As únicas meninas importantes nas suas histórias moram na cidade grande,
como se apenas o modo de vida urbano permitisse agência18 feminina, e como se mulheres da
capital fossem todas independentes.
Em 2013, o senhor declarou: “Como todo cara do sudeste, eu via a Amazônia como
uma selva, mas quando percebi a dimensão do lugar em conversas com estudiosos, índios e
pessoas que moravam nessas áreas, resolvi parar e montar uma equipe adequada para mostrar
essa coisa tão maravilhosa sem ser exagerado” (“‘Pai’ da Turma da Mônica, Mauricio de
Sousa quer destacar a Amazônia em gibi”). Fico feliz que o senhor reconheça a urgência em
escutar os amazônidas e tornar as representações da Amazônia mais complexas. Entretanto,
os quadrinhos do Chico Bento e do Papa-Capim, assim como os textos sobre a Amazônia
postados no website oficial, continuam sendo problemáticos por sua abundância de
estereótipos, binarismos entre personagens urbanos e os da floresta ou do campo, discursos
preservacionistas19 e outras ideologias que, apesar de boas intenções, podem prejudicar a
auto-percepção e o desenvolvimento de pensamento crítico dos leitores amazônidas.
Milhões de crianças brasileiras enxergam o senhor como um exemplo a ser seguido.
Muitas até sonham em tornar-se quadrinhistas no seu estúdio. Mas que tipo de
[página 405]
exemplo o senhor oferece a esses aspirantes a quadrinhistas, quando todas as criações na sua
empresa são acreditadas somente ao senhor nas publicações? Disney, Marvel e outros
estúdios de quadrinhos já aboliram essa prática (Natal 4). Ela revela bastante sobre a
apropriação de trabalho artístico, mas também justifica apropriação no geral: do nosso
trabalho, da nossa cultura e da nossa imagem, para o lucro da sua empresa.
O senhor frequentemente diz que as mensagens ambientalistas dos seus quadrinhos se
originam de um cometimento à educação e à justiça social. O Ministério da Educação, as
ONGs, a Unicef e muitas outras instituições usam os seus personagens para ensinar sobre o
meio ambiente, saúde e direitos humanos. Mas nós dois sabemos que estas ações não são
completamente altruístas; trata-se de uma estratégia comercial para a promoção da marca
Turma da Mônica no Brasil e no exterior (de Castro & Oliveira). Os seus personagens
aparecem em campanhas governamentais, livros escolares, telas televisivas e milhares de
produtos.
Mauricio, talvez o senhor não perceba o quanto as suas histórias impactam as vidas de
crianças amazônidas. O senhor se esquece que nós somos parte da sua audiência também. As
mensagens sobre preservar a natureza, ou pôr a responsabilidade de preservá-la nas costas de
crianças caipiras e indígenas, podem contribuir para a formação de uma opinião pública
conservadora (da Silva et al.). Representar os amazônidas como se vivessem no passado pode
trazer consequências desastrosas para os leitores da região. Por exemplo, pode levar as
crianças indígenas a rejeitar a própria cultura, ou levar as crianças não-indígenas a assumir
que os nativos são atrasados. Este discurso hegemônico foi o mesmo empregado durante a
colonização e atualmente está presente no neoliberalismo (de Castro).
[página 406]
Os vilões nas suas histórias, particularmente o lenhador e o caçador, pressupõem que
a culpa pelo desmatamento é de indivíduos (Scareli). Ironicamente, esses indivíduos não
existem na Amazônia. O lenhador é baseado nos lumberjacks dos Estados Unidos que
aparecem em desenhos animados importados. Essa imagem ignora as madeireiras que
operam no Brasil e os trabalhadores pobres que são explorados nas madeireiras. De forma
similar, o caçador é baseado em representações estadunidenses e do Oeste Europeu, de
aristocratas ricos que caçam raposas e veados como esporte. Essa imagem ignora os
camponeses e indígenas que caçam tatu, paca e tartaruga para complementar sua dieta.
Fig. 6: Revista “Saiba Mais! sobre o meio ambiente com a Turma da Mônica”, número 34, Panini Comics.
Fonte: Imagem enviada para a autora pela Mauricio de Sousa Produções (reimpresso com permissão)
No contexto globalizado de poluição, desflorestamento, roubo de propriedades de
terra, pesca predatória, barreiras no sistema de transporte e pobreza, o acesso à comida se
torna limitado e a caçada ganha nova importância para os atuais moradores de áreas não-
urbanas. As leis brasileiras ignoram a necessidade de sobrevivência dessas comunidades ao
criminalizar a caça e a pesca. Para piorar, o público em geral põe nessas pessoas a
responsabilidade pelo futuro da humanidade, dizendo que elas devem
[página 407]
preservar completamente a floresta. Em vez disso, devemos denunciar o verdadeiro culpado
pela destruição do meio ambiente: o modelo de expansão urbano-industrial (Arruda).
Nos quadrinhos, quando um menino consegue prevenir o desmatamento através de
relações interpessoais, convencendo um adulto mal-informado a envergonhar-se de seus atos
egoístas, o contexto cultural maior é ignorado. Esse discurso não dá à criança a chance de
entender minimamente os problemas ambientais de forma construtiva, ou a chance de sentir
empatia pelas pessoas que realmente estão sofrendo com esse sistema opressivo. Só o que a
criança vê é um herói e um vilão. Vamos parar de tentar ser heróis, vamos parar de tentar
convencer um vilão fictício. Nós, na Amazônia, queremos ser nós mesmos. E queremos que o
senhor, e todo o mundo, tornem-se nossos aliados20.
Atenciosamente,
M.
6. Epílogo: Brasil, uma Terra Pós-colonial
Releio a minha carta para o Mauricio. Oh, não, eu fiz de novo... Tomei como ofensa
pessoal. Deixei as minhas memórias de infância, em que ele era o “tio legal” que me traiu,
influenciarem o meu julgamento. O Mauricio não é um vilão como o lenhador malvado; ele é
um empresário dentro de um sistema hegemônico neoliberal maior do que ele mesmo, que
envolve instituições públicas e privadas. A baixa auto-estima de crianças amazônidas é
consequência de uma longa história de colonialismo por Portugal e neocolonialismo pelo
Oriente Europeu (especialmente França21) e pelos Estados Unidos. Assim como ativistas e
intelectuais lutam para descolonizar nossa política e economia, outros lutam para
descolonizar nossas mentes, como Ngũgĩ wa Thiong’o professou.
Na universidade, os Estudos Pós-coloniais canonizaram estudiosos do Terceiro
Mundo, como o Edward Said. Eu também, como uma mulher de cor22 de um
[página 408]
país pobre e uma região mais pobre ainda, quero ser escutada nos meios acadêmicos de
países desenvolvidos. Talvez o meu trabalho possa abrir um caminho para mais vozes
silenciadas; por exemplo, os amazônidas do interior e os estudantes indígenas que estão tendo
a oportunidade de se graduar. Talvez quando eu traduzir as minhas publicações para um
português acessível e postá-las online de graça, alguns brasileiros notem e se sintam mais
auto-confiantes. Talvez o meu pedido pela construção de alianças possa inspirar os
subalternos e as elites, na Amazônia, no resto do Brasil e nos Estados Unidos, a parar de
atacar uns aos outros e começar a lutar juntos contra o inimigo comum chamado opressão
estrutural.
Os Estudos Pós-coloniais, em si, estão divididos. Pós-estruturalistas como a Ella
Shohat e a Anne McClintock criticam pesquisas dentro de sua própria disciplina, enquanto
que estudiosos de outras áreas como Arif Dirlik e Terry Eagleton criticam o pós-colonialismo
de forma quase generalizada. É possível que eu seja culpada das críticas mais comuns ao pós-
colonialismo: classismo23 e foco no nível micro (a agonia de ter uma identidade híbrida) sem
a atenção necessária ao nível macro (neocolonialismo). Assim como Gayatri Spivak, estou
em uma posição privilegiada em meio aos subalternos e, assim como Homi Bhabha, às vezes
eu “me esqueço” das opressões sistêmicas. No entanto, o meu compromisso com
criticalidade, interseccionalidade, contexto e justiça social me levam à auto-crítica, de forma
que eu possa reconhecer meus erros e tentar novamente.
Além do hibridismo das minhas identidades culturais, eu também tento encontrar
minha identidade acadêmica em Comunicação, Estudos de Cultura Pop, Pós-colonialismo e
qualquer outra disciplina que exploro. Latinocentricidade, Asiacentricidade, Pós-
colonialismo Lusófono e Epistemologias do Sul24 são algumas opções. Eu devo usar o meu
privilégio de ter opções para tornar-me uma aliada daqueles que quase não têm opções: a
minha família espiritual da Amazônia.
[página 409]
Agradecimentos
Agradeço à Jeni Hunniecutt por recomendar a revista acadêmica The Popular Culture
Studies Journal, ao Dr. Roy Wood pela sua ajuda e generosidade, à Mauricio de Sousa
Produções por gentilmente autorizar a publicação das imagens e aos revisores anônimos por
seus comentários construtivos.
[página 410]
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Epílogo 2 [Esta seção não está publicada na versão original em inglês]
Quando este artigo foi publicado, liguei para a minha mãe por Skype para dar-lhe a
boa notícia. Empolgada, ela perguntou se eu enviaria o artigo à Mauricio de Sousa Produções
ou se escreveria uma carta de agradecimento ao Mauricio de Sousa. Eu respondi que talvez
não fosse uma boa ideia, pois o artigo continha várias críticas a essas histórias. A minha mãe
ficou chocada e falou: “Coitadinho do Mauricio...”
Como podemos ver, a imagem de Mauricio de Sousa como “tio legal e bondoso”
continua firme e forte. Porém, como pessoas de consciência crítica, devemos repensar essa
imagem. Em primeiro lugar, nada está imune a críticas: quadrinhos, livros educativos,
documentários e qualquer outro produto cultural pode conter estereótipos. Segundo, o
Mauricio pode até ter boas intenções, mas devemos nos focar nos efeitos de seus produtos e
não nas suas intenções. Terceiro, o fato de Mauricio ser “um cara legal” não tem nada a ver
com as práticas potencialmente danosas de sua empresa. Quarto, em vez de ter pena do
Mauricio, que tem privilégios de classe, raça e gênero, não seria mais importante nos
focarmos nos problemas de pessoas em posições marginalizadas?
O meu objetivo aqui não é demonizar as histórias em quadrinhos do Mauricio de
Sousa, mas sim criticar seus estereótipos para que as próximas gerações tenham acesso a
produtos culturais que respeitem diferentes raças, classes, gêneros, sexualidades, etc.
Notas da tradutora [Esta seção não está publicada na versão original em inglês]
1. A arroba @ simboliza os gêneros feminino, masculino e/ou neutro. Por exemplo, leia a
palavra “etnógraf@” como “etnógrafo ou etnógrafa”.
2. Staged performance é o que Augusto Boal chamaria de “teatro do oprimido”.
3. Relações de poder no sentido dado por Michel Foucault.
4. O nível micro é pessoal, individual ou psicológico: o “eu” e a família. O nível meso é
cultural, como a comunidade onde uma pessoa vive. O nível macro é estrutural ou
institucional, como o sistema capitalista, a educação formal, as leis, etc.
5. Autores como Pierre Bourdieu e Judith Butler explicam que nós aprendemos a agir de
determinadas maneiras em contextos diferentes. Por exemplo, uma menina aprende que sua
identidade é feminina e, portanto, espera-se que ela se comporte do jeito que a sociedade
onde vive considera feminino.
6. Embodied (corporificado) é uma abordagem que não fica apenas no nível mental e
abstrato, mas foca principalmente no corpo e nas consequências materiais. Por exemplo, em
vez de falar sobre pobreza no geral, um estudo corporificado narra experiências concretas de
pessoas que sofrem com a pobreza.
7. No Brasil, “cultura popular” geralmente se refere a artes tradicionais e folclóricas,
enquanto “cultura pop” se refere à mídia de massa, como os filmes de Hollywood.
8. Os métodos qualitativos procuram analisar uma questão através de palavras, enquanto os
métodos quantitativos o fazem através de números. Por exemplo, uma entrevista qualitativa
permite que o entrevistado descreva longamente e com profundidade as suas experiências,
enquanto entrevistas quantitativas contam quantos entrevistados responderam x ou y. Ambos
os métodos são importantes e, preferencialmente, deveriam informar um ao outro.
9. Binarismo, dicotomia, oposicionismo ou polarização é o ato ou efeito de posicionar dois
termos como se fossem opostos e como se um fosse superior ao outro, como: branco e negro,
bom e mau, racional e irracional, etc. Frantz Fanon criticou estudiosos como Hegel e Freud,
assim como os colonizadores europeus, por construírem binarismos para justificar a
colonização e o sistema escravocrata. Por exemplo, se acreditarmos que os brancos da cidade
grande são civilizados e que os indígenas são selvagens, então não perceberemos o sistema
opressivo que subjuga os povos indígenas.
10. Representação no sentido dado por Stuart Hall no livro Representation: Cultural
Representations and Signifying Practices: “representação é a produção de sentido através da
linguagem” (p. 16).
11. O Outro no sentido dado por Edward Said, Stuart Hall, bell hooks, etc.: aquele que é
considerado tão diferente do Eu, que é impossível identificar-se com ele. Por exemplo, o
colonizador português via o indígena como Outro.
12. O livro Transfeminist Perspectives: In and beyond Transgender and Gender Studies
(2012), organizado por Anne Finn Enke, oferece a seguinte definição para o termo cis-gênero
ou cissexual: “Do prefixo em latim ‘cis’, que significa do mesmo lado ou continuar na
mesma orientação, ‘cis-gênero’ e ‘cissexual’ é a característica de quem continua, ou que
outros interpretam que continua, com o gênero e/ou sexo que lhe foram impostos ao nascer”
(p. 20, tradução minha). O mesmo livro também explica que o sexo de uma pessoa é definido
através da medicina (morfologia, genética, etc.) e da lei (feminino ou masculino na carteira
de identidade e outros documentos) (p. 17). O gênero é definido por cada pessoa e pela
sociedade onde ela vive (p. 18), ou seja, cada cultura cria certas expectativas de como cada
um deve se comportar de acordo com a identidade que lhe é incumbida. Porém, a pessoa
pode ir contra essas expectativas; por exemplo, alguém que foi designado menino ao nascer
pode crescer e passar a se identificar como mulher.
13. LGBTQIA é a sigla para lésbica (mulher que se sente sexualmente atraída por mulheres),
gay (homem que se sente sexualmente atraído por homens), bissexual (pessoa que se sente
sexualmente atraída por pessoas de vários gêneros), trans-gênero (pessoa que define o próprio
gênero diferentemente do gênero que lhe foi imposto ao nascer), queer (pessoa que desafia a
heteronormatividade através de sua identidade sexual e ações), intersexual (pessoa que nasce
com mais de um sexo) e assexual (pessoa que não sente atração sexual).
14. Chicana é a mulher de origem mexicana nos Estados Unidos que se orgulha de sua
linhagem. Existe bastante preconceito e discriminação contra mexicanos nos EUA, por isso
escolher o título de Chicana é um ato político.
15. Quando eu vou para São Paulo, as pessoas olham para mim e não imaginam que eu sou
de Belém do Pará. Cabe a mim revelar onde fui criada, ou mantê-lo em segredo. Por outro
lado, a maioria dos paraenses, se vão para São Paulo, logo os paulistas percebem seus traços
caboclos, sotaque, jeito de se comportar diferente, etc. Portanto, eles não têm o privilégio da
escolha.
16. “Passar” significa esconder uma identidade marginalizada para ser aceito em um grupo
privilegiado. Por exemplo, quando um negro de pele clara finge ser branco para ter maiores
chances de ser empregado, para parecer mais atraente, para ser levado a sério, etc. Outro
exemplo: muitas instituições esperam que as mulheres de cabelo crespo alisem o cabelo para
parecerem “mais profissionais”. Esse preconceito cria um ambiente em que as pessoas
marginalizadas sentem a necessidade de se “passar” por brancas, ricas, heterossexuais, etc.
17. Todos nós somos cúmplices de injustiça social quando vivemos em um sistema
capitalista, em cidades urbanizadas, em um mercado que dá mais chances educacionais e
profissionais para brancos de classe média do que para negros de classe baixa, etc.
18. Agência no sentido de práxis, ou seja, ação baseada em consciência crítica (Paulo Freire).
19. O preservacionismo é uma ideologia que defende a preservação total das florestas.
Discursos preservacionistas da mídia, de ONGs, das Nações Unidas, entre outras instituições,
procuram culpar indivíduos pelo desflorestamento (ex., o político brasileiro corrupto, o
ribeirinho que corta madeira, o trabalhador rural que queima a mata para plantar, etc.). Desta
forma, ignoram a culpabilidade de grandes empresas como a Vale, de políticas
desenvolvimentistas como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, da indústria farmacêutica
estrangeira que vende (às vezes através de pirataria) remédios e produtos de beleza à base de
plantas amazônicas, de pessoas ricas na Europa e no Japão que compram madeira e animais
“exóticos” da Amazônia, etc. Rossana Rocha Reis (“O Direito à Terra como um Direito
Humano: A Luta pela Reforma Agrária e o Movimento de Direitos Humanos no Brasil”),
Ciro Fernando Assis Siqueira e Jorge Madeira Nogueira (“O Novo Código Florestal e a
Reserva Legal: do Preservacionismo Desumano ao Conservacionismo Politicamente
Correto”), Andréa Zhouri (“O Ativismo Transnacional pela Amazônia: Entre a Ecologia
Política e o Ambientalismo de Resultados”) e outros estudiosos defendem o desenvolvimento
sustentável no lugar do preservacionismo.
20. Gayatri Spivak em “Can the Subaltern Speak?”, Linda Alcoff em “The Problem of
Speaking for Others”, Audre Lorde em Sister Outsider: Essays and Speeches e outros
pesquisadores escreveram sobre a importância de criar alianças, ou seja, de juntar forças
contra sistemas opressores. Primeiro, pessoas em posições marginalizadas devem parar de
brigar entre si, por exemplo: mulheres brigando pela atenção de homens em vez de lutarem
juntas contra o machismo; feministas brancas desprezando negras em vez de lutar com elas
contra o racismo; amazônidas da capital desdenhando os caboclos do interior em vez de lutar
com eles contra a concentração de poder no Sudeste brasileiro; etc. Segundo, pessoas em
posições de poder devem tornar-se bons aliados de pessoas com menos poder, por exemplo:
parar de querer “salvar” os indígenas “ameaçados de extinção” e começar a ouvi-los, ou seja,
começar a servir os interesses e planos deles em vez de tomar as rédeas para si.
21. Quando falo de neocolonialismo pela França na Amazônia, estou me referindo à Belle
Époque, quando o Ciclo da Borracha tornou Belém uma espécie de Paris para a elite local.
22. Nos Estados Unidos, onde faço doutorado e dou aulas no momento, as raças humanas são
divididas entre white people (pessoas brancas) e people of color (pessoas de cor). Como sou
uma latino-americana de ascendência japonesa, sou considerada uma woman of color (mulher
de cor). Obviamente, as definições raciais mudam em cada contexto. No Brasil, cresci sendo
chamada de “japa”, “amarela”, “gueixa”, “Pikachu”, etc. No Japão, onde fiz meu mestrado,
eu era chamada de hafu (do inglês half, que significa metade) ou gaijin (estrangeira).
23. Classismo é o preconceito de classe sócio-econômica. Leia, por exemplo, “Nojo de
Pobre: Representações do Popular e Preconceito de Classe”, de Maria Luiza Martins de
Mendonça e Janaína Vieira de Paula Jordão.
24. A grande maioria das publicações nos Estados Unidos é centrada nos WASP (White
Anglo-Saxon Protestant): brancos anglo-saxões protestantes. Para desafiar esse status quo,
alguns pesquisadores estadunidenses defendem a Latinocentricidade (centrar-se nos latinos) e
a Asiacentricidade (centrar-se nos asiáticos). Nos países colonizados por Portugal, alguns
defendem o Pós-colonialismo Lusófono para desafiar os Estudos Pós-coloniais que focam só
nos países colonizados pela Inglaterra. Em países em desenvolvimento e áreas pobres de
países desenvolvidos, alguns defendem as Epistemologias do Sul, ou seja, as formas de
conhecimento específicas do Sul Global.
[Citação em formato MLA]
de Almeida, Moana Luri. “The Evil Woodcutter and the Amazon Jungle: What Comics Have
Taught Me About the Environment.” The Popular Culture Studies Journal 3.2 (2015): 386-
414. Web.
[Citação em formato ABNT]
DE ALMEIDA, M. L. The Evil Woodcutter and the Amazon Jungle: What Comics Have
Taught Me About the Environment. The Popular Culture Studies Journal (Midwest Popular
Culture Association / American Culture Association. Online), v. 3, n. 2, p. 386-414, 2015.