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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS MODERNIDADE, ESTÉTICA E IDENTIDADE: UMA ANÁLISE POLÍTICA DA MÚSICA ELETRÔNICA DE PISTA GUILHERME TEIXEIRA GUEIROS Monografia apresentada como exigência do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para obtenção do título de Bacharel. Orientador: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama Ano: 2013

Modernidade, Estética e Identidade: Uma Análise Política da Música Eletrônica de Pista

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

MODERNIDADE, ESTÉTICA E IDENTIDADE:

UMA ANÁLISE POLÍTICA DA MÚSICA ELETRÔNICA DE PISTA

GUILHERME TEIXEIRA GUEIROS

Monografia apresentada como exigência do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para obtenção do título de Bacharel. Orientador: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama Ano: 2013

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise política do movimento cultural

envolvido na Música Eletrônica de Pista, a partir da assimilação artística Pós-Rock n’

Roll dos centros urbanos. É na ruptura com os elementos estéticos da música tradicional e

da convencional apresentação em formato de show, construído nota-a-nota, que a

performance do Disc Jockey (DJ) se torna relevante, promovendo uma abordagem

música-a-música, focada exclusivamente na percepção do público e não mais na

personalidade do artista. São estabelecidas as maneiras gerais de como são realizadas as

colaborações e influências no sentido transnacional que cada subgênero se constrói. De

modo a contextualizar a origem da música eletrônica é traçado um perfil das cenas mais

relevantes para a compreensão de como os centros urbanos se relacionam com este

movimento. Desta forma é procurada uma maneira de justificar, através de uma metáfora

comportamental, o reflexo da evolução desta música com a maneira como nos

organizamos ao longo das últimas décadas. O esforço teórico se concentra dentro do pós-

estruturalismo, que com a ajuda da elaboração da estética biotecnológica do DJ, tem o

sentido de uma biopolítica centrada na resistência.

ABSTRACT

This work has the objective of making a political analysis of the cultural movement

involved in the Electronic Dance Music, from the post-rock artistic assimilation of the

urban centers. It is in the rupture with the aesthetical elements of traditional music and of

the conventional presentation in show format, built note-to-note, that the DJ performance

becomes relevant, promoting a song-to-song approach, focused exclusively on the

public’s perception and no longer on the artist personality. It is stablished the general

manners in which collaborations and influences in a transnational sense that each

subgenre constructs. In a way to contextualize the origin of the electronic music it is

displayed a profile of the most relevant scenes for the understanding of how the urban

centers relate to this movement. In this sense it is pursued a manner of justifying, through

a behavioural metaphor, the reflex of the evolution of this music with the way we have

been organizing ourselves in the last decades. The theoretical effort concentrates within

the post-structuralism, that with the help of the elaboration of the biotechnological

aesthetics of the DJ, has the sense of a biopolitics centered in resistance.

3    

SUMÁRIO

Agradecimentos Página 04

1 – Introdução Página 07

2 – Modernidade e Estética Página 11

2.1 Estética em confronto com o mercado Página 17

2.2 Estética e sensorialidade Página 19

3 – Espaços urbanos e festivos: juventudes trasnsnacionais Página 22

4 – A Música Eletrônica de Pista e a produção de identidades Página 26

4.1 Música Eletrônica de Pista Página 26

4.2 O Techno de Detroit: Belleville Boys Página 28

4.3 O House de Chicago: negros, gays, redenção na dancefloor Página 30

4.4 Clubes Urbanos e Raves Rurais: Acid House, Balearic, Página 34

Ecstasy, a cena de Londres e o nascimento de Madchester

4.5 Madchester: twenty-four-hour party people e Página 44

Rave n’ Roll Crossover

4.6 Goa: turismo, raça, LSD e Psytrance Página 53

5 – Hey Mr. Dj: Autoridade trans(n)acional, atos biopolíticos Página 62

6 – Considerações Finais Página 71

7 – Referências Bibliográficas Página 75

8 – Anexos: Setlists Página 80

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Agradecimentos

Mais que unir o útil ao agradável, realizar este trabalho pra mim foi

consolidar a minha contribuição à compreensão científica de um mundo que

faz parte da minha vida e da de milhões de pessoas. A vontade de fazer da

minha conclusão de curso algo que me instigasse e tivesse um significado

além da mera graduação sempre foi algo presente em mim, mas que nunca

teria sido enfrentado não fosse pelas amizades e o apoio da família. Mais

que simples conversas no centro acadêmico ou no campus da universidade,

os amigos que fiz na PUC, sem talvez tomarem conhecimento, despertaram

em mim o gosto pelo julgamento crítico, o que ampliou a visão política

adquirida nas aulas. Aprendi a fazer da política uma arte e as infinitas

discussões cotidianas sobre ideais, motivações e indignações da vida me

fizeram decidir encarar de frente o desafio: fazer da arte uma reflexão

política. Mais que simplesmente viver a arte, decidi confrontá-la com os

conhecimentos e a vivência do curso. Nada seria esta monografia sem as

ferrenhas e proveitosas discussões com amigos como José Queiroz,

Carolina Peterli, Mercedes Machado, Marcelo Moura, Ian Gibbons,

Vinícius Ximenes, que contribuiram diretamente na elaboração do tema, me

incentivaram muito para não abandonar a ideia aparentemente insana e

confiaram desde o início no meu potencial e na ideia do projeto. Felipe

Castro, Túlio Braga, Thomaz Aragão, Rafael Dias, Bernardo Araujo, Lucas

Lins, Paula Maculan, Pedro Brito, Sérgio Lima, Stephanie Gauss, Maria

Clara de Mello, Vitória Ramos, Marina Rezende, Marina Martins, Carla

Hoyer, Diego Wehrle, Lucas Stelling, Juliana Ghazi e tantos outros, que

compartilharam não só as horas de aula e prazer, mas os aprendizados que

com eles tivemos. Não menos importantes, outras influências universitárias

foram importantíssimas, horas na lapidação do meu raciocínio crítico, horas

na simples arte de aproveitar um bom momento de descontração, como

Diego Veiga, Diego Mello, Rafael Rezende, Marcelo Dominguez, Victor

5    

Machado, Arthur Murta, Gustavo Seffrin, Pedro Diaz, Victor Serebrenick,

Thales Santos, Renato Santos, Thiago Abrahão, Marcella Marins, Karina

Albuquerque e diversas outras pessoas que fizeram parte da vida do Centro

Acadêmico de Relações Internacionais. Meu agradecimento mais amplo se

faz ao CARI e a todas as pessoas que passaram por ele, pois foi

decididamente por causa dele que eu consegui suportar as longas distâncias

de locomoção de ida e volta da faculdade. Me considero imensamente grato

por ter tido portas abertas na vida e no coração destas pessoas. Me

considero honrado por ter vivido tantas horas ali, por ter testemunhado a

mudança que o centro ganhou com a ampliação e com a gradual saída dos

meus contemporâneos. Fiz amizade com as pessoas mais antigas do curso,

me iluminei e me influenciei com a presença delas e garanti meu lugar

posteriormente como referência para os recém chegados. Acompanhei a

transição e vi de perto as sutilezas do convívio cotidiano de um lugar que

une pessoas aparentemente “inuníveis”, nos mostra nossos defeitos, nossas

intolerâncias e nos faz crescer num ambiente harmônico e que se preza pelo

princípio do diálogo e do respeito para conceder os pequenos milagres que

oferece. Obrigado CARI! Serei eternamente grato ao meu orientador Carlos

Frederico, que foi imensamente solícito e ultrapassou as fronteiras da mera

orientação de monografia. Outros professores também foram determinantes

na minha trajetoria por refletirem além de sua sabedoria, sua forma de

encarar a vida acadêmica, no sentido de aguçar a percepção dos objetos

políticos e estéticos como Cunca Bocayuva, Carolina Moulin, Claudio

Tellez, Philippe Bonditti, Luiz Camillo e muitos outros. Outras pessoas fora

do meu círculo acadêmico foram mais que determinantes pra aumentar a

minha auto-estima e me fazer não perder o foco. Agradeço imensamente a

Lucas Campos, Henrique Barreto, Valério Merin, Aldo Barranco, Rafael

Saidler, Pedro Freitas, Rafael Antunes, Fábio Xavier, Guilherme Quacchia,

Guido Serafini, Renato Côrtes, Alan Faria, Filipe Barbosa, Vinicius

Rodrigues, Pedro Dalles, André Cheregatti, Bernardo Cid, Clara Lobo,

Livia Campos, Natássia Quintão, Tayana Brito, fizeram mais do que

6    

simplesmente me motivar nessa jornada universitária, me ofereceram a

coisa mais rica que uma pessoa pode ter, que é a amizade pura, verdadeira e

desinteressada. Devo intensas gratidões aos meus irmãos Pedro e Luíza pela

companhia e estímulo. À minha mãe por sempre confiar no meu potencial e

acreditar em mim como profissional e ser humano. Ao meu pai pela força,

pela motivação e pelo reflexo da grande pessoa que é. À minha avó Lêda

pelo amor incondicional e influência espiritual. À toda a minha família e

amigos por estarem do meu lado do jeito que for, o que me ofereceu os

recursos necessários pra me manter em pé, saudável, sábio e acima de tudo

com a profunda certeza de ser uma influência verdadeiramente positiva para

quem estiver comigo, pois foi o que encontrei nestas pessoas. Sem elas

certamente não haveria a presente reflexão.

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1. Introdução

O trabalho a seguir se insere numa tentativa de capturar reflexões

diante de um dos componentes da produção cultural e linguística da

sociedade contemporânea em um contexto urbano, imerso em uma intensa

relação com a tecnologia. Se há um fenômeno inevitável nas dimensões

cultural e artística contemporâneas é o advento da sofisticação das

máquinas, não somente na produção das obras de arte, mas também na sua

exposição, divulgação e distribuição.

A evolução da tecnologia computacional ocorrida nas últimas

décadas mudou de forma significativa a forma como a arte é consumida, e

dessa forma, alterou também a maneira como ela se apresenta nas nossas

vidas. O lazer, o entretenimento, a informação, a educação e muitos outros

aspectos da vida contemporânea estão permeados pelos elementos estéticos

e pela influência das artes na constituição social e no condicionamento

como sujeitos pensantes da pós-modernidade.

Se hoje há uma preocupação com a liberdade e a autonomia social,

princípios imanentes da Modernidade liberal, muito se deve à relação

humana com as artes. A capacidade de abstração intelectual que permitiu à

humanidade apoderar-se do ideal liberal está associada à evolução estética,

originada no relacionamento com a natureza. Se pensarmos na arte como

um modo específico de compreensão da vida e do mundo, podemos atribuir

a ela um caráter nem sempre lógico e racional (HEGEL, 2001).

A concepção, interpretação e expressão artísticas são baseadas numa

sensibilidade de percepção da realidade, o que resultou numa busca por

autonomia e pela liberdade nos métodos criativos. De acordo com a ótica

hegeliana, este caráter autônomo e livre é o que compõe a arte, em oposição

à ciência como forma de compreensão do mundo. Hegel parte do

pressuposto que o potencial artístico é o fenômeno da realização espiritual

humana, conferindo a cada povo características distintivas, manifestações

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da consciência e do divino. O artista pode utilizar sua criação para

questionar/superar determinadas reflexões geradas por sua cultura e tempo.

O esforço deste trabalho se insere, portanto, no marco teórico do

pós-estruturalismo onde o conceito de resistência biopolítica pode ser

relacionado com a estética da biotecnologia1 operacionalizada pelos DJs da

Música Eletrônica de Pista (MEP). É possível, desta maneira, trazer uma

metáfora comportamental, onde a evolução da música é um reflexo da

forma como a sociedade se organiza ao longo do tempo. As reestruturações

do capital na sociedade repercutiram também na modificação da forma

como as pessoas respondem e se adaptam às tendências micropolíticas da

MEP.

O objetivo se encontra em trazer as contribuições teóricas e

acadêmicas em torno das discussões estéticas e artísticas, de modo a

estabelecer em quais circunstâncias a MEP traz repercussões políticas, e

desta maneira, a consolidação de como foi construída uma parte da cultura

jovem dos centros urbanos. A sociabilidade na pista de dança, a

comunicação entre ouvintes e artistas, e a evolução tecnológica tiveram

suas distintas contribuições para a evolução da cultura eletrônica, e o

presente trabalho procura ambientar cada uma e justificá-las em seus

contextos.

A monografia será dividida em capítulos que fortalecerão, um a um,

a consistência do argumento defendido. Haverá um capítulo de introdução,

quatro capítulos de desenvolvimento e um de conclusão.

                                                                                                               1 O conceito de biotecnologia ganha nova concepção a partir do advento da manipulação genética, em meados da década de 1970. A definição utilizada no presente texto será: “A Biotecnologia abrange hoje uma área ampla do conhecimento que decorre da ciência básica (biologia molecular, microbiologia, biologia celular, genética etc.), da cência aplicada (técnicas imunológicas e bioquímicas, assim como técnicas decorrentes da física e da eletrônica), e de outras tecnologias (fermentações, separações, purificações, informática, robótica e controle de processos). Trata-se de uma rede complexa de conhecimentos de ciência e tecnologia se entrelaçam e complementam (...) definida como uma atividade baseada em conhecimentos multidisciplinares, que utiliza agentes biológicos para fazer produtos úteis e resolver problemas” (MALAJOVICH, 2011) Portanto, no caso, estes agentes serão os DJs e produtores e os produtos o som gerado através da relação homem-máquina.

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O capítulo 1 de introdução, presente, apresenta o tema em sua

discussão geral.

O capítulo seguinte (2) abordará a relação entre música e estética a

partir da emergência da etnomusicologia. Tratará dos estudos que analisam

o confronto da música com a indústria cultural e das relações que se

estabelecem mediante o mercado musical e as práticas sociais de consumo e

produção. Aqui serão discutidas as formas de atuação da música no

contexto social e como elas se inserem nos objetivos humanos da produção

estética inaugurados pela arte moderna. Será apresentado também o marco

teórico utilizado nessa monografia.

No capítulo 3 será abordada a emergência da juventude como prática

política moderna e seus impactos estéticos.

O capítulo 4 será dedicado à Música Eletrônica de Pista (MEP), suas

cenas e práticas de questionamento e construção de identidades

transnacionais. O capítulo fornecerá uma análise da MEP com as

realizações rituais, principalmente verificadas nas práticas juvenis em

espaços urbanos e festivos. Esta análise terá início na apresentação das

cenas de Detroit e Chicago, nos EUA, posteriormente nas do Reino Unido,

Londres e Manchester e por último na de Goa, Índia, e se orientará em

contextualizar cada momento e suas determinadas contribuições.

O capítulo 5 focará o papel do DJ como forma de autoridade

transnacional, mediante sua atuação e inovação como maestro da máquina

social estabelecida pelos adeptos da cultura conhecida como underground e

mainstream. Nesta parte será analisado como a funcionalidade do elemento

performático do DJ se insere num discurso político e, portanto, na forma

como o movimento cultural específico da cena underground se insere numa

vontade de subversão da ordem trazida pela mercadorização da MEP.

Por fim, o capítulo 6 concluirá a monografia. O capítulo retomará o

argumento central, traçando um resumo do que foi apresentado. Ainda

tratará das linhas gerais para discussões futuras sobre o fenômeno da MEP e

suas repercussões políticas e sociais.

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Ademais, seguirão as referências bibliográficas e setlist em anexo. O

setlist, gravado por mim, tratará de trazer à tona as principais obras citadas

ao longo do texto, em uma mixagem que tem como objetivo reafirmar a

utilização dos sons com a funcionalidade procurada nas pistas de dança. A

história a ser contada ao longo dele possui a pretensão de ilustrar

sonoramente as ambiências, melodias e timbres alcançados pelos artistas há

tantos anos e que ainda inspiram tudo que é criado no ambiente musical

eletrônico. A intenção é provocar reações, por mais distintas que elas

possam ser.

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2. Modernidade e Estética

A música é uma das mais relevantes forças motrizes da produção

cultural contemporânea. É elemento essencial para capturar os aspectos

sociais dos centros urbanos, cada vez mais interconectados em um contexto

de relativização das fronteiras via processos de globalização. A música

contemporânea, em seu contexto de assimilação pós-Rock que vem

ocorrendo nas últimas décadas permite traduzir uma sociedade permeada

pela linguagem e comunicação musical:

“A multiplicidade de linguagens no interior da própria música chamada culta e acadêmica vinha reforçar a já radicada convicção de que a linguagem musical era plural, isto é, um produto simultaneamente histórico e social, e de que a variedade de estilos, modos, formas e abordagens tão diversas não tinha muito a ver com as diferentes situações de cada país, de cada zona geográfica, de cada tradição e, segundo uma visão marxista, com a classe social dominante. Contudo, se o pluralismo permanece ainda uma ideia muito em voga, não podemos deixar de salientar que nestas últimas décadas a tendência na música, e não só, foi na direção oposta e não é por acaso que hoje se fala tanto de globalização em outros campos para além do campo econômico. No espaço de poucos anos deu-se um impulso unificador, pelo que, pondo entre parêntesis as retaguardas (ou seja, o que permanecia associado a posições aparentemente superadas e fora de moda), as vanguardas tendiam de fato para a unificação das linguagens” (FUBINI, 2003, p.63)

Na história da música, do século XVIII até os dias atuais, há um

processo pendular. Em certas épocas prevalece uma tendência para uma

dinâmica de universalização e em outras verifica-se uma tendência mais

diversificada, onde são focadas descobertas e o enaltecimento dos

particularismos de cada sociedade. Nas épocas de individualidade criativa,

havia clara tendência de imposição de estilos e de estruturas sonoras, o que

acarretava na produção de uma narrativa que valorizava o produto próprio

de determinado povo como superior a outras criações contemporâneas. Esta

narrativa inevitavelmente produzia uma ideia de determinada linguagem

como um feito associado ao mais absoluto nível de realização musical da

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civilização humana. O autor destaca, por exemplo, o Iluminismo na música

como sendo dominado pelo imperialismo vianense (Ibid., p. 62).

Tal ideia de pertencimento da estética musical culminou no

desenvolvimento da etnomusicologia2, onde a história da música ocidental

eurocêntrica foi aberta a outras culturas, o que enriqueceu a pluralidade da

qual tanto se apoderou futuramente.

A partir da abordagem trazida pelo autor, é possível afirmar que a

sofisticação da técnica perante o processo criativo alargou o processo de

transculturação e de inclusão de novos mecanismos estéticos. Segundo ele,

“...além do aumento vertiginoso das mudanças culturais ao intensificar-se a informação a todos os níveis, devemos ter em conta, no âmbito deste processo, a uniformização dos instrumentos musicais, bem como a importância da difusão da música eletrônica e do uso do computador. Este último fenômeno deu um novo impulso à criação de uma linguagem musical que, mais do que universal no sentido clássico da palavra, é, poderíamos dizer, internacional” (Ibid., p. 64).

É possível apontar uma universalização da linguagem musical ao ser

incorporada a linguagem eletrônica numa comunicação que pressupõe

centros urbanos cada vez mais interconectados num contexto

interlinguístico, multicultural e tecnológico, verificado principalmente no

espaço da juventude ocidental.

A relação de dependência tecnológica vivenciada pelo homem ao

longo do século XX em muito dialoga com as motivações estéticas da

expressão artística musical moderna. Seja como fonte inspiradora ou como

recurso técnico, o fato é que o condicionamento tecnológico provocou um

intenso afastamento relacional do homem com a natureza, ambiente onde a

espécie humana teve, nos primórdios, seu comportamento e pensamento

                                                                                                               2 Para Fubini “Spencer, Darwin, Wallaschek, Combarieu, Gurney ocuparam-se dessa questão obviamente insolúvel do ponto de vista científico, mas relevante do ponto de vista filosófico. As teorias evolucionistas de Darwin e Spencer, os conceitos de ritmo vital, de energia psíquica e da sua força de expansão estão na base dos estudos sobre a origem da música e da expressão musical. A par dessa orientação de estudos são igualmente importantes as investigações sobre a acústica e fisiopsicologia dos sons, conduzidas sempre com a expectativa de poder esclarecer e explicar a realidade musical através de uma análise rigorosamente científica” (Ibid., p. 131-130).

13    

lapidados. A convivência humana com a máquina fez a sociedade

mergulhar numa realidade revelada pela utilização de objetos técnicos

(SIMONDON, 2007). Tal relação acabou por desenvolver-se tão

dependente que a “própria expressão plena da cultura não se efetiva sem a

incorporação positiva dos objetos técnicos no plano da sua representação”

(SIMONDON, apud FERNANDES WEBER, 2012, p. 5).

Uma percepção explícita da relação homem-instrumento é vital para

compreender a autocracia despertada pela utilização da tecnologia. As

máquinas funcionam graças a um gesto humano depositado, ou seja, antes

de mais nada, um fenômeno mental que concebeu-as de maneira a

representar para si mesmo seu funcionamento um número limitado de vezes

(SIMONDON, 2007). A máquina perpetua numa atividade determinada

operação humana que a constituiu e através desta construção é cumprida a

passagem de um funcionamento mental a uma tarefa física (Ibid.). Ambos

os funcionamentos são paralelos, não na vida cotidiana mas na invenção,

devido ao dinamismo do funcionamento vivido, produzido enquanto

captado em sua geração. Desta maneira, há uma relação de isodinamismo3,

de analogia dinâmica e, portanto, o funcionamento físico da máquina,

apesar de afastar-se do funcionamento mental do homem, o reproduz

(Ibid.). Há a necessidade de compreender o lado das máquinas, de como

elas se relacionam com o homem, além da maneira de como nos

relacionamos com ela:

“El nacimiento de una filosofia técnica en el nível de los conjuntos sólo es posible a través del estudio profundizado de las regulaciones, es decir, de la información. Los verdaderos conjuntos técnicos no son aquellos que utilizan individuos técnicos, sino aquellos que son un tejido de individuos técnicos sin ponerlos en relación de información sigue siendo una filosofía del poder humano a través de las técnicas, no una filosofía de las técnicas. Se podría nombrar filosofía autocrática de las

                                                                                                               3 De acordo com Simondon, “el dinamismo del pensamiento es el mismo que el de los objetos técnicos; los esquemas mentales actúan unos sobre otros durante la invención como los diversos dinamismos del objeto técnico actuarán unos sobre otros en el funcionamiento material” (Ibid., p. 79).

14    

técnicas a aquella que toma el conjunto técnico como un lugar en el que se utilizan las máquinas para obtener poder. La máquina es solamente un medio; la finalidad es la conquista de la naturaleza, la domesticación de las fuerzas naturales por medio de una primera servidumbre: la máquina es un esclavo que sirve para hacer otros esclavos. Una inspiración de ese tipo, dominadora y esclavista, puede toparse con una petición de libertad para el hombre. Pero es difícil libertarse transfiriendo la esclavitud a otros seres, sean hombres, animales o máquinas; reinar sobre un pueblo de máquinas que convierte en siervo al mundo entero sigue siendo reinar, y todo reino supone la aceptación de esquemas de servidumbre” (Ibid., p. 144)

Portanto, não há uma oposição entre cultura como humanidade e

técnica como desumanizadora, mas complementariedade. Para Simondon,

“os objetos técnicos são mediadores tecnológicos entre a natureza e o homem. O que daí resulta? A explosão da identidade e a instauração da diferença (...) Assim sendo, o ensino refletido da técnica operaria uma verdadeira reforma da cultura ao mostrar, por um ato de inteligência, que não há oposição entre os objetos técnicos e o homem, pois eles próprios não são em si, pois ambos resultam de um processo de mediação, de transdução, do qual a unidade está ausente ‘desde o princípio’” (SIMONDON apud FERNANDES WEBER, 2012, p. 7)

O conceito de transdução4 trabalhado por Simondon congrega, pois,

o sentido relacional de homem, natureza e objeto técnico com o processo no

qual cada um torna-se indivíduo e é no processo de individuação que reside

a melhor forma de compreender como estes agentes afetam-se entre si.

O uso da tecnologia implica transcender os materiais ou recursos

utilizados para garanti-lo. O emprego da racionalidade via uso de

ferramentas apresenta o conhecimento como elemento básico da evolução

tecnológica. Quando instrumentalizados de modo correto, as partes de uma

                                                                                                               4 Nas palavras do filósofo: “la transducción tiene algo de transmisión y otro tanto de traducción, algo de un desplazamiento en el espacio y en el tiempo y otro tanto de paso de un registro a otro; sólo que se trata de un transporte donde lo tranportado resulta transformado. Para Simondon, la transducción es ‘la individuación en progreso’, lo que preside las sucesivas transferencias de los mundos físico, vivo, psíquico, colectivo y artificial, con todo lo que ello supone si se considera la variedad de substancias implicadas en este entrelazamiento universal” (SIMONDON, 2007, p. 13).

15    

invenção produzem um efeito mágico (KURZWEIL, 2000, p. 65) que vai

além de suas especificades parciais:

“The same phenomenon of transcendence occurs in art, which may properly be regarded as another form of human technology. When wood, varnishes, and strings are assembled in just the right way, the result is right way, there is magic of another sort: music. Music goes beyond mere sound. It evokes a response-cognitive, emotional, perhaps spiritual-in the listener, another form of transcendence. All of the arts shared the same goal: of communicating from artist to audience. The communication is not of unadorned data, but of the more important items in the phenomenological garden: feelings, ideas, experiences, longings. The Greek meaning of tekhnē logia includes art as a key manifestation of technology” (Ibid., pp. 66-67)

A interação tecnológica num ambiente cada vez mais eletrônico

modifica o contato com a produção da obra de arte, gerando novas formas,

imagens, sons. Antigas formas de expressão através das técnicas

tradicionais passadas de geração a geração para produzir arte diluem-se no

conhecimento de técnicas computacionais que permitem um avanço maior

no relacionamento com a máquina. O contato direto com a obra articula

motivação artística e intelectualidade mecânica. A circulação de

informações é possibilitada por interfaces cada vez mais dinâmicas e a arte

deixa de ser produto meramente expressivo de determinado artista para

consolidar-se como evento comunicacional (DOMINGUES, 1997, p.20).

No limiar das formas de arte em contato com a evolução das

máquinas, a música torna-se fundamental na instrumentalização humana do

objeto em prol da estética. Com conhecimento inserido em sistemas

digitais, estes colaboram intensamente com formas humanas de produzir

arte: “this trend is furthest along in the musical arts. Music has always used

the most advanced technologies available” (KURZWEIL, 2000, p. 515).

A tendência humana, ao longo da história da música, de apropriar-se

de cada ciclo de inovação tecnológica, reafirma-se ainda mais após a

16    

eletrônica analógica dos anos 19605. A relação música-tecnologia passa a

ter um papel de intensa co-constituição, inserida num fluxo de informação

próprio e, de engenheiros a músicos, nascem as primeiras formas de

material digital inspiradas na música tradicional. A exigência para a

produção musical passa a ser não mais apenas o domínio das técnicas de

tocar instrumentos, mas o domínio da tecnologia.

(Fig. 1: o Theremin; Fig. 2: Robert Moog e os sintetizadores de 19605)

Minha monografia encontra seu problema de pesquisa no contexto

das primeiras composições inteiramente eletrônicas, no rompimento com a

vigência musical já estabelecida. É no cenário de assimilação urbana pós

Rock n’Roll, no surgimento dos primeiros compositores de música

                                                                                                               5 O primeiro instrumento sintetizador foi inventado pelo físico russo Lev Termen em 1919, conhecido como Theremin: “Two antennas protrude from the theremin – one controlling pitch, and the other controlling volume. As a hand approaches the vertical antenna, the pitch gets higher. Approaching the horizontal antenna makes the volume softer. Because there is no physical contact with the instrument, playing in a precise melodic way requires practiced skill and keen attention to pitch” (JASON, 2005). No entanto, a precisão e confiabilidade em um sintetizador só foi alcançada em 1964, quando Robert Moog criou o Moog, que “like the theremin, the new machine used two oscillators to create a loop of feedback that ping-ponged pitches back and forth. The ‘Moog’ then used subtractive synthesis to turn this complex waveform into a sawtooth, triangle, pulse or sine wave – each with its on distinctive sound” (LICHTER-MARCK, 2012). Apesar de monofônico, o instrumento permitia uma relação mais adaptável com a máquina que o Theremin e inaugurou inovações de controle usadas até hoje na produção de música eletrônica como os envelopes Attack-Decay-Sustain-Release (ADSR): “a generator that allowed the user to control each sound’s onset, intensity and fade” (LICHTER-MARCK, 2012).

17    

eletrônica e dos primeiros Disc Jockeys6, que o presente trabalho está

inserido. A partir deste contexto, a linguagem musical eletrônica começa a

afirmar-se e apresentar suas particularidades e seu fluxo de comunicação.

Antes, portanto, de ambientar o tema nas cenas recortadas para exemplificar

e reforçar a aplicação e repercussão das virtualidades da função do DJ, é

útil situar alguns pontos.

2.1 – Estética em confronto com o mercado

Exatamente por se mostrar tão útil e tão consumível, Theodor

Adorno inaugura o conceito de estética idealista, no seu livro “Indústria

Cultural e Sociedade” (ADORNO, 2002). Para o autor, a arte no seu

confronto com a burguesia funciona como uma inutilidade para as

finalidades demarcadas pelo mercado. Há aqui, uma inversão do que

deveria resultar-se do consumo da arte, ponto que tornou-se decisivo para a

compreensão da fetichização observada na arte moderna: “adequando-se

por completo à necessidade, a obra de arte priva por antecipação os

homens daquilo que ela deveria procurar: liberá-los do princípio da

utilidade” (Ibid., 36). Desta maneira a redefinição se dá quando “aquilo que

se poderia chamar o valor de uso na recepção dos bens culturais é

substituído pelo valor de troca, em lugar do prazer estético penetra a ideia

de tomar parte e estar em dia; em lugar da compreensão, ganha-se

prestígio” (Ibid.). A demanda por entretenimento orienta a indústria

cultural, onde o consumidor vira aspecto funcional da estimulação

econômica. O caráter de mercadoria da arte é inserido na lógica da

produção industrial, onde o lucro fundamenta seu princípio exclusivo, e não

mais a sua intenção.

                                                                                                               6 Apesar de para ser essencialmente um DJ a necessidade básica é de ter um bom senso de tempo e habilidades técnicas, há a convicção do que separa os experts na arte de fazer pessoas dançarem. Para Brewster e Broughton: “There are many degrees of technical and emotional artistry which can be added to the basics. Popular understanding of great Djing usually concentrates on the technical espects: incredibly smooth mixes, fantastically fast changes, mixing with three decks, clever Eqing, plugging in some fancy sampling equipment” (BREWSTER e BROUGHTON, 1999, p. 11).

18    

Há, na transição para a sociedade dominada pela classe burguesa,

uma reorientação pela valorização do trabalho, o que fornece condições

para a transformação das condições históricas. O reconhecimento de

nenhum outro valor que não derive da exploração do trabalho resulta numa

modificação da própria natureza humana e extrai dela a sua produtividade

(DEBORD, 2005). A instauração de um tempo irreversível da economia

burguesa confere uma unificação mundial em torno de uma realidade regida

sob este mesmo tempo.

“O tempo irreversível da produção é, antes de tudo, a medida das

mercadorias”, e por conseguinte, ele é o do “mercado mundial, e

corolariamente o do espetáculo mundial” (Ibid.). Guy Debord afirma, desta

maneira, que esta orientação da sociedade capitalista passa a ser permeada

essencialmente por uma espetacularização, uma representação fetichizada

do mundo dos objetos e das mercadorias, glorificando o reino da aparência.

Este espetáculo, por assim dizer, é uma relação social entre pessoas

mediada por imagens, resultando numa cosmovisão, proveniente do projeto

capitalista de um modelo de vida do consumo. A dominação autônoma do

processo de troca fabricou as condições de reconhecer e dirigir o uso

humano, reduzindo-o à sua mercê.

O espetáculo é concentrado em torno de um capitalismo burocrático,

que garante a imposição no controle de todos os aspectos da vida:

“A ditadura da economia burocrática não pode deixar às

massas exploradas nenhuma margem notável de escolha, visto

que ela teve de escolher tudo por si própria, e que toda outra

escolha exterior, quer diga respeito à alimentação ou à música,

é já a escolha da sua destruição completa. Ela deve

acompanhar-se de uma violência permanente. A imagem

imposta do bem, no seu espectáculo, recolhe a totalidade do

que existe oficialmente e concentra-se normalmente num único

homem, que é a garantia da sua coesão totalitária. Com esta

vedeta absoluta, deve cada um identificar-se magicamente, ou

desaparecer. Pois trata-se do seu não-consumo, e da imagem

19    

heróica de um sentido aceitável para a exploração absoluta,

que é na realidade a acumulação primitiva acelerada pelo

terror” (Ibid., p. 65)

A difusão do espetáculo, portanto, permeia no inconsciente humano,

nas suas mais intrínsecas escolhas, através da própria oferta das

mercadorias, que se justifica em nome da grandeza da produção dos

objetos. Tal compreensão pode nos fornecer inclusive a motivação pela

qual muitas pessoas entram em contato com a música eletrônica, que dilui-

se numa linguagem mais ampla de sincronismo digital, de interação

midiática com o que está acontecendo de mais novo e moderno, como a

exemplo da televisão, do rádio e da internet. Quem está em contante contato

com estas mídias muito provavelmente já ouviu uma trilha sonora

eletrônica. No entanto esta possibilidade, apesar de soar natural, parece

ilegítima se comparada à orientação original de como a MEP foi

inaugurada, como veremos adiante no capítulo 4, e que será retomada na

constituição moderna das suas estruturas culturais, no capitulo 5.

2.2 – Estética e sensorialidade

Retomando a perspectiva de Hegel podemos conferir à experiência

estética uma finalidade “que reside no interesse satisfeito de sentimentos e

paixões e, consequentemente, do comprazimento, diversão e deleite que

sentimos com objetos artísticos, com sua exposição e efeito” (HEGEL,

2001, p. 69). Esta é a explicação, para o autor, do caráter autônomo que a

arte goza, a partir da verificação dos seus impactos na sociedade.

Pressupondo que a manifestação da cultura através do tempo preza por sua

evolução e superação, podemos então articular o aspecto da técnica ao

potencial criativo da produção estética. A compreensão do método

tecnológico é determinante para a compreensão e interpretação do

significado da obra, e uma das razões pela qual orienta-se a evolução da

20    

relação humana com o potencial criativo. Esse é o fundamento da crítica de

Adorno às artes na sociedade industrial:

“O nome estético para o domínio do material, técnica, termo herdado do uso antigo que situava a arte entre as atividades artesanais, é de data recente no seu atual significado. Veicula as características de uma fase em que, por analogia com a ciência, o método surgia como independente do seu conteúdo. Todos os procedimentos técnicos artísticos que formam o material e se deixam guiar por ele se agrupam retrospectivamente sob o aspecto tecnológico, e também aqueles que ainda não estavam separados da práxis artesanal da produção medieval dos bens de consumo com a qual a arte, por resistência à integração capitalista, nunca rompera inteiramente” (ADORNO, 1970, p. 240)

Podemos considerar, diante da perspectiva trazida por Adorno, a

evolução da técnica artística até o domínio da tecnologia computacional,

atingido só em décadas recentes. Não obstante, não é possível separar esta

tendência do caráter artesanal, que remonta às origens primitivas do

exercício da imaginação artística. A música eletrônica contemporânea7,

desta forma, está associada à experiência humana ao longo da história da

música, tanto na produção – centrada mais ainda no aspecto tecnológico –

como na reprodução e na expressividade. É possível constatar o aspecto

político (quiçá progressivo) contido na linguagem da arte moderna.

Centrada numa comunicação orientada pela liberdade social, a

modernização da produção estética afirma-se quanto à sua relevância e

posições políticas, por isso é consumida e valorizada. Para Adorno:

“A ponta que a arte volta para a sociedade é, por seu turno, algo de social, reação contra a pressão opaca do ‘corpo social’; tal como o progresso intra-estético, progresso das forças produtivas, especialmente da técnica, está ligado ao progresso das forças produtivas extra-estéticas. Por vezes, forças produtivas esteticamente libertadas representam a libertação real, que é impedida pelas relações de produção. Obras de arte organizadas pelo sujeito podem realizar tant bien que mal o que a sociedade organizada sem sujeito não permite; o urbanismo coxeia já necessariamente no seguimento

                                                                                                               7  Refiro-me aqui ao seu conceito mais abrangente, que engloba as técnicas de produção musical mediadas pela interferência eletrônica nos instrumentos e pela computação, ou seja, raros seriam os estilos e as produções atuais que escapariam dele.

21    

do projeto de uma grande obra desinteressada. O antagonismo no conceito de técnica como de algo intra-esteticamente determinado e de um desenvolvimento exterior às obras de arte não pode conceber-se de modo absoluto. Surgiu historicamente e pode desaparecer. Hoje em dia, é já possível, na eletrônica, produzir artisticamente a partir da natureza específica de meios de origem extra-artística. O salto qualitativo é evidente entre a mão que desenha um animal na parede da caverna e a câmera, que permite o aparecimento simultâneo das imagens em inúmeros lugares. (…) Toda a obra, enquanto destinada a uma pluralidade, é já, segundo a ideia, a sua reprodução” (Ibid., p. 46).

É possível, portanto, aferir o aspecto progressista da consciência que

dialoga com as experiências do homem com a evolução tecnológica, e com

os reflexos políticos que resultam desta relação, porque, para o autor “nada

pode esquivar-se à experiência da situação, também nada conta que atue

como ela se subtraísse” e ainda, “o seu próprio comportamento” (da arte

moderna) “e a sua linguagem formal devem reagir espontaneamente à

situação objetiva” (Ibid., p. 47). Desta maneira, o filósofo confere a

inevitabilidade como o progresso das forças produtivas extra-estéticas, ou

seja, de dominação da tecnologia no processo de fortalecimento dos

ditames do capital, se relaciona com a formação intra-estética de cada

indivíduo.

A análise da monografia enfoca práticas estéticas por parte de um

sujeito – a juventude – no espaço urbano contemporâneo.

22    

3. Espaços urbanos e festivos: juventudes transnacionais

De modo a estabelecer os parâmetros da minha análise da música

eletrônica contemporânea, recorro ao trabalho do antropólogo Massimo

Canevacci, que dedicou seus estudos à tentativa de capturar a essência das

mutações juvenis nos corpos das metrópoles, como os jovens atravessam

estes espaços de interação, e como são atravessados por eles. O autor

procura observar as características deste corpo social alterado por intensas

dinâmicas midiáticas que não mais se apresentam como opcionais ou

selecionáveis, mas como fluidos trânsitos comunicacionais de culturas

juvenis. O antropólogo propõe o fim do caráter nacional (entendido como

“cultura”) mobilizando o conceito de “subcultura”:

“O conceito de caráter nacional não consegue unificar uma complexidade que não é unificável, ao contrário, é diferenciável. Não pode conferir ordem a uma desordem que é móvel. O conceito de cultura como algo global e unificado, complexo e identitário, que elabora leis universais, dissolveu-se seja debaixo dos golpes da nova antropologia crítica... pela difusão de fragmentos parciais que não aspiram mais a ser unificados, mas que reivindicam, vivem e praticam parcialidades extremas, irredutíveis diferenças” (CANEVACCI, 2005, p. 18)

O prefixo sub contido em “subcultura” não indica um conceito

inferior, mas “que aspira a uma maior neutralidade científica” (Ibid.);

subordina “...cada segmento de cultura dentro de uma cultura mais

ampla”. O autor justifica seu argumento afirmando que:

“não existe mais (se é que alguma vez existiu) um “acima”, mas um “através de” – ou melhor, muitos “através”: atravessar os segmentos, as parcialidades, os fragmentos do eu e do outro. Transitar os “eus” e os outros. Particularmente para as pluralidades dos universos juvenis que não são passíveis de serem encerrados nas gaiolas das subculturas. São pluriversos.” (Ibid., p. 19)

A partir de tal concepção de isolamento hierárquico, a análise se foca

no conceito do interminável, das culturas intermináveis. O que antes só

podia ser experimentado por aristocratas ociosos ou proporcionado pela

23    

fortuna burguesa, passou a ser dividido por mais classes sociais, na medida

em que a mídia oferecia uma nova forma sensível, sexual e comportamental

de experimentar a vida, seus valores e seus conflitos. Algo particularmente

perceptível na inovação contemporânea do jovem como faixa etária, o que

não acontecia antigamente, quando havia a transição direta da adolescência

para a fase adulta, do trabalho:

“A metrópole se difunde como cenário panorâmico repleto de signos e sonhos (mediascape). O cruzamento desordenado e intrigante desses três fatores constitui o terreno autônomo, inovador, conflituoso no qual se constrói a categoria sociológica de “jovem”. Os jovens como faixa etária autônoma da modernidade nascem entre fios que os ligam à escola de massa, à mídia, à metrópole” (Ibid., p. 23)

Ao longo do século XX é observada uma lenta transição,

transformação da consciência do que a juventude abarca ou não. O mundo

do trabalho está longe desta faixa etária, ao passo que ao ser jovem implica

mudança definitiva, passagem unidirecional e irreversível para a vida

adulta. É na juventude que o autor destaca a principal diferença econômica

em termos estéticos. O jovem é tal porque consome, enquanto o adulto

produz. Na sociedade do consumo, o jovem adquire um papel central que se

expande concentricamente para toda a sociedade:

“Na emergência desordenada e descomposta da sociedade do consumo, todos os olhares convergem para uma condenação sem apelo: hedonismo, narcisismo, relaxamento, superficialidade. A produção salva a alma; o consumo é sua danação. A produção é o anjo que abandona os escombros da existência e os resgata. O consumo é o anjo decaído que afunda na danação do prazer, do vistoso, do supérfluo. Na produção, o sujeito é classe; no consumo o indivíduo é de massa. Na primeira, ele é alienado e revolucionário; na segunda, é homologado e apaziguado” (CANEVACCI, 2005, p. 23-24).

Como nunca visto antes na história de forma tão clara e radical,

jovens provindo de todas as classes sociais libertam-se do compromisso

produtivo e podem entregar-se ao consumo. Como já percebido por Walter

Benjamin, a mídia levada a exposições universais ascenderam as

24    

mercadorias ao fluxo de comunicação, esfera onde os conflitos já existentes

duplicam-se. Além do valor no sentido econômico, as mercadorias agora

produziam valores como estilos, visões e esquemas de comportamento,

onde os “novos espaços do consumo se transfiguram em espetáculo a fim

de capturar as consciências ou, ao menos, os comportamentos” (Ibid., p.

25).

São nos espaços de interação da juventude que legitima-se o

conceito do “interminável”, para Canevacci. É no prazer pelo “sentido

proibido” que o jovem interminável cristaliza seu comportamento extremo.

As rodovias, pontes, túneis da cidade não são vividos como espaços

corporais do trânsito e da movimentação, mas como objetos últimos do

“extremo estável”, que representa uma prática desconexa que reproduz um

modelo sedentário, estático, fortemente identitário e arraigado. É o oposto

do conceito do “eXtremo” multiidentitário e desterritorializado, rumo ao

interminável, trabalhado pelo autor. Aqui este extremo estável dos

caminhos urbanos representa o prazer potencial da viagem no horror de

permanecer. O limiar entre prazer e horror distingue os que ficam reclusos

em seus mundos circunscritos, limitados, e os que libertam-se no atravessar

móvel rumo a caminhos eXtremos. Se há um medo que acomete estes

jovens intermináveis é o de viverem como jovens estáveis do extremo:

“Nesses comportamentos extremos é o prazer dos sentidos que é proibido. O que se deseja e que se introjeta é a proibição dos sentidos, sua mutilação. Dessa forma, a estrada torna-se metáfora distorcida do corpo: pois não se pode distorcer o corpo deles; em não se conseguindo explorar módulos infratores ou irregulares, a estrada torna-se prolongamento do eu, torna-se asfalto do eu, um eu-asfaltado” (Ibid., p. 51).

Nos termos supracitados, concepções alternativas de identidade

emergem em espaços transnacionais globalizados. Menos ligada ao controle

de corpos através de práticas tradicionais associadas com a força física,

mais interessada em estímulos sensoriais – colocar corpos em movimento

no espaço fluido das subjetividades urbanas jovens contemporâneas,

mobilizando desejos através das escolhas das mentes/corpos. Abordaremos

25    

a seguir a Música Eletrônica de Pista (MEP) e a figura seminal do Disc

Jockey (DJ).

26    

4. A Música Eletrônica de Pista e a produção de identidades 4.1 – Música Eletrônica de Pista

Partindo das mais recentes manifestações do progresso do domínio

da tecnologia na música, salta aos olhos a importância do conceito da

“música eletrônica de pista” (MEP) ladeado pela figura/persona do DJ (disc

jockey) no tensionamento do espaço urbano contemporâneo. Tal narrativa é

“...aquela que parte das experiências de DJs negros, homossexuais, imigrantes ou drogados com a Disco e o Hip Hop nos Estados Unidos dos anos 70, passa pelo desenvolvimento do House e do Techno ao longo dos anos 80 e chega até o fenômeno global das raves nos anos 90. O que caracteriza este tipo de narrativa é a ênfase na dinâmica coletiva de produção, distribuição e consumo da música eletrônica, no fato de que ela é produzida por grupos sociais específicos, em contextos específicos e para fins específicos, geralmente marcados pelo espírito de resistência e celebração de minorias e indissociáveis da marginalidade social, estados alterados de consciência, atividades ilegais, homossexualismo etc.” (FERREIRA, 2006, p. 22)

Não é possível contar a história da MEP sem levar em conta os

responsáveis pelo seu impulso social. Desde sua origem, os que sustentaram

a dance music e o hip hop foram gays e negros. Não coincidentemente

“...as primeiras discotecas no início dos anos 70 deram à comunidade gay um lugar onde podiam expressar e vivenciar sua própria sexualidade longe da repressão social. […] Assim como a música Disco, a House emerge de uma cena de clubes negros e/ou gays […] e a cultura dos clubes pode ser vista como o produto de uma estética gay” (PORSCHARDT, 1998, p. 111).

Considerando o ambiente estético dos clubes e discos, onde se

questionava a imposição de uma condição social lá fora, começamos a

mapear o conteúdo político da linguagem musical eletrônica.

27    

Para adentrar no contexto urbano da celebração da música eletrônica

é útil trazer à tona as primeiras cidades que começaram a ter grandes

reuniões/festas/celebrações propagando esta cultura.

Quando se trata do pioneirismo na utilização de sintetizadores e

elementos estritamente elétricos para compor uma faixa, a música elaborada

inteiramente via máquinas foi inaugurada pelo grupo proveniente de

Dusseldorf conhecido como Kraftwerk. A história do início da música

eletrônica é contada pelo seu subgênero Techno, como ficou conhecido o

som produzido pelo grupo alemão. Seus loops futurísticos foram

influenciados por diversas bandas de rock da época, incluindo algumas da

região da cidade de Detroit, nos EUA, como MC5 e The Stooges, esta

última, por sua vez teve seu rock adrenalizado e insurgente inspirado pelo

incessante ritmo metálico das fábricas de automóveis da “Motor City”.

“Kraftwerk were also inspired by the mantric minimalism and non-R & B rhythms of the Velvet Underground. Replacing guitars and drums with synthesizer pulses and programmed beats, Kraftwerk sublimated the Velvets’ white light/white heat speed-rush into the cruise-control serenity of motorik, a metronomic, reagular-as-carburettor rhythm that was once post-rock and proto-techno. ‘Autobahn’ – a 24-minute hymn to the exhilaration of gliding down the freeway that sounded like a cyborg Beach Boys – was (in abbreviated form) a chart smash throughout the world in 1975. Two years later on the Trans-Europe Express album, the title track – all indefatigablegirder-beats and arching, Doppler Effect synths – segues into ‘Metal On Metal’, a funky iron foundry that sounded like a Luigi Russolo Art of Noises megamix for a Futurist discotheque” (REYNOLDS, p. 3, 2012).

A década de 1970 passou e enquanto em Nova York perdurava o Hip

Hop seguindo uma linha Funk, o ritmo vanguardista do Kraftwerk produzia

grande impacto na cidade de Detroit, onde o grupo alemão foi

reinterpretado no contexto de uma geração de negros de classe média. Deste

contexto nasceu o grupo Cybotron, formado pelos Belleville Boys – Juan

Atkins, Derrick May e Kevin Saunderson.

28    

(Fig. 3: Juan Atkins)

4.2 – O Techno de Detroit: Belleville Boys

Provenientes de Belleville, uma pequena cidade a 50km de Detroit,

os Techno Rebels, como acabaram ficando conhecidos, eram negros e filhos

e netos de uma geração de operários das indústrias de automóveis. Apesar

do ainda intenso racismo, uniões de trabalhadores como a United Auto

Workers colocavam trabalhadores, negros e brancos, em pé de igualdade,

lutando por salários e condições de trabalho melhores. Os integrantes do

Cybotron pertenciam a uma geração de jovens negros acostumada com esta

influência, e a veia artística Atkins atribui em parte à tentativa de

distanciarem-se das crianças que cresciam em zonas mais pobres, nos

guetos (REYNOLDS, 2012).

Na parte oeste de Detroit ficava a população mais rica, mais

consumista, interessada em padrões mais elevados de moda, expressados

através de revistas como a GQ8 e filmes da época. Nesta região também

haviam jovens negros que misturavam-se e, em meio a ascensão do Techno,

uma expressão dessa eurofilia era representada por clubes e dance music.

Mas o movimento forte do início da década de 1980 não era o de nightclubs

como em outras cidades norte-americanas, mas festas organizadas por

                                                                                                               8 Gentlemen’s Quarterly, revista masculina lançada em 1931 abrangindo assuntos da moda e do mundo fashion.

29    

clubes sociais das high-school de Detroit. Estes clubes eram obcecados por

ser anti-GQ e alugavam espaços e promoviam festas, onde ouvia-se Disco

italiana, como a de Giorgio Moroder e outros sons como Electro-funk de

Nova York (Afrika Bambataa) e Synth-pop europeu. Somado a este

movimento outro fator que modelou a cena eletrônica de Detroit foi o DJ de

rádio Charles Johnson, que tinha um show bastante popular na época que ia

ao ar toda noite na WGPR, a primeira rádio FM negra na cidade

(REYNOLDS, 2012).

Ao mesmo tempo em que os Techno Rebels aprenderam a mixar, no

início dos anos 1980, Detroit já contava com um gigante circuito de festas,

frequentemente organizadas em torno de conceitos, como todos usando uma

mesma cor de roupa, e a competição entre os DJs era acirrada. A comoção

social era forte e as pessoas realmente se preparavam para as festas, de

modo que as expectativas em torno de como mixava o DJ eram grandes e,

não sendo estas correspondidas, os presentes simplesmente saíam da pista

de dança. Foi sob esta pressão que os jovens de Belleville realmente

aprimoraram suas técnicas. May e Atkins contam que

“...construíram uma filosofia por trás do ato de girar discos. Nós sentávamos e pensávamos o que o cara que produziu a gravação estava pensando, e achávamos uma gravação que encaixasse nela, tanto que as pessoas na pista de dança compreenderiam o conceito” (Ibid., p. 7)

Eventualmente a cena social em torno das festas obteve tanto

sucesso que os jovens-GQ (jovens-consumistas) descobriram que um

elemento dantes indesejável ganhava insuspeita fama: os próprios garotos

do gueto em relação aos quais se definiam negativamente. Foi quando os

clubes começaram a colocar a frase “no jits” (“no jitterbug”, a gíria de

Detroit para rufião ou gângster). Foi quando a cena começou a autodestruir-

se, começaram a surgir pessoas armadas e brigas tornavam-se constantes,

até que em 1986 já estava moribunda (Ibid., p. 8).

No entanto o som frio e dominado por sintetizadores do Cybotron

popularizou-se rapidamente pela região, em paralelo ao então emergente

30    

Electro em Nova York. Seu primeiro single “Alleys Of Your Mind” lançado

por sua própria gravadora tornou-se um hit local da cidade de Detroit e

vendeu em torno de 15 mil cópias somente na cidade. Os próximos dois

singles deram-se ainda melhor, o que resultou num contrato do grupo com

uma importante gravadora de Berkeley, na Califórnia, chamada Fantasy.

A visão por trás das músicas do Cybotron tinham um foco específico

em Detroit, numa tentativa de captar a essência da transição que vivia a

cidade: do boom industrial à desolação pós-Fordista, de capital norte-

americana de manufatura de automóveis à capital norte-americana do

homicídio. Com o declínio da indústria automobilística e a decadência dos

doravante seguros distritos de classe média negra, o centro de Detroit

tornou-se uma cidade fantasma.

Neste contexto de domínio da paranoia e da desolação, o grupo

Cybotron realizava seu comentário social, num esforço em estabelecer sua

visão futurística. Atkins e May atribuem aos devaneios do Detroit Techno à

desolação de uma cidade, a qual May descreve em termos de um tipo de

privação sensório-cultural: “É o vazio na cidade que coloca a inteireza

dentro da música. É como uma pessoa cega que pode cheirar, tocar e sentir

coisas que uma pessoa com olhos nunca poderia perceber” (Ibid., pp. 11-

12).

No entanto, o Detroit Techno chamou a atenção do mundo

indiretamente, como um adjunto à cena House de Chicago.

4.3 – O House de Chicago: negros, gays, redenção na dancefloor

Em Chicago, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, em

meio ao fervor dos nightclubs, um especificamente começou a tornar-se

mais polêmico. No prédio de uma antiga fábrica de três andares na zona

industrial da desolada região oeste da cidade funcionava o clube

Warehouse, frequentado majoritariamente por gays e negros. O DJ

residente Frankie Knuckles compara o clube com uma igreja, que oferecia

31    

esperança e salvação àqueles que tinham poucos lugares para ir, onde havia

a promessa do esquecimento dos problemas terrenos e fuga para um lugar

melhor, além de liberdade e jornadas de redenção e descobertas. Tudo isso

através da dança (BREWSTER e BROUGHTON, 1999, p. 292):

“House music takes its name from an old Chicago night club called The Warehouse, where the resident DJ Frankie Knuckles, mixed old disco classics, new Eurobeat pop and synthesized beats into frantic high-energy amalgamation of recycled soul. Frankie is more than a DJ; he is an architect of sound, who has taken the art of mixing to new heights. Regulars at the Warehouse remember it as the most atmospheric place in Chicago, the pioneering nerve-center of a thriving dance music scene where old Philly classics by Harold Melvin, Billy Paul and The O’Jays were mixed with upfront disco hits like Martin Circus’ “Disco Circus” and imported European pop music by synthesizer groups like Kraftwerk and Telex” (COSGROVE, 1988)

Primeiramente o Warehouse era visto pela cena de clubes de

Chicago como um clube marginal, já que era um clube para gays negros, de

ambos os sexos, com um DJ gay e negro, e a música tocada era conhecida

por nomes pejorativos. A reação Disco estava à todo vapor e as pistas de

dança heterossexuais na cidade moviam-se em direção ao New Wave Rock

e ao Synth Pop europeu. Eventualmente, no entanto, por virtude de ser o

único clube after-hours em Chicago, alguns heterossexuais aventurosos

começaram a ir. A sintonia entre o público e o DJ Frankie Knuckles era

memorável, e muitos são os relatos de verdadeira comoção, frenesi e êxtase

por parte dos iniciados (BREWSTER e BROUGHTON, 1999, p. 298).

Foram Frankie e Ron Hardy alguns dos propulsores do movimento do

Chicago House, que popularizaram diversos produtores do gênero no

momento e transformaram a já conhecida música Disco na four-to-the-floor

música House atualmente dominante.

Apesar de ser um descendente direto do Disco, o House teve uma

repercussão diferente do seu antecessor. Do ponto de vista popular, longe

dos mais envolvidos com o movimento,

32    

“a Disco já vinha acontecendo há dez anos quando as primeiras músicas com bateria eletrônica começaram a aparecer fora de Chicago, e naquela época ele já havia sofrido os ataques negativos da impiedosa exploração comercial, diluição e preconceito racial e sexual que culminaram na campanha “Disco Sucks”. Em um incidente bizarro e extremo, pessoas em um jogo de baseball no Chicago’s Koshimi Park foram convidadas a trazer seus indesejáveis LP’s de Disco e depois do jogo eles foram jogados numa imensa fogueira. O Disco eventualmente entrou em colapso graças ao peso das intensamente sufocantes e pobres versões do gênero de gravações Pop e ao crescente volume de músicas que simplesmente não eram boas” (CHEESEMAN, 2003).

Foi neste vácuo que floresceu a cena underground de clubes como o

The Warehouse, onde começou este novo estilo. A evolução e a euforia

podem parecer aos olhares mais distantes uma ruptura destoante do ponto

de vista cultural que passava não só a cidade de Chicago, mas todo o país

ao longo da década de 1980.

No entanto, uma análise mais próxima das raízes negras na música

norte-americana, em meio ao sentimento cosmopolita e de liberdade moral,

sexual e racial, muito se justifica a rapidez com que o movimento do

Chicago House apoderou-se dos centros urbanos, em conjunto com Detroit

e Nova Iorque para tomar o mundo. Neste contexto, “ the decadent beat of

Chicago House, a relentless sound designed to take dancers to a new high,

it has its origins in the gospel and its future in spaced out simulation

(techno)” (COSGROVE, 1988).

Em meados de 1970, quando o Disco ainda era um fenômeno

underground, pecado e salvação eram intencionalmente mixados em

conjunto para criar um som que de alguma forma conseguiu ser decadente e

devoto. De acordo com Frankie Knuckles, o House não é uma ruptura com

a música negra do passado, mas uma extrema reinvenção da dance music de

ontem. Ele vê House “a very clear tradition, a kind of two-way love affair

with the city of New York and the sound of disco” (Ibid.):

“But the underground scene had already stepped off and was beginning to develop a new style that was deeper, rawer and more designed to make people dance (...) But it wasn’t just American music laying the groundwork for house. European

33    

music, spanning English pop like Depeche Mode and Soft Cell and the earlier, more disco based sounds of Giorgio Moroder, Klein & MBO and a thousand Italian productions were immensely popular in urban areas like New York and Chicago. One of the reasons for their popularity was two clubs that simultaneously broken the barriers of race and sexual preference, two clubs that were to pass on into dance music legend – Chicago’s Warehouse and New York’s Paradise Garage. Up until then, and after, the norm was for Black, Hispanic, White, straight and gay to segregate themselves, but with the Warehouse (...) and the Garage where Larry Levan spun, the emphasis was on the music. And the music was as varied as the clienteles – r’n’b based Black dance music and disco peppered with things as diverse as The Clash’s “Magnificent Seven”. For most people, these were the places that acted as breeding grounds for the music that eventually came to be known after the clubs – house and garage”. (CHEESEMAN, 2003)

Muitas das gravações emplacadas em Detroit pelos garotos de

Belleville vendiam mais ainda em Chicago, de modo que os produtores

consideram que não só ambas cenas andavam lado a lado como eles

próprios ajudaram a movimentar a cena de Chicago. Apesar das tendências

eurófilas, Detroit estava mais para uma cidade Funk do que para uma

cidade Disco, e a diferença se deu através da música. O ritmo programado

do Detroit Techno era mais sincopado, tinha mais do que um groove a ele.

O House tinha uma metronômica, batida four-to-the-floor, com o pé em

linha reta. O House de Chicago tendia a caracterizar vocais de divas da

época, num estilo Disco; as faixas de Detroit eram quase sempre

instrumentais. A grande diferença era que o Detroit Techno fazia parte de

uma cena heterossexual e negra, enquanto o Chicago House era uma cena

gay e negra (REYNOLDS, p. 14, 2012).

Cada cena à sua maneira contribuiu para a popularização da MEP

nos Estados Unidos, bem como da função e da importância do DJ. A

consequência da febre eletrônica das pistas de dança logo deu origem a um

significativo mercado musical, com diversos produtores alavancando uma

série de estilos diferentes. Circuitos festivos tomaram proporções enormes e

pipocaram clubes noturnos pelo país inteiro, criando um verdadeiro nicho

cultural em torno da música eletrônica.

34    

No fluxo de informação e inovação em muito houve uma sinergia

entre EUA e Europa. Artistas dos dois lados do Atlântico influenciaram-se

entre si, engenheiros desenvolveram sintetizadores, CDJ’s, turntables9,

mixers10 e softwares unicamente para a produção e reprodução de música

eletrônica, no entanto, as diferenças são claras na ambientação social de

cada centro urbano. Nos EUA é possível afirmar que houve, pela primeira

vez uma cultura compartilhada entre negros e brancos desde sua origem. O

elemento racial é latente, e a pista de dança foi talvez o primeiro lugar onde

negros, brancos, amarelos e mestiços foram enxergados como um só:

ouvintes. Dançando ao som eletrônico, diferentes etnias compartilharam

uma experiência única, inédita e experimental.

4.4 – Clubes Urbanos e Raves Rurais: Acid House, Balearic, Ecstasy, a cena de Londres e o nascimento de Madchester Por volta do ano de 1987 a House Music simplesmente não tinha

muita popularidade do lado direito do Atlântico. Poucos DJs arriscavam-se

a tocar as músicas de Detroit e Chicago e um deles era Mark Moore, que

lembra de tocar sons de Derrick May (um dos Belleville Boys) e esvaziar

completamente a pista num clube em Londres (REYNOLDS, 2012, p. 35).

A explicação se dava, de acordo com sua opinião, pelo fato do público

heterossexual londrino considerar o som House, vindo principalmente de

Chicago, como queer music11 , apesar da maior parte do público gay

considerar estranhas as pessoas que ouviam o som que começava a ser

tocado em algumas boates como a Pyramid e preferir gêneros como

Eurobeat e Hi-NRG (ibid. p. 35). O som mais tocado nas pistas de dança de

Londres ainda era o Hip Hop e o Funk herdados dos anos 1970, o que

passou a mudar,

                                                                                                               9 Instrumento utilizado para tocar discos de vinil. 10 Instrumento utilizado para mixagem de músicas. 11 Denominação pejorativa de conteúdo discriminatório: “música de homossexual”.

35    

“At the end of 1987, however, there were signs of life in the vogue for DJ-records – breakbeat-and-sample collages that eschewed rapping in favour of absurdist sound-bites and, tempo-wise, were closer to house than hip hop. Enabled by the arrival of cheap samplers like the Casio SK1, and usually recorded for next to nothing, these DJ records stormed the pop charts, starting with M/A/R/R/S’s Number One smash ‘Pump Up The Volume’ in late 1987 and continuing into early 1988 with Bomb the Bass’s Number Two hit ‘Beat Dis’ and S’Express’s Number One hit ‘Theme from S’Express’s’. S’Express was Mark Moore, and ‘Theme’ was a kind of reward from Rhythm King Records for the DJs unofficial A & R work for the label, which brought them successful club acts like Renegade Soundwave, The Beatmasters and The Cookie Crew. With its campy ‘I’ve got the hots for you’ hook and ‘suck me off’ samples courtesy of performance artist Karen Finley, ‘Theme’ was the vinyl expression of Moore’s irreverent and eclectic DJ sensibility. Although it was closer to a kitschadelic, postmodern update of disco than the Chicago sound, ‘Theme’ was received as one of the first British house records. More importantly, the track’s tacky euphoria chimed in with the anti-cool ethos of the new ‘Balearic’ clubs like Shoom and The Project” (REYNOLDS, 2012, pp. 35-36)

A definição precisa de onde originou-se o Acid House, gênero que

explodiu por toda a Inglaterra e influenciou grande parte das bandas e das

boates que fizeram parte do boom da MEP é difícil de registrar.

Indiscutivelmente foi o som que alavancou o fenômeno conhecido como

Madchester, que fez a música eletrônica eclodir com a sociedade e ficar

realmente notória nos centros urbanos britânicos. Especialistas na história

do som eletrônico na Europa dividem opiniões a respeito das influências

que fizeram da cena de Manchester explodir nacionalmente, apesar delas

convergirem na edição de 29 de novembro de 1989 do Top Of The Pops12.

O show foi estrelado pelas bandas Happy Mondays e The Stone Roses, e a

partir do momento que foi transmitido pela TV o país inteiro ouviu falar de

Madchester (LUCK, 2002, p.11). Antes de atentar especificamente para o

movimento de Manchester, apresento um panorama da capital inglesa.

                                                                                                               12 Tradicional programa de televisão britânico com histórico das músicas mais ouvidas do ano. Transmitido pela BBC, foi fundado em 1964 e terminado em 2006.

36    

Ao longo da década de 1980 muitas boates e clubes pipocaram pela

Inglaterra. Dos que experimentavam algo além do já consagrado Rock n’

Roll britânico e o Hip Hop norteamericano é possível citar nomes como:

Shoom, The Future, The Trip, Spectrum e The Fridge em Londres e The

Hacienda, The International, Konspiracy, Thunderdome e Sound Garden

em Manchester. Dave Fawbert, que realizou um estudo mais geográfico em

torno da cena de Manchester recorre à opinião de

“Dave Haslam, a fanzine editor and Hacienda DJ describes how, from 1986 to 1988, while London explored hip hop and go go, northern clubs in Nottingham, Sheffield and Manchester found Chicago House, ‘and for two years a North/South divide of a different kind was established” (FAWBERT, p. 18)

Além da estreita divisão Sul/Norte feita por Haslam, há a orientada

por artistas e clubes realizada por Reynolds. Das influências na música

eletrônica tocada nas pistas de dança, é possível estabelecer uma divisão

entre a repercussão cultural do Balearic (principalmente em Londres) e a do

Acid House. O Balearic perpetuou-se como definidor de influências de DJs

como Paul Oakenfold, que liderou diversos momentos da MEP inglesa e

mundial. Conta o autor que Oakenfold e outros pioneiros, em seu constante

contato com a cena espanhola da ilha de Ibiza, deparou-se com o estilo

inovador de mixar do DJ Alfredo Fiorillo, um ex-jornalista argentino

atraído pela boemia da cidade. Segundo Reynolds,

“Balearic’ didn’t refer to a style of music but to a revolt against style codes and the very tyranny of tastefulness then strangling London club culture. DJ Alfredo’s long sets at Amnesia – which, like most Ibizan nightclubs, had no roof, so you danced under the stars – encompassed the indie hypno-grooves of The Woodentops, the mystic rock of U2 and The Waterboys, early house, Europop, plus oddities from the likes of Peter Gabriel and Thrashing Doves. ‘It was just the best of all kinds of music, and really refreshing, cos’ in London you were just hearing the same old sound’, remembers Paul Oakenfold” (REYNOLDS, 2012, p. 36)

O conceito já ambientado na Espanha foi trazido à capital inglesa, o

que revolucionou e sacudiu o já saturado mundo das pistas de dança.

37    

Oakenfold abriu o The Funhouse em 1985 para estrear o estilo Balearic no

sul de Londres, o que acabou por tornar-se um fracasso e faliu. Dois anos

mais tarde, o DJ realiza uma nova viagem a Ibiza com seus amigos Danny

Rampling, Johnny Walker e Nicky Holloway para celebrar seu vigésimo

sexto aniversário. Ele alugou uma casa em Ibiza onde todos ficaram

dançando por horas entorpecidos de Ecstasy. No verão de 1987 tudo

mudou, como conta Brewster:

“What turned Alfredo’s music from a popular local curiosity to worldwide infamy was the intervention of four young British DJs out on a holiday at the behest of Fung, who was running the Project Bar during the summer of 1987 (...) It was Fung who had told Oakenfold about the burgeoning scene there (he’d actually been once earlier in the season, not liked it, and returned home). It was also Fung who introduced them to ecstasy” (BREWSTER, 2008)

A atmosfera na ilha espanhola era muito distante da encontrada pelos

apreciadores da noite inglesa. Na quente Ibiza havia uma intensa liberdade

e funcionava como um refúgio aos que procuravam diversão, dança, música

e drogas. Pessoas de todo mundo encontravam lá um lugar onde não seriam

julgados por seus comportamentos, pensamentos ou orientações sexuais,

onde o cenário paradisíaco movimentava sua economia em torno do

consumo proveniente do turismo. Algumas boates conhecidas

mundialmente até hoje já faziam sucesso, como a Pacha e a Amnesia, e

funcionavam a céu aberto. O que era encontrado na ilha funcionava

praticamente como antítese ao Thatcherismo britânico, como conta

Finnegan:

“Collin describes life in Britain in 1987: “The country had just entered its third consecutive term of Conservative rule, a period which compounded the break with the collective values of the past. The last batallions of class warriors, the miners and the printers, had been vanquished after long turbulent strikes, socialism was in terminal retreat, and Thatcher’s “economic miracle”, a consumer boom fuelled by wild spending on credit and a mood of unhibited individualism, was entering its final phase before the shuddering stock market crash of ‘Black Monday’ heralded a plunge back into recession.” (COLLIN, 1998, p. 55) Ibiza on the other hand was seen by these young

38    

musicians and countless other travellers as a place where you could lose any form of self and cultural identity. Tha dancefloors of Ibizan clubs were a mix of rich and poor, trendy and unfashionable, male and female. It was a place to lose yourself free from society’s watchful, judgemental gaze” (FINNEGAN [s.d.])

O intercâmbio entre DJs e aficionados por música de vinis sempre

ocorreu, mas foi com a arte de Alfredo que tudo foi reunido em torno de um

conceito, ao menos da forma como Oakenfold e seus amigos interpretaram.

As seleções do argentino, apesar de vindas de gravadoras de diversas partes

do mundo, tomavam o ar do Mar Mediterrâneo ao serem reunidas por

Alfredo. Johnny Walker lembra que ele mixava House com Indie, música

Pop como a de Madonna e a de George Michael, e algumas das coisas que

depois virariam sucessos do Balearic, levando o público à loucura, numa

atmosfera carnavalesca, cheia de vida e energia (BRESTER, 2008):

“What happened next has passed into legend in the UK. Often cited as the start of the dance scene in Britain (as though nobody had ever danced until Acid Tracks landed in London). Paul Oakenfold started The Future (aided by pal Trevor Fung), Danny Rampling ran Shoom in the Fitness Centre, while Nick Holloway had The Trip at the Astoria. Within months they had help transform a holiday epiphany into a nationwide phenomenon” (Ibid.)

Entusiasmados, os quatro amigos voltaram da Espanha com um ideal

na cabeça e cada um iniciou seus respectivos projetos. O The Future, de

Oakenfold foi um sucesso e começou a retirar o estigma carregado pela

música House, onde as pistas de dança londrinas começaram a ouvir o

gênero mesclado com artistas Pop e Indie, sob a influência Balearic, numa

orientação exclusiva para mexer o corpo. Dançar era a palavra de ordem. O

preconceito foi substituído pela ditadura da dança e em meio a difusão do

Ecstasy começou a propagar o protótipo do que seria uma cultura Rave. O

principal clube que deu o tom dessa cultura é reconhecidamente o Shoom,

aberto pelo casal Danny e Jenni Rampling. Com uma identidade

vanguardista, num espaço fashion e moderno, o Shoom foi pioneiro na

39    

criação do espírito que mais tarde tomaria conta do país. Frequentado por

celebridades do mundo da moda e sofisticados da vida da noite,

“Unlike your typical West End club, the Shoom scene was not about being seen, but about losing it – your cool, your self-consciousness, your self. Quoting T. S. Eliot, Gray [Louise] describes the fruit-flavoured smoke as ‘the fog that both connects and separates. You’d have these faces looming at you out of the fog. It was like a sea of connected alienation’. Says Mark Moore: ‘Often it was so chaotic, you couldn’t really see in front of you, you couldn’t really talk to anyone. So a lot of time you just spent on dancing’ (...) at Shoom he [Moore] encountered ‘this whole new mentality... It was all these suburbanites who – without wishing to sound élitist – it was as if they’d taken Ecstasy and they were releasing themselves, for the first time. It was like they’d suddenly been let out of this box they’d been kept inside and they were just beginning to come to terms with the idea that, y’know “I’m a man but I can hug my mate,” stuff like that’. Gay behavioural codes and modes of expressivity were entering the body-consciousness of straight working-class boys, via Ecstasy. Oriented around communal frenzy rather than posing, Shoom was the chrysalis for rave culture, in so far as the rave in its pure populist form is the antithesis of the club” (REYNOLDS, 2012, p. 39)

(Fig. 4: Festa no Shoom, em Londres) Apesar do Balearic der dado o tom do ethos que seria compartilhado

pela maior parte dos clubes pioneiros, foi o Acid House que deu conta de

massificar o fluxo da música eletrônica na Inglaterra. Por tal fato que é

40    

indicado acima uma certa divisão entre ambos os estilos. O Balearic, apesar

de ser uma confusão de gêneros, compunha uma tendência mais

underground, relativa ao pioneirismo, que certamente determinou a gênese

da cultura Rave13 e no entanto não foi um estilo nacionalmente aclamado,

nem popularmente compartilhado de forma direta. Esse papel coube ao

Acid House, fenômeno que compôs a cena de Manchester junto ao Rock.

No entanto, apesar desta divisão houve uma língua comum, massificadora,

que catalisou as cenas de Londres e de Manchester, e foi de encontro com o

condicionamento conservador britânico: o Ecstasy:

“MDMA was a miracle cure for the English disease of emotional constipation, reserve, inhibition. And it wasn’t just about telling your friends you loved them, it was about telling people who weren’t your friends you loved them! Because of Ecstasy and the mingling and fraternization it incited, the living death of the eighties – characterized by social atomization and the Thatcher inculcated work ethic – seemed to be coming an abrupt end. (...) And yet, for all the self-conscious counterculture echoes, acid house was a curiously apolitical phenomenon, at least in the sense of activism and protest. While the tenor of the peace-and-unity rhetoric ran against the Thatcherite grain, in other respects – the rampant hedonism, the fact that Ecstasy was priced out of the range of the unemployed – acid house’s pleasure-principled euphoria was very much a product of the eighties: a kind of spiritual materialism, a greed for intense experiences. As far as the sterner pop-culture critics were concerned, acieed was escapism, pure and simple: Stewart Cosgrove argued in New Statesman that acid house’s ‘pleasures come not from resistance but from surrender’”. (Ibid., p. 47)

O fenômeno do Ecstasy consolidou a MEP como linguagem comum

entre jovens desajustados, inconformados, e também os satisfeitos e

entusiastas do momento político e social passado pela Inglaterra. A

necessidade de se divertir a qualquer custo pareceu tomar conta, e do nada o

mundo inglês ordinário e pacato virou de cabeça para baixo. Foi

aumentando a quantidade de pessoas que dormia de dia para aproveitar o

                                                                                                               13 Do verbo em inglês to rave, que remete ao ato de falar ou escrever de maneira selvagem com grande entusiasmo ou admiração. Posterior à popularização das festas Rave o verbo passou a ter a conotação do ato de frequentar uma. Disponível em http://www.thefreedictionary.com/rave

41    

que as cidades ofereciam à noite. A nação apaixonada pelo futebol passou a

ter um fenômeno incontrolável. Um universo paralelo passou a ter milhares

de fervorosos seguidores. Clubes e boates lotavam de segunda a segunda, e

não havia um sequer dia da semana onde os ávidos por MEP não tivessem

onde se refugiar. A época ficou conhecida como Second Summer of Love.

O alarde logo chegou aos tablóides, que noticiavam os excessos

cometidos pelos jovens e alertavam quanto aos horrores trazidos pelo abuso

de drogas. Era comum no final da década de 1980 Jornais como o The Sun e

Mirror se pronunciarem de maneira histérica, usando relatos e pesquisas

médicas para mostrar aos pais a vida que seus filhos estavam levando:

“It’s little surprise that the nascent acid house scene caught the imagination of tabloid journalists as much as the fledging ravers who turned it from the special province of a few tiny London clubs into a national phenomenon in a matter of months. Acid house had everything that makes for a great scare story. Its alien music clawed open the generational divide, its spontaneous hippie-esque gathering disobeyed social norms and it introduced a brand new drug, ecstasy, into the country, stoking fears of mass youth psychosis. You’d have to be a pretty crap tabloid journalist to miss that open goal (...) The Sun said the “devastating side effects” of the “deadly white pills... include hallucinations, heart attacks and attacks of paranoia” while The Mirror reckoned ecstasy had “been proven to permanently loosen control of sleeping and waking”. E was certainly the love drug, but the tabloids rebranded it as the sex drug, one report imagining “outrageous sex romps taking place on a special place in front of the dancefloor” (RICHARDS, 2013)

42    

(Fig. 5 – Tablóide estampa sua opinião sobre a sensação do momento)

O fenômeno foi aproveitado pela mídia para vender reportagens.

Tablóides e TVs se engajaram a participar do fervor com o objetivo de

propagar o perigo que uma parte da sociedade enfrentava. No entanto, de

acordo com a opinião de diversos movimentadores da cena londrina, o

efeito desencorajador não foi atingido e o que se sucedeu foi exatamente o

oposto. A cada ano mais jovens aderiam ao movimento e logo os pequenos

clubes e boates já não davam conta da demanda pelas pistas de dança.

Orientados, em sua maioria, pelo mercado que crescia, produtores de festas

começaram a proporcionar gigantes eventos para atrair a massa.

A partir de 1989 era comum organizarem Raves que contassem com

alguns milhares de pessoas. Uns produtores mais ousados chegavam a ter

dez, quinze, vinte mil pessoas em um único evento (mais de 20 mil num

evento da Sunrise em julho de 1989), que frequentemente virava o dia e

vinham DJs de vários lugares, em parte entusiastas da cena, em parte

querendo conferir de perto o fenômeno. Movidas a muito Acid House, estes

massivos eventos ocorriam em grande parte numa região rural e inóspita ao

redor de Londres, a M25 Orbital Motorway, em hangares, grandes

43    

armazéns e campos abertos. Os promoters das grandes Raves não eram

entusiastas culturais, mas figuras do submundo londrino ou investidores que

não hesitavam em violar algumas leis de modo a manter o negócio ativo

(Ibid., p. 61)

O senso comum era de que o movimento do Acid House era grande

e expandia. Opiniões são divididas entre os que consideravam um feito

magnífico comparado às pequenas festas no Shoom e os que achavam que

era o aterrador fim de uma era de exaltação da juventude. Para os que

vinham dos EUA, ou de outros lugares, fazer parte de um evento dessa

magnitude era bastante especial e inovador. Já para os pioneiros da cena

urbana londrina, o movimento tinha que ser pelos londrinos e para os

londrinos, e termos como “massa”, “adolescentes” e “ovelhas” são

comumente usados para denominar este novo estágio no qual o Acid House

entrou.

Represálias policiais ficaram muito comuns na época, como a Pay

Party Unit, que se baseava numa imensa base de dados sobre os maiores

organizadores de Raves para realizar investigações e eventualmente fechar

uma festa. Em julho de 1990, um membro do parlamento inglês sugeriu o

“Entertainments (Increased Penalties) Act”, que autorizou a unidade a

“caçar” os organizadores e elevou a penalidade por organizar um evento

ilegal para vinte mil libras e seis meses de prisão.

44    

(Fig. 6 – pôster da Rave Sunrise, realizada em 24 de junho de 1989 na pista

de pouso de White Waltham em Berkshire, onde onze mil pessoas

compareceram)

4.5 – Madchester: twenty-four-hour party people e Rave n’ Roll Crossover Polo econômico e industrial do norte da Inglaterra, Manchester teve

rápida expansão urbana durante o século XVIII – de região com pequenas

cidadelas a uma área de conturbação de indústrias com grande fluxo de

materiais e conexões comerciais internacionais. Esta expansão deu-se

quando as inovações tecnológicas permitiram a produção fabril de tecidos,

o que fez a cidade enfrentar problemas com a concentração industrial antes

da maioria dos lugares, tendo que encarar uma série de dilemas na relação

sociedade-ambiente (DOUGLAS, 2002, p. 236). A cidade foi o lugar onde

a Revolução Industrial mudou a Inglaterra.

45    

Protótipo urbano de uma gama de metrópoles que viriam depois,

Manchester foi encarada pelo governo britânico como um paradoxo do

experimento inevitável do capitalismo, com grande acumulação de riqueza

em meio aos problemas oriundos do amontoamento social e da poluição

ambiental (Ibid., p. 237). Com liderança política ativa e forte engajamento

social, a cidade atraiu ingleses e imigrantes de vários lugares para constituir

a mão-de-obra necessária. Ao longo do século XX Manchester se constituiu

como polo demográfico e estudantil da Inglaterra. Com a maior

comunidade gay fora de Londres, a região logo se consolidou como espaço

boêmio, herança de um lugar que sempre firmou seus estabalecimentos

comerciais em torno das necessidades de uma classe trabalhadora (pubs,

bares e clubes de stripper sempre foram comuns).

Em meio à explosão cultural do Rock dos anos 1950-1960, foi

inevitável o aparecimento das primeiras formas de expressão artística

legitimamente locais, que respiravam o clima pós-industrial. O mercado

musical inglês era focado na aura dos anos 1960 de grupos como The Who e

The Small Faces. Na fase pós-Punk Rock foi quando as grandes bandas

locais começaram a tornar-se conhecidas, mas ainda num sentimento

musical melancólico e distante do Pop. Bandas como The Buzzcocks, The

Fall, The Smiths, Joy Division e New Order já eram bastante conhecidas

em meados dos anos 1980, mas quando a questão de onde Madchester foi

gerada é levantada, todas as opiniões se convergem em dois conjuntos que

deram o tom do que seria a cena: Happy Mondays e The Stone Roses.

A demanda por bandas para idolatrar era latente na década de 1980 e

o mercado musical de Manchester, apesar de ter bastante potencial era

pouco aproveitado. O sentimento geral da nação era de relativo otimismo

no final da década e eventos ao longo do mundo como o declínio do

comunismo no Leste Europeu aumentaram substancialmente a expectativa

social em torno do futuro. O fenômeno do Ecstasy ajudou a catalisar essa

sensação no público jovem e Happy Mondays e The Stone Roses foram as

bandas que conseguiram rumar até o mainstream.

46    

O show das bandas no evento do Top of Pops, como descrito no

início do capítulo, popularizou-as até muito além das fronteiras de

Manchester, o que deu início ao boom:

“It was about dancing like a monkey (...) It was about romanticising gang culture and graffiti even though you probably weren’t in a gang and almost certainly didn’t own an aerosol (...) It was about realising that no matter how shit things got, there was another great Saturday night just around the corner. It was about realising how terrifying life was and then choosing not to be afraid. And it was about realising the whole world was against you and then saying: “OK, let’s have it!”” (LUCK, p. 10, 2002)

Com influências do Chicago House, Detroit Techno, Acid House e

Rock, movida ao recém popularizado Ecstasy, a juventude só precisava de

um estilo de roupas para terminar de compôr o imaginário da cena.

Estampas com os dizeres “And on the sixth day God created MANchester” e

“Woodstock ’69, Manchester ‘89” eram comuns nas camisas dos jovens,

junto com os dos nomes das bandas do momento. Influenciada pela

psicodelia dos anos 1960 manifestada pelo uso das cores primárias, a

escolha da roupa pelos jovens era uma mistura exótica que ajudou a

construir as principais referências ao estilo geral dos adeptos do

movimento: scally14 e baggy15 eram termos que evocavam o estilo folgado,

largado, frouxo, descuidado e espontâneo.

“‘We are Thatcher’s children.’ So Shaun Ryder, the Happy Mondays ‘singer’, was wont to claim. The Conservative leader’s assault on the welfare system and the unions was intended to train the working class in the bourgeois virtues of providence, initiative, investment, belt-tightening and holding for the long term dividend. But a significant segment of working class youth in Britain responded to the challenge of ‘enterprise culture’ in a hand-to-mouth, here-and-now way; not by becoming opportunity-conscious but criminal-minded. The result was not so much a black economy as a blag economy, where survival depended on having an eye for the quick killing and being a fast talker. Eager to participate in the late eighties Thatcherite boom but excluded by mass unemployment, these kids resorted to all manner of shady money-making schemes:

                                                                                                               14 Diminutivo de scallywag: pessoa inescrupulosa, desonesta, de comportamento que causa desconforto a outro. http://www.thefreedictionary.com/scally 15 De roupas folgadas, largas. http://www.thefreedictionary.com/baggy    

47    

bootlegging, organizing illegal warehouse parties and raves, drug dealing, petty theft, and fraud of all kinds (...) It was from this lumpen-proletarian milieu that the Happy Mondays emerged. The truth was that the band and its ilk were Thatcher’s illegimate children: an unintended outcome, and operating on the wrong side of the law” (REYNOLDS, 2012 p. 74)

Os Happy Mondays tinham uma estranha peculiaridade no início da

carreira: dos seis integrantes, dois trabalhavam nos correios, um era um

filho de policial que sempre teve sérios problemas com a lei e todos

estavam envolvidos com tráfico de drogas. Com uma originalidade

invejável, o grupo foi considerado uma verdadeira banda da classe

trabalhadora, a primeira a emergir na fase pós-Punk de Manchester. Pelo de

1989, quando explodiram via TV, eles já tinham dois álbuns lançados pela

gravadora Factory de Tony Wilson, Squirrel and G-Man Twenty Four Hour

Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out) e Bummed. “Although

rough-and-ragged, the Mondays sound – a cross between The Fall and

fatback funk – fit fairly well into the Factory tradition of arty, angsty white

dance” (Ibid.).

Produzido por Paul Oakenfold e Steve Osborne, o terceiro álbum dos

Monday chamado Pills ‘N’ Thrills & Bellyaches atingiu a quarta posição

nas paradas britânicas em 1990. O álbum permaneceu como um dos mais

aclamados da banda, o que garantiu o lugar deles no mainstream inglês e na

cultura Pop. O grupo então logo ficou conhecido mundialmente e viajou o

mundo inteiro com seus show, mas o fim se deu de forma tão rápida quanto

sua ascensão. Com o comportamento de fazer o que queriam na hora que

queriam, sem restrições, os músicos passaram a enfrentar problemas que

seriam determinantes para seu declínio16. Em meio a outros problemas

pessoais e de saúde com outros integrantes, eventualmente a banda se

                                                                                                               16  Numa viagem para o Caribe o vocalista Shaun Ryder, que já tinha problemas sérios com drogas, teve uma crise em que chegou ao limite de vender suas roupas em troca de cocaína. Eventualmente retornando a Inglaterra, o cantor declarou que estava consumindo treze pedras de crack por dia, o que o estava deixando incapaz de fazer as mais simples tarefas (LUCK, p. 57)  

48    

desintegrou, após lançar seu último álbum Yes Please, que ainda atingiu o

décimo quarto lugar no ranking britânico.

(Fig. 7 – Capa do álbum Pills ‘N’ Thrills & Bellyaches do Happy Mondays)

Com lugar garantido na história de Manchester, a rebelião do

presídio Strangeways, na primavera de 1990, resultou numa ocupação de 23

dias pelos presos, que exigiam melhores condições e revoltavam-se contra o

comportamento hostil da polícia à época e influenciou o conteúdo de muitas

letras de alguns compositores. A imagem que ficou foi a de presos

dançando que nem macacos em cima dos telhados da prisão, dança que

ficou famosa por Bez, integrante dos Mondays. Luck conta como a rebelião

afetou a cena:

“However, by far the most revealing thing about the riots was they showed how closely the lines were drawn. Look at the men who occupied the prison rooftops and then study a picture of the Mondays and you’ll see little difference. Indeed, when the last four prisoners were brought down in a cherry picker, an event that was shown live in the closing minutes of the BBC news, it could just as easily have been Shaun Ryder smiling defiantly. In fact, if you look at the similar backgrounds the band mates and the cons shared, they could very easily have been one another. Cut from the same cloth, the fact that one bunch had been handed a magic ticket while the others had been handed down heavy sentences was as tragic as the message was clear – in Madchester, the lunatics really had taken over the asylum” (LUCK, p. 22, 2002)

49    

A explosão cultural Pop foi sustentada por boates e clubes como The

Haçienda, Thunderdome e Konspiracy. A primeira, fundada por Tony

Wilson, produtor da Factory, responsável também por contratar o New

Order, foi uma das mais famosas de toda a Inglaterra e passou a tocar

House a partir de 1990, junto com as outras boates de Manchester, em meio

ao boom do gênero. Haçienda foi aos pouco se tornando um mito da vida

noturna, uma obrigação aos frequentadores da cena e parte fundamental do

ritual despojado dos jovens que seguiam o código cultural. O clube ficou

tão grande que quando completou seu décimo aniversário, as festividades

tiveram que acontecer em Amsterdam, quando uma rara performance foi

realizada pelo New Order17 (Ibid., p.24). Para Luck, a mensagem era clara:

o Haçienda era mais um estado mental do que propriamente um lugar.

O clube fez mais que simbolizar o imaginário Madchester, a própria

maneira de gerir de Tony Wilson era completamente irresponsável, voltada

a agregar interesse à cena, em vez de obter lucro. O baixista do New Order

Peter Hook, um dos fundadores, em seu livro The Haçienda: How Not to

Run a Club conta os feitos realizados pelo sentimento em torno do ideal de

contribuir para o movimento, como o lendário debut show da Madonna:

“She lip-synced to two songs during the afternoon’s filming. So there you go, Madonna’s first appearance on British TV was all down to us: it was an inside job. And once again we were ahead of the trends (...) That appearance at the Haçienda changed it all for her. The first step on her journey of world domination, God forgive us” (HOOK, p. 178)

O grupo The Stone Roses foi indiscutivelmente um dos maiores

influenciadores de Madchester, ao lado dos Mondays, The Smiths, The

Charlatans, New Order, Inspiral Carpets e 808 State. Formada em 1985, a

banda tinha uma série de influências no Rock (The Jesus & Mary Chain,

Primal Scream, The Byrds, The Adverts, Johnny Thunders, The New York

Dolls, George Clinton). As influências eram muitas e convergir essa

herança em torno de um som distinto era um desafio, e foi esse o êxito que                                                                                                                17 Amplamente retratado pela imprensa foi o que se seguiu ao show do New Order: uma stripper teria tirado um rocambole de suas partes íntimas (REYNOLDS, 2012)

50    

lograram. Praticamente uma banda Punk no resultado do trabalho, seus

primeiros singles ‘So Young’ e ‘Sally Cinnamon’ não conseguiram muita

atenção, a não ser por atrair o produtor Gareth Evans, que apresentou-os a

Peter Hook, que supervisionou a terceira música Elephant Stone.

A ascensão dos Roses a partir daí foi inevitável, que apesar de não

atrair ainda os olhos da mídia, colocou-os em cada vez mais estima em

Manchester, e seus shows ficaram conhecidos. Apesar de mais próximos do

Punk dos anos 1970 que os Mondays, os integrantes eram educados,

artísticos, politicamente engajados e nervosos (REYNOLDS, 2012, p. 76).

O álbum The Stone Roses encarregou-se de colocar a banda na trilha do

sucesso:

“Crucially, the band exuded the right Manchester attitude, alternately lippy and laidback. ‘We hate tense people’, Squire told me. ‘The tense people are the ones who are only interested in making money and who ruin things for everybody else’ (...) ‘Madchester’ replaced the workaholic materialism of the eighties with a new spirit, encoded in the slang buzzword ‘baggy’: loose-fitting clothes, a loose-minded, take-it-as-it-comes optimism, a loose-limbed dance beat” (Ibid., p. 76-77)

(Fig. 8 – Capa do álbum The Stone Roses da banda. Os limões fazem

menção à fruta utilizada pelos manifestantes em protestos em Paris para

conter os efeitos do gás lacrimejante usado pela polícia)

51    

Com o enfoque na pista de dança em alta, não faltaram abordagens

que fugissem completamente ao Rock em Manchester, onde destacam-se

artistas como Gerald Simpson e Graham Massey, que juntos fundaram o

808 State. De parentesco caribenho, Gerald cresceu ouvindo uma mistura

de Electro, Synth Pop, Rock e Jazz, e no final dos anos 1980 conheceu

Graham Massey, um refugiado do coletivo de Funk chamado Biting

Tongues, e então fundaram um coletivo de Rap chamado The Hit Squad

(Ibid., p. 80). O coletivo ensaiava no porão de uma loja de discos, Eastern

Bloc, a qual tinha como co-fundador Martin Price. Com o fornecimento de

conceitos e imagens de Price, Masey e Simpson formaram o 808 State,

nome dado em homenagem à famosa Roland 808, bateria eletrônica muito

popular na época:

“If Manchester had really eclipsed London as the rave capital of the UK, where – you might be have been forgiven for asking – the fook were the proper Mancunian house artists? In truth there were only two contenders – 808 State and A Guy Called Gerald” (Ibid., p. 80)

O 808 State foi um dos primeiros grupos de Acid House, e produziram

músicas que influenciaram tudo que era feito à época. Em 1988 eles lançaram seu

primeiro álbum, “Newbuild”, que influenciou artistas como Autechre e Aphex

Twin. Em 1989, com a ajuda de dois jovens DJs, Andy Barker e Darren

Partington produziram a lendária “Pacific State” que estrelou no ranking das dez

mais tocadas na Inglaterra. Num clima calmo, com um melódico saxofone e

samples de pássaros, o som era para quando o sol estivesse alto e a onda perto do

fim, como afirma Price (Ibid., p. 81).

Simpson então deu início à sua carreira solo, com o A Guy Called

Gerald, responsável por diversos sons genuinamente eletrônicos e com a

atmosfera de Manchester. O mais famoso deles certamente foi o “Voodoo

Ray”, que em julho de 1989 ocupou a décima segunda posição, primeiro

verdadeiro hino do House da Grã-Bretanha. Numa tentativa de atingir uma

vibe samba, Simpson acabou chegando no som, com um baixo pulsante e

melódico, que num dos seus primeiros flertes com o Jungle, conta com um

trêmulo vocal de uma mulher seguido de uma sinistra voz masculina

52    

entoando: “vooodooo ray”. Reynolds conta que o sample inicial da música

deveria ser “Voodoo Rage”, mas não havia memória suficiente no sampler,

então o “G” ficou fora (Ibid.). Em seguida Simpson fez a música “FX”:

“A track written for the soundtrack to Trip City (based on Trevor Miller’s experimented novel set in a near-future club scene where everyone is addicted to a hallucinogen called FX), and then, in early 1990, with his major label debut Automannik” (Ibid., p. 81)

Seu primeiro álbum, uma jornada através de um Acid House

recheado de samples e algumas melodias mal-assombradas, contou com

remixes dos artistas de Detroit Derrick May e Carl Craig de “FX (Mayday

Upgrade”, além da evidente inspiração do som da Motor City. Inspirações

no som de Kraftwerk também estão evidentes na “Automanikk”, que dá

nome ao álbum.

De uma maneira geral, são os remixes e as abordagens dos DJs que

será propriamente tratado da música britânica no presente texto. Não

excluindo disso as músicas Rock, o foco aqui é mais na produção de sons

exclusivamente para a reprodução em pistas de dança e menos nos

concertos de apresentações das bandas. Não que os shows não tenham

importância na evolução da cultura raver e clubber que foi em grande parte

esculpida em terras britânicas, mas a centralidade na apresentação do DJ é

vital para lidar com a sociabilidade da experiência em conexão com as

pessoas que dançam.

O trabalho de todas as bandas supracitadas é relevantíssimo, uma

vez que foram usadas em larga escala em festas em clubes de Londres a

Manchester. No entanto, o trabalho em conjunto de Oakenfold e Osborne

com os Happy Mondays no álbum Pills ‘N’ Thrills, os sons de 808 State, A

Guy Called Gerald e M People permanecem como extremamente

simbólicos para a futura teorização que será composta no Capítulo 5, uma

vez que foram produzidos para um direcionamento propício da MEP, numa

mentalidade inovadora e distoante da já estabelecida relação banda-show.

53    

Neste contexto, diversos outros grupos de música eletrônica se

tornaram populares na Grã-Bretanha nas décadas de 1980 e 1990, dos quais

é possível citar Depeche Mode, Prodigy, Orbital, The Chemical Brothers e

Underworld, além de lendários DJs como Fatboy Slim, Sasha, John

Digweed e Pete Tong, além dos já mencionados acima. Entre eles é útil

citar a subversão explícita do Prodigy no início da década de 1990.

Em meio à famosa Criminal Justice Bill, promulgada em 1994 pelo

conservador governo inglês, as festas encontraram uma grave ameaça de

extinção, uma vez que a polícia podia prender os frequentadores das pistas

de dança sob a acusação de “distúrbio público”. Como conta Carlos

Frederico Gama sobre o levante político na música da época:

“This violation of modern liberties was obviously targeted at raves which had previously made possible the generation-defining Summer of Love. Incidentally it represented a threat to squatting, a pivotal practice for the techno and Punk scenes alike. The conservative assault of John Major, the inane heir of Margaret Thatcher’s right-wing extremism influenced informal leader of the rave scene The Prodigy to unleash a call to arms in the guise of “Music for the Jilted Generation (...) Massive, throttling beakbeat techno; quasi-Rock stomps; accessible dub; all and much more across 13 stone-cold gems with siren calls, tortured guitars, angular beats and much, much criticism on conservative aneurysm” (GAMA, 2008)

4.6 – Goa: turismo, raça, LSD e Psytrance O pequeno estado de Goa na Índia foi cenário do nascimento de uma

mística subcultura da MEP que se alastrou por todo o mundo. O Psytrance

formulou-se como mais que um estilo de música, uma verdadeira filosofia

de vida para muitas pessoas. Em meio à explosão da música Disco e do

Synth-Pop, nos anos 1970 e início dos anos 1980, sons de New Order,

Depeche Mode, Talking Heads, Eurhytmics e Kraftwerk também eram

explorados nas festas promovidas nas praias de Goa. Apesar de trazer a

inovação européia, ao serem reproduzidas nas tão longínquas terras

orientais era buscada uma abordagem mais diferente, focada no efeito

54    

hipnótico através da repetição, usando colagens e loops de segmentos sem

vocal das seleções mais pesadas e “lado B” dos artistas (SALDANHA,

2005, p. 38; REYNOLDS, 2012, p. 151).

A ex-colônia portuguesa de Goa foi inicialmente descoberta pelos

hippies na década de 1960, quando a Índia era conhecida por ser a província

da espiritualidade e autenticidade humana. Na costa oeste, localizada a

aproximadamente quatrocentos quilômetros ao sul de Bombaim, a cidade

está entre as mais bonitas da Índia. Longas, brancas, ensolaradas e

alinhadas por palmeiras e coqueiros, as praias de Goa tornaram-se atrativas

para os que buscavam quietude e solidão, por ser destino barato e calmo.

Especialmente no inverno do hemisfério norte o clima fica mais ameno,

mas ainda bem quente comparado à Europa, o que representa a alta

temporada local.

A ex-colônia portuguesa de Goa em pouco tempo firmou-se como

um dos maiores polos do circuito de cultura psicodélica18 branca desde os

anos 1970. Uma parte específica dessa população, os conhecidos como Goa

freaks, incorporaram este novo engajamento social pela ingestão de drogas

alucinógenas e relação intensa com a libertação espiritual via música, e

passaram a viajar para a região em busca de turismo e adesão ao

movimento que passava a ficar conhecido. De modo a ilustrar o imaginário

desse público:

“The vibe of the exile is redolent in the Goa psychedelic trance movement, whose disparate expatriates, “displaced peoples with displaced minds (D’ANDREA, p.9, 2007), discover unity in exile from life-world crises under the soundtrack of neo-psychedelia. Goa, India, would be the exoteric site of propagation through the 1980s as one of the world’s principal freak-destinations since the 1960s absorbed developments in global electronic dance music culture, expatriatism and psychedelic tourism through the decade. The scene there peaked in the early 1990s, after which mass tourism and criminal and regulatory forces have conspired in its demise as a genuine location for the radical immanence that has long

                                                                                                               18 Refere-se a sensibilidade na modernidade ocidental para uma reinvenção do indivíduo através do relacionamento com as fronteiras neuroquímicas, geográficas e culturais (SALDANHA, 2005, p. 173)

55    

motivated traveller enthusiasts and new-spiritual seekers” (SALDANHA, 2005)

Ao longo dos anos 1980, uma parte específica de Goa, o vilarejo de

Anjuna, concentrou boa parte dos aventureiros atrás de festas e descanso e

logo concretizou-se como a Meca da contra-cultura, recebendo turistas de

toda parte da Europa e do mundo. No entanto, a partir de meados da década

o cenário foi se transformando em algo diferente, como conta Saldanha:

“Around 1986, more explicitly dance-oriented industrial, Hi-NRG, and Eurodance came to Goa. Dancing to music like that of the Belgian industrial group Front 242, it becam plain that an LSD trip was far superior when the legs moved and the brain was stimulated with sounds that are not human or authentic. Now that they were tuned into the electronic thing, they were determined to pass the vibe on, shaman-style. Gradually the crowd started to comprehend what musical repetition was about. Parties that were meant for dancing were henceforth called acid parties” (Ibid., p. 38)

A “especialização” da MEP alcançada em Goa foi se concretizando

no que mais tarde seria chamado Goa Trance. A mudança estilística na

música tocada nas praias de Anjuna precisa ser lida, portanto, no contexto

da massiva expansão da cena Trance alemã (em especial as gravadoras

MFS, Harthouse, Gaia, Fax e Trigger), da explosão das Raves britânicas, e

de lendas do Trance britânico como Eat Static, Orbital e do Techno

tribal/industrial do Spiral Tribe (Ibid., p. 39). O Goa Trance foi um

amálgama de roqueiros psicodélicos, cultura clubber gay e produtores

inovadores que eram vistos como estranhos pela grande massa atuante na

MEP mundial.

A cena de Goa foi rapidamente se popularizando como um lugar

onde as pessoas poderiam ir para se proteger da falta de privacidade, um

refúgio onde os incomodados com a cultura hippie certamente não

retornariam. A distância física e cultural da civilização ocidental

potencializa o contexto sagrado desta extraordinária experiência, como

conta St John:

56    

“…the “horizontal displacements” constituted by travel (trips) to remote physical locations are often accompanied by “vertical displacements” of self and identity – “tripping” experiences that, with the assistance of DJs like sadhu Goa Gil, enable the “surrender to the vibe” (McATEER, p. 20, 2002). That the “vital relations” constituting a “good vibe” are, for many, chemically assisted, seems incontestable. While clubs such as those documented by Jackson (2004) are sites whose “hyper-sociality” is enhanced by the “chemical intimacy” of Ecstasy, a different order of sociality, indeed, a “psychedelic communitas” (TRAMACCHI 2000), is generated on and around the dance floor at psytrance events where use of psychedelics is common. As parties in exotic locations gain reputations as significant centers for reproducing “the vibe”, they attract travelers who undergo periodic journeys, often involving trials, ordeals, and “limit experiences”, and who hold expectations of the special vibe to which they gravitate and “surrender” (St JOHN, [s.d.] p. 157)

Realizadas à beira ou a alguns poucos metros do mar, as festas

Trance eram majoritariamente gratuitas e duravam a noite e a manhã

seguinte, o que trazia certas peculiaridades no que diz respeito à relação dos

frequentadores locais com os turistas. Além de representar uma

significativa parte da receita dos vilarejos, que exploram economicamente

as festas como podem: venda de bebidas e comidas, aluguel de veículos

(principalmente motos), acomodações e tráfico de drogas. Muitos desses

serviços eram feitos pelos filhos dos moradores, que cresceram convivendo

com o clima das festas.

57    

(Fig. 9 – Festa em Anjuna em 1991 tirada por Goa Gil)

A partir dos anos 1990 a cena realmente explodiu, e o Acid House e

o Techno conquistaram Goa. Com a popularização das festas, o público

menos interessado em transcendência e mais atrás de uma nova Ibiza,

começou a frequentar o lugar, ao passo que os mais espiritualizados

passaram a procurar novos destinos, como as ainda mais remotas cidades na

Índia e na Tailândia (REYNOLDS, 2012, p. 151). Ao mesmo tempo em que

havia o fluxo para dentro de Goa, houve a explosão do imaginário

eletrônico indiano no resto do mundo:

“In 1996, Goa Trance exploded into media consciousness, with the rise of parties like Return to the Source, Spacehopper, Herbal Tea Party, labels like Dragonfly, Flying Rhino, TIP, Blue Room Released, and bands like Man With No Name, Mandra Gora, Earth Nation, Hallucinogen, Green Nuns of the Revolution, Moonweed, Prana. As with the real Goa, the scene’s drug of choice far more than Ecstasy, and the LSD is supposed to be unusually pure and strong. Appropriately, the decor at Goa Trance events is psychotropic (lots of fluorescent, reflective and phosphorescent material), and the music is ornate and cinematic, full of arpeggiated synth-refrains anda mandala-swirls of sound” (Ibid.)

58    

O pesquisador Arun Saldanha passou quatro invernos consecutivos entre

1998 e 2002 nas festas de Anjuna analisando os comportamentos dos

frequentadores e escreveu uma série de livros e artigos sobre o tema do corpo em

Goa. Particularmente engajado na fase madura do movimento psicodélico, ele

encontrou no momento específico do amanhecer a hora em que ficavam gritantes

as características mais íntimas da cultura psicodélica em comparação ao resto da

MEP. Saldanha discute cinco aspectos deste momento: a massiva presença de

cidadãos urbanos indianos; o misticismo em torno do nascer do sol; a economia

visual inerente a esta subcultura; a competência cultural nas características

fenotípicas do corpo; as reações neuroquímicas do LSD (SALDANHA, 2005, p.

709).

Dentro desta análise ele observa que a força social começa a ficar

literalmente aparente a partir do surgimento dos primeiros raios de sol, quando os

indianos começam a sair da pista de dança e os brancos passam a tomar conta.

Pela manhã, quando o sol já está alto, a pista se torna praticamente branca. Os

mais radicais Goa freaks aparecem na festa um pouco antes do sol nascer e os

novatos rapidamente aprendem que uma pista garantidamente livre de indianos

ocorre só depois disso. O Trance em Goa é tanto um fator de inclusão social e

cosmológica quanto uma politização da diferença (Ibid., p. 709). A explicação

para tal fato se dá, inicialmente pela forma de lidar com o espaço, como conta:

“Indians and Europeans, for example, have differing incorporated ideas of privacy, intimacy and crowdedness. This can lead to conflict. Proxemics of a party in Anjuna quickly shows that there is much tension between the few white girls present and the many male domestic tourists, who are often drunk, given the familial and legal restriction on alcohol at home. In the Indian patriarchal imagination, fed by Western media, the scantily dressed white girls in Goa are by definition promiscuous. The only way girls can completely avoid groping and brushing is staying away from the dancefloor and the area around the bar” (Ibid.)

O sexismo racializado dos indianos é o principal problema registrado

pelas mulheres estrangeiras e seus namorados, e é na manhã o momento

chave não só para a sociabilidade e o hedonismo, mas também é o mais

racialmente segregado. DJs assumidamente tocam as músicas mais pesadas

para afastar os indianos desinteressados no som e preparar a pista de dança

59    

para os Goa freaks. De acordo com o lendário DJ de Psytrance Goa Gil,

uma festa com a vibe certa é na que as pessoas vão gradualmente se

libertando do que mantém os humanos aprisionados, a matéria. O DJ repete

em suas diversas entrevistas como considera o DJ um xamã, orientando o

público através da dança, que interpreta como meidtação ativa. Ele

seleciona seus sets de acordo com cada etapa da festa, associando a

transcendência do corpo com uma emoção específica e acompanhada de um

certo subgênero do Psytrance. Terra é o início da noite. Água é o meio da

noite. Fogo é o fim da noite. Ao primeiro raio de sol da manhã entra o Ar.

Éter é o resto da manhã (GOA GIL, 1995).

(Fig. 10 – Foto do DJ Goa Gil em festa em Buenos Aires em 2009)

No entanto, tratar o Trance em Goa com um discurso puramente

baseado no misticismo seria negligenciar a temperatura, umidade,

sociabilidade e caos na pista de dança. Os raios solares são ritualmente

distribuídos em relações sociais e configurações de comércio e prazer e é na

manhã que a sociologia dos corpos fica visível (SALDANHA, 2005, p.

712). A maneira como Saldanha analisa a relação dos corpos na festa é

destacada como uma prisão panóptica na qual os prisioneiros se vigiam

entre si:

60    

“The emergence of racial differentiation during morning phase can be considered the starkest actualization of Anjuna’s visual economy. In popular bars, Indians are usually in the dark corners, while the Goa freaks dance conspicuously in front of the deejay – you are there for everyone to see, and you have to deal with that. It is not that the distribution happens as if human bodies are balls in a lotto machine. The feelings, prejudices, expectations, ways of moving and thinking of bodies are crucial to understand why they contribute to the subcultural panopticon and how they get distributed. Goa freaks, backpackers, charter tourists, domestic tourists and locals more or less ‘know their place’ in the visual economy and negotiate that place in practice” (Ibid. p. 713).

É no limiar das características culturais de cada frequentador que as

relações vão estabelecendo seus contrastes e similaridades. O fato, por

exemplo, dos indianos conviverem de uma forma diferente com a exposição

da carne aos olhos alheios, além de terem ligações tradicionais com a terra e

os moradores. Os fenótipos e cada competência cultural também ficam

visíveis nos hábitos das práticas incorporadas pelos turistas, que distoam

dos indianos. De chinelos ou descalços, com bermudas, roupas com

desenhos do Om, adornos e flores nos cabelos e no corpo, os turistas são

evidentemente o oposto dos indianos, que são na maioria homens, novos na

música, de bigode, com calça e camiseta, gritando, batendo palmas,

pulando, se abraçando, fumando cigarros e ficando bêbados, eles

representam tudo o que os Goa freaks tentam fugir: a modernidade

mainstream (ibid. p. 13).

O autor recorre a Bourdieu: “this is Bourdieu: through the

differential experience of cultural products (trance music, clothes, tourist

services), unequal relationships between bodies are reproduced” (Ibid. p.

713). Para os freaks o paraíso psicodélico de Anjuna representa um lugar

para festejar e descansar. É claro para eles o motivo de estar em Goa: para

se transformarem, nem que seja por um determinado tempo, em party

animals e beach bums:

“They are so serious about this project of self-transformation that people who are not that people who are not that comitted to psy-trance – especially “drunk indians”, but also charter

61    

tourists and backpackers – are looked down on. However, as parties are traditionally in the open air and free, no body can be barred from entry. To ensure subcultural purity, the morning phase, while always the crux of parties, has recently become a near-exclusive event for the Goa freaks, who are almost all white. A vehement distrust of all Indians, a mystical reverence for the sun, a visual economy differentiating between phenotypes and tastes, subcultural capital and experience in drug-taking are five factors explaining why the dancefloor becomes white at dawn in Anjuna” (Ibid., p. 716)

62    

5. Hey Mr. DJ: Autoridade trans(n)acional, atos biopolíticos

Como desenvolve Ferreira, acerca de uma matéria assinada por James Fry

em um caderno especial dedicado à música eletrônica de pista:

“...enquanto a música popular tradicional era uma extensão das tradições narrativas da humanidade, destinada a transmitir informação, ensinar e divertir, a música eletrônica de pista nos desafiava a ouvir música de uma maneira diferente, a desenvolver novas habilidades auditivas” (FERREIRA, 2006, p. 3).

Ele também diferencia a identificação com o músico e do foco na

própria personalidade do artista, do DJ e do produtor da MEP como uma

estética sem ego, destinada única e exclusivamente para o movimento da

dança, da expressão corporal. Sendo assim, é gerada uma escuta menos

passiva e induzida uma participação do espectador durante a performance.

O DJ ocupa uma posição privilegiada dentro da dinâmica de

articulação dos movimentos corporais e sonoros. Neste âmbito é possível

conferir ao DJ uma forma de canal de interseção entre a produção técnica e

a demanda por diversão, lazer e entretenimento. Operando como um

“ciborgue”, o controle das conexões humano-maquínicas permitem

métodos de composição e entrelaçar de sensações, e provocam a imersão

em um ambiente sonoro onde a comunicação se dá através da dança e dos

movimentos corporais. Há uma conjunção entre a MEP e o corpo no espaço

das pistas de dança, numa nightclub ou numa rave, sendo esta comunicação

elemento importante na construção das identidades relacionadas à MEP.

Proveniente desta inauguração estética, surgiram diversos

condicionamentos éticos e dinâmicas de análise política por dentro do

próprio discurso das pistas, que resultaram na distinção de diferente

projetos pretendidos linguagens específicas. A dinâmica provavelmente

mais central e polêmica é a da dissociação micropolítica entre o

underground e o mainstream.

Essa disjunção se daria, como argumenta Ferreira, pelo underground

se destacar por preocupar-se pela experimentação, pela inovação o que

63    

enriqueceria uma cultura artística alternativa da leitura da MEP. Enquanto

isso, o mainstream funcionaria como uma proposta comercial, de

reprodução de fórmulas já consolidadas, preocupada com um retorno maior

de difusão e de lucro. É considerado, também que o underground cria antes

o que vai ser descoberto pela mídia, e quando isto ocorre, ele volta-se para

outro renascimento, com outra música e outros espaços. Sendo assim, o

fluxo de artistas no mercado normalmente se dá do underground para o

mainstream, à medida que vão ficando mais conhecidos.

É dentro do underground também que veicula a ideia do autor acerca

do caráter xamânico do status antropológico do DJ. Esta abordagem se

insere numa narrativa primitivista19 da música eletrônica, resguardada na

lapidação do espírito do DJ através das suas experiências, somada às suas

técnicas materiais de performance artística.

“A diferença entre um set comercial e um set conceitual seria, nesse caso, a diferença entre tocar para um público que exige uma performance pré-determinada do DJ e outro que está disposto a acompanhá-lo (ou ser conduzido por ele) em um conceito musical” (Ibid., p. 102)

Levando em conta o contexto histórico no qual ficou popularizada a

MEP, podemos situá-la como postura de questionamento perante

imposições políticas de sua geração. Começa a ser construída uma

identidade comum em torno da comunicação proposta por este movimento

cultural, em prol da aceitação social, da eliminação de preconceitos, que

encontrava um espaço para florescer no fenômeno de oposição da música

eletrônica em relação à música popular tradicional.

A questão a ser levantada é a respeito da transnacionalidade na

origem e na repercussão do elemento cultural e até produtivo da MEP. As                                                                                                                19 Perspectiva pela qual Ferreira argumenta que “parte de uma imagem arquetípica de rituais tribais de povos indígenas, passa pela dessacralização desses rituais durante o processo civilizatório promovido pelas civilizações europeias e chega até a ressacralização promovida pelas raves, vistas como grandes celebrações igualitárias e ritualísticas neo-primitivas”. O papel da música como orientação de uma viagem espiritual fica presente nas palavras de Seb Vaughan, DJ: “com nossa música e nossas festas não estamos tentando penetrar no futuro, estamos tentando voltar ao ponto onde estávamos antes da Civilização Ocidental estragar tudo” (FERREIRA, 2006, p. 22)

64    

fronteiras e confins nacionais já não dão conta do movimento e da dinâmica

estrutural dos espaços e das identidades compostos e influenciados por esta

música. E tal tendência só intensifica-se com o passar do tempo e o evoluir

das tecnologias. Estes espaços e identidades podem ser incluídos no fluxo

cultural global que fazem parte da complexidade que tornou-se a

globalização para Arjun Appadurai. Estas interações globais possuem uma

“complexa, transgressiva e disjuntiva ordem” e implicam numa fluidez

irregular de pessoas, tecnologias, finança, mídia e ideias (APPADURAI,

1996, p.32). Essa fluidez parte das festas, dos clubes, das raves para uma

dimensão cosmopolita através da mistura cultural de elementos locais e

globais. Esta noção de globalização pode ser relacionada à visão de Robert

Fine sobre cosmopolitanismo, onde compreende-se pelo fato que cada

indivíduo é mais do que a sua sociedade o oferece e “ocupa o espaço entre

nossa humanidade como ela é e nossas identidades locais.” (FINE, 2007, p.

134)

Portanto, este “ser mais que a sociedade” compõe nossa humanidade

e relaciona com os conceitos de ethnoscapes, mediascapes, technoscapes,

financescapes e ideoscapes que são construções profundamente

perspectivistas determinadas por atores histórico, linguístico e

politicamente posicionados.

“O indivíduo é o último lócus deste leque perspectivo de diferentes landscapes, onde estas são eventualmente navegadas por agentes que ambos experiência e constrói formações maiores, em parte a partir de seu próprio senso do que estas landscapes oferecem. Essas landscapes são blocos de construção do que eu gostaria de chamar mundos imaginados, que são, os múltiplos mundos que são constituídos pelas historicamente situadas imaginações de pessoas e grupos espalhados ao redor do mundo” (APPADURAI, 1996, p. 33).

Dentro destas landscapes a mais relevante para o papel exercido pela MEP

no mundo político é a mediascape,

“refere-se a ambos, a distribuição das capacidades eletrônicas de produzir e disseminar informação (jornais, revistas, canais

65    

de TV e estúdios de filmes), que são disponíveis para um crescente número de interesses privados e públicos pelo mundo, e às imagens do mundo criadas por estas mídias” (Ibid.)

E no âmbito dos espaços urbanos, este fluxo de informação permitiu aos

jovens, no caso específico da evolução da MEP – das nightclubs e refúgios

simbólicos no centro da cidade às festas rave distantes do olhar urbano –

mobilizarem seus corpos em direção a uma emancipação da ordem e dos regimes

impostos politicamente.

Tomando poder de uma verdadeira transgressão, a MEP através da dança e

de sua própria dinâmica de conscientização, ofereceu à juventude uma capacidade

de questionamento, ou ao menos de comunicação imune a regimes morais

tradicionais. Há, portanto uma ruptura na linha evolutiva de caráter moral

proposta por Hegel, uma vez que o desenvolvimento da razão e da compreensão

científica impossibilita um entendimento deste fenômeno mesmo em linhas

gerais.

A opinião de Adorno, com relação à reprodução estética coloca os

envolvidos no relacionamento com a arte numa posição marginal, de substantiva

alienação. Para o filósofo, o urbanismo relacionado a uma obra artística segue no

projeto de uma grande obra desinteressada, no entanto não é o que é observado

nas articulações da MEP com seus respectivos mediascapes urbanos. Neste

espaço essa grande massa dos jovens atingidos pela comunicação eletrônica

musical é levada a uma nova dimensão de comportamento e de comunicação, e

nesta dimensão são realizadas novas propostas de entendimento e de valorização

da vida.

Dentro da análise racial estabelecida por Saldanha sobre a cena Goa, há

uma crítica da teoria não-representacional, que afirma que a dança escapa das

formas de poder pois não pode ser comandada, já que não é feita de relações fixas

de meio-fim e como um mundo de formas virtuais, pode ser descrita por palavras

mas não pode ser essencialmente escrita ou falada20. Para Saldanha a teoria clama

o que a experiência é deixa como está, já que o fato de não ser falada não exime a

dança das relações de poder. O autor reconhece o valor da teoria numa abertura

                                                                                                               20 De acordo com a teoria não-representacional e conforme descrito por Thrift (SALDANHA, 2005, p. 716).

66    

das virtualidades da dança, mas reafirma que se o corpo é expressivo, o que ele

exprime se não relações sociais? Segundo ele:

“Bodies in Anjuna make unspeakable connections to cosmic forces and become segregated through unspoken prejudices about other bodies’ phenotype. They therefore ‘express’ race. It is imprecise to say that the social allows bodies no escape. Rather, the social both escapes and constitutes itself because it is embodied. Precisely because trance music is mystical, opposed to commend and multi-sensory, it leads to the emergence of race, gender and class distinctions amongs bodies ar a party. These emergences demonstrate the creativity of corporeal matter (especially as it tunes into music). Attending to the real multiplicity of experiences in the world is analysing how power relations can create themselves from differential embodiments” (Ibid., p. 717)

A ideologia contida na prática urbana da MEP foi muito influenciada

pelas inovações trazidas pelo advento das raves, que foram determinantes

para o conteúdo contestador deste movimento cultural. “Numa festa rave

apenas se celebra a celebração, num fervor sem objetivo” (PAIS, 2005, p.

61). É essa falta de objetivo a principal eficácia de uma festa e aquilo que

permite aos adeptos diferenciarem-se de outros segmentos da sociedade. É

uma evocação ao direito à diferença, de destacar sua orientação por uma

prática que se distancie da ordem trazida pelo biopoder. Para Machado Pais,

é através da música, da dança e do consumo de drogas, por exemplo, que os

jovens elaboram para si sua própria “cidadania”. Ele afirma que

“[…] o rumo a seguir é tornar-se o conceito de cidadania como uma ideia virada para o futuro, tendo em conta a realidade do presente. E o que a realidade do presente nos diz é que, se a ideia de cidadania continua associada à defesa de direitos universais, um dos mais relevantes desses direitos é, sem dúvida, o tão reclamado direito à diferença. Diferença que os jovens buscam, sobretudo, enquanto consumidores e produtores culturais” (Ibid., pp. 53-54)

Desta maneira é possível destacar a dissolução que os impulsores da

cultura underground encontram no campo da festa, em torno de uma

vivência coletiva de contestação dos ideais propostos pela ordem do

biopoder.

67    

Há aqui uma colonização do desejo, no aprimoramento da

tecnologia, que pode ser refletida na relação da música com a máquina, no

ambiente social. Ferreira (2006, p. 261) aponta para esforços em estabelecer

as diferenças entre o potencial emancipatório da “estratégia de socialização

monocêntrica” (Ibid.) encontrado na figura do roqueiro dos anos 1970 e a

inovação trazida pelo DJ. O autor critica estudos anteriores que verificavam

a MEP como nada além de assimilação e sujeição social, mediante uma

identificação com o tempo digital e o ritmo metronômico do sistema

econômico vigente, lendo-a como “manifestação sonora da submissão

conformista à ordem social dominante” (Ibid.). Em oposição a esta ideia o

autor traz à tona, de modo a estabelecer a diferença ocorrida no contexto de

assimilação social pós-Rock, os conceitos de sujeição social e servidão

maquínica elaborados por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Na sociedade capitalista contemporânea, ambas ocorrem ao mesmo

tempo, “como duas formas simultâneas que não param de se reforçar e de

se nutrir uma à outra” (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Deleuze e

Guattari apontam a servidão maquínica, em sua forma fundamental, como a

formação na qual os homens funcionam não como sujeitos, mas como peças

de uma “máquina que sobrecodifica o conjunto” numa “escravidão

generalizada”. Já a sujeição social funciona no âmbito do Estado moderno

capitalista, onde

“o capital age como ponto de subjetivação, constituindo todos os homens em sujeitos, mas uns, os ‘capitalistas’, são como os sujeitos da enunciação que formam a subjetividade privada do capital, enquanto os outros, os ‘proletários’, são os sujeitos do enunciado, sujeitados às máquinas técnicas onde se efetua o capital constante” (FERREIRA, 2006, p. 262).

Há, dessa forma, uma inovação na relação do homem com a

máquina, no contexto da expressividade artística, fundamentais para a

compreensão da nova explicação que é dada para uma comunicação mútua

interior, em detrimento de mero uso ou ação instrumentalizada. A máquina

permeia não somente as nossas vidas, automatizando nossas funções no

68    

molde do sujeito produtivo capitalista, mas também a pista de dança e seu

impacto social.

“Nesse novo contexto, ao mesmo tempo em que no nível macropolítico da representação Estatal é preservado o predomínio dos processos de subjetivação-sujeição mediados pelas máquinas, no nível micropolítico da produção desejante há uma reinvenção, “sob novas formas tornadas técnicas”, de “todo um sistema de servidão maquínica” no qual as pessoas não se colocam em lados opostos da máquina, mas sim funcionam todas como peças dela. (…) [A] dimensão xamânico-ritual da música eletrônica se explica muito mais pelos processos sociais mais recentes ligados à servidão maquínica cibernética (nos quais a diferença entre humanos e não-humanos é perspectivista) do que pelos processos sociais mais ligados à sujeição social das máquinas mecânicas (nos quais a diferença é mais essencialista)” (Ibid., pp. 263-265)

A figura de ciborgue operada pelo DJ implica na utilização da

máquina “para sondar as virtualidades da própria função” que se insere

numa ditadura da dança, da demanda extrema por entretenimento, numa

sociedade que exige cada vez mais nossa eficiência produtiva, que gera os

mecanismos para a subjetivação do trabalho, intrincando a perspectiva

capitalista no corpo social. Num contexto em que o tempo está aliado à

produção, as práticas observadas no movimento cultural da MEP parecem

confrontar a própria maneira de contar o tempo. Somado ao uso intensivo

de drogas, como num ambiente alheio às leis e aos ditames político-

jurídicos, largamente observado nestas festividades, os indivíduos

alavancadores da cultura da MEP conferem ao tempo outro aspecto

funcional, da produtividade para a diversão.

É neste aspecto que consiste o ideal político-crítico do advento da

cultura eletrônica, clubber, raver e presente na difusão da mesma no Brasil

e no mundo: “não se sujeitar a uma máquina técnica determinada com

relação à qual se é um sujeito, mas sim explorar o estado de servidão a

uma máquina social determinante da qual se é, de fato, uma peça” (Ibid., p.

266).

Utilizando a contribuição trazida por Attali é possível aferir uma

simultaneidade de múltiplos códigos trazidos na linguagem musical, e

69    

assim elaborar uma estrutura das interferências e dependências entre a

sociedade e sua música. O autor parece concordar com Debord ao constatar

a lenta degradação do uso, do consumo musical em mercadoria, e da

representação artística em repetição, mimese. A partir de uma perspectiva

pós-situacionista, o autor utiliza-se desta estrutura para explicar as relações

existentes entre a música e produção, intercâmbio e desejo no meio social.

Neste mapa, ele distingue três usos estratégicos da música através do poder:

“music is used and produced in the ritual in an attempt to make people forget the general violence; in another, it is employed to make people believe in the harmony of the world, that there is order in exchange and legitimacy in commercial power; and finally, there is one in which it serves to silence, by mass-producing a deafening, syncretic kind of music, and censoring all other human noises” (ATTALI, 2009, p. 19).

Em todos os casos, a música funciona como ferramenta de poder e sob

esta forma como uma normalização do comportamento humano perante a

primeira. Do sacrifício ritual ao ato de pertencimento, na representação; e depois à

reprodução, normalizada na repetição. Em consequência resulta a subversão do

código existente e do poder em construção. De acordo com o autor, após a

repetição observa-se a liberdade:

“mais do que uma nova música, uma quarta forma de prática musical. “(…) Representação contra o medo, repetição contra a harmonia, composição contra a normalidade. (…) Barulhos que destroem ordens para estruturar uma nova ordem” (Ibid., p. 20).

É sob esta quarta forma que a MEP parece se estruturar, em torno de

uma capacidade real de subversão da ordem imposta pela mercantilização

da arte moderna, através dos próprios meios pelo qual foi possível a sua

evolução: o desenvolvimento tecnológico. É no que orienta a narrativa

primitivista de Ferreira, que aqui funciona como uma metáfora do DJ

condutor ritualístico, que acaba se inserindo num contexto underground,

que orienta-se contra a propagação dos ideais mercadológicos e

espetacularizados da arte. A mobilização política através do seu discurso é

permeada em suas performances em meio a um contexto hipermidiático,

70    

através da articulação de elementos estéticos e condicionamentos éticos que

implodem as relações tradicionais do homem com a arte.

71    

6. Considerações Finais

O caráter xamânico mesclado com o conceito de um ciborgue são as

metáforas mais próximas de captar os sentidos na relação do DJ com o

público. Como vimos, é com o objetivo único e exclusivo de fazer dançar

que tanto o DJ nas suas apresentações, como o produtor e compositor da

MEP no computador, se orientam.

Esta finalidade última faz, em suas repercussões, desencadear uma

série de fluxos comunicacionais, seja por parte dos artistas, seja por parte

do público. Na base das inspirações e recursos artísticos está a colaboração

entre diferentes cenas, de diferentes países, que se comunicam para

aumentar suas respectivas relevâncias e fontes de elaboração e inovação

estética. Em última instância, uma rede de artistas engajando num mesmo

gênero musical eletrônico, compondo músicas similares, ou de mais comum

assimilação, resulta na criação de cenas e movimentos que acabam por

incorporar esta atividade.

Como foi visto nas análises das cenas, cada lugar teve a sua parte na

constituição de um ideal maior que seria a introdução de um som novo, que

rompesse as barreiras impostas pela música tradicional, que constituía uma

apresentação musical construída nota-a-nota. A temporalidade da

apresentação da MEP é distinta, e se constrói no música-a-música. E assim,

cada movimento encontrou sua particularidade e encaixou-a nas diversas

lacunas do que a materialização da cultura eletrônica passou a ser.

Os pioneiros certamente sentiam estar fazendo parte de algo

inovador, experimental, e aí entra o aspecto individual da MEP. O fluxo

transnacional que inspira e nutre os artistas também tem seu paralelo no

sentido unitário. Mais do que presenciar algo inédito e precursor de uma

realidade futura, o público compartilhou o sentimento da dança como chave

de comunicação. Seja entre pessoas conhecidas ou completamente

desconhecidas, o aspecto da dança funciona como linguagem própria dos

entoadores do discurso eletrônico. Uma fala comum, que politiza os

72    

ouvintes, quer estejam dançando ou decidam ficar parados. Como nos

lembra Saldanha:

“If it is interested in the heterogeneous effects music has on

bodies and things, it evidently has to include

reterritorializations and the emergence of social distinctions.

Thinking the affects of bodies through music demands not only

a keen of music’s rich relationship to all of the body’s senses,

but also an attention to all the novel physical connections that

the presence of music enables between a previously

unimaginable reange of heterogeneous components (e.g. the

connection between music and LDS, dawn, bikes, sexism,

internet, beach...) It is precisely these connestions that

differentiate bodies and make aggregations such as race,

gender, poverty, and nationality emerge and persist. Music’s

effects tend toward the political” (SALDANHA, 2005)

É na emergência dos desejos e realizações políticas que constituem-

se os elementos globais dos mediaescapes, trabalhado por Appadurai, que

nada mais é do que um panorama da “distribuição das capacidades

eletrônicas de produzir e disseminar informação” (APPADURAI, 1996). O

que acaba por constituir-se, portanto, é um bloco midiático direcionado

pelas capacidades artísticas, que politizam todos que o enfrentam.

Como visto na cena de Goa, o tensionamento da relação entre os

turistas e os nativos é presente. A negociação pessoal de cada um na

economia visual é realizada no contexto das festas comandadas pelos DJs,

que pelo lado mais robótico e sintético da MEP estabilizaram uma cultura

psicodélica e deram voz a diversas pessoas que eram mal vistas por conta

de suas preferências espirituais e estéticas. Ao mesmo tempo, os nativos

tiveram que se envolver de alguma forma com o movimento, primeiramente

tirando proveito das oportunidades econômicas oferecidas e no num

segundo momento tendo suas próprias relações internas modificadas pelo

diálogo com uma cultura antes distante. Na emergência das deslocações

73    

sociais fica comprovado o intenso abismo nas expectativas e objetivos das

extremidades do público em Goa. As clivagens étnicas e culturais não

foram superadas, permanecendo vivas, porém em constante comunicação.

Resta a questão: não fosse o Psytrance, elas conviveriam harmonicamente

num mesmo lugar?

Na cena norteamericana, ficou comprovado como a cultura negra e

homossexual se apoderou do discurso emergente da MEP para se fazer

ouvida e notada. Seja participando da pista de dança, evocando os ideais de

liberdade e aceitação social ou protestando com base em argumentos de

depravação, exibicionismo e subversão de valores morais, a inovação

trazida pelas festas dos EUA politizaram as pessoas por onde passaram.

Brancos, negros, pobres e ricos dançaram ao som dos DJs e fizeram das

cenas de Detroit e Chicago as mais comentadas até hoje. Em termos de

inovação estética e criação artística, atuou muito em simbiose com a cena

britânica, comprovando o encurtamento das distâncias que somos hoje tão

habituados.

Na cena inglesa, foi visto como cada particularidade local se agregou

em torno de uma cultura que acabou se tornando voz ativa e legítima do

poder político moderno das massas. O fato das interpretações acerca da

cena britânica se orientarem pela performance de duas bandas para anunciar

o nascimento do movimento Madchester se deve pela familiaridade geral do

público com bandas (FAWBERT, 2004, p. 15) em oposição à boates,

clubes ou Raves, como em Londres. Diferenças se dão por orientações

distintas quanto à personificação artística de cada cena. Em uma, os

integrantes das bandas capturaram a atmosfera, em outra, DJs lideraram,

mas de ambas é possível extrair a grande influência que a música britânica

teve na difusão da MEP.

É, em último caso, na individualização dos centros urbanos, que a

repercussão das micropolíticas do discurso nativo da MEP mostra sua face

mais representativa do comportamento social de cada ouvinte e cada artista:

74    

os polos do underground e mainstream. Aqui recorro à entrevista 21

realizada com Gustavo Rozenthal, um dos integrantes da dupla de Electro

conhecida como Felguk, de renome internacional22, em 2012:

“Considero que existam duas diferenças principais entre underground e mainstream. A primeira diz respeito à proposta, motivação e objetivo da cena, e a segunda diz respeito ao aspecto social. Enquanto o mainstream aponta para o entretenimento, diversão, dissolução da vida cotidiana, a cena underground é mais provocadora, gerando inquietudes do espírito, e servindo como estimulante de algum trabalho subjetivo. Socialmente, a cena mainstream é de inclusão, onde as referências com a música comercial são bem recebidas, por sua identificação com a sociedade e a vida do cotidiano. A cena underground é de exclusão, consiste numa “elitização” dos seus seguidores em relação à massa”

Seja de alienação ou congregação social o surgimento e a

alimentação dos extremos polos é a última comprovação do argumento que

a MEP é mais política do que se pensa. Em meio à jornada por entre as

principais cenas foi visto como isso foi e ainda é vivido, e assim o presente

trabalho encontra seu objetivo alcançado. A pretensão de atingir o cerne da

explicação, de como se dá a comunicação dentro da pista de dança e fora

dela espera orientar futuros trabalhos que procurem uma indicação de como

foi dada a repercussão transnacional de um movimento que tem fluxos tão

múltiplos e ordenados.

                                                                                                               21 Entrevista realizada por e-mail, em junho de 2013. 22 A dupla foi considerada na posição 78, e única representante brasileira na eleição dos Top 100 DJs realizada pela DJ Mag, uma das revistas mais conceituadas da música eletrônica. Disponível em http://www.djmag.com/top100

75    

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23 nov. 2013.

Figuras:

79    

Figura 1: Foro Theremin. Disponível em:

<http://www.thereminworld.com/Article/14232/what-s-a-theremin->.

Acesso em: 9 dez. 2013.

Figura 2: Foto Robert Moog. Disponível em:

<http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bob_Moog3.jpg>. Acesso em: 9 dez.

2013.

Figura 3: Foto Juan Atkins. Disponível em: <http://cdr-projects.com/my-

hero-toby-tobias-a-juan-atkins/>. Acesso em: 21 nov. 2013.

Figura 4: Foto Shoom. Disponível em:

<http://testpressing.wordpress.com/tag/shoom/>. Acesso em: 9 dez. 2013.

Figura 5: Recortes de tablóides. Disponível em:

<http://inlog.org/2013/04/12/friday-afternoon-silliness-back-in-the-80s-

acid-house-dragged-kids-straight-to-hell/>. Acessado em: 9 dez. 2013.

Figura 6: Pôster Sunrise. Disponível em:

<http://hyperreal.org/raves/database/images/sunriseamidsummernightsdrea

m_24jun89a.jpg >. Acessado em: 9 dez. 2013.

Figura 7: Capa do álbum Pills ‘N’ Thrills & Bellyaches do Happy

Mondays. Disponível em:

<http://en.wikipedia.org/wiki/Pills_'n'_Thrills_and_Bellyaches>. Acesso

em: 21 nov. 2013.

Figura 8: Capa do álbum The Stone Roses dos Stone Roses. Disponível

em: <http://www.amazon.com/The-Stone-Roses/dp/B0000004V2>. Acesso

em: 21 nov. 2013.

80    

Figura 9: Foto Goa Gil.

<http://www.punksunidos.com.ar/2009/07/goa-gil-argentina-buenos-aires-

21.html >. Acesso em: 21 nov. 2013.

Figura 10: Foto Anjuna. Disponível em:

<http://www.joebanana.net/joe/images/stories/Goa_Gil/Anjuna_party.jpg>.

Acesso em: 21 nov. 2013.

81    

8. Anexos: Setlists

De modo a agregar ao trabalho foi realizado um DJ set com músicas de

alguns dos principais artistas citados ao longo do texto. A compilação se

orientou pela prática da utilização das músicas em pistas de dança, fazendo

menção ao estilo de som que tocou em cada cena. O objetivo a princípio é

realizar uma ilustração sonora do trabalho, convidando o leitor a uma

jornada através de algumas das músicas que mais apareceram nos rankings

das mais conhecidas nos EUA e na Europa, e com outras que não tiveram

tanto sucesso assim, permanecendo no lado mais marginalizado do

underground. O arquivo se encontra em anexo (CD) e detalha-se abaixo:

Duração: 124 min

Nomes do arquivo e extensão: monoset.wav e monoset.mp3

Também disponível em: http://www.mixcloud.com/guilhermegueiros/set-

monografia/

A sequência das músicas utilizadas foi ordenada da seguinte forma: Nome

do Artista – Nome da Música (Álbum em que foi lançada – Ano de

lançamento). No caso de ausência do Álbum a música foi lançada como

single em vinil).

Tracklist:

Kraftwerk – Autobahn (Autobahn – 1976) Joy Division – Disorder (Unknown Pleasures – 1979) The Stone Roses – Breaking Into Heaven (Second Coming – 1995) Afrika Bambaataa – Zulu Nation Throw Down (Zulu Nation Throw Down, 1980) Happy Mondays – Tart Tart (Squirrel and G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carns Smile (White Out) 1987) Nitzer Ebb – Join In The Chant (1987) Klein & MBO – Dirty Talk (1982) Soft Cell – Torch (Non-Stop Erotic Cabaret – 1981) Kraftwerk – The Robots (The Robots 1978) Joe Smooth – Promised Land (1987) Cybotron – Clear (Clear – 1990)

82    

Afrika Bambaataa – Planet Rock (Planet Rock: The Album – 1986) Frankie Knucles – Tears (1989) S’ Express – Theme from S’ Express (1988) New Order – Bizarre Love Triangle (Brotherhood – 1986) Bomb the Bass – Beat Diss (1987) Renegade Soundwave – The Phantom (1989) A Guy Called Gerald – Voodoo Ray (1988) Northside – My Rising Star (1990) Depeche Mode – People Are People (People Are People – 1984) The Beatmasters feat. Cookie Crew – Rok da House (1987) 808 State – Pacific 202 (Ninety – 1989) Orbital – Chime (1989) Giorgio Moroder – Son Of My Father (1972) Paul Oakenfold – Southern Sun (Bunkka – 2002) The Prodigy – Break And Enter (Music For Jilted Generation – 1994) Sasha feat. Maria – Be As One (1996) Man With No Name – Floor Essence (1995)