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Para Marcelo Leite I A autonomia dos saberes modernos, quando se procura relacionar esses saberes, ocasiona muitas vezes confusões, conflitos e incompatibi- lidades. Entretanto, esses desentendimentos possuem uma razão de ser. E essa razão é a própria autonomia que todo saber moderno conquistou um dia para si. Autônomo é um saber que se regula por princípios que foi capaz de encontrar numa reflexão sobre seus fundamentos. E a expressão saber moderno nada perde em sua compreensão se referida tanto às artes e às humanidades como às chamadas ciências duras.Quer se trate de cinema, psicologia ou química, são a montagem, o comportamento e a ligação entre os átomos que responderão pelo que cada um desses saberes possui de específico. Mas nem mesmo no interior de um só saber os desentendi- mentos se tranqüilizam. A montagem pode ser de grande relevância para certos filmes, mas negar importância para outros. O comportamento EINSTEIN E A MODERNIDADE 1 Alberto Tassinari RESUMO Entre os saberes do século XX, a teoria da relatividade de Einstein é o mais desconcertante nas mudanças que propôs de noções tidas como certas. E sua repercussão foi tão avas- saladora que se acabou por negligenciar um aspecto básico: o tempo, em Einstein, é uma noção física. Nesse sentido, Einstein é um pensador moderno, se por moderno se entende o pensamento que procura fundamentar-se e criticar-se a partir de seu próprio domínio. É na sua modernidade, também caracterizada por um pensamento que caminha por hipóteses abertas à crítica, que a física de Einstein encontra um denominador comum com outros saberes modernos. PALAVRAS-CHAVE: Einstein; teoria da relatividade; tempo; física; modernidade. SUMMARY Einstein’s theory of relativity is among the most astonishing achievements of the XXth century, for it radically transforms the comprehension of concepts taken as correct. But one important point is usually neglected: time, for Einstein, is a physical notion. In that sense, Einstein is a modern thin- ker, if “modern” is to be understood as the use of the characteristic methods of a discipline to criticize the discipline itself. In its modernity, also seen as a thought built on hypothesis subject to criticism, Einstein’s physics finds a com- mon ground with other modern fields of knowledge. KEYWORDS: Einstein; theory of relativity; time; physics; modernity. NOVOS ESTUDOS 75 ❙❙ JULHO 2006 157 [1] Este artigo é a versão modificada de uma conferência proferida em 1o de setembro de 2005 no Seminário Einstein para Além de seu Tempo, organizado pelo Museu de Astrono- mia e Ciências Afins (MAST).

Einsten e a modernidade

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Para Marcelo Leite

I

A autonomia dos saberes modernos, quando se procura relacionaresses saberes,ocasiona muitas vezes confusões,conflitos e incompatibi-lidades.Entretanto,esses desentendimentos possuem uma razão de ser.E essa razão é a própria autonomia que todo saber moderno conquistouum dia para si.Autônomo é um saber que se regula por princípios que foicapaz de encontrar numa reflexão sobre seus fundamentos.E a expressãosaber moderno nada perde em sua compreensão se referida tanto às artes eàs humanidades como às chamadas ciências duras.Quer se trate de cinema,psicologia ou química, são a montagem, o comportamento e a ligaçãoentre os átomos que responderão pelo que cada um desses saberes possuide específico.Mas nem mesmo no interior de um só saber os desentendi-mentos se tranqüilizam.A montagem pode ser de grande relevância paracertos filmes, mas negar importância para outros. O comportamento

EINSTEIN E A MODERNIDADE1

Alberto Tassinari

RESUMO

Entre os saberes do século XX, a teoria da relatividade deEinstein é o mais desconcertante nas mudanças que propôs de noções tidas como certas. E sua repercussão foi tão avas-saladora que se acabou por negligenciar um aspecto básico: o tempo, em Einstein, é uma noção física. Nesse sentido,Einstein é um pensador moderno, se por moderno se entende o pensamento que procura fundamentar-se e criticar-sea partir de seu próprio domínio. É na sua modernidade, também caracterizada por um pensamento que caminha porhipóteses abertas à crítica, que a física de Einstein encontra um denominador comum com outros saberes modernos.

PALAVRAS-CHAVE: Einstein; teoria da relatividade; tempo; física;modernidade.

SUMMARY

Einstein’s theory of relativity is among the most astonishingachievements of the XXth century, for it radically transforms the comprehension of concepts taken as correct. But oneimportant point is usually neglected: time, for Einstein, is a physical notion. In that sense, Einstein is a modern thin-ker, if “modern” is to be understood as the use of the characteristic methods of a discipline to criticize the disciplineitself. In its modernity, also seen as a thought built on hypothesis subject to criticism, Einstein’s physics finds a com-mon ground with other modern fields of knowledge.

KEYWORDS: Einstein; theory of relativity; time; physics; modernity.

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[1] Este artigo é a versão modificadade uma conferência proferida em 1ode setembro de 2005 no SeminárioEinstein para Além de seu Tempo,organizado pelo Museu de Astrono-mia e Ciências Afins (MAST).

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[2] Para Habermas, a modernidade,como um processo de diferenciaçãode autonomias parciais, torna-se oproblema por excelência da filosofiade Hegel. Hegel teria sido o primeirofilósofo a buscar uma síntese de sabe-res díspares que pareciam dispensarfundamentação filosófica, pois já seapresentariam como saberes histori-camente realizados. É a unidade darazão — como um tema históriconovo ao se apresentar cindida emsaberes autônomos e já existentes —que Hegel procura reconquistar.Várias tentativas de unificação darazão diante de seus saberes cada vezmais autônomos foram feitas desdeentão. O próprio Habermas tem otema como central na sua filosofia.Sua concepção da razão como açãocomunicativa possibilita conectar ossaberes por processos de recíproca eigual avaliação e crítica por meiodessa que é, talvez, a idéia filosófica— a de ação comunicativa — maisfecunda das últimas décadas. Carac-terizá-la tão rapidamente implicaadulterá-la um tanto, assim como tê-la como inspiração para o presenteartigo sem quase citar sua letra, mas,espera-se, não sem preservar seuespírito. Ver: Habermas, J. O discursofilosófico da modernidade. São Paulo:Martins Fontes, 2000, pp. 24-33.

[3] Para uma resposta a essa objeção,ver o final deste artigo.

[4] Galileu formulou mais do queuma metáfora ao conceber que a natu-reza fala a língua da matemática.Entretanto,que assim não falasse paraAristóteles mostra o quanto a ciência éhistória e histórica. Para uma agudacompreensão do processo de matema-tização da natureza,ver:Heidegger,M.“L’Époque des ‘conceptions du mon-de’”. In: Chemins qui ne mènent nullepart.Paris:Gallimard,1986.

[5] A teoria da relatividade geral éuma das principais fontes para ainvestigação dos problemas cosmo-lógicos modernos, entre os quais o

assume feições díspares e pode chegar a opor seu aspecto biológico aoaspecto social. Já a separação entre a química e a física é tão pouco nítidaque um terceiro saber, a físico-química, se faz necessário para tratar dasregiões ambíguas.Seja rumo ao exterior,seja rumo ao interior,todo sabermoderno encontra qüiproquós, disputas ou resistências em comunicar-se.E a razão comum,vale repetir,é a liberdade que conquistaram de legis-lar para si mesmos,ainda que essa liberdade se ancore apenas na pequenailha de uma bem fundada auto-suficiência, dentro da qual, porém, osdesentendimentos também vigoram2.

A caracterização acima dos saberes modernos diz respeito tanto aseus métodos como a seus objetos. Pode-se contra-argumentar, dessemodo,que objetos muito diversos,e também os métodos de abordá-los,estão sendo subsumidos por uma noção — autonomia — ainda maissujeita a desentendimentos do que aqueles que procura assinalar3.Umaobjeção semelhante,e em tudo pertinente,é também a que questionariaa reunião — justamente porque a reunião passaria por cima do que pos-suem de diferentes e autônomos — de saberes da natureza e saberes dacultura. Não é uma ressalva, porém, que vá muito longe. Para se aproxi-mar já um pouco do tema deste artigo, que se tome, como exemplo, afísica. Seu assunto, em Aristóteles, foi também o movimento. E nissoAristóteles está junto de Newton e Einstein. Os dois últimos, entre-tanto, são autores fundamentais da física-matemática. Diferente deles,Aristóteles não examina a natureza e o movimento por meio de um ins-trumental matemático. E assim cabe a questão sobre o critério queindica ser mais condizente o estudo da natureza por métodos matemá-ticos ou não. Embora possa haver grande consenso sobre as vantagensde um estudo matemático da natureza, a decisão de matematizá-la nãopertence a seu objeto em sentido amplo, mas antes a uma tomada deposição que é mais do âmbito da cultura.Em nenhum enigmático ou,aocontrário, evidente aspecto da natureza está escrito que ela deva serconhecida matematicamente4. Nesse sentido, ainda que seja um truís-mo, mas nem sempre evidenciado, todo saber é humano, histórico,ainda que seu objeto possa ter a índole de que a existência ou não dohomem no Universo em nada o alteraria.

É desse modo que a teoria da relatividade como um saber moderno— embora neste artigo se dê destaque, sobretudo, ao espaço e ao tempona teoria da relatividade como conceitos físicos modernos — a levou aestudos sobre a origem do Universo5,mas,mesmo assim,os novos obje-tos que engendrou vieram da ambição histórica comum a todo sabermoderno de avançar em sua autonomia. Com Einstein, a física tornou-se ainda mais física, mais regulada por princípios apenas seus. A insis-tência de Einstein em afirmar que o tempo é físico e que só pode ser con-cebido do ponto de vista da física foi muitas vezes combatida por outrossaberes, em especial pela filosofia, como se verá mais adiante6. Entre-tanto, com exceção de cientistas e uma pequena parcela do público cul-tivado,pouco se atentou para o fato de que o tempo,em Einstein,é físico

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início do Universo tal qual é conheci-do (sua origem temporal) e o seu cará-ter finito (sua estrutura espacial). Oaprofundamento desses temas, po-rém,tornaria muito extenso o âmbitodesse artigo.

[6] Para um exame da posição deEinstein — de que o tema do tempo ésobretudo do domínio da física —,em contraste com o tempo dos filóso-fos, contraste que marcou seu debatecom Bergson em 1922, ver: Merleau-Ponty, M. “Einstein et la crise de laraison”. In: Signes. Paris: Gallimard,1980, p. 248.

[7] Einstein faz uma reflexão de inte-resse nesse sentido,sobre a física cons-tituir-se na soma dos conhecimentosque podem ser expressos matematica-mente. Ver: Einstein, A. “Os funda-mentos da física teórica” (1940). In:Escritos de maturidade. Rio de Janeiro:Nova Fronteira,1994,p.103.

[8] Por princípio da relatividade, quenão é de Einstein, e que remonta aGalileu mas Einstein levou às últimasconseqüências, deve-se entender queas leis físicas são relativas a um deter-minado conjunto de sistemas decoordenadas espaciais e temporais.Na teoria da relatividade especial,Einstein procurou por leis físicas quefossem as mesmas em especial parasistemas inerciais. Para a noção desistema inercial, ver a nota 9. O prin-cípio da relatividade é o princípio dosprincípios da física de Einstein.Procurar leis válidas para um conjun-to de sistemas de coordenadas oupara todos é algo que sempre moveu opensamento físico de Einstein.

[9] Pode ser considerado inercial,emrelação a um sistema em repouso,todosistema também em repouso ou comuma velocidade constante em relaçãoao sistema em repouso, e constantenão só em valor mas também em dire-ção e sentido,ou seja,que se transpor-te ao longo de uma reta num de seusdois sentidos e apenas num. O siste-ma em movimento é dito inercial,assim como o é um em repouso, por-que seu estado não muda, ou seja, suavelocidade constante ao longo de umareta não muda, a não ser que exista aação de uma força. Houvesse umaforça, o sistema se aceleraria, e assimabandonaria o estado constante eimutável, ou seja, inerte. A noção deinércia não é intuitiva. Se algo semove, uma outra coisa deveria movê-

e nada mais do que físico. Sua modernidade está nisso. Caso se pensecomo um físico, e essa é uma das lições de Einstein, quase nada que afísica não possa estabelecer por meio da própria física deve entrar nosseus conceitos. O que pode levar, é certo, a uma pergunta incômoda: oque é a física para que se possa dizer se determinada noção que empregaé física ou não? Felizmente,Einstein não se enveredou demais por espe-culações desse tipo7. A física, antes da teoria da relatividade, era, grossomodo, a mecânica newtoniana e o eletromagnetismo de Maxwell. E umsaber moderno parte sempre do que já é história em seu domínio, e issomesmo se fizer perguntas mais abstratas sobre sua essência. Foi, assim,pelo questionamento de alguns pressupostos não físicos da mecânicanewtoniana que Einstein — estimulado, em especial, pela teoria deMaxwell — reformulou o conceito físico de tempo e o de espaço. Com-parada com a noção einsteiniana de tempo, a noção de tempo newto-niana se mostra — a palavra é em tudo apropriada — metafísica.E assimse mostra, sobretudo, depois que Einstein transformou o tempo numtema moderno e próprio da física. O tempo, em Einstein, vale semprerepetir, é físico. E não é nada mais do que físico.

II

Uma explanação concisa sobre o tempo na teoria da relatividadeespecial8 — temas da teoria da relatividade geral serão tratados mais àfrente — só pode ser conceitual e deixar equações e deduções maiscomplexas de lado. Antes de Einstein, uma acurada reflexão sobre otempo físico não se pôs porque uma noção correlata, a de simultanei-dade, era abordada de modo inteiramente diverso. Todas as partes doespaço, na física newtoniana, são simultâneas num mesmo instante. Eo tempo, por sua vez, é compreendido como a sucessão de instante ainstante da totalidade do espaço.Há um só tempo,um tempo absoluto,na física de Newton e também um só espaço, um espaço absoluto, quese atualiza por inteiro a cada virada de um instante no seguinte. A teo-ria da relatividade especial, porém, se baseia em dois princípios quelevam a uma nova compreensão da simultaneidade de um ponto de vista físico.Pelo primeiro princípio,que não é outro que o princípio da relatividade,devem-se procurar por leis que sejam as mesmas para diferentes siste-mas de coordenadas. No caso da relatividade especial, leis válidas paradiferentes sistemas inerciais9.Até aqui,não há diferença entre Einsteine Galileu ou Newton.Também os dois últimos procuraram leis comunspara diferentes sistemas inerciais. Ou seja, leis que sejam válidas parasistemas que se movam uns em relação aos outros com velocidadesconstantes em valor, direção e sentido. Mas dado que um sistema semove em relação a outro, torna-se necessário encontrar o que há deinvariante entre eles. Para Newton e Galileu, o tempo e a simultanei-dade são invariantes, assim como o espaço. As diferentes velocidadesentre dois sistemas inerciais navegam, assim, no mesmo tempo, no

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la.Assim pensava Aristóteles.Mas se avelocidade não muda em valor, dire-ção e sentido,não há aceleração,pois aaceleração é a medida da mudança davelocidade. E não havendo aceleraçãonão há força ou mudança do estado demovimento do sistema.

mesmo espaço e simultaneamente um ao outro.Se um sistema está emrepouso e nele transcorrem dez segundos, num sistema que se movi-menta em relação ao que está em repouso também transcorrem dezsegundos. Se num dos sistemas ocorre um evento em determinadointervalo de tempo, a partir do outro sistema o mesmo evento seráobservado no mesmo intervalo de tempo, ou seja, a cada instante numsistema corresponderá o mesmo instante no outro. O que é o mesmoque dizer que são simultâneos. Se as distâncias entre dois sistemas sealteram em razão da velocidade que os afasta ou aproxima, não é o pró-prio espaço que varia,mas os comprimentos percorridos pelos diferen-tes sistemas no mesmo espaço com uma métrica invariável.

Se o princípio da relatividade é comum a Newton e Einstein, osegundo princípio da teoria da relatividade especial vem mudar porcompleto os termos da questão.Um novo invariante é postulado:a cons-tância da velocidade da luz no vácuo independente da velocidade dafonte emissora de luz ou da velocidade do receptor.Essa velocidade, tre-zentos mil quilômetros por segundo,sendo a mesma em relação a qual-quer sistema inercial, transforma inteiramente as noções newtonianasde simultaneidade, tempo e espaço para sistemas com velocidades daordem de grandeza da luz.

Num sistema considerado em repouso (S), se um sinal luminosopercorre verticalmente uma distância L , reflete-se num espelho eretorna ao ponto inicial,num sistema com uma velocidade da ordem degrandeza da luz (S’) em relação ao primeiro, o mesmo fenômeno serávisto,a partir de S ,não como uma linha que sobe e desce verticalmente,mas como dois lados de um triângulo de altura L , semelhante à situa-ção de alguém que corre na chuva e a sente dirigindo-se inclinada con-tra si. O mesmo fenômeno ocorrido em S será visto, assim, de formadiferente em S ’, se observado a partir de S . Isso porque a velocidade daluz é constante e demorará mais tempo para percorrer os dois lados dotriângulo de altura L do que duas vezes o comprimento L .Os dois fenô-menos iguais,desse modo,quando visto em S e em S ’ a partir de S ,casotenham inícios no mesmo instante, terão como términos instantesdiferentes. Dito de outro modo, não são simultâneos. E não o são por-que a velocidade de S ’ em relação a S , sendo da ordem de grandeza daluz, impede que a luz caminhe com rapidez entre o início e o fim dofenômeno observado. Embora muito grande, a velocidade da luz deixade fornecer a simultaneidade costumeira para fenômenos de baixavelocidade. Passa, por assim dizer, a competir com velocidades próxi-mas a ela. Não seria o caso, então, de somar a velocidade de S ’ com a daluz para evitar tais diferenças de medidas? Tal soma, porém, não é pos-sível,pois resultaria na própria velocidade da luz conforme o postuladoda sua constância. Essa nova simultaneidade, que não é da totalidadedo espaço num único instante, mas conseqüência da capacidade limi-tada da luz ao percorrer o espaço com uma velocidade finita, é a pedrade toque da teoria da relatividade especial.

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[10] Quando se diz que um sistemaem repouso vê num outro, em movi-mento, na teoria da relatividade espe-cial, medidas de espaço e tempo alte-radas, isso não quer dizer que quemestá no sistema em movimento tam-bém as veja assim. Estar num sistemasignifica estar em repouso em relaçãoa ele. Desse modo, em movimentoestará o outro. Dito de modo maisclaro,o que está em A vê medidas em Aiguais ao que está em B vê medidas emB.As diferenças de medidas só surgemquando um dos dois vê medidas nooutro. E as diferenças são as mesmas,pois a velocidade de A em relação a B éequivalente à de B em relação a A,poisambos são sistemas inerciais, portan-to não acelerados um em relação aooutro. Na teoria da relatividade espe-cial as diferenças de medida são simé-tricas.Resumindo:se de A se observa zem B, de B se observa z em A; e se Aobserva Z em A, B observa Z em B.

[11] Essa é, por exemplo, a posiçãode Merleau-Ponty.Ver:Merleau-Pon-ty, M. “Einstein et la crise de la rai-son”, pp. 246-48.

Se a simultaneidade é relativa ao sistema em que ocorre, uma em S ,outra em S ’ visto de S , o tempo, suas medidas, também se modifica. Osinal de luz que sobe e desce a distância L em S demora mais tempo parapercorrer os dois lados do triângulo em S ’ visto por S . O intervalo demedida do tempo é, assim, mais longo em S’ do que em S. O que em S sepassa em dez segundos,em S’ passa em menos tempo.Essa chamada dila-tação do tempo da teoria da relatividade ajuda a explicar outra diferença demedida: os diferentes comprimentos de dois objetos iguais quando vis-tos em S ou em S’ visto de S. Basta pensar na luz percorrendo as dimen-sões dos objetos para fornecer suas medidas em S e em S’ visto por S.Nosegundo caso, o tempo será menor, como visto acima, e a medida dasdimensões do mesmo modo. Assim, o que se passa em um segundo emum sistema em repouso,num sistema inercial em movimento em relaçãoao primeiro se passa em menos tempo, assim como os comprimentos semostram menores. Esses são o tempo e o espaço físicos relativísticos deEinstein no que diz respeito à diversidade de medidas do tempo e doespaço.E visto que as diferentes medidas resultam do postulado físico daconstância da velocidade da luz,pode-se dizer que o tempo,ou suas medi-das físicas — o que dá no mesmo — baseia-se, em Einstein, apenas emconceitos físicos. Daí sua modernidade e autonomia, como antes sesalientou, pois seus princípios encontram fundamentos numa reflexãoque se faz no interior do domínio da própria física.

O enigma de toda a questão não está tanto nos diferentes espaços etempos medidos, pois são apenas diferenças de medida10. O enigma é aconstância da velocidade da luz.Mas é um enigma,no entanto,que,de umponto de vista físico — e em Einstein tudo é físico, independentementedas extrapolações que se faça para fora da física —,é em tudo justificável.A física trata de velocidades de entes físicos reais.Ora,não havendo velo-cidade maior que a da luz, ela não admite a transformação por soma emaltas velocidades — como seria a soma, no exemplo anterior, da veloci-dade da luz com a do sistema S ’ em relação a S —, porque se obteria amedida de uma velocidade que o Universo físico, em tudo físico, nãosuporta, pois, não fosse a da luz, uma outra velocidade finita que nãoaceite soma deveria existir.O que é também um modo de dizer que não hávelocidade infinita na física, pois apenas uma velocidade infinita justifi-caria a soma de velocidades acima da maior grandeza de velocidadeconhecida até onde a imaginação o desejasse. Nesse caso se somaria c (avelocidade da luz) o quanto se quisesse: c + c + c + … No limite, isso dáuma velocidade infinita.Se,além do Universo físico,algo é capaz,por umsinal que percorreria o Universo numa velocidade infinita, de tornar oUniverso inteiro simultâneo,independentemente da finitude com que ossistemas se comunicam,enfim,além da finitude da velocidade da luz,essealgo não é físico.Traduz,talvez,experiências cotidianas com objetos pró-ximos e simultâneos para todo o Universo, mas não de maneira física11.Ou então esse algo é divino,pois,numa infinitude que seria só dele,dariado espaço, num só instante, a simultaneidade de todas as suas partes. É

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mais por ter tocado,entre outras coisas,nos pressupostos metafísicos dafísica newtoniana que Einstein,paradoxalmente,parece ter abalado con-vicções quase intransponíveis sobre o que é o tempo,o espaço,o Universoe assim por diante. Mas Einstein estava fazendo física, nada mais do quefísica, e não demonstrando a inexistência de Deus ou a invalidade deexperiências individuais cotidianas, as quais, vale dizer, são muito maiscomplexas que as da física quando se entrelaçam com o mundo,o tempoe o espaço conforme se os vive.

Embora as conclusões de Einstein só digam respeito à física, elasacabaram, bem ou mal interpretadas, por abalar as noções de espaço,tempo e simultaneidade, que, na física newtoniana, não se chocavamcom as concepções cotidianas ou filosóficas desses temas. É de esperar,assim,que uma revolução na física tenha gerado como subproduto umaespécie de revolução também nas noções cotidianas e/ou filosóficas queportam os mesmos nomes:espaço,tempo,simultaneidade.Era-se new-toniano e não se sabia. Ou Newton era um metafísico e isso não trans-tornava quase ninguém. Mas para dar um fim a tal duelo de titãs, que sevolte para o tema mais abrangente deste artigo.A caracterização acima dateoria da relatividade especial como saber moderno, mesmo rápida, sejustifica para que confusões, conflitos e incompatibilidades na relaçãocom outros saberes modernos sejam mais bem explicitados a seguir.Cabe aqui um exame, nesse sentido, da maior consonância que haviaentre a física de Newton e um outro saber a ela contemporâneo:a pinturaperspectiva. A comparação tem o intuito de preparar outra comparaçãoentre a teoria da relatividade e a pintura cubista. Em que sentido, reto-mando o fio da meada, a física de Newton e a perspectiva são condizen-tes? Há um espaço absoluto em Newton.Assim como a velocidade da luzem Einstein é imune às diferentes velocidades dos sistemas inerciais,emNewton o espaço absoluto cumpre um papel assemelhado.É um espaçoimóvel que a tudo acolhe, em repouso ou movimento, e que serve comoreferência última para todos os sistemas inerciais.Suas partes,diferentedo espaço da teoria da relatividade especial, são todas simultâneas numúnico instante. E é assim também que de instante a instante o tempotranscorre sem interferências de medidas diferentes. O tempo de New-ton, em outras palavras, também é absoluto. Imutável, independente davelocidade de um sistema inercial em relação ao espaço de repouso abso-luto, os intervalos entre seus pulsos nunca muda. Como se mostram oespaço e o tempo newtonianos numa pintura perspectiva?

A perspectiva é um método de projeção que imita a visão humana doespaço. Essa imitação possui limitações. Pressupõe um olhar de umúnico olho e também fixo diante da cena espacial projetada. Afasta-se,assim, de inúmeros aspectos da visão tal qual se a experimenta. Essaslimitações,porém,não desfazem a ilusão de ver o espaço e,nele,os serese coisas através do plano da tela da pintura. São limitações, entretanto,porque seguem à risca leis geométricas e matemáticas de transformaçãodo espaço tridimensional da física de Newton em uma superfície plana.

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[12] Para Panofsky, a perspectiva,empregando um conceito de Cas-sirer, é uma forma simbólica. Traduzpara a percepção, assim, o mesmoespaço teórico da física-matemáticaque se conecta por leis lógicas.O con-ceito de forma simbólica, porém,necessita de unidades conceituais —o espaço, por exemplo — que semanifestem de modos diversos. Ora,se isso parece dar certo para a pers-pectiva e o espaço newtoniano, parasaberes modernos essa unidade éfugidia ou mesmo inexistente. ComoHegel (ver nota 2), Cassirer, e naseqüência Panofsky, postulam aindaconceitos filosóficos que abarquem atotalidade do saber. As poucas com-parações entre saberes distintosneste artigo procuram mostrar queisso não é possível. Um conceito derazão não soberana e que promova arazão como um processo formal deequipotência dos saberes, como a deHabermas, é algo mais modesto, masmuito mais condizente com a relaçãoentre os saberes nos tempos atuais(ver nota 2). Ver: Panofsky, E. La pers-pectiva como forma simbólica. Barce-lona: Tusquets, 1978, p. 26.

[13] Para a relação entre perspectivae instante de uma ação, ver: Gom-brich,E.H.L’Art et l’illusion.Paris:Gal-limard, 1971, pp. 167-76.

[14] Para uma análise minuciosa dasconfusões conceituais entre a físicamoderna e arte moderna, ver: Scha-piro,M.“Einstein e o cubismo:ciênciae arte”.In:A unidade da arte de Picasso.São Paulo:Cosac & Naify,2002.

Pode ser dito, assim, que o mesmo espaço tridimensional da física seexpressa na perspectiva12. Já a teoria da relatividade especial não possuium espaço que seja todo simultâneo num único instante e cujos instan-tes, na sua sucessão, ou seja, o tempo, independa da medida do espaço evice-versa. No espaço newtoniano, porém, é por ser a simultaneidadeapreendida num único instante que a imitação da visão é possível13. Étentador procurar na negação do espaço perspectivo pela arte modernauma equivalência expressiva com um outro espaço físico. O candidatosó pode ser o espaço físico, mas também o tempo, da teoria da relativi-dade, pois não há outros à disposição. Dado que o momento mais revo-lucionário da pintura moderna foi o cubismo, em especial o cubismo de1911, tentaram-se inúmeras tentativas de aproximação de Einstein comPicasso e Braque,para simplificar a questão.Abreviando muito,tentava-se introduzir a dimensão temporal, mais de um instante, numa pinturacubista14. E de fato a pintura moderna, já antes do cubismo, no impres-sionismo,por exemplo,se temporaliza,pois,ainda que sem uma ordemestabelecida para o olhar,as marcas de produção da obra saltam à vista eas percorre como se a pintura pedisse a introdução de tempo para serolhada. Mas também por uma pintura perspectiva o olhar não passeiaentre as partes? Na pintura moderna,contudo,o olhar não vaga diante deum espaço congelado num instante,mas num ir para cá e para lá que saltanum espaço de mais de um instante, pois se duas pinceladas são vistascomo que soltas e quase autônomas numa pintura impressionista, elassignificam dois momentos diferentes de execução da obra.

A relação entre espaço físico e espaço pictórico na pintura perspec-tiva é homológica. Os dois espaços são matemáticos, assim como asregras de transformação de um no outro. Já a relação entre a teoria darelatividade e a pintura moderna é analógica. Um espaço não matemá-tico expressaria um outro que é matemático. Além disso, as analogiassão frágeis.O tempo surge tanto na pintura impressionista,na cubista eem muitos outros tipos de pintura moderna,se não em todas.Esse cará-ter vago,e sua flexibilidade,através do qual o espaço e o tempo relativís-ticos foram interpretados pela arte, acabaram por se disseminar, assim,para todas as artes.Uma arte do tempo,como a poesia,ganhou espaço,ea maneira de arrumar as letras na página foi ganhando tal importânciaque poesia e desenho passaram a se confundir.Uma outra arte do tempo,a música, também passou a espacializar-se pela distribuição de instru-mentos na sala de audição até a transformação das pautas em nova formade música (ou desenho). Pode-se, é verdade, argumentar que os artistasmodernos testavam, desse modo, os limites de seus saberes. E o argu-mento é válido.Mas não foram poucas as vezes que recorreram às noçõesde tempo, espaço e simultaneidade de Einstein. O que só gerou confu-são conceitual. No domínio da arte, porém, a confusão é muitas vezesfecunda. Então se o discurso que confusamente as sustentava acabavapor ajudar na produção de boas, e mesmo grandes, obras, por efeitoretroativo de toda ideologia as confusões conceituais também pareciam

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[15] Argan compreende o cubismocomo um processo de assimilaçãoestrutural de espaço e coisa. A analo-gia entre massa como coisa e campocomo espaço é talvez a melhor analo-gia que se possa fazer entre uma pin-tura cubista e o universo físico da teo-ria da relatividade. Mas ainda se tratade uma analogia.

corretas,dado que as obras possuíam qualidade.E quase nunca se preci-sou, já que tudo era confuso, nem mesmo distinguir a teoria da relativi-dade especial da teoria da relatividade geral.

Se a teoria da relatividade especial se aplica apenas a sistemas iner-ciais, a relatividade geral se aplica a qualquer sistema físico que sejatomado como sistema de referência para todos os demais.O princípio darelatividade permanece; mas agora, passo fundamental, as leis físicasdevem dar conta de qualquer sistema. O espaço e o tempo absolutos deNewton garantiam a estabilidade dos sistemas inerciais. Era possível,assim, dizer quando um sistema de referência não era inercial e, dessemodo,sujeito à ação de uma força.Sem espaço e tempo absolutos,o quejá valia para a relatividade especial, a relatividade geral não tem ondeancorar os sistemas de referência. Qualquer sistema de referência agoravale para descrever as mesmas leis físicas. As disputas entre Galileu e aIgreja — se é a Terra ou o Sol que está no centro do Universo — perdemsentido físico — embora não para a história e a história da ciência —,pois tanto a Terra como o Sol podem ser adotados como sistema emrepouso ou, ainda, como o sistema referencial a partir do qual o outro édescrito.Entretanto,há massas maiores do que outras no Universo.E nolugar de dizer que uma força gravitacional exerce efeito direto à distânciasobre um corpo,Einstein dirá que toda massa possui um campo gravita-cional em torno dela, assim como, apenas para dar uma idéia, limalhasde ferro se curvam em caminhos entre dois pólos de um imã.

A noção de campo gravitacional é fundamental na relatividade geral.Se qualquer sistema serve como sistema de referência, as diferentesmassas,porém,desenham o Universo por meio de seus campos gravita-cionais de modo inequívoco. Esse desenho, se assim pode ser dito, nãomuda,ou,melhor dito,muda constante mas não arbitrariamente,pois oSol e a Terra, para continuar com o mesmo exemplo, não estão em qual-quer parte em qualquer momento. Essa espécie de membrana que juntaos campos gravitacionais que se entortam um tanto aqui depois voltama uma posição pela qual já passaram, e assim por diante para todas asmassas e campos gravitacionais, não é outra coisa do que o Universofísico15.Não há,na relatividade geral,espaço e tempo anteriores às mas-sas que viriam habitá-los. Ao contrário, o Universo físico é suas massase seus campos gravitacionais.O desenho que daí resulta é o desenho doUniverso. E de novo a luz tem que ser reinterpretada. Se na relatividadeespecial ela possuía velocidade constante em relação a qualquer sistemainercial,na relatividade geral ela se conduzirá pelas linhas do desenho doUniverso.Mesmo não possuindo massa,a luz é energia,e também sofrea ação de um campo gravitacional.A luz,desse modo,caminhará em cur-vas, e curvas as mais diferentes, conforme o campo gravitacional resul-tante das massas próximas. Uma luz que percorre curvas não pode,porém, ter velocidade constante, pois a mudança de posição, ainda quese mantenha a mesma grandeza, requer aceleração, assim como quandoum veículo ao fazer uma curva requer uma aceleração para não sair em

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[16] Ver nota 10.

[17] Ver: Merleau-Ponty, M. “Ein-stein et la crise de la raison”,p.246-49.

[18] Ver: Bergson, H. Durée et simul-tanéité. Paris: PUF, 1998, p. 195.

linha reta, e isso sem que mude a marca do velocímetro. Na relatividadeespecial, as diferentes medidas que um sistema A via em B eram simé-tricas às que B via em A ,pois,sendo inerciais,tanto fazia considerar A ouB como o sistema em repouso16. Embora a relatividade geral amplie ossistemas de referência e o Universo possa ser descrito tomando qualquerdos sistemas como estando em repouso,a descrição será a de um mesmodesenho visto de posições que não são simétricas. Se se considera o Solcomo o centro de um relógio e cada trajetória de Mercúrio em torno doSol como a figura de um ponteiro, as observações astronômicas mos-tram que o andamento do tempo para Mercúrio é mais lento do que paraa Terra.Mas não há simetria de medidas entre Mercúrio e a Terra se ado-tados como sistemas de referência, pois, qualquer que seja o ponto devista adotado, Mercúrio navega num ritmo mais lento por estar maispróximo do Sol e, portanto, sujeito a uma região de maior atração docampo gravitacional do Sol.

A simetria nas medidas entre dois sistemas de referência inerciais narelatividade especial não é difícil de admitir.Se tanto faz escolher A ou B,asituação só pode ser simétrica. Entretanto, tanto faz a escolha de A ou Bjustamente porque sistemas inerciais não são acelerados ou,melhor dito,justamente porque não há a presença de massas com campos gravitacio-nais em jogo. Já onde há massas e gravitação, tanto faz escolher C ou D,porque qualquer sistema de referência pode ser adotado.Mas não porquesejam simétricos. Então C ou D não simétricos podem ser adotados paraquê? Para a descrição do Universo físico ou de parte desse do ponto de vistade C ou D.E o ponto de vista,por exemplo,de uma massa pequena como ada Terra,em relação à do Sol,não é o mesmo ponto de vista do Sol. A ques-tão é importante,pois,a partir dela,as relações da teoria da relatividade comoutros saberes deixa de ser confusa, como se viu para o caso das artes, epassa a ser de confronto.O mais célebre desses confrontos foi o que se deuentre Einstein e Bergson.Para o segundo,tratava-se de afirmar a existênciade um tempo único.Para o primeiro,a existência de mais de um tempo,doponto de vista físico. O argumento básico de Bergson, como bem o des-creve Maurice Merleau-Ponty, é a simetria entre os referenciais17. E isso écorreto na teoria da relatividade especial. Quanto à relatividade generali-zada,Bergson pouco trata dela e, quando trata,insiste na simetria de siste-mas acelerados uns em relação aos outros18.Mesmo que se refira a camposgravitacionais, nunca diz nada, salvo engano, da invalidade da constânciada velocidade da luz na relatividade geral.O Universo de Einstein descritopor Bergson deixa de lado seu desenho real, pois, ao admiti-lo, teria queadmitir também diferentes campos gravitacionais e diferentes tempos.Mas existirá mesmo mais de um tempo,como defende Einstein,do pontode vista físico? A resposta é sim e não. Que se tome como exemplo o céle-bre problema dos gêmeos e se aceite,como requer a relatividade geral,queo gêmeo viajante do espaço cósmico com presença de campos gravitacio-nais retorne mais moço do aquele que permanece na Terra. Pode-se a par-tir daí falar em mais de um tempo?

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[19] Ver: Merleau-Ponty, M. “Ein-stein et la crise de la raison”, p. 248.

[20] Merleau-Ponty refere-se à polis-semia do termo tempo no debate entreBergson e Einstein, e inclusive comoaceita por Einstein. Dessa rica obser-vação, porém, nem Einstein, nemMerleau-Ponty ao comentar o debate,fizeram uso para levar a disputa a umacordo. Ver: Merleau-Ponty, M. “Ein-stein et la crise de la raison”, p. 248.

[21] Merleau-Ponty quase dá a en-tender que a pluralidade de temposem Einstein implicaria a inexistênciade um único mundo. Ver: Merleau-Ponty, M. “Einstein et la crise de laraison”, p. 247.

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É espantoso pensar que dois pensadores tão sutis quanto Bergson eEinstein não possam ter chegado a um acordo. Cada um, certamente,defende seu saber.Um,a filosofia que renovou.O outro,a nova física queelaborou. E décadas mais tarde Merleau-Ponty ainda insistirá nos“erros” de Einstein19.A maior distância que hoje se tem do debate talvezajude a entender que a palavra tempo não tem todos os seus aspectosiguais para Bergson e para Einstein20.A insistência de Einstein nos dife-rentes tempos, do ponto de vista físico, está condenada a não sair dafísica.Nesse sentido,nem Einstein pode erigir a física em verdade sobreo tempo filosófico e/ou cotidiano;nem Bergson poderia,como o fez,cor-rigir a física de Einstein insistindo na simetria de sistemas acelerados.Sea resposta é sim e não sobre a diversidade de tempos é porque é precisoentender o que se diz quando se pronuncia tempo em contextos de dife-rentes saberes. Suponha-se que o gêmeo viajante acabe de retornar deviagem. Encontrará, então, o irmão envelhecido. Mas em que tempo oencontrará? A resposta só pode ser “no mesmo tempo”, pois de outromodo não se encontrariam. Nesse sentido, não há diversidade de tem-pos. E, muito menos, não há diversidade de mundos, coisa que, salvoengano, Einstein nunca afirmou21. O ponto de vista de Bergson estarácorreto, pois os gêmeos se encontrarão no único tempo que existe. Masesse tempo único já não existia também durante a viagem? Para Bergsonsim,pois não pode haver dois tempos.No entanto,os “relógios-gêmeos”(diga-se assim) marcam horas ou anos diferentes.Mas não há aqui umafalha conceitual dos dois pensadores em melhor compreender, um nopensamento do outro, a relação entre a passagem do tempo e o tempo?Quando duas maçãs iguais são compradas verdes e uma é guardada nageladeira e a outra não, se dirá que o apodrecimento de uma se deve àvelhice e o frescor da outra à juventude? Se dirá que estiveram em doistempos diferentes ou simplesmente que certas reações químicas sederam num ritmo maior em uma delas?

A pergunta pode parecer impertinente,pois diferentes temperaturasnão são diferentes tempos e um campo gravitacional maior que outronão é uma geladeira que atinja temperaturas mais baixas. Entretanto, aadmissão de diferentes tempos na teoria da relatividade geral significaque processos físicos iguais, e apenas físicos, registram diferentes con-tagens de repetições de fenômenos também iguais. A cada uma dessasrepetições não cabe chamar intervalo de tempo se por tempo se entende umtempo único e no qual os aparelhos, ou gêmeos — para impressionarmais a imaginação —,acabarão por se encontrar.Mas se para exprimir adiversidade de tempos se empregar, mesmo assim, a expressão intervalode tempo,então a palavra tempo tem que se referir a algo apenas físico e quenão se confunda com a experiência temporal dos homens.Supondo queo gêmeo viajante ainda seja um homem,ele experimentará expectativas,pensará se viverá até encontrar o irmão que verá envelhecido, pois teráestudado teoria da relatividade e assim por diante.O tempo da experiên-cia humana é bem diferente de repetições de fenômenos iguais. E não

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[22] Tratou-se de um confrontosobre a individuação de fenômenosfísicos.Para Einstein,uma teoria físicadeve dar conta de individuar por com-pleto — no espaço,no tempo e outrasvariáveis — o fenômeno a que se refe-re. A física quântica, porém, quantomais se aperfeiçoava,mais era incapazde dar conta da dualidade partícula/onda dos fenômenos subatômicos.Aocontrário, cada vez encontrava equa-ções novas e conteúdos novos queincorporavam a dualidade. Diante detal quadro,Bohr propôs o princípio dacomplementaridade. Seria inerenteaos fenômenos subatômicos e aosmodos experimentais e matemáticosde abordá-los, mostrarem-se apenassob um de seus aspectos: corpo ouonda, posição ou movimento. Bohr,propõe, então, que o fenômeno é omesmo e que é preciso complementarum aspecto com o outro para atingirsua unidade. Como essa unidade éapenas pressuposta, muitas medidasexperimentais do mesmo fenômenoeram requeridas para fixar um dosaspectos que se esperava observar. Afísica quântica, assim, usa métodosestatísticos. A estatística, contudo,nunca foi algo a que Einstein se opôs.Ao contrário, Einstein realizou traba-lhos teóricos em mecânica estatísticaque por si só o fariam um dos grandesfísicos do século XX, assim comoganhou o prêmio Nobel por sua con-tribuição à física quântica. O nó dapolêmica não eram os resultadosexperimentais e as formulações mate-máticas cada vez mais apuradas. IssoEinstein evidentemente reconhecia, eaprovava. Reprovava que não sepudesse obter uma teoria que indivi-duasse os fenômenos, diga-se assim,de um só golpe. No lugar de aspectoscomplementares de um fenômeno,Einstein procurava teorias de fenôme-nos completos.A posição de Bohr pre-valeceu. É mais condizente com a físi-ca quântica e dá a seus praticantesmaior segurança. Einstein, entretan-to, tinha uma concepção da relaçãoentre teoria e realidade que não foiquestionada para suas teorias.A ques-tão,a filosófica,pelo menos,continuaem aberto.

apenas no aspecto quantitativo; são, sobretudo, tempos qualitativa-mente diferentes. O tempo, no sentido físico, é apenas repetição domesmo. É um relógio, que anda mais lento ou mais rápido, e nada mais.São as células de dois gêmeos que se renovam mais rapidamente no quepermaneceu em Terra do que no que viajou pelo Universo. É incômodo,assim,pensar que Einstein pudesse ver na física o fundamento do tempoem todas as suas acepções e Bergson, na intuição filosófica, capacidadepara corrigir cálculos de física-matemática. Einstein, nesse sentido, agecomo um filósofo no sentido tradicional de uma filosofia que pretendetudo abarcar.Bergson,por seu turno,dá como conquistado esse territó-rio do tudo da filosofia e,mesmo onde talvez não houvesse ameaça a ela,se pôs a corrigir Einstein.Talvez a posição de Einstein se deva a que,alémde físico, e por tão bem delimitar o que é uma questão física e não, diga-mos, metafísica, não pudesse deixar, levado mesmo por seu objeto deestudo, de também pensar além do que delimitou. No confronto comBohr, debate que se moveu no interior da física, a postura filosófica deEinstein não é muito diversa. Einstein pensava a física como uma ques-tão apenas física,mas não apenas;ou,melhor dito,sempre que parecessecondizente, também abordava outros saberes de um ponto de vistafísico, mas, seja dito, da sua física. Pois o que lhe desagradava na físicaquântica no debate com Bohr — e física da qual Einstein foi inclusive umdos pioneiros — não eram os conhecimentos novos que foram sur-gindo, mas a relação entre a teoria física e os fenômenos22.

III

Talvez tenha sido a filosofia da ciência que, entre tantos saberes,melhor compreendeu Einstein. No lugar de empregar seu pensamentopara estabelecer paralelos confusos, confrontos inúteis e recusas infru-tíferas, buscou nele um diálogo além dos conteúdos apenas físicos deseus conceitos. A relação entre teoria e fenômeno, afinal, é o tema porexcelência da filosofia da ciência.É assim que,na Autobiografia intelectual,Popper relembra o impacto que teriam sofrido seus pensamentos dejuventude durante uma conferência de Einstein. Diante de fenômenosque negassem a validade de uma teoria, a decisão de Einstein era sim-plesmente fazer outra teoria. Essa ausência de dogmatismo, rememoraPopper,teria sido um impulso importante em direção a seu pensamentofuturo sobre a ciência. A idéia de que importa mais uma teoria científicaque se mostre apta a ser refutada do que coletar dados que a afirmem lheteria surgido nessa ocasião23.Não há refutabilidade,porém,onde não hápossibilidade de crítica. É nesse ponto que a filosofia da ciência de Pop-per é também uma filosofia política, pois apenas uma sociedade aberta,democrática,garante a crítica livre.Foi por essa brecha que se moveu,e aampliou, o pensamento de Kuhn de que um saber novo se estabelecemuito mais pelo convencimento de seus pares próximos por parte doautor quanto ao novo saber do que por critérios baseados apenas nos

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[23] Ver: Popper, K. Autobiografiaintelectual. São Paulo: Cultrix, 1977, p.43-45.

[24] Para a compreensão einsteinia-na da ciência como um pensamentonão indutivo, mas como invenção dehipóteses sujeitas à crítica experi-mental, ver: Einstein, A. “Física e rea-lidade” (1936). In: Escritos de maturi-dade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1994, pp. 99-100.

[25] Greenberg, C. “A pintura mo-dernista”. In: Clement Greenberg e odebate crítico. Rio de Janeiro: Zahar,1997, p. 101.

[26] Idem, p. 103.

[27] A posição de Greenberg ao defi-nir a modernidade é,como ele mesmoexplicita,kantiana.“Por ter sido o pri-meiro a criticar os próprios meios dacrítica, considero Kant o primeiroverdadeiro modernista”, diz Green-berg. Sua atenção ao momento inter-no de um saber em contraste com amenor importância que atribuía aomomento de articulação externa comoutros saberes é, de fato, kantiana, sefor aceita a interpretação de Haber-mas da relação de Kant com a moder-nidade. Para Habermas, “na filosofiakantiana os traços essenciais daépoca se refletem como num espelho,sem que Kant tivesse conceituado amodernidade enquanto tal”, pois“Kant não considera como cisões asdiferenciações no interior da razão”.Para Greenberg, ver Greenberg, C. “Apintura modernista”, p. 101. ParaHabermas,ver:Habermas,J.O discur-so filosófico da modernidade 2000, pp.29-30.

significados empíricos dos novos conceitos em questão.Essa é uma his-tória complexa e fascinante que não envolve apenas dois autores.E tam-bém muitas variantes da epistemologia,da teoria do conhecimento e dafilosofia da ciência não pegaram essa trilha. Importa, porém, sinalizarque talvez a melhor via para estar com Einstein sem adulterá-lo, de ummodo ou de outro, não está nos conteúdos de seus conceitos se deles sefaz uso e abuso para outros fins, mas na postura crítica e criticável queseu pensamento — dos princípios muito gerais que adotava às conse-qüências testáveis que propunha — sabia estar sujeito24.Esse princípio,que não é físico,mas social e histórico,quem sabe possa ser chamado deprimado da crítica.

A palavra crítica é das mais ambíguas.Possui tanto conotação pejora-tiva como uma das mais elevadas,variando do uso coloquial — “você sóme critica” — aos títulos das três principais obras de Kant. A crítica dearte, e nisso se irmanam o público em geral e boa parcela dos autores deoutros saberes, é muito mais considerada sob o primeiro sentido. Umestudo histórico da palavra mostra, porém, que a crítica, sem adjetivos,surgiu primeiro com a adjetivada crítica de arte — embora se tenha queadmitir que Diderot viveu há 250 anos, Baudelaire há 150 e que Green-berg, embora falecido há pouco, alcançou seu ponto alto já faz 50 anos.Não sem antes, contudo, escrever um texto clássico sobre a pinturamoderna.“A essência do modernismo”,diz Greenberg em Pintura moder-nista, “reside no uso de métodos característicos de uma disciplina paracriticar essa mesma disciplina.”25 Frase que,se a disciplina fosse a física,se encaixaria com perfeição para descrever os feitos de Einstein.É assimque é característico da pintura moderna,prossegue Greenberg,“a ênfaseconferida à planaridade, […] mais fundamental do que qualquer outracoisa para os processos pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si mesma no modernismo”26. A consideração de Greenberg, comoele bem ressalta, valeria para tudo o que é significativo na culturamoderna.Falta na compreensão da modernidade de Greenberg,porém,uma afirmação forte do momento da relação entre os saberes, ou disci-plinas, para usar o termo dele. Entretanto, se for para achar um paralelode época entre a pintura moderna e a teoria da relatividade, ele não seencontra no espaço de uma em relação ao da outra, pois entre a superfí-cie plana da pintura moderna e o espaço e o tempo da teoria da relativi-dade geral de Einstein não há nada em comum.Os resultados a que che-garam os dois saberes são frustrantes até mesmo para uma analogia,pormínima que seja. O que há em comum, do ponto de vista de Greenberg,é o uso do saber para criticar o saber e dele fazer surgir um novo27.

Não fosse a ausência de uma relação forte com outros saberes,a com-preensão da modernidade por Greenberg seria bastante ampla aindahoje. Os críticos de Greenberg, no entanto, esquecem muitas vezes adata, por volta de 1960, de seu texto. Desde então, tanto a pinturamoderna como a modernidade mudou de aspecto. A concepção de umapintura plana por Greenberg não negava profundidade óptica na pin-

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tura. A pintura moderna, para Greenberg, tendia ao plano, mas com elenão se confundia. Quando uma pintura se torna de fato um plano, pormeados dos anos 1950,esse plano passa a ser um anteparo para as maisdiversas ações do pintor. A planaridade de Greenberg, assim, é levadamais longe,não negada.Para essa nova pintura e sua época alguns prefe-rem dar o nome pós-moderna. Mas o que pode haver de pós no pós-moderno se é justamente o elemento pré do moderno — no caso da pin-tura, seus resquícios de uma profundidade óptica do antigo espaçoperspectivo — que é suplantado? É bem provável que não haja pinturanem época pós-modernas. O que há de novo nos saberes contemporâ-neos é uma saída de seus âmbitos muito mais intensa do que nos tem-pos heróicos de auto-afirmação da modernidade. As pinturas recebemelementos que seriam do âmbito da escultura, mas ainda permanecempinturas. A junção dos saberes se faz por fronteiras, e não por um con-ceito de espírito de época ou equivalente que os abarque. Mesmo seindefinidos em seus contornos, e ainda mais sujeitos a confusões hojeem dia, são saberes ainda autônomos. Se a teoria física não foi capaz deunir a teoria da relatividade e a mecânica quântica, isso não impede osexperimentos diários da física relativística de partículas.Na maioria doscasos,porém,os saberes vagam numa anarquia que seria em tudo bené-fica, se um saber que pretende dialogar com os outros não pretendessetambém subordiná-los.

Mas se assim for,se os saberes modernos invadem,combatem,ten-tam dominar ou batem em retirada quando se relacionam, não haveráalgo que os delimite melhor e os organize além das zonas de fronteira? Àmedida que a modernidade se formou,até adquirir sua fisionomia atual,vários saberes disputaram o privilégio de organizar e formular conceitosque abarcassem o conjunto dos demais,quando não, também,das múl-tiplas formas de práticas sociais. A filosofia, candidata natural para talordenação de domínios, mostrou-se, quanto mais nos aproximamosdos dias de hoje,incapaz de uma tarefa que por séculos executou com efi-ciência. Autônomos, os diferentes domínios continuaram a regular a sipróprios.Diante de uma possível regulação superior,se comportaram demaneira rebelde e justificada em relação a pretensas soberanias de umsaber em particular.Junto com a filosofia,também o marxismo e a psica-nálise acabaram por abrir mão de um reinado do todo. O que, de modoalgum, significa que já nada sabem, mas, ao contrário, que suas hipóte-ses totalizantes tiveram que ser abandonadas para que também essestrês saberes se renovassem pela real conquista de suas especificidades.O que vale para a filosofia,o marxismo e a psicanálise,vale também paraqualquer outro saber moderno.Uma descrição de todas as tentativas deum pensamento do todo talvez seja inabarcável. Vale mais ir logo para amoral da história: não há saber moderno que abarque a totalidade dossaberes, das práticas sociais e das formas de sensibilidade modernas.

Se a autonomia dos saberes recusa saberes superiores — que os reu-niria diante do relativo isolamento em que também se encontram — é

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justamente porque todos possuem um traço em comum, constante-mente salientado neste artigo: a procura do que lhes seja específicosegundo seus objetos e os métodos que desencadeiam. Mas tal traçocomum pode ser compreendido como um conceito,diga-se,horizontal.Por ele nada é dito “por cima” dos outros saberes ou, para continuar namesma linha de metáforas, por ele não se articula um conceito vertical etotalizador dos saberes.Antes se quer dizer que na maior parte do tempocada qual cuida de sua vida sem obedecer a outros. Mas torna-se possí-vel,assim,uma relação lateral entre os saberes,um exercício constante ecrítico da intersubjetividade dos saberes por meio de seus porta-vozes eguiada tanto pelo exame cuidadoso de um saber determinado como pelapotência de dialogar com outros e mesmo abrir mão de importantespressupostos e princípios seus. A teoria de todas as teorias, nesse sen-tido, não pode ser escrita, e se subordina à prática relacional das teoriasexistentes.Mas uma prática que é preciso,pelo menos em parte,tambémteorizar, pois a capacidade de promover confusão, confronto, recruta-mento e recusa entre os saberes é ainda maior hoje do que nos primeiros50 anos do século XX, quando a bandeira da autonomia a quase tudojustificava.Esse é o caminho da secularização e democratização do saber— e nesse sentido pouco importa se do ponto de vista da teoria da rela-tividade geral tanto Galileu como a Igreja estivessem certos.O que maisimporta é que Galileu deveria ter tido o direito de inventar a teoria quemelhor lhe conviesse. Foi no desdobramento desse espírito históricoque Einstein se formou. De funcionário de patentes a título de homemdo século pela revista Time na virada do século, na trajetória moderna deEinstein, inclusive na figura pública que construiu com os meios decomunicação, há mais de Galileu do que há da negação dos conceitosfísicos de Galileu na teoria da relatividade especial. Foi a liberdade dereinventar livremente a física num novo quadro interpretativo que origi-nou a teoria da relatividade especial.E é desse modo que um assunto queparecia velho, a liberdade de crítica e a separação entre saber secular eautoridade religiosa, retorna hoje de forma inesperada. Mas tambémaqui as análises têm que ser feitas com os cuidados que toda crítica devepôr em ação.Assunto para outro artigo e para o qual a figura humorada eutópica de Einstein teria, com a autoridade de sua celebridade, certa-mente algo a dizer. Tema esse que também — a celebridade insuperávelde Einstein — mereceria análise cuidadosa, na sua mistura de um novoHesíodo portador de uma nova cosmogonia com a de um irônico eatuante astro pop.

Alberto Tassinari é autor de O espaço moderno (CosacNaify, 2001).

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Recebido para publicação em 07 de maio de 2006.

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