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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 EMBATES POR “UM LUGAR NA NOSSA GALERIA LITERÁRIA”: ALENCAR, LÍNGUA E LINGUAGEM NA LEITURA DE HENRIQUES LEAL VALDECI REZENDE BORGES* 1 Os imbricados campos da cultura e da política no Brasil de meados do século XIX, dos anos de 1850 àqueles de 1870, foram marcados por embates acirrados ao redor da busca de edificação da jovem nação e de uma identidade própria, de uma individualidade brasileira, em oposição à Portugal. José de Alencar teve presença ativa nesse âmbito como intelectual e político inserido nas altas rodas literárias e esferas do poder imperial. Combateu com vistas a contribuir com a “formação de uma nacionalidade”, por meio de sua pena e produção de uma literatura que fosse “brasileira” na temática e na forma, numa estética “moderna”. Nas lutas por um lugar na cena literária e por uma forma de representar a nação, ele estabeleceu relações com vários intelectuais expondo suas ideias, seus projetos e defendendo sua prática ficcional. Diversos ensaios e críticas literárias configuram lugares de memórias de tais lutas, ao expressarem os diálogos tecidos com a intelectualidade lusófona, brasileira e estrangeira, nos quais emergem apoios, mas também oposições. Muita tinta foi gasta naquele momento, e mesmo depois, tanto de cá do Atlântico como do outro lado. Inserido nas trincheiras lusas, o maranhense Antônio Henriques Leal, dentre outros, realizando uma leitura da produção alencariana, tanto a elogiou como a criticou. Figura, nas tramas de tal discussão, principalmente, a reflexão acerca da natureza e da cultura americanas, em especial, da língua, da linguagem e do estilo para expressar uma tradução do Brasil. A intenção aqui é reconstruir, por meio de dois textos críticos, a leitura que Leal realizou sobre a atuação de Alencar como literato, sobre seu lugar na literatura brasileira e seu fazer nas letras, marcado por “defeitos” e “incorreções” no uso da língua e da linguagem. * Dr. em História pela PUC/SP. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais, da Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão. O presente trabalho é produto do projeto mencionado e foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil. Bolsa Produtividade.

EMBATES POR “UM LUGAR NA NOSSA GALERIA LITERÁRIA”: ALENCAR, LÍNGUA E LINGUAGEM NA LEITURA DE HENRIQUES LEAL

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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1

EMBATES POR “UM LUGAR NA NOSSA GALERIA LITERÁRIA”:

ALENCAR, LÍNGUA E LINGUAGEM NA LEITURA DE HENRIQUES LEAL

VALDECI REZENDE BORGES*1

Os imbricados campos da cultura e da política no Brasil de meados do século

XIX, dos anos de 1850 àqueles de 1870, foram marcados por embates acirrados ao redor

da busca de edificação da jovem nação e de uma identidade própria, de uma

individualidade brasileira, em oposição à Portugal. José de Alencar teve presença ativa

nesse âmbito como intelectual e político inserido nas altas rodas literárias e esferas do

poder imperial. Combateu com vistas a contribuir com a “formação de uma

nacionalidade”, por meio de sua pena e produção de uma literatura que fosse

“brasileira” na temática e na forma, numa estética “moderna”. Nas lutas por um lugar na

cena literária e por uma forma de representar a nação, ele estabeleceu relações com

vários intelectuais expondo suas ideias, seus projetos e defendendo sua prática ficcional.

Diversos ensaios e críticas literárias configuram lugares de memórias de tais lutas, ao

expressarem os diálogos tecidos com a intelectualidade lusófona, brasileira e

estrangeira, nos quais emergem apoios, mas também oposições. Muita tinta foi gasta

naquele momento, e mesmo depois, tanto de cá do Atlântico como do outro lado.

Inserido nas trincheiras lusas, o maranhense Antônio Henriques Leal, dentre outros,

realizando uma leitura da produção alencariana, tanto a elogiou como a criticou. Figura,

nas tramas de tal discussão, principalmente, a reflexão acerca da natureza e da cultura

americanas, em especial, da língua, da linguagem e do estilo para expressar uma

tradução do Brasil. A intenção aqui é reconstruir, por meio de dois textos críticos, a

leitura que Leal realizou sobre a atuação de Alencar como literato, sobre seu lugar na

literatura brasileira e seu fazer nas letras, marcado por “defeitos” e “incorreções” no

uso da língua e da linguagem.

* Dr. em História pela PUC/SP. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais, da

Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão. O presente trabalho é produto do projeto mencionado

e foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

– Brasil. Bolsa Produtividade.

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A investigação que ora apresentamos insere-se numa perspectiva de

conhecimento que associa a História Cultural, que se debruça sobre os textos para

pensar sua escrita e leitura, focando mecanismos de produção, motivações e

intencionalidades, linguagem e diálogos intertextuais (KRISTEVA,1988), recepção e

apropriação (CHARTIER, 1990), com uma História Política renovada, preocupada com

o agir em oposição às estruturas ou com a “cultura política”, em que as ideias são vistas

como manifestações de posicionamento (BURKE, 1997). Considerando que os textos

constroem uma dada representação do passado, vazada por motivações, visa-se

compreender a produção e a recepção destes, a escrita, a linguagem e a leitura

(PESAVENTO, 2004). Se todo documento é uma representação do passado

(CHARTIER, 1990), configura-se em “monumento” (LE GOFF, 1990) e em “lugar de

memória” (NORA, 1993), cabe-nos desvelar essa construção, a finalidade de tal

edificação e suas intencionalidades, inserindo-a nos campos intelectual e político em

que foi produzida, os quais são diversos, segmentados, hierarquizados e marcados por

disputas, por relações de forças, elucidando sua configuração e historicidade

(BOURDIEU, 1992).

Se, no momento presente, discute-se a relação entre língua e identidade em

decorrência do avanço da globalização e do Novo Acordo Ortográfico entre os países

formadores da comunidade lusa, retornar ao século XIX pode ser importante para

percebermos a historicidade da questão, conforme as indicações metodológicas de

Bloch (2001). Tal problemática possui um tempo de duração mais longo que muitos

supõem e mostra-se como uma luta de representações e de formação de identidades.

Hoje, em fins da primeira década do século XXI, as páginas das imprensas, portuguesa

e brasileira, voltaram a ser palcos de uma disputa diretamente ligada àquela querela

oitocentista. O novo Acordo Ortográfico, aprovado em 2008, e que passou a vigorar no

Brasil em janeiro de 2009, foi promulgado em sessão da Academia Brasileira de Letras,

fazendo parte das comemorações e celebrações dos 100 anos de morte de Machado de

Assis. O ato foi considerado como a concretização de uma aspiração de Machado,

expressa no discurso de encerramento das atividades da ABL, no ano de 1897: “A

Academia [...] buscará ser [...] a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á então defendê-la

daquilo que não venha das fontes legítimas - o povo e os escritores- não confundindo a

moda, que perece, com o moderno, que vivifica” (MACHADO DE ASSIS, 2009).

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Assim, o Acordo, que tem o objetivo de “unificação da escrita em todos os

países da comunidade lusófona”, ocupou páginas de revistas, jornais e de sites da rede

mundial de computadores, a internet. Favoráveis a sua adoção e resistentes a ela, tanto

brasileiros como portugueses ou de outros países que formam a comunidade lusófona

expuseram suas opiniões e seus argumentos. Aqui, uns comemoram e defendem o

Acordo como uma maturidade linguística, como realização de uma aspiração antiga de

nossos intelectuais oitocentistas mais expressivos, como José de Alencar e Machado de

Assis. De lá, outros protestam apontando as falácias dos argumentos utilizados e

resistindo a um “abrasileiramento” do idioma que o Acordo representa. Tais posturas

mostram que essa história parece que está longe de ter fim e que as manifestações

comemorativas podem corresponder a interesses de alguns atores sociais em cena, sendo

marcadas por contradições e confrontos.

José de Alencar (1829-1877), em vários ensaios críticos, refletiu sobre a relação

entre a língua portuguesa e a diversidade linguística existente no Brasil, a linguagem

literária, a história, a cultura e a natureza. Suas propostas e as defesas destas balançaram

o campo intelectual oitocentista brasileiro e luso em combates e lutas calorosas por uma

forma de representação do Brasil como nação.

O início de sua reflexão ou a ponta inicial da meada, que, um pouco mais tarde,

constituirá a trama que aqui procuramos expor, pode ser acessado no pequeno ensaio “O

estilo na literatura brasileira”, de 1850, publicado, quando ainda era acadêmico de

Direito, na revista Ensaios Literários, de São Paulo, no qual expressa sua sensibilidade

moderna opondo os estilos clássico e moderno, ao defender o emprego do último na

produção de uma literatura brasileira. Já em 1856, nas páginas do Diário do Rio de

Janeiro, veio a luz ou à cena a discussão que enfrentou ao longo de toda sua vida

intelectual. Inaugurou a primeira grande polêmica literária brasileira com a publicação

das “Cartas sobre A Confederação dos Tamoios”, abordando a produção de uma

literatura americana ou indianista com forma original e não forjada nos moldes épicos.

A cena seguinte se refere à “Carta ao Dr. Jaguaribe” e ao “Pós-escrito” à Diva, de 1865,

em que tratou de como e por que escreveu Iracema, de sua opção pela prosa em

detrimento do poema e de dimensões de seus romances urbanos, como o emprego de

neologismos, respectivamente. Em seguida, o português Manuel Pinheiro Chagas, em

“Literatura Brasileira – José D‟Alencar: Iracema”, de 1867, criticou a referida obra

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indianista, abordando a questão das relações entre as línguas, indígena e portuguesa, do

emprego dos neologismos e o problema da linguagem literária. Na próxima

apresentação, Alencar, em diálogo com Chagas, em “Pós-escrito” à segunda edição de

Iracema, de 1870, defendeu-se das censuras e bateu pela diferenciação linguística entre

o português brasileiro e aquele de Portugal. Na sequência, em Lisboa, no Jornal do

Comércio, o maranhense Antonio H. Leal, em “A Literatura brasileira contemporânea”,

de 1870, realizando um balanço da produção literária nacional, tratou da figura de

Alencar dirigindo-lhe elogios, mas também críticas pelo uso observado da língua

portuguesa. Na sexta cena, em 1871, ainda em Lisboa, Leal continuou sua reflexão em

“Questão Filológica: a propósito da segunda edição de Iracema”, focando a

problemática da língua e da linguagem. Esse artigo saiu publicado no Brasil em O Paiz,

de 27 e 28 de maio daquele mesmo ano. Na sétima cena, Alencar produziu “Benção

paterna”, em 1872, periodizando sua escrita e defendendo-a, como o emprego de uma

linguagem leve e rápida, que atraísse o leitor do seu tempo, o qual se deslocava de

locomotiva, símbolo da era moderna. Na oitava, em 1874, Leal recolheu os escritos

acima mencionados no livro Locubrações, que fora editado pela Livraria Popular de

Magalhães e Cia e teve impressão em Lisboa na Tipografia Castro Irmão. Na nona cena,

Alencar, ainda em 1874, produziu as “Cartas ao Sr. J. Serra”, conhecidas por “Nosso

cancioneiro”, tratando da naturalização de nossa literatura, além de escrever “Questão

filológica”, rebatendo as críticas de Leal. No entanto, se estes foram alguns dos fatos

que marcaram o campo de batalhas oitocentistas, aqui, neste texto, se abordarão apenas

os dois textos de Leal.

Em “A Literatura brasileira contemporânea”, de 1870, Leal, tratou, num curto

trecho, da atuação do escritor José de Alencar como romancista e dramaturgo. Afirmou

que Alencar tinha “conquistado por seu engenho e pelo conceber inesgotável, florantes

loiros em todas as carreiras”, de publicista, poeta, romancista, dramaturgo e orador.

Visto como “ativo e fértil em produzir”, citando romances como O Guarani, As Minas

de Prata, Iracema, O Gaúcho, A Pata da Gazela, Tronco do Ipê e Til, considerou-os

“todos nacionais e modelados pelo Derradeiro Moicano e Lago Ontário, de Fenimore

Cooper, para fazer uma idéia aproximada da fecundidade deste grande talento.”

Avaliou, ainda, que o escritor destacava-se, em relação aos demais, “na originalidade

das imagens, na pintura das cenas de nossa natureza”, além de estar debuxando um

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“poema nacional – Os filhos de Tupã”, que prometia ter “vida longa e próspera” (LEAL,

1965: 208).

Leal, ao comparar Alencar a Cooper e aproximá-los, ao ver o literato da América

inglesa como modelo para produção de uma literatura nacional, seguia o mesmo

caminho aberto pelo português Manuel Pinheiro Chagas, em “Literatura Brasileira –

José D‟Alencar: Iracema”, de 1867. Para Chagas, apesar dos muitos talentos que se

avultavam na “nossa antiga colônia americana”, não se podia dizer que o Brasil

possuísse uma literatura nacional; que refletisse “o caráter” de seu povo, concedesse

vida às suas tradições e crenças e fosse “a alma” da nação com “todas as dores e júbilos

que, através dos séculos, a foram retemperando”. O Brasil, como nação moderna e filha

da Europa, não tinha “ainda uma existência bastante caracterizada, para que os seus

incidentes, refletindo no espelho da literatura”, pudessem “deixar nele imagem bastante

colorida e enérgica.” Faltava-lhe um “período laborioso de uma gestação dificílima”,

como ocorrera nas repúblicas espanholas na América, e “uma iniciativa no movimento

civilizador do mundo”, debatendo as “grandes questões” da humanidade, como faziam

os Estados Unidos, os quais pudessem “na sua literatura deixar profundo sulco”.

Faltavam-lhe elementos para inflamar uma literatura com o fogo do combate, o ardor, a

veemência, o entusiasmo e as comoções das lutas, os quais comporiam as páginas de

“uma epopeia sublime”, talvez formando a “Ilíada gigante desses povos” (CHAGAS,

1867: 212-3).

A seu ver, na América inglesa, nos Estados Unidos, Cooper era “o representante

dessa literatura patriótica”, com o tipo que criou, Nathaniel Bempo, e as figuras que se

agrupavam em torno dele. Esse tipo “é o protesto vivo contra aqueles que da Nova

Inglaterra querem fazer apenas a sucursal da antiga” e “que tentam assim afogar no seu

germe a vivaz nacionalidade”. As nações americanas, se quisessem “verdadeiramente

fazer ato de independência, e entrar no mundo com foros de países que tem nobreza

sua”, deveriam, como Bempo, “esquecer-se um pouco da metrópole europeia,

impregnar-se nos aromas do seu solo”, proclamar-se filhas adotivas, mas “ternas e

amantes das florestas do Novo Mundo, e aceitar as tradições dos primeiros

povoadores”. Na poesia desses povos primitivos, estava “a inspiração verdadeira”, que

deveria “dar originalidade e seiva à literatura americana”. Fora isso que compreendera

Fennimore Cooper e fez seus romances tão apreciados por uma geração que desprezou

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“as estioladas e pálidas plantas de estufa, nascidas numa atmosfera falsa”. Concluindo:

“É isso que deve dar ao Brasil a literatura que lhe falta, foi isso finalmente o que o sr.

José de Alencar compreendeu e tentou na formosa lenda cearense, que abre um novo e

desconhecido horizonte aos poetas e romancistas de Santa Cruz” (CHAGAS, 1867:

214-6).

O crítico considerou que pertencia à Iracema “a honra de ter dado o primeiro

passo afoito na selva intrincada e magnificente das velhas tradições”. Se os leitores de

Cooper lamentavam que não houvesse no Brasil poeta que soubesse aproveitar os

tesouros da poesia espalhados pelo território e que, como Fennimore, desse relevo às

tradições e crônicas de tais povos, “Alencar livrou sua pátria desse labéu” com sua

lenda. Com esse livro, revelava-se estilista primoroso, pintor de paisagens natais e

cronista simpáticos dos antigos povos brasileiros. “Pela primeira vez aparecem os

índios, falando a sua linguagem colorida e ardente, pela primeira vez se imprime

finalmente o cunho nacional num livro brasileiro [....]”. Portanto, “A musa nacional

solta-se enfim dos laços europeus” e vem sentar-se à sombra das bananeiras vendo o sol

apagar seu facho ardente na orla das florestas americanas (CHAGAS, 1867: 216-20).

Mas, se Chagas, após tais honrarias, passou a apontar os “defeitos” da obra

centrados no uso da língua portuguesa e na linguagem de Alencar e de outros autores

brasileiros, Leal também seguiu o mesmo procedimento. Sua leitura, após destacar tais

pontos positivos, passou a mesclá-los com aqueles negativos, relacionados à questão da

língua, da linguagem e do estilo empregados nessas produções. Num misto de elogio e

lamento, ponderou:

É pena que talento tão superior não se aplique ao estudo da língua, com

mais interesse e sem prevenções. Porém, quanto a sua linguagem e estilo são

descuidados e por vezes desiguais e frouxos; posto que sejam compensados

esses senões pelas belezas que se encontram em suas obras, tais como a

exatidão e firmeza de suas descrições, o bem sustentado dos diálogos, e as

observações adequadas à feição verdadeiramente brasileira desse trabalho.

Não carecíamos de mais ninguém para formar uma escola e por limites

incontestes à nossa literatura (LEAL, 1965:208).

Leal, conforme Martins (1983: 189), estava muito enganado, porque, se havia

coisa a que Alencar se entregava com seriedade e paixão era o “estudo da língua”, como

pode ser visto no “Pós-escrito” à segunda edição de Iracema e outros textos.

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[...] da ortografia aos neologismos, das dificuldades gramaticais aos

galicismos, dos arcaímos à sintaxe, não há tópico que ignore e sobre o qual

não tenha ideias assentes, inclusive com apoio nos filólogos mais

conceituados da época, indicando leituras específicas que não poderiam ter

sido improvisadas. Ele anunciava, mesmo, estar trabalhando numa

“pequena obra [...] na qual me propus a fazer um estudo sobre a índole da

língua portuguesa, seus desenvolvimento e futuro, considerando

especialmente a tão cansada questão do estilo clássico.” [...] sempre é certo

que revelou competência filológica incomparavelmente mais sólida que a de

Pinheiro Chagas e Henriques Leal [...]

Finalizando seu texto, Leal, em seguida, remeteu a “alguns romances da

atualidade” produzidos por Alencar, aqueles do mundo urbano, dizendo que não

desmereciam “da boa reputação que tem adquirido este afamado escritor”, passando a

tratar de sua produção dramática e cômica.

Esse pequeno ensaio foi transcrito no jornal de São Luís do Maranhão O Paiz,

no. 1, e, depois, incorporado no livro Locubrações, publicado por Leal, em 1874. Mas,

ainda que pequeno e, de certo modo, elogioso, o trecho provocou a resposta de Alencar

no “Pos-escrito” à segunda edição de Iracema, também vindo a público no ano de 1870.

Depois de tratar das censuras de outros críticos, passou a ocupar-se das acusações de

Leal, que, segundo o romancista, “contestou que os portugueses da América possuíssem

uma literatura peculiar ou elementos para formá-la”, mas que também reproduziam “a

cansada censura” ao seu “estilo frouxo e desleixado”. Alencar, dando continuidade a sua

defesa, fez avançar o esboço que vinha traçando do molde de nacionalidade literária

condizente com o Brasil, o qual ele vazava nas obras que produzia e que se contrastava

em estilo com o padrão clássico da língua portuguesa; defendia o “cisma gramatical”,

que consubstanciava a separação e a independência política e cultural brasileira

(ALENCAR, 1964, v.2: 1131, 1133-5).

Se Alencar, melindrado e irritado, deu essa resposta a Leal, este não deixou por

menos. Publicou, em abril de 1871, em Lisboa, o texto “Questão filológica: a propósito

da 2ª. edição da Iracema (Romance do Sr. Conselheiro José de Alencar”, o qual saiu

reproduzido no Brasil em O Paiz, de 27 e 28 de maio daquele mesmo ano.

Leal, vendo-se na tarefa de analisar Iracema, segundo ele, a pedido de um amigo

jornalista, de forma retórica, pediu dispensa da tarefa por conhecer, pela leitura de tal

trabalho, “os irritadiços melindres do autor, ofendendo-se até dos menores e mais

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inocentes reparos, embora ditos sem ânimo deliberado de censura, senão de conselho

[...]”, aos quais, segundo ele, Alencar reagira afirmando: “Nada há mais fácil do que

censurar a esmo, declarando peremptòricamente que um livro está cheio de

incorreções”. Para o crítico, isto era “uma ameaça de repto”, e ele não queria “entrar em

luta” com quem quer se fosse. Porém, proclamando-se cansado antes do tempo,

aborrecendo o “oficio de paladino”, e não querendo quebrar lanças por mais viva e

legítima que fosse sua “crença”, Leal deu relevo aos dotes literários alencarianos para,

em seguida, apontar os problemas que neles via: “Deploro, todavia, que quem tem dotes

tão elevados para ocupar um proeminente lugar na nossa galeria literária, os embacie

um pouco com nódoa que só na primeira juventude das raparigas bonitas se pode

desculpar e tolerar” (LEAL, 1965: 210)

Portanto, estava dado o quadro em que ocorreria a crítica; aquele de incorreções

e defeitos que ofuscavam e manchavam os livros de um escritor talentoso. Por essa

época Alencar considerava que já estava em “outra idade de autor”, a qual chamou de

sua “velhice literária”, e adotava o pseudônimo de Sênio, ainda que, segundo ele, outros

quisessem que fosse “a da sua decrepitude”. O atormentava ainda “a indiferença

pública, senão o pretensioso desdém da roda literária”, “da crítica de barrete”, ao

receber suas obras na imprensa diária. Diante de tal conspiração do silêncio preocupava

se seu nome ficaria para posteridade e nesse sentido, precavido, escreveria, em 1873,

um texto autobiográfico sobre sua trajetória intelectual, “Como e porque sou

romancista”, no qual afirmou: “... desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa

vontade os favores do presente pelas severidades do futuro”. (ALENCAR, 1965: 118-

120).

Para Leal, “esse defeito” provinha da “falta absoluta de crítica literária entre

nós”. De uma “crítica sensata, esclarecida, desapaixonada, independente e

desinteressada, que, animando, aconselha com benevolência e discrição; que apontando

os erros, aplica-lhes logo o remédio; essa sim, que é luz que esclarece, crisol onde se

afinam e depuram o belo e o correto”. Sem esse tipo de crítica, não poderiam “as letras,

a ciência e as artes medrar, desenvolver-se, opulentar-se, criar escola, prestar serviço às

gerações venturas”.

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Sem ela os achaques, os vícios e as más tendências crescem, bracejam, e

suas raízes afundam-se, passando destarte despercebidos e derrancando o

gosto. Não há aí Hercules que os possa depois extirpar e são afinal

transmitidos como as sãs doutrinas à mocidade inexperiente, que os herda e

os adota. O mal cresce e alastra; é força, pois, enxotarem-se do templo das

artes os belfurinheiros de lentejoulas e miçangas (LEAL, 1965: 211).

Dessa forma, imbuído da missão de defensor estrênuo daquilo que era “correto”,

no afã de purificar das mazelas, “os vícios”, para que não se enraizassem, crescessem e

se expandissem entre a juventude e o gosto dos leitores, tomando ar de doutrina a ser

adotada, o crítico buscava corrigir e afugentar os desvios alencarianos que poderiam ser

atrativos, mas maléficos. Leal, retomando o que dissera no folhetim do Jornal do

Comércio, de Lisboa, e em O Paiz, de São Luís do Maranhão, afirmou que não podia

suspeitar que aquela “frase de simples advertência” pudesse escandalizar Alencar a

ponto do “eminente literato” gastar páginas em refutá-la. Clareou que sua intenção, ao

escrever o artigo, era de efetuar um “desagravo patriótico, ou antes, protestos contra

clamorosa injustiça que se nos fazia, negando em um livro, que se intitula Crítica, a

autonomia e direito que tem o Brasil a um lugar na grande república literária”. Fê-lo

“sem pretensão, no impulso e com o açodamento que me pedia o amor das nossas

cousas e dos nossos homens”, mas “devia esperar que penas mais autorizadas tomassem

a dianteira em causa tão santa, se não estivesse desenganado disso, pela amarga e triste

experiência.” (LEAL, 1965: 2ll).

Portanto, Leal, então em Lisboa, contestava a afirmação de Luciano Cordeiro,

presente no Livro de Crítica, publicado em 1869, segundo a qual, não tínhamos uma

literatura própria e possuíamos a insanidade, a obsessão por tê-la devido a questões

políticas: “os brasileiros na sua monomia de terem uma literatura, como se esta andasse

demarcada pela geografia política” (CORDEIRO, 1869: 288). No entanto, se a intenção

de Leal era uma “desafronta” a nosso país contra essa apreciação depreciativa, ele

repetia, entretanto, as mesmas censuras a respeito da língua literária de Alencar,

levantadas por Chagas. Seu desagravo à literatura brasileira contra o paternalismo

lusitano repetia quase literalmente o autor portugês (MARTINS, 1983: 188-9).

Para Leal, Alencar, na resposta, “fez como hábil advogado que, quando o réu

não tem defesa possível, foge dos pontos da acusação e busca na chicana armas que

fatigue o contendor e vença o pleito.” Conforme o crítico, “Estilo frouxo e incorreto,

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não é o clássico, pesado e enfadonho”. Concordava com Alencar “em tudo quanto diz

com referência ao estilo de certos autores clássicos, que abusaram em demasia das

conjunções copulativas e dos períodos extensamente longos”, mas o estilo frouxo e as

incorreções gramaticais da frase,

Estão na má construção e urdidura irregular do período, na imperfeição e

no incompleto dele, na impropriedade dos termos, na colocação abstrusa dos

membros da oração, das palavras, dos complementos e das preposições

contrárias à ação e ao que pedem os verbos, finalmente na anfibologia, nos

neologismos escusados e opostos à índole da língua, na pontuação irregular,

nas repetições ociosas, na falta de concisão, etc. A ausência destes e de

outros predicados, que são os nervos do estilo, afrouxam-no, o entorpecem e

tiram-lhe toda a louçania, elegância e energia (LEAL, 1965: 213).

Desse modo, se havia muitas ambiguidades em expressões de Iracema,

“descuido do afamado romancista”, com as quais Leal se deparou, fica implícito que o

crítico mantinha sua avaliação, mas que não insistiria em apontá-las, uma a uma, para

não “abusar de sua paciência”. No entanto, se Leal não quis insistir, em demasia, no que

refere a tais “senões”, já com relação à ideia de que, no Brasil, a língua portuguesa era

outra, e que as transformações rumavam para sua autônoma, não baixou bandeira.

Não posso, contudo, deixar de insurgir-me contra a falsa doutrina de que a

língua é outra no Brasil e que convém transformá-la para que se torne

independente. [...] Não nego que a língua portuguesa, riquíssima até a sua

idade de oiro, não tenha acompanhado daí em diante os progressos da

humanidade, e que há suma dificuldade em exprimir hodiernamente coisas

aliás vulgares e de uso comum. Para dizer o que hoje se passa, para explicar

as idéias do século, os sentimentos desta civilização, é forçoso inovar-se, e

para isto, ser um gênio, profundamente lido e preparado nas línguas mortas

e atuais, como Garrett ou outros que tenham bases sólidas e fundas como ele

(LEAL, 1965: 213).

Leal concordou com a falta de afinação da língua portuguesa com os progressos

do mundo civilizado. Se havia um descompasso perceptível decorrente dos brasileiros

viajarem muito e educarem-se em diversos países adiantados, conhecendo “mais objetos

que os literatos portugueses”, seria, pois, “duro que ficássemos estacionados, à espera

de um dixit, sem exprimirmos nossas sensações por falta de vocábulos, nem

empregássemos os termos de antropologia, de botânica, de geografia ou os comuns da

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língua tupi, que significam coisas nossas”. Tornava-se, nesses casos, não “só necessário,

como lícito, inovar”, pois não havia como negar que “as línguas, como os costumes, os

usos, se transformam e se modificam”. Mas a transformação em que acreditava era

“aquela lenta, gradual e insensivelmente, e não ex-abrupto, em tempo dado e quando se

quer, ou por decreto, senão por trabalho de séculos.” (LEAL, 1965: 213-4).

Articulando a questão da modificação da língua àquela da independência

brasileira em relação à ex-metrópole portuguesa, ponderou

Para sermos independentes, basta formamos nação à parte, com diversa

organização política, não carecemos de Portugal para o nosso

desenvolvimento; e quanto à língua, termos uma pronúncia mais eufônica,

mais doce, mais suave, mais musical. [...] Isto, porém, não nos autoriza a

empregarmos a esmo e sem necessidade locuções novas, e ainda menos a

desrespeitarmos a gramática, contrariarmos o gênio da língua. (LEAL,

1965: 214).

Leal entendia, e acreditava que, como ele, pensava “toda a gente, de senso”, que,

quando se empregam a esmo e sem necessidade locuções novas, “importa saber a fundo

a língua, tê-la estudado com espírito assaz esclarecido, como o fizeram Felinto, Fr.

Francisco de S. Luís, Garrett, e Odorico Mendes”, e ainda naquele momento, assim o

praticavam o Visconde de Castilho, Alexandre Herculano e Latino Coelho. A essa

plêiade de letrados ilustres fora delegado o conhecimento profundo de nossa língua, mas

não a Alencar. “Sem termos os conhecimentos indispensáveis e muita lição dos bons

clássicos portugueses, que, pois, somos descendentes de Portugal e falamos a mesma

língua, é loucura tentar empresas tais, que só servem para o descrédito de que o faz.”

Dando seu veredito sobre as inovações praticadas e defendidas por Alencar, afirmou:

Deixemos-nos de inovações extravagantes, onde já é miséria, e grande, não

sabermos usar das riquezas que herdamos, para melhor recorrermos e

admitir tudo o de que precisamos a fim de exprimir coisas ou novas, ou

inteiramente brasileiras. [...] Os Luteros não se fazem e menos se impõem,

aparecem com as circunstâncias e são aceitos pela necessidade que há deles.

Assim, a doutrina que proclama o Sr. Conselheiro Alencar, afirnando que

„desde que uma palavra for introduzida na língua pela iniciativa de um

escritor, torna-se nacional‟ (Irac., p. 251) e de todo o ponto falsa e perigosa.

(LEAL, 1965: 214)

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 12

Leal continuou sua advertência refletindo que a doutrina defendida por Alencar,

se admitida em qualquer língua, produziria, no futuro, uma linguagem confusa e

ininteligível devido à miscelânea de coisa diversas fruto da ação de escritores ignorantes

das regras aceitas.

A admitirem-na em qualquer língua, tornar-se-ia esta, no fim de certo tempo,

algaravia bárbara e ininteligível. Sujeitar ao arbítrio de um escritor, que,

não raro por ignorância, vá de encontro às boas regras, a introdução de um

vocábulo, ou modo de dizer impróprio e bárbaro, seria adotar a confusão no

modo de exprimir as idéias – um mistifório sem sentido. (LEAL, 1965: 215).

Ressaltou que aprovava a introdução de novos vocábulos se a língua era carente

e se fosse necessário um termo técnico, mas se opôs ao uso de neologismos no contexto

de um idioma rico, abundante e extenso.

Onde a língua é deficiente, onde há necessidade de uma locução para

expressar um termo técnico de ciência, de arte, de política, etc., aprovo que

se adote um forasteiro, procurando, contudo, afeiçoá-lo à índole, estrutura e

gênio da língua portuguesa. Mas vir sem força de maior com um neologismo,

onde é ela copiosa e rica, só com o fim de dar a cada palavra muitos

sinônimos para o escritor escolher o que lhe soa melhor, é cousa intolerável,

e se pode contribuir para dar à frase mais harmonia, torna-a ao mesmo

tempo menos expressiva, sem elegância, se é que a não deturpa. (LEAL,

1965: 215).

Batendo contra o apego extremado à forma, associando-o ao estilo clássico,

propunha que os escritores se inspirassem na construção vernácula dos tempos

modernos e empregassem termos conforme as regras e normas elaboradas e ditadas por

autoridades no assunto, evitando as represálias pertinentes aos desviantes.

Não quero que se sacrifique a ideia pela forma; rejeito a idolatria viciosa da

frase, imitando-se servilmente os clássicos no estilo. Inspire-se, porém, o

escritor na frase, na construção, na vernaculidade consentânea com a

civilização moderna, seja castiço no emprego adequado e próprio dos termos

portugueses de lei, que não haverá quem o incrimine. (LEAL, 1965: 215).

Nesse contexto, Leal foi sinalizando ou indicando marcos e normas a partir dos

quais erigia sua leitura; apontando o que aprovava e o que reprovava, o que queria e

aquilo que renegava, valorando e hierarquizando o quadro de posturas, no qual os

“dissidentes” se configuram como perigo e destruição.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 13

Reprovo os puritanos pelo seu espírito acanhado e restrito, pelo sistema

severo, exclusivista, inquebrantável, mas reprovo e conspiro-me ainda mais

contra os dissidentes. Aqueles não fazem mal, são inocentes na sua perrice;

enquanto que estes, pelo contrário, são demasiados nocivos, tudo estragam e

destroem, desfigurando e emplastrando o que é belo, inimitável, tido e

havido por bom entre os homens cultos e de gosto. (LEAL, 1965: 215).

Portanto, asseverava que não atinava com o motivo que levou Alencar “a propor

inovações tais como a da eliminação do artigo – a, o- [...] quando todas as línguas

modernas o admitem”, inclusive as neolatinas, “porque ele é um dos seus caracteres

distintivos, peculiar à sua índole. Leal tratou ainda de outras “inovações”, como a

proscrição do pronome reflexo “se” nos verbos transitivos, por considerá-la uma

partícula supérflua, que zune como vespa, embora o crítico questionasse: “E há de o

português proscrevê-lo, quando todas as línguas modernas não o dispensam, por ser de

uso necessário, indispensável e frequente?” Além disso, Alencar não se subordinava “à

regra gramatical e uso geral, para evitar o hiato – a a – quando precede ao artigo a a

preposição a,emprega a crase, contraindo-os e reduzindo-os a um único vocábulo,

indicando a figura com o acento agudo”. Alencar

Opõe-se ao que é inconteste, e quer aliás que se empregue esse sinal

ortográfico na preposição a quando se acho só, e assim a escreve até quando

precede os infinitos dos verbos e nomes próprios, alegando que o faz no

intuito de evitar ambigüidades [...](LEAL, 1965: 216).

Leal avaliou como contraproducente o argumento do autor no caso da

preposição e do artigo contracto. Para ele, “Alencar estabelece regras avessas ao uso

recebido e geral, mas não as segue na prática, por não estar firme nelas; tanto que as

transgride frequentemente”, como passou a apontar. (LEAL, 1965: 216).

Em seguida, Leal negou que os escritores americanos empregassem em seus

escritos uma língua diversa daquela europeia e asseverou até o seu oposto, isto é, o

purismo da linguagem desses autores como peça fundamental para seu reconhecimento

pelos europeus.

Por derradeiro nego que os escritores da América Espanhola ou dos Estados

Unidos também tenham feito, como assevera o autor, uma língua diferente

da inglesa e espanhola, antes, ao revés disso, foi pelo purismo da linguagem

que Fenimore Cooper, Washington Irving, Tcknor, Bancroft e Prescott

venceram o desdém britânico e conseguiram fazer-se ler e aplaudir na

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 14

orgulhosa Albion; e os poucos escritores argentinos e chilenos que conheço,

não me parece que dessemelhem na linguagem da de Lope de Vega,

Calderón e Cervantes! (LEAL, 1965: 216-7).

Para finalizar a contenda, Leal enfatizou que a proposição de uma língua

brasileira era uma forma de insanidade mental em que um indivíduo (Alencar) dirigia

toda sua atenção para um só assunto, possuindo uma ideia fixa, num contexto, a seu ver,

favorável a uma prática contrária, ou seja, de valorização do português e seu

fortalecimento, expurgando as enxertias parasitárias que o levariam à morte. Retomando

Luciano Cordeiro, que, antes, afirmara que os brasileiros possuíam a “monomania de

terem uma literatura”, Leal terminava “por reafirmar as suas posições lusitanizantes”,

conforme Martins (1983: 197):

Deixemos, pois, de vez essa monomania de criar um idioma brasileiro, e isto

quando Sotero veio aplainar-nos a estrada, doutrinando-nos, e facilitando-

nos a aplicação do estudo da boa linguagem, para compreendermos os

clássicos e darmos o devido apreço às riquezas da língua portuguesa.

Estudemo-la em comum, portugueses e brasileiros, e tratemos todos de

desarraigar dela tantas parasitas que a vão enfraquecendo, disformando e

esgotando-lhe a seiva da vida, de modo a torná-la ainda um dia cadáver.

(LEAL, 1965: 217).

Expondo ainda mais seu projeto de “contra-reforma” (já que Alencar, de certo

modo, foi associado à Lutero), com o intuito de barrar as “inovações” perniciosas, de fazer

parar os “dissidentes” heréticos, pois, como já havia dito, a causa era “santa”, sugeriu, à frente,

que o governo destinasse uma quantia das sobras do orçamento, ou mesmo das

eventuais, para “mandar reimprimir os melhores clássicos, ou os mais admiráveis

trechos deles, para vulgarizá-los a mãos largas, e por preços módicos, ou quase de

graça, por toda a parte do Brasil, para que se tornassem de fácil acesso e de leitura

diuturna ao povo”. Esse empreendimento visava substituir as referências tão fortes das

histórias veiculadas por uma literatura popular, presentes no imaginário dos brasileiros,

como a Princesa Magalona, Carlos Magno, dentre outras.

Alencar, que, sabia Leal, reagia melindrado, irritado e ofendido aos reparos

recebidos, considerando-os equivocados e vendo-os como censura, não o deixou sem

resposta. Diante de alguns poucos exemplos concretos apontados por Leal, que se

mantinha nas generalidades, Alencar o respondeu de forma direta em “Questão

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 15

Filológica”, de 1874, e também em outros textos, como “O Nosso Cancioneiro”.

Refutou-os não nos limites de “uma reação nervosa de vaidade ferida, mas colocando o

problema no plano técnico da língua literária”; replicou “não „a esmo‟, mas expondo as

razões de ordem linguística e filológica que lhe justiçavam os processos de escritor”,

conforme Martins(1983: 197, 199).

Estas são apenas algumas cenas de uma história que não findou no século XIX,

tendo no XX e XXI, outros interessantes capítulos, como aqueles inseridos no seio do

movimento modernista no qual se fez avançar essa discussão e própria prática literária.

Mário de Andrade, por exemplo, valorizando as raízes e matrizes brasileiras, como a

linguagem, e aproximando língua escrita e forma de falar, defendeu a desvinculação do

português do Brasil daquele de Portugal. Segundo ele, tratando de uma postura de

“radicação à pátria” no processo do movimento modernista, o estandarte mais colorido

de tal questão era “a pesquisa da „língua brasileira‟”, pois naquele momento ainda

éramos “tão escravos da gramática lusa como qualquer português”. Os românticos

haviam chegado “a um „esquecimento‟ da gramática portuguesa, que permitiu muito

maior colaboração entre o ser psicológico e sua expressão verbal”, enquanto que “o

espírito modernista reconheceu que si vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia

reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade”,

inventando do dia para noite “a fabulosíssima „língua brasileira‟”.

Preocupados pragmaticamente em ostentar o problema, praticaram tais

exageros de tornar pra sempre odiosa a língua brasileira. Eu sei: talvez

neste caso ninguém vença o escritor destas linhas. [...] Mas é certo que

jamais exigiu lhe seguissem os brasileirismos violentos. Si os praticou (um

tempo) foi na intenção de por em angústia aguda uma pesquisa que julgava

fundamental. Mas o problema primeiro não é acintosamente vocabular, é

sintáxico. E afirmo que o Brasil hoje possue (sic), não apenas regionais, mas

generalizadas no país, numerosas tendências e constâncias sintáxicas que

lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso decerto ficará para

outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão.

(ANDRADE, 1943: 244-247).

Desta forma, a questão possui historicidade e outras estações ou paradas podem

ser observadas nesse percurso da língua portuguesa com todos os seus rumores.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 16

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