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Conselho Tutelar: um novo espaço de visibilidade social “das” famílias Fernanda Bittencourt Ribeiro Trabalho apresentado na XX Reunião Anual da ANPOCS - Caxambu, outubro de 1996.

Conselho Tutelar: um novo espaço de visibilidade social "das" famílias (Reunião Anual da Anpocs, 1996)

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Conselho Tutelar: um novo espaço de visibilidade social “das” famílias

Fernanda Bittencourt Ribeiro

Trabalho apresentado na XX Reunião Anual da ANPOCS - Caxambu, outubro de 1996.

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Conselho Tutelar: Um novo espaço de visibilidade social “das” famílias*

Fernanda Bittencourt Ribeiro**

INTRODUÇÃO

”Buiú” chegou ao Conselho Tutelar (CT) levado por um taxista e um policial da Brigada

Militar. O primeiro ficou preocupado ao vê-lo brincando, tranqüilamente, com os restos de um

carrinho sem “nem se dar conta do perigo que corria” numa avenida movimentada como a

Protásio Alves. Comunicou o fato ao policial militar que resolveu levar o menino para o

Conselho Tutelar...

A década de 90 iniciou com uma nova legislação referente à infância e adolescência no

Brasil — o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A partir de sua vigência, cenas como

esta observada pelo taxista passaram a ser caracterizadas como uma “situação de risco” que

ameaça a integridade física de um cidadão que por ter apenas quatro anos de idade precisa ser

especialmente protegido. O Conselho Tutelar foi o lugar escolhido pelo policial militar para

levar “Buiú” porque com a nova lei, irregularidades envolvendo crianças e adolescentes não

devem ser tratadas como “casos de polícia”. Delas se ocupará esta nova instituição

encarregada da defesa e promoção dos direitos da infância e juventude.

Ao chegarem no Conselho Tutelar “Buiú” não parecia estar assustado, continuou

brincando e só concordou em dizer seu nome e o de sua mãe — Simone — quando a

* Este artigo constitui-se numa versão modificada do capítulo 5 da dissertação de mestrado da autora: Ribeiro, Fernanda Bittencourt. A inserção do Conselho Tutelar na construção do problema social da infância e da adolescência: um estudo de caso a partir do Conselho Tutelar da Microrregião 3 de Porto Alegre. Porto Alegre, 1996. (Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul) ** Mestre em Sociologia pela UFRGS e professora da PUCRS.

3

conselheira ofereceu-lhe em troca um copo de leite com chocolate. Uma mulher que esperava

para ser atendida disse que achava que ele morava na vila Divinéia. A conselheira tinha que

aguardar a kombi do CT retornar de uma visita domiciliar para sair a procura de sua casa.

Horas depois, ao chegarmos na vila Divinéia, percebemos que “Buiú” era muito popular

por lá. Alguns homens que estavam na frente de um bar indicaram a direção de sua casa e

comentaram: “A mãe dele vai para o centro e ele sai por aí”. Tão logo desceu da kombi

“Buiú” rapidamente dirigiu-se para sua casa. Era um barraco muito pequeno e estava fechado.

O menino tentou abrí-lo mas não conseguiu. Escorou-se na porta com os bracinhos cruzados

como se estivesse disposto a ficar esperando. No entanto a conselheira não podia deixá-lo,

tinha que entregá-lo a alguém que ficaria também com a solicitação para que sua mãe

comparecesse ao CT. Foi deixado chorando com uma vizinha que também comentou:

“Seguido ele sai por aí”...

Histórias como a de “Buiú” circulam diariamente pelo Conselho Tutelar. São casos

frente aos quais os conselheiros vivem um dilema por não terem condições de, efetivamente,

resolvê-los. A conselheira com quem fomos procurar pela casa de “Buiú” dizia: “Me corta o

coração deixar uma criança assim, mas o que eu posso fazer?” A situação em que este garoto

foi encontrado pode ser enquadrada pelo CT como um caso de “negligência” da família. Por

isso a conselheira, ao deixar “Buiú” com a vizinha, solicitou que esta entregasse à mãe do

menino uma convocação para que comparecesse no CT a fim de esclarecer o ocorrido.

Dias depois, voltamos à vila Divinéia a fim de fazer visitas de casa em casa com

objetivo de observar se aquela comunidade conhecia o Conselho Tutelar e ouvir relatos de

experiências de contato com esta instituição. Ao chegarmos em uma casa onde estavam três

mulheres conversando, perguntamos se já tinham ouvido falar do CT. Uma delas disse que

sim. Naquela semana havia recebido “um bilhetinho para ir até lá” por causa de seu filho que

tinha fugido. Era Simone, mãe de “Buiú”, que na verdade se chama Robson. Disse que gostou

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muito de ter ido até lá, que uma moça a ajudou, conversando bastante. Simone tem 20 anos,

estudou até a segunda série primária, está desempregada e separada do marido há um ano.

Além de Robson, tem mais dois filhos: um de dois anos que mora com o pai e outro de um

ano de idade que permanece com ela. Contou-nos que naquele dia em que Robson “fugiu” ela

tinha ido ao centro procurar emprego e o deixado com uma vizinha.

Este caso exemplifica um dos limites colocados para a atuação do Conselho Tutelar. A

instituição dá visibilidade à uma família que, diante de uma legislação de “primeiro mundo”

como é definido o ECA, pode ser qualificada como “desestruturada” e “negligente”. No

entanto, pelo menos o início da solução de seus problemas passa, necessariamente, pela

melhoria de suas condições de vida, acesso a equipamentos públicos etc. Em casos como este,

a intervenção institucional, não contando com eficientes alternativas para o encaminhamento

da solução do problema, limita-se muitas vezes ao “aconselhamento”.

O objetivo deste artigo é analisar como os principais agentes que atuam no Conselho

Tutelar – os conselheiros tutelares – interpretam estas múltiplas famílias que chegam até eles

e como enfrentam na prática o paradoxo de ter de tomar partido pela criança ou pelo

adolescente frente ao grupo social que a legislação define como o principal agente tutelar.

1 CONVIVÊNCIA FAMILIAR: um direito de crianças e adolescentes

O ECA, ao definir a convivência familiar como um direito que deve ser assegurado a

todas as crianças e adolescentes1, formalizou legalmente a concepção desenvolvida sobretudo

pela psicologia, e que focaliza a família como o locus

1 Art. 19 “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de entorpecentes.” (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990)

5

“...potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento.” (Szymanski ,1995, p. 24).

Entendemos que a consagração em lei de preceitos desenvolvidos pela ciência funciona

como um argumento competente num processo de ruptura com outras concepções até então

formalizadas. Este foi o caso do ECA em relação à tendência de institucionalização da

infância e juventude pobre, presente nas legislações que o antecederam2. Portanto a

visibilidade social da família produzida pela atuação do Conselho Tutelar não é mera

casualidade mas decorrência de uma concepção que valoriza a convivência familiar em

detrimento daquela proporcionada por organismos de atendimento tais como a Febem3.

O CT, enquanto órgão encarregado da garantia e promoção dos direitos, é a instituição

com condições legais de intervir nas diferentes formas de organização familiar e a primeira

(antes de assistentes sociais, do sistema judiciário etc.) que deve certificar-se de sua

adequabilidade para o desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes.

A literatura referente ao ECA4 explicita a importância que a família assume nesta nova

fase de construção da problemática5 da infância e adolescência na medida em que considera,

por exemplo, que os programas de orientação e apoio sócio-familiar devem ter prioridade nas

políticas de atendimento à infância e adolescência, constituindo-se na “primeira retaguarda

para os Conselhos Tutelares” (Costa, 1993, p. 49):

2 Faria (1991) observa que a partir do ECA a família é considerada o locus adequado para o desenvolvimento e a convivência das crianças e adolescentes. O conceito de entidade familiar é ampliado incluindo os grupos resultantes de união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. A legislação elimina também a discriminação entre filhos legítimos, ilegítimos e adotivos. 3 A resenha de Alvim e Valladares (1988), sobre os estudos relativos a infância no Brasil desenvolvidos pelas ciências sociais, identifica na década de 70 somente dois trabalhos produzidos no país e cujo principal enfoque estava no tema “Criança e Família”. Na década de 80 (até 1987), por sua vez, as autoras já localizam treze trabalhos com este eixo de análise e sugerem como nova direção para a pesquisa sobre a infância pobre no Brasil “pensar mais a criança na família, na vizinhança, no bairro ou favela e as articulações aí presentes” assim como “pensar mais a criança em relação à família, mesmo quando o recorte do pesquisador for a criança na rua ou na instituição.” (Alvim e Valladares, 1988, p. 22) 4 Trata-se de livros e artigos produzidos com o intuito de difundir as inovações trazidas pela nova legislação e na grande maioria dos casos fazem também a sua defesa. 5 Por construção de um problema social entendemos o processo pelo qual um determinado grupo (velhos, mulheres, crianças, índios etc.) é distingüido e a situação em que se encontram seus integrantes é considerada, por alguma razão, socialmente problemática. A pesquisa teve como referencial teórico os trabahos desenvolvidos por Lenoir (1979, 1984, 1985, 1989) sobre a construção do problema social da terceira idade na França.

6

“...ir desde o fornecimento de informações acerca do acesso a serviços ou de mecanismos legais, até o aconselhamento para enfrentamento e solução de problemas humanos mais complexos vividos no interior da família.” (Costa, 1993, p. 49). O autor citado — ativo participante do processo de elaboração e implantação do

Estatuto — observa com surpresa o fato da família, ter sido “suprimida” dos programas de

promoção da criança e do adolescente baseados nas legislações anteriores. Ele afirma:

“É curioso observar que, no Brasil, um simples olhar sobre as redes de ações e programas em favor da criança e do adolescente em situação de risco e/ou em estado de necessidade evidencia a pouca importância que tanto o governo como as entidades não-governamentais têm dado à questão da família, como alicerce de qualquer ação realmente preventiva. (...) Chega a ser impressionante o fato de que grandes articulações da sociedade civil, como o amplo movimento social em favor das crianças e adolescentes que fazem das ruas seu espaço de luta pela vida e até mesmo de moradia, passam ao largo da questão da família, como se abordar o problema por este ângulo constituísse, na verdade, retrocesso em relação à estratégia político-social desses grupos.” (Costa, 1993, p. 44) “A questão da família assume uma dimensão de atualidade e urgência que não poderemos deixar de levar em conta, sob pena de não criarmos as condições de implementar as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.” (Costa, 1993, p. 39)

Assim podemos afirmar que o CT é uma instituição produto de concepções sobre o

problema social da infância e da adolescência que revalorizam a vivência familiar para o

desenvolvimento da juventude e, ao mesmo tempo, potencialmente produtora da definição

que identifica o problema da infância e adolescência com o problema da família.

2 A ÓTICA DOS CONSELHEIROS SOBRE A DEMANDA: a “desestruturação familiar”

Para os conselheiros, os casos atendidos no caracterizam-se, fundamentalmente, por

serem problemas decorrentes de uma “família que está doente” (Entrevista com Pedro em

01/06/94)6:

6 As entrevistas foram realizadas com os conselheiros tutelares atuantes no CT da Microrregião 3 de Porto Alegre. Todos os nomes utilizados no artigo são fictícios.

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“Eu gostaria de frisar que o básico do que atendemos está na desestrutura familiar tanto material como emocional”. (Entrevista com Júlio em 30/06/94).

“Eu tenho a impressão que ainda são os problemas familiares. Tem os maus tratos que o índice é bem grande mas é o conflito familiar...Aí vem a questão de negligência e os maus tratos por trás.Tem a questão da saúde, da escola, tudo.” (Entrevista com Luíza em 18/08/94).

A noção de “desestruturação familiar” perpassa o discurso de todos conselheiros e é

utilizada para definir a situação em que se encontram as famílias das crianças e adolescentes

que passam pelo CT. Subjacente a esta definição, parece existir a pressuposição de que o

estado de “desorganização” é atual e que em algum momento o grupo familiar funcionou de

outra forma e melhor. João considera que:

“A fraqueza do casamento está na razão da mulher ter saído para trabalhar.O problema social em relação à criança advém da mulher ter saído para trabalhar. A mulher tem a mesma capacidade do homem para exercer qualquer função só que ela tem uma especialidade que a natureza lhe deu que é o trato com a criança, o jeito. A mulher educa a sociedade, ela sempre fez o homem e hoje não tem tempo e a criança recebe informações totalmente diferenciadas.” (Entrevista em 19/07/94).

A desestruturação familiar para estes agentes é resultante, principalmente, de duas

ordens de fatores: por um lado, das condições econômicas a que os demandantes estão

submetidos e por outro atribuem as situações que chegam até o CT ao que nomeiam como

cultura.

A carência material aparece nos discursos tanto como a causa dos problemas

enfrentados pela família, quanto o principal limite para que as respostas dadas pela instituição

sejam eficientes na resolução dos casos.

“É na família. A gente vai mexer naquela questão de novo, o problema social o que é? Os pais não conseguem sustentar uma família, um monte de filhos, vivem mal, comem mal, o trabalho é péssimo, eles nem têm trabalho. Aí começa surgir em cima da criança, o mais fraco, vai atingir ela e o que nós temos para oferecer quando a questão básica é arrumar aquela casa, é ajudar conseguir um emprego, é alimentação? É isso que mais nos faz falta hoje, não têm esses recursos.” (Entrevista com Luíza em 18/08/94).

“Isto aqui (o CT) no meu ponto de vista é uma porta aberta pra problemas insolúveis aqui dentro. Não tem como resolver o problema da família simplesmente com um

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encaminhamento a nível de papel para outro órgão.” (Entrevista com Júlio em 30/06/94).

O quadro de carências vislumbrado pelos agentes é complementado pela idéia de que

estas também podem ser de ordem emocional ou afetiva: pais que foram agredidos e repetem

a agressão sobre os filhos, crianças e adolescentes que não se sentem amados em suas

famílias e que passam a cometer pequenos delitos.

Somado a estes fatores relativos a múltiplas carências que, segundo os conselheiros,

atingem os demandantes, o elemento “cultural” fornece a chave para a explicação de uma

outra ordem de ocorrências:

“Predomina o caso da miséria. Eu poderia dizer que de dez casos que entram aqui no Conselho, sete se relacionam com o problema da pobreza, da miséria. O resto é esta questão de entendimento cultural que a gente vai lidar sempre. A sociedade constrói valores, hábitos diferentes de uma região para outra e a gente vai lidar com isto sempre.” (Entrevista com Julio em 30/06/94).

Vale destacar que a cultura aparece, nestes discursos, separada das trajetórias

econômica, social e familiar dos demandantes. Ou seja, a “cultura” é tratada como uma esfera

autônoma em relação à situação econômica e também às relações afetivas ou “emocionais”.

Assim que, os casos para os quais não encontram uma causalidade evidente nas condições

objetivas, são explicados pela “cultura”. A referência à cultura como um fator desencadeador

de parte das ocorrências registradas na instituição é particularmente visível no discurso de

Julio — conselheiro com formação nas ciências humanas:

“Depois começam aparecer as questões que não se pode dizer que são por causa de desestrutura econômica da sociedade. São questões que existem em outros países, é questão cultural de como tu deves lidar com teu filho. Por exemplo, aquela pessoa que dá com um sarrafo nas mãos do filho porque ele pegou alguma coisa que não era para pegar, isso não é uma questão de desestrutura econômica. É uma questão cultural que está construída, que esta pessoa ou a família dela construiu de como educar o filho e aí começam aparecer esses casos que do meu ponto de vista são mais culturais.” (Entrevista com Julio em 30/06/94).

No discurso deste conselheiro o conceito de “cultura” é utilizado para referir práticas

sociais de tratamento das crianças e adolescentes que contrariam as determinações do ECA.

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Ele considera que se a situação de miséria fosse amenizada, a instituição poderia se ocupar de

questões situadas em “outro patamar”: no âmbito dos conceitos de infância e adolescência,

do tratamento que lhes deve ser dispensado, na divulgação dos direitos que lhes são

assegurados pela legislação etc.

“Resolvido este problema [o da miséria] a gente poderia dizer: então não tem mais problema? Não, vamos continuar tendo problemas, só que nós passaríamos de um patamar de problema para outro: de uma criança de 3 anos não ter o que comer para quem sabe uma criança de três anos viver agressão psicológica na relação pai-mãe.” (Entrevista com Julio em 30/06/94).

A partir deste raciocínio, a posição do conselheiro de afirmar que a maior parte dos

casos que chegam à instituição não se resolvem nos seus limites, é coerente. Em função disto,

ele é um dos que entende ser necessário ampliar a atuação do CT no sentido deste inserir-se

nas lutas levadas a cabo pelas organizações comunitárias e aproximar-se do movimento

popular da região.

Na fala de João a cultura também é referida. Para ele a pobreza não explica, por

exemplo, o fato das crianças viverem num ambiente sem condições de higiene. Seu discurso

permite deduzir que utiliza o conceito de cultura para referir um modo de vida que vai

passando de geração em geração e acaba sendo considerado normal7:

“Se tem uma casa suja com falta de higiene aquilo é uma cultura que se estende, vai passando, ninguém nota, não percebe. Os parentes visitam e é a mesma coisa.” (Entrevista com João em 19/07/94).

Queremos enfatizar que, independentemente das causas que atribuem à demanda, o

discurso destes agentes expressa a consideração do lugar central ocupado pela família na

configuração dos problemas que atendem. Mauro, por exemplo, recorre a categorias oriundas

7 A justificativa dada por João nos remete a acepção que o conceito de cultura recebeu na teoria da “cultura da pobreza” elaborada por Oscar Lewis a partir de estudos realizados no México e em Porto Rico. Este autor definiu a cultura da pobreza, como tendo “...sua própria estrutura e lógica, um modo de vida passado adiante de geração a geração ao longo de linhas familiais. A cultura da pobreza não é somente uma questão de privação ou desorganização, um termo significando a ausência de algo. Ela é uma cultura no sentido antropológico tradicional na medida em que proporciona aos seres humanos um esquema de vida, um conjunto pronto de soluções para problemas humanos, e assim desempenha uma significativa função adaptativa.” (Lewis, 1966, p. 19 apud Oliven, 1985, p. 18)

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da psicologia — que têm como parâmetro a família nuclear moderna — para explicar a

desestruturação que observa nos grupos familiares

“A família, por mais pobre que seja, se o cara tem o referencial de que este é o meu pai, esta é minha mãe... O que faz com que as crianças estejam na rua? Muitas vezes elas têm a comida em casa, a roupinha, por mais pobrezinha que seja, mas é porque a mãe diz: - Olha, este aqui é o meu amigo X. A semana que vem é o amigo Y, então não tem referencial de pai. Os caras não trabalham, estão alcoolizados, batem nas mães deles que não têm força para se opor.Apanham demasiadamente em casa, então acabam achando que na rua são eles contra eles mesmos. Não tem um terceiro maior espancando ou batendo na mãe dele ou mexendo na irmãzinha menor dele. Então, se tivesse esta identificação de pai, mãe, filho, estrutura familiar, tenho certeza que metade dos problemas não existiriam.”(Entrevista com Mauro em 09/06/94).

A observação de características recorrentes no grupo social demandante fornece os

elementos necessários para que os conselheiros — a exemplo do que fariam pesquisadores

preocupados em explicar uma determinada demanda institucional — encontrem uma

determinada lógica no problema social que estão encarregados de enfrentar.

Embora busquem explicações à demanda em fatores externos à família ou pelo menos

não diretamente determinados pelos grupos familiares (situação econômica e contexto

“cultural”), apontam a incapacidade dos que recorrem ao CT de tratarem estas dificuldades

sem prejuízo às crianças e aos adolescentes.

A ênfase colocada na “desestruturação familiar” como a principal característica da

demanda pelo CT e, portanto, das violações ao ECA, sugere que esta instituição poderá

cumprir o importante papel de agregar as relações familiares ao perfil do problema social da

infância e adolescência já definido no Brasil em termos da marginalização, da delinquência,

da violência institucional etc.8 Além das peculiaridades do funcionamento desta instituição

que, por si só, permitem que a família seja “vista mais de perto”, os principais porta-vozes do

grupo social distingüido pelo ECA identificam o “problema social da infância e da

8 No dia 28/07/95 a Rede Globo apresentou um Globo Repórter inserido na programação do “Criança Esperança”, evento anualmente promovido por esta emissora. A metade do programa foi dedicada a reportagens de casos de maus tratos familiares que deram entrada no Conselho Tutelar de São Paulo. Durante o programa foi destacada a diferença entre o Brasil e os EUA quanto as possibilidades de denúncia e punição severa às famílias violentas. O repórter afirmou: “Nos EUA existe um SOS Criança em cada esquina.” No Jornal da Globo do dia 08/08/95 foi noticiado que o Conselho Tutelar de uma cidade do interior do RS, juntamente com o Juizado da Infância e Juventude do município, propôs à Câmara de Vereadores uma lei que estabelece a cobrança de multa aos pais cujos filhos estiverem pedindo esmola.

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adolescência” ao “problema da família”. Consideramos que esta formulação da problemática,

manifesta pelos conselheiros tutelares, reforça a possibilidade de que, com o funcionamento

do CT, o foco sobre este problema social se desloque da “rua para a casa” e o grupo familiar

seja definido como potencialmente tão agressor a crianças e adolescentes quanto o mundo da

rua.

O quadro abaixo sintetiza a explicação dada pelos agentes à problemática recebida na

instituição:

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Quadro 1 - Síntese da interpretação dos conselheiros tutelares entrevistados à demanda atendida no CT

Causas da Demanda Desdobramentos Discursos Carência 1. Econômica

2.Afetiva/emocional 2.1 das crianças e adolescentes 2.2 dos pais

1. “Predomina o caso da miséria. Eu poderia dizer que de dez casos que entram aqui no Conselho, sete se relacionam com o problema da pobreza, da miséria”. (Entrevista com Julio em 30/06/94)

2. “Eu considero que 90% dos problemas que aparecem dentro do CT são vinculados essencialmente à carência, seja ela econômica, afetiva e muito mais afetiva, essencialmente, questões de carência afetiva” (Entrevista com Mauro em 09/06/94)

2.1 “70% das crianças infratoras que cometem pequenos assaltos, roubar reloginho... é carência, querendo chamar atenção da mãe, do pai. O pior sentimento que existe é o sentimento de indiferença que estas crianças sentem” (Entrevista com Mauro em 09/06/94)

2.2 “Estes pais não tiveram tratamento, acompanhamento suficiente na época da adolescência e da infância deles. Então o que que está acontecendo na sociedade é reflexo de coisas antigas.”(Entrevista com Marina em 29/06/94)

Cultura 1. Quanto a forma de tratar os filhos 2. Quanto ao modo de vida

1. “São questões que existem em outros países, é questão cultural de como tu deves lidar com teu filho.” (Entrevista com Júlio em 30/06/94) 2. “Se tem uma casa suja com falta de higiene aquilo é uma cultura que se estende, vai passando.” (Entrevista com João em 19/07/94)

### Desestruturação Familiar No discurso sobre a desestruturação familiar combinam-se considerações referentes a:

- fragilidade do casamento (uma “instituição falida”); - dificuldades no relacionamento entre pais e filhos, diferenças entre as gerações, falta de diálogo (“a família está doente”) - perda de referenciais decorrente da instabilidade das relações conjugais; - influência negativa dos meios de comunicação social (“destrõem a família”); - necessidade das mulheres sairem de casa para trabalhar.

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3 A INTERVENÇÃO INSTITUCIONAL SOBRE A PROBLEMÁTICA: um vasto campo de indefinições

A situação que se coloca a partir desta legislação que define claramente a família como

o espaço social privilegiado para a socialização humana e rompe com as leis

institucionalizantes do período anterior é ambígua. Como já observamos, observa-se um

processo de revalorização do grupo familiar, mesmo daquele que se encontra em condições

de pobreza9. Por outro, a partir do funcionamento do CT, quando as condições reais da

organização familiar passam a ser visualizadas, estas dão margem para que a família seja

qualificada como negligente, agressora etc. Ou seja, inadequada para o desenvolvimento da

criança e do adolescente e incapaz de assegurar-lhes os direitos definidos pelo ECA.

Neste sentido, as características do tipo de intervenção — autoritária, assistencial,

negociada, militante etc. — que o Conselho Tutelar pode ter sobre a problemática que recebe

são tão vastas quanto a diversidade dos agentes que compõem ou podem vir a compor esta

instituição.

A percepção de que os casos atendidos no CT devem-se à “desorganização familiar”,

faz com que alguns conselheiros considerem ser uma das tarefas da instituição, agir no

sentido de reorganizar este grupo social:

“Nós achavamos que poderíamos estruturar um trabalho sério que tivesse efetivamente contato com a família, a nível de reestruturar a família para que mantivesse as suas crianças em casa...”(Entrevista com Mauro em 09/06/94).

Apesar de considerar que o CT não está conseguindo cumprir esta atribuição de

reestruturar a família, este mesmo conselheiro relatou-nos sua intervenção num caso em que

fica evidente esta sua tentativa. Contava-nos que naquele dia tinha que estar bem preparado

para uma reunião de família que havia convocado.

Tratava-se do caso de um casal que se separou em função de uma briga que o marido

teve com o cunhado (irmão da esposa). Em virtude disto, a mulher saiu de casa levando o

9 “Art. 23 — A falta ou a carência de recursos materiais não consitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder.” (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990)

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filho de alguns meses. Na mesma noite, “o homem bebeu, ficou com outra mulher, foi até a

casa onde estava a esposa e tirou-lhe a criança”. A mulher foi ao CT queixar-se da atitude do

marido e o conselheiro resolveu realizar uma reunião com todos os envolvidos. Apesar de

entender que “o sangue puxa” e por isso ela defendeu o irmão, o conselheiro pretendia

“convencê-la a voltar para casa”. Ele não entende que esta briga seja motivo suficiente para

a separação do casal. Considera que “no dia em que tudo aconteceu o marido fez tudo errado:

bebeu, procurou outra mulher, ofendeu a esposa, mas foi um daqueles dias em que a gente só

faz besteira.”

Pedro também acha que a reestruturação da família é uma tarefa do CT. Ele considera

que há uma predisposição por parte dos meios de comunicação em enfraquecer os grupos

familiares visando facilitar a dominação. Diante disto, cabe ao Conselho Tutelar oferecer

resistência a este processo de “desestruturação” promovido principalmente pela televisão:

“O que aparece aqui no Conselho são os pedaços de uma família. Nossa função principal é recompor esta família. A família é a célula da sociedade e o que se faz hoje? — tu pode dizer que isso é questão pessoal minha, é raivosismo meu — mas hoje, os meios de comunicação destrõem a família. É mais fácil com a família destruída passar sua visão de mundo. Se tem uma família sólida, não tem como passar certas coisas, mas se não tiver a mínima estrutura passa.”(Entrevista com Pedro em 01/06/94).

Alguns elementos dos discursos que estamos analisando nos sugerem a possibilidade de

que o CT venha cumprir um papel similar ao de uma agência de normatização das práticas

familiares que, por não ter possibilidade de alterar as condições materiais da população,

intervém no seu modo de vida (Donzelot, 1986; Rago, 1987). Neste sentido, se os agentes

institucionais entendem que um determinado grupo familiar é, nos termos da legislação em

vigor, inadequado ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, estão legalmente

autorizados a de alguma forma tentar alterar a situação que consideram desfavorável. Se não é

possível dar emprego, garantir alimentação, assistência médica, a alternativa pode ser tentar

minorar as consequências da miséria através da difusão de hábitos alimentares, organização

da casa, orientação quanto a educação dos filhos etc. As observações feitas por João, por

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exemplo — justamente o conselheiro de origem mais pobre —, nos colocam diante de

concepções muito próximas daquelas nas quais se basearam os programas sociais dirigidos

aos pobres na França do século XIX e analisados por Donzelot (1986). Diz o conselheiro:

“Eu acho que a base, a formação da criança de 0 a 7 anos é uma coisa importantíssima. É quando tu ensina a essa criança outros valores além daqueles que naturalmente sua família lhe transmite. Fazer com que as crianças habituem-se a ter, a exigir um ambiente mais adequado, tipo uma casa varrida, um prato limpo, um banho diário, uma roupa limpa, isto é fundamental para que ela não ache natural viver no meio da sujeira. No momento em que tiverem um padrão de higiene, naturalmente, terão outras exigências, sairão na rua e sentirão que não são distingüidas negativamente, são tratadas normalmente pelas pessoas que passam por elas.”(Entrevista com João em 19/07/94).

Este mesmo conselheiro considera que uma medida eficaz para diminuir os problemas

que atingem as famílias seja proporcionar a crianças e adolescentes, um ambiente

diferenciado ao que estão habituadas a viver, onde possam se profissionalizar e voltar para

casa com um conjunto de outros valores. Uma posição que, aliás, pouco difere dos

argumentos que justificam a institucionalização da infância e da juventude pobres e aos quais

o ECA se contrapõe. Sugere ele:

“(o governo deveria) ...vender o patrimônio da Febem e construir uma cidade para profissionalizar essas crianças e não precisa ser crianças abandonadas. Pegar famílias carentes que têm problemas e oferecer: as crianças vão para lá de segunda à sexta e sábado vão para casa. As crianças quando voltam trazem para as famílias outros valores que aprenderam: ‘Mãe, vamos varrer essa casinha, vamos limpar esse quartinho’, ‘Pai, ao invés de ter esse buraco aí na rua, faz um banheirinho, bota uma caixinha de descarga’, ‘Mãe, se a senhora pegar essa batata e fizer dessa maneira vai economizar mais’. Tem um momento que os filhos podem auxiliar os pais e os pais ficariam de que jeito? Ficariam sabendo que as crianças estão seguras, poderiam melhorar sua economia, talvez até diminuísse a incidência de alcoolismo.” (Entrevista com João em 19/07/94).

O que queremos demonstrar com relatos que evidenciam diferentes possibilidades de

intervenção do Conselho Tutelar é que a atuação que esta instituição deve ter, a definição da

problemática que recebe, bem como as soluções encontradas para os casos são objetos de

constantes disputas.

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Os próprios conselheiros tutelares — agentes encarregados de “fazer valer a lei” —

não são unânimes em avaliar como corretas as proposições trazidas pelo Estatuto para a

resolução dos problemas. A leitura que fazem da legislação não é homogênea e no

cumprimento da função difusora das normas estabelecidas pelo ECA, valem-se das

experiências acumuladas a partir do lugar social que ocupam e à luz destas vivências,

interpretam as situações que chegam até eles. Assim, os procedimentos adotados e as

concepções que difundem não correspondem, necessariamente, àquelas recomendadas pelo

ECA. Somente a partir desta perspectiva é possível compreender, por exemplo, as posições

críticas manifestadas por João, acerca das determinações do estatuto. Dizia ele: “Não tem lei não. O que tem aí talvez tenha sido uma boa vontade de pessoas que estudaram uma forma de minimizar... Eu acho que é uma coisa que deveria ser reavaliada. A experiência não é boa. No momento em que toda comunidade de crianças e adolescentes sabem que têm uma super proteção é natural negligenciar mais. Eu tive de plantão antes de ontem e chegaram lá dois irmãos que moram aqui na vila Pinto, um com 10 outro com 11 anos. Disseram para o policial: ‘tu não pode por a mão em mim e tem outra coisa, vou demolir todo este Conselho e vocês não podem fazer nada comigo, quero saber como é que vão fazer para me botar na camionete para me conduzir até o abrigo’. Eles tinham roubado um rádio toca-fita no dia 17 e no dia anterior também já tinham passado pelo Conselho pelo mesmo problema de roubo... Estão sendo usados porque geralmente tem um adulto que se especializa neste tipo de coisa.” (Entrevista com João em 19/07/94)

3.1 A negociação de direitos individuais: um parodoxo que se expressa na prática

A observação da forma de atuação dos conselheiros tutelares e o acompanhamento do

desfecho dos casos que chegam ao CT, nos sugerem a imagem destes agentes como a de

negociadores da legislação e de suas próprias concepções frente a uma realidade que em

muitos casos as contradiz. Assim, na tentativa da intervenção negociada – procedimento

recorrente na atuação dos conselheiros do CT estudado – se apresenta o seguinte paradoxo: ao

mesmo tempo que a família é definida pelo ECA como o local mais apropriado para o

17

desenvolvimento humano, a interpretação que os agentes fazem da adequabilidade da família

aos preceitos do ECA podem desautorizá-la como uma instituição capaz de cumprir sua

função junto a crianças e aos jovens. Além disto, a defesa dos direitos individuais da criança e

do adolescente muitas vezes significa uma ameaça à autoridade parental.

Bobbio (1992) observa que a partir da segunda guerra, o processo de desenvolvimento

dos direitos do homem tomou, basicamente, duas direções: o da sua universalização e o da

sua multiplicação. No que se refere ao “processo de multiplicação” o autor considera que

este se deu de três modos:

“a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na

concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança,

velho, doente, etc.” (Bobbio, 1992, p. 68)

O Estatuto da Criança e do Adolescente insere-se nesta fase do desenvolvimento dos

direitos sociais que Bobbio caracteriza como sendo “da multiplicação por especificação”.

Ou seja, um período a partir do qual multiplicam-se os sujeitos de direitos que, em função de

suas particularidades, passam a ser vistos como merecedores de um tratamento legal

específico:

“...a passagem ocorreu do homem genérico — do homem enquanto homem — para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, etc.”10 (Bobbio, 1992, p. 69)

O impasse que se coloca na prática de atuação de agentes como os conselheiros tutelares

é que os direitos individuais preconizados pela legislação têm que ser garantidos ao mesmo

tempo em que não há consenso na sociedade em relação a questões tais como: a partir de que 10 Como exemplos deste processo de especificação de sujeitos de direitos na legislação internacional, o autor aponta: a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1952), a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (1971), a Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos (1975) etc., sendo que a primeira legislação que especifica crianças como sujeitos de direitos data de 1959 — Declaração da Criança — e inaugura o processo em que, no direito brasileiro, o ECA se integra.

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idade uma pessoa é considerada apta a tomar decisões que direcionam o seu futuro? o que

evidencia maturidade emocional de um adolescente e lhe autoriza a decidir livremente sobre a

escolha de parceiros sexuais? qual o limite da autoridade paterna e/ou materna?

Quanto ao direito à liberdade garantido pelo Estatuto, por exemplo, o presidente da

Associação Internacional dos Juízes de Menores observa que trata-se: “de uma liberdade sui generis, pois é muito contraditório dizer que um sujeito é titular do direito à liberdade, mas não pode exercer este direto, pois se outro sujeito está encarregado de escolher por ele, aquele sujeito não é livre.” (Vercelone, 1992, p. 17 apud Genofre, 1995, p. 103)

Se partimos do pressuposto — sugerido por pesquisadores da temática da família

brasileira — de que nas últimas décadas foi possível observar significativas mudanças nos

padrões de convívio familiar (Sarti, 1995, p. 39), não podemos deixar de considerar que os

conselheiros tutelares inserem-se como agentes de intervenção neste processo de mudança

vivenciado nas relações familiares. Sarti considera que: “Há, (...), duas áreas em que as mudanças incidiram de forma significativa, alterando a ordem familiar tradicional: a autoridade patriarcal e a divisão de papéis familiares, modificando substancialmente as relações entre o homem e a mulher e aquelas entre os pais e os filhos no interior da família. Os papéis sexuais e as obrigações entre pais e filhos não estão mais claramente preestabelecidos. Os sujeitos não estão mais subsumidos no todo. Com isso, a divisão sexual das funções, o exercício da autoridade e todas questões dos direitos e deveres na família, antes predeterminadas, hoje são objeto de constantes negociações, sendo passíveis de serem revistas à luz destas negociações.” (Sarti, 1995, p. 44)

Segundo esta autora, o sentido das mudanças que estão ocorrendo pode ser sintetizado

na afirmação da individualidade e na indicação da família como o espaço social privilegiado

para o desenvolvimento da dimensão individual. Sem entrarmos no debate sobre estas

transformações na organização familiar brasileira, interessa-nos somente destacar a idéia de

que o ECA constitui-se numa legislação que afirma a individualidade de crianças e

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adolescentes. Neste sentido, os agentes encarregados da defesa dos direitos assegurados a

estes sujeitos por seu estauto estão colocados como mediadores num processo de definições

que se encontra em aberto e que, além disso, não ocorre da mesma forma nas diferentes

camadas sociais11.

A pesquisa em processos referentes a casos atendidos neste CT nos seus primeiros

dezoito meses de funcionamento permitiram observar que a intervenção cabível em muitos

casos faz com esta instituição assemelhe-se a uma “corte de pequenas causas familiares” na

qual os conselheiros buscam resolver — mediante negociação — problemas de

relacionamento de pais e filhos, brigas entre adultos e inclusive conflitos conjugais. Estas

situações exigem, cotidianamente, que os conselheiros tutelares esclareçam aos demandantes e

a si mesmos sobre a posição que ocupam enquanto defensores de uma das partes e ao mesmo

tempo exerçam o papel de negociadores ou mediadores dos conflitos.

Um dos conselheiros entrevistados, considera que o “lugar” assumido nestes casos, nem

sempre está claro para o conjunto dos conselheiros. Observa ele:

“Não estamos aqui para defender o direito que um pai tem sobre a visão que ele tem do filho. Estamos aqui para defender o direito da criança. Essa criança pode ser a agressora mas a agressão que ela faz é decorrência de um processo que a sociedade ou os adultos fizeram. Eu acho que tem que ter essa leitura de direito da criança e do adolescente. Acho que tem que trabalhar bem isto porque foi muito pouco trabalhado com o grupo que entrou. Não estamos aqui para atender o pai que vem reclamar que a filha com 15 anos quer ter relação sexual e condenar. Estamos aqui para atender o direito dessa menina de que, conforme o desenvolvimento dela, venha ter seus direitos garantidos.”(Entrevista com Júlio em 30/06/94).

O que significa a garantia do direito da liberdade no caso de uma adolescente de 15

anos manter relações sexuais sem que os pais com isto concordem? Sobre questões desta 11 Sarti levanta a hipótese de que o valor da dimensão individual pode ser diferenciado entre os pobres e setores médios da sociedade. Afirma ela: “No universo cultural dos pobres, não estão dados os recursos simbólicos para a formulação deste projeto individual que pressupõe condições sociais específicas de educação, de valores sociais, alheios a ser universo de referências culturais, tornando projetos individuais inconcebíveis e inexequíveis.”(Sarti, 1995, p. 47).

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ordem o ECA legisla apenas genericamente e entre os conselheiros tutelares também não há

consenso.

João, considera que a nova legislação autoriza uma série de “liberalidades” na medida

em que não existe uma legislação equivalente que garanta aos pais, direitos sobre as decisões

e atos de seus filhos:

“O Estatuto permite até que uma criança de 14 anos se quiser namorar um cara qualquer e ele cometer com ela todas barbaridades e ela disser que foi por livre e espontânea vontade... Quais são as sanções que este homem vai sofrer? Um pai pode tolir uma menina de 15 anos de sair com um cara e viver a vida dela? O pai tem lei que possa impedir? Pode fazer de que forma? Conseguirá o pai neutralizar essa deturpação incutida sobre aquela criança? Qual é a lei que nós temos que impeça uma menina de 15 anos possa sair com qualquer homem, sair de noite? Qual é a lei? Não temos lei que impeça, não podemos retê-la.” (Entrevista com João em 19/07/94).

Assim, os agentes nomeados como defensores do ECA e dos preceitos que embasam

esta legislação, também inserem-se no processo de definição do conteúdo dos direitos

assegurados e os negociam com os demandantes. Os casos relativos aos conflitos de

relacionamento entre os pais e seus filhos adolescentes — e que freqüentemente suscitam

discussões acerca da liberdade sexual — são os que especialmente possibilitam que

visualizemos a prática do conselheiro tanto como um negociador de valores ou concepções em

conflito, quanto como um agente inserido (tendo que intervir) na definição de questões tais

como a autoridade parental, a posição de crianças e adolescentes nos grupos sociais em que

estão situados, a condicionalidade ou não da defesa do direito etc.

Numa ocasião, presenciamos uma mãe chegar ao CT, aparentemente, muito nervosa,

perguntando: “Quais os direitos que um cara de 22 anos tem sobre minha filha de 12?”, a

mulher relatava que “sua filha não é mais a mesma, fuma, sai sem avisar, está fumando

maconha”. Dizia que “não agüenta mais, sua casa está um inferno, seu marido está doente,

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não pode se incomodar e a menina virou a cabeça, não a escuta mais. O cara não presta, não

trabalha e vai para sua casa quando ela não está”.

A mãe de Andréa de 14 anos foi ao CT solicitar “providências com relação a sua filha

que saiu de casa para morar com o namorado” (processo 027/92)12. Nas anotações feitas

sobre a entrevista realizada com a menina, o conselheiro tutelar observou que esta “queixou-

se de problemas com a madrasta que deixa os filhos com ela para trabalhar nos fins de

semana a noite, mas demonstrou ser uma adolescente sem maiores problemas (drogas)”.

Neste caso o procedimento do conselheiro foi conversar com o casal de namorados e no

dossiê anotou: “Alertei sobre o risco de uma gravidez inesperada, assuntei sobre sua juventude, seus planos... O adolescente afirmou que quer continuar a namorar, noivar, construir uma vida em comum com ela; disse que já aconselhou a moça para que retorne para casa mas ela está resistindo.”

Uma conversa mantida por João com um jovem pelo telefone também ilustra este

duplo papel — de negociador e agente envolvido como interventor na definição do conteúdo

dos direitos — vivido pelos conselheiros: tratava-se de um caso no qual os pais da menina

estavam impedindo seu namoro e o adolescente (namorado) telefonou para o CT para saber

como estava a situação. O conselheiro informou-lhe que marcou uma entrevista com o pai da

adolescente e dizia: “Estou torcendo por ti pois sei que gostas da moça e se tu gostas dela,

luta por ela”. Sugeria ao jovem que tivesse: “Cuidado para não arranhar o velho pois a reação dele é normal. A menina é sua filha única e nós que temos filhos as vezes pecamos por excesso de zelo, mas feliz daqueles cujos pais pecam por excesso de zelo.”

Afirmava ainda:

12 Em entrevista feita com um conselheiro tutelar de outra microrregião, chamou-nos atenção o destaque dado pelo mesmo aos casos de fuga de adolescentes com namorados. Ele dizia que nestas situações, procedia colocando “todos envolvidos cara-a-cara” e “fazendo acordo”. Chamou-nos atenção também que no relato destas ocorrências de fuga, o conselheiro ressaltava o fato da adolescente ser ou não virgem como se este tivesse sido um dado relevante para o tipo de solução que ele encontrou.

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“Tens que tentar ser um instrumento de contribuição para aquela família e não um problema. Se casas com ela, vais para o céu, estarás no paraíso, serás o marido da única filha deles. Daqui um tempo ele vai te dizer que és o filho que ele não teve.”

A imagem do conselheiro tutelar como um intermediador colocado entre o que define

a legislação e as práticas da população demandante (seja ela os grupos familiares ou as demais

instituições sociais) parece-nos apropriada para definir a intervenção do Conselho Tutelar

estudado sobre situações em relação as quais a interpretação do ECA encontra-se em disputa.

É importante destacar que a alternativa da negociação se coloca sobretudo nas ocorrências em

que, pelo menos evidentemente, não cabe nenhuma medida judicial. A orientação legal é que

os agentes se utilizem o máximo possível do recurso “jurídico da mediação” evitando

transformar em casos de polícia situações que envolvem crianças e adolescentes.

A conselheira Luíza considera que as famílias, em geral, têm dificuldades em tratar

com questões como a da sexualidade dos adolescentes: “Os pais parece que não estão preparados para lidar com isso. Tem situações que eu acho que não precisava o conselho, tinha que ser a família tentar conversar e eles mesmos resolverem. Mas eles não conseguem e aí vem a tal de desestruturação familiar. As pessoas não conseguem conversar e ver que se filha fugiu, vamos ver primeiro, vamos lá, vamos conversar. Não, a primeira coisa é “pã” querem que a gente busque, a gente não busca, mas querem que a gente vá lá e esta é uma função dos pais. Os pais que têm que ir lá. O pessoal não está preparado realmente para o adolescente. A questão sexual acho que está muito ligada. Não sei o que é, principalmente com as filhas, tem aquela coisa de que vai transar ou transou e ficou grávida e os pais nem sabiam que transava. Os pais não se dão conta de que os filhos estão adultos, que têm que conversar. Eu acho que está faltando conversa, diálogo entre pais e filhos. Ficam prendendo e é pior, é quando acontecem as fugas, as coisas todas. A gente fica aqui mediando, tentando dizer para a mãe que aquilo é normal e fazendo entender que eles têm que ceder aqui e o adolescente tem que ceder também. Os dois têm que ceder.” (Entrevista com Luíza em 18/08/94). Ou seja, na prática diária dos conselheiros tutelares coloca-se como uma necessidade a

compatibilização entre os direitos assegurados pelo ECA e o não solapamento da autoridade

paterna e materna uma vez que, cotidanamente, os agentes estão diante de situações nas quais

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a garantia de um direito individual pode ser entendida como uma ameaça a autoridade dos

pais perante os filhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que, atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se num

marco da construção do problema social da infância e da adolescência no Brasil, sobretudo

porque formaliza novas concepções que nomeiam crianças e adolescentes como cidadãos e

conferem-lhes direitos especiais.

O reconhecimento legal de que estas duas classes de idade distingüem-se das demais por

um conjunto de características — estudadas pelas diferentes áreas da ciência como a

psicologia, pedagogia, pediatria etc. — que lhes particulariza, implica por um lado, na

definição de que os indivíduos da faixa etária dos 0 aos 18 anos devem ser tratados com

prioridade absoluta e que à família, ao Estado e à sociedade cabe lhes garantir proteção

integral. Por outro lado, o não cumprimento destas determinações passa a ser qualificado

como violação à lei e portanto um “problema social” que precisa ser resolvido. Na medida em

que, potencialmente, todas as crianças e adolescentes podem vir a ter seus direitos violados a

problemática foi generalizada não se referindo mais a somente uma classe social tal como,

tendencialmente, afirmavam as legislações anteriores ao ECA. Concomitantemente à

generalização da problemática observa-se um processo de institucionalização dos preceitos

estabelecidos na lei. Criam-se ou reordenam-se instituições que, em tese, deverão incorporar

em sua própria prática assim como difundir entre os grupos que atendem, os referenciais — da

cidadania, da prioridade absoluta, da proteção integral etc. — que embasaram a elaboração da

legislação.

O Conselho Tutelar é a principal instituição que a partir do ECA tem esta atribuição. Os

casos que atende permitem que a violação dos direitos seja socialmente visualizada e a

problemática redefinida. A visibilidade do problema social confere legitimidade à defesa dos

direitos assegurados pela legislação em vigor.

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A inserção do CT no processo de construção do problema social da infância e juventude

ao agregar-lhe a consideração de que o contexto familiar em que se desenvolvem crianças e

adolescentes é, potencialmente, violador da lei, identifica o “problema social da criança e do

adolescente” ao “problema da família”. Como uma conseqüência disto, o principal alvo da

intervenção institucional é o grupo familiar. Assim, em que pese o acúmulo de experiências

dos Conselhos Tutelares ser ainda pequeno, cabe observar que as características de sua

atuação cotidiana poderão definí-los, em maior ou menor medida, como instituições bastante

originais quanto ao fato de possibilitarem a interlocução entre diferentes grupos sociais e a

resolução negociada de conflitos ou como mais uma instância de intervenção sobre a família,

especialmente, de grupos populares.

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Endereço para Correspondência: Fernanda Bittencourt Ribeiro Gal. Cipriano Ferreira,561/806 Email: [email protected] Porto Alegre - 90.010-330 - RS