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AS IDEOLOGIAS E OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS NA PRÁTICA CLÍNICA
Marco Aurélio Crespo Albuquerque*
RESUMO
O autor examina do ponto de vista psicanalítico o conceito de ideologia, e aborda a
presença e o papel que esta desempenha na mente dos pacientes que nos chegam à sala de
análise, enfatizando as relações existentes entre a ideologia, como fenômeno consciente, e os
significados inconscientes profundos que ela tem para cada pessoa. Sugere, a partir das
evidências clínicas destas ligações, que as ideologias necessitam ser investigadas e
compreendidas de forma mais ampla na vida de quem nos procura para tratamento.
Finalmente o autor diferencia ideologia, enquanto sistema de ideias universalmente
presente, daquilo que denomina estados mentais ideológicos, e propõe que estes se
assemelham ao que a psicanálise conhece como uma organização patológica da personalidade,
um estado mental que serve à sobrevivência de um self ameaçado de desintegração, ou que
representa uma tentativa desesperada de reparação de um self já muito fragmentado.
ABSTRACT
The author examines the concept of ideology from a psychoanalytic point of view, and
addresses the presence and the role it plays in the minds of patients arriving in the analysis
room, emphasizing the relationship between ideology, as a conscious phenomenon, and
dynamic deep meanings it has for every person, and reaffirm - from clinical evidence of these
links - how ideologies need to be investigated and understood more broadly in the lives of
those in demand for treatment.
Finally the author differentiates ideology, while universally present system of ideas,
from what he called “ideological states of mind”, and proposes that these resemble that
psychoanalysis known as a pathological personality organization, a mental state that serves
the survival of a self threatened by disintegration, or represents a desperate attempt to repair
a self already very fragmented.
UNITERMOS
Estados Mentais; Ideologia; Psicanálise clínica
KEYWORDS
Mental States; Ideology; Clinic Psychoanalysis
INTRODUÇÃO
Na globalizada diversidade multicultural, uma espécie de marca da vida moderna nas
sociedades ocidentais, todos os tipos de crenças, costumes e ideologias parecem naturalmente
justificados, ou vistos de forma politicamente correta como um mero exercício de liberdade
pessoal, uma escolha tomada como consciente e fruto do livre arbítrio, não necessariamente
vinculada a significados psicológicos mais profundos. Tudo se tornou aceitável e pouco ou
nada se questiona da função que os sistemas de pensamento e certas formas agir no mundo
possam desempenhar na dinâmica psíquica de uma pessoa, de um grupo, ou mesmo da
sociedade como um todo. Prolifera na sociedade ocidental moderna uma atitude, individual e
social, de um certo embotamento mental para os significados não manifestos. Como tudo está
à vista, o que poderia ser símbolo transformou-se em ícone.
Como consequência disso proliferam visões de mundo animistas, mágicas e
racionalistas, que convivem entre si às vezes sem qualquer contradição aparente, e tornam-se
objetos próprios para serem idealizados e consumidos, atacados ou defendidos, mas não para
serem pensados e compreendidos. Assim pessoas acreditam simultaneamente em florais de
Bach, cristais egípcios da felicidade e do amor, búzios que predizem negócios milionários, em
terapias de vidas passadas, nas igrejas universais e em outras nem tanto, no determinismo
biológico, médico ou psiquiátrico, travestido de ciência e assim por diante. Eventualmente até
a psicanálise é vendida como parte do pacote que trará a felicidade desejada. No mercado
persa das ideias vende mais quem grita mais alto ou embrulha melhor seus pacotes.
Talvez esta seja uma resposta necessária e defensiva contra a crescente complexidade
da vida moderna e ao sem número de estímulos que esta inflige ao aparelho psíquico, pois
viver hoje parece vir se tornando cada vez mais algo fluido, complexo e sem a segurança das
certezas de antigamente, onde os bons eram bons, os maus eram maus, Deus e o Diabo os
dividiriam no Juízo Final, e assim imperava uma certa ordem milenar, diminuindo o caos da
angústia e das incertezas. Freud, Galileu, Darwin, entre outros, complicaram esta ordem
estabelecida de coisas, demolindo com suas ideias revolucionárias o narcisismo de quem se
considerava regente de suas próprias emoções, no centro do universo, à imagem e
semelhança de Deus. Parece que desde então uma grande quantidade de angústia, fenômeno
primariamente pessoal, vem sendo progressivamente liberada e experimentada no meio
social, e vive-se em busca de neutralizá-la ou descarregá-la a qualquer preço.
Uma das manobras defensivas utilizadas para lidar com essa angústia, em nível
individual ou grupal, é o retorno ao pensamento mágico, a adesão a crenças irracionais ou seu
inverso, a ideologias racionais que obturem a ferida narcísica das incertezas e produzam um
estado mental/social ideal, onde as faltas possam ser justificadas, compensadas ou nem
mesmo sentidas.
Meu interesse nesse trabalho é, do ponto de vista clínico, mostrar como nos chegam
ao consultório algumas destas ideologias vigentes, descrever algumas das relações existentes
entre a ideologia consciente e os significados dinâmicos profundos que tem para os pacientes,
e reafirmar – a partir das evidências clínicas destas ligações – como as ideologias necessitam
ser investigadas e compreendidas de forma mais ampla na vida de quem nos procura para
tratamento.
Embora use o termo Ideologia ao longo do texto, em concordância com os autores
citados, no final proporei uma diferenciação, que considero útil para a clínica psicanalítica,
entre uma ideologia e o que denomino de estado mental ideológico.
AS IDEOLOGIAS NA SOCIEDADE E NA CLÍNICA
Muitos autores de diferentes concepções teóricas têm analisado o conceito de
ideologia, desde suas origens no pensamento ocidental bem como as características que as
formas ideológicas tomam e o seu papel na vida social e política de pessoas e grupos. No
entanto, estas análises dos aspectos filosóficos, políticos e sociais deixam em aberto um
interessante campo de pesquisa que falta a estes estudos, que é o papel das ideologias na vida
mental de cada um de nós, campo no qual nós, psicanalistas, podemos dar uma pequena
contribuição através da visão de mundo oferecida pela Psicanálise. As ideologias, e seu
estudo, têm vários pressupostos, ou conjunto de pressupostos, diferentes marcos teóricos,
mas nenhum deles parece levar em conta que temos uma vida inconsciente por detrás de
escolhas aparentemente conscientes.
De acordo com Thompson (1), um dos elementos-chave para o surgimento das
ideologias na era moderna, além do surgimento do capitalismo industrial, foi o declínio da
religião e da magia, que prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças
seculares, ou “ideologias”, que serviam para mobilizar a ação política e social no mundo sem
referência a valores ou seres de outro mundo.
Acrescenta ele que foi no espaço aberto da esfera pública que o discurso das
ideologias apareceu, constituindo sistemas organizados de crenças que ofereciam
intepretações coerentes dos fenômenos sociais e políticos e que serviam para mobilizar
movimentos sociais e justificar exercícios de poder. As ideologias, portanto, ofereceram
marcos referenciais de sentido que possibilitaram às pessoas se orientarem num mundo
caracterizado pelo sentimento de falta de fundamento (em itálico no original), uma sensação
produzida pela destruição de estilos de vida tradicionais e pela morte de cosmovisões
religiosas e míticas. Este autor propõe que as ideologias se caracterizariam por serem
totalizantes, utópicas, apaixonadas, dogmáticas.
Estas características, a meu ver, sugerem que as ideologias funcionam como novas
formas de se defender da falta de sentido na vida, correndo o risco de se transformarem em
novas “religiões”, com o mesmo dogmatismo das antigas crenças.
No entanto, sistemas de ideias, um dos significados da palavra Ideologia, já eram
constituintes intrínsecos da mente humana antes mesmo da “era das ideologias” (final do
século XIX e início do século XX). Por isso, quando alguém ingressa no espaço analítico, o faz
trazendo consigo os diversos registros mentais (sensoriais, afetivos, cognitivos, sociais,
políticos, etc.) de suas experiências anteriores, incluindo necessariamente aqueles organizados
e representados em seu sistema de pensamento na forma de ideologias. Usarei neste trabalho
o termo “Ideologia” com o sentido psicanalítico amplo que lhe dá Baranger (2), de um
“...sistema de ideias abstratas, conscientes ou inconscientes, cuja função é dar conta do real e
da ação do homem nesse real”, mas também como uma forma particular de experiência
mental que reproduz relações objetais primitivas, expressa fantasias inconscientes, e ajuda a
lidar com as ansiedades, especialmente as de caráter persecutório. A menção que ele faz a
ideias inconscientes remete diretamente à noção de fantasia como elemento fundamental da
vida psíquica.
A senhorita X e a adesão à ideologia radical de seu partido político, a senhorita Y e sua
forte ligação com a igreja e Z que é vegetariano e naturalista convicto, logo me vêm à mente
como exemplos de pacientes com poderosos motivos inconscientes para suas escolhas
pretensamente racionais, ideológicas, todas elas articuladas com seus respectivos
desenvolvimentos emocionais, através de seus mecanismos de defesas predominantes, suas
relações de objeto e fantasias inconscientes.
Comecemos pela senhorita X. Sempre que ela, uma mulher solteira de 25 anos que
procurou tratamento durante um longo período de depressão, esgrimia um discurso político
de militante da esquerda radical durante as sessões, me estimulava a pensar que funções esta
convicção ideológica tão arraigada, e intensamente defendida como criadora de um ideal
pessoal e social, desempenhava em sua vida mental e na relação transferencial comigo, pois
em geral servia mais aos propósitos da resistência do que de comunicação, e principalmente
atacava suas capacidades de pensamento. Filiada a um partido político proprietário de várias
verdades definitivas, com uma cartilha ideológica rígida e maniqueísta que se articulava com
as ideias de sua mãe, X recriava assim uma parte de sua relação objetal com ela, e encontrava
no partido as mesmas explicações simplistas e definitivas que recebia da mãe a respeito das
complexidades da vida. “Não se pode confiar nos capitalistas ricos pois eles só querem
explorar os pobres e depois jogá-los fora” tinha para ela o mesmo sentido e a mesma
sonoridade intrínseca do que sua mãe lhe dizia na infância: “Não se pode confiar nos homens
pois eles só querem sexo e depois te jogam fora”. Essa linguagem ela entendia bem e seguia à
risca, tanto no partido quanto nas relações afetivas com os homens.
A possibilidade de, através do tratamento, ter acesso a uma vida mais rica (mental e
economicamente falando), a atemorizava mais do que estimulava pois ameaçava, entre outras
coisas, romper a identificação com esta dupla pobreza (dos pais e da ideologia partidária),
dando-lhe acesso a coisas que jamais tivera a oportunidade de ter antes. Como não poderia
deixar de ser, essa era uma importante fonte de resistências e ataques ao tratamento e à
própria capacidade de pensar. Temia que eu, em meu consultório privado situado num bairro
de classe alta, mexesse em sua cabeça e colocasse nela outros pensamentos, de forma que a
fizesse perder sua pureza ideológica e lhe introduzisse pensamentos “burgueses”, “valores dos
ricos”. Ou quem sabe temia apenas a posse de pensamentos e valores mais enriquecidos?
Tendo tido uma infância e adolescência muito pobres e com necessidades nunca
satisfeitas, sua raiva dos ricos e sua demanda por uma igualdade social utópica encobria, entre
outras coisas, uma profunda inveja daqueles que não passaram pelas vicissitudes que ela
enfrentou e foram atendidos em suas demandas de continência e carinho, além dos confortos
materiais aos quais ela pouco teve acesso. Aqui é importante acrescentar que, embora seu pai
fosse de origem humilde e tenha morrido pobre, além disso ele era estéril, sendo ela na
verdade filha de um homem muito rico, que havia sido amante de sua mãe por muitos anos,
fato mantido em segredo pelos pais, e que só lhe foi revelado pela mãe no final da
adolescência, após a morte de quem achava ser seu pai. O pai biológico nunca a sustentou
economicamente, nem nunca se aproximou dela afetivamente. Assim uma queixa sua era de
que “meus colegas de faculdade eram todos de famílias ricas, tinham tempo de estudar e por
isso se saíam melhor, eu tinha que trabalhar e estudar ao mesmo tempo, não tive as mesmas
oportunidades”, ganhava uma nova dimensão de compreensão, quando conectada com sua
história pregressa.
Seu sistema ideológico, altamente idealizado e acreditado por ela como a solução para
todos os problemas sociais da humanidade, revelava assim parte das suas relações de objeto
primitivas, servindo também como uma eficaz defesa contra o conhecimento dos segredos
sobre sua origem familiar, as dores, frustrações e raivas aí contidas. A inveja e a raiva dos
colegas que tinham “pais ricos” e podiam conviver e usufruir deles, foi transformada em
áspera crítica social contra os ricos que maltratavam os pobres, que apenas os usavam (como
acreditava que seu pai biológico, um rico capitalista, tinha usado a mãe proletária). Além
disso, inconscientemente identificada com esta mãe proletária que fazia sexo com um
capitalista, tinha sua vida amorosa marcada por envolvimentos fracassados com homens
casados e bem situados economicamente, exatamente como aquela.
Sua adesão a uma ideologia que externamente lhe possibilitava vivenciar e expressar
aspectos de seu mundo interno, mais do que uma escolha consciente, tinha sido vitalmente
necessária, pois além de evitar a tomada de conhecimento consciente de aspectos muito
dolorosos de seu mundo interno, também a fazia sentir-se pessoal e socialmente importante,
numa posição bem aceita e integrada em seu partido político e grupo de amigos, sem que isso
logicamente solucionasse seus importantes conflitos inconscientes.
Segundo Baranger a ideologia, como todo fenômeno psíquico, expressa mais do que
ela quer expressar conscientemente, que tem um conteúdo latente que expressa como o
sonho, como o brincar, como o sintoma neurótico, ou como qualquer outro fenômeno mental,
as fantasias inconscientes, relações objetais, e pode ainda ser vivida ela mesma como um
objeto para o self do sujeito. Além disso desempenha funções defensivas, ou de restauração
do objeto, ou ainda de um sistema regulador entre as diferentes estruturas mentais (id, ego e
superego).
Diz ele que “O ego, em suas funções de conhecimento e ação aparece como o centro
privilegiado do processo ideológico” e que “... a ideologia é administrada por ele [ego]”.
Significa que o ego é o local desta articulação entre os aspectos conscientes e inconscientes de
uma ideologia, mas poderia significar também que uma ideologia representa a expressão de
um aglomerado de elementos inconscientes do ego, que chegam à consciência na forma de
um sistema de ideias.
A ideologia se origina em parte também no superego, como se deduz pelo papel
restritivo e absoluto que certas ideologias desempenham. Baranger propõe uma classificação
rudimentar das ideologias em muito persecutórias ou idealizadas e ideologias menos
absolutas, mais em contato com o real. Em outras palavras, a ideologia vai então assumir
características ditadas pelo tipo de superego que o sujeito possui e pelo grau de
desenvolvimento emocional alcançado.
Sobre a função defensiva de uma ideologia diz ele ainda que “...é uma das maneiras de
lutar contra a ansiedade persecutória. Muito frequentemente o conteúdo manifesto do
sistema ideológico dá diretamente um lugar aos objetos persecutórios, o que permite
caracterizá-los, personificá-los e controlá-los.” Isto está de acordo com a natureza idealizada
das ideologias, e bem sabemos o quanto um objeto idealizado torna-se ao mesmo tempo um
objeto persecutório.
Um novo exemplo das raízes inconscientes de uma ideologia pode ser encontrado na
história da senhorita Y. Ela iniciou seu tratamento aos trinta anos, ainda solteira e virgem, por
sentir-se incapaz de estabelecer uma relação afetiva duradoura e profunda com um homem,
ou sequer manter relações sexuais genitais apenas. Estava muito angustiada pois se sentia
“tentada a pecar” com seu namorado, o que a enchia de desejo e de temor por contrariar o
sistema de ideias religiosas no qual tinha sido criada. Nascida numa família muito católica e
fechada, governada por uma avó materna severa e puritana, cresceu pedindo a proteção dos
anjos e temendo a ira de Deus caso tivesse maus pensamentos ou praticasse más ações,
especialmente as de natureza sexual. Quando a avó não a estivesse vigiando, Deus
certamente estaria, como aquele que tudo vê e tudo pune.
Na adolescência passou a ter crises severas de ansiedade e agorafobia desencadeadas
a partir de um orgasmo masturbatório no chuveiro, acompanhado de “pensamentos impuros”
de natureza sexual. Ficou incapacitada de estudar, não conseguia sair de casa e fisicamente
sentia-se muito mal, com fortes sintomas fóbicos e ansiosos. Desenvolveu também sintomas e
rituais obsessivo-compulsivos significativos, ligados à limpeza física e à alimentação e também
às práticas religiosas purificadoras da alma.
Sua devoção à “Virgem” Maria e seu temor e obediência à Santa “Madre” Igreja nas
proibições sexuais recriavam e expressavam assim as relações objetais precoces com figuras
maternas persecutórias poderosas de sua infância (mãe e avó), bem como as repressões e os
temores ligados aos instintos sexuais sempre presentes e exigindo satisfação plena. Por outro
lado a ideologia religiosa familiar desempenhava a função de manter racionalmente
justificados os rituais obsessivos, pois serviam de atos de purificação para o que chamava de as
impurezas de sua mente (repleta de fantasias eróticas e agressivas). Essas partes “sujas” do
self eram mantidas fortemente dissociadas e permanentemente projetadas, vividas
persecutoriamente como pecados ameaçadores, dos quais devia pedir perdão e se purificar
continuamente mediante os rituais obsessivos.
Através da ideologia religiosa e suas práticas (confissões, missas, orações, etc.)
procurava manter-se sempre numa espécie de assepsia interior, pedindo perdão
continuamente pelos seus aspectos destrutivos e sádicos, aplacando um superego cruel e
punitivo mas com isso empobrecendo progressivamente sua vida mental, no que aliás sem
querer, seguia à risca outra característica de sua ideologia, pois como diz uma passagem
bíblica muito conhecida: “Bem-aventurados os pobres de espírito...”.
Sendo a fantasia a representação mental do instinto, como diz Susan Isaacs (3), então
a ideologia, ao expressar fantasias inconscientes e permitir a liberação dos instintos, funciona
como condição e meio aceitável para o ego dar vazão às demandas pulsionais do id, numa
forma final modificada pelas exigências do ambiente e pela interferência do superego. Assim,
penso que a forma final do sistema ideológico escolhido terá a ver com a maior ou menor
flexibilidade do ego e com o tipo de superego do sujeito. Quanto mais rígido e cruel for o
superego, mais imporá ao ego um sistema de ideias restritivo e autoritário, com pouca
capacidade de negociação das diferenças, resultando em ideologias mais rígidas, mais
conservadoras ou mais autoritárias, mais afastadas do real.
Numa perspectiva das relações de objeto pode-se dizer que um sistema ideológico
mais rígido não consegue ver a realidade de uma forma mais abrangente e integrada, pois
sempre toma a parte pelo todo, colocando o objeto parcial idealizado no lugar do objeto total,
e com isso permanece estaticamente radicado, e radicalizado, numa posição mais primitiva do
desenvolvimento do aparelho psíquico, fugindo do crescimento e mutilando a realidade e as
vivências através de poderosas dissociações, necessárias para evitar o contato entre diferentes
partes do self e a sua integração. Pode-se inferir então que a rígida adesão a uma ideologia
muito absoluta é indicativa da presença de aspectos mais primitivos do ego e/ou do superego
em funcionamento no self total.
Tomando emprestada de Bion a ideia de que todos somos portadores de partes
psicóticas da personalidade(4), sugiro que são estas partes que tornam-se assim naturalmente
atraídas pelas ideologias mais restritivas e dissociadas da realidade, pois justamente aí
encontram uma ligação com estas partes primitivas do self capaz de justificá-las, com o
benefício adicional de uma possibilidade de expressão que seja socialmente aceita.
Por exemplo, alguém assim como Z, 30 anos, casado. Sua ideologia alternativa
naturalista, que incluía ser um vegetariano radical, praticar muita ioga e corridas tipo
maratona (onde buscava a exaustão física e a “eliminação das toxinas negativas pelo suor”),
contraditoriamente associava-se ao uso de álcool e drogas e de uma vida desregrada nos
demais cuidados com sua saúde. Esses aspectos tão contraditórios ressoavam dentro de mim
como ligados a um contexto mais amplo de caos e confusão mental, a uma busca desesperada
de alguma identidade que ele parecia não possuir, parecendo sua personalidade a expressão
de um tipo de colagem mal feita e mal costurada. Afirmava ter aspirações ascéticas e místicas,
que incluíam o desejo de mudar-se para o Oriente e viver pobremente, dormindo no chão
sobre uma esteira de palha, da forma mais minimalista possível.
Em determinada época chegou a viver assim, pois vendeu todos os seus livros e discos,
livrou-se dos demais bens materiais que possuía no apartamento e ficou dormindo um ano
num colchão no chão, fazia seis horas de ioga por dia, mas nunca criou coragem de ir para a
Índia, local idealizado de seu nirvana sobre a Terra. Da mesma maneira esperava
fantasiosamente da psicanálise alguma experiência mística reveladora, mas também não teve
coragem de ir muito longe no tratamento, abandonando-o por ocasião do nascimento de seu
primeiro filho, fato que o havia deixado muito ambivalente, e logo quando havia conseguido
um bom e bem remunerado emprego na sua área de formação, na mesma empresa onde seu
pai era um dos diretores. Ao tornar-se ele mesmo pai, teve que confrontar-se com o
sentimento de ódio intenso e marcante que nutria por aquele, especialmente da ajuda que
este lhe dava desinteressadamente (na verdade odiava o amor do pai, ou mais
especificamente, a capacidade que este tinha de amar e construir).
Demonstrava um forte ódio invejoso também dos irmãos pois levavam vidas muito
diferentes da dele, descritos como felizes e socialmente bem postados enquanto ele, apesar
de ter sido criado numa família abastada, possuir curso superior e de falar fluentemente
outras línguas, desqualificava e criticava com acidez e agressiva ironia tudo isso, casara-se com
uma mulher bem mais velha e socialmente bastante inferior (possuía apenas curso primário e
era cozinheira de um restaurante vegetariano frequentado por ele), com a qual morava num
pequeno apartamento alugado, pago pelo pai, e dirigia um carro antigo, caindo aos pedaços,
jamais tendo conseguido manter um bom emprego ou ter tido prazer genuíno ou criatividade
em qualquer atividade produtiva.
Este ódio invejoso de um pai generoso e cuidador logo estendeu-se para mim na
transferência, e a agressividade com que defendia suas convicções naturalistas (sem que eu
jamais as tivesse atacado, ou sequer questionado), e na forma como as usava contra mim e
tudo que lhe dizia, por não reconhecer em mim um “iniciado” na sua ideologia, portanto um
“adversário”. Esta ideologia funcionava como via de descarga para a raiva e ao mesmo tempo
lhe dava a sensação de ser alguém “diferente da massa”, e esse sentimento de ser “especial”
colaborava para lhe dar alguma coesão num self precariamente organizado e de
funcionamento predominantemente em conflito com a realidade. Sentia-se superior e
poderoso por ser tão radical na questão alimentar e pelo seu completo desapego aos bens
materiais, tão diferente dos demais que isso o fazia sentir-se melhor do que todos os outros
(os pais, os irmãos, eu). Ou quem sabe fazia com que se sentisse apenas vivo...
Este terceiro material clínico guarda semelhanças, embora menos drásticas em seu
desfecho, com uma história verídica publicada há alguns anos em livro no Brasil, com o título
de “Na Natureza Selvagem” (5), que narra a saga de um jovem norte-americano cujo
comportamento, provavelmente uma forma inicial de esquizofrenia, passou notavelmente
despercebido até sua morte brutal, por inanição e congelamento no interior de um ônibus
abandonado no gelo do Alasca. Este jovem, chamado Chris Candles, começou a demonstrar,
durante o curso superior no qual se graduou com notas altas, indícios sugestivos de
deterioração mental que no entanto foram considerados como características peculiares de
sua ideologia pessoal, ligada a um retorno ao primitivismo e à vida em íntima ligação com a
natureza inóspita, inspirado nos romances de Jack London, novelista americano que também
possuía aspectos extremamente invejosos e destrutivos.
Assim como o paciente do terceiro exemplo clínico, ele também se desfez de seus bens
materiais, enterrando seu carro no deserto e queimando todos seus documentos de
identidade, fato por si bastante significativo. Sonhava em viver em algum lugar distante - mais
especificamente o Alasca - em completa comunhão com a natureza selvagem, sem contato
com a civilização e alimentando-se apenas de caça e raízes comestíveis. Após a conclusão do
curso sumiu sem dar notícia à família, perambulando a pé ou de carona pelos Estados Unidos
durante dois anos. Seus pais, cegos à percepção do filho – achado comum nas famílias
psicóticas – nunca perceberam a real condição do filho e o próprio autor do livro, ele mesmo
muito identificado com seu personagem idealizado, defendeu com plena convicção em seu
livro a ausência de doença mental, e descrevia o jovem como um aventureiro de espírito livre,
que apenas tinha grandes diferenças de opinião com seus pais, como alguém que apenas não
compartilhava da ideologia burguesa deles. Novamente encontramos aí a doença mental e
suas manifestações confundidas com uma opção ideológica consciente.
OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS
Bollas (6), ao descrever o estado mental fascista (e não é o fascismo uma poderosa
ideologia, ainda hoje?), cita um precioso trecho de Hannah Arendt: “...Nas ideologias se acham
as sementes do totalitarismo porque elas afirmam trazer... uma explicação total dos fatos, se
divorciam de toda a experiência, a que não lhes ensina nada de novo, insistem na possessão de
uma verdade secreta e poderosa que explica todos os fenômenos e operam a partir de uma
lógica que ordena os fatos de modo tal que sustentem o axioma ideológico.” Ele acrescenta
que só se alcança este grau de totalidade se a mente (ou o grupo) não abrigam dúvidas. Estas,
as incertezas e os autoquestionamentos, equivalem à debilidade e devem ser suprimidos da
mente para manter a certeza e a pureza ideológica .
Para Bollas as diferentes partes do self e de objetos representados no mundo interno
funcionam como um sistema parlamentar que, mediante a cobiça, a inveja ou a angústia, pode
evoluir para um sistema interno menos representativo e, portanto, menos democrático.
Todos nós estamos sujeitos a essas variações e tentações autoritárias, naturalmente.
A esta altura desejo acrescentar algumas questões derivadas da ideia expressa acima
por Bollas: onde se situa, em nosso aparelho psíquico, a fronteira entre as variações dinâmicas
do democrático parlamentarismo interno e a adesão a uma ideologia rígida e totalitária?
Quais as implicações na prática clínica desta diferenciação? Até onde a ideologia está
articulada com uma estrutura mais íntegra do self e onde passa a expressar o funcionamento
de uma parte bastante desestruturada deste?
Embora não creia que existam respostas definitivas para as questões acima, penso que
quando uma ideologia é muito dissociada da realidade, ou torna-se muito rígida e restritiva,
alcança um outro status, que passarei a denominar de estado mental ideológico, para
diferenciá-lo de ideologia enquanto sistema de ideias universalmente presente. Apoio-me
para isso na descrição que diversos autores fizeram sobre “estados” da mente - Meltzer (7) e
os estados sexuais da mente, Rosenfeld (8) e os estados psicóticos, Bollas e o já referido
estado mental fascista, etc. “Estado”, neste sentido, é uma palavra que denota uma
conotação dinâmica ao invés de estática, seja ela mais temporária ou mais permanente, de
uma forma da mente se estruturar e funcionar, de gerar afetos, pensamentos, significados e
ações, e de expressar as relações internas e externas de objeto, dando assim um destino aos
afetos e às pulsões de vida ou de morte.
O estado mental ideológico seria então aquele estado da mente no qual uma ideologia
está mais rigidamente estruturada, adquirindo um significado extremado na economia mental,
tornando-se dominante de uma forma totalitária sobre o aparelho mental, modelando à sua
maneira os afetos, pensamentos e ações do sujeito daí em diante. O estado mental ideológico
cumpriria assim funções semelhantes às da ideologia, porém com algumas diferenças de
qualidade e intensidade, e com repercussões mais deletérias sobre a vida mental e a vida de
relação do paciente. Ele se originaria de dificuldades maiores ou rupturas nas relações de
objeto mais precoces, expressando assim fantasias mais arcaicas e lidando principalmente com
ansiedades persecutórias mais intensas e primitivas. Naquelas que seriam suas raízes egoicas,
o estado mental ideológico – por seu absolutismo e desprezo final pelo objeto – estaria
associado a estruturas predominantemente narcisistas.
No entanto, reelaborando o que diz Baranger acima, sobre a ideologia ser proveniente
em parte do superego, acrescento que quando há a predominância de um estado mental
ideológico, este provém principalmente do superego, e dentro dele especialmente de seus
aspectos mais arcaicos, cruéis e punitivos, sendo esta uma diferença marcante com relação à
ideologia enquanto um sistema de ideias universalmente presente. Pessoas são capazes de
mudar de ideia, já quem é controlado internamente por um estado mental ideológico precisa
reafirmá-lo e fortalece-lo cada vez mais, justamente para que não mude diante dos ataques,
reais ou imaginários, recebidos.
Para que este estado mental ideológico se mantenha é necessário que os mecanismos
de defesa empregados predominantemente sejam os mais primitivos, baseados
primariamente na cisão (tanto de impulsos quanto de objetos), na idealização, na negação da
realidade (interna e externa) e na onipotência (9).
Portanto, enquanto as ideologias – principalmente aquelas mais conectadas à
realidade – serviriam mais às defesas do ego num self razoavelmente bem organizado, o
estado mental ideológico serviria mais à sobrevivência mesma do self. Ele representaria uma
tentativa extrema de manter a coesão do self, através da cisão radical de aspectos indesejados
do self, sentidos como muito perigosos ou letais, ou ainda uma tentativa desesperada de
reparação de um self já há muito fragmentado. Isto pode nos ajudar a compreender porque é
tão difícil, e às vezes mesmo impossível, alguém com tal configuração mental mudar de ideias.
Por outro lado, a serviço de um superego cruel, o estado mental ideológico pode
prestar-se como veículo, muitas vezes grupal, social ou politicamente aceito, para atacar e
destruir, dando assim livre vazão à inveja e à pulsão de morte presente nestas condições
mentais. Qualquer semelhança com as razões utilizadas pelos terroristas para seus atentados
insanos portanto não é mera coincidência.
CONCLUSÃO
Este trabalho é uma tentativa, centrada em achados comuns na clínica, de pensar e
compreender um fenômeno conhecido de todos nós, que é a presença consciente de uma
ideologia ou um estado mental ideológico nos nossos pacientes, o impacto disto em suas vidas
e no espaço analítico, onde se expressa na relação transferência/contratransferência, e
frequentemente se torna uma fonte importante de resistências ao tratamento, mais do que
uma comunicação de ideias diferentes. Por outro lado, somos também um objeto do paciente
e a nós é atribuída uma determinada posição no seu sistema ideológico, e é bom sabermos
que sistema é esse e que posição é essa, para podermos entrar e sair dela com flexibilidade, e
assim abrir novas possibilidades de pensamento, a partir da introjeção de um objeto diferente
dos objetos originais, representados pelo sistema ou estado mental ideológico existente.
Como se pode ver nos exemplos clínicos anteriores, independente da estrutura
predominante ou da psicopatologia, em cada um o funcionamento do que a princípio parecia
uma ideologia consciente de cada pessoa, indicava na verdade um estado mental ideológico
que cumpria complexas funções na economia psíquica inconsciente. No tratamento destas
pessoas este estado mental mais rígido e restritivo apareceu a princípio como um sistema
consciente e racionalmente articulado, que dificultava ou impedia o acesso a uma área
necessitada de exame, ao mesmo tempo em que comunicava que ali havia algo importante,
que necessitava ser explorado. Esta é mais uma dificuldade técnica que se apresenta: como
podem estas pessoas, tão necessitadas e tão dotadas de certezas absolutas, tolerar que o
analista crie espaço para dúvidas e perguntas, ao invés de concordar e dar respostas certeiras
e definitivas a partir de uma outra posição, provavelmente também sentida como ideológica
pelo paciente?
E finalmente outra pergunta, complicada mas sempre necessária: Como podemos nós
lidar melhor com as nossas ideologias, inclusive teóricas, para entrar num estado mental mais
livre e adequado à compreensão de quem busca nossa ajuda?
BIBLIOGRAFIA
1. “Ideologia nas Sociedades Modernas – Uma Análise Crítica de Alguns Enfoques Teóricos”,
Thompson, John B. in Ideologia e Cultura Moderna – Teoria Social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Editora Vozes, RJ, 2009.
2. “El Yo y la funcion de la ideologia”, Willy Baranger, in Artesanías Psicoanalíticas, Ediciones
Kargieman, Buenos Aires, 1994.
3. “A natureza e a função da fantasia”, Susan Isaacs in Os Progressos da Psicanálise, Guanabara
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4. “Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não psicótica”, Wilfred
Bion, in Estudos Psicanalíticos Revisados (Second Thoughts), Imago Editora, Rio de Janeiro,
1994
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6. “El estado mental fascista””, Christopher Bollas, in Ser un Personaje - Psicoanálisis y
experiencia del sí-mismo, Paidós, Buenos Aires, 1994.
7. “Os estados sexuais da mente”, Donald Meltzer, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1979.
8. “Os estados psicóticos”, Herbert Rosenfeld, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968