12
AS IDEOLOGIAS E OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS NA PRÁTICA CLÍNICA Marco Aurélio Crespo Albuquerque* RESUMO O autor examina do ponto de vista psicanalítico o conceito de ideologia, e aborda a presença e o papel que esta desempenha na mente dos pacientes que nos chegam à sala de análise, enfatizando as relações existentes entre a ideologia, como fenômeno consciente, e os significados inconscientes profundos que ela tem para cada pessoa. Sugere, a partir das evidências clínicas destas ligações, que as ideologias necessitam ser investigadas e compreendidas de forma mais ampla na vida de quem nos procura para tratamento. Finalmente o autor diferencia ideologia, enquanto sistema de ideias universalmente presente, daquilo que denomina estados mentais ideológicos, e propõe que estes se assemelham ao que a psicanálise conhece como uma organização patológica da personalidade, um estado mental que serve à sobrevivência de um self ameaçado de desintegração, ou que representa uma tentativa desesperada de reparação de um self já muito fragmentado. ABSTRACT The author examines the concept of ideology from a psychoanalytic point of view, and addresses the presence and the role it plays in the minds of patients arriving in the analysis room, emphasizing the relationship between ideology, as a conscious phenomenon, and dynamic deep meanings it has for every person, and reaffirm - from clinical evidence of these links - how ideologies need to be investigated and understood more broadly in the lives of those in demand for treatment. Finally the author differentiates ideology, while universally present system of ideas, from what he called “ideological states of mind”, and proposes that these resemble that psychoanalysis known as a pathological personality organization, a mental state that serves the survival of a self threatened by disintegration, or represents a desperate attempt to repair a self already very fragmented. UNITERMOS Estados Mentais; Ideologia; Psicanálise clínica KEYWORDS

AS IDEOLOGIAS E OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS NA PRÁTICA CLÍNICA

Embed Size (px)

Citation preview

AS IDEOLOGIAS E OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS NA PRÁTICA CLÍNICA

Marco Aurélio Crespo Albuquerque*

RESUMO

O autor examina do ponto de vista psicanalítico o conceito de ideologia, e aborda a

presença e o papel que esta desempenha na mente dos pacientes que nos chegam à sala de

análise, enfatizando as relações existentes entre a ideologia, como fenômeno consciente, e os

significados inconscientes profundos que ela tem para cada pessoa. Sugere, a partir das

evidências clínicas destas ligações, que as ideologias necessitam ser investigadas e

compreendidas de forma mais ampla na vida de quem nos procura para tratamento.

Finalmente o autor diferencia ideologia, enquanto sistema de ideias universalmente

presente, daquilo que denomina estados mentais ideológicos, e propõe que estes se

assemelham ao que a psicanálise conhece como uma organização patológica da personalidade,

um estado mental que serve à sobrevivência de um self ameaçado de desintegração, ou que

representa uma tentativa desesperada de reparação de um self já muito fragmentado.

ABSTRACT

The author examines the concept of ideology from a psychoanalytic point of view, and

addresses the presence and the role it plays in the minds of patients arriving in the analysis

room, emphasizing the relationship between ideology, as a conscious phenomenon, and

dynamic deep meanings it has for every person, and reaffirm - from clinical evidence of these

links - how ideologies need to be investigated and understood more broadly in the lives of

those in demand for treatment.

Finally the author differentiates ideology, while universally present system of ideas,

from what he called “ideological states of mind”, and proposes that these resemble that

psychoanalysis known as a pathological personality organization, a mental state that serves

the survival of a self threatened by disintegration, or represents a desperate attempt to repair

a self already very fragmented.

UNITERMOS

Estados Mentais; Ideologia; Psicanálise clínica

KEYWORDS

Mental States; Ideology; Clinic Psychoanalysis

INTRODUÇÃO

Na globalizada diversidade multicultural, uma espécie de marca da vida moderna nas

sociedades ocidentais, todos os tipos de crenças, costumes e ideologias parecem naturalmente

justificados, ou vistos de forma politicamente correta como um mero exercício de liberdade

pessoal, uma escolha tomada como consciente e fruto do livre arbítrio, não necessariamente

vinculada a significados psicológicos mais profundos. Tudo se tornou aceitável e pouco ou

nada se questiona da função que os sistemas de pensamento e certas formas agir no mundo

possam desempenhar na dinâmica psíquica de uma pessoa, de um grupo, ou mesmo da

sociedade como um todo. Prolifera na sociedade ocidental moderna uma atitude, individual e

social, de um certo embotamento mental para os significados não manifestos. Como tudo está

à vista, o que poderia ser símbolo transformou-se em ícone.

Como consequência disso proliferam visões de mundo animistas, mágicas e

racionalistas, que convivem entre si às vezes sem qualquer contradição aparente, e tornam-se

objetos próprios para serem idealizados e consumidos, atacados ou defendidos, mas não para

serem pensados e compreendidos. Assim pessoas acreditam simultaneamente em florais de

Bach, cristais egípcios da felicidade e do amor, búzios que predizem negócios milionários, em

terapias de vidas passadas, nas igrejas universais e em outras nem tanto, no determinismo

biológico, médico ou psiquiátrico, travestido de ciência e assim por diante. Eventualmente até

a psicanálise é vendida como parte do pacote que trará a felicidade desejada. No mercado

persa das ideias vende mais quem grita mais alto ou embrulha melhor seus pacotes.

Talvez esta seja uma resposta necessária e defensiva contra a crescente complexidade

da vida moderna e ao sem número de estímulos que esta inflige ao aparelho psíquico, pois

viver hoje parece vir se tornando cada vez mais algo fluido, complexo e sem a segurança das

certezas de antigamente, onde os bons eram bons, os maus eram maus, Deus e o Diabo os

dividiriam no Juízo Final, e assim imperava uma certa ordem milenar, diminuindo o caos da

angústia e das incertezas. Freud, Galileu, Darwin, entre outros, complicaram esta ordem

estabelecida de coisas, demolindo com suas ideias revolucionárias o narcisismo de quem se

considerava regente de suas próprias emoções, no centro do universo, à imagem e

semelhança de Deus. Parece que desde então uma grande quantidade de angústia, fenômeno

primariamente pessoal, vem sendo progressivamente liberada e experimentada no meio

social, e vive-se em busca de neutralizá-la ou descarregá-la a qualquer preço.

Uma das manobras defensivas utilizadas para lidar com essa angústia, em nível

individual ou grupal, é o retorno ao pensamento mágico, a adesão a crenças irracionais ou seu

inverso, a ideologias racionais que obturem a ferida narcísica das incertezas e produzam um

estado mental/social ideal, onde as faltas possam ser justificadas, compensadas ou nem

mesmo sentidas.

Meu interesse nesse trabalho é, do ponto de vista clínico, mostrar como nos chegam

ao consultório algumas destas ideologias vigentes, descrever algumas das relações existentes

entre a ideologia consciente e os significados dinâmicos profundos que tem para os pacientes,

e reafirmar – a partir das evidências clínicas destas ligações – como as ideologias necessitam

ser investigadas e compreendidas de forma mais ampla na vida de quem nos procura para

tratamento.

Embora use o termo Ideologia ao longo do texto, em concordância com os autores

citados, no final proporei uma diferenciação, que considero útil para a clínica psicanalítica,

entre uma ideologia e o que denomino de estado mental ideológico.

AS IDEOLOGIAS NA SOCIEDADE E NA CLÍNICA

Muitos autores de diferentes concepções teóricas têm analisado o conceito de

ideologia, desde suas origens no pensamento ocidental bem como as características que as

formas ideológicas tomam e o seu papel na vida social e política de pessoas e grupos. No

entanto, estas análises dos aspectos filosóficos, políticos e sociais deixam em aberto um

interessante campo de pesquisa que falta a estes estudos, que é o papel das ideologias na vida

mental de cada um de nós, campo no qual nós, psicanalistas, podemos dar uma pequena

contribuição através da visão de mundo oferecida pela Psicanálise. As ideologias, e seu

estudo, têm vários pressupostos, ou conjunto de pressupostos, diferentes marcos teóricos,

mas nenhum deles parece levar em conta que temos uma vida inconsciente por detrás de

escolhas aparentemente conscientes.

De acordo com Thompson (1), um dos elementos-chave para o surgimento das

ideologias na era moderna, além do surgimento do capitalismo industrial, foi o declínio da

religião e da magia, que prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças

seculares, ou “ideologias”, que serviam para mobilizar a ação política e social no mundo sem

referência a valores ou seres de outro mundo.

Acrescenta ele que foi no espaço aberto da esfera pública que o discurso das

ideologias apareceu, constituindo sistemas organizados de crenças que ofereciam

intepretações coerentes dos fenômenos sociais e políticos e que serviam para mobilizar

movimentos sociais e justificar exercícios de poder. As ideologias, portanto, ofereceram

marcos referenciais de sentido que possibilitaram às pessoas se orientarem num mundo

caracterizado pelo sentimento de falta de fundamento (em itálico no original), uma sensação

produzida pela destruição de estilos de vida tradicionais e pela morte de cosmovisões

religiosas e míticas. Este autor propõe que as ideologias se caracterizariam por serem

totalizantes, utópicas, apaixonadas, dogmáticas.

Estas características, a meu ver, sugerem que as ideologias funcionam como novas

formas de se defender da falta de sentido na vida, correndo o risco de se transformarem em

novas “religiões”, com o mesmo dogmatismo das antigas crenças.

No entanto, sistemas de ideias, um dos significados da palavra Ideologia, já eram

constituintes intrínsecos da mente humana antes mesmo da “era das ideologias” (final do

século XIX e início do século XX). Por isso, quando alguém ingressa no espaço analítico, o faz

trazendo consigo os diversos registros mentais (sensoriais, afetivos, cognitivos, sociais,

políticos, etc.) de suas experiências anteriores, incluindo necessariamente aqueles organizados

e representados em seu sistema de pensamento na forma de ideologias. Usarei neste trabalho

o termo “Ideologia” com o sentido psicanalítico amplo que lhe dá Baranger (2), de um

“...sistema de ideias abstratas, conscientes ou inconscientes, cuja função é dar conta do real e

da ação do homem nesse real”, mas também como uma forma particular de experiência

mental que reproduz relações objetais primitivas, expressa fantasias inconscientes, e ajuda a

lidar com as ansiedades, especialmente as de caráter persecutório. A menção que ele faz a

ideias inconscientes remete diretamente à noção de fantasia como elemento fundamental da

vida psíquica.

A senhorita X e a adesão à ideologia radical de seu partido político, a senhorita Y e sua

forte ligação com a igreja e Z que é vegetariano e naturalista convicto, logo me vêm à mente

como exemplos de pacientes com poderosos motivos inconscientes para suas escolhas

pretensamente racionais, ideológicas, todas elas articuladas com seus respectivos

desenvolvimentos emocionais, através de seus mecanismos de defesas predominantes, suas

relações de objeto e fantasias inconscientes.

Comecemos pela senhorita X. Sempre que ela, uma mulher solteira de 25 anos que

procurou tratamento durante um longo período de depressão, esgrimia um discurso político

de militante da esquerda radical durante as sessões, me estimulava a pensar que funções esta

convicção ideológica tão arraigada, e intensamente defendida como criadora de um ideal

pessoal e social, desempenhava em sua vida mental e na relação transferencial comigo, pois

em geral servia mais aos propósitos da resistência do que de comunicação, e principalmente

atacava suas capacidades de pensamento. Filiada a um partido político proprietário de várias

verdades definitivas, com uma cartilha ideológica rígida e maniqueísta que se articulava com

as ideias de sua mãe, X recriava assim uma parte de sua relação objetal com ela, e encontrava

no partido as mesmas explicações simplistas e definitivas que recebia da mãe a respeito das

complexidades da vida. “Não se pode confiar nos capitalistas ricos pois eles só querem

explorar os pobres e depois jogá-los fora” tinha para ela o mesmo sentido e a mesma

sonoridade intrínseca do que sua mãe lhe dizia na infância: “Não se pode confiar nos homens

pois eles só querem sexo e depois te jogam fora”. Essa linguagem ela entendia bem e seguia à

risca, tanto no partido quanto nas relações afetivas com os homens.

A possibilidade de, através do tratamento, ter acesso a uma vida mais rica (mental e

economicamente falando), a atemorizava mais do que estimulava pois ameaçava, entre outras

coisas, romper a identificação com esta dupla pobreza (dos pais e da ideologia partidária),

dando-lhe acesso a coisas que jamais tivera a oportunidade de ter antes. Como não poderia

deixar de ser, essa era uma importante fonte de resistências e ataques ao tratamento e à

própria capacidade de pensar. Temia que eu, em meu consultório privado situado num bairro

de classe alta, mexesse em sua cabeça e colocasse nela outros pensamentos, de forma que a

fizesse perder sua pureza ideológica e lhe introduzisse pensamentos “burgueses”, “valores dos

ricos”. Ou quem sabe temia apenas a posse de pensamentos e valores mais enriquecidos?

Tendo tido uma infância e adolescência muito pobres e com necessidades nunca

satisfeitas, sua raiva dos ricos e sua demanda por uma igualdade social utópica encobria, entre

outras coisas, uma profunda inveja daqueles que não passaram pelas vicissitudes que ela

enfrentou e foram atendidos em suas demandas de continência e carinho, além dos confortos

materiais aos quais ela pouco teve acesso. Aqui é importante acrescentar que, embora seu pai

fosse de origem humilde e tenha morrido pobre, além disso ele era estéril, sendo ela na

verdade filha de um homem muito rico, que havia sido amante de sua mãe por muitos anos,

fato mantido em segredo pelos pais, e que só lhe foi revelado pela mãe no final da

adolescência, após a morte de quem achava ser seu pai. O pai biológico nunca a sustentou

economicamente, nem nunca se aproximou dela afetivamente. Assim uma queixa sua era de

que “meus colegas de faculdade eram todos de famílias ricas, tinham tempo de estudar e por

isso se saíam melhor, eu tinha que trabalhar e estudar ao mesmo tempo, não tive as mesmas

oportunidades”, ganhava uma nova dimensão de compreensão, quando conectada com sua

história pregressa.

Seu sistema ideológico, altamente idealizado e acreditado por ela como a solução para

todos os problemas sociais da humanidade, revelava assim parte das suas relações de objeto

primitivas, servindo também como uma eficaz defesa contra o conhecimento dos segredos

sobre sua origem familiar, as dores, frustrações e raivas aí contidas. A inveja e a raiva dos

colegas que tinham “pais ricos” e podiam conviver e usufruir deles, foi transformada em

áspera crítica social contra os ricos que maltratavam os pobres, que apenas os usavam (como

acreditava que seu pai biológico, um rico capitalista, tinha usado a mãe proletária). Além

disso, inconscientemente identificada com esta mãe proletária que fazia sexo com um

capitalista, tinha sua vida amorosa marcada por envolvimentos fracassados com homens

casados e bem situados economicamente, exatamente como aquela.

Sua adesão a uma ideologia que externamente lhe possibilitava vivenciar e expressar

aspectos de seu mundo interno, mais do que uma escolha consciente, tinha sido vitalmente

necessária, pois além de evitar a tomada de conhecimento consciente de aspectos muito

dolorosos de seu mundo interno, também a fazia sentir-se pessoal e socialmente importante,

numa posição bem aceita e integrada em seu partido político e grupo de amigos, sem que isso

logicamente solucionasse seus importantes conflitos inconscientes.

Segundo Baranger a ideologia, como todo fenômeno psíquico, expressa mais do que

ela quer expressar conscientemente, que tem um conteúdo latente que expressa como o

sonho, como o brincar, como o sintoma neurótico, ou como qualquer outro fenômeno mental,

as fantasias inconscientes, relações objetais, e pode ainda ser vivida ela mesma como um

objeto para o self do sujeito. Além disso desempenha funções defensivas, ou de restauração

do objeto, ou ainda de um sistema regulador entre as diferentes estruturas mentais (id, ego e

superego).

Diz ele que “O ego, em suas funções de conhecimento e ação aparece como o centro

privilegiado do processo ideológico” e que “... a ideologia é administrada por ele [ego]”.

Significa que o ego é o local desta articulação entre os aspectos conscientes e inconscientes de

uma ideologia, mas poderia significar também que uma ideologia representa a expressão de

um aglomerado de elementos inconscientes do ego, que chegam à consciência na forma de

um sistema de ideias.

A ideologia se origina em parte também no superego, como se deduz pelo papel

restritivo e absoluto que certas ideologias desempenham. Baranger propõe uma classificação

rudimentar das ideologias em muito persecutórias ou idealizadas e ideologias menos

absolutas, mais em contato com o real. Em outras palavras, a ideologia vai então assumir

características ditadas pelo tipo de superego que o sujeito possui e pelo grau de

desenvolvimento emocional alcançado.

Sobre a função defensiva de uma ideologia diz ele ainda que “...é uma das maneiras de

lutar contra a ansiedade persecutória. Muito frequentemente o conteúdo manifesto do

sistema ideológico dá diretamente um lugar aos objetos persecutórios, o que permite

caracterizá-los, personificá-los e controlá-los.” Isto está de acordo com a natureza idealizada

das ideologias, e bem sabemos o quanto um objeto idealizado torna-se ao mesmo tempo um

objeto persecutório.

Um novo exemplo das raízes inconscientes de uma ideologia pode ser encontrado na

história da senhorita Y. Ela iniciou seu tratamento aos trinta anos, ainda solteira e virgem, por

sentir-se incapaz de estabelecer uma relação afetiva duradoura e profunda com um homem,

ou sequer manter relações sexuais genitais apenas. Estava muito angustiada pois se sentia

“tentada a pecar” com seu namorado, o que a enchia de desejo e de temor por contrariar o

sistema de ideias religiosas no qual tinha sido criada. Nascida numa família muito católica e

fechada, governada por uma avó materna severa e puritana, cresceu pedindo a proteção dos

anjos e temendo a ira de Deus caso tivesse maus pensamentos ou praticasse más ações,

especialmente as de natureza sexual. Quando a avó não a estivesse vigiando, Deus

certamente estaria, como aquele que tudo vê e tudo pune.

Na adolescência passou a ter crises severas de ansiedade e agorafobia desencadeadas

a partir de um orgasmo masturbatório no chuveiro, acompanhado de “pensamentos impuros”

de natureza sexual. Ficou incapacitada de estudar, não conseguia sair de casa e fisicamente

sentia-se muito mal, com fortes sintomas fóbicos e ansiosos. Desenvolveu também sintomas e

rituais obsessivo-compulsivos significativos, ligados à limpeza física e à alimentação e também

às práticas religiosas purificadoras da alma.

Sua devoção à “Virgem” Maria e seu temor e obediência à Santa “Madre” Igreja nas

proibições sexuais recriavam e expressavam assim as relações objetais precoces com figuras

maternas persecutórias poderosas de sua infância (mãe e avó), bem como as repressões e os

temores ligados aos instintos sexuais sempre presentes e exigindo satisfação plena. Por outro

lado a ideologia religiosa familiar desempenhava a função de manter racionalmente

justificados os rituais obsessivos, pois serviam de atos de purificação para o que chamava de as

impurezas de sua mente (repleta de fantasias eróticas e agressivas). Essas partes “sujas” do

self eram mantidas fortemente dissociadas e permanentemente projetadas, vividas

persecutoriamente como pecados ameaçadores, dos quais devia pedir perdão e se purificar

continuamente mediante os rituais obsessivos.

Através da ideologia religiosa e suas práticas (confissões, missas, orações, etc.)

procurava manter-se sempre numa espécie de assepsia interior, pedindo perdão

continuamente pelos seus aspectos destrutivos e sádicos, aplacando um superego cruel e

punitivo mas com isso empobrecendo progressivamente sua vida mental, no que aliás sem

querer, seguia à risca outra característica de sua ideologia, pois como diz uma passagem

bíblica muito conhecida: “Bem-aventurados os pobres de espírito...”.

Sendo a fantasia a representação mental do instinto, como diz Susan Isaacs (3), então

a ideologia, ao expressar fantasias inconscientes e permitir a liberação dos instintos, funciona

como condição e meio aceitável para o ego dar vazão às demandas pulsionais do id, numa

forma final modificada pelas exigências do ambiente e pela interferência do superego. Assim,

penso que a forma final do sistema ideológico escolhido terá a ver com a maior ou menor

flexibilidade do ego e com o tipo de superego do sujeito. Quanto mais rígido e cruel for o

superego, mais imporá ao ego um sistema de ideias restritivo e autoritário, com pouca

capacidade de negociação das diferenças, resultando em ideologias mais rígidas, mais

conservadoras ou mais autoritárias, mais afastadas do real.

Numa perspectiva das relações de objeto pode-se dizer que um sistema ideológico

mais rígido não consegue ver a realidade de uma forma mais abrangente e integrada, pois

sempre toma a parte pelo todo, colocando o objeto parcial idealizado no lugar do objeto total,

e com isso permanece estaticamente radicado, e radicalizado, numa posição mais primitiva do

desenvolvimento do aparelho psíquico, fugindo do crescimento e mutilando a realidade e as

vivências através de poderosas dissociações, necessárias para evitar o contato entre diferentes

partes do self e a sua integração. Pode-se inferir então que a rígida adesão a uma ideologia

muito absoluta é indicativa da presença de aspectos mais primitivos do ego e/ou do superego

em funcionamento no self total.

Tomando emprestada de Bion a ideia de que todos somos portadores de partes

psicóticas da personalidade(4), sugiro que são estas partes que tornam-se assim naturalmente

atraídas pelas ideologias mais restritivas e dissociadas da realidade, pois justamente aí

encontram uma ligação com estas partes primitivas do self capaz de justificá-las, com o

benefício adicional de uma possibilidade de expressão que seja socialmente aceita.

Por exemplo, alguém assim como Z, 30 anos, casado. Sua ideologia alternativa

naturalista, que incluía ser um vegetariano radical, praticar muita ioga e corridas tipo

maratona (onde buscava a exaustão física e a “eliminação das toxinas negativas pelo suor”),

contraditoriamente associava-se ao uso de álcool e drogas e de uma vida desregrada nos

demais cuidados com sua saúde. Esses aspectos tão contraditórios ressoavam dentro de mim

como ligados a um contexto mais amplo de caos e confusão mental, a uma busca desesperada

de alguma identidade que ele parecia não possuir, parecendo sua personalidade a expressão

de um tipo de colagem mal feita e mal costurada. Afirmava ter aspirações ascéticas e místicas,

que incluíam o desejo de mudar-se para o Oriente e viver pobremente, dormindo no chão

sobre uma esteira de palha, da forma mais minimalista possível.

Em determinada época chegou a viver assim, pois vendeu todos os seus livros e discos,

livrou-se dos demais bens materiais que possuía no apartamento e ficou dormindo um ano

num colchão no chão, fazia seis horas de ioga por dia, mas nunca criou coragem de ir para a

Índia, local idealizado de seu nirvana sobre a Terra. Da mesma maneira esperava

fantasiosamente da psicanálise alguma experiência mística reveladora, mas também não teve

coragem de ir muito longe no tratamento, abandonando-o por ocasião do nascimento de seu

primeiro filho, fato que o havia deixado muito ambivalente, e logo quando havia conseguido

um bom e bem remunerado emprego na sua área de formação, na mesma empresa onde seu

pai era um dos diretores. Ao tornar-se ele mesmo pai, teve que confrontar-se com o

sentimento de ódio intenso e marcante que nutria por aquele, especialmente da ajuda que

este lhe dava desinteressadamente (na verdade odiava o amor do pai, ou mais

especificamente, a capacidade que este tinha de amar e construir).

Demonstrava um forte ódio invejoso também dos irmãos pois levavam vidas muito

diferentes da dele, descritos como felizes e socialmente bem postados enquanto ele, apesar

de ter sido criado numa família abastada, possuir curso superior e de falar fluentemente

outras línguas, desqualificava e criticava com acidez e agressiva ironia tudo isso, casara-se com

uma mulher bem mais velha e socialmente bastante inferior (possuía apenas curso primário e

era cozinheira de um restaurante vegetariano frequentado por ele), com a qual morava num

pequeno apartamento alugado, pago pelo pai, e dirigia um carro antigo, caindo aos pedaços,

jamais tendo conseguido manter um bom emprego ou ter tido prazer genuíno ou criatividade

em qualquer atividade produtiva.

Este ódio invejoso de um pai generoso e cuidador logo estendeu-se para mim na

transferência, e a agressividade com que defendia suas convicções naturalistas (sem que eu

jamais as tivesse atacado, ou sequer questionado), e na forma como as usava contra mim e

tudo que lhe dizia, por não reconhecer em mim um “iniciado” na sua ideologia, portanto um

“adversário”. Esta ideologia funcionava como via de descarga para a raiva e ao mesmo tempo

lhe dava a sensação de ser alguém “diferente da massa”, e esse sentimento de ser “especial”

colaborava para lhe dar alguma coesão num self precariamente organizado e de

funcionamento predominantemente em conflito com a realidade. Sentia-se superior e

poderoso por ser tão radical na questão alimentar e pelo seu completo desapego aos bens

materiais, tão diferente dos demais que isso o fazia sentir-se melhor do que todos os outros

(os pais, os irmãos, eu). Ou quem sabe fazia com que se sentisse apenas vivo...

Este terceiro material clínico guarda semelhanças, embora menos drásticas em seu

desfecho, com uma história verídica publicada há alguns anos em livro no Brasil, com o título

de “Na Natureza Selvagem” (5), que narra a saga de um jovem norte-americano cujo

comportamento, provavelmente uma forma inicial de esquizofrenia, passou notavelmente

despercebido até sua morte brutal, por inanição e congelamento no interior de um ônibus

abandonado no gelo do Alasca. Este jovem, chamado Chris Candles, começou a demonstrar,

durante o curso superior no qual se graduou com notas altas, indícios sugestivos de

deterioração mental que no entanto foram considerados como características peculiares de

sua ideologia pessoal, ligada a um retorno ao primitivismo e à vida em íntima ligação com a

natureza inóspita, inspirado nos romances de Jack London, novelista americano que também

possuía aspectos extremamente invejosos e destrutivos.

Assim como o paciente do terceiro exemplo clínico, ele também se desfez de seus bens

materiais, enterrando seu carro no deserto e queimando todos seus documentos de

identidade, fato por si bastante significativo. Sonhava em viver em algum lugar distante - mais

especificamente o Alasca - em completa comunhão com a natureza selvagem, sem contato

com a civilização e alimentando-se apenas de caça e raízes comestíveis. Após a conclusão do

curso sumiu sem dar notícia à família, perambulando a pé ou de carona pelos Estados Unidos

durante dois anos. Seus pais, cegos à percepção do filho – achado comum nas famílias

psicóticas – nunca perceberam a real condição do filho e o próprio autor do livro, ele mesmo

muito identificado com seu personagem idealizado, defendeu com plena convicção em seu

livro a ausência de doença mental, e descrevia o jovem como um aventureiro de espírito livre,

que apenas tinha grandes diferenças de opinião com seus pais, como alguém que apenas não

compartilhava da ideologia burguesa deles. Novamente encontramos aí a doença mental e

suas manifestações confundidas com uma opção ideológica consciente.

OS ESTADOS MENTAIS IDEOLÓGICOS

Bollas (6), ao descrever o estado mental fascista (e não é o fascismo uma poderosa

ideologia, ainda hoje?), cita um precioso trecho de Hannah Arendt: “...Nas ideologias se acham

as sementes do totalitarismo porque elas afirmam trazer... uma explicação total dos fatos, se

divorciam de toda a experiência, a que não lhes ensina nada de novo, insistem na possessão de

uma verdade secreta e poderosa que explica todos os fenômenos e operam a partir de uma

lógica que ordena os fatos de modo tal que sustentem o axioma ideológico.” Ele acrescenta

que só se alcança este grau de totalidade se a mente (ou o grupo) não abrigam dúvidas. Estas,

as incertezas e os autoquestionamentos, equivalem à debilidade e devem ser suprimidos da

mente para manter a certeza e a pureza ideológica .

Para Bollas as diferentes partes do self e de objetos representados no mundo interno

funcionam como um sistema parlamentar que, mediante a cobiça, a inveja ou a angústia, pode

evoluir para um sistema interno menos representativo e, portanto, menos democrático.

Todos nós estamos sujeitos a essas variações e tentações autoritárias, naturalmente.

A esta altura desejo acrescentar algumas questões derivadas da ideia expressa acima

por Bollas: onde se situa, em nosso aparelho psíquico, a fronteira entre as variações dinâmicas

do democrático parlamentarismo interno e a adesão a uma ideologia rígida e totalitária?

Quais as implicações na prática clínica desta diferenciação? Até onde a ideologia está

articulada com uma estrutura mais íntegra do self e onde passa a expressar o funcionamento

de uma parte bastante desestruturada deste?

Embora não creia que existam respostas definitivas para as questões acima, penso que

quando uma ideologia é muito dissociada da realidade, ou torna-se muito rígida e restritiva,

alcança um outro status, que passarei a denominar de estado mental ideológico, para

diferenciá-lo de ideologia enquanto sistema de ideias universalmente presente. Apoio-me

para isso na descrição que diversos autores fizeram sobre “estados” da mente - Meltzer (7) e

os estados sexuais da mente, Rosenfeld (8) e os estados psicóticos, Bollas e o já referido

estado mental fascista, etc. “Estado”, neste sentido, é uma palavra que denota uma

conotação dinâmica ao invés de estática, seja ela mais temporária ou mais permanente, de

uma forma da mente se estruturar e funcionar, de gerar afetos, pensamentos, significados e

ações, e de expressar as relações internas e externas de objeto, dando assim um destino aos

afetos e às pulsões de vida ou de morte.

O estado mental ideológico seria então aquele estado da mente no qual uma ideologia

está mais rigidamente estruturada, adquirindo um significado extremado na economia mental,

tornando-se dominante de uma forma totalitária sobre o aparelho mental, modelando à sua

maneira os afetos, pensamentos e ações do sujeito daí em diante. O estado mental ideológico

cumpriria assim funções semelhantes às da ideologia, porém com algumas diferenças de

qualidade e intensidade, e com repercussões mais deletérias sobre a vida mental e a vida de

relação do paciente. Ele se originaria de dificuldades maiores ou rupturas nas relações de

objeto mais precoces, expressando assim fantasias mais arcaicas e lidando principalmente com

ansiedades persecutórias mais intensas e primitivas. Naquelas que seriam suas raízes egoicas,

o estado mental ideológico – por seu absolutismo e desprezo final pelo objeto – estaria

associado a estruturas predominantemente narcisistas.

No entanto, reelaborando o que diz Baranger acima, sobre a ideologia ser proveniente

em parte do superego, acrescento que quando há a predominância de um estado mental

ideológico, este provém principalmente do superego, e dentro dele especialmente de seus

aspectos mais arcaicos, cruéis e punitivos, sendo esta uma diferença marcante com relação à

ideologia enquanto um sistema de ideias universalmente presente. Pessoas são capazes de

mudar de ideia, já quem é controlado internamente por um estado mental ideológico precisa

reafirmá-lo e fortalece-lo cada vez mais, justamente para que não mude diante dos ataques,

reais ou imaginários, recebidos.

Para que este estado mental ideológico se mantenha é necessário que os mecanismos

de defesa empregados predominantemente sejam os mais primitivos, baseados

primariamente na cisão (tanto de impulsos quanto de objetos), na idealização, na negação da

realidade (interna e externa) e na onipotência (9).

Portanto, enquanto as ideologias – principalmente aquelas mais conectadas à

realidade – serviriam mais às defesas do ego num self razoavelmente bem organizado, o

estado mental ideológico serviria mais à sobrevivência mesma do self. Ele representaria uma

tentativa extrema de manter a coesão do self, através da cisão radical de aspectos indesejados

do self, sentidos como muito perigosos ou letais, ou ainda uma tentativa desesperada de

reparação de um self já há muito fragmentado. Isto pode nos ajudar a compreender porque é

tão difícil, e às vezes mesmo impossível, alguém com tal configuração mental mudar de ideias.

Por outro lado, a serviço de um superego cruel, o estado mental ideológico pode

prestar-se como veículo, muitas vezes grupal, social ou politicamente aceito, para atacar e

destruir, dando assim livre vazão à inveja e à pulsão de morte presente nestas condições

mentais. Qualquer semelhança com as razões utilizadas pelos terroristas para seus atentados

insanos portanto não é mera coincidência.

CONCLUSÃO

Este trabalho é uma tentativa, centrada em achados comuns na clínica, de pensar e

compreender um fenômeno conhecido de todos nós, que é a presença consciente de uma

ideologia ou um estado mental ideológico nos nossos pacientes, o impacto disto em suas vidas

e no espaço analítico, onde se expressa na relação transferência/contratransferência, e

frequentemente se torna uma fonte importante de resistências ao tratamento, mais do que

uma comunicação de ideias diferentes. Por outro lado, somos também um objeto do paciente

e a nós é atribuída uma determinada posição no seu sistema ideológico, e é bom sabermos

que sistema é esse e que posição é essa, para podermos entrar e sair dela com flexibilidade, e

assim abrir novas possibilidades de pensamento, a partir da introjeção de um objeto diferente

dos objetos originais, representados pelo sistema ou estado mental ideológico existente.

Como se pode ver nos exemplos clínicos anteriores, independente da estrutura

predominante ou da psicopatologia, em cada um o funcionamento do que a princípio parecia

uma ideologia consciente de cada pessoa, indicava na verdade um estado mental ideológico

que cumpria complexas funções na economia psíquica inconsciente. No tratamento destas

pessoas este estado mental mais rígido e restritivo apareceu a princípio como um sistema

consciente e racionalmente articulado, que dificultava ou impedia o acesso a uma área

necessitada de exame, ao mesmo tempo em que comunicava que ali havia algo importante,

que necessitava ser explorado. Esta é mais uma dificuldade técnica que se apresenta: como

podem estas pessoas, tão necessitadas e tão dotadas de certezas absolutas, tolerar que o

analista crie espaço para dúvidas e perguntas, ao invés de concordar e dar respostas certeiras

e definitivas a partir de uma outra posição, provavelmente também sentida como ideológica

pelo paciente?

E finalmente outra pergunta, complicada mas sempre necessária: Como podemos nós

lidar melhor com as nossas ideologias, inclusive teóricas, para entrar num estado mental mais

livre e adequado à compreensão de quem busca nossa ajuda?

BIBLIOGRAFIA

1. “Ideologia nas Sociedades Modernas – Uma Análise Crítica de Alguns Enfoques Teóricos”,

Thompson, John B. in Ideologia e Cultura Moderna – Teoria Social crítica na era dos meios de

comunicação de massa. Editora Vozes, RJ, 2009.

2. “El Yo y la funcion de la ideologia”, Willy Baranger, in Artesanías Psicoanalíticas, Ediciones

Kargieman, Buenos Aires, 1994.

3. “A natureza e a função da fantasia”, Susan Isaacs in Os Progressos da Psicanálise, Guanabara

Koogan, Rio de Janeiro, 1982.

4. “Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não psicótica”, Wilfred

Bion, in Estudos Psicanalíticos Revisados (Second Thoughts), Imago Editora, Rio de Janeiro,

1994

5. “Na natureza selvagem”, Jon Krakauer, Companhia das Letras, Rio de Janeiro, 1998.

6. “El estado mental fascista””, Christopher Bollas, in Ser un Personaje - Psicoanálisis y

experiencia del sí-mismo, Paidós, Buenos Aires, 1994.

7. “Os estados sexuais da mente”, Donald Meltzer, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1979.

8. “Os estados psicóticos”, Herbert Rosenfeld, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968

9. “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”, Melanie Klein in "As Obras Completas de

Melanie Klein; vol. 3; Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963)"; Imago Editora; Rio de

Janeiro, 1991.

* Psiquiatra e Psicanalista, Membro Associado da SBPdePA e da IPA, Analista Didata da

SBPdePA.