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1 ARTESÃOS, HUMANISTAS E TRADING ZONES NO REINADO DE D. MANUEL I. Vasco Medeiros (Artis-IHA – FLUL – UL) - [email protected] I - Introdução Dificilmente será concebível uma ocasião mais apropriada para analisar a ascensão dos artesãos e as suas estreitas relações com o escol humanista do século XV e XVI, do que a figura impar que Mateus Fernandes manifestamente representa. A sua sucinta biografia é tão só uma plena afirmação deste estreitamento relacional, entre gente oriunda de uma classe, dita mecânica, e uma elite cultural, académica e humanista, cujo isolamento não será tão pronunciado como até aqui se suspeitou. Aliás, será precisamente a esses múltiplos equívocos historiográficos, a saber; comunicação entre classes, liberalidade, periodização histórica e relevância dos misteres mecânicos na revolução científica; que pretendemos lançar um olhar que se pretende renovado, crítico e salutar. Mateus Fernandes encarna precisamente a excepção que confunde a regra - homem originalmente humilde alcança um estatuto singular quando comparado com os seus pares, «Juiz ordinário na villa do mosteiro»; fruto do vasto prestígio na corte que lhe granjeará a honra póstuma de sepultamento em campa rasa à entrada do mosteiro. Essa campa assume, segundo Paulo Pereira, um inequívoco carácter autoral; «Aqui jaz Mattheus Fernandes que mestre foi destas obras, e sua mulher Isabel Guilhelme» (Pereira, 2007, p. 45). Este aspecto constitui na nossa óptica, um inegável traço de modernidade e de fuga ao anonimato corporativo e mesteiral, e uma evidência do estreitamento tipológico entre artesãos e eruditos na corte Manuelina. A escassez de informação sobre a dimensão autoral de Mateus Fernandes e a origem da sua formação, não o inibem de almejar uma dimensão intelectual paralela ao seu homólogo Filippo Brunelleschi (1377-1446) cujo honorífico sepultamento se assemelha em tudo ao de Mateus Fernandes, conforme descreve Vasari: «Foi sepultado com elaborada cerimónia e a maior honra em Santa Maria del Fiore (…) sob o púlpito perto da porta (…)» (Vasari, 2008, p. 146). No campo operativo as competências singulares do mestre não deixam dúvidas quanto à sua absoluta sintonia com as complexas práticas construtivas centro- europeias, denotando uma provável proficiência na matemática e na geometria (Silva, 2010). Esta circularidade narrativa em torno dos dois mestres constitui certamente um inequívoco traço de uma liberalidade paulatinamente granjeada, mas mais do que isso, um reconhecimento que marca a génese de uma compreensão distinta e não medieval da dimensão epistemológica entre autor e obra, relacionamento esse inteiramente novo, i.e., uma dimensão conceptual capaz de inscrever uma unidade e um singular sentido dos objectos, da história e da fixação de memórias em estreita dependência com os seus autores. Por outro lado, esse reconhecimento constitui marca habitual de uma

ARTESÃOS, HUMANISTAS E TRADING ZONES NO REINADO DE D. MANUEL I

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ARTESÃOS, HUMANISTAS E TRADING ZONES NO REINADO DE D.

MANUEL I.

Vasco Medeiros (Artis-IHA – FLUL – UL) - [email protected]

I - Introdução

Dificilmente será concebível uma ocasião mais apropriada para analisar a

ascensão dos artesãos e as suas estreitas relações com o escol humanista do século XV

e XVI, do que a figura impar que Mateus Fernandes manifestamente representa. A sua

sucinta biografia é tão só uma plena afirmação deste estreitamento relacional, entre

gente oriunda de uma classe, dita mecânica, e uma elite cultural, académica e

humanista, cujo isolamento não será tão pronunciado como até aqui se suspeitou. Aliás,

será precisamente a esses múltiplos equívocos historiográficos, a saber; comunicação

entre classes, liberalidade, periodização histórica e relevância dos misteres mecânicos

na revolução científica; que pretendemos lançar um olhar que se pretende renovado,

crítico e salutar.

Mateus Fernandes encarna precisamente a excepção que confunde a regra -

homem originalmente humilde alcança um estatuto singular quando comparado com os

seus pares, «Juiz ordinário na villa do mosteiro»; fruto do vasto prestígio na corte que

lhe granjeará a honra póstuma de sepultamento em campa rasa à entrada do mosteiro.

Essa campa assume, segundo Paulo Pereira, um inequívoco carácter autoral; «Aqui jaz

Mattheus Fernandes que mestre foi destas obras, e sua mulher Isabel Guilhelme»

(Pereira, 2007, p. 45). Este aspecto constitui na nossa óptica, um inegável traço de

modernidade e de fuga ao anonimato corporativo e mesteiral, e uma evidência do

estreitamento tipológico entre artesãos e eruditos na corte Manuelina. A escassez de

informação sobre a dimensão autoral de Mateus Fernandes e a origem da sua formação,

não o inibem de almejar uma dimensão intelectual paralela ao seu homólogo Filippo

Brunelleschi (1377-1446) cujo honorífico sepultamento se assemelha em tudo ao de

Mateus Fernandes, conforme descreve Vasari: «Foi sepultado com elaborada cerimónia

e a maior honra em Santa Maria del Fiore (…) sob o púlpito perto da porta (…)» (Vasari,

2008, p. 146). No campo operativo as competências singulares do mestre não deixam

dúvidas quanto à sua absoluta sintonia com as complexas práticas construtivas centro-

europeias, denotando uma provável proficiência na matemática e na geometria (Silva,

2010). Esta circularidade narrativa em torno dos dois mestres constitui certamente um

inequívoco traço de uma liberalidade paulatinamente granjeada, mas mais do que isso,

um reconhecimento que marca a génese de uma compreensão distinta e não medieval

da dimensão epistemológica entre autor e obra, relacionamento esse inteiramente

novo, i.e., uma dimensão conceptual capaz de inscrever uma unidade e um singular

sentido dos objectos, da história e da fixação de memórias em estreita dependência com

os seus autores. Por outro lado, esse reconhecimento constitui marca habitual de uma

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elevação estatutária, fruto de um sistema de trocas entre práticas artísticas e as

chamadas matemáticas uteis, i.e., a presença de marcadores típicos do sincrético

relacionamento entre arte e ciência, a saber: Literacia artesanal, epistemologia

artesanal ou ciência vernacular (Smith, 2004, p. 8).

Em face da habitual cristalização historiográfica, todos estes aspectos de uma

singularidade incontornável afiguram-se habitualmente como manifestações

caricaturais e excepções de uma paisagem histórica, que tradicionalmente emerge o

artista num primitivismo funcional, anónimo e gremial de acordo com as barreiras

cronológicas que a história lhe impõe. Sabemos hoje seguramente que estes aspectos

começaram a configurar mais a regra do que propriamente a excepção, e que o carácter

salvífico que elevou os artistas à categoria de profissionais liberais, terá sido

precisamente o seu vínculo e entrega aos fundamentos de uma revolução científica

emergente, que lentamente germinava desde os séculos precedentes – atente-se,

falamos de vanguardismo e ruptura; e não de receituário e conformismo. Com todas

estas singularidades estatutárias de artistas oriundos das mais diversas esferas sociais e

realidades espácio-temporais, será lícito questionar a prevalência e origem de diversos

trejeitos historicistas, tais como a determinação de um carácter primitivo ou gótico

[entendido aqui na sua verdadeira dimensão como classificação não estética, mas sim

pejorativa, i.e., bárbaro] em toda a arte Portuguesa produzida até meados do século

XVI. Este genuíno e auto-depreciativo “desporto” nacional apenas poderá ser

compreendido através da aplicação unitária de uma visão centralista e Burckhardtiana

da história da arte em Portugal ou a enquadramentos tipológicos inerentes a uma

restrita história dos estilos. Na realidade e conforme veremos, a história da arte e da

ciência em Portugal, desde a segunda metade do século XV até meados do século XVI

manifesta inegáveis e visíveis padrões de modernidade e de vanguardismo totalmente

equiparados com o modelo Italiano e do norte da Europa. Estes manifestam-se desde o

campo do desenvolvimento científico e comercial; florescentes com a expansão; ao

plano da produção artística ao serviço de uma edificação imagética do império, mas

fundamentalmente conforme veremos, na presença de amplos sistemas de Trading

Zones.

Apesar destas recentes evidências, tarda uma concepção renovada que permita

uma visão alargada do fenómeno. Até aqui falou-se e continua a falar-se objectivamente

de história de períodos, história de estilos, história de mentalidades, biografias de

artista, hermenêutica e filologia; sem no entanto quebrar essa estrutura prévia que

configura o edifício formal onde os modelos historiográficos se repetem sem formular

novidade evidente. Aquilo que procuramos é um sentido fora de um modelo mental

estruturado em enciclias sucessivas que condicionam e deturpam objectivamente uma

identidade formal de homens como Mateus Fernandes, Diogo Boitaca, João de Castilho

ou no caso da pintura, Jorge Afonso, Francisco Henriques, Mestre da Lourinhã, Vasco

Fernandes, Gregório Lopes entre tantos outros; inserindo-os em rígidas tipologias que

subvertem inequivocamente um olhar mais lúcido e atento a uma fenomenologia dos

praxiemas que manifestam. Essa interminável estrutura de enciclias inicia-se

precisamente pela periodização, i.e., a classificação num determinado lapso temporal,

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que por sua vez, pressupõe uma obrigatória filiação num determinado estilo; que

corresponde a uma obrigatória integração em todo um sistema de crenças e práticas;

que por sua vez categoriza os seus operadores de acordo com tradicionais valores

socioculturais desse período; que por sua vez desclassifica autores remetendo-os a um

flagrante anonimato; que por sua vez… ad infinitum.

II - A Problemática da Periodização

Esta análise tradicional da história em períodos condiciona, portanto, qualquer

lógica subversiva; assim sendo, a simples ideia de um individuo se manifestar fora dos

padrões normativos da sua época, é analisada quase sempre como uma espécie de

soluço temporal, i.e., uma aberração ou perturbação no tecido do espaço-tempo

histórico, configurando antes, uma evidente manifestação de um anquilosado

historicismo; que subverte a realidade para manter as suas fronteiras seminais intactas.

Deste modo, manifesta-se particularmente relevante e salutar quando um autor como

Jacques Le Goff, no limiar da sua obra e vida, nos lança essa derradeira indagação, Faut-

il Vraiment Découper L’histoire en Tranches? O autor alerta precisamente para os

perigos que uma periodização representa, «O trabalho de periodização obriga o

historiador a ter em conta o pensamento dominante, num espaço tão vasto quanto

possível, dos homens e das mulheres que vivem na época considerada» (Le Goff, 2014,

p. 112). Ora este exercício configura uma literal terraplanagem histórica, cultural, social,

artística e científica, de forma a adequar a história ao olhar conformista do historiador,

e não o contrário - adequar o olhar do historiador às ininterruptas perturbações e

oscilações da história, que apesar de a tornarem menos previsível, a tornam de facto

mais surpreendente. Assim sendo, importa olhar para as tradicionais barreiras

cronológicas, exactamente nessa dimensão, como “tradicionais”, mas não efectivas.

Vários autores ensaiaram esse exercício de reposição histórica, senão vejamos: O

próprio Le Goff propõe uma reformulação cronológica tendo em conta a adopção

novecentista do modelo tipológico de Petrarca, Media Ætas, que no século XIV rejeitava

os séculos anteriores anunciando uma renovação da bela antiguidade. O reforço

conceptual desta concepção obterá carácter definitivo a partir da primeira lição de

Michelet em 1840 no colégio de França e póstero eco em Jacob Burckhardt. Em face do

carácter ilusório, reverberatório e novecentista que essa periodização representa, Le

Goff propõe uma outra leitura do friso temporal: uma longa idade média cujo fim

posiciona em meados do século XVIII, correspondendo ao advento da fisiocracia, à

invenção da máquina a vapor, ao nascimento da indústria moderna, e, no domínio

filosófico e político, nesse relevante marco paradigmático que constitui o

enciclopedismo e a revolução Francesa (Le Goff, 2014, pp. 175-178).

Não se pense porém que o autor renega todo o ideário de transformações

sociais, culturais, politicas, económicas, artísticas e científicas que ao “renascimento”

tradicionalmente são atribuídas; não, o que o autor defende é que as mesmas

constituem óbvias reacções de movimentos de lenta transformação cuja génese se

encontra no século XII ou XIII, enquadrando-os numa lógica de continuidade mas não de

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ruptura. Neste ponto de vista, aquilo que o autor renega é a modernidade do próprio

conceito de revolução, patente na óptica em que Burckhardt o posicionou, i.e., como

constante e interminável descoberta da novidade – o advento de um mundo onde

subitamente tudo é novo. David Wootton, chama a atenção precisamente para a

incompatibilidade entre o termo “revolução” – entendido aqui como abrupta

transformação capaz de afectar toda uma população num mesmo período histórico - e

a lenta realidade das transformações socioculturais. Com este carácter específico de

ruptura imediata e global, não existe nenhuma revolução; seja ela científica, neolítica,

militar, industrial ou de qualquer outra tipologia. No entanto, o autor alerta para o

paradoxo da necessidade conceptual de ler a história sob este prisma de forma a

compreender transformações de larga escala; sejam elas de carácter económico, social,

intelectual ou tecnológico (Wootton, 2015, pp. 20-21) – uma vez mais, encontramo-nos

perante uma ilusão historiográfica

A este respeito, encontra-se a par da hipótese plasticista de uma nova

periodização que Panofsky propõe em 1960, defendendo o advento de inúmeros

renascimentos, cuja relevância se denota precisamente pela sucessão, continuidade e

elasticidade temporal com que se manifestam os fenómenos de vanguarda; seja ela de

carácter social, político, artístico ou científico, «Na história como na física, também o

tempo é função do espaço e a própria definição de um período como uma fase marcada

por uma «mudança de direcção» implica, simultaneamente, continuidade e ruptura»

(Panofsky, 1960, p. 20). Esta visão tridimensional de um espaço-tempo histórico quebra

com a tradicional unidimensionalidade de um friso histórico contínuo, defendendo o

autor, a existência de inúmeros pontos de ruptura temporais mas sobretudo

geográficos, que quebram definitivamente a visão italocêntrica e renascentista da

história de Burckhardt. Para Panofsky, será precisamente a praxis, os objectos e as

inovações tecnológicas estabelecidas entre os seus autores que instituem fracturas

cronológicas evidentes, «(…) o que nós designamos por «períodos» são simplesmente os

nomes das inovações decisivas que sempre tiveram lugar através da história...»

(Panofsky, 1960, p. 17) .

A própria história da ciência encontra divergência nos conceitos de continuidade

ou ruptura, não sendo consensual em torno da existência ou não de uma genuína

revolução científica nos séculos XV e XVI. Tal hipótese é defendida por Steven Shapin

que renega formalmente a existência de tal movimento, ou Pierre Duhem, que

partilhando a mesma lógica Panofskyana ou de Le Goff, defende que as transformações

ocorridas nesses séculos constituíram antes uma continuidade natural, do progresso

científico que já se registava na Europa e no Islão desde a idade média. Outros autores

encontram na presença continuada de padrões mentais medievos - nomeadamente no

pensamento Platónico de Copérnico (1473-1543) e Kepler (1571-1630); na actividade

astrológica de Galileu (1564-1642), ou no caso de Newton (1643-1727), que em pleno

século XVIII seria ainda um afamado alquimista – traços de uma continuidade de práticas

e crenças que renegam um absoluto movimento de ruptura (Weinberg, 2015, pp. 167-

168). No entanto, à luz da história, sabemos que inúmeras cisões tiveram lugar,

reconfigurando em definitivo a visão do universo e do sistema Teológico medievo. A

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aparente recepção destas tradições empíricas medievais em pleno século XVI e XVII

deve-se sobretudo a uma valorização e aceitação das práticas manuais e especulativas,

a par do uso e da descoberta do valor das medidas exactas, da observação metódica, do

uso de instrumentos, da valorização da experiência pessoal e da experimentação (Long,

2011, p. 130).

Na resposta a esta problemática encontramos, portanto, paralelos entre a

história da ciência e a história da arte no que respeita à subversão de uma tradicional

caracterização periódica. Assim sendo, e numa lógica em tudo semelhante à formulada

por Jacques Le Goff, também Butterfield sugere uma periodização ampla, com um

intervalo compreendido entre 1300 e 1800, período esse capaz de abarcar tanto a

origem como as próprias consequências das inúmeras revoluções científicas (Wootton,

2015, p. 18). Deste modo e à semelhança dos diversos “Renascimentos” que Panofsky

elencou, também a expressão “Revolução Científica” é alvo da mesma problemática,

i.e., saber quantas revoluções ocorreram e quais as balizas cronológicas que as

caracterizam.

Partindo deste pressuposto cronológico inovador, cedo compreendemos que

olhar para a obra de Mateus Fernandes sob este prisma, i.e., como estando a meio

caminho de uma revolução em marcha, o integra num processo sistémico longe da

tradicional continuidade medieva. Cedo compreendemos que observamos um

fenómeno paralelo de sincretismo operativo, seja na ciência ou na arte, de todo um

ideário e conjunto de crenças e práticas que se prolonga no tempo sem rupturas

imediatas. No entanto, apesar destas evidências, na história da ciência ninguém ignora

o carácter redutor que estas idiossincrasias naturais representam na estrutura mental

de cada um dos cultores da ciência moderna - o facto de Galileu ser simultaneamente

astrólogo e astrónomo ou Newton alquimista e matemático, não os diminui na sua

dimensão epistemológica enquanto geradores de transformação e ruptura, antes pelo

contrário, confere-lhes um carácter de singularidade, continuidade e integração no seu

tempo.

III - Interacção entre Arte e Ciência

Tendo em conta toda a anterior argumentação, torna-se claro que as interacções

entre arte e ciência e artesão e humanistas encontram um lastro duradouro e de

profunda complexidade, extrapolando largamente a tradicional periodização. Referimo-

nos obviamente ao desenvolvimento da perspectiva linear, da óptica, da

mensurabilidade, da topografia, do ensino generalizado da geometria Euclidiana, dos

estudos anatómicos e do desenvolvimento da mecânica e de instrumentação auxiliar.

Todas no seu conjunto irão conferir um carácter heurístico e intelectualizante à arte e

em última análise, contribuir precisamente para uma alteração paradigmática dos seus

cultores, que transitam estatutariamente do papel de meros artesãos para um

reposicionamento enquanto criadores teóricos; movimento este que se encontra na

génese conceptual do artista. Esta não será porém, uma transformação num único

sentido, também os humanistas e académicos, até aí arredados da praxis e das lides

mecânicas, irão iniciar um processo de contacto com as práticas manuais, tais como a

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astronomia, a topografia, a mensurabilidade, o desenho técnico ou a construção de

instrumentos, dando origem a uma coabitação entre teoria e experimentação que se

encontra igualmente na génese do cientista.

As razões para este aparente divórcio entre a praxis e a scientia enquanto

conhecimento, teve origem no complexo sistema de ensino das universidades

medievais, onde o curriculum habitual se encontrava estruturado nas célebres sete artes

liberais, hierarquicamente superiores às chamadas artes mecânicas: o Trivium

constituído pela gramática, a retórica e a lógica; e o Quadrivium, constituído pela

matemática, geometria, música e astronomia [incluindo a astrologia]. Com origem na

seminal organização que Varrão (116-27 a.C.) estabeleceu para as bibliotecas públicas

de Roma, esta classificação separava claramente as artes liberais das artes mecânicas

ditas manuais. Na idade média esta divisão florescerá graças à transmissão empreendida

por Cassiodoro (Século VI) e Alcuíno (Século VIII) onde a divisão em dois ramos distintos

e incomunicantes obterá uma perenidade efectiva (Le Goff, 2014, p. 106; Long, 2011, p.

127).

Cada uma destas artes seria originalmente apelidada simultaneamente como

arte [habilidade prática] e como ciência [sistema teórico], i.e., a astronomia por

exemplo, constituía um sistema teórico tendo a astrologia como praxis efectiva. Estas

ciências constituíram a base formativa para os futuros estudos em filosofia e teologia,

apelidados como ciências, mas que na realidade consubstanciavam sistemas teóricos

que dispensavam qualquer componente prática (Wootton, 2015, p. 23). Para além do

mais, estas ciências encontravam-se integradas num sistema hierárquico evidente: os

teólogos assumiam o direito de ordenar aos filósofos que demonstrassem a

imortalidade da alma e os filósofos o direito de ordenar aos matemáticos que provassem

que todos os movimentos do céu eram circulares, pois apenas estes aparentavam a

uniformidade e permanência divina. Esta estrutura hierárquica começará a será

definitivamente abalada no século XV, onde os primeiros sinais de uma revolução

científica em curso encontram-se patentes na aparente “rebelião” dos matemáticos

contra os filósofos, e destes contra os teólogos (Wootton, 2015, p. 24). Segundo David

Wootton, um dos exemplos mais precoces desta rebelião encontra-se precisamente no

tratado de pintura de Leonardo da Vinci, onde o mesmo defende de forma arrojada a

supremacia e independência da matemática, da demonstração e da experiência:

(…) nenhuma investigação humana pode ser denominada ciência sem antes passar

por demonstrações matemáticas; e se tu me dizes que as ciências que têm o seu

princípio e o seu fim na mente, participam na verdade, não o reconhecerei,

negando-o por muitas razões; a primeira, porque em tais discursos da mente não

se acede à experiência, sem a qual, nenhuma certeza se produz. (Vinci, 1986, p. 32)

Esta declaração de princípios assume especial notoriedade pelo facto de unificar dois

polos até aí aparentemente desconexos, a arte enquanto alter-ego axial do seu autor, e

as novas práticas conceptuais que a ciência do século XV e XVI levariam a cabo. Sem

estas premissas iniciais, nunca Galileu teria “construído” um telescópio, “observado” o

céu nocturno até à exaustão, “registado” os movimentos celestiais com detalhe, e

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“desenhado” as representações visuais da lua. Observe-se na intensidade dos verbos

empregues e na technē dominante; algo que à escolástica imperativa pareceria

aberrante e contraproducente. De facto, esta nova concepção de Scientia atentava

precisamente contra essa escolástica Aristotélica e peripatética que distinguia

claramente entre epistemē [conhecimento teórico imutável]; praxis [conhecimento

resultante de julgamento prévio] e technē [produção ou fabricação manual] (Long, 2011,

p. 127). A salutar convivência e troca de experiências entre humanistas, académicos,

arquitectos, engenheiros, matemáticos, pintores etc, veio conferir um novo sentido à

tradicional visão Aristotélica da Filosofia Natural como actividade exclusivamente

heurística, negando em absoluto às actividades ditas mecânicas ou às matemáticas uteis

a capacidade de produzirem conhecimento (Wootton, 2015, p. 24). Na origem desta

mudança de paradigma poderá estar o aforismo Vitruviano da conjugação imperiosa de

duas polaridades essenciais; Fabrica e Ratiocinatio – precisamente a construção ou

prática, harmonizada com a razão ou teoria. Esta concepção Vitruviana da arte,

reencontrada por Poggio Bracciolini em 1414 e amplamente difundida a partir de 1511

[Edição de Giovanni Giocondo], irá instigar nos artistas do renascimento esse duplo

compromisso de harmonização literária entre philologia e philotechnia, ou seja, entre

conhecimento e prática, motivando alterações paradigmáticas na própria produção

literária. Por um lado, artesãos habitualmente comprometidos exclusivamente com

uma praxis mecânica começarão a escrever livros de carácter formativo; por outro,

homens eruditos ocupar-se-ão de práticas artesanais tais como: a observação, a

topografia e medição ou a fabricação de instrumentos científicos. Desta perspectiva,

homens como Filarete, Francesco di Giorgio, Leonardo, Palladio ou Mutio Oddi não

poderão ser entendidos unicamente na sua dimensão de arquitectos, engenheiros e/ou

artesãos, mas igualmente como escritores, leitores, estudantes e eruditos. Não será

certamente coincidência, que os grupos que mais activamente participaram na

formação destas Trading Zones: arquitectos, engenheiros, pintores e escultores; tenham

assistido ao longo do século XVII ao surgimento de academias, resultado de uma

reconhecida institucionalização das suas actividades (Long, 2011, pp. 126, 131).

Encontramo-nos claramente perante um novo paradigma cuja origem é indeterminada,

mas que é fruto de uma convivência, respeito mútuo e troca de valores e experiencias

entre eruditos e humanistas; e artesãos e trabalhadores mecânicos, originando novos

modelos culturais capazes de aglutinar conhecimento e praxis, teoria e experimentação.

IV - Trading Zones na Corte Manuelina

Temos falado exaustivamente de Trading Zones, sem no entanto definir o

conceito. Este originalmente deriva dos estudos antropológicos de Peter Galison em

torno das relações entre físicos e engenheiros, que no século XX uniram esforços com

vista ao desenvolvimento de detectores de partículas e radares, sem no entanto alterar

as suas orientações teóricas e práticas seminais (Long, 2011, p. 94; Collins, Evans, &

Gorman, 2007, p. 657). Pamela Long irá abduzir o conceito, transferindo-o para os

séculos XV e XVI e para problemáticas inerentes, da arquitectura à engenharia, da

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astronomia à navegação, da matemática à pintura e escultura. Esses pontos de contacto

e colaboração, as Trading Zones, constituem desta forma, locais onde o mundo dos

artesãos e dos humanistas encontram amplas plataformas de intercâmbio recíproco de

conhecimento e experiência. A autora distingue claramente estas zonas sincréticas

entre eruditos e artesãos, das tradicionais relações de mecenato, desde logo pela

ausência clara de trocas reciprocas de serviços e valores ou quaisquer outras relações

que pressuponham uma relação de poder ou subalternização. Na sua óptica, as Trading

Zones, consistem em “arenas” onde os eruditos ensinam os artesãos e os artesãos

ensinam os eruditos em absoluta paridade. O conhecimento envolvido constitui assim o

“valor” intrínseco reconhecido por ambas as partes, cujo teor poderá ser transmitido

oralmente ou através da escrita de manuais ou tratados (Long, 2011, p. 95). Segundo a

autora, o número destas zonas de contacto e atrito terá aumentado drasticamente ao

longo do século XV e alcançado um carácter transversal e incontornável durante todo o

século XVI, estendendo-se a várias áreas de actividade, tais como: Cortes e paços Reais;

oficinas de impressão; construtores de instrumentos científicos; arsenais; minas, etc,

constituindo locais onde Fabrica e Ratiocinatio, no sentido Vitruviano do termo,

encontrava eco no cruzamento entre humanistas, autores, artistas, editores,

impressores, gravadores, matemáticos e artesãos ou operadores mecânicos das mais

variadas origens (Long, 2011, p. 96). Este conceito poderá estender-se ou sobrepor-se à

concepção que Alexander Marr estabelece das “comunidades matemáticas” dos séculos

XV, XVI e XVII, que constituíam redes de contacto onde os mais variados contributos

eram unificados no propósito comum da sua prática e do seu uso, fomentando o

encontro de praticantes oriundos das mais diversas áreas, fossem elas científicas ou

artísticas (Marr, 2011, pp. 10-11).

O panorama interno constituirá um fecundo e propício campo de enformação

destas amplas redes de troca experiencial, seja através da expansão marítima, da

construção de navios e de instrumentos científicos, seja no campo da arquitectura, da

escultura e da pintura. Estes últimos constituem-se como veículos de transmissão por

excelência de um ideário que encontra como símbolo máximo da sua manifestação

universal, precisamente um instrumento matemático – a esfera armilar. Esta

representação visual – evidência vocacional universalista e manifesta bandeira de um

projecto imperial, representa per se uma Trading Zone comum promovida pela corte

Manuelina, reunindo no seu âmago gente oriunda dos mais diversos campos de acção.

Estas Trading Zones, cuja notoriedade é possível determinar no Portugal dos séculos XV

e XVI, vêm de facto colmatar a ausência aparente de uma função didática e formativa

por parte das cooperativas mesteirais internas. De facto, a análise do regimento da Casa

dos Vinte-e-Quatro, não permite aferir em nenhuma época, funções equivalentes às

suas congéneres Italianas e Flamengas, onde a formação e o ensino das chamadas

matemáticas “uteis” se encontra de facto comprovado.

A realidade interna permite pressupor, muito provavelmente pela unidade,

coesão e distinta tipologia sociopolítica do reino uma realidade distinta das repúblicas

Italianas ou das províncias unidas Flamengas. A acção centralizadora da coroa, onde a

proximidade entre o poder politico e os diversos actores operativos, terá facilitado e

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promovido os contactos entre as diversas categorias intelectuais e profissionais,

dispensando estruturas afins. Este aspecto encontra-se visível em várias áreas de acção

da coroa, fundamentalmente em três campos distintos da sua política universalista, que

constituindo áreas de acção específicas, manifestam a presença clara de Trading Zones:

1) Na criação e fomento de uma imagética do império mediada pela arquitectura,

pintura e escultura. 2) Na criação, dotação e formação de redes de ensino ligadas à arte

da navegação e marinharia. 3) Na criação e fomento da Ribeira das Naus com óbvias

funções arsenalistas.

Poderemos inscrever sem sombra de dúvidas os estaleiros de Santa Maria da

Vitória e do Mosteiro de Santa Maria de Belém na primeira categoria elencada,

constituindo ambos claras zonas de intermediação e sincretismo entre humanistas,

eruditos e artesãos oriundos dos mais diversos pontos da Europa. A presença notória de

mestres provenientes das extensas redes de conhecimento espalhadas por toda a

Europa constitui a nosso ver uma genuína Trading Zone Transeuropeia, ultrapassando

certamente uma mera troca de estilos e composições, e corporizando muito mais uma

extensa rede de transmissão de conhecimento de cariz matemático e geométrico. De

resto, a leitura atenta que Ricardo Silva estabelece da crónica de Cristovão Acenheiro,

comprova a presença de dois grupos distintos em acção no estaleiro Batalhino: um

primeiro grupo de trabalhadores nacionais sem qualquer especificidade na hierarquia

do estaleiro, e um segundo grupo, integrando mestres nacionais e estrangeiros com

superior grau de mestria e certamente dotados de competências nas chamadas

matemáticas uteis, caso específico de mestre Huguet (Silva, 2010). No mesmo sentido

aponto Rafael Moreira, recordando as formas tradicionais de aprendizagem

corporativas lecionadas nas oficinas dos mestres pedreiros e nos estaleiros de obras,

vias de estudo, onde segundo o autor se poderia adquirir a necessária competência nas

artes liberais e o prestígio necessário para ascender de simples mestre de pedraria à

condição de «arquitecto» régio (Moreira, 1987, p. 67). Esta transição tipológica e

estatutária de simples artesão ao grau de intelectual liberal constitui conforme vimos,

um traço evidente de epistemologia artesanal ou ciência vernacular configurando uma

impressão digital de trocas informativas e formativas entre arte e ciência e de Trading

zones. Posteriormente, o ensino da arquitectura baseado no texto de Vitruviano

transitará definitivamente para o curriculum lecionado na escola do Paço, pelas mãos

do seu insigne tradutor, Pedro Nunes e do «mestre das obras de el-rei» e «mestre das

fortificações do reino», António Rodrigues (1564-1590) (Moreira, 1987, p. 68).

O próprio espaço físico da corte Manuelina constitui-se igualmente como

profícua Trading Zone, no que respeita ao contacto e às trocas multidisciplinares. Este

carácter formativo e enriquecedor, torna-se de resto patente na presença tutelar de

Francisco de Melo (1490 – 1536), insigne matemático e bolseiro de D. Manuel, cuja

formação decorreu na Universidade de Paris onde veio a lecionar. De regresso ao reino,

oferece ao monarca um manuscrito por si compilado, contendo as obras de Euclides,

Ótica e Catóptrica, na versão latina, Perspetiva e Especulária (Melo, 2014, p. 13). Só a

mera presença de uma obra deste vulto na corte Manuelina, constitui por si só indício

claro de uma erudição fina e humanista a pairar sobre todos os negócios da coroa, que

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obstinadamente paga a bolseiros para aprenderem matemática no norte da Europa, não

apenas como beneplácito régio, mas certamente com intuitos formativos pósteros. De

resto, denota-se essa função formativa da corte na própria dedicatória que Francisco de

Melo estabelece ao rei D. Manuel, «(…) os filhos dos nobres Lusitanos, logo que atingem

a idade em que podem ser retirados dos cuidados da ama, sejam alimentados nesta tua

Corte, na qual, como numa escola de todas as virtudes, os jovens bem-nascidos

começam a habituar-se ao esforço, a embeber-se em bons e civilizados costumes (…)»

(Melo, 2014, p. 27). Sabemos claramente que esta corte não era apenas frequentada

pelos “jovens bem-nascidos”, mas por inúmeros oficiais, artesãos e trabalhadores

mecânicos oriundos das mais diversas proveniências e funções. Não será certamente de

estranhar, que houvesse na política régia a vontade expressa de união e sã convivência

entre matemáticos como Francisco de Melo e mestres-de-obras como Mateus

Fernandes ou pintores régios como Jorge Afonso, cuja notoriedade [Arauto Malaca,

examinador, vedor e avaliador das obras do reino] permite deduzir uma presença

assídua e respeitada na corte; (Serrão, 2001, p. 106). Torna-se inevitável a formulação

de uma saudável convivência entre matemáticos, arquitectos e pintores, onde uma

troca salutar de competências contribuiria certamente para o enriquecimento e

harmonização dos objectivos comuns da coroa. A construção e uso de instrumentos de

medição e topografia por parte dos mestres construtores e da perspectiva linear nas

diversas oficinas de pintura permite identificar um interesse comum pela geometria

Euclidiana, cujo domínio e compreensão se tornaram essenciais em ambas as

actividades.

De resto, a presença de artesãos dotados desta dupla competência de erudição

e habilidade técnica surge atestada documentalmente na corte de D. Manuel e D. João

III. Através de um documento datado de 1528 e intitulado: “Carta de Mercê a Filipe

Guilhem de 25.000 réis de ordenado anualmente para servir o rei, com os instrumentos

que inventou para tomar o sol, a qualquer hora, altura do polo, por ele ou pelas estrelas,

com outros instrumentos de minutos e segundos e ensinar tudo a que o dito senhor

mandar, sem outro interesse” (Arquivo Nacional Torre do Tombo, 1528; Viterbo, 1988,

p. 180), torna-se patente esta função tutelar e didática que a coroa abertamente

assumia. Trata-se do mesmo homem que surge nas Trovas a Felipe Guilhem de Gil

Vicente, e cujo relato o coloca na corte Manuelina frente-a-frente com o próprio

Francisco de Melo: «O anno de 1519 veio a esta corte de Portugal hum Felipe Guilhem,

Castelhano, que se disse que fora boticário nel Porto de Santa Maria; o qual era grande

logico e muito eloquente de muito boa prática, que antre muitos sabedores o folgavão

de ouvir: tinha alguma cousa de mathematico; disse a ElRei que lhe queria dar a arte de

Leste a Oeste, que tinha achada. Pera demostra desta arte fez muitos instrumentos,

antre os quaes foi hum astrolábio de tomar o sol a toda a hora: praticou a arte perante

Francisco de Mello, que então era o melhor mathematico que havia no reino, e outros

muitos que para isso se ajuntarão per mandado de S.A. Todos approvarão a arte por

boa: fez-lhe ElRei por isso merce de cem mil reis de tença, c’o habito e corretagem da

casa da India, que valia muito.» (Vicente, 1834, p. 377; Viterbo, 1988, p. 174). Estes dois

documentos comprovam de forma exemplar a instituição de uma profícua Trading Zone,

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na corte Manuelina e pósteras, revelando inúmeros aspectos que importa salientar.

Desde logo a proveniência, Filipe Guillem é um cristão-novo nascido em 1487 em

Sevilha, que surge na corte Manuelina em 1519, prometendo ensinar a arte de Leste a

Oeste, ou seja o cálculo da longitude, espécie de Santo-Graal da marinharia. Um dos

aspectos mais curiosos do relato, é precisamente a conjugação dessa dupla polaridade

entre scientia e praxis, pois apesar do boticário ter «alguma cousa de mathematico»,

fez, ou seja, construiu inúmeros instrumentos de medição, manifestando clara

harmonização entre Artesão e Humanista. Estas características denotam claramente a

presença de um polímata cujas competências se dividiam por diversas áreas de

interesse, evidenciadas na tradição humanista Italiana por figuras de relevo como

Alberti ou Leonardo. A passagem de uma personalidade deste vulto na corte Manuelina

em 1519 permite aferir uma total concordância do reino com as vanguardas europeias,

e uma procura constante do conhecimento nas suas mais diversas manifestações. O seu

contacto com Francisco de Melo configura precisamente a tipologia de contactos

informais que caracterizam as Trading Zones - “arenas” onde os eruditos e artesãos

trocam conhecimento em absoluta paridade (Long, 2011, p. 95).

Posteriormente, assistir-se-á a uma clara institucionalização destas práticas,

evidenciadas pela abertura em 1559 [Data do Regimento] da Lição de matemática. Esta

era lida diariamente entre Outubro e Junho pelo cosmógrafo-mor, nos Armazéns da

Ribeira das Naus para a instrução das gentes do mar (Moreira, 1987, p. 66), constituindo

mais uma evidencia da aposta da corte no ensino generalizado da astronomia,

cartografia, construção e uso dos principais instrumentos de navegação, às gentes da

marinharia. Esta iniciativa fomentou provavelmente a unificação entre fontes de

elevada erudição e academismo com elementos provenientes de uma vivência real do

mar, amalgamando académicos e eruditos com o empirismo de marinheiros e

navegadores, constituindo desta forma uma Trading Zone de especial relevância na

dinâmica das políticas da coroa.

Todos estes aspectos elencados, permitem-nos intuir uma progressiva

autonomia por parte das classes operativas do reino, que longe de mimetizarem gestos

de atávica e medieva tradição; encontraram junto dos existentes pontos de contacto

com a cultura humanista, erudita e científica; modelos processuais inovadores capazes

de converter os tradicionais sistemas artesanais e mecânicos. As largas evidências

materiais destas profícuas Trading Zones permitem-nos compreender que a sua

prevalência e longevidade na corte Manuelina convidam a uma reflexão profunda sobre

o papel socio-cultural do artesão e do humanista.

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Bibliografia

Arquivo Nacional Torre do Tombo. (2 de 11 de 1528). Carta de Mercê a Filipe Guilhem de 25.000

réis de ordenado anualmente para servir o rei, com os instrumentos que inventou para

tomar o sol, a qualquer hora, altura do polo, por ele ou pelas estrelas, com outros

instrumentos de minutos e segundos... Corpo Cronológico 1161/1699. Lisboa. Obtido de

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