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28.45. Charles Demuth. O Meu Egipto. 1927. óleo e grafite sobre prancha de cartão, 91 x 76 cm. Whitney Museum of American Art, Nova Iorque. Comprado pelo Fundo de Gertrud Vanderbilt Whitney. 31.172 Depois de descrever o uso das cores como de instrumentos musicais na criação das suas composições (Davis gostava muito de jazi e do swing), ele prosseguiu com a descrição da sua pintura, pintada no seu estúdio da Sétima Avenida: "O tema... faz parte da experiência de qualquer habitante de uma cidade moderna. Frutos e flores; utensílios de cozinha; céus de Outono; horizontes; táxis; telefonias; exposições e reproduções artísticas; viagens rápidas; objectos da cultura americana; cinema; recla- mes luminosos; a dinâmica dos sons e das paisagens da cidade; todos estes e muitos mais são uma experiência comum e com- põem o tema que eu celebro com a minha pintura." Nesta amálgama de cores e formas e de planos sobrepostos encon- tramos chaminés, paisagens marinhas e paredes de tijolo reduzidos a notações hieroglíficas, cujo carácter de banda desenhada parece sair directamente da cultura americana popular. De forma quase indefinível, a sensibilidade de Davis tomou o pulso aos Estados Unidos da América — na publicidade berrante, no gosto pela novidade, no jazz, na mobilidade e no desenraizamento. A Art Déco e o Estilo Internacional Se o arranha-céus se transformou no emblema nacional da Moder- nidade americana, os edifícios em si eram esteticamente conservadores, comparados com os desenvolvimentos arquitectó- nicos europeus, em especial os do Estilo Internacional. Por volta de 1900, Nova Iorque transformara-se na cidade dos arranha-céus, à semelhança de Chicago, com edifícios cada vez mais altos, de que se destacam o Edifício da Woolworth, de Cass Gilbert, com mais de 240 metros de altura, que dominou os céus da cidade a partir de 1913. As novas torres eram muito oitocentistas, em termos da sua estética, reflectindo uma grande variedade de estilos histó- ricos, como o gótico. A riqueza dos Loucos Anos 20 produziu furiosas campanhas de construção, à medida que os arquitectos competiam entre si para traçar os edifícios mais altos do mundo. Quase em simultâneo, o edifício da Chrysler, com 77 andares e o Empire State Building, com 102, foram erigidos em 1930. O Edifício da Chrysler (fig. 28.47) foi desenhado por um arquitecto pouco conhecido, chamado William van Alen (1883-1954), e é frequentemente considerado o mais belo arranha- céus do movimento Art Déco. Art Déco (de Arts Décoratífs) é um estilo decorativo que surgiu, em 1925, na Exposição de Artes Decorativas e Industriais de Paris. Tal como a escola da Bauhaus, pretendia estreitar o fosso existente entre o design de qualidade e a produção em série e desenvolveu-se a partir de um movi- mento anterior, o Art Nouveau, mas substituindo as formas orgânicas pela geometria da era da máquina e por formas sim- plificadas. Ao contrário da Bauhaus, a Art Déco não tinha objectivos utópicos; sendo uma arte burguesa e privilegiando a fantasia e a sumptuosidade, ocupou-se de uma aparência deco- rativa, não do idealismo substantivo, e absorveu uma rica panóplia de referências históricas, da fragmentação cubista aos padrões em ziguezague dos índios americanos e dos desenhos pré- colombianos. Os designeis do movimento fizeram amplo uso de cores opulentas, de materiais sumptuosos e de superfícies brilhantes e, inspirados pelo uso das máquinas, combinaram uma grande variedade de formas angulares, com frequência em ritmos irregulares, em staccato, destacadas sobre um fundo de motivos orgânicos que fazem lembrar a Art Nouveau ou o Jugendstil (a variante alemã da Art Nouveau). Podemos ver essas qualidades no Edifício da Chrysler. A geometria é simplificada na torre afunilada, com os seus arcos progressivamente recua- dos. As janelas triangulares, em forma de chama, criam um ritmo em staccato e a coroa do edifício foi revestida de chapas brilhantes de aço inoxidável. Nas extremidades das esquinas encontramos gárgulas que imitam o ornamento da capota do Chrysler de 1929. O Estilo Internacional chegou à América mais ou menos por esta altura, aparecendo no edifício da editora McGraw-Hill, de 1931, de Raymond M. Hood, em Nova Iorque, e no edifício da Sociedade do Fundo de Pensões de Filadélfia (fig. 28.48), com traçado de George Howe (1886-1955) e de William E. CAPÍTULO 28 A ARTE ENTRE AS DUAS GUERRAS 1 049

Arte Deco A nova historia da arte de Janson

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28.45. Charles Demuth. O Meu Egipto. 1927. óleo e grafite sobre prancha de cartão, 91 x 76 cm. Whitney Museum of American Art, Nova Iorque. Comprado pelo Fundo de Gertrud Vanderbilt Whitney. 31.172

Depois de descrever o uso das cores como de instrumentos musicais na criação das suas composições (Davis gostava muito de jazi e do swing), ele prosseguiu com a descrição da sua pintura, pintada no seu estúdio da Sétima Avenida: "O tema... faz parte da experiência de qualquer habitante de uma cidade moderna. Frutos e flores; utensílios de cozinha; céus de Outono; horizontes; táxis; telefonias; exposições e reproduções artísticas; viagens rápidas; objectos da cultura americana; cinema; recla -mes luminosos; a dinâmica dos sons e das paisagens da cidade; todos estes e muitos mais são uma experiência comum e com -põem o tema que eu celebro com a minha pintura." Nesta amálgama de cores e formas e de planos sobrepostos encon -tramos chaminés, paisagens marinhas e paredes de t i jolo reduzidos a notações hieroglíficas, cujo carácter de banda desenhada parece sair directamente da cultura americana popular. De forma quase indefinível, a sensibilidade de Davis tomou o pulso aos Estados Unidos da América — na publicidade berrante, no gosto pela novidade, no jazz, na mobilidade e no desenraizamento.

A Art Déco e o Estilo InternacionalSe o arranha-céus se transformou no emblema nacional da Moder-nidade americana, os edifícios em si eram esteticamente conservadores, comparados com os desenvolvimentos arquitectó-nicos europeus, em especial os do Estilo Internacional. Por volta de 1900, Nova Iorque transformara-se na cidade dos arranha-céus, à semelhança de Chicago, com edifícios cada vez mais altos, de que se destacam o Edifício da Woolworth, de Cass Gilbert, com mais de 240 metros de altura, que dominou os céus da cidade a partir de 1913. As novas torres eram muito oitocentistas, em termos da sua estética, reflectindo uma grande variedade de estilos histó-ricos, como o gótico. A riqueza dos Loucos Anos 20 produziu furiosas campanhas de construção, à medida que os arquitectos competiam entre si para traçar os edifícios mais altos do mundo. Quase em simultâneo, o edifício da Chrysler, com 77 andares e o Empire State Building, com 102, foram erigidos em 1930.

O Edifício da Chrysler (fig. 28.47) foi desenhado por um arquitecto pouco conhecido, chamado William van Alen (1883-1954), e é frequentemente considerado o mais belo arranha-céus do movimento Art Déco. Art Déco (de Arts Décoratífs) é um estilo decorativo que surgiu, em 1925, na Exposição de Artes Decorativas e Industriais de Paris. Tal como a escola da Bauhaus, pretendia estreitar o fosso existente entre o design de qualidade e a produção em série e desenvolveu-se a partir de um movi -mento anterior, o Art Nouveau, mas substituindo as formas orgânicas pela geometria da era da máquina e por formas sim -plificadas. Ao contrário da Bauhaus, a Art Déco não tinha objectivos utópicos; sendo uma arte burguesa e privilegiando a fantasia e a sumptuosidade, ocupou-se de uma aparência deco -rativa, não do idealismo substantivo, e absorveu uma rica panóplia de referências históricas, da fragmentação cubista aos padrões em ziguezague dos índios americanos e dos desenhos pré-colombianos. Os designeis do movimento fizeram amplo uso de cores opulentas, de materiais sumptuosos e de superfícies brilhantes e, inspirados pelo uso das máquinas, combinaram uma grande variedade de formas angulares, com frequência em ritmos irregulares, em staccato, destacadas sobre um fundo de motivos orgânicos que fazem lembrar a Art Nouveau ou o Jugendstil (a variante alemã da Art Nouveau). Podemos ver essas qualidades no Edifício da Chrysler. A geometria é simplificada na torre afunilada, com os seus arcos progressivamente recua-dos. As janelas triangulares, em forma de chama, criam um ritmo em staccato e a coroa do edifício foi revestida de chapas brilhantes de aço inoxidável. Nas extremidades das esquinas encontramos gárgulas que imitam o ornamento da capota do Chrysler de 1929.

O Estilo Internacional chegou à América mais ou menos por esta altura, aparecendo no edifício da editora McGraw-Hill, de 1931, de Raymond M. Hood, em Nova Iorque, e no edifício da Sociedade do Fundo de Pensões de Filadélfia (fig. 28.48), com traçado de George Howe (1886-1955) e de William E.

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28.46. Stuart Davis. Hot Still-Scape for Six Colors – Seventh Avenue Style. 1940. óleo sobre tela, 91,4 x 113,9 cm. 0 Museurn of Fine Arts, Boston. Doação da Fundação de William H. Lane e da Colecção de M. e K. Karolik, por troca, 1983.120. 0 Estafe of Stuart Davis/sob autorização de VAGA, Nova Iorque

Lescaze (1896-1969). O facto de estes dois arquitectos se terem reunido para desenharem um edifício moderno é, em si, notá -vel, uma vez que não existia nada de semelhante nos Estados Unidos da América quando o prédio foi concebido. O edifício significou um enorme risco financeiro, uma vez que o número de potenciais pensionistas escasseava com a Grande Depressão. Este edifício possui muitas das características do Movimento Moderno, mas os seus blocos flutuantes, assentes sobre estacas e com paredes de vidro foram comprometidos quando o cliente insistiu que os pilares fossem relegados para o perímetro exte -rior do edifício, introduzindo fortes linhas verticais e interferindo com as janelas horizontais. Apesar de o edifício ter uma apa -rência mais maciça do que os seus equivalentes europeus (ver fig. 28.36), não deixa de reflectir o seu funcionalismo, já que cada um dos blocos que vemos do exterior foi concebido para um objectivo diferente.

A Procura da EspiritualidadeNos anos 1910, a maior parte da comunidade criativa dos Esta -dos Unidos dedicara-se à produção de obras de arte americanas. Escritores, músicos, artistas e poetas sentiam que a cultura norte-americana derivava directamente da europeia e quiseram então descobrir as características únicas da experiência americana e expressá-las de forma "indígena". Para artistas como Stella e

Demuth, a resposta estava na modernidade. Outros interessaram-se pela natureza e regressaram a um certo Romantismo panteísta da Escola do Rio Hudson e dos seus sucessores. Stieglitz ocupou-se deste tema, da arte americana, e, na década de 1920, decidiu apresentar apenas artistas americanos na sua última galeria, a que, apropriadamente, chamou An American Place, que abriu em 1928. O próprio Stieglitz foi ganhando uma aversão cada vez maior à modernidade e só muito tarde comprou telefonia e automóvel. Como tantos na sua época, rejeitou o materialismo em favor da espiritualidade da América moderna. Stieglitz, que publicara excertos de Do Espiritual na Arte, de Kandinsky, em Camera Work (ver página 986), preocupou-se com a captação de um equivalente visual às emoções sentidas perante o espectáculo da natureza sublime.Os artistas que Stieglitz apresentou, desde inícios da década de 1920 até à sua morte, em 1946, preocuparam-se em geral em encontrar um significado mais elevado para a vida no interior de um mundo moderno materialista e recorreram com frequência à natureza, como Georgia O'Keeffe (1887-1986), a quem Stieglitz se ligou em 1918, vindo posteriormente a casar com ela.

G E 0 R G 1 A O'K E E F F E Quando Stieglitz a apresentou, pela primeira vez, em 1916, Georgia O'Keeffe produzia

descreveram as flores de O'Keeffe como abertamente eróticas e sexuais, o que era perfeitamente aceitável dentro dos novos parâmetros morais dos anos 20. Porém, a interpretação ultrajou O'Keeffe, que negou tratar-se de pinturas exclusivamente sexuais. E, com efeito, não são. Tal como os romances sexualmente explícitos (e objecto de censura) do seu amigo D. H. Lawrence, as suas pinturas não são representações da sexualidade mas sim sobre as forças incontroláveis da natureza, que incluem o dese jo de procriar. A sexualidade era representada como natural, bela e tão fundamental à natureza humana como a flor que desabrocha, dissemina o seu polén e se reproduz. E se a bela flor orgânica pintada por O'Keeffe parece assumir a forma de outros objectos, como nuvens, fumo, nádegas e carne humana, apenas intensifica o sentimento de equivalência universal que ela acreditava penetrar todas as coisas. No microcosmo da íris, O'Keeffe representou um macrocosmo que abrange a totalidade do universo.

z8. 47. William van Alen. Edifício da Chrysler, Nova Iorque, 1928-1930

ublimes. Por volta de 1920, as suas representações da natureza voluíram para close-ups de flores, como em íris Negra III fig. 28.49), de 1926, em que a imagem se torna abstracta, de ão ampliada. Não precisamos de procurar muito para encon -rarmos a fonte pictórica de O'Keeffe: Paul Strand. O'Keeffe paixonou-se pelo jovem homem e pelo trabalho do fotógrafo m 1917, em especial pelo uso da imagem em close-up. Este rtifício compositivo obrigava, segundo a própria, a ver as ores com a mesma intensidade com que ela as via. Porém, _)m esta abstracção do close-up, O'Keeffe alcançou muito mais: s formas das flores compõem um corpo de mulher e a íris voca a sexualidade feminina. As pétalas dissolvem-se na :mosfera circundante e parecem fundir-se com o remanescente a natureza. 28.48. George Howe e William E. Lescaze. Edifício do Savings

Fund Society de Filadélfia. 1929-1932

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28.50. Edward Weston. Pimento. 1930. Impressão em gelatina de prata. Center for Creative Photography, Tucson, Arizona

A L F R E D S T 1 E G L 1 T z Em 1922, desafiado pelas ampliações espiritualizadas de flores de O'Keeffe, Stieglitz iniciou uma série de fotografias do céu nocturno, a que chamou Equivalentes. Um exemplo dessa série, datado de 1926, reproduz-se aqui (fig. 28.51). O título é, em parte, uma referência à natureza que corporiza uma espiritualidade sentida pelo próprio Stieglitz, que, por seu turno, o transcende e à fotografia, tornando-se no equivalente espiritual da natureza. As imagens são abstractas e criam um paralelo com a abstracção da emoção e da espiritualidade. E, claro está, não foi por acidente que Stieglitz escolheu o céu para repre-sentar o misticismo, urna vez que se trata do símbolo tradicional de infinito e transcendência. Parte do impacto destas impressões consiste na sua escala, 11,6 x 9,2 cm. O formato diminuto permite uma grande riqueza e variedade de negros; e na cena nocturna, em que a luz se filtra pelas nuvens, as fotografias são essencialmente negras. A magia da imagem reside na sua densidade, que nos faz sentir como se a totalidade do universo se tivesse concentrado em pouco centímetros quadrados.

Regionalismo e Identidade NacionalEnquanto a vanguarda nova-iorquina procurava uma identidade nacional e uma espiritualidade baseada em imagens da moderni -dade ou em estilos abstractos compactos, um grupo de artistas do

A ART ! t 5

1926 Georgia O'Keeffe pinta íris Negra 1111927 Charles Lindbergh atravessa o Atlântico de avião1929 Queda da Bolsa de Valores1933 Franklin Roosevelt lança o New Deal1939 john Steinbeck publica Vinhas do Ira

1940-1941 Jacob Lawrence publica In the North the Negro

Had Better Educational Facilities (No Norte o Negro

Tinha Melhores Condições de Educação)

E D W A R D W E ST 0 N Graças a Strand e O'Keeffe, o close-

up foi muito utilizado pelos pintores e pelos fotógrafos da década de 1920. Nas mãos de alguns artistas, alcançou as mesmas dimensões espirituais que podem ser encontradas na pintura de O'Keeffe. Pimento (fig. 28.50), do califormano Edward Weston, (1886-1958), inclui-se nesta categoria. O vegetal, ondulado e contorcido, foi transformado pela iluminação até se assemelhar, em alguns pontos, a uma figura enrolada (de costas para o canto superior direito e de nádegas para o canto inferior esquerdo), a seios, a braços e a outras partes do corpo.

28.49. Georgia O'Keeffe. íris Negra 111. 1926. Óleo sobre tela, 91,4 x 75,9 cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. The Alfred Stieglitz Collection, 1949. (D The Georgia O'Keeffe Foundation/Artists Rights Society (ARS), Nova Iorque

28.51. Alfred Stieglitz. Equivalentes. 1926. Impressão em gelatina de prata, 11,6 x 9,2 cm. Galeria Nacional de Arte, Washington. Colecção Alfred Stieglitz

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Midwest, liderados por Grant Wood, Thomas Hart Benton e John Stewart Curry, viraram-se para manifestações artísticas figurativas "à antiga" e para o imaginário regional. Embora formados nos centros artísticos modernos (Benton e Wood estudaram na Europa, em Nova Iorque e em Chicago), os artistas preferiram trabalhar no Midwest, onde nasceram e com cujas tradições se identificavam.

A imagem mais icónica deste grupo é constituída pela tela American Gothic (fig. 28.52), de Grant Wood (1891-1942), natu-ral de Cedar Rapids, lowa. A pintura foi apresentada no Instituto de Artes de Chicago, em 1930, onde teve um impacto considerável, projectando o nome de Wood em termos nacionais. O quadro pretendia abrir uma janela para a realidade do Midwest, onde o pintor nasceu e viveu. Duas figuras imaginárias, um pai e uma filha solteirona são apresentados como descen -dentes tementes a Deus dos primeiros pioneiros que trabalharam a terra americana. Vestidos de forma antiquada e firmemente opostos à marcha do progresso, são representados à frente de uma casa no estilo Carpenter Gothic, do século xix, que forneceu o título da pintura e que evoca a modéstia e o estilo de vida antiquado dos residentes, bem como o seu fervor religioso, que encontra um paralelo na devoção do período medieval, altura em que as catedrais góticas foram construídas.

Wood vai mais longe e sublinha a fé das suas personagens, ao incluir várias cruzes no desenho da fachada e ao integrar uma longínqua torre de igreja em plano de fundo. As perso -nagens representam a ordem e a limpeza, como sugerido pela vivacidade do desenho e pela austeridade da composição, de linhas verticais e horizontais, e pelo primor manifesto no vestido e penteado conservadores da mulher, que nos surge como boa dona de casa (indicação dada pelas plantas bem cuidadas no alpendre). A frontalidade dura das figuras, o punho cerrado do homem em torno da sua forquilha e as jardineiras são pormenores que nos apresentam um casal trabalhador e forte. Não existe qualquer alusão à modernidade e a simplicidade e a austeridade do enquadramento sugerem frugalidade de costumes. No entanto, muitos críticos interpre -ta ram a p in tura de Grant Wood como uma paródia aos modelos e ao seu estilo de vida. Com efeito, existe humor nesta pintura, manifesto no olhar inquieto da mulher, dirigido ao lado direito do observador, como se quisesse assegurar-se de que nenhuma calamidade está para acontecer. Porém, inde -pendentemente da observação, ninguém pode negar que a pintura parece captar algo de fundamentalmente americano, algo de muito característico do Midwest.

28.52. Grant Wood. Gótico Americano. 1930. óleo sobre prancha de cartão, 74,3 x 62,4 cm. Instituto de Arte de Chicago. Amigosda Colecção de Arte Americana. 0 Grant Wood/Licenciado por VAGA, Nova Iorque

I n Ç 4 P A R T E I V O M U N D O M O D E R N O

O Renascimento de HarlemNos anos 20 e 30, centenas de milhar de afro-americanos fugiram ao racismo e à pobreza do sul rural em direcção às cidades indus-trializadas do norte, onde esperavam encontrar empregos, justiça e igualdade. No Norte, porém, os novos migrantes descobriam com frequência que tinham trocado a pobreza rural pelos bairros de lata urbanos e o racismo das leis sulistas pelos preconceitos, pelos bairros segregados e pela cidadania de segunda classe do Norte. Não obstante, a confluência de negros no Harlem de Nova Iorque e na Zona Sul de Chicago resultou num florescimento cultural dedicado à autodescoberta e ao estabelecimento de uma identidade negra, algo sistematicamente negado aos afro -americanos pela América branca. Este movimento chamou-se New Negro Movement, embora seja hoje mais conhecido pelo nome de Renascimento de Harlem, segundo o seu centro princi -pal, frequentemente descrito como a sua "capital".

O líder deste movimento literário, musical, teatral e artístico foi o filósofo Alam Locke (1886-1954), da Universidade de Howard, que reivindicou um estilo único que pudesse definir a sensibilidade e a visão negras. Advogando um regresso ao passado africano e à sua arte, o que já fora feito pelos artistas de vanguarda, ainda que através da estreiteza da sua perspectiva e reflectindo as suas necessidades e interesses, Locke encorajou as representações de afro-americanos e das suas vidas, bem como o retrato de características físicas inconfundíveis da raça, tal

como as máscaras africanas acentuavam a fisionomia dos negros. Com efeito, Locke defendia que os artistas e os escritores decla -rassem "black is beautiful" (ser negro é belo). Ao promover uma estética negra, o filósofo encora jou os artistas a representarem uma cultura inconfundivelmente afro-americana, que se afastasse da tradição euro-americana e que reflectisse a enorme contri -buição dos americanos de ascendência negra para a vida e para a identidade norte-americanas.

Antes do Renascimento de Harlem, os artistas plásticos afro-americanos executavam obras de arte inspiradas na arte produzida pelos seus congéneres europeus, com a intenção de se adaptarem, conformando-se à estética vigente e respondendo às exigências do mercado, que eram determinadas pelos artistas brancos. Assim, pintavam as mesmas paisagens, as mesmas naturezas-mortas e as mesmas cenas de género, todas esvaziadas de conteúdo africano (no artesanato e na arte popular, como nas colchas, nos trabalhos em metal e na mobília, além da música, os afro-americanos foram influenciados pelas tradições africanas). Com o Renascimento de Harlem, os artistas começaram a trazer as tradições afro-americanas para o centro da sua arte. Embora a maior parte dos artistas afro-americanos trabalhasse na tradição modernista, eles também ofereciam uma alternativa a esta tradi -ção, transformando a sua identidade racial num tema proeminente da sua obra. Com efeito, o tema da raça e a força da sua apresen -tação foram tão importantes como as inovações formais.

J A M E S VA N DER Z E E O fotógrafo autodidacta James van der Zee (1886-1983) era um fotógrafo de estúdio cujas fotogra -fias eram cuidadosamente compostas para apresentar os modelos nas poses por estes pretendidas; algumas vezes em trajes de alta-costura, outras em uniformes da Milícia Naciona-lista de Marcus Garvey. Van der Zee era conhecido pelo seu uso de exposições múltiplas, um método a que recorria para repre -sentar familiares falecidos em ascensão ao paraíso, ou para contemplar o futuro de um jovem casal e representar crianças saudáveis ainda por nascer. Uma das suas imagens mais famo -sas é a de um Casal Vestindo Casacos de Guaxinim num Cadillac (fig. 28.53), de 1932, executado durante o pior período da Grande Depressão. Apesar das privações da época, conseguimos sentir o optimismo e a energia do Renascimento de Harlem, que continuou até aos anos 30, criando um ambiente em que o Novo Negro pôde desenvolver-se e prosperar.

J A CO B ~ R EN CE O p in to r mai s f amoso do Renasc imen to de Harlem foi Jacob Lawrence (1917-2000), que recebeu forma-ção, na adolescência, na Oficina de Pintura de Harlem e no Centro de Artes da Comunidade de Harlem. Lawrence deslocava-se com frequência ao centro, para observar todas as obras de arte públicas que a cidade tinha para oferecer, desde a exposição de Arte Primitiva no Museu de Arte Moderna aos têxteis mexi-canos e às novidades sobre os últimos estilos europeus. Em finais da década de 1930, Jacob Lawrence começou a executar grandes séries narrativas dedicadas a líderes negros, incluindo Harriet Tubman, Toussaint L'Ouverture e Frederick Douglas. As imagens eram pequenas e modestas, pintadas com tinta de cartaz sobre cartão ou contraplacado.

Lawrence ficou conhecido pela sua Série da Migração, iniciada em 1940. Em 60 imagens, Lawrence apresentou razões para as migrações dos negros para o norte e as suas experiências no norte e no sul. Ainda que se trate de uma sucessão de episódios diver

tidos, a comunicação das imagens processou-se, essencialmente, através da abstracção, como podemos ver pelo número 58 da série, intitulado No Norte o Negro Teve Melhores Condições de Educação (fig. 28.54). Três raparigas escrevem números num quadro de ardósia, mas não vemos os seus rostos; portanto, não as individualizamos. Pelo contrário, vemos números e braços que sobem cada vez mais alto, sugerindo elevação através da educação, e a ardósia limpa simboliza recomeço. Os vestidos de cores vivas das raparigas representam vida e felicidade, enquanto os ângulos formados pelo cabelo e pelos vestidos indicam ener -gia e um certo esforço. As obras de Lawrence representam, com frequência, um certo espírito negro, não um indivíduo, ou uma expressão de individualidade. O pintor interessou-se pelo espí -rito humano, que se move com energia em direcção a um futuro melhor. As suas imagens, na sua austeridade e no belo colorido, transmitem um conhecimento notável da psicologia, reforçado pelo espaço modernista das suas imagens. Aqui, a superfície lisa empurra as figuras para a superfície, exibindo-as em primeiro plano.

ARTE MEXICANA: A PROCURA DA IDENTIDADE NACIONAL

A revolução mexicana, que começou com o derrube do ditador General Porfirio Diaz e terminou em 1921, com a formação do governo reformador de Álvaro Obregon, desencadeou uma onda nacionalista na comunidade cultural, que se alimentou das tradições indígenas e rejeitou as influências europeias. Uma campanha de construção governamental propiciou num impres -sionante número de encomendas de murais que, por seu turno, formou uma escola de muralistas liderada por Diego Rivera, David Siquieros e José Clemente Orozco. Fossem socialistas ou comunistas, os muralistas proclamaram a arte do mural como sendo a vera arte do povo. Os muralistas mexicanos ganharam

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28.53. James Van Der Zee. Casal Vestindo Casacos de Pele de Guaxinim num Cadillac, Tirado na 127th Street, Harlem, Nova Iorque. 1932. Impressão em gelatina de prata