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"Aniquilando as Naturais Produções": Crítica Iluminista, Crise Colonial e as Origens do Ambientalismo Político no Brasil (1786-1810)* José Augusto Pádua "De todos os elementos que Deus criou para glória Sua, e para utilidade dos homens, nenhum é certamente mais digno de contemplação do que a Terra, Mãe comum de todos os viventes. Ela nos faz ainda hoje o mesmo agasalho que fizera aos nascidos no princípio do mundo. Nem a multidão imensa de famílias que a tem habitado, nem a terrível inundação e naufrágio que ela sofreu com todos os seus filhos criminosos, nem as diversas e espantosas revoluções que a tem muitas vezes quase lançado fora do seu eixo, nem a longa sucessão dos séculos que tudo muda e consome, são capazes de esterilizar o gérmen fecundo de sua fertilidade. Ela será sempre, até o fim do mundo, tão liberal e benéfica como foi no princípio....apesar da ingratidão dos homens, que parece que trabalham continuamente para destruir e aniquilar as suas naturais produções, e para consumir e enfraquecer a sua primitiva substância." José Gregório de Moraes Navarro (1799). I O autor das palavras transcritas acima atuava como magistrado no interior de Minas Gerais no final do século XVIII, momento em que a região vivia a decadência de um ciclo relativamente curto, apesar de historicamente marcante, de extração de ouro e de diamantes 1 . Pouco se sabe sobre a sua vida, além do fato de ter estudado direito na Universidade de Coimbra entre 1778 e 1782 (Moraes, 1969:257). Sabe-se também que serviu como juiz de fora em Paracatu do Príncipe, nos sertões ocidentais da capitania, sendo encarregado, em 1798, da instalação oficial daquela vila (Barbosa, 1971:340). No ano seguinte, Navarro publicou em Lisboa um pequeno e fascinante livro intitulado Discurso sobre o Melhoramento da Economia Rústica no Brasil 2 . Nesta publicação, após as formalidades de abertura comuns aos textos cultos da época – incluindo uma dedicatória ao

Aniquilando as Naturais Producoes Jose Padua

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"Aniquilando as Naturais Produções": Crítica Iluminista, Crise Colonial e as Origens do Ambientalismo Político no Brasil (1786-1810)*

José Augusto Pádua

 

"De todos os elementos que Deus criou para glória Sua, e para utilidade doshomens, nenhum é certamente mais digno de contemplação do que a Terra,Mãe comum de todos os viventes. Ela nos faz ainda hoje o mesmo agasalhoque fizera aos nascidos no princípio do mundo. Nem a multidão imensa defamílias que a tem habitado, nem a terrível inundação e naufrágio que ela

sofreu com todos os seus filhos criminosos, nem as diversas e espantosasrevoluções que a tem muitas vezes quase lançado fora do seu eixo, nem a

longa sucessão dos séculos que tudo muda e consome, são capazes deesterilizar o gérmen fecundo de sua fertilidade. Ela será sempre, até o fim do

mundo, tão liberal e benéfica como foi no princípio....apesar da ingratidão doshomens, que parece que trabalham continuamente para destruir e aniquilar as

suas naturais produções, e para consumir e enfraquecer a sua primitivasubstância."

José Gregório de Moraes Navarro (1799).

 

I

O autor das palavras transcritas acima atuava comomagistrado no interior de Minas Gerais no final do séculoXVIII, momento em que a região vivia a decadência de umciclo relativamente curto, apesar de historicamentemarcante, de extração de ouro e de diamantes1. Pouco sesabe sobre a sua vida, além do fato de ter estudado direitona Universidade de Coimbra entre 1778 e 1782 (Moraes,1969:257). Sabe-se também que serviu como juiz de fora emParacatu do Príncipe, nos sertões ocidentais da capitania,sendo encarregado, em 1798, da instalação oficial daquelavila (Barbosa, 1971:340). No ano seguinte, Navarro publicouem Lisboa um pequeno e fascinante livro intitulado Discursosobre o Melhoramento da Economia Rústica no Brasil2. Nestapublicação, após as formalidades de abertura comuns aostextos cultos da época – incluindo uma dedicatória ao

príncipe real e um poema arcadista em que imaginava apossibilidade de uma idade de ouro para o Brasil, um tempoem que Astréia pudesse novamente retornar ao convívioterreno –, o autor formalizou, pela primeira e única vez,até onde se conheça, suas reflexões sobre o contraste entrea generosidade da terra e a ingratidão dos homens, que agemcontinuamente no sentido de "destruir e aniquilar as suasnaturais produções". Mas a visão desse contraste não ficavarestrita ao plano genérico: enveredava também porimportantes observações críticas quanto à conduta doscolonizadores portugueses no país, os quais, nas palavrasde Navarro:

"[...] fundaram sucessivamente grandes cidades, vilas notáveis eoutros muitos lugares mais pequenos. Mas como se acham hoje todasessas antigas povoações? Como corpos desanimados. Porque os lavradorescircunvizinhos, que por meio da agricultura lhes forneciam os gênerosde primeira necessidade, depois de reduzirem a cinza todas as árvores,depois de privarem a terra da sua mais vigorosa substância, a deixaramcoberta de sapé e samambaia, que é uma espécie de grama [...] eabandonando as suas casas com todos os seus engenhos, oficinas eabegoarias, se foram estabelecer em novos terrenos" (Navarro,1799:11).

Apesar de constatar o estado de abandono em que seencontravam muitas povoações e centros produtivos dacolônia, como conseqüência da ação destrutiva dos homenssobre o meio natural, o texto de Navarro não chega aafirmar o colapso como destino inexorável de qualqueresforço de assentamento humano. Ao contrário, ele antevê apossibilidade de um progresso social duradouro, que superea tendência para a ação destrutiva e estabeleça uma condutaambiental benéfica e inteligente:

"Suponhamos agora que os homens, mais bem aconselhados, tenhamconservado as árvores frutíferas e úteis e que, fazendo dos diferentesterrenos o uso que lhes fosse mais próprio e mais natural, ajudaram afecundidade da terra pelos meios que a experiência e a indústriamostraram ser os mais convenientes. Não seriam então muito maisfelizes? Não seria para eles a terra tão liberal e benéfica como foino princípio para os seus primeiros povoadores?" (idem:9).

Não é difícil constatar que as idéias contidas na aberturadesse discurso se apresentam aos olhos do observador atualcomo de todo inusitadas, se considerarmos o momento e olugar em que foram concebidas. Sob a roupagem de uma

narrativa própria ao estilo da época – em que se misturamcitações bíblicas, elementos de história natural ereferências greco-romanas – o que emerge do texto deNavarro se assemelha a um conjunto de temas e percepçõesque apenas costumamos associar ao mundo contemporâneo.Temas e percepções familiares ao debate ecológico dasúltimas décadas do século XX, que, para muitos, só vieram àluz a partir das grandes transformações – tanto objetivasquanto subjetivas – decorrentes da expansão planetária dacivilização urbano-industrial. Alguns aspectos do textoparecem estabelecer uma surpreendente conexão entre omagistrado mineiro do final do século XVIII e certasquestões-chave da cultura e da política atual.

Navarro apresenta a Terra, por exemplo, como uma potênciabenéfica e criadora em sentido global e abstrato. Note-seque não se trata de elogiar a fertilidade de uma regiãoespecífica, mas sim de afirmar a fecundidade permanente daTerra como uma totalidade. O planeta adquire sentido depersonalidade, gênero feminino e uma força de sobrevivênciae regeneração tal que supera todos os inúmeros percalços edesafios surgidos ao longo do tempo. Esse planeta, poroutro lado, sofre um antagonismo potencial por parte dahumanidade. A destrutividade ambiental dos seres humanos nãoderiva de ações fortuitas e ocasionais, mas manifesta umatendência básica para "continuamente" consumir a sua"primitiva substância". É bem verdade que, em outra partedo texto, ele argumenta que essa tendência aparece commaior intensidade nas sociedades novas e imaturas, podendoreduzir-se com o tempo através do trágico aprendizado dassuas conseqüências. No caso do Brasil colonial – umasociedade vivendo "como em sua infância" (idem:8) –observava-se um momento ascendente de devastação, cujosresultados já se faziam sentir de forma muito concreta. Oproblema já deixara de ser apenas ético – a ingratidão doshomens para com a natureza – para se tornar eminentementepolítico, uma ameaça à sobrevivência coletiva do esforçocolonizador. Navarro logrou perceber, no seu contextohistórico específico, a emergência no mundo moderno do temaextremamente atual, expresso na bela imagem de MichelSerres, da passagem "da guerra de todos contra todos para aguerra de todos contra tudo" (Serres, 1991:24).

Existe um terceiro aspecto do texto que também prenuncia odebate político contemporâneo. Trata-se da busca de umprogresso econômico que possa conviver de forma equilibradacom o meio natural, passando, inclusive, de uma posturaativamente maléfica para outra ativamente benéfica. Erapossível conhecer o uso "mais próprio e natural de cadaterreno" e agir no sentido de "ajudar a fecundidade daterra". No caso do Brasil, aliás, essa deveria ser a basepara uma renovação benfazeja da vida econômica e social.Mais especificamente, Navarro vai propor a adoção de trêsmedidas fundamentais que poderiam induzir a essarenovação : (a) a introdução do arado, para recuperar osolo desgastado e dotar a agricultura de um sentido depermanência oposto ao nomadismo das queimadas; (b) areforma das fornalhas, de forma a reduzir o consumo delenha e aumentar a produtividade dos engenhos; e (c) aconservação das matas, pelo estabelecimento de reservasflorestais e do incentivo ao plantio de árvores lenhosas,frutíferas e medicinais (Navarro, 1799:15-19).

A introdução do arado simbolizava a promoção de umaagricultura cuidadosa e enraizada. As terras antigas, quehaviam sido abandonadas às ervas daninhas por causa dasucessão de práticas predatórias, poderiam ser recuperadasatravés do seu uso: "tornem eles [os lavradores] outra vezpara as suas taperas, e acharão muitos tesouros escondidosdebaixo das raízes do sapé e da samambaia. O ferro do aradosó é capaz de descobrir estes tesouros, e de extinguiraquelas raízes venenosas e inúteis que têm chupado toda asubstância da terra". A introdução do arado vivificaria"uma grande porção de terras próximas às grandes povoações,que estavam como amortecidas e abandonadas". Com asfazendas mais próximas das povoações seria possível reduzira carestia no preço dos alimentos, que aumentava na MinasGerais de fins do século XVIII. O trato mais adequado dosterrenos permitiria desenvolver as culturas da cana e dofeijão, entre outras. Além disso, seria possível aclimatarno Brasil árvores e animais trazidos da Europa, entre estesespecialmente os carneiros e as ovelhas. Os benefícios doarado estender-se-iam também ao campo social, diminuindo otrabalho dos negros escravos. Um escravo apenas,acompanhado de um arado puxado por bois, seria capaz de

lavrar tanta terra quanto vinte escravos munidos deenxadas. Devido ao trabalho mais suave, os escravos tornar-se-iam mais "contentes, sadios e duráveis" (idem:14 e 18).

A conservação das matas – outro aspecto fundamental de suaproposta – iniciar-se-ia pela reforma das fornalhas, cujatecnologia rudimentar provocava um consumo excessivo delenha. Seria necessário também utilizar o bagaço da canapara alimentar as caldeiras bem como promover a plantaçãode árvores de crescimento rápido, capazes de "produzir empoucos anos lenhas para fabrico da lavoura". Osfazendeiros, além disso, deveriam ser incentivados aplantar árvores frutíferas, palmitos e plantas medicinais.Outra medida seria a "conservação de pequenos bosques juntodas cidades e vilas, para o provimento das lenhas emadeiras necessárias para usos domésticos e públicos".Esses bosques "devem ser considerados como patrimôniopúblico, arrendados e administrados por conta dosconselhos", sendo o seu produto "aplicado para as obraspúblicas". "Mais séria consideração", por fim, deveria serdada aos arvoredos próximos do mar e dos rios navegáveis,que deveriam ser conservados para "provimento das madeirasnecessárias aos navios e usos públicos". Essas matas seriamdemarcadas e guardadas como "patrimônio público do estado".O descuido com a sua conservação poderia gerar no futuro um"dano irreparável" (idem:18-19).

Não é difícil perceber, adiantando um ponto que serádiscutido na seção seguinte, a principal matriz teórica queinforma esse projeto: a economia política fisiocrática, comsua leitura agrarista do ideal do progresso típico daIlustração (Grandamy, 1973). É significativo o fato de oprograma econômico de Navarro não incluir a mineração, queconstituía a principal fonte de riqueza da Minas Geraissetecentista. Essa omissão não foi casual. Navarro apostavana "economia rústica" do país. A ênfase na vida ruralestava no cerne da sua sensibilidade não apenasfisiocrática como também arcadista. A economia das minas,de fato, provocava-lhe antipatia, inclusive do ponto devista ambiental. Ele chega a criticar os homens que"principiaram a despedaçar a terra para tirar das suasentranhas aqueles tesouros que lisonjeavam mais a suaambição". Essa conduta teria prejudicado os moradores das

cidades, que tiveram de comprar "todos os gênerosnecessários para a sua subsistência por maiores preços, aproporção da distância dos lugares das suas exportações"(Navarro, 1799:12). Trata-se, como se vê, da críticafisiocrática de que a atividade mineira era inconstante,provisória e terminava por desorganizar o sistema de preçose a produção primária das riquezas. O futuro do Brasil, navisão de Navarro, não precisava desse tipo de risco. Aadoção do conjunto de medidas apontado acima já seriasuficiente para fazer do país "o mais rico e maisafortunado de todo o mundo", tornando-o capaz de "colhersem custo o trigo louro, o doce mel e o bálsamo cheiroso"(idem:19).

 

II

As temáticas discutidas por Navarro não foram inéditas nocontexto do pensamento europeu e colonial da época, comoveremos adiante, mas estavam longe de poder serconsideradas triviais. No caso do pensamento brasileiro, oumais propriamente do que se conhece sobre a história dessepensamento, elas soam quase que inverossímeis. O fato de,no final do século XVIII, estarem sendo discutidas no paísidéias que, de alguma forma, se aproximam da reflexãoecológica contemporânea indica que estamos diante de umfenômeno intelectual instigante. É verdade que se poderiaimaginar ser o caso de Navarro uma realidade isolada eindividual, um exemplo inusitado de iluminaçãoecovisionária nos antigos sertões mineiros.

As evidências documentais apresentadas a seguir, noentanto, demonstram que não estamos diante de um fenômenoisolado, mas sim de uma tradição intelectual coerente quevem sendo ignorada pelas histórias internacionais dopensamento ecológico e também – o que é mais surpreendente– pela própria memória cultural brasileira. A descoberta daexistência de uma antiga linhagem de pensadores brasileirospreocupados com as conseqüências políticas da destruiçãodas florestas, do esgotamento dos solos, dos desequilíbriosclimáticos e de outros danos ambientais, revela o quantoainda desconhecemos sobre a gênese da sensibilidade

ecológica no mundo moderno. No período que vai de 1786 a1888, segundo as investigações que pude realizar, pelomenos 38 autores brasileiros escreveram sobre essesproblemas, focalizando sempre as conseqüências socialmentenegativas da degradação do ambiente natural (Pádua, 1997).A relevância do resgate histórico desses autores ultrapassao quadro exclusivamente brasileiro, pois apresentaelementos significativos para a análise global de duasquestões básicas: (1) em que momento e contexto históricocomeçaram a surgir preocupações ambientais consistentes nomundo moderno? e (2) que arcabouço teórico embasou efomentou essas preocupações?

A resposta para essas questões ganhou nova luz a partir daspesquisas de Richard Grove, que estabelecem forte conexãoentre as situações coloniais e a gênese da críticaambiental (Grove, 1990; 1995). O autor argumenta, a partirde vasta documentação primária, que o início de umapercepção mais intensa e abrangente da problemáticaambiental, especialmente a partir do século XVIII, se deuno espaço das colônias européias nos trópicos. Eledemonstrou que, em certas regiões, como a ilha Mauritius,algumas ilhas do Caribe, a Índia e o sul da África – seusestudos não abarcaram a América Latina – a percepção dadestrutividade ambiental adquiriu força entre naturalistase administradores dos séculos XVIII e XIX, estimulando osurgimento de políticas públicas definidas para enfrentar oproblema. Os sistemas econômicos de grande escalaimplantados nas colônias tropicais traduziram-se em rápidase profundas perturbações demográficas, biológicas egeológicas. A brutalidade desse processo gerou umaflagrante degradação ambiental, desvelada pelo contrasteentre a velocidade da dinâmica destrutiva e o ambientenatural dos trópicos, complexo e pouco familiar aoseuropeus. As primeiras análises políticas sobre ainsustentabilidade ambiental dos sistemas produtivoscoloniais surgiram da aplicação de certas fontes teóricasemergentes na cultura européia a essa paisagem dedegradação, inicialmente mais visível no espaço concentradodas ilhas. Essas fontes teóricas, por outro lado, sãobasicamente as mesmas que iremos encontrar nos primeiroscríticos ambientais luso-brasileiros: a doutrina econômica

fisiocrática e a ciência natural de Lineu, Buffon e Duhameldu Monceau.

O caso brasileiro, entretanto, apresenta particularidadesnesse quadro comparativo. Nos exemplos analisados porRichard Grove, a problemática ambiental era pensada eenfrentada por intelectuais e administradores oriundos dasmetrópoles colonizadoras, geralmente funcionários decompanhias de comércio e de governos coloniais. No Brasil,ao contrário, essa problemática foi abordada por indivíduosnascidos no país, membros da elite local educados naEuropa. Alguns desses personagens, inclusive, utilizaram otema da destruição ambiental como argumento de crítica aocolonialismo e de defesa da independência. Como se vê, suamotivação política foi bastante diversa da dos intelectuaiscitados por Grove, apesar de as influências teóricas seremsemelhantes.

Para entender o contexto cultural no qual esse tipo depensamento pôde emergir no Brasil, inclusive na obra deNavarro, é necessário reconstituir as linhas históricas quepropiciaram o nascimento de uma discussão política sobre ocaráter ambientalmente predatório da formação socialbrasileira. Até o final do século XVIII, durante todo operíodo colonial, foram muito poucas as vozes que lograramperceber essa realidade, e menos ainda as que chegaram acondená-la. A partir de 1780, porém, começou a delinear-seum movimento teórico nessa direção, com epicentro bastantedefinido: a Universidade de Coimbra posterior à reformapombalina de 1772, quando a academia portuguesa começou ase afastar do domínio da tradição escolástica paraaproximar-se das novas idéias de filosofia natural e deeconomia política que então se desenvolviam na Europa. Aintrodução do ideário ilustrado em Portugal ou, maisespecificamente, de uma certa leitura desse ideário, foipromovida pelo próprio Estado, como parte de um projetosemi-oficial de modernização cultural e econômica. Digo"semi-oficial" porque tal projeto, lançado durante o longogoverno do Marquês de Pombal (1750-1777), nunca logrouobter a adesão completa e permanente da elite dirigente doreino. Seu trajeto foi sinuoso, cheio de avanços e recuos.Seus promotores enfrentaram sempre uma convivênciaconflituosa com os representantes e beneficiários das

idéias e práticas tradicionalistas. O apoio dos reisoscilava entre os dois campos que em geral dividiam osgabinetes ministeriais. Não poucas vezes um ministroprogressista era sucedido por um tradicionalista, ou vice-versa. Essa condição semi-oficial, somada à insegurança dasua base de sustentação, ajudou a constituir uma culturailustrada maleável e politicamente moderada. As luzes eraminterpretadas mais como um instrumento prático de progressocientífico e econômico do que como uma filosofia deemancipação da humanidade. O iluminismo contestatário,radical e republicano, nesse contexto, teve uma presençabastante limitada no mundo luso-brasileiro da época.

No final do século XVIII, contudo, o desenvolvimento dasciências naturais em Portugal já seguia um caminho mais oumenos irreversível, até mesmo por força da sua importantedimensão econômica. A extração de metais preciosos noBrasil, importante fonte de receitas para a metrópole,apresentava sinais de esgotamento, sendo cada vez maisevidente a impossibilidade de levá-la adiante a partir dosmétodos rudimentares que vinham sendo utilizados. O estudoda geologia e das novas tecnologias de mineração tornou-seprioridade, representando uma esperança de salvaçãoeconômica pela descoberta de novas minas e revitalizaçãodas antigas. Por outro lado, as crises revolucionárias queestavam desarticulando provisoriamente importantes centrosde agricultura colonial, como no caso do Caribe francês,abriam novos espaços de competição internacional, quepodiam ser aproveitados pela agricultura brasileira. Mas asmentes mais lúcidas percebiam que o verdadeiro progresso daagricultura brasileira, marcada pela baixa produtividade,passava por dois movimentos que tinham o seu eixo napesquisa científica. Em primeiro lugar, era precisopromover no país a "aclimatação" de espécies exógenas quepudessem ter valor econômico. Este era, aliás, um temacentral da agenda econômica do final do século XVIII. Atransposição de espécies de uma região do globo para outra,com o estabelecimento de jardins botânicos para garantirsua sobrevivência, estava na ordem do dia de potênciascoloniais, dando origem a vários episódios de competição eespionagem botânica (Sevcenko, 1996). O atraso de Portugalnesse campo era patente. Ainda se ensaiava a criação de

jardins botânicos no Brasil do início do século XIX3,quando até mesmo na vizinha Guiana – que certamente não eraa principal colônia da França – já estava consolidado desdeo século anterior um magnífico jardim denominado "LaGabrielle" (Dean, 1995:126)4. Além disso, fazia-se urgenteestudar melhor a natureza brasileira, investigando autilidade econômica das espécies nativas aindadesconhecidas. Nesse ponto, igualmente, o império lusoestava muito atrasado. Desde o século XVI estavam sendopublicados na Europa inventários sistemáticos da utilidadede minerais, vegetais e animais encontrados em todo omundo, especialmente nas colônias orientais. Do riquíssimoterritório brasileiro, porém, praticamente nada se conheciade sistemático, pois as informações desagregadas e inexatasdos cronistas estavam muito aquém do que seria necessário.A economia colonial no Brasil, de fato, praticamente haviaignorado as espécies locais, optando por utilizar oterritório – e a fertilidade temporária propiciada pelaqueima crescente da sua enorme biomassa florestal – como ummero substrato para a implantação monocultural de espéciesexóticas provenientes dos trópicos orientais.

A percepção da necessidade urgente de promover o estudoregular da natureza brasileira adquiriu força naUniversidade de Coimbra e na Academia Real das Ciências deLisboa, esta criada em 1779, centros de conhecimento quecomeçaram a receber um número crescente de jovens da elitesocial do Brasil. A grande maioria desses estudantes nãochegou a adotar posteriormente uma atividade intelectualsistemática. A chamada "geração ilustrada" luso-brasileira,no entanto, constituída por um número reduzido dessesestudantes, tornou-se o primeiro grupo de intelectuaisbrasileiros formado no estilo de saber científico e noespírito pragmático e progressista que caracterizava ailustração européia (Dias, 1969; Maxwell, 1973).

No interior desse grupo minoritário – constituindo-se umaminoria dentro da minoria – emergiram os primeirosintelectuais sistematicamente preocupados com a destruiçãoambiental no Brasil. O principal mentor desse grupo foi onaturalista italiano Domingos Vandelli (1735-1816),convidado pelo governo português para participar da reformauniversitária coimbrense. A natureza desse convite não foi

casual: Vandelli representava um iluminismo italiano maisacostumado a conviver com o catolicismo e com oconservadorismo aristocrático. Mesmo assim, tendo em vistao tradicionalismo que imperava na cultura portuguesa, seuimpacto intelectual foi profundamente renovador (MuntealFilho, 1993). Ele tornou-se o grande mestre do naturalismoportuguês, formando toda uma geração de estudiosos, entreos quais muitos brasileiros. Vários dos discípulos deVandelli, sob sua orientação direta, percorreram o interiorde Portugal e de suas colônias em missão de coleta epesquisa científica5.

Vandelli difundiu em Portugal um ideário intelectual que,combinando a doutrina econômica fisiocrata com a economiada natureza, ensinava "segundo o livro de Buffon e o‘Systema Naturae’ de Lineu" (Ferreira apud Figueirôa,1997:45). A corrente científica da "economia da natureza",sistematizada pelo naturalista sueco Lineu – que secorrespondia diretamente com Vandelli – constituiu um elofundamental na gênese da perspectiva científica que, emmeados do século seguinte, veio a ser chamada de "ecologia"(Worster, 1994: capítulo 2). Nela pressupunha-se aexistência de um sistema de equilíbrios interdependentesentre as diversas partes do mundo natural. Nesse sistema,cada elemento possuía uma função relevante para a dinâmicacoletiva. Um texto escrito em 1760 por Lineu em colaboraçãocom H. Wilckem, por exemplo, afirmava que

"[...] a partir do que nós sabemos, é possível julgar quão importanteé cada uma das disposições da natureza, de forma que se faltasse umaúnica espécie de minhoca a água estagnante alteraria o solo e aumidade faria tudo apodrecer. Se uma única função importante faltasseno mundo animal, nós poderíamos temer o maior desastre no universo"(Linné, 1972:118).

Esse tipo de visão fundamentou, na época, o surgimento devárias análises críticas quanto ao impacto da ação humanasobre o sistema natural. Foi na linha de pensamento daeconomia da natureza, por exemplo, que se difundiu ainfluente "teoria do dessecamento". Desenvolvida a partirdo esforço acumulado de naturalistas como Stephen Halles,Buffon e Duhamel du Monceau, essa teoria demarcou aprimeira concepção científica moderna sobre o risco demudanças climáticas antropicamente induzidas, relacionando

a destruição da vegetação nativa em determinadosterritórios com a redução da umidade, das chuvas e dosmananciais de água (Grove, 1995:164).

Foi exatamente a partir de marcos teóricos como este queVandelli começou a criticar, de forma explícita erecorrente, a grande destruição ambiental que estavaocorrendo no mundo lusitano. Ao analisar a situação dosbosques do Reino em "Memória sobre a Agricultura dePortugal e de suas Conquistas", publicada em 1789, elecondena o fato de que "raros são os que se plantam, e nosantigos não há todo o cuidado necessário para a suaconservação e aumento" (Vandelli, 1990a [1789]:129). Aperda da cobertura vegetal dos terrenos montuosos, por suavez, fazia com que eles se tornassem "cada vez maisestéreis" em decorrência da erosão. O desmatamento impediaque esses terrenos fossem "sustentados em vários planospara impedir que as águas desçam com muita força", águasque "não somente consigo levam os sais e óleos, masjuntamente a terra mais fértil" (ibidem).

A crítica adquire um tom bem mais exaltado, porém, quando oautor passa a discutir a degradação ambiental que estavaocorrendo no Brasil, já que a colonização do país logravacombinar em uma mesma realidade dois elementos negativos eaparentemente opostos: a subocupação e superexploração. Oprogressismo econômico de Vandelli, fundado no agrarismofisiocrata, revoltava-se com o fato de o "imenso país doBrasil" estar "quase despovoado e inculto"6. Revoltava-semais ainda porque as riquezas naturais do território, mesmocom esta ocupação limitada do espaço, estavam sendoconstantemente destruídas :

"[...] vai-se estendendo a agricultura nas bordas dos rios no interiordo país, mas isso com um método que com o tempo será muitoprejudicial. Porque consiste em queimar antiquíssimos bosques cujasmadeiras, pela facilidade de transporte pelos rios, seriam muito úteispara a construção de navios, ou para a tinturaria, ou para osmarceneiros. Queimados estes bosques, semeiam por dois ou três anos,enquanto dura a fertilidade produzida pelas cinzas, a qual diminuídadeixam inculto este terreno e queimam outros bosques. E assim vãocontinuando na destruição dos bosques nas vizinhanças dos rios"(idem:131).

Em um outro texto, também publicado em 1789, "Memória sobreAlgumas Produções Naturais das Conquistas", Vandellicritica o desflorestamento sob um outro prisma. Não eraapenas um método agronômico incorreto, mas também umaprática que destruía elementos ainda desconhecidos da floratropical, o que hoje chamaríamos de "biodiversidade",abortando as possibilidades de uso futuro que poderiamadvir da pesquisa científica:

"Entre as plantas das conquistas existem muitas desconhecidas dosbotânicos, principalmente árvores de muita utilidade, ou para aconstrução de navios, casas e trastes, ou para a tinturaria. Porém noBrasil muitas delas com o tempo se farão raras e dificultoso o seutransporte...E assim se destroem imensas árvores úteis e de fácilcondução." (Vandelli, 1990b [1789]:147)

Note-se que, no enfoque de Vandelli, como também no deautores brasileiros discutidos adiante, não existe nenhumculto à natureza. A destruição do meio natural é criticadapor motivos utilitários e políticos, fundamentados em umavisão claramente pragmática e antropocêntrica. Aagricultura de queimadas é ruim por ser insustentável alongo prazo. A extinção das espécies arbóreas é indesejávelpor impedir a sua utilização em navios, casas etc. Aspráticas coloniais eram incapazes de promover o povoamentoe o progresso do país. A correta construção de uma economiae de uma sociedade no Brasil não poderia se fundar sobreuma base tão precária e devastadora. Esse precarismo, poroutro lado, não se revelava apenas nas práticas ambientais,mas também nas estruturas sociais. Vandelli vai inaugurar,mesmo que de forma implícita e cuidadosa, uma crítica aocaráter escravista da economia colonial brasileira. Eleobserva, por exemplo, que "o trabalho de toda a agriculturaé encarregado aos escravos pretos, não havendo branco algumque se digne ser lavrador, principal causa porque no Brasilnunca poderá ter grande aumento a agricultura" (Vandelli,1990a [1789]:131). Em outro trabalho, ao sugerir um esforçopara "amansar e civilizar os índios e costumá-los àagricultura", ele vai justificar essa política como sendofundamental para a economia do país "não necessitar detantos negros, os quais com o tempo devem encarecer de modoque pouca conveniência se terá em transportá-los para oBrasil" (Vandelli, 1990c [1789]:145). Esses temas serãoaprofundados mais tarde por vários dos seus discípulos

brasileiros, especialmente por José Bonifácio7, conformandouma tradição de pensamento que associava crítica ambientale crítica socioeconômica.

É importante notar que Vandelli nunca esteve no Brasil:suas críticas se fazem a partir das informações enviadaspor seus correspondentes. Suas preocupações construíam-sena convivência próxima com um grupo de intelectuaisbrasileiros. Tal dinâmica reforçava-se na medida em quecada um desses intelectuais retornava ao país natal após ofim dos seus estudos europeus. Foi exatamente nessecontexto que começaram a surgir os primeiros escritos doque estou chamando de "ambientalismo político"8 no Brasil.O fato, por si significativo, de esses estudiosos não seterem concentrado em um ponto apenas do território,espalhando-se por diferentes capitanias, aumentou aindamais a riqueza e a diversidade das suas observações. Osprincipais nomes desse período inicial foram Manuel Arrudada Câmara (1752-1811), em Pernambuco; Baltasar da SilvaLisboa (1761-1840) e Manuel Ferreira da Câmara Bittencourte Sá (1762-1835), na Bahia; José Gregório de Moraes Navarro(?) e José Vieira Couto (1752-1827), em Minas Gerais;Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira (1750-1824), noMaranhão e depois em São Paulo; João Severiano Maciel daCosta (1769-1833), no Rio de Janeiro. José Bonifácio deAndrada e Silva (1763-1838), por certo o personagem maisproeminente do grupo, diferenciou-se dos demais por seuretorno tardio ao Brasil. Enquanto os outros nomesretornaram de seus estudos europeus no final do séculoXVIII e início do XIX, Bonifácio permaneceu envolvido cominúmeras tarefas acadêmicas e administrativas em Portugal.O eixo dos seus escritos ao longo desse período, inclusiveno que tange ao problema da destruição ambiental, estavaconcentrado na realidade européia. Somente após o seuretorno, em 1819, é que o Brasil passou a hegemonizar assuas reflexões sobre a economia da natureza. Essasreflexões ganharam importância política, obviamente, namedida em que Bonifácio tornou-se líder do processo queconduziu à independência do país. A trajetória deBonifácio, por ter adquirido sua maior expressão em ummomento histórico posterior ao que está sendo discutido,não será analisada no presente artigo.

É importante observar, diante do que foi discutido acima,que os temores pela destruição do ambiente naturalbrasileiro, no contexto do debate ilustrado em Portugal,não ficaram restritos ao espaço acadêmico, começando aaparecer também na consciência de alguns dirigentespolíticos. Nesse ponto, como em tantos outros, destacou-sea figura de Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Marinhae do Ultramar entre 1796 e 1801. Não se pode esquecer que,desde o final do século XVII, vivia-se na Europa um debateinternacional sobre a importância política dos recursosnaturais. As diferentes potências estavam desenhandolegislações e políticas públicas para deter a destruiçãodesses recursos, inclusive nos espaços coloniais. A Europaconsumia-se em conflitos militares, obrigando os Estados aagirem no sentido de garantir o suprimento de madeira paraos seus navios de guerra (Albion, 1926). As idéias deCoutinho sobre a conveniência de promover uma federalizaçãodo império luso, tendo o Brasil como sede da Coroa,aumentaram ainda mais suas preocupações com o destino doterritório brasileiro (Maxwell, 1995 [1973]:257). Aspotencialidades naturais do Brasil deveriam ser estudadasatravés de expedições in situ e do envio de espécimes paraserem examinados em Portugal. Sua agricultura deveria serestimulada pela diversificação de cultivos, pelaaclimatação de plantas exógenas, pelo desenvolvimentotecnológico e pela educação dos lavradores9. Sua mineraçãodeveria ser revitalizada pela introdução de técnicas econhecimentos geológicos refinados. Era necessário, porfim, formar uma elite intelectual e administrativa deorigem brasileira, que pudesse dirigir o progresso do paíssem perder sua fidelidade ao soberano português. Coutinhotrabalhou pessoalmente para cativar um conjunto seleto dejovens brasileiros10; tornou-se seu protetor, apoiou seusestudos, ouviu seus conselhos e opiniões, e incumbiu-o detarefas científicas e políticas. Muitos dos autores quefundaram o ambientalismo político no Brasil compartilhavamdessa dupla condição de discípulos de Vandelli e protegidosde Sousa Coutinho.

Preparar o Brasil para futura sede do Império exigia que sesuperasse a exploração bruta e rudimentar que dominou suaformação colonial. A compreensão de Coutinho sobre esse

ponto fica clara na carta de instruções por ele enviada aManuel Ferreira da Câmara Bittencourt e Sá, em 1800, quandoeste último realizou uma viagem à Bahia para cuidar denegócios da sua família. Este personagem, sobre quem sefalará mais tarde, era um dos seus mais diletos protegidos.Foi o companheiro de José Bonifácio em um longo programa deestudos geológicos, com início em 1790, realizado em váriospaíses da Europa. Ferreira da Câmara foi nomeado, em 1800,para o cargo de Intendente Geral das Minas e Diamantes emMinas Gerais e Serro do Frio, sendo o primeiro brasileiro aocupar essa posição. No ano seguinte, José Bonifácio foinomeado Intendente Geral das Minas e Metais de Portugal.Coutinho, na carta de instruções mencionada, que escreveantes da nomeação de Ferreira da Câmara, o incumbe de umconjunto de tarefas ilustrativas do clima cultural que estásendo descrito. Ele deveria, entre outras atividades,realizar prospecções em distritos onde pudessem haver novasminas; trabalhar com o jardim botânico local para aclimatara fruta-pão do Pará; e incentivar, por intermédio daintrodução de novas tecnologias, as culturas da pimenta, dacanela, do cânhamo, da mandioca e do açúcar. Uma tarefaespecialmente interessante, para efeito do presente artigo,dizia respeito ao enfrentamento da destruição florestal:

"Encarrega S.A.R. a V.S.a., ainda que interessado como proprietário,de examinar os planos e propostas estabelecidos para a conservação dasmatas e arvoredos de Cairu, e a observar se com efeito osproprietários têm direito a fazerem imensas derrubadas e horrorosasqueimadas... Sobre as derrubadas e queimadas, a benefício da culturada mandioca, ordena S.A.R. a V. S.a. que abra os olhos aosproprietários, e que lhes faça ver que grandes vantagens tirariam desubstituir, a um tão absurdo método, o melhor sistema de uma culturaregular de que se aproveitam as Antilhas, e conseguem produçõesabundantes de mandioca."

No final dessa mesma carta, Coutinho acrescentavaimportante advertência, que resumia sua posição básicasobre a questão do uso dos recursos naturais:

"E que tenha sempre presente aquele princípio de eterna verdade: queMinas e Bosques necessitam de ser regulados por princípioscientíficos, em que se ache calculada a sua utilidade geral, e nãoabandonados aos interesses dos particulares que, nestes casos, e sóneles, podem contrariar a pública utilidade, formando uma notávelexceção aos princípios da economia política" (Coutinho, 1800).

Essas passagens apresentam uma série de elementos muitosignificativos. Os plantadores de mandioca da localidade deCairu, na região de Ilhéus, estavam destruindo a MataAtlântica. Era preciso encontrar um critério justo paraavaliar os seus direitos perante o interesse do Estado deconservar esses recursos florestais. A melhor maneira deresolver o problema seria o esclarecimento aosproprietários, que provavelmente desconheciam a existênciade técnicas mais modernas e menos destrutivas. A referênciaàs Antilhas revela que o autor estava atento aodesenvolvimento de práticas de conservação ambiental emoutras regiões tropicais, almejando sua aplicação noBrasil. Mas o aspecto mais significativo da visão deCoutinho, do ponto de vista teórico, encontra-se na suadiscussão sobre os limites do liberalismo. Ele admitia,segundo os "princípios da economia política", que osinteresses particulares normalmente não entravam emconflito com o interesse público. As doutrinas de Smith jácomeçavam a ganhar espaço de dominância entre osintelectuais luso-brasileiros, superando a tradiçãopombalina de intervencionismo mercantilista. O ministroafirma, porém, a existência de uma "notável exceção", quepassa justamente pelo que hoje chamaríamos de questãoecológica. Aqui, o potencial de conflito entre a ação dosparticulares e a "pública utilidade" é bastante grande. Poresse motivo seria necessário que o poder público regulasseo acesso aos recursos naturais segundo "princípioscientíficos" que levassem em conta a sua utilidadecoletiva, em vez de deixá-los "abandonados" nas mãos dosparticulares. Essa tese constituiu, de fato, o eixo centraldo nascente ambientalismo político no Brasil.

 

III

A partir do final do século XVIII, segundo a dinâmicahistórica já enunciada, diversos intelectuais nascidos noBrasil começaram a publicar trabalhos em que discutiamtemas ambientais semelhantes aos enfocados por Vandelli eCoutinho, passando a elaborar sua própria interpretaçãodessa problemática. Para entender a posição geral dessegrupo, evitando interpretações equivocadas, é importante

fazer alguns comentários gerais. Inicialmente, é precisoentender qual era a posição básica desses intelectuaisdiante da crise colonial brasileira. Cada dia ficava maisclara a impossibilidade de manter a estabilidade social epolítica do país através dos velhos métodos de dominaçãocolonial. As tecnologias e práticas sociais herdadas dacolônia, além disso, revelavam-se incapazes de promover umautilização econômica mais intensa do rico territóriobrasileiro. Diante dessa realidade, algumas alternativaspolíticas começavam a ser debatidas. Esse debate percorriaum espectro que ia da defesa conservadora do colonialismopuro (fundado no "exclusivo metropolitano") à argumentaçãoem favor de um federalismo luso-universal, onde cadaterritório seria considerado, segundo a expressão de SousaCoutinho, como uma "província da monarquia" (Mendonça,1958:277). A idéia da emancipação completa do Brasil estavaquase ausente do debate, pelo menos de forma explícita. Atese defendida pelo grupo de autores que está sendoanalisado, em sentido geral, era a do rompimento com oantigo padrão colonial para promover o progresso específicoda sociedade brasileira, sem cortar os laços com o Estadoportuguês. Naquele momento de transição histórica – comtoda a ambigüidade que esses costumam apresentar – começavaa aparecer uma certa identidade intelectual "brasileira". Olugar de nascimento, nesse complexo jogo de referências,não era um dado irrelevante. Os autores mencionadosapresentavam-se freqüentemente como brasileiros, apesar dasua integração na polis portuguesa. É significativo observarque, no início da década de 20, quando se colocou o dilemade romper os laços políticos com Portugal, todos os membrosdo grupo que ainda estavam vivos participaram ativamente domovimento pela constituição de um Estado monárquicoindependente.

Um segundo ponto a ser esclarecido é que a maioria dosintelectuais identificados com a ilustração luso-brasileiranão chegou a cultivar preocupações ambientais, ou pelomenos a expressá-las no papel. Era perfeitamente possívelincorporar elementos do ideário iluminista, tais como oprogressismo econômico e a eficácia tecnológica, sem queisso se associasse a algum tipo de sensibilidade relativaao tema da destruição ambiental. Esta sensibilidade foi claramente

minoritária, apesar de seus promotores estarem longe deocupar uma posição marginal (a começar pelo próprio JoséBonifácio). É necessário lembrar que não existia um corpusdefinido de crítica ambiental naquele momento histórico,mas sim algumas fontes teóricas – como a economia danatureza e a teoria do dessecamento – que, combinadas dedeterminada maneira, poderiam facilitar esse tipo dereflexão. Existia também um contexto objetivo altamentedesafiador, já que a rotina predatória que imperava noBrasil contrastava profundamente com o ideal de um usocientificamente cuidadoso da natureza. Mas tal contexto nãoera condição suficiente para o surgimento da críticaambiental, tanto que passou despercebido pela maioria dosintelectuais que nele viviam. Portanto, para entender onascimento dessa crítica, é necessário acompanhar um grupoespecífico de autores que, por razões sociológicas queainda precisam ser melhor investigadas, desenvolveu umaespecial atenção para com o tema da destruição do ambientenatural11.

O arcabouço teórico de praticamente todos estes autores,por outro lado, precisa ser entendido nos seus traçosessenciais. A percepção crítica dos problemas ambientaisassumiu nos seus escritos um sentido eminentementepolítico. O meio natural não é defendido em função deobjetivos éticos ou estéticos universais, mas sim emvirtude de sua importância para a construção nacional, paraa sobrevivência e desenvolvimento da sociedade brasileira.Os recursos naturais constituíam o grande trunfo para oprogresso futuro do país, devendo ser utilizados de formaracional e cuidadosa. A destruição e desperdício dos mesmosera considerado uma espécie de crime histórico, que deveriaser duramente combatido pelas autoridades públicas. Apostura dominante é quase sempre antropocêntrica,cientificista e progressista. Nenhum dos autoresmencionados, até onde eu tenha podido perceber, veio emdefesa da conservação da natureza e da vida selvagem combase no seu direito autônomo à existência e no seu valorintrínseco, biológico, espiritual ou estético12. O que sedefendia era o valor instrumental da natureza para asociedade nacional. A destruição do ambiente não eraentendida como um "preço do progresso", como na visão hoje

dominante, mas sim como um "preço do atraso". Ela derivavada utilização de práticas e tecnologias rudimentaresherdadas do passado colonial. A grande panacéia paraestabelecer a sanidade ambiental no país estava namodernização tecnológica e operacional da economia. No casodo Brasil, ao contrário das interpretações que tentamestabelecer um vínculo direto entre a cultura romântica eas origens do ambientalismo, a defesa do ambiente naturalfoi iniciada por pensadores racionalistas e pragmáticosformados na herança iluminista.

Uma obra fundamental para demarcar o surgimento destatradição intelectual foi o Discurso Histórico, Político e Econômicodos Progressos e Estado Atual da Filosofia Natural Portuguesa, Acompanhadode Algumas Reflexões sobre o Estado do Brasil, publicado em 1786 porBaltasar da Silva Lisboa. Esse trabalho pode serconsiderado como uma primeira síntese – quase um primeiromanifesto programático – da tradição original doambientalismo político brasileiro. O enfoque, as temáticase as propostas por ele apresentados foram depois retomadospor vários outros escritores, inclusive ao longo do séculoseguinte. O autor do livro, um dos doutores de Coimbranascidos no Brasil, mais especificamente na Bahia, encarnoucom perfeição o papel que Sousa Coutinho imaginava para anova elite brasileira. Não é difícil perceber, pela leiturado Discurso Histórico.., que a questão do Brasil ocupava ocentro das suas reflexões, apesar da sua manifesta lealdadepara com o Estado português. Esse era o tipo de patriotismoque Coutinho considerava aceitável, e até mesmo necessário,diante dos novos horizontes políticos do império lusitano.

O ponto de partida de Baltasar Lisboa, numa atitude típicado seu grupo intelectual, estava na confiança quasemessiânica no poder transformador da racionalidadecientífica, da filosofia natural. Sua análise inicia-se comum exame crítico dos altos e baixos da filosofia natural nahistória portuguesa, desde os tempos romanos até a reformada Universidade de Coimbra, a criação da Academia de Lisboae o trabalho de Vandelli (Lisboa, 1786:16). O impulsorenovador que então se vivia é considerado altamentebenfazejo, principalmente pelo que representa em termospolíticos. A filosofia natural é "a ciência que maiscontribui para o bem comum" e seu desenvolvimento tem

efeitos sociais imediatos, tornando "florente aagricultura, polidas e perfeitas as artes, aumentada apovoação, firmes os estabelecimentos das fábricas". A naçãoportuguesa, cuja economia se achava em decadência, poderia"inverter este mau conceito dos povos", desde que adotassea "história natural como a moral e a política de todas assuas comarcas, cidades e vilas" (idem:30-36). Na segundaparte do livro, muito mais concreta e propositiva, o autordiscute a maneira pela qual os progressos da filosofianatural poderiam ajudar o "vasto continente da América hátrês séculos descoberto". O Brasil, de fato, precisavapassar por um urgente processo de transformação. Aagricultura era praticada no país "o mais miseravelmenteque é possível imaginar", com desconhecimento dosprogressos técnicos e do uso do arado. A mão-de-obracontinuava a ser exercida "pelos miseráveis escravos que,mal-educados, nus, tiranizados, mortos muitas vezes defome, como hão de interessar na fortuna do senhor ?"(idem:39 e 48). A produtividade era baixa, e as fornalhaspessimamente construídas, especialmente nos engenhos deaçúcar. Tudo isso gerava um enorme desperdício de madeirasnativas, cuja escassez já começava a inviabilizar acontinuidade de muitos engenhos:

"É incompreensível a imensa quantidade de lenhas que inutilmenteconsome a feitura do açúcar pela construção das suas fornalhas, poisque para uma carrada de cana se requer outra de lenha. A boaconstrução dos fornos de reverbero sanaria este mal, que causagravíssimo prejuízo aos lavradores e senhores de engenho, vindo asuceder que aqueles que não possuem grandes matas não fabriquem oaçúcar e os que as possuem pelo diante deixam de trabalhar os seusengenhos pela falta de lenhas, pois assim confirma a experiência".(idem:47-50)

A solução para esse estado de coisas passava por umapolítica geral de reformas. Algumas delas teriam um alcancesocial mais amplo, como no caso da melhor incorporação dosnegros e dos índios ao processo produtivo. As reflexões doautor, nesse ponto, são essencialmente pragmáticas,passando ao largo do respeito cultural por esses segmentossociais, a não ser em relação a um certo respeito peloconhecimento empírico dos índios sobre a natureza tropical.Lisboa fala a partir de uma posição cultural claramenteassumida como superior – o racionalismo ocidental. Não

existia dúvida sobre quem era civilizado e quem precisavaser civilizado. A palavra-chave estava em "incorporar" aesse modelo racional, nos limites em que isso fossepossível, os que dele estavam excluídos, ou seja, osafricanos, os índios e também, em certa medida, osignorantes lavradores do Brasil. Esse é um ponto que mereceser ressaltado, pois estará também presente nos autoresposteriores. Mesmo quando Lisboa fazia sugestõeshumanitárias, suas propostas não passavam pelo relativismocultural ou por uma ética politicamente desinteressada. Ofim da violência contra os negros e os índios, por exemplo,respondia a uma utilidade econômica. Os negros deveriam sertratados com moderação, sem "os criminosos excessos"praticados pela maioria dos senhores, era necessário queeles recebessem noções claras de religião e casamento para"não prosseguirem nos crimes e excessos das paixõessensuais". Também deveriam receber dias na semana paralabutarem o seu próprio sustento, em vez de passarem odomingo "embriagados e nutrindo os vícios da sua naturalfrouxidão". Essa política de "boa moral e prudenteeconomia" faria os escravos "mais fiéis e amigos dos seussenhores" (idem:53-55). Quanto aos índios, era preciso"civilizá-los e salvar as suas almas". O método maisapropriado para isso, tal qual se praticava na América doNorte, era o de "multiplicar cada vez mais as suasnecessidades, pelas quais eles serão forçados acomunicarem-se com os seus vizinhos mais industriosos". Erade interesse do Estado que eles fossem incorporados àprodução econômica, não se devendo consentir que ficassemaldeados em "cidades inteiras cheias de eclesiásticos quetenham a este respeito toda a indiferença". A cultura dacochinilha, por exemplo, poderia ser entregue aos nativos"a troco de aguardentes e várias bugigangas de que elestanto prezam". Sua utilidade mais fundamental, contudo, eraa de servir como fonte de informações sobre a naturezabrasileira. Lisboa reconhece que os conhecimentos europeuseram limitados, pois "muitas outras [plantas] ignoramoscompletamente, mas sabemos sim que os índios conhecemimensas que servem de antídoto contra inumeráveisenfermidades." Era necessário, dessa forma, que asexpedições científicas procurassem obter conhecimentos dosíndios "conciliados com brandura e prêmios". Essa tarefa

não podia mais ser adiada, pois a chave do progresso futurodo país estava no conhecimento da sua diversidade natural.Era premente "fazer ver todos os portentos que a naturezaquis ocultar naqueles paraísos, onde parece que em nenhumaoutra parte do mundo procurou manifestar tanto o seu poder"(idem:67-68).

No melhor estilo da época, Lisboa vai examinar a utilidadepotencial dessa natureza a partir dos seus três reinos. Erapreciso incrementar, antes que tudo, o conhecimentoprodutivo das espécies vegetais nativas, aclimatando tambémespécies úteis trazidas de outras regiões do planeta. Asculturas já estabelecidas deveriam ser consolidadas pormétodos mais inteligentes e racionais. O arado puxado porbois e cavalos adaptar-se-ia bem aos solos massapês doBrasil, incrementando a produtividade. A lavoura doalgodão, em especial, deveria ser estimulada por constituirum "novo e poderoso ramo da indústria e comércio", já quena Inglaterra se estavam introduzindo "milhares de fábricasao modelo das da Ásia" e "a Europa toda tem aprovado o gozode semelhantes manufaturas". Novas culturas, como as dearroz, anil, café e uvas, deveriam ser fortementeincentivadas. No que se refere ao reino animal, eranecessário promover uma pecuária mais eficiente, que tambémproduzisse manteiga e queijos. O autor protesta contra aspráticas predatórias vigentes no trato com os animais, acomeçar pelo "costume de se matarem, logo que se quercompletar certo número de couros, bois, vacas e bezerrosindistintamente, sendo conseqüência disso a diminuição dogado e a má qualidade dos couros". O mesmo ocorria emrelação aos animais selvagens. Os veados eram abundantesnos sertões, mas "como são a todo o tempo indiscretamentemortos, pelo diante serão mais raros". As grandespossibilidades da pesca eram frustradas pelas práticasrudimentares na conservação e preparo dos pescados. Diantedo reino mineral, por fim, Baltasar Lisboa detém-se deforma breve, como bom fisiocrata, apenas para mencionar queas minas deveriam ser dirigidas por "magistrados filósofos"e que existia um importante potencial de exploração naSerra dos Órgãos (idem:55-56).

É possível perceber, confrontando o que emerge em Lisboacom o que já foi visto em Navarro, os delineamentos de um

projeto bastante definido para o Brasil. Algumas propostas,inclusive, são comuns aos dois autores, como a necessidadede poupar as florestas, de reformar as fornalhas e deintroduzir o arado. Esse último ponto, em particular,acompanhará o debate até o final do século XIX, servindo desímbolo para a busca de uma agricultura racional e nãopredatória13. A diferença mais marcante entre Lisboa eNavarro, no entanto, aparece no fato de o primeiro terintroduzido preocupações sociais que o magistrado mineiroevitou expressar, ou o fez de forma muito indireta. Atendência dos trabalhos posteriores acompanhou basicamentea linha do escritor baiano, que já podia ser antevista emVandelli. O problema da incorporação dos índios e o domelhor tratamento dos africanos, por exemplo, foram depoisretomados por vários autores, encontrando sua formulaçãomais marcante na obra de José Bonifácio a partir de 1819,quando a crítica ambiental assume uma posiçãoexplicitamente abolicionista, inclusive revelando o nexocausal existente entre a economia escravista e a destruiçãodo território (Pádua, 1999).

O livro de Lisboa, nesse sentido, não deve ser visto comouma súmula da tradição intelectual que está sendoanalisada, até porque muitas novas idéias e propostas foramdepois acrescentadas, inclusive nos escritos posteriores dopróprio autor. Ele deve ser visto – o que não é pouco –como uma espécie de pedra angular dessa linha depensamento, cuja reconstituição historiográfica está apenascomeçando.

 

IV

Não haveria espaço, no âmbito deste artigo, para discutirdetalhadamente os escritos de crítica ambiental quecomeçaram a ser produzidos no Brasil a partir do final doséculo XVIII. Meu objetivo é apenas o de mencionar algunsexemplos pontuais, que possam revelar a riqueza teórica eliterária desse material. Os estudiosos brasileiros, aovoltarem dos seus anos europeus, sentiam-se profundamentedesafiados diante da realidade rústica de sua terra natal.Escrevendo de Pernambuco, no ano de 1797, o médico e

botânico Manoel Arruda da Câmara transmitia a SousaCoutinho os fatores que estavam retardando o envio dasinformações científicas que este lhe havia encomendado -"já a vastidão dos sertões que devo percorrer, já oslugares desertos e a falta de correios, já as vigorosasinvernadas e rios caudalosos que procurarei vencer comtodas as minhas forças" (Câmara, 1982a [1797]:239). Oesforço desses intelectuais assumia um sentido desacrifício e de missão.

A paisagem econômica do país redescoberto, por outro lado,apresentava-se como uma realidade quase desesperante. Omesmo Arruda Câmara, na sua Memória sobre a Cultura dosAlgodoeiros, de 1799, chocava-se com o fato de a cultura dacana, que exige "os mais profundos conhecimentos da físicae da química", estar entregue a "homens néscios eestúpidos, em cujas mãos põe o Senhor de engenho a suafortuna". A lenha era cortada e conduzida como a um "lugardo sacrifício". Todas as vezes que o autor tinha "adesgraça de presenciar essa catástrofe", parecia-lhe "verum filho dissipador e pródigo consumir em poucas horas ariqueza que o pai laborioso tirou da terra com a força doseu braço" (Câmara, 1982b [1799]:113).

A reação de Arruda Câmara, típica do seu grupo intelectual,foi a de fazer estudos e experimentos em favor da eficáciana produção do açúcar e do algodão, procurando tambémdescobrir plantas nativas que pudessem abrir novos caminhospara a agricultura e a economia do país. Uma dessas plantasfoi a almécega, por ele encontrada no sertão de Pernambuco,cuja resina possuía inúmeras utilidades. A simples validadecientífica dessa descoberta, no entanto, não era suficientepara garantir o seu uso adequado. O Ofício sobre a Almécega e aCarnaúba, de 1809, revela que, também naqueles sertões, oautor teria que se defrontar com tudo aquilo que, sob arubrica comum de "ignorância", lhe causava tamanhodesalento. Apesar de a madeira da almécega não ser degrande utilidade, a espécie estava ameaçada "pelaignorância dos povos" que "as derribam sem piedade nosmatos e nos muitos roçados que fazem nas matas virgens". Aárvore também sofria com os fogos que "vadios e caçadorespouco considerados soltam nas matas, com o fim dedestruírem a espessura dos arbustos para montearem sem

embaraços". A solução para esse problema estava na"necessidade de proibir-se as derribadas de matas virgens,nas que são abundosas de almécegas, como também a de vedar-se o soltarem fogos, o que se não poderá conseguir semfulminar alguma cominação de penas contra os agressores."(Câmara, 1982c [1809]:230).

Escrevendo da comarca de Ilhéus, na Bahia, em 1789, ManuelFerreira da Câmara Bittencourt e Sá falava de um país "pelamaior parte ainda coberto de espessas matas, que seushabitantes procuram diariamente destruir, só com a pequenautilidade de uma até quatro plantações...sem contudoaproveitarem as preciosas madeiras de construção,tinturaria e machetaria que elas contêm" (Sá, 1990[1789]:3); de um lugar onde os lavradores pareciamsatisfeitos com a "medíocre felicidade" de produzirmandioca e arroz para o mercado de Salvador, em vez delucrar com a introdução de novas produções como o cacau eos vinhos de frutas tropicais ou então com o incremento dapesca, especialmente de baleias e tartarugas, e daindústria madeireira. Não se imagine, porém, que o autorsugere esse incremento sem estar consciente dos seus riscosambientais. No caso da pesca da baleia, por exemplo,Ferreira da Câmara critica os erros que vinham sendoadotados pelos pescadores, especialmente a "crençaignorante de que sem a destruição dos filhos não se pescamas mães". Observa também que a falta de baleias em outrascostas já estava fazendo com que navios ingleses eamericanos se dirigissem para os mares brasileiros. Asolução para o problema tinha de passar pela adoção deformas de pesca que não destruíssem a prole (idem:42).

Um alerta semelhante é feito no caso da indústriamadeireira. O autor condena o desperdício de madeiras úteisque diariamente se cometia com as queimadas. Tais madeirasdeveriam ser aproveitadas de forma racional, garantindo-sea conservação dos bosques e a reposição das árvores.Exatamente o contrário do que vinha acontecendo na região,onde "ainda não consta que se tenha plantado um só pé dasnecessárias à construção e à combustão diária" (idem:45). Aquestão era suficientemente política, inclusive no planointernacional, para exigir uma ação enérgica do Estado:

"Portanto creio que interessará muito ao estado expedir não ordensmeramente, porque algumas já as tem expedido, se bem que sem proveito,mas ministros que vigiem e regulem o corte das madeirasindistintamente, obrigando os proprietários dos terrenos marítimos aconservar ilesas as de construção, que ocupando uma parte pequena doseu terreno não danificam por certo a sua cultura. E também obrigar aplantá-las e reproduzi-las, para deste modo terem um númerodeterminado das ditas espécies. Se tivessem tomado há mais tempo estasmedidas...não nos veríamos necessitados a mendigar e comprar por bompreço os carvalhos da Pensilvânia, para o travejamento dos nossosnavios de guerra" (ibidem)14.

Esse conselho de Ferreira da Câmara, particularmente no quese refere aos navios de guerra, foi parcialmente acatadopelo governo português alguns anos depois. Em 13 de marçode 1797, por iniciativa de Sousa Coutinho, a coroa envioucartas régias para os governadores de algumas capitanias doBrasil tratando do tema da conservação das matas e dasmadeiras nobres. As cartas foram enviadas para ascapitanias da Paraíba, Rio Grande de São Pedro e Bahia,pelo menos, sendo esta última a mais detalhada e completa.O conteúdo destes documentos é basicamente o mesmo,repetindo-se sempre a justificativa inicial de que "asmadeiras e paus de construção que se exportam do Brasil"são "um objeto do maior interesse para a marinha real".Elas também poderiam ser uma boa fonte de rendimento para areal fazenda, caso esta organizasse "cortes regulares dasmesmas madeiras para vender às nações estrangeiras". Poresse motivo, se fazia necessário "tomar todas as precauçõespara a conservação das matas no estado do Brasil, e evitarque elas se arruinem e destruam". As medidas concretas aserem tomadas incluíam serem consideradas propriedadeexclusiva da coroa as matas e arvoredos localizados aolongo da costa marítima ou nas margens dos rios navegáveisque desembocassem no mar. Essas áreas não poderiam serdoadas como sesmarias, e aquelas que já o haviam sidodeveriam ser retomadas pela coroa, indenizando-se osproprietários com terras no interior. Além disso, desde omomento da promulgação das cartas régias, os proprietáriosficavam obrigados a conservar as madeiras reais, devendo os"incendiários e destruidores das matas" sofrer severaspenas (Souza, 1934:20-24).

Não existe espaço aqui para discutir com detalhes asdinâmicas concretas que derivaram desse ensaio de políticaambiental no Brasil colônia (para uma síntese, centrada nocaso da Bahia, ver Morton, 1978). Existe um certo consensode que tais dinâmicas fracassaram no seu objetivofundamental, embora, provavelmente, tenham ajudado areduzir, durante um certo período, o ritmo e a escala dadevastação, pelo menos em algumas regiões. O ponto de maiorinteresse, para este artigo, são as bases teóricas quemoldaram a política que Sousa Coutinho decidiu implementarem 1797, fortemente influenciado pela rede de intelectuaisbrasileiros com os quais se relacionava. É verdade que talpolítica constituía uma resposta muito pontual e limitada,sobretudo quando confrontada com as amplas discussões queentão tinham lugar: enquanto os debates apontavam para anecessidade de uma reforma geral no caráter predatório daeconomia brasileira, as medidas referiam-se apenas aosuprimento dos arsenais da marinha real. Não resta dúvida,porém, de que as políticas conservacionistas do Estadoportuguês só foram adotadas porque Sousa Coutinho ficouconvencido da insustentabilidade das práticas florestais nacolônia, passando a temer o desaparecimento das reservas demadeira nelas contidas.

Um personagem-chave em todo esse episódio foi novamenteBaltasar da Silva Lisboa, jurista de sólida formação e bonsconhecimentos de botânica florestal, depositário daconfiança de Sousa Coutinho. Nomeado em maio de 1797 para ocargo de ouvidor da comarca de Ilhéus e juiz conservadordas suas matas, permaneceu nessa função até 1818,realizando profundos estudos de mapeamento geográfico eamplo inventário florístico da Mata Atlântica regional. Osprocedimentos que implantou para a conservação e usoracional da Mata, por outro lado, lhe valeram uma série deconflitos com setores da elite local, sobretudo com osmadeireiros e os plantadores de mandioca. Sua atuação comojuiz conservador das matas sofreu inúmeras metamorfoses eoscilações ao longo de todo o período, dando margem aosurgimento de várias polêmicas teóricas, que, de modogeral, versavam sobre o direito do Estado de preservarflorestas em detrimento dos interesses econômicosparticulares. Esse conflito entre razão de estado e razão

privada adquiriu dimensão especialmente sofisticada nodebate ocorrido em Cairu, região da comarca de Ilhéus, queantepôs Lisboa ao porta-voz intelectual dos proprietárioslocais, José de Sá Bittencourt e Accioli. Accioli, nadamenos que irmão de Manoel Ferreira da Câmara, era também umintelectual ilustrado formado em Coimbra. Preso porparticipar da Inconfidência Mineira de 1789, esubseqüentemente libertado, estabeleceu-se na região deCairu como minerador, fazendeiro e madeireiro. Apesar doseu passado político problemático, mantinha relaçõesdiretas com Sousa Coutinho, que o nomeou inspetor das minasde salitre de Montes Altos e encomendou-lhe a feitura deuma estrada ligando aquele sertão ao litoral baiano.Tratava-se, portanto, de um adversário bem preparadointelectualmente e dotado de influência política.

Em junho de 1799, Accioli divulgou um documento anônimointitulado Observações sobre o Plano Feito para a Conservação das Matasda Capitania da Bahia, que continha uma série de críticas àspolíticas que estavam sendo implementadas por Lisboa15.Para defender os interesses dos proprietários, o autorlança mão de um conjunto eclético de argumentos, misturandoprincípios doutrinários liberais a uma lista de ameaçasconcretas que, curiosamente, se assemelham muito às queainda hoje podem ser escutadas sempre que o poder públicotenta efetivamente controlar o desmatamento no Brasil,especialmente na Amazônia. É significativo que, em nenhummomento, Acciolli negue a validade, em si mesma, daconservação das florestas, demonstrando que essa idéia jáera bastante consensual entre os debatedores. Seu argumentoé o da defesa do direito de propriedade dos "povos que láestavam". Além disso, ele vai defender a tese de que, paraconservar as florestas, esses proprietários estariam emmelhores condições do que o Estado. Os fazendeirospossuiriam um interesse racional em preservar os recursosexistentes em suas propriedades, desde que tivessemgarantia de posse e liberdade para administrar seusnegócios. A continuidade do texto, porém, entra emcontradição com esse primeiro argumento, pois deixa claroque sem os desflorestamentos contínuos seria impossívellevar adiante a produção econômica da região. É justamenteneste ponto que surgem as ameaças. As medidas restritivas

aos cortes e queimadas causariam não só a escassez damadeira, pois arruinariam os cortadores, como também a altado preço da farinha de mandioca, uma vez que seriam a ruínados plantadores. Acarretariam também outros males, como odesemprego e a redução das rendas reais. Mesmo reconhecendoque a produção da mandioca requer, para fertilizar o solo eafastar as formigas, a queima de matas grossas, Accioliapresenta a continuidade dessa produção como uma questãopolítica relevante, já que a mandioca era o alimento básicoda população. Era preciso, portanto, encontrar uma "justaproporção" entre a conservação florestal e os desmatamentosnecessários ao progresso econômico. Numa curiosa inversãoda teoria do dessecamento, aliás, afirma que osdesmatamentos não seriam de todo negativos, pois ajudariama melhorar o "clima sumamente chuvoso" da região, que haviagerado "dificuldades inumeráveis aos primeiros povoadores"(Accioli, 1799).

Para evitar o colapso econômico da região sem prejudicar oabastecimento de madeiras para o arsenal, Accioli sugereque o Estado estabeleça reservas florestais em PortoSeguro, mais ao sul da capitania, já que aquelas matas eramquase despovoadas de europeus. Em suma, as reservasestatais seriam benéficas, mas desde que estivessem bemlonge das florestas que Accioli e seus vizinhos costumavamexplorar. Tratava-se, sem dúvida, de um argumento bem maispragmático do que doutrinário, apesar do uso de elementosteóricos para reforçá-lo. Nas palavras de Morton, essa foi"uma das primeiras ocasiões em que as elites brasileirasusaram as doutrinas clássicas do liberalismo econômico paradefender seus interesses" (Morton, 1978:56).

A resposta de Lisboa – que por ironia era o irmão mais moçode José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, o pai doliberalismo brasileiro – caminhou numa direção teóricacompletamente diversa. Defendeu com eloqüência a primaziado interesse público sobre os interesses particulares.Apesar de estar bem familiarizado com as doutrinas de AdamSmith e de reconhecer sua validade em uma série decircunstâncias, sua visão sobre a conservação das florestasrevelava-se muito mais próxima da tradição pombalina deintervencionismo estatal. Toda a sua argumentaçãofundamentava-se na tese da razão de estado, apesar de o

autor não utilizar explicitamente essa expressão. Agarantia de madeira para os arsenais remetia ao problemaprimário da segurança e da sobrevivência da comunidadepolítica. São os navios de guerra que "sustentam aindependência e o poder do Trono". Todos os setores dasociedade dependiam desses alicerces, inclusive osproprietários que reclamavam das medidas conservacionistas.Sem a existência destes navios, os "diferentesparticulares" não poderiam "levar pelo comércio a suaindustria até a metrópole", e também não poderiam "adquirirpela lavoura as riquezas de que são capazes". A monarquiapossuía o direito, em nome do bem geral, de "firmar umaimpenetrável barreira à ambição indiscreta dos colonos, quenão queriam cultivar sem destruir". Para fundamentar aindamais esse direito, o juiz conservador lança mão de antigasleis do absolutismo português, como o chamado "Regimento doMonteiro-Mor", de 1605, que estabelecia o controle da coroasobre os bosques a fim de preservar a caça (e que, pordedução, poderia ser empregado na preservação das própriasárvores)16. Também recorre à experiência dos outros paíseseuropeus, onde "os homens mais inteligentes e os governosmais iluminados" estavam decretando a conservação dosbosques para garantia da marinha (Lisboa, s/d:12-13).

O Estado apresenta-se, aos olhos de Lisboa, como o grandeagente da racionalidade pública. Em nome de talracionalidade, ele vai criticar os proprietários que semprelucraram com "as madeiras que tiravam das matas dos índiose particulares" e que não aceitavam se privar "dasvantagens que sua ambição e interesses prometiam". O desejodesse grupo era "que Sua Alteza não tenha matas nasvizinhanças das cidades, que os seus vasos de guerraestejam na dependência do capricho e ambição dosnegociantes, que ficarão sendo os dominadores da forçapública da monarquia". Ocorre que a monarquia representavauma entidade autônoma e superior, que jamais poderia serdominada por interesses privados. Ela deveria ter, aocontrário, a primazia na ocupação do espaço geográfico, deforma a garantir o exercício do seu controle benéfico sobreo conjunto da sociedade. Com base nesta lógica, Lisboaironiza a proposta apresentada por Accioli de reservar para

a coroa as florestas do sul da capitania, distantes doscentros urbanos:

"Querem que à Marinha Real se destinem só as matas dos sertões dacosta, habitadas de índios selvagens e de negros fugidos em mocambos.Ainda assim não ficava esta propriedade segura, pelos direitos [...]que reclamariam estes habitantes, e pelos danos da lavoura de queficariam privados. E como neste século de tantas novidades tem havidopublicistas e doutores que têm escrito livros expressos sobre odireito das bestas, quem sabe não dariam também boas razões aosorangotangos, tigres e surucucus17 das matas grossas para se queixaremda violência e de uma indenização condigna à posse em que estavam deviverem nestas brenhas ?" (idem:15).

Uma leitura dessa passagem é fundamental para entender atradição intelectual que está sendo analisada. A críticaimediata de Lisboa refere-se à pretensão de que possamexistir direitos privados superiores aos da autoridadepública. Se os fazendeiros se recusavam a aceitar essaautoridade, por que outros setores não poderiam fazê-lo(inclusive os índios e os negros fugidos)? Mais ainda, seessa possibilidade existe, por que não estendê-la aosanimais? Essa última ironia é importante por reafirmar ocaráter antropocêntrico do ambientalismo político originalno Brasil. Os questionamentos sobre os direitos dosanimais, que alguns filósofos começavam a expressar, eramobjeto de escárnio. O valor do ambiente natural não eraintrínseco, mas sim fundado na correta satisfação dasnecessidades sociais. Esse era o motivo que conduzia Lisboana sua luta acirrada contra a destruição das florestas.Para ele, as florestas eram um objeto político, recursonecessário para a expressão de um projeto político. O eixocentral do debate, portanto, não se situava na oposiçãoética entre os direitos dos humanos e os direitos dos não-humanos, mas sim na oposição política entre uma visão danatureza de tipo imediatista e destrutiva e uma visãobaseada no cuidado racional e no que hoje chamaríamos desustentabilidade.

A condenação do comportamento imediatista e destrutivo dosagentes privados estava sendo igualmente formulada, nomesmo período, por escritores que atuavam na capitania deMinas Gerais, outro pólo importante da economia brasileira.José Vieira Couto, por exemplo, publicou em 1799 a sua

"Memória sobre a Capitania de Minas Gerais", análiseprofundamente crítica da situação regional, inclusive doponto de vista ambiental. O principal objetivo do trabalhoera discutir o problema da decadência da mineração e dasformas de reanimar essa atividade. Para o autor, taldecadência era decorrente sobretudo da incompetênciatécnica. O desenvolvimento de uma "arte metalúrgicanacional", com o uso de máquinas e tecnologia moderna,poderia reanimar aquela produção, já que ainda existiamminérios em quantidade para serem explorados. Para issoseria necessário diversificar a produção, dando maioratenção ao potencial de exploração do ferro. Outra propostabásica era a de melhorar o sistema de transportes,utilizando as vias naturais representadas pelos rios econstruindo canais de ligação entre estes e o litoral.Novas estradas deveriam ser abertas, substituindo as queestavam em péssimas condições. Além disso, era precisoinovar os meios de transporte, introduzindo animais decarga desconhecidos no Brasil, como o camelo e o búfaloafricano. Outra opção, desta vez nativa, seria a anta domato, que poderia ser domesticada para o transporte. Asmedidas infra-estruturais deveriam ser complementadas porum programa geral de estímulo ao progresso econômico porintermédio de isenções fiscais, que mais tarde seriamcompensadas com o aumento na arrecadação provocado peloenriquecimento coletivo (Couto, 1848 [1799]:320-325).

Um aspecto essencial desse programa de reformas diziarespeito ao trato com o ambiente natural. Couto não foicapaz de perceber os problemas ambientais decorrentes damineração, ou evitou conscientemente fazê-lo18. No que serefere à questão agrícola e florestal, entretanto, seudiagnóstico foi talvez o mais eloqüente dentre todos osproduzidos na época:

"Parece que já é tempo de se atentar nestas preciosas matas, nestasamenas selvas, que o cultivador do Brasil, com o machado em uma mão eo tição em outra, ameaça-as de total incêndio e desolação. Umaagricultura bárbara, ao mesmo tempo muito mais dispendiosa, tem sido acausa deste geral abrasamento. O agricultor olha ao redor de si paraduas ou mais léguas de matas, como para um nada, e ainda não as tembem reduzido a cinzas já estende ao longe a vista para levar adestruição a outras partes. Não conserva apego nem amor ao territórioque cultiva, pois conhece mui bem que ele talvez não chegará a seus

filhos. A terra, da sua parte, não se ri para ele, nem o graciosoondear das louras espigas lhe alegra a vista. Um áspero campo, cobertode tocos e espinhos, compõe os seus amenos ferregiaes" (idem:319).

Apesar do tom poético e arcadista desse belo texto, acontinuação do raciocínio revela que a preocupaçãoambiental de Vieira Couto era bem mais política do queestética. Os problemas gerados pelo desmatamento e pelafalta de enraizamento dos agricultores afetavam o futuro dacapitania. A lenha e a madeira de construção já começavam afaltar, podendo abortar o potencial de incremento naextração das riquezas metálicas. A indústria de fundiçãonecessitava de madeira para construção, carvão e lenha,tornando-se inviável com o distanciamento das reservasdisponíveis. O próprio autor havia observado "camadas deexcelente ferro" que " jamais virão a ser úteis a ninguémpela distância da lenha" (ibidem). A solução para oproblema estava na proibição de derrubar a totalidade dosbosques nos arredores dos povoados e a metade daqueles queestivessem em lugares distantes. Essa política trariaóbvios benefícios para a agricultura e para a sociedade. Apartir dela os lavradores "se veriam constrangidos a lavrare estrumar as terras", abandonando a prática das queimadas.Com isso, "o restante dos matos se conservariam emutilidade sua, dos seus filhos e do estado". Essa políticade conservação florestal, ademais, poderia produzir umaverdadeira transformação na dinâmica social, pois "aspropriedades então ficariam mais permanentes, a povoaçãofixa e não errante, a agricultura tomaria uma melhor face,e se promoveria em fim para que esta falta de lenhas emadeiras não venha a ser mais funesta para o futuro àereção das nossas fundições" (idem:320).

A reflexão torna-se ainda mais interessante, porém, nacontinuidade do texto, especialmente se comparada com oethos do ecologismo contemporâneo. Logo após escrever o seucontundente protesto contra a agricultura predatória e adestruição florestal, o autor apresenta sua utopia para ofuturo da região:

"Parece-me que já vejo um novo horizonte, um novo céu: milhares defornalhas cobrem as planícies, que levantam espessos rolos de fumo àsnuvens. Os montes já são minados, e por uma boca estreita vomitam assuas ricas entranhas. O estrondo de mil máquinas fere os meus ouvidos,

um povo laborioso, contente e alegre cobre em bandos a superfície daterra" (ibidem).

A surpresa que essa passagem causa não é gratuita: opesadelo do ecologista atual – chamam a atenção os"espessos rolos de fumo" e o "estrondo de mil máquinas" –parece ser o sonho do proto-ecologista mineiro. Em poucaspassagens revela-se com tanta clareza o fato de que, para atradição que está sendo examinada, o progresso econômiconão era entendido como uma ameaça ao meio ambiente. O querealmente degradava e destruía a terra era a permanência depráticas arcaicas e ignorantes, herdadas da vida colonial,que apenas poderiam ser sanadas por projetos modernizantes.É verdade que raras vezes tais projetos foram tãoexplicitamente industrialistas quanto nesse texto.Normalmente eles se referiam, de acordo com o idealfisiocrata, à busca de uma sociedade agrária moderna. Pode-se argumentar, além disso, que a inocência ambiental doindustrialismo de Vieira Couto não chega a ser propriamenteuma avaliação, o resultado de uma experiência vivida.Trata-se de uma visão fictícia e abstrata do mundoindustrial realmente existente, que provavelmente seriamodificada se o autor tivesse tido a oportunidade, queoutros tiveram, de observar diretamente o impacto da cidadeindustrial sobre o ambiente europeu (Clayre, 1977). Mesmose aceitarmos este ponto contrafactual, não resta dúvida deque o texto permanece muito significativo, inclusive porsua percepção da existência de uma nova paisagem socialcontemporânea sendo gestada pela Revolução Industrial. Maisdo que uma defesa bem meditada dessa paisagem, o que otexto revela é uma vontade de progresso, uma adesão ao rumoda modernidade.

Esse mesmo sentimento de confiança no progresso vaiaparecer, de forma bastante ambígua, na obra de MoraesNavarro, parcialmente examinada na abertura do presenteartigo. Vimos que aquele autor mineiro foi quem melhorvislumbrou, no Brasil da época, a dimensão universal daproblemática que hoje chamaríamos de ecológica. O problemaé que sua percepção do embate essencial entre a humanidadee o planeta – com a possibilidade de colapso das sociedadesque destruíssem as bases materiais da sua existência –contradizia a filosofia otimista e progressista da história

presente no Iluminismo, inclusive na sua versão luso-brasileira. Essa contradição constituirá um dilema básicona obra de Navarro. Ele afirmava, por exemplo, forteconfiança nos poderes regenerativos da Terra: apesar doacúmulo de maus-tratos ao longo da história,particularmente da história colonial brasileira, a suafertilidade estaria sempre pronta a renovar-se a partir domomento em que os seres humanos passassem a tratá-la deforma adequada. As sociedades humanas, por outro lado,trilhavam etapas semelhantes de evolução histórica. OBrasil encontrava-se na sua infância em relação a Portugal.Os portugueses, após danificarem a fertilidade do seuterritório no passado, tinham aprendido a corrigir o rumo,cultivando melhor os terrenos que habitavam e conservandocom cuidado "os restos daqueles arvoredos queinconsideradamente destruíram" (Navarro, 1799:8-10). Osbrasileiros, à medida que amadurecessem, tenderiam a fazero mesmo.

A fragilidade maior desse raciocínio está justamente nopressuposto, quase metafísico, de que "a terra, apesar desua antigüidade, não perde nunca o seu vigor". O fato é quevárias passagens do texto parecem contradizer essaafirmação. Se os colonizadores do Brasil insistissem emseus métodos predatórios, por exemplo, o futuro do paísseria nefasto, pois teria "as suas riquezas naturaisperdidas, ou muito diminuídas, e os homens finalmentereduzidos a cultivar a terra que tão injustamenteabandonaram, e a conservar as árvores que existirem, porémde muitas não terão já nem a semente." Essa situação já erauma realidade em algumas partes da colônia: "corram-se asvizinhanças das grandes povoações da capitania de MinasGerais, e procure-se em todas elas algumas daquelaspreciosas árvores que faziam em outro tempo o seu mais beloornamento, e não se achará nem os sinais da sua antigaexistência" (idem:10-13). O que está sendo dito aqui, defato, é que a destruição pode ser irreversível, já quemuitos exemplares da biodiversidade local estavam sendoextintos para sempre. A capacidade de recuperação da terranão era, portanto, tão completa assim. Em uma passagemimportante do discurso, que merece ser reproduzida naíntegra, Navarro tenta enfrentar esse dilema, sem conseguir

resolvê-lo. Comentando a ação empreendida peloscolonizadores até aquele momento, ele afirma:

"Dirão que esta conduta dos homens do Brasil é muito útil eproveitosa, porque sem ela não se poderia tirar nenhum proveitodaqueles imensos bosques, habitação oculta dos bichos e feras; não seconheceria a grande variedade de árvores e ervas, nem os seuspréstimos e virtudes; não se descobririam os ricos tesouros que aterra oculta no seu seio; não se civilizaria as nações bárbaras, queali nasceram; não se aumentaria o comércio interior e exteriordaqueles vastos domínios. Dirão finalmente que segundo o nossoprincípio mesmo, sendo a terra sempre capaz da mesma produção, nãoimporta que os homens, por algum tempo, a esterilizem. Porque quandoeles não tiverem já novos terrenos que voluntariamente lhes ofereçamas suas naturais produções, depois de povoarem toda a terra, depois deextinguirem a raça dos animais ferozes e dos bichos venenosos, depoisde civilizarem os povos criados entre as feras, eles se valerão entãodaqueles meios que necessidade e a industria mostrar serem os maisconvenientes para ressuscitar na terra a sua antiga fertilidade. Masnós lhes responderemos que, seguindo um meio termo, não poderiamconseguir todas estas vantagens sem se privarem de outras muitas quepor sua culpa vão perdendo, e que os seus descendentes não poderão,inda que queiram, reparar?" (idem:13).

Trata-se, como se vê, de um raciocínio bastante confuso doponto de vista conceitual. Ao apontar a possibilidade de umcaminho em que os benefícios do progresso poderiam serobtidos sem que fosse necessário abrir mão de outrosbenefícios que "por sua culpa vão perdendo", Navarrorefere-se especificamente aos males da degradaçãoambiental. Alerta para o fato de que a perda dessesbenefícios poderia ser total, de tal forma que as geraçõesfuturas, "ainda que o queiram", não poderiam reparar o danocausado.

Apesar de posicionamentos como esse, Navarro – imbuído do enfoque otimistade sua concepção de história – não logrou formular uma teoria dairreversibilidade do dano ambiental. O autor não conseguiu, poresse motivo, produzir uma argumentação decisiva em favor damudança de um padrão predatório para um padrão cuidadoso doque hoje chamaríamos de desenvolvimento. A lógica dessamudança teria que se fundamentar na impossibilidade de opadrão predatório sobreviver ao longo do tempo, assim comono fato de que ele inviabilizaria, a partir de um certograu de destruição, a possibilidade de se construir umaalternativa sustentável. Esse ponto não fica evidente no

texto: é apenas indicado sob a forma das vantagens perdidasque os descendentes não podem reparar. Não fica evidente,afinal, o que os homens perderiam se adiassemindefinidamente a mudança no padrão de desenvolvimento, porconfiarem na eterna disposição benéfica da terra.

Essa contradição entre o otimismo progressista damodernidade e o pessimismo potencial da crítica ambiental,tão clara na obra de Navarro, continua presente no debatecontemporâneo, apesar de atenuada pelo surgimento daproposta de soma positiva configurada na tese do"desenvolvimento sustentável" de certa forma tambémantevista pelo magistrado mineiro. Os dilemas apontados porum autor tão antigo e pouco conhecido, que publicou seutexto há exatamente duzentos anos, ajudam a revelar ariqueza da tradição teórica que este artigo procuroureconstituir de forma sintética, além de autorizarem aformulação de uma última reflexão de caráter mais geral.

Tanto as nossas investigações quanto as pesquisas sobre omesmo assunto realizadas por Richard Grove, entre outros,convergem para um mesmo ponto: a necessidade de associarmosa gênese da sensibilidade ambiental à dinâmica damodernidade em um sentido mais amplo do que antes sesupunha. Tal sensibilidade não está relacionada apenas comas conseqüências da grande transformação urbano-industrialdos séculos XIX e XX, mas também com uma série de processosmacrohistóricos que lhe são anteriores. Entre essesprocessos, pode-se destacar a expansão marítima da Europa ea incorporação de vastas regiões do planeta ao seu sistemacolonial, inclusive biomas e ecossistemas que não faziamparte da experiência histórica ocidental. As transformaçõesno pensamento e na ciência dos últimos séculos sãoindissociáveis dessa expansão. O nascimento de uma visãocomparativa dos sistemas naturais em escala planetária,impulsionada no século XIX pela visão humboldtiana de umconhecimento "cósmico", está por trás dos desenvolvimentosintelectuais que deram origem ao pensamento ecológico. Asconstantes trocas de informação entre os pensadores e asacademias de ciências na Europa e nas colônias – muito maisprofundas do que se imaginava – configuraram um lugarprivilegiado para tais desenvolvimentos. O trabalho dosintelectuais que, nesse contexto, atuavam na periferia

colonial adquiriu uma relevância considerável e até mesmouma preeminência perceptiva (se aceitarmos as teses deGrove). De um ponto vista mais essencial – para além dapolêmica algo sectária sobre as origens coloniais oueuropéias do ambientalismo, até porque as trocas eram tãoregulares que impossibilitam o estabelecimento de umafronteira tão definida entre ambos os pólos –, a questãobásica é a de que a evolução da crítica ecológica não deveser considerada, como querem alguns, uma resposta exógena,tardia e regressiva à modernidade. Ao contrário, ela é umfruto dessa mesma modernidade, uma resultante interna dassuas dinâmicas históricas planetárias, uma herdeira dassuas revoluções científicas. A crítica ecológicadesenvolveu-se e continua a se desenvolver como umquestionamento endógeno ao universo da modernidade ou,melhor dizendo, a alguns dos padrões possíveis no avançodeste universo.

 

(Recebido para publicação em junho de 1999)

 

NOTAS:

* Agradeço os comentários de Donald Worster, John Wirth, José Augusto Drummond, Ricardo Benzaquen de

Araújo e dos pareceristas anônimos de Dados.

1. Para um balanço das conseqüências sociais e ambientais deste ciclo de mineração, ver Dean (1995,

capítulo 5).

2. O livro foi publicado pelo botânico brasileiro Frei José Mariano da Conceição Velloso, fazendo

parte de uma coleção de trabalhos sobre agricultura dirigida aos proprietários rurais do Brasil. Sobre

a natureza desse empreendimento editorial ver a nota 9.

3. Para o surgimento dos jardins botânicos no Brasil, ver Segawa (1996). O passeio público do Rio de

Janeiro foi construído entre 1779 e 1783, com funções mais urbanísticas do que botânicas. Cartas

régias determinando a criação de verdadeiros jardins botânicos foram enviadas para Belém em 1796 e,

dois anos depois, para Olinda, Salvador, Vila Rica e São Paulo. Mas nenhum destes empreendimentos

chegou a sair realmente do papel. O importante Jardim Botânico do Rio de Janeiro apenas foi criado em

1808.

4. Este jardim esteve mais tarde sob controle português, no período entre 1809 e 1817, quando Caiena

foi ocupada em represália à invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. A partir dele transferiu-se

para o Brasil uma quantidade razoável de material botânico, inclusive a variedade de cana que, devido

a sua origem, ficou conhecida como "caiana".

5. A mais conhecida destas expedições, pelo menos no caso brasileiro, foi dirigida por um dos seus

discípulos diretos, Alexandre Rodrigues Ferreira, que percorreu a Amazônia entre 1783 e 1791. É

significativo observar, contudo, que essa expedição padeceu de inúmeras dificuldades em termos de

apoio operacional e político (Moreira Neto, 1983). A busca de novos conhecimentos sobre o mundo

natural ocorreu em Portugal de forma relativamente tímida, se comparada com os esforços empreendidos

por outras potências na mesma época.

6. Vandelli manifestava uma antipatia fisiocrata pela economia mineira que havia dominado o país no

século XVIII. As minas, segundo ele, "não devem ser o principal cuidado e trabalho no Brasil", pois "a

riqueza maior que se deve retirar das conquistas é das outras suas naturais produções obtidas pela

agricultura, ou assim como as subministra a natureza". Isso não impediu que ele pragmaticamente

reconhecesse a necessidade de dotar as minas de um "sábio regulamento" e mesmo de utilizar máquinas

para drenar o seu interior (Vandelli, 1990c [1789]:144 e 154).

7. A proximidade entre Bonifácio e Vandelli era tão grande que sua filha acabou se casando com o filho

do naturalista italiano. Para uma análise das idéias de Bonifácio sobre a necessidade de superar o

escravismo, incorporar os índios e coibir a destruição ambiental ver Pádua (1987 e 1999).

8. Estou consciente do possível anacronismo no uso desse termo, já que a palavra "ambientalismo"

apenas ganhou visibilidade social nas últimas décadas do século XX. De toda forma, entendo

"ambientalismo político" em sentido amplo, visando a identificar um tipo de reflexão social que se

caracteriza por dois aspectos: (1) focaliza a importância das relações entre uma sociedade e o seu

espaço ambiental e (2) discute essas relações com ênfase na sua relevância para a constituição,

sobrevivência e destino da primeira.

9. A tarefa de editar livros úteis para a educação dos agricultores brasileiros foi entregue ao

naturalista Frei José Mariano da Conceição Velloso, que publicou vários trabalhos, inclusive o

"Discurso" de Navarro. Seu esforço de maior envergadura foi a edição dos vários volumes de uma espécie

de enciclopédia prática intitulada "O Fazendeiro do Brasil". Coutinho enviou várias remessas desses

livros aos governantes das capitanias para serem vendidos aos proprietários. A experiência, ao que

parece, não foi bem-sucedida. Uma correspondência enviada em 1800 pelo governador de São Paulo,

Antônio Mello Castro e Mendonça, informava ao ministro que "não há quem se anime a comprar um só

livro, de maneira que muitos dos que se têm espalhado, têm sido dados por mim"... (citado por Lyra,

1994:88).

10. Maxwell (1995 [1973]:254) argumenta que esse esforço de cooptação visava também impedir que os

jovens eruditos da colônia se engajassem em rebeliões emancipacionistas, nos moldes da que ocorrera em

Vila Rica em 1789.

11. A presença específica de Vandelli é um dado relevante, apesar de também não ser suficiente como

fator explicativo. Muitos membros da elite brasileira em Coimbra passaram por suas aulas, mas poucos

cultivaram sistematicamente a sua pregação ambientalista.

12. Esse tipo de enfoque não estava ausente do pensamento oitocentista, podendo ser encontrado, por

exemplo, em autores norte-americanos como John Muir e Henry David Thoreau (ver Fox, 1981).

13. Para uma discussão histórica sobre a introdução do arado na agricultura brasileira, ver Holanda

(1994 [1956]:5, cap. II). Para a continuidade do debate sobre o seu uso na segunda metade do século

XIX, ver Pádua (1998). É significativo o fato de o potencial de destruição ambiental provocado pelo

arado, tal qual foi percebido em outros países, não ter feito parte das conjecturas dos autores

brasileiros. Sua presença inexpressiva no país fez com que ele permanecesse uma espécie de utopia

tecnológica distante e idealizada.

14. Em 1807, quase duas décadas depois de esse texto ter sido publicado, um grupo de fazendeiros

escreveu ao Senado da Câmara da Bahia respondendo às indagações colocadas por aquela assembléia sobre

os principais problemas que afetavam a lavoura da capitania. Na carta que coube a Ferreira da Câmara,

pode-se notar que a passagem dos anos não reduziu a sua preocupação com as florestas. Apesar do tom

liberal de quase todas as cartas, inspirado diretamente em Adam Smith, o texto de Ferreira da Câmara

destaca a conservação das florestas como uma justa e necessária exceção ao "direito de poder cada um

fazer o que lhe parecer". Ele defende a necessidade de uma forte legislação de preservação florestal,

mesmo revelando-se céptico quanto aos seus resultados (ver Sá, 1821[1807]:96-97).

15. O trecho da carta de Sousa Coutinho para Manoel Ferreira da Câmara, citado na seção II, refere-se

exatamente a esta situação de conflito. O ministro pede que Ferreira da Câmara faça uma avaliação

isenta do conflito estabelecido em Cairu, mesmo sabendo que ele é parte interessada na questão. Pede

também que convença os proprietários do benefício de adotar voluntariamente práticas conservacionistas

(ver Coutinho, 1800).

16. A figura do "Monteiro Mor" remonta às origens medievais do Estado português. Tratava-se do

responsável pela guarda geral das florestas (ou "montes", como ainda hoje se diz na Península

Ibérica). Cartas régias definindo as tarefas e direitos do Monteiro Mor existem desde meados do século

XV, mas só no século XVII se estabeleceu o seu regimento.

17. É curioso que um conhecedor profundo da Mata Atlântica, como era Lisboa, mencione nessa passagem

animais que não existem no Brasil, como os tigres e os orangotangos. Em minha opinião, trata-se de uma

questão de terminologia. Ele chama a onça pintada de "tigre" (uma prática observável no interior do

país, segundo Von Ihering, 1968:692). Por "orangotango", provavelmente, ele quis referir-se ao macaco

guariba ou bugio. O autor procura identificar esses animais nativos através das classificações

zoológicas então vigentes na Europa. Isto revela como era desconhecida a biodiversidade específica das

florestas brasileiras.

 

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ABSTRACT

"Annihilating Natural Productions": Illuminist Critique, Colonial Crisis, and the Origins of Political

Environmentalism in Brazil (1786-1810)

This article analyzes the trajectory of a group of Brazilian intellectuals from 1786 to 1810, who

inaugurated a systematic critique of the environmental damage caused by the colonial economy in

Brazil, especially forest destruction and soil erosion. These authors, schooled in the culture of

Illuminism, adopted a theoretical framework centered on physiocratic economic doctrine and the

"economy of nature" encoded by Linnaeus. Their focus was political, anthropocentric, and pragmatic.

They defended the natural milieu based on its importance for the survival and progress of Brazilian

society. Waste and destruction of natural resources were attributed to the rudimentary technologies

and social practices inherited from the colonial system. They proposed an overall modernization policy

as the road to overcome environmental degradation in the country.

Keywords: Brazil; environmental history; political environmentalism

 

RÉSUMÉ

"L’Anéantissement des Productions de la Nature": Critique Illuministe, Crise Coloniale et les Origines

de l’Environnementalisme Politique au Brésil (1786-1810)

L’article examine la trajectoire d’un groupe d’intellectuels brésiliens, entre 1786-1810, précurseurs

de la critique systématique des dégâts sur l’environnement en particulier la destruction des forêts et

l’érosion des sols provoqués par l’économie coloniale au Brésil. Ces auteurs, formés à la culture de

l’Illuminisme, ont adopté comme cadre théorique la doctrine économique du physiocratisme et

"l’économie de la nature" proposée par Linné. Leur démarche était politique, anthropocentrique et

pragmatique. Ils prônaient la défense du milieu naturel compte tenu de son importance pour la survie

et le progrès de la société brésilienne. Le gaspillage et la destruction des ressources naturelles

étaient imputés, selon eux, aux technologies et pratiques sociales primaires héritées de la situation

coloniale. Pour surmonter les atteintes à l’environnement d’alors, ils préconisaient une politique

générale de modernisation.

Mots-clé: Brésil; histoire environnementale; environnementalisme politique

18. Este impacto foi mencionado por outros autores, inclusive por alguns que demonstraram pouca

sensibilidade ambiental no conjunto da sua obra. É o caso do bispo Azeredo Coutinho, que, no seu

"Discurso sobre o Estado Atual das Minas do Brasil", de 1804, afirma que "as minas de ouro em que se

trabalha com água...esterilizam as terras que, aliás, seriam utilíssimas para a agricultura, por isso

que é necessário revolvê-las e rasgá-las muitas braças de profundidade" (Coutinho, 1966 [1804]:202).