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97 RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 16, p. 97-106, jun. 2001 A TRAJETÓRIA DO DISCURSO AMBIENTAL EM CURITIBA (1960-2000) 1 Analisa-se neste trabalho o discurso sobre o meio ambiente urbano produzido pela Prefeitura Municipal de Curitiba entre 1960 e 2000. Ao contrário do discurso oficial, que apresenta as obras de cunho ambiental como resultado de uma reflexão técnica e de uma ação planejada, mostra-se como em Curitiba combinaram- se, de maneira pontual e não premeditada, fatores naturais com soluções técnicas a problemas ambientais. PALAVRAS-CHAVE: Curitiba; meio ambiente urbano; política ambiental. Márcio de Oliveira Universidade Federal do Paraná I. INTRODUÇÃO A história do planejamento urbano de Curitiba inicia-se em 1853-54, quando da emancipação política do Paraná. Desse momento, quando Curi- tiba foi elevada à categoria de capital da província, deve-se reter a contratação do engenheiro francês Pierre Taulois, contratado em 1855 como Inspetor- Geral de medição de terras públicas, cuja missão à frente de uma equipe de técnicos e agrimensores acabaria propondo a realização de algumas refor- mas na infra-estrutura urbana da cidade, sobretudo no que diz respeito ao arruamento e à retificação das principais ruas (PMC, 1989-92, p. 25; MEN- DONÇA, 1992, p. 11-12). A cidade passou, desde então, por pequenas mas numerosas mudanças em sua infra-estrutura urbana, sendo que o denominador comum a elas era a modernização. Em seu nome, elaborou-se um primeiro Código de Posturas (1895). Graças a ele, entre outras normas, proibiu-se a construção de casas de madeiras no centro da cidade (1905), calçaram-se as ruas centrais e substituíram-se os bondes puxados por mulas pelos bondes elétricos (1913). O segundo Código de Posturas (1919), sempre respeitando o mesmo princípio de “modernização como norma”, apresentou como novidades a circulação de veículos e o alargamento de ruas até que, em 1929, a cidade ganhou uma “nova planta”. Em 1940, o prefeito Rozaldo de Mello Leitão contratou a firma de engenharia Coimbra Bueno & Cia. Ltda. – que havia se notabilizado pouco tempo antes pela construção da atual capital do Estado de Goiás, Goiânia – com o objetivo de conceber um plano diretor para Curitiba. Os “irmãos Bueno”, como eram conhecidos Abelardo e Jeronymo Coimbra Bueno, contrataram para a elaboração do plano então o urbanista francês (membro da Société Française des Urbanistes) Alfredo Agache, que já havia realizado trabalhos similares nas cidades do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Santos. O Plano Agache (1943), como seria denominado posteriormente, representou a primeira tentativa de ordenação da cidade vista como um conjunto. Em termos gerais, o plano concentrou-se em três grandes áreas: 1) saneamento, com a drenagem dos banhados, canalização dos rios e ribeirões e construção da rede de abastecimento de água e coletora de esgotos; arborização de ruas e avenidas, criação de parques nos extremos da cidade e criação de um horto municipal; 2) circulação: descongestionameto do centro da cidade e criação das perimetrais externas (0, 1, 2 e 3); 3) órgãos funcionais: construção de um centro destinado às atividades administrativas, criação de 1 Artigo originalmente apresentado na sessão “Urbanismo, qualidade de vida e questão ambiental” durante o Simpósio Cidade e poder, realizado entre 23 e 24 de abril de 2001 na Universidade Federal do Paraná, promovido pela Revista de Sociologia e Política e pelo Grupo de Estudos Cidade, Poder e Sociedade, sob coordenação do Prof. Dr. Nelson Rosário de Souza.

A trajetória do discurso ambiental em Curitiba 1960-2000

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RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 16, p. 97-106, jun. 2001

A TRAJETÓRIA DO DISCURSO

AMBIENTAL EM CURITIBA (1960-2000)1

Analisa-se neste trabalho o discurso sobre o meio ambiente urbano produzido pela Prefeitura Municipal deCuritiba entre 1960 e 2000. Ao contrário do discurso oficial, que apresenta as obras de cunho ambientalcomo resultado de uma reflexão técnica e de uma ação planejada, mostra-se como em Curitiba combinaram-se, de maneira pontual e não premeditada, fatores naturais com soluções técnicas a problemas ambientais.

PALAVRAS-CHAVE: Curitiba; meio ambiente urbano; política ambiental.

Márcio de OliveiraUniversidade Federal do Paraná

I. INTRODUÇÃO

A história do planejamento urbano de Curitibainicia-se em 1853-54, quando da emancipaçãopolítica do Paraná. Desse momento, quando Curi-tiba foi elevada à categoria de capital da província,deve-se reter a contratação do engenheiro francêsPierre Taulois, contratado em 1855 como Inspetor-Geral de medição de terras públicas, cuja missãoà frente de uma equipe de técnicos e agrimensoresacabaria propondo a realização de algumas refor-mas na infra-estrutura urbana da cidade, sobretudono que diz respeito ao arruamento e à retificaçãodas principais ruas (PMC, 1989-92, p. 25; MEN-DONÇA, 1992, p. 11-12).

A cidade passou, desde então, por pequenasmas numerosas mudanças em sua infra-estruturaurbana, sendo que o denominador comum a elasera a modernização. Em seu nome, elaborou-seum primeiro Código de Posturas (1895). Graçasa ele, entre outras normas, proibiu-se a construçãode casas de madeiras no centro da cidade (1905),calçaram-se as ruas centrais e substituíram-se osbondes puxados por mulas pelos bondes elétricos(1913).

O segundo Código de Posturas (1919), semprerespeitando o mesmo princípio de “modernização

como norma”, apresentou como novidades acirculação de veículos e o alargamento de ruasaté que, em 1929, a cidade ganhou uma “novaplanta”.

Em 1940, o prefeito Rozaldo de Mello Leitãocontratou a firma de engenharia Coimbra Bueno& Cia. Ltda. – que havia se notabilizado poucotempo antes pela construção da atual capital doEstado de Goiás, Goiânia – com o objetivo deconceber um plano diretor para Curitiba. Os“irmãos Bueno”, como eram conhecidos Abelardoe Jeronymo Coimbra Bueno, contrataram para aelaboração do plano então o urbanista francês(membro da Société Française des Urbanistes)Alfredo Agache, que já havia realizado trabalhossimilares nas cidades do Rio de Janeiro, de SãoPaulo e de Santos. O Plano Agache (1943), comoseria denominado posteriormente, representou aprimeira tentativa de ordenação da cidade vistacomo um conjunto. Em termos gerais, o planoconcentrou-se em três grandes áreas:

1) saneamento, com a drenagem dos banhados,canalização dos rios e ribeirões e construção darede de abastecimento de água e coletora deesgotos; arborização de ruas e avenidas, criaçãode parques nos extremos da cidade e criação deum horto municipal;

2) circulação: descongestionameto do centroda cidade e criação das perimetrais externas (0, 1,2 e 3);

3) órgãos funcionais: construção de um centrodestinado às atividades administrativas, criação de

1 Artigo originalmente apresentado na sessão “Urbanismo,qualidade de vida e questão ambiental” durante o SimpósioCidade e poder, realizado entre 23 e 24 de abril de 2001 naUniversidade Federal do Paraná, promovido pela Revista deSociologia e Política e pelo Grupo de Estudos Cidade, Poder eSociedade, sob coordenação do Prof. Dr. Nelson Rosário deSouza.

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um centro comercial, de um centro militar e deuma cidade universitária na periferia da cidade.

Desse primeiro plano, a centralização dos pré-dios públicos (atual “Centro Cívico”), o centroPolitécnico da UFPR, o centro militar do Baca-cheri, algumas galerias de águas pluviais da ruaXV de Novembro, as avenidas Visconde de Guara-puava, Sete de Setembro e Marechal Floriano sãoalgumas das obras efetivamente realizadas.

Nos anos 50, o discurso sobre Curitiba modifi-cou-se em parte, passando a vincular o paradigmada modernização (que havia norteado seu desen-volvimento até então) ao “Brasil diferente” (MAR-TINS, 1989) da imigração de origem européia: oesforço modernizador de saneamento concorreuentão com o esforço de embelezamento e de apare-lhamento cultural. A título de exemplo, datam dessaépoca obras como o Teatro Guaíra e a BibliotecaPública. Além disso, o novo Código de Posturas(1953) foi positivo para o avanço da legislaçãomunicipal sobre o meio ambiente, quando dispôs,entre outras coisas, sobre a abertura de logradou-ros públicos destruidores de cobertura vegetal,controle sobre o destino do lixo, extração de areiaetc. Para efeitos do planejamento urbano, o finaldos anos 50 assistiu ainda à criação da Comissãode Planejamento de Curitiba (COPLAC), cujo obje-tivo era controlar espacialmente o desenvolvimentoda cidade.

O período decisivo em relação ao processo deplanejamento da cidade foi contudo a década de60. Esse processo de planejamento, no sentidomoderno do termo, iniciou-se precisamente em1962, quando da eleição de Ivo Arzua para aPrefeitura da cidade. Quando a primeira turma deengenheiros-arquitetos2 procurou o então Prefeitolevando-lhe algumas idéias a respeito da circulaçãoda cidade, surgiu a idéia de reexaminar o PlanoAgache. Com essa finalidade, Arzua criou em 1963a Companhia de Urbanização de Curitiba (URBS).Em 1964, a Companhia de Desenvolvimento doParaná (CODEPAR) decidiu financiar a revisãodo Plano Agache. Realizou-se um concursopúblico, vencido pela Sociedade Serete de Estudose Projetos Ltda., que decidiu contratar a JorgeWilheim Arquitetos Associados. Curitiba começava

a entrar na história dos Planos Diretores e suaexperiência seria modelo para outras cidades doBrasil.

A grande novidade do plano proposto por JorgeWilheim foi a criação de um “grupo local de acom-panhamento” (WILHEIM, 1997), uma espécie degrupo de profissionais de notório saber técnico,cuja função seria acompanhar a implementaçãodo plano, ao mesmo tempo que atenderia às recla-mações dos arquitetos locais contra a “firma defora” e contra o planejamento “por telepatia”. Asolução encontrada pela Serete foi convidar o grupocuritibano a São Paulo e, a partir daí, enviar JorgeWillheim duas vezes por semana a Curitiba no intui-to de se reunir com a pequena equipe local, daqual fariam parte Maria Richbieter, Dúlcia Aurí-quio, José Maria Gandolfi, Reinhold Stephanes eJaime Lerner, entre outros. Dessas discussõesseria decidido mais tarde aprovar apenas um PlanoPreliminar.

Para legitimar o plano que o prefeito Arzuaapresentava como o projeto da CODEPAR, deci-diu-se pela realização entre os dias 27 e 30 de julhode 1965 do “Seminário Curitiba de Amanhã” (De-creto nº 1 000/65), a cargo da agência executivado plano. Para esse seminário foram convidadasdiversas entidades, tais como o Instituto de Arqui-tetos do Brasil, o Instituto de Engenharia, o Sindica-to das Indústrias da Construção Civil, a AssociaçãoComercial do Paraná, a Federação das Indústriase Imprensa, e, ao fim dos debates, muitas das su-gestões apontadas seriam efetivamente incorpora-das ao plano. Seria enfim o “grupo local de acom-panhamento” que se encarregaria da organizaçãodo seminário e da apresentação do plano à socieda-de curitibana. A partir do seminário, esse grupolocal seria transformado na Assessoria de Planeja-mento e Pesquisa Urbana de Curitiba (APPUC),de fato o primeiro ato de institucionalização doplano. Da APPUC ao Instituto de Planejamento ePesquisa Urbana de Curitiba (IPPUC) foi umpasso. A Lei nº 2 828/66, que instituiu o plano e oIPPUC, seria o segundo e definitivo ato no proces-so de institucionalização jurídica da decisão deplanejar, como ficava claro nas atribuições conferi-das ao Instituto: elaborar e detalhar projetos, indi-car as soluções – enfim, executar o Plano Diretor,como seria denominado a partir de então.

As características centrais deste plano diretoreram:

1) crescimento linear de um centro servido por

2 Essa turma coincidiu com a criação do curso de Arquiteturana UFPR, cujos primeiros alunos eram oriundos do curso deEngenharia e puderam optar por transferir-se para o recém-criado curso, originando a denominação de “engenheiros-arquitetos”. Jaime Lerner pertenceu a essa turma.

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vias tangenciais de circulação rápida;

2) hierarquia de vias;

3) desenvolvimento preferencial da cidadeno sentido Nordeste-Sudoeste;

4) policentrismo e adensamento;

5) extensão e adequação das áreas verdes;

6) caracterização das áreas de domínio depedestres;

7) criação de uma paisagem urbana própria.

Até o final do mandato de Arzua (dez.66),seriam realizadas algumas das obras sugeridas peloPlano Diretor: avenida Paraná, avenida Gal. MárioTourinho, avenida Presidente Kennedy, avenidaWinston Churchill, parte da rua Brigadeiro Franco,entre outras.

Segundo uma pesquisa realizada pelo IUPERJ(1973), o verdadeiro processo de planejamentourbano de Curitiba, aquele que a transformaria numexemplo de modernidade urbana, iniciou-seportanto em 1962. A partir de então, a história doplanejamento de Curitiba deve ser dividida em trêsfases, a saber:

- fase I (1962-66), período cuja característicaprincipal é a institucionalização da decisão deplanejar e da criação dos instrumentos para tanto.Esta fase conheceu agências, planos, órgãos egrupos de acompanhamento tais como: CODE-PAR, URBS, SERETE/J. Wilheim, “Grupo localde acompanhamento”, Plano Preliminar, PlanoDiretor e IPPUC, órgão municipal que mais tardese tornaria a principal agência de planejamento dacidade;

- fase II (1966-70), período em que se deu oconflito de visões e prioridades entre os projetoselaborados pela agência de planejamento (IPPUC)e as obras efetivamente realizadas pela administra-ção municipal. Conhecido também como períododa “geladeira do IPPUC”, este período é conside-rado muito importante porque o esvaziamento aque foi submetido permitiu que o instituto elabo-rasse os principais projetos que seriam implemen-tados no período subseqüente. Um dos presidentesdo Instituto nesse período foi Jaime Lerner (1968-69);

- fase III (1970-74), período da “implemen-tação”, quando coube ao IPPUC não apenaspesquisar e planejar, mas também coordenar egerir a implantação do Plano Diretor. Conhecido

também como o período da institucionalização doplanejamento urbano e do IPPUC como suaprincipal agência. Nessa fase Jaime Lerner foinomeado Prefeito de Curitiba.

A partir de meados dos anos 70 e durante adécada de 80, a modernidade urbana significou“equipar a cidade”. A diretriz foi dotar Curitiba de“instrumentos urbanos em todos os setores da re-creação, educação, terminais de transportes e deabastecimento” (PMC, 1989-92, p. 37).

Datam desse período os principais projetos naárea de transportes coletivos, embelezamento,restauração e preservação dos sítios históricos,padronização da paisagem urbana, implantação deáreas de lazer (tais como parques e bosques),granjeando à cidade a alcunha de modelo deurbanismo3 .

Enfim, Curitiba é percebida desde então comoa “[...] melhor e mais inovadora cidade do país.Uma cidade onde ônibus funcionam, ruas são lim-pas, funcionários públicos são educados e fre-qüenta-se parques e bosques nos fins de semana”(A CAPITAL DE UM PAÍS VIÁVEL, 1993, p.68). Segundo dados oficiais, as áreas de atuaçãoda Prefeitura Municipal vão desde as creches,passando pela segurança até a “educaçãoambiental”4 . Aparentemente tudo isto seria oresultado do antigo (embora atual) projeto demodernidade urbana presente no Plano Diretor,que é a marca característica da própria cidade.Um plano que hoje é expresso na forma de umplanejamento contínuo, racional e humano, elevadoà condição de “patrimônio” da cidade.

Adaptando-se porém aos novos tons da “mo-dernidade urbana”, Curitiba foi apresentada pela

3 Não sendo do nosso interesse aqui examinar as causas doaparente sucesso do planejamento urbano de Curitiba,remetemos o leitor à tese de Oliveira (2000). Segundo este,o sucesso deve-se à institucionalização do “campo” doplanejamento urbano na esfera municipal quando o ex-Diretor-Presidente do IPPUC, Jaime Lerner, foi nomeadoPrefeito da cidade. Embora concordando com essa tese,chamamos atenção para um aspecto pouco estudado: o carátertecnicamente eficiente do Plano Diretor da cidade. O sucessodo planejamento urbano, acreditamos, deve ser igualmentetributado a ele.

4 Os números são eloqüentes (número de crianças atendidaspela rede escolar, toneladas de lixo reciclados etc.) e a PMCconta com revistas e coleções (como a Memória da Curitibaurbana) para divulgar suas obras. Ver a esse respeito PMC(1995).

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municipalidade em 1992 como uma verdadeira“capital ecológica”. O paradigma da modernidadeurbana, que havia norteado o planejamento urbanoaté então, incluía agora em seu ideário a questãoambiental. No interior de um ambicioso programamunicipal, o “urbanismo” transformava-se em“urbanismo ecológico”.

II. CURITIBA, UMA CAPITAL ECOLÓGICA?ORIGENS DO DISCURSO

As primeiras ações ambientais propriamenteditas surgiram timidamente na Curitiba dos anos70 (com o primeiro governo Jaime Lerner, 1971-74), para se firmarem definitivamente na décadade 80 (com os sucessivos governos de JaimeLerner, Maurício Fruet e Roberto Requião) e nosanos 90 (principalmente nas gestões Jaime Lernere Rafael Greca).

Na primeira metade da década de 70 (gestãoJaime Lerner), as intervenções propriamente am-bientais foram 1) a construção de dois grandesparques públicos, o Parque Barigüi e o Parque SãoLourenço e 2) a Lei Municipal nº 4 557/73 quedispunha sobre a proteção e a conservação davegetação de porte arbóreo. Ligada ainda àproteção da vegetação, a Prefeitura Municipal deCuritiba (PMC) lançaria ainda uma campanhavisando à proteção e ao plantio de árvores, cujolema era “Nós damos a sombra, você a águafresca”. A partir desse momento (1972), foramplantadas em média 60 000 árvores/ano.

No período 1975-79 (gestão Saul Raiz) foicriada a Lei nº 5 234/75, ou Lei de zoneamento e

uso do solo. Graças a ela, modificou-se o uso dosolo no município através da criação de novossetores, entre os quais os setores especiais. Atravésdo Decreto nº 400/76, regulamentaram-se estessetores, criando os Setores especiais depreservação de fundos de vale. Essa legislaçãopermitiu, por exemplo, que a área do Parque Iguaçu– o maior da cidade com 8 264 316 m2 – come-çasse a ser desapropriada com recursos do Minis-tério do Interior. O objetivo aqui era a preservaçãonão só de fundos de vale e córregos mas tambémdas matas ciliares de seu entorno contra a espe-culação imobiliária e a ocupação clandestina.

Na literatura jurídica do Município de Curitiba,parques e bosques, por exemplo, aparecem pelaprimeira vez dentro da política de preservação dasáreas arborizadas públicas da cidade, definida combase no Código de Posturas e de Obras doMunicípio (Lei nº 699/53) e no Plano Diretor de1965. Contudo, até o final dos anos 60, apenas oParque da Barreirinha havia sido implantado,aproveitando uma área já pertencente ao HortoMunicipal. Além desse, havia o Passeio Público,fundado no século XIX, num total de 2 parquespúblicos.

No período 1972-82 foram criados 3 parquese 3 bosques, correspondendo a quase 10 milhõesde m² de área verde criados, ou seja, 2,31% deárea do município preservada, num acréscimo dequase 10 m² de área verde/habitante (Quadro 1).Nenhum outro período da história de Curitibaconheceria um incremento tão radical de áreasverdes urbanas.

Nos anos 80 houve mais alguns avançosrelativos à questão ambiental no município. Coma criação da Secretaria Municipal do Meio Ambien-te (1986), o Executivo passava a assumir o moni-toramento ambiental do município que, até então,vinha sendo feito por um órgão estadual. Aindanesse período foi criada a Lei nº 6 819/86, queestimulou a preservação e a criação de áreas verdes

através de isenções parciais no IPTU. A coleta e odestino do lixo hospitalar foram tambémdisciplinados, através da Lei nº 6 866/86.

Nas décadas de 60 e 70, e praticamente durantetoda a década de 80, portanto, as conquistas am-bientais em Curitiba se resumiram essencialmenteà evolução da legislação ambiental e à preservação

Quadro 1: Número, área m² e área m²/hab por tipo de área verde – 1972-1982

Fonte: SMMA (1996).

* Cálculo realizado para uma população de Curitiba, em 1980, de 1 024 975 habitantes (IBGE, 1980).

Tipo Número Área (m²) Área verde (m²/hab)*

Parques 3 9 868 234 9,6277

Bosques 3 78 682 0,0767

TOTAL 6 9 946 916 9,7044

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e à criação de áreas verdes. Não havia entãonenhum programa explicitamente ambiental. Comoentão teria surgido, já em 1990, o discurso deCuritiba, capital ecológica?

As raízes epistemológicas dos documentosoficiais sobre meio ambiente urbano são osdiscursos municipais do início da década de 90.O documento que lançou a “filosofia ambientalista”da Prefeitura é o número especial da Revista doIPPUC – Memória da Curitiba urbana, cujo títulofoi “Escola ecológica de urbanismo”. Nesse núme-ro, pela primeira vez, foi feito um esforço de sin-tetizar e de ordenar todas as ações ambientalistasda prefeitura, mostrando todas as etapas e progra-mas que possibilitaram a transformação de Curitibaem uma capital ecológica. A partir deste momen-to, todas as publicações da Prefeitura que tratamde temas ecológicos fazem-no na linha definidapor esse número. Nelas, as preocupações ecológi-cas e a qualidade de vida urbana são apresentadascomo estando na origem da política de preserva-ção de áreas verdes, de separação do lixo, dostransportes coletivos etc. Trata-se de uma ecologiaurbana, que pode ser resumida nos seguintes ter-mos: a cidade teria compreendido que “[...] o meioambiente primário de cada um é a casa onde vive,a rua onde mora, a cidade onde reside”. É nessaperspectiva que a municipalidade se apóia parafalar num projeto ecológico iniciado há 20 anos,que teria dado origem aos Postulados da Escolade urbanismo ecológico (IPPUC, 1992, p. 3-4).

Nesses postulados, Curitiba foi apresentadacomo uma “cidade com justiça social”, “onde ohomem é o centro de todas as atenções” (PMC,1994, p. 3). Chama-se a atenção aqui tanto para“as condições ambientais de vida” quanto para “asexigências da natureza humana”. Dessa forma,tanto são ecológicos os parques e bosques quantoos ônibus expressos, o Calçadão da rua das Floresou a Cidade industrial.

Portanto, quem deita os olhos sobre osdocumentos oficiais, por exemplo, em torno dosparques e bosques de Curitiba, conclui que estesforam pensados e criados como fruto de umadescoberta recente – a Ecologia – e de um certo“entendimento” – a qualidade de vida5 –, ainda

que inseridos dentro da trajetória de um discursoambiental oficial que rima desenvolvimento complanejamento urbano6 . Mas conforme demonstra-mos alhures (OLIVEIRA, 1996a), o sentido geralda criação dos parques e bosques curitibanos con-centrou-se, fundamentalmente, nos três primeirosparques (Iguaçu, Barigüi e São Lourenço), criadosnos anos 70, década de maior incremento nas áreasverdes públicas no município. A função dessesparques, no momento em que foram idealizados,uniu de um lado a antiga idéia “de dar água àcidade” do então arquiteto do IPPUC dos anos60, Jaime Lerner, e, de outro, uma solução técnicaencontrada para combater enchentes na cidadesurgida quando da grande enchente que vitimou aantiga usina de curtume do São Lourenço nocomeço dos anos 70, quando o mesmo Lernerera Prefeito da cidade. Vingou nesse momento aidéia de dar água à cidade emoldurando essa “água”com áreas verdes, através de obras de saneamentoe infra-estrutura urbana que evitassem ao máximopossível o problema das enchentes. Nascia assima política de criação de grandes parques (comgrandes lagos-reservatório em seu interior), debi-tária de circunstâncias pontuais e não necessaria-mente ecológicas7 .

Numa palavra, portanto, não se podendo cre-ditar o incremento das áreas verdes ocorrido nosanos 70 a um discurso ambiental que somente seriaformulado nos anos 90, o contrário seria verdadei-ro? Acaso devemos procurar as raízes desse dis-

5 “[...] A qualidade de vida de seus habitantes estavarelacionada com a quantidade de verde na cidade [...]”. Apartir daí, a cidade teria aumentado sua “[...] ridícula relaçãode meio metro quadrado de então para os nada menos de 50

metros quadrados de cobertura vegetal por habitante que secontabiliza hoje – a mais alta taxa do país” (IPPUC, 1992, p.4; grifo no original).

6 De fato, para a atual Prefeitura, a preservação das áreasverdes é o resultado da “[...] interação entre política dedesenvolvimento urbano e projeto ecológico [...]”. Seu lemaé “[...] fazer a cidade crescer econômica e demograficamente semdegradar-se ambiental e socialmente” (IPPUC, 1992, p. 4; grifosno original).

7 Ver a este respeito o depoimento de Nicolau Kluppel emIPPUC (1990), além de uma entrevista concedida às minhasbolsistas Silmara Quintino e Maria H. P. Ribeiro, em abril de1996 (KLUPPEL, 1996), no quadro de uma pesquisa sobreáreas verdes públicas em Curitiba. Nessa entrevista, oengenheiro confirma que o financiamento para a construçãodos parques Barigüi e São Lourenço “foram conseguidos deum programa de drenagem (que é saneamento) do BNH.Nós não conseguimos os recursos para fazer os parques, nósconseguimos os recursos para a drenagem, o programa eraespecífico de drenagem e nós fizemos a ‘sopa de pedras’ econseguimos os parques”.

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curso no sucesso das ações ambientais? Ou quemsabe no avanço da legislação ambiental? Ou, enfim,tudo não passaria apenas de um marketingextremamente bem-feito?

De fato, houve um avanço na legislação am-biental. Em 18 de abril de 1990, o então PrefeitoJaime Lerner sancionou a Lei nº 7 447/90, quedispôs sobre a política de controle, preservação erecuperação do meio ambiente. Em 19 de dezem-bro de 1991, por iniciativa da Câmara Municipalde Vereadores, o mesmo Lerner sancionou a Leinº 7 833/91, dispondo sobre o mesmo tema docontrole, preservação e recuperação do meio am-biente. Essa nova lei revogou a anterior e, entreoutras disposições, ampliou a área de competênciado já existente Conselho Municipal do MeioAmbiente.

Foram implantados ainda dois programasexplicitamente ambientais – “Lixo que não é lixo”e “Compra do Lixo” – além de não ter faltado àPrefeitura um bom marketing de suas ações(GARCIA, 1996). Mas fatores exógenos acabaramcontribuindo também para a consolidação dodiscurso de capital ecológica. Como é de conhe-cimento público, nos últimos 15 anos a cidade deCuritiba viu alguns de seus programas ambientaisserem reconhecidos e premiados por organismosinternacionais. Tal fato ocorreu originalmente como Annual Achievement Award for PromotingGlobal Energy Efficiency, oferecido pelo InstitutoInternacional de Conservação de Energia(Washington, D. C.), para o programa de transpor-tes coletivos. Além desse, Curitiba recebeu oprêmio Habitat oferecido pelo Centro das NaçõesUnidas para Assentamentos Humanos. Um outroprêmio foi o Árvore da vida, oferecido pela UniãoInternacional para a Conservação da Natureza.Seguiu-se ainda o prêmio para os programas“Compra do lixo” e “Lixo que não é lixo”, conce-dido em 1990 pela ONU por intermédio do Progra-ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente(PNUE), quando a cidade conquistou o título decapital ecológica. Em 1992, enfim, Curitibarecebeu a comenda Honra ao Mérito aos Prefeitosdurante a Rio-92.

Nesse mesmo ano, houve ainda a publicaçãode um discurso do então Prefeito Jaime Lerner,no qual se encontra resumida sua filosofiaambiental urbana: “A cidade ambientalmentecorreta deve dar predominância ao transportecoletivo sobre o individual, economizando

combustível e reduzindo a necessidade deinvestimentos em obras viárias. A cidadeambientalmente correta evita a industrializaçãoforçada, rejeita as indústrias poluentes – e força ogoverno e produtores a investir em tecnologiaslimpas” (LERNER, 1992).

Esse quadro contou enfim com o apoioinvoluntário de alguns órgãos da imprensa. Étípico, por exemplo, o caso da reportagem de capada revista Veja, publicada em 1993 por ocasião dafesta de 300 anos da cidade e intitulada A capitalde um país viável. Cabe menção igualmente àedição especial da revista Ecologia edesenvolvimento (1993) inteiramente dedicada àcidade. Em ambas reportagens, a PrefeituraMunicipal de Curitiba (PMC) é apresentada comotendo agido com base num entendimento. E suaações eram – cabe dizer – fantásticas, poismodificar a relação 0,5 m2 de área verde/habitantepara 50 m2 de área verde/habitante em menos deduas décadas não deve ter sido tarefa fácil. Alémdisso, encontra-se aí uma verdadeira contribuiçãoteórico-prática à questão ambiental em meiourbano. Um discurso acompanhado de um guiapara ação, ou seja, reflexões que estavamorientando as ações municipais sobre o tecidourbano como um todo e não apenas sobre o meioambiente urbano.

Obviamente o reconhecimento e os prêmiosinternacionais obtidos a partir de 1990 para osprogramas de reciclagem de lixo, os artigos naimprensa e as ações ambientais contribuíram paradar sustentação a esse tipo de discurso. Mas esseconjunto pareceu ainda insuficiente para explicara ousadia com a qual os discursos ambientalistasoficiais foram utilizados para legitimar as açõespúblicas.

O caso do programa “Câmbio verde” (CV) éum exemplo excelente do que estamos falando.Surgido em 1991, tinha por objetivo “garantir acolocação no mercado das safras dehortifrutigranjeiros de pequenos produtores daRegião Metropolitana de Curitiba”. Suas origensremontam a uma diminuição do consumo deprodutos hortícolas não só em Curitiba mas emtodo o país, devido ao surgimento de uma epidemiade cólera. No cinturão verde de Curitiba, a epidemiacoincidiu com uma superprodução de hortícolas,sobretudo de couve-flor. Tendo em vista a quedanos preços e obedecendo às leis de mercado,produtores destruíram sua produção antes mesmo

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da colheita. Essas circunstâncias fizeram que aPMC criasse o CV, um programa de troca de lixoreciclável por produtos hortifrutigranjeiros.

O CV contou ainda com antecedentes de pesoem sua implantação. Um desses era aimpossibilidade prática de coletar lixo em áreas defavela, ribeirinhas, invadidas, de risco ou de difícilacesso, habitadas, via de regra, por comunidadescom renda familiar de até 2 salários mínimos.Como forma de baratear e permitir a coleta delixo nessas áreas, e ajudado pela citada epidemiade cólera, surgiu a idéia: por que não trocaralimentos que poderiam ser comprados a preçobastante razoável na CEASA por lixo que a própriacomunidade coletaria?

A resposta à pergunta acima necessitou dealguns estudos de viabilidade econômica. Masbasicamente ela foi conseqüência de ações que aPMC havia começado a desenvolver pouco maisde um ano antes através do programa “Comprado lixo”. Nesse programa, iniciado em janeiro de1989, pagava-se em vales-transporte à comunidadecarente, que realizasse a coleta, o mesmo valorgasto na coleta pelo sistema convencional. Portan-to, já no início do CV, a PMC sabia quanto deveriaser pago pelo lixo “comprado”. Aparentemente,tratava-se de um sistema de equivalência de custos,no qual a PMC nada despenderia a mais do que onormal. Contudo, a PMC acreditava que poderiamesmo lucrar com esse sistema tanto no planofinanceiro quanto no social; tanto na área de saúdequanto na área de meio ambiente. Isso porque nosbairros escolhidos para implantação do programahavia surtos de doenças infecto-contagiosas e osproblemas ambientais – decorrentes da não coletade lixo – eram sentidos tanto na degradação físicado ambiente quanto potencializados pelas cheiasna estação das chuvas.

O CV foi lançado por sobre as bases do“Compra do lixo” – corrigindo-se inclusive algunserros deste, como a prática de coletar lixo pelacidade e não apenas nos próprios bairros,denominada então de “caça ao lixo” – mas tambémdo programa “Lixo que não é lixo”. Sabia-seportanto que esse tipo de troca (câmbio) permitirianão apenas limpar certas áreas, contribuindo parauma melhoria do meio ambiente, como tambémpara cuidar da saúde de parcelas da população,além de dar vazão a uma certa produção dehortigranjeiros, com benefícios econômicos paraa população carente mas também para os

produtores.

Hoje em dia, o discurso sobre o CV mudou.Seu objetivo geral agora é “estabelecer bases paraa sustentabilidade da vida no planeta”, enquantoseus objetivos específicos são “promover aeducação ambiental, gerar empregos diretos eindiretos, prolongar a vida útil do aterro sanitário,racionalizar a exploração dos recursos naturais,melhorar a limpeza do ambiente e, é claro, facilitaro escoamento da safra de hortifrutigranjeiros docinturão verde de Curitiba” (PMC, 1996b). Trata-se portanto de um programa sustentável,estritamente ambiental, que envolve, além daSecretaria Municipal de Meio Ambiente, oDepartamento de Pesquisa e Monitoramento e aGerência de Educação Ambiental. Contudo, a PMCesquece-se de que as origens do CV não foramestritamente ecológicas e que, sobretudo, aviabilidade econômica continua pesando nomomento de aceitar que novas comunidades façamparte dele. Em outras palavras, aquilo que deveriaser uma condição sine qua non para sua sobrevi-vência – a incorporação de novas comunidades –continua a ser objeto de estudo de viabilidadeeconômica ainda que técnicos da PMC declaremque dificilmente uma proposta de adesão sejanegada em virtude do alcance político e social doprograma.

Foi infrutífero assim procurar as causas dasações ambientais em discursos ou documentosoficiais. As causas da ecologização dos discursosmunicipais sobre o meio ambiente e sua ousadiapolítica é que talvez possam ser explicadas porseus efeitos. A consolidação do discurso de Curitibaenquanto uma capital ecológica teria se dadofundamentalmente com base em algumas açõesambientais. Em outras palavras, não seria odiscurso que orientava a prática, mas o contrário!De fato, a partir do discurso ambiental era a própriahistória da cidade que adquiria um novo sentido,como parece demonstrar o seguinte trecho dosPostulados: “Por exemplo: o que tem a ver comecologia a implantação dos ônibus expressos? Ocalçadão da Rua das Flores só é ecológico porcausa de suas floreiras? Até que ponto a CidadeIndustrial é também uma obra ecológica?

É esta interação entre a política de desenvolvi-mento urbano e projeto ecológico que distingueCuritiba da grande maioria das cidades brasileiras.[...]

É exatamente neste ponto – fazer uma cidade

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crescer economicamente sem degradar-se am-biental e socialmente – que se colocou o desafioaos que, há 20 anos. Tiveram a responsabilidadede assumir os destinos de Curitiba. E foi a partirdaí, muitas vezes até empiricamente, observandoatentamente as relações de causa e efeito, quecomeçaram a ser escritos informalmente os gran-des postulados do que hoje ousamos chamar, emletras maiúsculas, de Escola de Urbanismo Eco-lógico.

Tais postulados compõem o conjunto dediretrizes que dão coerência à intervenção do PoderMunicipal em todos os campos – do físico-estrutural ao cultural, atingindo também asentranhas do psicossocial” (IPPUC, 1992, p. 4).

O desenvolvimento dos discursos ambientaisteria se dado “[...] empiricamente, observandoatentamente as relações de causa e efeito [...]”,embora fossem as ações ambientais queescrevessem informalmente os “postulados”,desafio esse que já estava colocado há 20 anos(exatamente a partir da primeira gestão Lerner naPrefeitura). Lê-se ainda o que distingue Curitiba:a interação entre a política de desenvolvimentourbano com o projeto ecológico, em todos oscampos, “do físico-estrutural ao cultural,atingindo também as entranhas do psicossocial”.Era a história da cidade que surgia sob um novomas definitivo ângulo.

Não obstante o teor da mensagem que se queriapassar – Curitiba: fruto dos postulados ecológicos– uma outra leitura desse texto permitia supor queas intervenções então consideradas ambientaisteriam se produzido pontualmente uma vezobservadas as relações de causa e efeito, ou seja,sua eficiência e custo operacional e não um sentidoecológico explícito. A criação da Cidade Industrialparece ser um exemplo claro disso. Em nenhummomento de sua história as preocupaçõesambientais estiveram em sua origem. Não houve,por exemplo, restrições explícitas à implantaçãode indústrias poluentes. A única preocupaçãoambiental propriamente dita foi o estabelecimentode espaços diferenciados para indústrias poluentese não poluentes, reservando áreas verdes entre oslotes. Além disso, com o nome de cidade e não deparque industrial, como se dizia então, tentou-sepassar a idéia de um lugar aprazível – uma cidade– em oposição à imagem cinza e poluídanormalmente associada aos distritos e parquesindustriais (IPPUC, 1985). Vinte anos depois de

criada a Cidade Industrial, falava-se de suas áreasverdes como uma preocupação ambiental tal comose encontra nos postulados. E assim, a Curitibados anos 90 foi surgindo nos discursos comodispondo de um verdadeiro arsenal ambientallentamente desenvolvido desde os anos 70!

A partir do teor dos discursos ambientaisfixados nos postulados, tanto as intervenções notecido urbano feitas então (no início dos anos 90)quanto aquelas de outrora (realizadas a partir dosanos 70) passaram a ser apresentadas como partede uma espécie de pré-história de um planejamentoverde meticulosamente elaborado e criteriosamenterealizado. Era o viés do discurso (ou das idéias)permitindo à PMC fazer uma releitura de suaspolíticas urbanas não necessariamente ecológicasa seu tempo, mas então reapresentadas comoprojetos específicos de um discurso ambientalistamaior.

III. CURITIBA: UMA CIDADE AMBIENTAL-MENTE CORRETA

Em 1996, a partir da eleição de Cássio Taniguchipara a Prefeitura da cidade, o discurso ambienta-lista municipal mudaria pouco a pouco. O discursooficial, tendo por base a idéia de uma “capital eco-lógica”, aparentemente não se sustentava mais(URBAN, 1999), sendo discutido mesmo no seioda Secretaria Municipal do Meio Ambiente(SMMA), sobretudo porque a cidade continuavaa apresentar dados ambientais efetivamente poucoecológicos, como, por exemplo, na área de sanea-mento8 . “Capital ecológica” passou então a serconsiderado um título do qual a cidade deveriaorgulhar-se mas o importante era que Curitiba esta-va “A caminho de uma cidade ambientalmentecorreta”, o que parecia ser uma tentativa de des-vencilhar-se da pesada imagem anterior e ao mes-mo tempo associar-se a uma imagem mais à modae vinculada à idéia do “politicamente correto”.

Nesse novo formato, contudo, a idéia de umlastro ecológico histórico a guiar as ações da admi-nistração municipal mantém-se intacto. O docu-mento intitulado Curitiba – uma cidade ambiental-mente correta contém frases como: “Em Curitiba,a preocupação com a qualidade do meio ambientesurge já nos anos quarenta, com a elaboração doPlano Agache, um dos primeiros planos diretores

8 Segundo a PMC (1996a), a rede de esgoto abrangia apenas47% da cidade, sendo que desses apenas 25% eram tratados.

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urbanos implementados no país” (PMC, 1996a,p. 4). O documento continua ainda dizendo que ofechamento da rua XV de Novembro – uma ruabastante comercial – para a circulação deautomóveis transformando-a num “calçadão” jáera uma atitude de antecipação “na busca deespaços abertos, de verde”. Se lembrarmos queessa obra data de 1971, veremos o quão inovadorateria sido a atitude da PMC se realmente se tivessetratado de uma obra ecológica.

Paralelamente a isso, a SMMA aumentou seuleque de ações. Às tradicionais áreas de atuação –os diversos programas de resíduos sólidos,controle ambiental, áreas verdes e arborizaçãopública – a PMC investia em “pesquisas sobrerecursos naturais”, “educação ambiental nascomunidades”, montagem de um banco de dadosmunicipais e cursos sobre meio ambiente dentroda Universidade Livre do Meio Ambiente eprogramas de coleta de lixo hospitalar e de lixoradioativo, em busca de tecnologia ambiental,eximindo-se do problema do saneamento por serde competência estadual. Seguindo sua própriatradição de apresentar a cidade como estando emsintonia com seu tempo mas sem perder suaidentidade fundada em sua própria experiência, aPMC assegurava que a cidade assumia agora umapreocupação global a caminho da sustentabilidade:“[...] Curitiba preocupa-se com a solução localdos problemas ecológicos globais. Sua vivênciaindica a importância de ser ambientalmente correta,algo que diz respeito às demais cidades e aoconjunto do planeta, como atitudes e práticas depreservação da vida. É a direção correta, solidáriae criativa, no caminho da auto-sustentação. Combase na efetiva participação da sociedade, na maisirrestrita socialização da informação, nodesenvolvimento de uma vontade coletiva de aliaro desenvolvimento à preservação da natureza”(idem, p. 21).

É o paradigma do “desenvolvimento sustentá-vel” que, em princípio, passou então a inspirar odiscurso e as ações municipais.

Finalizando nossa trajetória, valeria a pena

mencionar o discurso atual (a partir de janeiro de2000) da PMC, que apresenta Curitiba como uma“capital social”. Pode-se ler subrepticiamente essenovo discurso como que enviando a seguintemensagem: uma vez equacionados os problemasurbanos e ambientais mais graves – o que deixano ar a idéia de que se esses problemas não foramresolvidos ao menos estão satisfatoriamente enca-minhados – passa-se agora a enfrentar os proble-mas sociais oriundos de outras searas.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O resgate histórico do discurso ambientalmunicipal, como visto, não é tarefa fácil. Confun-dem-se aqui e ali, em função do momento, idéias,ações, um certo acaso, pequenas obras, muitosparques-represas, comunidades carentes desprovi-das de coleta de lixo e, sobretudo, uma enormecapacidade de releitura. Se é fato que Curitiba apre-senta hoje uma estrutura administrativa – possuiuma Secretaria voltada ao tratamento do meioambiente – programas de educação ambiental, decoleta de lixo, bom número de áreas verdes delazer, um bom sistema de transporte e uma boalegislação ambiental, forçoso é constatar que esseestado de coisas não é fruto tão-somente deoriginalidade intelectual ou administrativa, aindaque se possa verificar uma e outra. Ao contráriodo “montado” discurso oficial, a história recenteda cidade parece revelar como em Curitibacombinaram-se fatores naturais – uma fantásticahidrografia, por exemplo – com soluções de cunhoambiental – os parques com grandes lagos em seuinterior. Parece revelar ainda como certas obraspúblicas conquistaram espaço dentro da arenapolítico-administrativa institucionalizando-se,como parece ser o caso do Plano Diretor de 1960,que acabaria dando origem ao IPPUC ou aindaquando da criação da SMMA.

Seja como for, a história ambiental de Curitibacontinua sendo rica de ensinamentos e suaaventada originalidade necessita ainda ser melhorcompreendida.

Recebido para publicação em 10 de junho de 2001.

Márcio de Oliveira ([email protected]) é Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V(Sorbonne) e Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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