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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013. A outra face do janus cabo-verdiano: uma análise crítica da violência juvenil em Cabo Verde * Nardi Sousa ** Resumo: A sociedade cabo-verdiana tem enfrentado, nos últimos tempos, uma crescente onda de criminalidade e violência urbana juvenil nos principais centros urbanos do país. A situação é muito confusa, dado que às vezes condena-se os jovens dos bairros periféricos, outras vezes os agentes ligados ao narcotráfico. Isso tem provocado um pânico geral e alerta para que se tomem medidas preventivas e punitivas. Tem-se verificado também uma certa desilusão dos jovens das comunidades pobres, que apresentam características de pessoas disempowered: desiludidas, desconfiadas com comportamentos passivos e agressivos como raiva e pessimismo. O artigo pretende fazer uma reflexão crítica sobre a problemática da delinquência juvenil em Cabo Verde, partindo de alguns estudos e contribuições teóricas disponíveis sobre o fenómeno, assim como ‘desmontar’ o PESI-2009 1 , no que concerne ao espaço reservado à questão da delinquência/criminalidade juvenil. A revisitação de alguns estudos sobre a violência juvenil dá-se num diálogo entre Sociologia, Antropologia (simétrica) e Etnografia, da necessidade de se conhecer a questão da violência em Cabo Verde, assim como novos paradigmas que ajudem a compreender fenómenos tais como exclusão social e violência juvenil. Palavras-chave: Jovens, Violência, Delinquência Juvenil, Thug, PESI-2009, Segurança Interna, Cabo Verde. Abstract: The cape-verdean society has faced in recent times, a growing wave of juvenile crime and urban violence in major urban centers of the country. The situation is very confusing, because sometimes it condemns youth of the suburbs, sometimes agents linked to drug trafficking. This has caused widespread panic and alert to take preventive and punitive measures. There has been also a certain disillusionment of young people in poor communities, which have characteristics of disempowered people: disillusioned, distrustful with passive and aggressive behaviors such as anger and pessimism. The article aims to make a critical reflection on the problem of juvenile delinquency in Cape Verde, departing from some studies and theoretical contributions available on the phenomenon and ' dismantle ' the PESI-2009, regarding the priority that has been given to the issue of delinquency/juvenile crime . A revision of some studies on youth violence occurs on a dialogue between sociology, (symmetric) anthropology and Ethnography, the need to know the issue of violence in Cape Verde, as well as new paradigms that help to understand the phenomena such as social exclusion and youth violence. Key-words: Youth, Violence, Juvenile Delinquency, Thug, PESI-2009, Internal Security, Cape Verde. Introdução Cabo Verde é um país que soube adaptar-se, ao longo dos anos, a um mundo dinâmico e assimétrico. Aproveitou bem os parcos recursos naturais, os da diáspora e da comunidade internacional, o que tem permitido um crescimento razoável, reconhecido nacional e internacionalmente, anestesiando a estrutura geradora do subdesenvolvimento 2 herdado com a independência (Renato Cardoso, 1987:45). * Artigo recebido em Dezembro de 2012 e aceite em Janeiro de 2013. ** Sociólogo, professor na Universidade de Santiago – Cabo Verde. Mestre em Estudos Africanos. Doutorando em Ciências Sociais. Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade de Santiago. Email: [email protected] 1 PESI-2009 (Plano Estratégico de Segurança Interna) do Ministério da Administração Interna (MAI). 2 Cabo Verde teve que enfrentar e gerir, após a sua independência, um sistema político e económico que configurava uma verdadeira estrutura geradora do subdesenvolvimento (crise política, social, económica e ecológica) dinâmica, que engendra, cria e reproduz o subdesenvolvimento. A sociedade que se herdou, a estrutura política e administrativa que, inclusivamente, os africanos ajudaram a erguer, o sistema social e económico em que os mesmos se encontravam enredados e não destruíram com a conquista da independência, constituem elementos geradores do subdesenvolvimento e partes de um sistema vocacionado à partida para fracassar na luta pelo desenvolvimento. A estrutura contém valores, normas, factos e criaturas que só se justificam se compreendidos como continuidade, decorrência e corolário do passado. Em termos políticos, muitos dos regimes saídos do processo colonial surgem como cópia e continuidade desse mesmo processo.

A Outra Face do Janus Cabo-verdiano: Análise Crítica da Violência Juvenil em Cabo Verde

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Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

1

A outra face do janus cabo-verdiano: uma análise crítica da violência juvenil em Cabo Verde*

Nardi Sousa**

Resumo: A sociedade cabo-verdiana tem enfrentado, nos últimos tempos, uma crescente onda de criminalidade e violência urbana juvenil nos principais centros urbanos do país. A situação é muito confusa, dado que às vezes condena-se os jovens dos bairros periféricos, outras vezes os agentes ligados ao narcotráfico. Isso tem provocado um pânico geral e alerta para que se tomem medidas preventivas e punitivas. Tem-se verificado também uma certa desilusão dos jovens das comunidades pobres, que apresentam características de pessoas disempowered: desiludidas, desconfiadas com comportamentos passivos e agressivos como raiva e pessimismo. O artigo pretende fazer uma reflexão crítica sobre a problemática da delinquência juvenil em Cabo Verde, partindo de alguns estudos e contribuições teóricas disponíveis sobre o fenómeno, assim como ‘desmontar’ o PESI-20091, no que concerne ao espaço reservado à questão da delinquência/criminalidade juvenil. A revisitação de alguns estudos sobre a violência juvenil dá-se num diálogo entre Sociologia, Antropologia (simétrica) e Etnografia, da necessidade de se conhecer a questão da violência em Cabo Verde, assim como novos paradigmas que ajudem a compreender fenómenos tais como exclusão social e violência juvenil. Palavras-chave: Jovens, Violência, Delinquência Juvenil, Thug, PESI-2009, Segurança Interna, Cabo Verde. Abstract: The cape-verdean society has faced in recent times, a growing wave of juvenile crime and urban violence in major urban centers of the country. The situation is very confusing, because sometimes it condemns youth of the suburbs, sometimes agents linked to drug trafficking. This has caused widespread panic and alert to take preventive and punitive measures. There has been also a certain disillusionment of young people in poor communities, which have characteristics of disempowered people: disillusioned, distrustful with passive and aggressive behaviors such as anger and pessimism. The article aims to make a critical reflection on the problem of juvenile delinquency in Cape Verde, departing from some studies and theoretical contributions available on the phenomenon and ' dismantle ' the PESI-2009, regarding the priority that has been given to the issue of delinquency/juvenile crime . A revision of some studies on youth violence occurs on a dialogue between sociology, (symmetric) anthropology and Ethnography, the need to know the issue of violence in Cape Verde, as well as new paradigms that help to understand the phenomena such as social exclusion and youth violence. Key-words: Youth, Violence, Juvenile Delinquency, Thug, PESI-2009, Internal Security, Cape Verde.

Introdução

Cabo Verde é um país que soube adaptar-se, ao longo dos anos, a um mundo dinâmico

e assimétrico. Aproveitou bem os parcos recursos naturais, os da diáspora e da comunidade

internacional, o que tem permitido um crescimento razoável, reconhecido nacional e

internacionalmente, anestesiando a estrutura geradora do subdesenvolvimento2 herdado com

a independência (Renato Cardoso, 1987:45).

* Artigo recebido em Dezembro de 2012 e aceite em Janeiro de 2013. ** Sociólogo, professor na Universidade de Santiago – Cabo Verde. Mestre em Estudos Africanos. Doutorando em Ciências Sociais. Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade de Santiago. Email: [email protected] 1 PESI-2009 (Plano Estratégico de Segurança Interna) do Ministério da Administração Interna (MAI). 2 Cabo Verde teve que enfrentar e gerir, após a sua independência, um sistema político e económico que configurava uma verdadeira estrutura geradora do subdesenvolvimento (crise política, social, económica e ecológica) dinâmica, que engendra, cria e reproduz o subdesenvolvimento. A sociedade que se herdou, a estrutura política e administrativa que, inclusivamente, os africanos ajudaram a erguer, o sistema social e económico em que os mesmos se encontravam enredados e não destruíram com a conquista da independência, constituem elementos geradores do subdesenvolvimento e partes de um sistema vocacionado à partida para fracassar na luta pelo desenvolvimento. A estrutura contém valores, normas, factos e criaturas que só se justificam se compreendidos como continuidade, decorrência e corolário do passado. Em termos políticos, muitos dos regimes saídos do processo colonial surgem como cópia e continuidade desse mesmo processo.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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Apesar das vulnerabilidades, pobreza estrutural, problemas ambientais, recursos

escassos, excessiva dependência da comunidade internacional, o país soube investir na

educação e saúde, atraindo poupanças da diáspora e IDE (Investimento Direto Estrangeiro).

Porém, o problema é que este avanço parece ser um falso desenvolvimento, i.e., Cabo Verde

está longe de ganhar a sua sustentabilidade económica, continua vulnerável e dependente da

comunidade internacional. Mesmo assim, nos últimos anos, tem atraído milhares de cidadãos

dos países da África Ocidental, sendo que a grande maioria se encontra numa situação ilegal.

Muitos entram no país com base nos Protocolos da Livre Circulação entre os países da

CEDEAO.3

A procura de Cabo Verde deve-se ao facto de o país granjear de liberdade, paz social,

estabilidade política e um certo crescimento económico.4

Cabo Verde, um pequeno Estado insular, é, de acordo com a política de crédito do

Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), um país de rendimento médio baixo (PRMB).

O Produto Nacional Bruto (PNB) per capita cabo-verdiano, em 2010, rondou os 3.270 USD,

bem acima do patamar de 1.175 USD de PNB per capita dos PRMB. Apesar dos progressos

significativos alcançados nas últimas duas décadas, o país continua a enfrentar alguns

constrangimentos e desafios significativos ao seu desenvolvimento.

Para responder ao declínio da atividade económica, fruto da crise económica

internacional (dívida pública da zona euro), o Governo adotou um programa de investimento

público (PIP) contra-cíclico para o período 2010-2011. Como resultado, o crescimento do

Produto Interno Bruto (PIB) acelerou para os 5.4%, em 2010, abrandando posteriormente para

os 5%, em 2011. Os especialistas consideram que os estímulos fiscais compensaram a

contração do investimento privado e mantiveram um nível adequado de desenvolvimento

infraestrutural. O turismo manteve a trajetória de recuperação em 2011, mas a balança de

transações correntes continuou a deteriorar-se, sobretudo devido à subida das importações de

bens de investimento, reflexo dos estímulos fiscais governamentais. Para 2012-2013, o

cenário de base das autoridades assume uma contração da política fiscal e políticas monetárias

prudentes. O crescimento real do PIB deverá rondar os 5%, permitindo que as reservas

externas garantam acima de três meses de cobertura das importações de bens e serviços, para

salvaguardar a taxa de câmbio fixa com o euro. Neste período, a inflação deverá situar-se nos

3% abaixo dos valores registados em 2011 (4.5%).5

3 CEDEAO – Comunidade dos Países da África Ocidental (16 países). 4 PESI-2009, p. 29 5 Economic Outlook Cabo Verde 2012, p. 2.

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Este período de alguma efervescência económico-cultural e de patologias sociais, tem

criado um senso comum, partilhado por muita gente de que os jovens de bairros pobres e

problemáticos, da capital, suscitam desconfiança, preocupações, medos. Há o temor de que

podem criar pânico social, pôr em causa a tal paz social cabo-verdiana e aumentar a

criminalidade. Esses jovens correm o risco de se transformar numa figura a quem é dada a

responsabilidade da delinquência difundida, e se esquece que a violência/delinquência juvenil

“tem um fenómeno espelho interessante, porque faz transparecer os problemas internos da

sociedade” (Nardi Sousa, 2003:23).

Sendo assim, não podia deixar de trazer para a discussão uma série de questões sobre a

problemática da delinquência/criminalidade juvenil. Muita gente, inclusive os investigadores

têm apontado fatores que se relacionam com a problemática da delinquência/criminalidade

juvenil: pobreza, desemprego, exclusão social, clivagens e desigualdades sociais, ausência de

medidas de prevenção, falhanço das políticas públicas, o fenómeno dos bairros pobres e

periféricos, acesso a armas e consumo de estupefacientes, uma certa propensão e influência

para a cultura de gangue, influência dos deportados, fragilidade do sistema jurídico, etc.

1. Pensar a juventude como construção social

Autores como Pierre Bourdieu (1983) não veem os jovens como uma unidade social,

um grupo constituído, dotado de interesses comuns, e nem relacionam esses interesses a uma

faixa etária. Não existe uma juventude, mas uma multiplicidade delas.

Entretanto, se o conceito é de difícil apreensão, não quer dizer que a juventude não

exista, de facto a categoria “juventude” enquanto objeto específico da pesquisa social decorre

da própria transformação da sociedade e dos problemas daí decorrentes. Aspectos

sociológicos, psicológicos, estatísticos, jurídicos, filosóficos e antropológicos devem ser

levados em consideração para uma melhor compreensão dessa categoria tão rica quanto

heterogénea”. A ambiguidade e a indefinição sobre o conceito de jovem seriam algumas das

características dessa situação de complexidade.

A juventude é também um estilo de vida que vai para além da definição da idade,

evocando a transgressão, o anticonformismo a procura do risco e do prazer, a omnipotência, a

irreverência, a contestação, a solidariedade e os esforços para mudar os padrões estabelecidos.

Muitas vezes, os jovens é que apresentam as novas propostas.

Muitos investigadores têm privilegiado a abordagem do conceito da juventude numa

perspectiva de comportamentos desviantes, analisando as sociabilidades e os comportamentos

dos jovens como consequência de uma fraca integração num contexto visto como

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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desorganizado. Os media tendem a passar uma imagem estigmatizada dos jovens de bairros

periféricos (guetto, gangues, droga e marginalização) que os ‘molda’ como responsáveis pelos

males sociais (insegurança, violência).

Como diz António Sérgio Spagnol (2005:277), As notícias que geram maiores polêmicas são as de crime praticados por adolescentes oriundos da periferia, principalmente se forem cometidos contra a classe média. Quanto mais violento, sangrento e espetacular o crime, melhor para a mídia, pois ele funciona como um forte atrativo. A violência, apresentada sobretudo como algo perturbador e descontrolado, pode detonar uma crise em relação ao Estado (…), que se apressa a presentar inúmeros projetos visando á reintrodução do jovem infrator à sociedade. (…) o papel da mídia, segundo Thompson (1999), é provocar o medo, principalmente na classe média, insistindo que a violência é oriunda das classes baixas. A intenção é aleardar constantemente que a violência está em todas as partes, a todos os momentos (…)”.

É uma visão redutora da realidade que acaba por corresponder a vida e trajetórias de

vida dos jovens a patologias, transformando-os em “bodes expiatórios” e culpados pela

situação de miséria e oportunidades mal aproveitadas. Essa visão não enxerga a complexidade

e heterogeneidade da realidade juvenil, assim como da riqueza de estilos, de sociabilidades e

das manifestações culturais que os jovens criam entre si. (Raposo, 2007:7-8).

É importante compreender as dinâmicas de interação e de sociabilidade das camadas

juvenis, sobretudo no plano das representações, de forma a podermos interpretar os processos

de construção de identidades culturais e territoriais.

Outras visões limitadas consideram a juventude uma etapa obrigatória e inevitável da

vida humana, uma transição entre a infância e a vida adulta, que pode ser atribulada devido a

situações de crise e conflitos. É uma visão muito influenciada pelo darwinismo social (do

início do século XX).

Após a Segunda Guerra mundial, o jovem deixa de ser um sujeito passivo para se

tornar num sujeito ativo, um protagonista do espaço público. O Estado de Bem-Estar (Welfare

State) cria condições e possibilidades educativas e de ócio para o jovem. A liberdade juvenil

coincidiu e contribuiu para a crise da autoridade patriarcal. As indústrias culturais criaram um

mercado de consumo para os jovens, devido à sua nova liberdade económica e poder

aquisitivo. Da mesma forma, os media impulsionaram o aparecimento daquilo que muitos

autores designam de culturas e estilos juvenis transnacionais. Vários estilos surgiram após os

30 gloriosos anos de crescimento económico, no pós-Segunda Guerra: beatnicks, teddy boys,

rockers, punks e hippies. O que veio criar mais interesse na juventude como objeto de estudo.6

6 Esses estilos foram estudados em Birmingham na Inglaterra, nos anos de 1960. A Inglaterra conservadora teve de enfrentar o novo ‘pesadelo’ criado por estas ‘contraculturas’ que indicavam uma mudança estrutural na sociedade, que punham em causa os valores puritanos das elites burguesas. Aqui também toda esta mudança era canalizada para os jovens, considerados ‘bodes expiatórios’ (Raposo, Idem p. 28).

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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É lógico que devemos falar de juventudes e de culturas juvenis no plural, dado que

vários fatores indicam essa diversidade: a classe social, o espaço de residência, formas de

sociabilidade, etc.

Segundo Raposo, sociabilidade, como conceito, faz referência a relações sociais que se

formam independentemente de outras necessidades, orientações ou interesses (sexuais ou

culturais, residenciais ou alimentares, religiosos ou militares, económicos ou políticos), é

mais numa perspetiva relacional em se que pode verificar, em simultâneo, conteúdos

substantivos diversificados.

Quer isto dizer que nas suas interações as juventudes colocam ‘à disposição’ vários

símbolos e elementos materiais e imateriais típicas dessas culturas juvenis, onde se podem

visualizar fronteiras e espaços comuns de interação. Vários estilos se combinam: a linguagem,

as preferências musicais, a estética, a ornamentação corporal.

Com a Escola de Chicago, houve a desmistificação do desvio juvenil, através do

método de pesquisa empírica (observação participante e entrevistas qualitativas), o que levou

à transformação do espaço urbano em “laboratório de experiências”. É que Chicago recebia

anualmente centenas de milhares de imigrantes e os investigadores consideraram normal

certos comportamentos numa amálgama de culturas, com muita pobreza e marginalidade,

típicas incubadoras para a violência juvenil.

Autores como Machado Pais (1990:151), enfatizam o facto de nas Ciências Sociais

haver duas correntes principais na abordagem da juventude: i) a geracional e ii) a classista. A

diferença entre elas tem a ver com o facto de uma ser homogeneizante e outra

heterogeneizante. A corrente geracional analisa a juventude como uma fase de vida, realçando

os aspetos culturas juvenis homogéneas e valores comuns. As diferenças entre as gerações

dariam o suporte teórico para definir as culturas juvenis em termos etários. Aqui os jovens são

uma geração social em interação com o mundo. Esta conceção articula-se bem com as teorias

de socialização e das gerações.

Já a teoria classista pensa a reprodução social sob a perspetiva das classes sociais. A

juventude é vista como um conjunto social diversificado. As diferenças de classe originam

habitus7 juvenis diferentes. As relações antagónicas de classes produziriam culturas juvenis

diferentes.

7 Habitus é um sistema de disposições, modos de perceber, sentir, fazer, pensar, que nos levam a agir de determinada forma em uma circunstância dada. As disposições não são nem mecânicas, nem determinísticas. São plásticas, flexíveis. Podem ser fortes ou fracas. Refletem o exercício da faculdade de ser condicionável, como capacidade natural de adquirir capacidades não-naturais, arbitrárias. São adquiridas pela interiorização das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva, são de tal forma internalizadas que chegamos a ignorar que existem. São as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir sem pensar (Bourdieu, 2005:186-188).

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Entre as várias terminologias para designar o estudo sobre a juventude, subcultura,

tribos urbanas e culturas juvenis, Raposo afirma que há uma certa preferência pelo termo

“culturas juvenis” por ser uma perspetiva pluralista de ver a juventude, que não menospreza

um conjunto de valores e representações atribuídos aos jovens enquanto conjunto social

etário. Ligado às culturas juvenis estão os modos de vida específicos, que expressam certas

práticas do quotidiano. 8

Por isso, vendo a juventude como algo em movimento, e para se compreender as

culturas juvenis é preciso conhecer o quotidiano dos jovens, assim como os significados,

valores e representações que dão aos vários espaços, instituições e simbologias. Não há

espaços para apriorismos.

2. População e juventude cabo-verdiana

A população de Cabo Verde tem sofrido um aumento significativo nas últimas

décadas, mantendo no entanto a sua estrutura essencialmente jovem. Os dados do Censo 2010

situam a população residente em 491.875 habitantes, sendo 49,5% do sexo masculino e 50,5

% do sexo feminino, concentrando-se a maioria no meio urbano (61,8%) contra 38,2% no

meio rural. A taxa média de crescimento anual 2000-2010 foi de 1,2%, contra 2,1% no

período anterior. A idade média dos cabo-verdianos é de 26,8 anos e a mediana, de 22 anos. A

esperança de vida é 72,7 anos (76,4 para as mulheres e 68,7 para os homens).9 A taxa bruta de

natalidade tem vindo a diminuir ao logo dos anos, passando de 29,2 por cem mil em 2000

para 25,7 em 2009, um valor ainda considerado alto (Conceição Fortes, 2011:13).

Os jovens representam uma franja significativa da população, sendo que o grupo de

idade na faixa etária entre os 0 e os 24 anos é de 267.639, ou seja, 54,4% da população do

país e 63,4% tem menos de 30 anos. Os dados mostram que a faixa etária da população entre

15-19 anos constitui a principal componente no universo da população cabo-verdiana

(59.079), sendo que os rapazes constituem a maioria (29.679) contra 29.400 raparigas. No

intervalo dos 25-29 anos, os resultados indicam a existência de 23.357 homens contra 21.002

mulheres.

O conjunto da população dos 15-29 anos é de 156.363 habitantes, o que representa

31,7% do total da população do país, sendo que destes 51,5% são do sexo masculino e 48,6%

do sexo feminino, residindo a maioria no meio urbano, com maior peso nas cidades da Praia,

Mindelo e Assomada e Sal. 8 Culturas juvenis podem ser definidas como um sistema de valores socialmente atribuídos à juventude (fase de vida) que orientam as práticas quotidianas que exteriorizam valores institucionais e do dia-a-dia. 9 INE – Censo 2010

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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Em termos de distribuição de jovens por ilha, Santiago concentra a maioria dos jovens

de Cabo Verde (58%), seguida de São Vicente (15%) e Santo Antão com 8%.

Segundo Conceição Fortes (2011), o peso da população jovem acaba por exercer uma

forte pressão sobre os recursos e estruturas sociais do país, o que exige uma nova abordagem,

bem como novas políticas sociais focalizadas sobretudo nos campos da educação, emprego,

formação profissional e saúde. Existe ainda a população cabo-verdiana emigrada, mormente a

população juvenil residente na diáspora, que constitui uma parte integrante da nação cabo-

verdiana. Embora não se disponha de dados sobre a juventude cabo-verdiana nos países de

acolhimento, o Censo de 2010 mostra que de um total de 18.522 que emigraram nesse ano,

19,5% situava-se na faixa etária entre os 0-16 anos, 46,9 % entre 17-24 anos e 14,9 entre 25 e

34 anos.10 Por outro lado, sendo Cabo Verde um país também de imigração, muitos são os

estrangeiros residentes (2,9%) correspondentes a 14.373 pessoas, a maioria do continente

africano, incluindo os PALOP (71,7%).

A característica jovem da população alerta para a criação de novas políticas sociais

que devem visar a educação, o emprego e a formação profissional, a saúde, e inserção

socioeconómica deste grupo.

3. Revisitando o PESI-2009

Mottos como terrorismo, tráfico de droga/seres humanos/armas ligeiras, criminalidade

organizada e transnacional e ainda a questão da imigração ilegal já fazem parte do léxico (e da

consciência colectiva) dos cabo-verdianos. A questão da segurança interna parece estar

conectada com a da segurança internacional.

Em Cabo Verde é a Polícia Nacional, conforme o artigo 240º da Constituição da

República, quem tem por missão defender a legalidade democrática, prevenir a criminalidade,

garantir a segurança interna, tranquilidade pública e o exercício dos direitos civis dos

cidadãos. A noção que se tem da segurança nacional, baseia-se no artigo 242º da Constituição

da República, que estabelece o conceito da defesa nacional, como: A disposição, integração e acção coordenadas de todas as energias e forças morais e materiais da Nação, face a qualquer forma de ameaça ou agressão, tendo por finalidade garantir, de modo permanente a unidade, a soberania, a integridade territorial e a independência de Cabo Verde, a liberdade e a segurança da sua população bem como o ordenamento constitucional democraticamente estabelecido.

A elaboração do PESI-2009 visou dotar o país de um instrumento que vai apoiasse o

Governo na implementação de um modelo misto, entre aquilo que Loic Wacquant (2000:22) 10 INE: Censo 2010 citado por C. Fortes, 2001.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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designa de (mundialização da) tolerância zero11 e medidas de prevenção e integração. Nesta

perspetiva, o PESI-2009 definiu alguns Eixos Estratégicos de Acção, visando criar um

sistema nacional de segurança que garantisse a tranquilidade e ordem pública, destacando três

pilares fundamentais: i) Forças Policiais (Polícia Nacional e Polícia Judiciária); ii) SIR

(Sistema de Informação da República), e iii) Forças Armadas, que deverão funcionar de forma

articulada e coordenada, e poder desmantelar as redes do crime organizado.

Os eixos principais procuram destacar: a) o desenvolvimento e implementação de um

Sistema Integrado de Segurança Interna e Nacional; b) Revisão e modernização de

instrumentos legislativos e orgânicos estruturantes e participação no reforço da capacidade

institucional de segurança do país; c) Modernização ou reforma das estruturas e serviços sob

tutela do MAI (Ministério de Administração Interna); d) Reafirmação da autoridade do

Estado e reforço da segurança, em torno do princípio de que a liberdade é indissociável da

segurança dos cidadãos12; e) Combate à criminalidade violenta e luta contra ameaças

emergentes (com base em estudos, intervenção precoce, discussão das causas, e redução da

reincidência); f) Redução da sinistralidade rodoviária; g) Dinamização e fortalecimento da

segurança cooperativa e parcerias, com particular incidência na Parceria Especial com a U.E;

h) Promoção de uma política de imigração integradora.

De todos os eixos, interessa-nos destacar o da delinquência juvenil e a sua redução.

Neste eixo (D) pode-se também realçar algumas estratégias definidas: (E.D.1.) “promover

uma abordagem multi-sectorial do fenómeno de segurança, e (E.D.2.) “colocação em prática

do modelo de policiamento pró-activo, privilegiando a prevenção e aumentando a confiança

na PN”.

Falta ainda um longo caminho a percorrer de modo que alguns objetivos imediatos e

produtos/resultados sejam alcançados. São os casos da coordenação efetiva entre as forças

policiais e o sistema judicial, no sentido de melhorar as respostas sobre questões criminais;

aumentar e melhorar as parcerias entre câmaras municipais, associações comunitárias,

associações juvenis, associações de imigrantes, instituições de solidariedade social; reduzir

práticas de comportamentos antissociais através de sensibilização dos agentes,

responsabilidade social das empresas, campanhas educativas, realização de estudos

aprofundados; prevenção e combate à delinquência juvenil; reduzir a delinquência juvenil

revendo a legislação pra o efeito, envolvendo cada vez mais as entidades públicas no combate

a realidades potenciadoras da delinquência juvenil, mormente o abandono escolar, atos de 11 Gestão policial e judicial da pobreza incómoda, a causa de incidentes e perturbações no espaço público, e portanto alimenta um sentimento difuso de insegurança, ou simplesmente de mal-estar tenaz e de incongruência. 12 Itálico nosso.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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vandalismo, presença de menores desacompanhados de adulto na via pública ou em locais de

diversão a horas noturnas, assim como normas que visem a implementação de mecanismos de

justiça restaurativa; levar a polícia a mudar de postura e práticas, reforçando o diálogo e ações

preventivas com as comunidades e suas organizações, envolvendo a comunidade na luta

contra a criminalidade.

Parece haver uma intenção de superar a ‘tolerância zero’, trabalhando,

preventivamente, mais perto das comunidades, Escola, Igrejas, etc., numa visão mais holista

do problema, de forma a não pôr em causa a visão do PESI-2009 que é «Instituir um sistema

de segurança interna integrado, articulado e cooperativo para manter Cabo Verde como um

dos países mais seguros do mundo com base em padrões mais elevados de segurança

interna».

Caso os implementadores do PESI-2009 não levarem em conta todo o trabalho que

está a ser feito nos bairros/comunidades, aquilo que designo de agendas periféricas de

intervenção, reconhecendo os curricula social dos jovens, todo esse esforço poderá ter um

efeito limitado. Nota-se que a partir de 2012 essas agendas começaram a ter um um impacto

positivo na diminuição da violência e na restauração de um clima de paz e confiança.13

4. Sobre a evolução do quadro de segurança interna em Cabo Verde

O PESI-2009 foi confrontado com uma realidade nova, que se traduz no surgimento e

intensificação de novos tipos criminais, no envolvimento de muitos jovens em actividades

ilícitas e no incremento de um clima de insegurança. A articulação entre as forças policiais

(PN e PJ, o SIR – Sistema de Informações da República) e as Forças Armadas visa melhorar o

sistema de coordenação e articulação dessas forças, de forma a desmantelar redes de crime

organizado e reforço da segurança nacional. Isto tem levado o Governo a modernizar as forças

e serviços de segurança, adaptar os instrumentos legais aplicáveis, capacitar os recursos

humanos, combater a criminalidade organizada e transnacional, investir na segurança

aeroportuária, portuária, marítima, prisional, prevenção do terrorismo, gestão da imigração

ilegal. Parece-nos que a modernização dos serviços de segurança tem consumido mais

recursos que a prevenção da criminalidade; recursos que poderiam ser utilizados para

investigação nos bairros desfavorecidos, no reforço da participação e da democracia

comunitária. 13 Defino Curriculum Social como intervenção comunitária dos jovens dos bairros periféricos com base numa agenda própria (formação, cultura, apoio escolar, atividades tempos livres, artesanato, desporto, etc), com ou sem diplomas, sendo que a maioria não os têm, estando, muitas vezes longe das agendas públicas e dos media. Essas agendas periféricas têm dado uma grande contribuição na resolução dos problemas, mormente da violência juvenil, devido a um trabalho positivo de consciencialização e pacificação dos jovens de bairros pobres.

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Quadro 1 - Evolução do conceito e práticas de segurança interna em Cabo Verde

Ano Iniciativa

Início anos de 1980

Coexistência da POP (Polícia de Ordem Pública) e Segurança do Estado (protecção dos dirigentes), a Direcção Nacional de Segurança e Ordem Pública (DNSOP) que dependia do Ministério da Defesa e Segurança Nacional.

Pós-Independência

A Guarda Fiscal foi integrada no Ministério das Finanças e a PMar (Polícia Marítima) no Ministério de Agricultura e Pescas

1981 Após o golpe de Estado na Guiné-Bissau, surge o Ministério do Interior, departamento governamental que passou a controlar a POP e a Segurança do Estado, denominando-se Forças de Segurança e Ordem Pública (FSOP).

Meados anos 1980

Passou a Ministério das Forças Armadas e Segurança. Em 1991 passou a ser Ministério da Administração Interna (regime democrático multipartidário).

Segunda República

A POP foi tutelada pela Secretaria do Estado, e foi criado o Sistema de Informações da República (Lei nº 70/VI/05).

1993 Foi criada a Polícia Judiciária (PJ), dependente do Ministério da Justiça.

1996 O Decreto-Lei nº15/96, de 20 de Maio, cria o Conselho Nacional de Segurança (CONSEG), órgão consultivo de coordenação e articulação na organização do sistema nacional de segurança.

2005 Cria-se a Polícia Nacional (PN)14, o Serviço Nacional de Protecção Civil e a Direcção-Geral dos Transportes rodoviários, sob a dependência do MAI.

27 Junho 2005 Aprovada a Lei nº70/VI/2005 que cria o Sistema de Informações da República (não confundir com Serviços de Informação da República –SIR).

2008 Criação do BIC (Brigada de Investigação Criminal) e o BAC (Brigada Anti-Crime), no sentido de combater os grupos considerados thugs.

2012 Criação de um Corpo Especial da Polícia (em motorizada) com apoio de Angola. Fonte: PESI-2009, p.15.

O país, com todo este aparato, parece não dispor ainda de um verdadeiro sistema de

segurança. Observa-se mais tecnologias e força, como diria Foucault em Vigiar e Punir

(1999:5) «O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos

direitos suspensos».15

Segundo Michel Foucault: Prisão e polícia formam um dispositivo geminado; sozinhas elas realizam em todo o campo das ilegalidades a diferenciação, o isolamento e a utilização de uma delinquência. Nas ilegalidades, o sistema polícia-prisão corresponde a uma delinquência manejável. Esta, com sua especificidade, é um efeito do sistema; mas torna-se também uma engrenagem e um instrumento daquele. De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos (polícia-prisão-delinquência) se apoiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido. A vigilância policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta à prisão.

5. Contribuições socio-antropológicas para o debate

Até que ponto a abordagem que se tem utilizado em Cabo Verde na prevenção e

combate à criminalidade, sobretudo, a juvenil, é conservadora/funcionalista? Se assim for, faz

sentido então recorrer a Roy Wagner (1974:96) que defende, assim como uma boa parte de

14 A criação da PN visou reforçar a capacidade operacional e racionalizar os recursos materiais e humanos, com mais coordenação e articulação entre as partes. 15 Idem p. 301.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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cientistas sociais, que Durkheim influenciou em muitos aspectos o legado da antropologia

social, quando procurou compreender a moral social/colectiva, aquilo que une as pessoas e faz

uma sociedade sentir-se ‘coesa’. Durkheim fundou a ciência da integração, o que leva as

pessoas a se associarem. Esta questão de integração foi a base natural em que se fundou a

Antropologia. Durkheim é considerado o pai do funcionalismo clássico (perspetiva que

influenciou autores como Radcliffe-Brown). Ele está mais preocupado em conhecer ou

explicar como funciona as instituições e como conseguem manter uma sociedade unida.

Em Cabo Verde, os políticos e alguns investigadores, assim como os media têm

seguido esta linha de análise que tende a ver os conflitos sociais (criminalidade incluída)

como patologia, anomia e não como necessidade de renegociação permanente do poder entre

grupos, ou seja, não se dá importância às funções sociais do conflito numa perspectiva que

Lewis Coser nos habituou, como evolução da mudança social. A perspectiva conservadora

tem pautado por revelar os músculos e aparato policiais (tolerância zero).

Lewis Coser (1956:151) reconhece que o objeto principal do seu estudo se prende

mais com as funções do que com as disfunções do conflito social. O autor sente que o

conflito, longe de ser um fator meramente negativo, pode cumprir uma série de funções

sociais determinantes. É uma forma de socialização”, nenhum grupo pode ser completamente

harmonioso, o que equivaleria a ser destituído de dinâmica e de estrutura. Os grupos requerem

tanto a harmonia como a desarmonia, a associação quanto a dissociação. Nestas condições, o

conflito dentro dum grupo pode ajudar a estabelecer ou restabelecer a unidade e coesão onde e

quando tenham sido ameaçadas por sentimentos hostis ou antagonistas entre os seus

membros. É evidente que nem todos os tipos de conflito beneficiam a estrutura do grupo, o

que depende das razões que os determinam bem como do tipo de sociedade em que ocorrem.16

Coser considera ainda os conflitos classificáveis em dois grandes grupos quanto aos

seus objectivos: realistas e não realistas. São realistas aqueles que pretendem atingir

resultados concretos, não tendo os contendores qualquer interesse em prossegui-los uma vez

que os mesmos tenham sido alcançados. Os não realistas, por outro lado, decorrem da

existência de tensões que têm que ser libertadas, são um fim em si mesmos e assim apenas

dispõem de alternativas funcionais quanto à escolha dos antagonistas.17

De notar, entretanto, que as referidas associações de indivíduos ou coligações de

grupos resistem normalmente a outras formas de unificação, prolongando desse modo a sua

16 O conflito social será provisoriamente tomado como significando uma luta por valores e reclamação por “status”, poder ou recursos escassos, em que os objetivos dos oponentes são neutralizar, ferir ou eliminar os seus rivais. As atitudes hostis são apenas uma predisposição para entrar em conflito enquanto este, ao contrário, é sempre uma transação. 17 Coser op cit, p. 156.

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vigência como mecanismo dinâmico de regulação social. Pode ainda acrescentar-se que a

multiplicidade dos conflitos está na razão inversa da sua intensidade. A frequência com que os

mais diversos líderes fomentam conflitos artificiais com grupos exteriores corresponde

exactamente a uma procura de unidade no seio do próprio grupo. As inimizades e

antagonismos recíprocos padronizados conservam, por outro lado, as divisões sociais e os

sistemas de estratificação, evitando o gradual desaparecimento das fronteiras entre os

subgrupos do sistema social e atribuindo-lhes dentro de tal sistema a posição que lhes

compete. Coser considera também que a frequência de ocasiões para o conflito varia no

mesmo sentido do grau de estreitamento de relações.

Mas, quaisquer que sejam os objectivos das partes em conflito, o poder, que Coser

define como a oportunidade de influenciar o comportamento dos outros de acordo com o

nosso próprio desejo, são necessários para a sua concretização. Como o conflito consiste num

teste de poder entre as partes antagónicas, a acomodação entre elas apenas é possível se cada

uma estiver ciente da sua força relativa, mas tal conhecimento, na maior parte das vezes,

apenas pode ocorrer através do próprio conflito (idem p.121).

Coser sublinha que o próprio acto de entrar em conflito, significa que tenha sido

estabelecida uma relação com a outra parte. O conflito para Coser traz consigo a necessidade

de aplicação de regras que, na sua ausência, poderiam ficar adormecidas.

6. Contribuições teóricas recentes sobre violência juvenil em Cabo Verde

Kátia Cardoso e Sílvia Roque (2008:5), relacionam a violência dos jovens na Cidade

da Praia, numa fase inicial, ao repatriamento dos jovens emigrantes cabo-verdianos expulsos,

que cometeram crimes nos Estados Unidos de América.

Vão mais longe ainda, procurando também relacionar a questão da violência com as

identidades construídas e estimuladas, assim como compreender os mecanismos de controlo

social. Neste sentido, procuram perceber se existem oportunidades de superação da condição

de marginalização: estratégias individuais (emigração, economia informal, prostituição) ou

colectivas (remessas de familiares no estrangeiro ou apoio de familiares alargados).

Para elas, é evidente que uma urbanização descontrolada pode levar à anomia social, o

que permite o surgimento de gangues. Neste processo, a própria estigmatização dos jovens faz

com que assumem estereótipos e rótulos e agir de acordo com eles. Realçam três aspectos que

têm a ver com a formação de gangues como modelos de inserção e coesão comunitária: (i) a

questão da masculinidade como forma de obter bens, dinheiro, respeito e mulheres (que pode

ser violento ou não); (ii) a questão da globalização como (mecanismo) e mercado de obtenção

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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de armas ligeiras e drogas (via marítima e aérea); (iii) e uma pobre abordagem da violência

em Cabo Verde, feita pelos media de forma superficial e enviesada.

Lorenzo Bordonaro (2010:170), tem tido uma postura mais crítica em relação à forma

como o Governo de Cabo Verde vem lidando com a questão da violência juvenil. Defende

que as medidas repressivas têm sido a via que Cabo Verde tem usado para enfrentar o

fenómeno da delinquência juvenil. A ideia subjacente do autor é que os jovens envolvidos na

criminalidade não aceitam passivamente a sua vitimização estrutural. Estes envolvem-se,

orgulhosamente18 na economia subterrânea e na cultura de rua.

O autor defende ainda que «esses jovens e crianças desses bairros são alvo de

agências sociais do governo, e da repressão violenta das forças policiais e repressivas do

Estado». Recorrendo aos dados do INE, o autor, identifica e bem o desemprego como um

problema muito sério em Cabo Verde: A situação da população juvenil nas áreas urbanas é, de facto, particularmente crítica. As taxas de desemprego nas áreas urbanas são assustadoras, chegando a um valor de 57% entre os indivíduos do sexo masculino com 15 a 24 anos (Bordonaro, 2010:171).

Em Cabo Verde, a questão dos dados estatísticos parecem ter criado certas confusões

na produção/interpretação dos mesmos. Quando confrontamos os dados do INE (2007)

utilizados por Bordonaro e os usados pelo PESI (2009), que diz que «Em 2008, a taxa de

desemprego era considerada de 17,8%, sendo que 31% dos desempregados são jovens (15-24

anos)»19 fica-se com algum ‘receio’ na utilização dos dados estatísticos. Os dados recentes do

INE (2013) apontam para 27% a taxa de desemprego jovem.

Fonte: INE (2012).

18 Itálico nosso. O autor quase que entra em contradição quando afirma que os jovens abraçam ‘orgulhosamente’ esse modus vivendi marginal, porque procuram fugir à sua marginalização. Na nossa perspetiva, esse ‘orgulho’, por falta de alternativas, com o tempo pode se transformar em habitus criminal, que será difícil fazer desaparecer. 19 Ver PESI-2009, p. 21.

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Outra questão que o autor deve estar atento tem a ver com uma certa ‘generalização’,

quando lê o continente africano numa perspectiva horizontal com base em estudos vários:

Nas áreas urbanas em todo o continente, os jovens parecem constrangidos a permanecer jovens (dependentes, carentes, celibatários) com dificuldades no acesso a salários, ao casamento ou a uma residência autónoma, numa situação (…) de moratória social (idem p172).20

O autor, com base em dados recolhidos na Cadeia Central da Praia, diz-nos por

exemplo, que muitos jovens aprendem mais sobre o crime quando entram na prisão. Para

além disso, os jovens têm uma perceção de que em Cabo Verde, o modus operandi para

combater/resolver o problema da criminalidade é mete-los na prisão. As prisões para além de

não servir para melhorar pedagogicamente’ o delituoso, acaba por dar azo à aquisição de

novos vícios e acesso à droga, mantendo a toxicodependência. Como diz, existe uma ligação

entre pequenos crimes e consumo de drogas: «Na verdade, os jovens criminosos são, na sua

maioria, toxicodependentes».21

Para o autor, o acesso a símbolos materiais definidores de status e o anseio por uma

certa mobilidade social ascendente, e a percepção que possuem de que é difícil ter acesso ao

poder e privilégio, assim como a pobreza e miséria, são os motores para o consumo de droga e

aumento da criminalidade em Cabo Verde: O crime, a violência, os flashes da cocaína são, (mais do que satisfação das necessidades básicas), instrumentos para aumentar o seu poder, a sua presença social, para ampliar o seu self e proclamar a sua identidade (…) são instrumentos daquele empoderamento (social, pessoal, económico) que ambicionam e que teriam dificuldades em alcançar de outra forma (Bordonaro, 2010:177).

Discordo em parte do autor, apesar de reconhecer que muitos jovens têm dificuldades

em ter acesso a tudo o que desejam e que são penalizados pela sua origem social. Porém, o

autor continua a generalizar e não se apercebe que grande parte dos cabo-verdianos sempre

teve grandes dificuldades na vida. Se essa visão fosse a norma, a maioria dos jovens cabo-

verdianos enveredaria para o consumo de droga e criminalidade, e deixaria de ver a escola

como um dos pilares para uma certa mobilidade social ascendente. O problema transcende

esta visão meio redutora do fenómeno. Seria interessante que o autor abordasse a questão da

responsabilidade pessoal e social. É que os jovens como seres reflexivos têm a capacidade de

fazer opções. E cada opção acarreta consequências. 20 Convém salientar que a situação de Cabo Verde, apesar de problemática, não é comparável à da Guiné-Bissau. Também é bom lembrar que na Europa, países como Itália, Espanha, Portugal, o desemprego tem estado acima dos 17%. No caso da Itália, nos últimos 4 anos, emigraram cerca de 1 milhão de jovens e quadros (Brain Drain). E desse um milhão de novos emigrantes, 1,3% está em África (Vide artigo de Vladmiro Polchi, “Gli italiani continuano a emigrare un milione in fuga negli ultimi 4 anni” no Jornal La Repubblica de 2 de Dezembro de 2010). 21 Bordonaro, op cit, p. 175.

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Contudo, o autor parece querer resolver esse problema, dizendo que esses actos

etiquetados como violentos e realizados pelos jovens em Cabo Verde, são actos produtores de

significados, que reconstroem e reordenam o mundo social e a posição do actor nele,

procurando articular-se com a estrutura.

Bordonaro considera que a polícia ainda não aprendeu a lidar com o fenómeno da

delinquência juvenil, o que traz uma tripla pressão: i) da parte dos jovens, combater o crime e

fazer a prevenção; ii) do lado da sociedade (ineficácia e morosidade e insatisfação pelos

serviços prestados); iii) e da parte do governo, dar resposta e serenidade à sociedade. Esta

incapacidade e pressão têm levado a polícia a cometer actos de violação dos direitos humanos

desses jovens (feridas, cicatrizes, espancamento, etc.). Diz e bem que a atitude do sistema

prisional em Cabo Verde é punitiva (pouca reabilitação, formação profissional e educação). A

prisão é punição pelo crime que cometeu. São espaços sem condições, sobrelotados (idem

p184).

Outro trabalho recente sobre este fenómeno em análise é o de Redy Lima (2010:194).

O autor refuta com convicção a ideia de que a escola e a família não têm peso nessa ‘crise’

actual da juventude cabo-verdiana. É pouco claro quando considera os anos de 1990 como a

década de libertação juvenil e da consolidação da visão da camada juvenil, como sendo uma

categoria social mais problemática, e ainda o ano das políticas públicas para esse segmento.

Não diz que tipo de liberdades e políticas públicas foram ‘inventadas’. Considera os jovens de

bairros periféricos: (…) desafiliados ou em processo de desafiliação, expostos a uma série de situações discriminatórias, em parte, por habitarem esses bairros – bairros estigmatizados e criminalizados (…) o conceito casteliano de desafiliação para designar um conjunto de indivíduos entregues a si próprios (…) em situação de pobreza, falta de emprego, sociabilidade restrita, riscos (…) em condição de vulnerabilidade.

Consideramos que esses jovens não são discriminados por pertencerem/viverem

nesses bairros, mas pelo facto de terem começado a praticar um tipo de violência que vai

crescendo e tomando proporções preocupantes, mesmo para os habitantes desses bairros

miseráveis. É um tipo de violência quase sádica que prejudica os próprios moradores e não é

praticada somente contra os centros. Quem mais sofre violência são os grupos de pares e

moradores dos bairros.

Ao tentar condenar o papel da escola em Cabo Verde, o autor, talvez sem querer, vê a

escola cabo-verdiana como um instrumento e representação das classes dominantes. Na nossa

perspetiva, durante muito tempo a escola tem sido mais democrática que o sistema político

implementado em 1991. A escola em Cabo Verde, bem ou mal, tem sido um dos principais

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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agentes que tem permitido a mobilidade social ascendente de uma boa parte da juventude

cabo-verdiana, dotando-lhes de competências e ferramentas necessárias.22 A escola não é vista

como prisão, muito pelo contrário, tem servido como libertação da prisão, uma janela para o

mundo, e não um espaço de violência simbólica e física tout court. Este cenário aplica-se mais

nos casos da diáspora cabo-verdiana na Europa e nos Estados Unidos. O abandono escolar

não se deve à fuga por causa da violência simbólica e física, mas a vários factores (pobreza,

vulnerabilidades, desemprego, trabalho infantil, desresponsabilização familiar/paterna. etc).

Os jovens não são discriminados somente pelo facto de pertencerem aos bairros

miseráveis, aquilo que denomino de societas miserabilis23, mas sim pelo facto de praticarem

atividades delituosas, que têm deixado marcas profundas nas comunidades e nos corpos dos

seus habitantes (feridas por bala, faca, pancadas, etc).

Consideramos que a violência tem vindo a assumir algumas características para certos

jovens que vivem este fenómeno de mal-estar juvenil: i) Violência (gratuita) como

afirmação de identidade e legitimação do poder (Existir como indivíduo/grupo e pôr em

prática o estilo de vida. Neste sentido, tudo o que põe em causa este desiderato e status pode

levar à violência com grupos/bairros rivais, polícia, símbolos do Estado, etc.); ii) Violência

como afirmação da Masculinidade (Ethos guerreiro, ser duro, macho, impressionar as

raparigas pela coragem, bravura e disposições corporais - tatuagens, músculos); iii) Violência

como moda e virada para o Consumo (Cultura do imediato, dinheiro, festa, hedonismo,

consumismo, prazer através dos produtos da indústria cultural).

Outra reflexão interessante sobre a violência juvenil em Cabo Verde é a do sociólogo

João José Tavares Monteiro (2010). O autor, um pouco à Foucault24, procura fazer uma

genealogia desse processo. Esta investigação para além de inovadora, interactiva e intensa,

usa a metodologia de análise de conteúdo para estudar as representações negativas nos jornais

Voz Di Povo (de 1986-1990), A Semana e Expresso das Ilhas (de 1999 a 2006). Para além dos

jornais, o autor analisou também as letras musicais (rap), estudou/conviveu (com) dois grupos

rivais dos bairros de Achada Grande Frente e Lém-Ferreira, com idade compreendida entre os

16 e 24 anos, durante mais de 12 meses.

22 Não podemos esquecer a merenda escolar que permitiu que a maioria dos jovens tivesse uma refeição quente; do ICASE (FICASE), etc. Como país de fracos recursos, a educação tem sido, a par com a saúde, duas grandes apostas ganhas por Cabo Verde. 23 Societas misarabilis «(…) as pessoas vivem de uma forma desumana, (…) barracas construídas à pressa, sem acabamento, fedores, ruas sujas, animais com mau aspecto, crianças ‘mal educadas’, ‘violentas’, brincando constantemente em porcarias; uma degradação humana, onde o ambiente envolvente tenta erradicar a própria dignidade humana. (Nardi Sousa, 2003:23). 24 No papel de um arqueólogo do saber com maior interesse nas práticas/camadas discursivas que dão origem a um tipo de saber numa determinada época (Ver Arqueologia do Saber, pp 158-159).

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Tavares Monteiro considera que o fenómeno thug se enquadra num conjunto de

processos sociais que se desenvolveram na sociedade praiense e que se estruturaram, com

forte influência mediática, a partir do ano de 2004, criando pânico social, e transformando-se

num problema social, político e sociológico (com representações positivas e negativas). Se

por um lado, procura compreender se as representações sociais positivas do fenómeno thug,

mediadas pelas influências da cultura hip hop, e pela valorização da mesma por uma parte da

camada juvenil feminina, reforçaram a adesão de muitos jovens a este movimento; por outro

lado, foca no papel dos media (sobretudo a imprensa escrita), que, juntamente com a Escola,

criou representações sociais negativas com base na estigmatização, marginalização e

condenação desses jovens, ‘contribuindo’, com essa exclusão, para a coesão de muitos jovens

de bairros desfavorecidos a este movimento

Esta imagem negativa criada pelos media, para além de ter provocado coesão (dos

jovens) e pânico social, deu azo à (re) pressão policial sobre os jovens, criada e forjada

‘negativamente’, recalcada através da música beef, pode ter reforçado a falsa identidade thug.

Isto tem vindo a reforçar a coesão do grupo, que se verifica através do grau de lealdade,

competição e rivalidade, ‘espírito’ de vingança e tentativa de protecção dos grupos (João

Monteiro, 2010:28).

7. Sobre a problemática juvenil

Não há dúvidas que se está a dar uma certa propensão de crianças e

adolescentes/jovens à criminalidade e violência. Alguns autores consideram que as situações

de maiores riscos estão estritamente associados à precariedade socioeconómica. Tanto nos

problemas da pequena infância, das crianças em risco no mundo do trabalho, das crianças em

situação de risco na rua, como na exploração sexual e maus tratos. Verificam-se dificuldades

tanto da família, da comunidade, assim como do sistema escolar em reter de forma protectora

as crianças oriundas de famílias seriamente atingidas pela pobreza. (J. C. Anjos e F.

Rodrigues, 2009:7).

Nesse estudo, a principal preocupação das crianças e adolescentes reunidos é com

recrudescimento da violência juvenil: A emergência de um ethos que associa violência, honra e identidades territoriais, transforma os bairros da capital em fortificações visíveis e intransponíveis apenas para os jovens que mergulham nessa cultura de rua. Num espaço geográfico relativamente pequeno a livre circulação dos adolescentes que vivem em situação de rua se vê hoje seriamente prejudicada. Um regime de codificação de acessos bloqueia passagens e torna perigosa a circulação pelos bairros periféricos da capital. A formação de gangues e o uso de armas de fogo (geralmente de

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fabricação artesanal) transformou a capital do país no palco de uma cultura juvenil da violência em meio a uma expansão das redes do narcotráfico.25

Segundo os autores, entre os adolescentes existe um certo pessimismo generalizado

em relação às possibilidades de controlo da violência crescente. Entre as crianças em situação

de rua é percetível uma auto-culpabilização e uma projeção pessimista em relação ao futuro

de modo geral. A violência policial, a falta de equipamentos que ofereçam alternativas aos

atrativos das ruas e a inconsistência ou ausência de propostas de formação profissional podem

ser percebidos como factores subjacentes a essas perspectivas negativas. Na rua, essas

crianças e adolescentes deparam-se com um quotidiano que associa exposição ao abuso e

exploração sexual e violência.

A nossa reflexão sobre o mal-estar da juventude começou a partir de 1997 nos bairros

de Lisboa e Amadora, sobretudo Venda Nova, Fontaínhas, Estrela de África, Buraca,

mormente em 2002, ao trabalhar no Programa Escolhas, do Governo português, programa de

Prevenção da Criminalidade e Inserção dos Jovens dos Bairros Vulneráveis dos Distritos de

Lisboa, Porto e Setúbal.26

Nessa altura, já chamava atenção que cidades com forte segregação urbana e

residencial e as más políticas de realojamento poderiam aumentar os problemas de

marginalização e criminalidade (Nardi Sousa, 2002:163-164): Esses lugares onde só existem pobreza funcional, casas degradadas, equipamentos insuficientes, delinquência, crime, desemprego, fraca mobilidade, pouca informação, insucesso escolar, não convém menosprezar o desenvolvimento do partenariado e da solidariedade que conduzem à integração e congregação. A participação de todos é uma força determinante não só na preservação da herança como na rejeição de projectos que não respeitam essa lógica.

O estudo dos jovens nos bairros degradados ou periféricos, ou em locais que os

próprios jovens chamam de gueto, é de extrema importância. Loic Wacquant (2002), já dizia

que as ciências sociais falharam por não terem desenvolvido um conceito analítico e robusto

de gueto, e que em vez disso contentaram-se em emprestar um conceito folclórico aos

discursos político e popular de cada época. Isso gerou confusão e o gueto passou a ser visto

como um espaço segregado, uma comunidade etnicamente homogénea, um território de

grande pobreza ou de casas abarracadas, onde existe o mito/crescimento de uma ‘underclass’,

uma mera acumulação de patologias urbanas e comportamentos antissociais.

O gueto, na perspetiva do autor, é uma invenção socio-espacial que permite que um

grupo dominante da área urbana oprima e explore simultaneamente um grupo subordinado

25 Anjos et all op cit, p. 35. 26 Resolução do Conselho de Ministros nº 4/2001 – Governo Português.

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caracterizado por um capital simbólico negativo. Neste sentido, verifica-se uma relação de

controlo etno-racial e de fechamento construído por quatro elementos: (i) estigma; ii)

constrangimento; (iii) fronteiras territoriais; (iv) fechamento institucional. Surge um espaço

distinto, com uma população banida, com estilos de vida e estratégias específicas. O gueto

torna-se numa prisão que alberga uma categoria desonrada com oportunidades limitadas para

os seus membros. Muitas vezes, as populações dos bairros fingem que ignoram o que lhes tenta camuflar. Bloqueados, paralisados por este décalage entre o ressentido e o que projectam para o exterior, não tardam em desenvolver uma raiva surda, sufocada (…) até uma certa agressividade. Uma frustração que os conduz inexoravelmente em direcção a um estado de insatisfação permanente, tornando-os vulneráveis. (…) é assim que se instala o mal-estar. As pessoas chegam à conclusão que de que se vive em duas velocidades, dado que o todo o pensamento de outros lhes escapam e que os delas são estranhos aos outros. Nesta caça, onde a classe dominante é sempre o caçador, os oprimidos contentem-se com o papel de presas. (…) desenvolvem, muitas vezes, uma contracultura oposta à erudita e passam da lógica académica à comercial em que o lazer se torna num produto a consumir(…)».27

Os jovens que habitam os bairros degradados, ou guetos, podem se transformar em

presas fáceis da delinquência juvenil, do tráfico de droga e do consumismo desenfreado.

Nesses bairros existem poucas ofertas de participação, de formação profissional adequada que

colmate o défice crónico de cidadania, de socialização académica e problemas familiares.

À semelhança do que aconteceu com os bairros de imigrantes cabo-verdianos no início

do ano 2000, os bairros desfavorecidos poderão se transformar em ‘corredores’ ou a ponte

com a prisão. Esses jovens correm o risco de deixarem a escola e ir parar à prisão.

Muitos desses jovens, pertencentes a estas famílias, encontram-se numa trama de

relações que fazem brotar um húmus propício para a aventura da delinquência juvenil,

decorrente de uma certa fragilização da autoridade e de ambivalência dos referenciais de

conduta e identidade, conforme um estudo sobre Jovens em Conflito com a Lei, que inquiriu

cerca de 101 jovens na tentativa de elucidar a problemática da conflitualidade dos jovens com

a lei e na adopção de medidas e estratégias apropriadas e aptas a possibilitar uma intervenção

articulada (Gabriel Fernandes e José P. Delgado, 2008:81): Quando questionados sobre a razão da infracção, 40% dos inquiridos responderam “influência”, 5,7% alegaram “efeito da droga” e 11,4%, “brio de corpo”. Da mesma forma, quanto aos motivos de agressão, 30,8% responderam “a mando de amigos”, 7,7%, a mando de alguém, 7,7%, para exibir perante os outros e 15,4%, por prazer/diversão. Dados enfatizam o facto de que a vivência social dos jovens em conflito com a lei tende a decorrer na rua, um espaço alternativo ao lar, e que garante pão, aprendizado e castigo. A droga desponta como o principal factor de encaminhamento dos jovens para o delito, tendo sido apontado como móbil por 87,3% dos jovens do grupo dos 16 aos 21 anos. Os delitos de maior ocorrência são: roubo, furto e assalto, cerca de 80%, homicídio, cerca de 14%, e tráfico de drogas, cerca de 6,5%.

27 Nardi Sousa, 2003, p. 160.

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20

Caso os jovens assumirem um ethos/praxis e criminalidade e atos delituosos como

forma de interação com a sociedade podem cair no aforismo de William Thomas da Escola de

Chicago (década de 20 do século passado) «Se as pessoas definem a situação como real, ela

será real nas suas consequências».

Alguns autores são de opinião que nos bairros periféricos da Praia, grupos “semi-

organizados” de jovens proliferaram-se, os denominados “thugs”, “grupos” rivais que se

confrontam, resultando, algumas vezes, em morte prematura (Tavares Monteiro, 20010:39): São jovens desempregados, que usam drogas leves, de famílias monoparentais, ‘enclausurados’, expulsos da escola, sem projecto de vida. Esses jovens têm uma opinião muito negativa sobre a polícia (considerada como ladrões, bandidos, torturadores, mentirosos, corruptos, etc). A partir do ano de 2008, começam a denunciar os abusos e maus-tratos sofridos nas mãos dos polícias. Já não são vistos somente como delinquentes, são também vítimas. Muitos são reincidentes.

8. Revisão do conceito/Genealogia Thug

Parece que em Setembro de 2009, segundo um inquérito do Ministério de Justiça,

havia na Cadeia Central da Praia cerca de 127 jovens dos 16 a 21 anos de vários bairros da

cidade. Consta que nos anos de 2005 e 2006, os jovens nessa faixa etária foram parar em

massa à prisão, tentando reorganizar-se no interior da mesma.

Tavares Monteiro ao querer ‘desenhar’ a génese e trajetória thug, acabou por cair um

pouco na armadilha da concetualização inglesa da palavra thug, assumida pela Standard

Dictionary of the English Language de 1962, como uma forma de organização religiosa,

assassinos profissionais do norte da Índia. Porém, consegue fugir dessa definição, dado que

também vê o fenómeno como moda (forma de ser e estar na sociedade, valorizada por jovens

que adoptaram a subcultura hip hop), e ainda “como comportamentos antissociais

(delinquência juvenil). Vê os thugs como um movimento que congrega expressões de novas

identidades juvenis que acompanham as dinâmicas sociais globais e locais: Aos poucos foi associado às representações sociais dos crimes kasubodi aos repatriados dos EUA, até tomar a dimensão dum fenómeno propriamente sociológico. (…) Com efeito, através de uma imagem estereotipada, estes ‘grupos juvenis» emergentes ficaram a ser conhecidos nos meios jornalísticos como jovens delinquentes em conflito com a lei, entre outras expressões até a designação do termo “thug”. (João Monteiro, 2010: 11-12).

O termo thug passou a ser visto não como símbolo de delinquência juvenil, mas

também como um estilo de vida com características específicas. Receberam o rótulo de

delinquentes, antissociais e incapazes, vêm violados os seus direitos de cidadania (falta de

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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oportunidades e barreiras para o desenvolvimento pessoal e humano), reagem negativamente,

ocultando as suas competências (positivas) que poderiam disponibilizar à sociedade.

Pode-se considerar que os media, a partir de 2004, ajudaram na adesão e coesão de

jovens masculinos, da maioria dos bairros degradados da Praia, a grupos rebeldes e

‘americanizados’ (que se encontravam na fronteira entre a permanência e o abandono

escolar). É a partir dos anos 2006 e 2007, que este fenómeno sociológico ganhou contornos

preocupantes, transformando-se numa questão social e política.

Tavares Monteiro considera ainda que os deportados encabeçaram os primeiros grupos

thugs, verificando-se paulatinamente a adesão dos jovens dos bairros pobres. No início, esses

jovens faziam assaltos (kasu bodi) fora dos seus bairros, em todas as zonas da cidade da Praia,

para obter algum dinheiro para casa e para diversões noturnas. Com o tempo, esta praxis

propagou-se, levando a maior adesão e coesão para uma melhor proteção e controlo do

território de pertença (autodefesa) contra grupos rivais. O que provocou “enclausuramento”

dos jovens nos bairros (limitação de circulação), daí o aumento de conflitos entre bairros, com

as suas regras próprias de grupos (defesa/proteção/controlo do território/impedimento de

assaltos/invasão de grupos rivais na área de residência), o que aumentou a proliferação de

armas de fogo e intensificação dos conflitos. O enclausuramento e rivalidades, assim como os

assaltos, criaram ambiente para o surgimento de primeiros homicídios entre grupos rivais.

E é nesse período que os novos-entrantes, jovens com idade compreendida entre os 16

e 24 anos de idade (que frequentavam entre a 6ª classe e o 12º ano), procuram criar novas

formas de sociabilidade. Os conflitos rivais obrigam muitos a abandonar as escolas,

bloqueando a trajetória académica, adiando perspetivas profissionais, fazendo com que os

jovens vagueiam pelos bairros que não oferecem nenhuma alternativa para a ocupação dos

tempos livres. Dessa forma, esses jovens criam e recriam (des) ordem social periférica com

base nas suas próprias leis e valores simbólicos, onde as instituições como a família ou o

Estado, entre outras, tendem a perder significado. É assim que o hedonismo, o imediatismo

tout court, assim como o sexo, o álcool e as drogas se tornaram comum entre os grupos,

provocando depressão, processos judiciais, inimigos, tristeza às famílias das vítimas, pressão

social, estigma, assim como o consumo de droga, tiroteios nos bairros, kasu bodi, ajustes de

conta, extorsão, vingança, torturas de grupos sobre indivíduos:

O trabalho de pesquisa de João Tavares Monteiro, de que fui orientador da

monografia, trouxe informações interessantes, como por exemplo, nos finais da década de

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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1980, o grupo mais conhecido era, segundo o Jornal Voz di Povo os “netinho de vovó”28,

composto por adolescentes que cedo começaram a “vida na rua”. Nos finais dos anos de 1990

e inícios do ano 2000 surge o fenómeno dos deportados no jornal A Semana, e nos finais de

2004 a questão dos grupos de adolescentes designados “thug” no Jornal Expresso das Ilhas.

Outro momento interessante dessa pesquisa é quando o autor pede os jovens para

autodefinirem thug: Thug são pessoas normais, que gostam de vestir roupas largas, que adoptaram uma nova forma de andar, gesticular e falar. Andam em grupos de amigos e são unidos. Organizam festas e gostam de estar bem vestidos (moda hip hop). O thug está inserido no grupo que o defende e ao qual deve fidelidade. São pessoas com vida difícil e convivem muito com amigos. (…) Thug é diferente de gangs (considerados mais violentos). É um revoltado com a sociedade e não aceita abusos. Os que não podem comprar roupas e acessórios (brinco, chapéu, ténis, botas, calças, t-shirt), dão kasu bodi. Thug gosta de festas, bebidas, mulheres e discotecas. Adoram a cultura hip hop. Usam o rap para criticar a sociedade e reenviar mensagens de revolta para outros grupos rivais (beef) e chamar atenção das raparigas (”rap romântico”) (João Monteiro, 2010:105).

Nessa perspetiva, podemos ver que os thugs estão entre a revolta e a criminalidade,

adoram o rap e hip hop. São jovens que tinham por hábito agrupar-se para festas, jogos ou

danças, e que são amigos desde infância. No início era mais a influência do hip hop, sem

brigas, roupas largas, etc. Os conflitos vieram reforçar o enclausuramento e complicar a vida

deles. É interessante notar que esses jovens vêm no rap um estilo, forma de expressão e

manifestação que critica os alicerces do poder, as desigualdades social, a política, económica. É o estilo musical mais apreciado por esses jovens. Serve tanto de combustível para revoltas juvenis, como para

criar momentos positivos.

Numa perspetiva mais crítica, podemos ver que a categoria thug surge, como já foi

enfatizado, juntamente com o aumento considerável da violência juvenil urbana, sobretudo

nalgumas zonas das cidades da Praia e do Mindelo que se transformaram em arenas de mal-

estar e confrontação juvenil. Os media enfatizam imagens e notícias sobre esse mal-estar:

violência gratuita, confrontação e homicídios perpetrados por jovens de bairros ‘a evitar’,

usando uma expressão cara a Loic Wacquant (2008:1) que nos leva a recorrer, por sua vez, a

léxicos topográficos como bairros periféricos, ghetto, periferia para designar bairros e

comunidades estigmatizados, residências dos párias, daqueles que começam a ser indesejados,

desprezados pela sociedade (Nardi Sousa, Jornal Asemana nº1055, p6, 27 de Julho de 2012) 28 Expressões usadas nos Jornais - Jornal Voz di Povo (1986-1990): Assaltos, Ladrão, Roubos, Mascarados, Intrusos, Furtos, Larápios, Bandos, Meliantes, Quadrilha, Pequenos Ladrões, Grupos de Gatunos, Assaltantes, Grupos de Assaltantes./Jornal A semana (1999-2003): Repatriados Americanos, Terror, Deportado, Marginais, Vândalos, Gangs, Homicidas, Assassinos, Matadores./Expresso das Ilhas (2004-2007): “Caço-Body”, Assaltos, “Thugs”, Esfaqueamento, Grupos Rivais, Marginais, Grupos delinquentes, “Ataques”, Agressões, Venda de drogas, Assassinos, Espancamentos, Bandos de thug, Grupos organizados./A Semana (2005-2006): Gangs, Assaltantes, Incapuçados, Grupos de thugs, Bando rivais, Facadas, Grupos de kasu bodi, Grupos de jovens marginais, Jovens delinquentes, “Grupo X”, “Grupo y”. (João Monteiro, 2010:98).

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A grande limitação desta rotulagem thug tem a ver com o facto de este termo atribuir

per se todos os mal-estares aos jovens de comunidades pobres e marginalizadas, que

começam a ser transformados em novos bodes expiatórios dos problemas sociais. O termo

não serve para explicar a amálgama de problemas que esses jovens enfrentam como vítimas e

agentes (abandono escolar, pobreza urbana, consumo de álcool e estupefaciente, assaltos,

crimes, confrontos, desemprego, acesso a armas de fogo, desigualdades sociais, perseguição

policial, etc.).

Se os investigadores e a sociedade focarem neste rótulo, para além de reforçar a

identidade desses mal-amados, incompreendidos e indesejados, provocam a sua coesão

grupal, propositadamente vai-se apostando paulatinamente na tríade:

Polícia/Repressão/Prisão. Mas, se a sociedade começa a enxergar o efeito espelho que esse

mal-estar juvenil provoca, pode-se chegar à conclusão, sem dizer que o fenómeno não existe,

que são categorias sociais inventadas e forjadas, fruto da inexistência de políticas públicas e

estratégias sérias que procuram diminuir os problemas sociais e juvenis. Esses jovens

precisam ser mais envolvidos na procura de soluções e responsabilizados pelos problemas

criados, conscientemente.

Por isso, a rejeição desta categoria social inventada, thug ou thug life, em Cabo Verde,

e inclusivamente a rejeição desses grupos como associações juvenis comunitárias. Para já

cria-se um falso problema sociológico, dado que designar os jovens de bairros pobres de thug,

sobretudo quando assumido como bandidos (ou vida bandida), é desconhecer a realidade da

juventude cabo-verdiana e o peso ou a percentagem daqueles que de facto cometem delitos

graves, inclusive assassinatos. É um erro rotular todos os jovens que vivem este mal-estar

num único conceito que foi compreendido e utilizado erroneamente para designar assassinos

ou vida bandida. É preciso contextualizar os conceitos: Thug é uma palavra tornada popular pelo rapper 2Pac (Tupac Shakur), que rapidamente foi confundida com criminoso. Thug Life é o oposto de alguém que teve tudo o que precisava para suceder na vida, é a situação daqueles que não têm nada, e vence na vida, quando ultrapassa todos os obstáculos para alcançar os seus objetivos. Thug life continha muitos códigos, de forma a pôr ordem no aumento de gangues e tráfico de droga. Thug é um acrónimo para "The Hate U Give Little Infants Fucks Everyone".29 Thug Life foi um grupo de rap formado por 2Pac com mais 4 outros membros: Mopreme, Macadoshis, Big Syke, and The Rated R. Após a prisão de 2Pac por alegada violação, o grupo desfez-se. (…) Thug life tem cerca de 21 códigos, sendo que o primeiro diz que todos os novatos no jogo devem saber que podem ficar rico, ir para a cadeia ou morrer (Bruce Poinsette, 2011).

Para Poinsette, poucos sabem de facto o que 2Pac quis dizer com a expressão Thug

life. Thug life foi um movimento criado por Tupac, o padrasto dele Mutulu Shakur e o 29 «O ódio que crias nas crianças, lixa todo o mundo» (tradução nossa).

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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padrinho Geronimo Pratt para politizar os gangues. Todos tinham ligação com o Partido Black

Panther e viram que a energia revolucionária dos jovens estava a ser desperdiçada na

opressão da comunidade negra em vez de a defender. Este autor diz ainda que o conceito de

gangue não é completamente negativo. É um grupo de pessoas que estão juntos, com

interesses comuns de proteção e ganho económico, o que não quer dizer que tem de ser com

base no crime e na violência. Porém, quando se vive na pobreza, no desemprego e uma certa

dependência do mercado da droga, que não tem regras para prevenir o uso de violência para

resolver problemas, existe aí uma receita para o desastre.

De facto, inicialmente, os gangues não aterrorizavam as comunidades, mas protegiam-

nas. É o caso do The Crips, que no início protegia a comunidade do abuso policial. Para Bruce

Poinsette, os Crips e outros gangues foram introduzidos na droga pela CIA (Central

Intelligence Agency – EUA) e produtores de drogas parceiros da CIA. É assim que os

membros dos gangues se transformaram de soldados em terroristas das comunidades.

O autor considera que sem atacar o problema, que é económico, não se vai resolver

este ciclo de desemprego e desunião. Basta lembrar que Tupac, Mutulu e Pratt eram

estudiosos de Malcolm X, que pregava o Nacionalismo Negro, que incitava a comunidade a

tomar conta da sua economia. Atualmente, os homens e mulheres de negócios que dominam a

economia não vivem nas comunidades e reinvestem o seu dinheiro noutro sítio, sem se

importar com a pobreza e o desemprego. Não investem em escolas, infraestruturas, etc. É o

caso dos armazéns dos chineses, libaneses, portugueses e cabo-verdianos em Achada Grande

Frente e Trás, que não se preocupa com essas comunidades, só se preocupam com lucros.

A proposta do autor é trazer os gangues para o campo político, de proteção dos seus

interesses económicos e comunitários. Uma espécie de máfia, mas mais positiva, dado que a

italiana conseguiu fazer isso. A violência poderá ser travada com alternativas económicas. O

aprisionamento dos jovens pobres (e negros) não irá resolver o problema. Poderá haver muita

reincidência. A proposta é transformar os jovens presos em empreendedores.30

9. Sobre a situação criminal em Cabo Verde: espaço urbano/criminalidade urbana

Em Cabo Verde, tem-se verificado mais criminalidade nas zonas urbanas com mais

peso populacional, S. Tiago representa 56% dos crimes nacionais. Quanto à criminalidade per

capita, as ilhas do Sal, Boa Vista e Brava apresentam um maior número de ocorrência. A

30 O termo “Thug Life”, segundo Poinsette, é uma referência subtil à Revolução americana e táticas que puseram fim à colonização britânica, “liberdade ou a morte” como diria Patrick Henry. Hoje, quem é revolucionário é visto como extremista. Revolução não tem de ser necessariamente violento, mas deve haver determinação e união, começando por combater a pobreza económica, controlar os meios da produção da economia.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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partir do ano 2000, o número de crimes registados tem vindo a aumentar de ano para ano, com

exceção de 2004 e 2007 em que se verificou uma ligeira descida. Em 2008, a criminalidade

aumentou 11%.31

A Polícia Nacional disponibiliza mais dados que a Polícia Judiciária. O PESI-2009 só

contém dados, da PJ, relativo aos anos de 2004, 2005 e 2006, Santiago, Sal e S. Vicente.

Nesse estudo, os problemas que mais preocupam os cabo-verdianos são os de

segurança e da criminalidade. Esta preocupação é ascendente desde 2002, o seu grau

aumentou de 4 para 11.32

Quadro 2 - Dados sobre a Criminalidade Registada (Polícia Nacional) Ano Crime

contra pessoa

Crime contra

propriedade

Total Variação em relação ao

ano anterior

% Variação

% Crimes contra

pessoas/Total

% Crime contra propriedade/Total

1996 6.385 4.492 10.877 58,70% 41,30% 1997 7.411 5.338 12.749 1.872 17,20% 58,13% 41,87% 1998 8.892 5.633 14.525 1.776 13,90% 61,22% 38,78% 1999 8.181 4.954 13.135 -1.390 -9,60% 62,28% 37,72% 2000 9.219 4.936 14.155 1.020 7,80% 65,13% 34,87% 2001 9.420 5.451 14.871 716 5,10% 63,34% 36,66% 2002 9.549 6.427 15.976 1.105 7,40% 59,77% 40,23% 2003 10.003 7.487 17.490 1.514 9,50% 51,19% 42,81% 2004 9.478 7.291 16.769 -721 -4,10% 56,52% 43,48% 2005 9.550 7.861 17.411 642 3,80% 54,85% 45,15% 2006 10.624 8.630 19.254 1.843 10,60% 55,18% 44,82% 2007 9.854 8.942 18.796 461 -3% 52,43% 47,57% 2008 10.537 10.270 20.807 2.011 11% 50,64% 49,36%

Fonte: PESI-2009, p. 27. Em 2007, o número de crimes por 1.000 habitantes foi de 38,2% e em 2008 de 41,5%.

Em 2008, o número de crimes contra as pessoas e contra propriedades correspondeu a valores

quase idênticos (50,64% e 49,36%). De facto, 42% dos cabo-verdianos, inquiridos no Estudo

sobre a Criminalidade em Cabo Verde da ONUDC/CCCD, consideram que a perceção de

insegurança aumentou.33

É interessante também notar que em 2007 a criminalidade surgia em 7º lugar como o

maior problema em Cabo Verde. Em 2008 passou a ocupar a 3ª posição.34 Segundo dados

nacionais, metade dos crimes praticados em Cabo Verde não é participada (devido à falta de

provas, incapacidade e negligência da polícia). A polícia é mal vista no que concerne à

eficácia. O seu trabalho, na capital, é vista de forma negativa por cerca de 56% dos inquiridos

(ONUDOC 2007).

31 Dados do PESI-2009 informam que em 1996 registou-se 10.877 crimes; em 2006, 19.254. 32 PESI-2009, p. 3. 33 PESI-2009 (p29), dos crimes mais temidos Homicídio (40%); Roubos/furtos em residências (33%); Ofensas corporais (29%); Tráfico de droga (28%); Roubo/furto (16%). 34 ver Resultados Afrobarómetro, 2008, sobre a Qualidade da Democracia.

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Neste cenário criminal, as desigualdades sociais fizeram surgir novos fenómenos

criminais, mormente a juvenil. Dados do Estudo Socioeconómico sobre as Armas Ligeiras e

de Pequeno Calibre em Cabo Verde (Novembro de 2008), informam que, dos crimes contra as

pessoas e contra o património, 80% são praticados por jovens com idade compreendida entre

os 16 e os 21 anos e cerca de 19% com idade entre os 12 e os 16 anos.35 Crimes de rua,

praticados por crianças e adolescentes, normalmente, são vistos como pequena criminalidade.

Mas, só nos últimos tempos, a circulação de armas de fogo, e a sua utilização pelos jovens

designados thugs (para ajustes de conta: homicídios, ferimentos, inclusivamente dentro de

escolas), começa a preocupar a população, que tende a ser cada vez menos tolerantes com este

modus vivendi dos jovens. Essas armas advêm do tráfico internacional, enviadas por

emigrantes (em bidões), do continente africano (Guiné-Bissau), do período da guerra de

libertação e ainda de fabricação artesanal local (boca bedju).36

Os dados recolhidos nos últimos dois anos indicam que a cidade da Praia tem mais de

80% dos bairros com origem espontânea e/ou clandestina. São cometidos, em média, em

Cabo Verde 76 crimes por dia e desses 43 são crimes contra o património. Dos 76 crimes

diários, 24,5 foram cometidos na Praia, 7,5 em S. Vicente, 4,6 no Sal, 3,3 em São Filipe e 2,7

em Santa Catarina, ou seja 42,6 crimes (ONUHABITAT, 2011:90).

A violência urbana constitui um problema social. Com efeito, cerca de 73% dos

inquiridos se mostram sempre preocupados com a violência e 12,8% estão muitas vezes

preocupados, perfazendo um total de 85,8% dos residentes dos centros urbanos.37

Com efeito, para 49,2% dos inquiridos existem grupos/bandos de jovens nos seus

bairros de residência que provocam conflito, sendo 79% na Praia, 39,7% em Mindelo e 40%

em Sal Rei. Os jovens reclusos entrevistados imputam a entrada na violência como resultado

de clivagens sociais e económicas, espacialmente, traduzidas numa ocupação diferenciada de

indivíduos, grupos, classes e categoriais sociais. O facto de querer ter o mesmo padrão de

consumo, constituiu para alguns a razão de assaltos, roubos e furtos. De igual modo, a falta de

emprego e rendimentos, a inexistência de infraestruturas nos bairros para ocupação dos

tempos livres ou, quando existem, são de difícil acesso aos jovens, a luta por demarcação de

territórios constituem outros factores aduzidos.

35 PESI-2009, p. 26. 36 A PN, até o ano de 2008, apreendeu e armazenou cerca de 1.961 armas, sendo 1.283 pistolas, 488 revólveres e 190 espingardas, dos quais 8% são boca bedju. 37 ONUHABITAT, p. 62.

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A nível nacional, cerca de 73% dos inquiridos se mostram sempre preocupados com a

violência nos centros urbanos e 12,8% estão muitas vezes preocupados. 21,4% dos inquiridos

foram, em 2010, vítimas de crimes violentos.

Na verdade, 71,7% dos inquiridos apontam os jovens como os responsáveis pela

violência. Resulta também do estudo que as ações de violência tendem a acontecer em grupo

e no período da noite. Da mesma forma, 74,6% dos inquiridos consideram que o tráfico de

drogas nos seus respetivos bairros tem tido uma influência no aumento e no cometimento de

atos de violência. Para os inquiridos da Praia (50%), de S. Filipe (33,3%) e do Mindelo

(30%), a inexistência de proteção policial também deve ser considerada como um fator

importante de facilitação da violência (ONUHABITAT, 2011).

Estudos ainda mais recentes têm tratado, mesmo que superficialmente, o tema da

violência e criminalidade, perceção de insegurança, mal-estar social. É o caso do estudo

encomendado pelo Ministério da Administração Interna, que procura conhecer a perceção das

populações quanto ao fenómeno da violência e criminalidade, sua dinâmica e impactos na

vida quotidiana dos cidadãos, suas manifestações, perceções, tipologia, distribuição espacial e

seus principais determinantes sociais e económicos.38

Os bairros em que as famílias residentes (mais de 1/3) mais sofreram assaltos no

último ano são os de Fazenda/Sucupira (37,3%), do Castelão/Coqueiro (34,9%) e da Achada

Grande Frente (33,3%). A situação ainda é complicada, acima da média do concelho, nos

bairros de Achada Mato/Covão Mendes/Achadinha Pires (30,5%), da Calabaceira (30%) de

Achada Santo António (29,3%) de Lém Cachorro (27,6%) da Achada Grande Trás (27,2%) e

da Vila Nova (26,4%). Ainda no Bairro de Eugénio Lima e do Plateau, 1 em cada 4 agregado

familiar, experimentou algum tipo de violência/criminalidade no mesmo período.39

O tipo de violência/criminalidade mais sofrida segundo as vítimas é o assalto (51,3%).

Os resultados indicam que 1 em cada 5 agregado no Concelho foi vítima de algum tipo de

assalto. A violência interpessoal surge em terceiro plano, com 1 em cada 4 agregado.

Os assaltos acontecem em todos os bairros, com exceção do Bairro de S. Martinho

Pequeno onde os roubos (62,5%) são mais frequentes que os assaltos (12,5%). Os bairros que

38 Este estudo da Afrosondagem (Relatório sobre a Violência e Criminalidade na Cidade da Praia, 2012), teve por base um inquérito de auscultação das populações quanto aos fenómenos da violência, grau de vitimização e sua distribuição por bairros da capital, tipologia dos crimes e frequência da sua ocorrência, pontos de maior incidência da criminalidade e insegurança, etc. 39 Afrosondagem, 2012, p. 13.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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mais assaltos sofrem são Fazenda, Plateau e Várzea, sendo que mais de 2/3 dos agregados

familiares sofreram assaltos.40

Os bairros onde os agregados mais sofrem a violência interpessoal são os de Safendi

(39,7%), S. Felipe (38,9%) e Achada Grande Frente (37,8%). No que concerne a distribuição

espacial da violência/criminalidade, ela teve lugar na rua (47,2%) ou em casa (45,1%).

Convém realçar que a grande maioria (82,5%) dos casos de violência e criminalidade tiveram

lugar no bairro de residência da vítima.41

Este estudo conclui que a maioria dos atos de violência e criminalidade sofrida pelos

agregados tem como perpetrador um indivíduo armado sem arma de fogo (23,3%), assim

como uma figura como perpetrador da violência/criminalidade, também um indivíduo isolado,

porém armado com arma de fogo (18,8%). Os grupos de indivíduos armados com armas de

fogo constituem 13,8% do universo dos agressores.42

Cerca de 2/4 das vítimas da violência e criminalidade que reportaram a ocorrência às

forças policiais têm a perceção que não resultou em nada, mormente os residentes dos bairros

de Tira Chapéu (71,4%), Terra Branca/Belavista (64,7%) e do Palmarejo (58,3%).

Provavelmente, isto tem aumentado o sentimento ou propensão de resistir ou ripostar com

violência (1.1%). Em caso de repetição cerca de 12% das vítimas mostra-se predisposta a

resistir/enfrentar o criminoso. Para além desses 12% que querem fazer justiça com as próprias mãos, 2,7%

dos agregados demonstraram propensão à vingança.43

Quanto à perceção sobre o aumento da violência/criminalidade, cerca de 54,2% da

população concorda que a violência e a criminalidade têm aumentado no seu bairro, nos

últimos 5 anos. Sendo que essa perceção sobre a diminuição da criminalidade é mais

favorável nos bairros de Lém-Ferreira (54,4%), Achada Grande Trás (36,6%) e Achada

Grande Frente (32,6%).

O estudo conclui ainda que a maioria das populações dos bairros da capital (70%)

partilha a opinião que os principais responsáveis pela onda de violência e criminalidade têm

como responsáveis os jovens de idade superior a 16 anos. Quanto ao conhecimento de grupos

de delinquentes nos bairros, 8 em cada 10 entrevistados dizem conhece-los, sobretudo nos 40 Roubo foi definido pelos autores como situações em que não há uma interação entre o criminoso e a vítima. Os bairros de Achada Grande Trás (38,8%), do Palmarejo (32,7%) e da Achada Grande Frente (32,7%) têm sofrido de forma preocupante com os roubos. Mesmo assim, a situação é melhor que os bairros do interior do Concelho, S.Tomé/Portete (41,7%) e de S. Martinho (62,5%). 41 Grande parte dos crimes acontece no horário e período pós-laboral, quando a maioria das populações estão em casa ou nas imediações. Grande parte das vítimas não conhece os criminosos, o que quer dizer estes não pertencem às comunidades onde atua. O conhecimento entre a vítima e o agressor é mais acentuado nos residentes dos bairros de Palmarejo (87,8%), de S. Tomé (83,3%), da Fazenda (82,9%) e da Prainha (81,3%). No bairro de Achada Grande 30% das vítimas identificam os seus agressores como sendo vizinho. (p. 20). 42 Idem p. 23. 43 Idem p. 34.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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bairros de Achada Mato, Achada Grande Frente e Ponta de Água, todos a ultrapassar os 96%.

E cerca de 55% das populações dos bairros da Praia já presenciaram briga de grupos

delinquentes no seu bairro, sobretudo os dos bairros de Castelão/Coqueiro, Achada Grande

Frente e Achada Grande Trás.

Uma boa parte da população da Praia (73%) mudou alguns hábitos de rotina, como

sair à noite (60,6%), por exemplo, sendo os bairros de Achada Santo António, Tira Chapéu e

Terra Branca. Cerca de 88% dos entrevistados manifestaram vontade de colaborar

voluntariamente com a polícia e as autoridades no combate ao fenómeno da violência e

criminalidade. Para além do assalto às pessoas na rua, a briga entre grupos delinquentes,

assim como assaltos a casas e residências são os crimes mais comuns e identificados pelos

inquiridos. As causas identificadas têm a ver com o uso e tráfico de drogas, o desemprego,

falta de oportunidade para ocupação dos tempos livres, alcoolismo, pobreza e falta de

policiamento

Dados recentes da Direcção Geral dos Serviços Penitenciários e de Reinserção Social

(Julho 2012), apontam que existem na Cadeia central da Praia cerca de 810 presos e na

Cadeia Central de S. Vicente cerca de 323 presos.

Na CCP, destacam-se, quanto à natureza do delito, o crime contra pessoas (40,1%), o

que corresponde a 325 pessoas, sendo 318 homens; Crime contra propriedades (26,7%), que

corresponde a 216 pessoas, sendo 215 homens; e Crimes Sexuais (13,1%), o que corresponde

a 106 homens.

Quanto à situação do recluso, dos 810 presos, 278 (34%) são preventivos, sendo 265

homens, e 532 (66%) são condenados, o que corresponde a 503 homens. Quadro 3 - Balanço estatístico referente à Faixa etária dos reclusos no mês de Julho de 2012, na cadeia Central da Praia

Idade Homem Mulher Total % (16 a 21) anos 203 3 206 25% (22 a 30) anos 288 25 313 39% (31 a 40) anos 189 9 198 24% (41 a 50) anos 69 6 75 9% (51 a 60) anos 19 1 20 2% (60 e +) anos NR -2 -2 -0,2%

Total 768 42 810 100% Fonte: Direcção dos Serviços da Reinserção Social - 2012

Na CCSV, destacam-se, quanto à natureza do delito, o crime contra pessoas (30%), o

que corresponde a 96 pessoas, sendo 90 homens; Crime contra propriedades (42%), que

corresponde a 137 pessoas, sendo 136 homens; e Crimes Sexuais (11,1%), o que corresponde

a 36 homens.

Revista Cabo-verdiana de Ciências Sociais, ano 1, n. 1. jan-dez, 2013.

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Quanto à situação do recluso, dos 323 presos, 40 (12,4%) são preventivos, sendo 39

homens, e 283 (87,6%) são condenados, sendo 273 homens. Quadro 4 - Balanço estatístico referente à Faixa etária dos reclusos no mês de Julho de 2012, na Cadeia Central de S. Vicente

Idade Homem Mulher Total % (16 a 21) anos 39 2 40 12% (22 a 30) anos 144 2 147 46% (31 a 40) anos 77 5 85 26% (41 a 50) anos 48 2 50 15% (51 a 60) anos 1 NR 1 0,3% (60 e +) anos 3 NR 3 1%

Total 312 11 323 100% Fonte: Direcção dos Serviços da Reinserção Social

Quanto à faixa etária, o que mais nos interessa, tal como os quadros acima indicam

verifica-se uma crescente tendência para o encarceramento dos jovens (16-21 anos) e (22-30

anos), o que corresponde a 64% do total dos presos na cadeia Central da Praia e 57% na

cadeia Central de S. Vicente44. Este encarceramento maciço da população jovem e pobre

inquieta os investigadores.

10. Considerações Finais

De facto, o desvio dos jovens é um tema delicado, difícil e embaraçante. Os dados

confirmam um ligeiro aumento dos jovens na área da criminalidade, e fraca ligação familiares

e académicas. Apesar de ter surgido nos últimos tempos um interesse em conhecer o

fenómeno, existe ainda um conhecimento escasso nesta área. Tem-se verificado, através dos

media, uma cada vez maior presença de jovens em conflito com a lei. Este aumento de jovens

na criminalidade requer uma reflexão séria sobre a situação socioeconómica dos pobres e

excluídos, e ainda sobre as alternativas para a juventude em Cabo Verde. É que o fenómeno

das crianças na rua explodiu nos últimos anos na forma da cultura de gangs, um tipo de

violência juvenil fortemente enraizada nas estruturas de desigualdades sociais, que só poderá

ser minimizada com reforço de intervenção comunitária, luta contra a pobreza e através da

construção de um tecido menos esgarçado de organizações da sociedade civil.

Pode-se facilmente dizer que as medidas coercitivas/repressivas aplicadas pela polícia

não têm melhorado o fenómeno, apesar desta aparente anestesia ou estancamento; isso tem 44 Dados do mês de março de 2013, dizem que «o índice de criminalidade aumentou 10,35% em 2012, comparado com o período homólogo de 2011 onde se registaram 22 mil 152 casos reportados, contra 24 mil do ano passado. (…) Quanto a homicídios, Praia continua no topo com 29 crimes cometidos, menos 4 que em 2011 (33 casos). Ainda na praia houve 4.652 crimes contra a propriedade, contra 4.370 em 2011. (…) em 2101, a nível nacional foram cometidos 11.228 crimes contra propriedade, mas apenas 6.682 foram esclarecidos.. os dados da evolução da criminalidade de 1996 a 2012 apontam para um aumento na ordem dos 86% a uma média anual de 5,4%.» Vide Jornal A Nação, nº289, de 14 a 20 de março de 2013 folha policial A6).

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contribuído para aumentar a revolta juvenil, ‘obrigando’ os jovens a reagirem e

reorganizarem. É que o fenómeno parece mais um movimento que vai-se metamorfoseando,

do que existência de ‘grupos thug’ totalmente organizados, estáticos e homogéneos. É claro

que isto não quer dizer que estejam completamente desorganizados, ou que no passado não

houve grupos organizados. É importante notar que os grupos são abertos, sujeitos a mudanças.

Os media só tem abordado uma parte do problema (a desordem provocada pelos jovens), não

têm mostrado interesse pela vida dos jovens (dimensão do colectivo, emoções, amizade, hip

hop, desporto, entreajuda) e nem pelos problemas sociais por que passam (desemprego,

pobreza, abandono escolar, exclusão social).

No último ano, 2012, houve a nosso ver, uma forte intervenção comunitária de jovens

com curriculum social, intensificando a intervenção para reduzir os males da juventude;

verificou-se também uma tendência dos jovens de procurarem a paz, como moda. Denota-se

uma ligeira diminuição da violência. Por outro lado, a polícia tem aumentado a sua ação nos

bairros, dando caça aos criminosos e procurando implementar o Policiamento de

Proximidade. Porém, é preciso mais recursos e investimentos nos bairros, assim como mais

trabalho, compreensão e responsabilização dos jovens.

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