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Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 1
POR DEBAIXO DA BATINA:
PADRES E BISPOS SOB A VIGILNCIA DO DOPS/SP
MARCOS ROBERTO BRITO DOS SANTOS
E se at a bispos da Santa Igreja, entregues misso cristianssima de defender pessoas
humanas esmagadas, se tem a audcia de chamar
de comunistas, o que ocorreria a nossos padres e,
sobretudo, a nossos leigos, se os
abandonssemos prpria sorte?
(Dom Hlder Cmara, em Revoluo Dentro da Paz, 1968).
No conozco en el mundo moderno papel ms triste que el de estos telogos mansos y
conciliadores (mucho ms triste cuando
autorizan y realzan su persona la mitra y el
roquete) que bajan a la arena, cuando ms
empeada arde la lid entre el cristo y las
potestades del infierno, y, en vez de ponerse
resueltamente del lado del "vexillum regis", se
colocan en medio, con la pretensin impossible
de hacerse oir y entender de unos y otros, de
sosegar los contrarios bandos, de casar lo blanco
con lo negro e de llegar a una avenencia
imposible con la revolucin, que, anticristiana
por su ndole, acaba por mofarse siempre de tales
auxiliares, despus de haber aprovechado y mal
pagado sus servicios1
(Marcelino Menndez Pelayo, Agencia
Informativa de Colaboraciones). Fonte:
Arquivo DOPS/SP
INTRODUO
A acessibilidade de historiadores aos arquivos contendo documentos produzidos
pelos militares e pelos rgos de informaes da ditadura tem possibilitado um
Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
1 No conheo no mundo moderno papel mais triste que o desses telogos mansos e conciliadores (muito mais triste quando autorizam e realam sua pessoa, a mitra e a sobrepeliz) que vo arena quando
arde luta entre Cristo e os poderes do inferno, e, em vez de se colocarem firmemente ao lado do
estandarte do Rei, ficam no meio, com a pretenso impossvel de ouvir e entender uns e outros, de conciliar os grupos contrrios, de casar o branco com o negro, e de chegar a um compromisso possvel
com a revoluo, que anticrist em sua natureza, acaba sempre indo contra eles mesmos, depois de
haver aproveitado dos seus servios.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 2
aprofundamento, ou mesmo em alguns casos, redirecionamentos interpretativos, em
relao origem e natureza do regime implantado em 1964. De forma mais especfica,
tem reaberto o antigo debate em torno da participao de agentes religiosos nos
movimentos sociais e populares e na luta contra o regime militar no Brasil. O livro do
brasilianista norte-americano Kenneth Serbin, Dilogos nas sombras, ilustra bem este
novo momento da historiografia dedicada ao tema, quando a abertura dos arquivos da
represso2 reacende as discusses, possibilitando outros caminhos ao historiador, como
o de reabilitao dos homens enquanto sujeitos da histria.
Este trabalho foi desenvolvido a partir da anlise de parte da documentao da
Srie Dossis do acervo do DEOPS/SP, sob a guarda do Arquivo Pblico do Estado
de So Paulo (AESP). To somente de maneira estrita podemos compreender como
documentos produzidos pelo DOPS paulista, visto que grande parte desta documentao
tem sua origem em outros rgos de vigilncia e controle como a Diviso de Segurana
(DSEG) e o Quartel- General (QG-4) do Ministrio da Aeronutica, bem como de
jornais e outros peridicos publicados por entidades civis. Como se sabe, o regime
militar construiu uma verdadeira rede (sistema) de circulao e difuso de informaes,
com intensa troca de correspondncia entre os rgos, nos diversos nveis de governo
(federal, estadual e local).
Com o objetivo de entender um pouco mais da vigilncia exercida pelos
aparelhos de informao sobre figuras do clero catlico no Brasil, em especial o
arcebispo dom Hlder Cmara e o padre Jos Comblin, foram consultados documentos
como relatrios, dossis, informaes, informes, interrogatrios, correspondncias
apreendidas, declaraes, autos de qualificao, recortes de jornais e panfletos,
elaborados entre os anos de 1968 e 1972, perodo ureo da represso sobre elementos da
Igreja Catlica. Documentos estes que testemunham a onipotncia e onipresena do
aparato repressivo.
2 Entendemos aqui como arquivos da represso no apenas conjuntos documentais produzidos pelos
rgos de informao e segurana do aparato estatal em aes repressivas, durante perodos no-
democrticos (BAUER; GERTZ, 2009, p. 177), mas tambm aqueles produzidos por entidades civis e do Estado, com objetivos de inculpao de crime poltico ou negociao entre as partes envolvidas
nos conflitos decorrentes do regime, originria de colees pblicas ou privadas.
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PADRES E BISPOS SUBVERSIVOS
No obstante os agentes religiosos ligados Igreja Catlica tenham comumente
gozado no Brasil de grande legitimidade perante amplos setores da populao e nas
relaes com outras instituies sociais, o que lhes conferia certo grau de insuspeio, a
espionagem aos seus membros foi prtica corrente, possvel de se verificar em alguns
perodos da histria do pas, no sendo tambm como ento se poderia pensar uma
exclusividade do regime militar. Muitos padres estrangeiros, por exemplo, foram alvos
da polcia poltica durante o Estado Novo, sob a suspeita de envolvimento com
doutrinas e com grupos fascistas.
A ditadura militar de 1964 no os poupou: agentes religiosos foram espionados,
perseguidos, presos, torturados, mortos e expulsos do pas, sob a acusao de subverso
da ordem. Assim, a presena de documentos nos arquivos da represso, contendo nomes
de bispos e padres, revela como o sistema de inteligncia partia do pressuposto de que
ningum estava totalmente imune ao comunismo, subverso ou corrupo (FICO,
2001, p. 100). O vnculo com instituies religiosas no foi um empecilho ao
investigativa dos militares e seus agentes, que viam na atuao scio-poltica e na
mudana de concepes teolgicas do clero, um desvio da doutrina crist e de sua
funo especificamente religiosa na sociedade.
Os agentes do Servio Secreto do DOPS/SP mencionam duas formas de
atividades subversivas realizadas pelo clero progressista, percebidas a partir das
observaes que efetuavam cotidianamente no estado de So Paulo: a direta, que
consistia na participao pessoal nas concentraes operrias e estudantis; e outra
indireta, considerada por eles a mais sria e perigosa, que era a utilizao do prprio
Evangelho para lanar a semente da insatisfao entre a populao religiosa.
Assim, por ocasio das solenidades religiosas, os padres se servem das
prdicas para chamar a ateno dos fieis no sentido das injustias sociais,
gerando srias dvidas nas mentes dos menos esclarecidos. comum
observar-se nas Igrejas desta Capital, o desvirtuamento das pregaes, que,
s vezes, chegam a concitar os fiis a se reunirem para debater problemas
que dizem respeito guerra do Vietnam, invaso da Repblica
Dominicana, aos problemas do povo cubano, etc.3
3 Informes sobre: clero progressista no estado de So Paulo, Servio Secreto DOPS, 3 de setembro
de 1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-187/190.
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Em So Paulo, estas atividades estavam concentradas em determinadas reas. A
seguir, enumeramos algumas, identificadas pelos agentes do DOPS como focos de
subverso no estado:
OSASCO regio onde se concentra grande nmero de operrios, que vem sendo doutrinados pelos chamados padres operrios.
ABC (...) onde o Bispo de Santo Andr, Dom Jorge Marcos, vem se destacando com sua vastssima atividade.
DOMINICANOS O Convento dos Dominicanos (...) um verdadeiro centro de operaes dos padres progressistas, destacando-se entre eles Frei Chico, cujas conferncias pronunciadas nesta capital, foram verdadeiras
reunies subversivas.
REDENTORISTAS movimento desusado vem sendo observado entre os redentoristas (...), os quais se renem no Instituto Redentorista de Estudos
Superiores (...), onde tem sido verificada a presena de jovens participando
de reunies.
SANTOS no interior do Estado, ressaltamos a atividade do Bispo de Santos, Dom David Pico, que vem orientando os padres operrios, na sua peregrinao pelos bairros pobres daquele municpio, abrangendo
inclusive o municpio de Cubato.
LORENA ainda no interior, mencionamos o Bispo de Lorena, Dom Cndido Padim, que vem semeando a palavra de insatisfao em todo o Vale
da Paraba.
BOTUCATU os padres progressistas de Botucatu esto solidrios com os estudantes locais, nas suas investidas para perturbar a ordem pblica.4
Estas atividades subversivas do clero paulista estavam, todavia, segundo os
agentes do DOPS/SP, sob orientao e liderana de um ator externo ao estado: dom
Hlder Cmara, arcebispo de Olinda e Recife. Este foi, sem dvida, o religioso mais
vigiado e combatido pela ditadura, sofrendo intensos assdios e represlias dos militares
e de seus apoiadores. Desde sua chegada no Recife em abril de 1964, alguns dias aps o
golpe para assumir o arcebispado, a relao entre dom Hlder e os militares se
caracterizou por uma sucesso de momentos de parceria, negociao e conflito. Sua
antiga amizade com o general Antonio Carlos Muricy e a simpatia adquirida perante
outros membros das Foras Armadas, incluindo o ento presidente Castelo Branco,
foram vrias vezes acionadas, no incio de seu pastorado, para conseguir concesses por
parte do regime, incluindo a libertao de padres e leigos militantes das juventudes da
Ao Catlica e do Movimento de Educao de Base (MEB). Entretanto, com o passar
do tempo, as posies de dom Hlder em relao ao regime poltico e a situao
socioeconmica do Nordeste levaram ao descontentamento dos militares e ao
4 Idem.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 5
acirramento dos antagonismos, tornando-se os conflitos mais constantes. Em maio de
1968, segundo o Jornal do Commercio, o DOPS pernambucano j havia fichado o
arcebispo como agitador poltico (PILETTI; PRAXEDES, 1997, p. 301-453).
Os pronunciamentos de dom Hlder sintetizavam concepes
desenvolvimentistas, democrticas, humanista-crists e ecumnicas, o que pode ser
constatado em alguns dos seus discursos, conferncias e sermes escritos neste
interregno (1964-1968) e publicados em um livro sob o sugestivo ttulo Revoluo
dentro da paz. Neles, o arcebispo propugnava uma mudana na mentalidade dos
homens, pois acreditava que a transformao da sociedade exigiria como condio
necessria, ainda que no suficiente, a modificao das conscincias. Pergunta a certo
momento do livro: De que adianta substituir homens, substituir governos, se a
mentalidade continua a mesma?. Esta mudana de mentalidade seria atingida atravs
de um processo de conscientizao dialogada, envolvendo no apenas o povo, mas
tambm as elites dirigentes e empresariais. Propunha, a partir da, a formao de um
movimento de opinio pblica, que por meio da fora das idias, de presses
democrticas em franca oposio opo pela luta armada conduzisse a
transformao das estruturas sociais:
A revoluo social de que o mundo precisa exige converso contnua dos
indivduos e dos povos, (...), no golpe armado, no so guerrilhas, no
guerra. mudana profunda e radical que supe graa divina e um
movimento mundial de opinio pblica, que pode e deve ser ajudado e
estimulado pela Igreja da Amrica Latina e de todo o mundo. dio no
constri. E h todo um mundo novo a construir (CMARA, 1968, p. 30-31).
Para pr em prtica, materializando esta proposta, foi que idealizou o
movimento Presso Moral Libertadora (PML), um projeto audacioso do ponto de vista
da expectativa de alcance social, pois dom Hlder tinha a inteno de atingir um dia
toda sociedade brasileira. Para participar do movimento, a nica exigncia era ser um
homem de boa vontade. Assim, embora tivesse um compromisso em reverter s
situaes de marginalizaes e de desrespeito liberdade de expresso e outros direitos
fundamentais do homem, buscava arregimentar membros em todas as religies, classes
e grupos sociais: artistas, jornalistas, intelectuais, religiosos, ateus, empresrios, e
mesmo, militares e elementos vinculados ao governo.
Entre os bispos brasileiros, o envolvimento ganhou formalidade a partir do
Pacto do Rio de Janeiro, firmado em 19 de julho de 1968, durante a realizao da II
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Assemblia Geral da CNBB. Os 41 bispos que assinaram o documento se
comprometiam, entre outras coisas, a constituir ncleos do movimento Presso Moral
Libertadora em suas dioceses e realizar atividade de lanamento oficial do movimento
marcado nacionalmente para o dia 2 de outubro daquele ano. Assim subscrevia o Pacto
do Rio de Janeiro:
Bispos do Brasil, movidos pelo amor a Deus e pelo amor ao prximo,
cnscios de que estamos em dvida e em atraso para com as Massas Latino-
americanas; desejosos de colaborar para a libertao de milhes de filhos
de Deus que, em nosso pas, em nosso continente, vivem a margem da vida
econmica, educativa, artstica, poltica, social e religiosa; sentindo que s
uma ao clara, positiva, corajosa e coordenada dar consistncia prtica a
documentos como a Gaudium et Spes, a Populorum Progressio e as Concluses de Mar del Plata, firmamos a resoluo de estimular, ao mximo a Presso Moral Libertadora, com seu programa inicial de
exigncia de concretizao dos Direitos fundamentais dos homens, com
nfase na libertao de qualquer escravido ou servido (art. IV), e nos
direitos vida, liberdade, segurana pessoal (art.III) e ao trabalho (art.
XXIII).5
Em So Paulo, destacamos a adeso ao movimento por parte do bispo de Santos,
dom David Pico. Suas atividades, consideradas subversivas, vinham sendo
monitoradas pelo menos desde o ano de 1965, quando nas palavras dos rgos de
informao esteve frente da estruturao de um movimento nitidamente de
esquerda que estava sendo preparado naquela cidade para ser lanado a pretexto de
pregao de justia social. Em sua diocese e sob seu estmulo atuavam padres
operrios franceses. Com a decretao do AI-5, trs destes padres foram detidos e, por
isso, dom David chamado a comparecer no 2 BC. Teve, no mesmo perodo, sua
residncia pichada (David = Subverso). Ainda em 1967, havia se recusado a celebrar
uma missa em memria do ex-presidente Humberto Castelo Branco e fora acusado de
tentar afastar monsenhor Manoel Pestana, padre declaradamente anticomunista, da
direo da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Santos.6 Dom David foi um dos
primeiros bispos a aderir a Presso Moral Libertadora e, cumprindo o compromisso
firmado entre os bispos no Pacto do Rio de Janeiro, procurou incentivar o movimento
entre os trabalhadores, estudantes e religiosos da Diocese de Santos, deixando claro,
entretanto, tratar-se de uma adeso voluntria:
5 Informao n. 121 [Confidencial], Ministrio da Aeronutica - QG-4, 03 de setembro de 1968. AESP,
Fundo DEOPS, 50D-26-1120/1121.
6 DOM DAVID PICO, Servio de Informaes DEOPS, 07/07/70. AESP, Fundo DEOPS, 50G-0-348.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 7
Tenho hoje a oportunidade de levar aos meus irmos, sacerdotes, religiosos,
religiosas e leigos da Diocese minha palavra sobre o movimento Presso Moral Libertadora. (...). O compromisso que assumi nesse Pacto foi pessoal. No envolve o clero, os religiosos e os leigos. Colocando,
entretanto, hoje, nas mos de todos os meus colaboradores tal documento,
apelo para sua conscincia e disponibilidade, que desejo livres. Os que
quiserem assumir com o bispo tal movimento, peo que se apresentem o mais
rpido possvel. Aos que aderirem, procurarei continuar a remessa do
material que nos ir sendo encaminhado pelo Centro Coordenador.
Santos, 8 de agosto de 1968
(a) + David, Bispo de Santos7
Entre os meses de agosto e setembro de 1968, ocorre a II Conferencia Geral do
Episcopado Latino-americano, tambm conhecida como Conferncia de Medelln por
ter sido realizada nesta cidade colombiana. Superestimada pela literatura acadmica e
militante como ponto de partida para as mudanas em curso na Igreja Catlica do
continente, a importncia de Medelln decorre muito mais por ter sido um marco de
institucionalizao de posies que j viam, h algum tempo, sendo adotadas
cotidianamente por bispos, padres e leigos. Foi durante a sua realizao que, conforme
Piletti e Praxedes, dom Hlder passou a chamar o movimento por ele criado de Ao
Justia e Paz (AJP), nome inspirado na Pontifcia Comisso Justia e Paz do Vaticano.
Ainda segundo estes autores,
mesmo contando com o apoio de um nmero expressivo de leigos, padres e
bispos nordestinos, o momento poltico do pas e de Pernambuco no
permitiria que o movimento Ao Justia e Paz (...) decolasse, a despeito de
seu contedo bastante moderado, principalmente se o compararmos aos
movimentos guerrilheiros que nasceram na mesma poca em quase todos os
pases da Amrica Latina. (1997, p. 352).
No entanto, dom Hlder tentou. A documentao do DOPS/SP nos informa
sobre o seu empenho em divulgar o movimento e as diretrizes tomadas pelos bispos
latino-americanos em Medelln, logo aps o trmino da reunio do episcopado. Em
visita a So Paulo, no dia 27 de setembro de 1968, durante a palestra que fez no prdio
das Folhas (assim chamado por abrigar os jornais Folha da Manh, Folha da Tarde e
Folha da Noite), diante de um pblico estimado entre 1200 (DOPS) e 3000 pessoas
(Dirio de So Paulo), falou sobre o AJP e defendeu a mudana das estruturas", a
garantia dos direitos fundamentais do homem e a realizao da justia social, mas,
7 Informao n. 121 [Confidencial], Ministrio da Aeronutica - QG-4, 03 de setembro de 1968. AESP,
Fundo DEOPS, 50D-26-1121.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 8
tudo isso, sem prescindir da paz e da ordem social, alertando, contudo, que as
concluses de Medelln sinalizavam para a possibilidade de recorrncia s insurreies
armadas, justificada no caso de tirania prolongada. Exps sobre os temas do documento
final dos bispos, levantando tambm como problemtica as acusaes feitas a alguns
deles de que seriam subversivos, pois que as concluses teriam sido fruto de uma
unanimidade manifestada no apenas pelo episcopado, mas tambm pelo Papa Paulo
VI.8
Foi por este motivo que dom Hlder intitulou a conferncia realizada em So
Paulo de Ou todos, ou nenhum. Queria expressar a idia de uma unidade episcopal em
torno de um projeto de transformaes sociais; de que no tinha mais sentido falar em
clero progressista e conservador, quando todos estavam irmanados em torno das
mesmas posies. Esta viso no era compartilhada, porm, pelos agentes do DOPS,
como vemos no relatrio de um agente infiltrado entre os participantes do evento:
Levamos ao conhecimento dessa chefia que, realizou-se na noite de ontem,
(...) uma palestra proferida por D. Hlder Cmara, em torno da II
Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano. Embora metade dos
presentes fosse constituda, aparentemente, por estudantes, no se notou,
entre esses, nenhum dos elementos vinculados liderana universitria (...).
D. Hlder (...) procedeu leitura de textos de trechos dos 16 captulos das
concluses de Medelln, atravs de cujas anlises procurou demonstrar a
perfeita coincidncia de pontos de vista entre os bispos que participaram
dessa conferncia e a chamada ala progressista do clero brasileiro, sobre os problemas de carter poltico, econmico e social, que afligem a Amrica
Latina; da, portanto, o ttulo de sua palestra, que pretendia rebater a
acusao de comunista e subversivo, que lhe faz uma rea da imprensa.9
Havia uma disputa em torno do significado dos posicionamentos de padres e
bispos em favor da justia social. Dom Hlder amparava-se na apropriao da tradio
bblica e na recorrncia legitimidade institucional (documentos eclesisticos, apoio
dos bispos, mudana do nome para AJP), enquanto setores da imprensa, do
tradicionalismo catlico e os rgos de informaes e segurana buscavam enquadr-los
como comunistas e subversivos, ou quando menos, inocentes teis aos interesses do
comunismo internacional. Dom Hlder, por exemplo, fora comparado ao presidente
Eduardo Frei, considerado, por sua vez, por apoiadores do regime como o Kerensky
chileno, em referncia ao lder social-democrata da Revoluo Russa que teria aberto
8 Dirio de So Paulo, 28/09/1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-185.
9 Conferncia proferida pelo Bispo D. Hlder Cmara, no auditrio das Folhas aos 27 de setembro de 1968, Setor O.G, 28/09/1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-178.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 9
espao para uma posterior radicalizao do processo pelos bolcheviques. Os rgos de
informaes passaram ento a rastrear informaes que pudessem incriminar dom
Hlder, e o movimento Sociedade Brasileira em Defesa da Tradio, Famlia e
Propriedade (TFP) iniciou uma ampla campanha de difamao do arcebispo.
Em novembro de 1969, a Diviso de Segurana (DSEG) do Ministrio da
Aeronutica no Rio de Janeiro ps em andamento a Operao Pombo Correio I, tendo
como finalidade interceptar mensagens que estavam sendo enviadas por Dom Hlder
Cmara, de Recife para o Rio, utilizando portadores de confiana. A operao fora
montada pelos agentes da DSEG aps observarem h algum tempo, gerando-lhes
suspeio o notvel volume de correspondncias enviadas pelo arcebispo para o Rio,
atravs de mecanismos postais pouco comuns: ele se valia da viagem area feita por
pessoas conhecidas, que estivessem indo para aquele estado. No dia 15 daquele ms,
remetera uma srie de documentos em um envelope de cor caqui, endereado as suas
secretrias no Rio, por um emissrio identificado pelo agente de segurana como sendo
um padre de nacionalidade italiana ou belga no soube bem precisar. A interceptao
do envelope, realizada pelo agente disfarado, assim descrita:
Aps a constatao de que D. HELDER comparecera ao Aeroporto de Recife
(...) e passara um envelope para um possvel passageiro, um agente desta
Diviso, fardado de Fiscal de Aeroporto, aguardou que os passageiros
entrassem no avio (Caravelle da Cruzeiro do Sul), quando ento dirigiu-se
ao pombo-correio, tendo solicitado a correspondncia entregue por D. HELDER no que foi atendido (o agente simulou um pedido de D. HELDER
para corrigir a correspondncia, e que a mesma seguiria noutro avio). (...).
A referida correspondncia, aps ser copiada em termo-fax, foi reposta em
novos envelopes com os mesmos destinatrios para no ser quebrada a
cadeia de correspondncia, para que outros pombos-correio continuem a emprestar sua valiosa cooperao a esta Diviso. Posteriormente, um nosso elemento de confiana transportou a correspondncia apreendida,
para o Rio, com a finalidade de fazer chegar s mos dos destinatrios,
como se nada tivesse acontecido.10
As informaes constantes no material apreendido, ainda que avaliadas pelos
agentes da DSEG como reticentes e cautelosas, apresentam no entendimento destes
indcios de idias e ligaes subversivas: referncias e defesa do padre Marcelo Pinto
Carvalheira, detido pelo DOPS sob acusao de envolvimento no episdio
dominicanos/ALN; convite de um pastor reformado para prefaciar livro de sua autoria
10 Informao n. 267 [Confidencial], Ministrio da Aeronutica - Diviso de Segurana, 18/11/1969.
AESP, Fundo DEOPS, 50D-26-2336/2339.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 10
onde prope um governo mundial; dilogo com jovens realizado pelo Colgio N.
Sr. do Carmo; meno ao padre Jos Ernani Pinheiro, passageiro do avio da VARIG
seqestrado recentemente para Cuba e que se dirigiu para Santiago tambm, para
realizar estudos em organizao estatal patrocinada pelo Sr. Eduardo Frei. Os agentes
de segurana ainda identificam nas entrelinhas reticncias suspeitas ou que h
qualquer coisa de estranho nas entrelinhas e percebem a utilizao de pseudnimos
(Padre Jos, Frei Francisco ou simplesmente dom) por parte de dom Hlder, embora
tenha passado despercebido que Frei Leo, referido na carta, era como o arcebispo
chamava sua secretria no Rio, Ceclia Monteiro.
Outro sacerdote, membro da Arquidiocese de Olinda e Recife (AOR), que esteve
sob a vigilncia dos rgos de informao e segurana foi o padre de origem belga Jos
Comblin. Os documentos encontrados no acervo DOPS/SP com referncias nominais ao
padre Jos Comblin e ao arcebispo dom Hlder Cmara foram majoritariamente
produzidos pelos rgos de informao entre meados de 1968 e 1972. Isso se explica,
em certa medida, pela incidncia de trs fatores sobrepostos: (1) a dimenso sulista do
DOPS em contraposio imputao nordestina dos clrigos, embora a atuao de
ambos extrapolem estas reas; (2) pelo fato de este ter sido o perodo de consolidao
do sistema nacional de segurana e informao; (3) e em especial, porque somente aps
um episdio especfico, a comunidade de informaes voltou os seus olhares mais
detidamente sobre a Igreja de Recife.
O episdio acima mencionado teve como elemento deflagrador a divulgao, em
junho de 1968, de um documento de carter reservado, escrito pelo padre Joseph
Comblin ento assessor da arquidiocese a pedido de dom Hlder Cmara, com vistas
a subsidi-lo na Conferncia de Medelln. Este opsculo, que ficou conhecido na poca
como documento Comblin, ganhou grande repercusso no pas, gerando reaes por
parte de alguns setores da Igreja e da sociedade. Mobilizaram-se destacadamente contra
o documento, o vereador de Recife Wandenkolk Vanderlei, o socilogo Gilberto Freyre,
os militares e Plnio Correa de Oliveira, atravs da TFP. Houve tambm manifestaes
de apoio, no apenas do clero, mas tambm de polticos sobretudo do MDB
defendendo o padre Jos Comblin e dom Hlder das acusaes de subverso recebidas.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 11
Pouco mais de dois meses do acontecimento, informao difundida no DOPS/SP
revela o monitoramento dos rgos de informao sofrido pelo padre Jos Comblin. O
registro descreve em mincias todos os passos de sua passagem por Belm do Par, a
fim de realizar quatro conferncias com o tema A Igreja ps-conciliar ante a realidade
scio-econmica na Amrica Latina. O encontro contaria com a presena de membros
da Ao Operria, do Movimento da Famlia Paraense, da Ao Popular (AP) e da
Unio Acadmica dos Secundaristas do Par. Diz o documento que:
O padre COMBLIN chegou (...) trajando cala esporte cinza e bluso
amarelo no deixando suspeitas, inclusive elementos da DOPS que se
encontravam no aeroporto no o identificaram. (...) Ao desembarcar postou-
se a um canto no aeroporto deixando todos receberem suas bagagens, e
quando restavam poucas pessoas, recebeu duas maletas que somente dizia o
nome COMBLIN e logo em seguida apanhou o txi n. 5.00.78-Pa rumando a cidade. (...). Tendo sido efetuado pelo DOPS procura do txi que
o conduziu do aeroporto, foi inquirido o motorista do referido txi, Sr.
ROBERTO BAHIA DA SILVA, casado, 28 anos, residente na passagem
Bulgarin n. 85, (...), que conduziu o citado padre, identificando na DOPS o
padre COMBLIN ao ver sua foto. Contou que conduziu o referido padre para
o hotel Par, sito Av. Nazar n. 305, telefone 5196, pagando pela corrida
a importncia de NCR$ 5.00, ficando o mesmo no quarto n. 5. No livro de
registro de hospedes do hotel, o padre em causa anotou seu nome como sendo ANDR DE PELENGLI nascido em Lusiana, Blgica, contando 29
anos de idade, professor procedente de So Lus.11
Para a perfeita compreenso do sentido das atividades executadas pela
comunidade de informaes deve-se levar em conta que, embora assim chamadas, suas
funes extrapolavam a simples coleta e armazenamento de informaes para usos
governamentais. Como salienta Fico, ela era, antes de tudo, um sistema de espionagem
e inculpao, onde seus agentes, tomados inteiramente pela desconfiana sistemtica
(...) desenvolveram algumas tcnicas capazes de gerar culpados em quantidade
compatvel com o forte sentimento anticomunista de que estavam tomados (2001, p.
100-101). Desta forma, nas anlises das documentaes, faz-se adequado considerar que
se est diante de informaes produzidas e no apenas recolhidas. A concepo
subjetiva dos agentes envolvidos pela ideologia do regime militar constituiu-se parte
integrante na construo do documento.
Ainda de acordo com Fico, uma forma corriqueira de incriminar algum era
acrescer s supostas acusaes de subversivo a pecha de imoral (2001, p. 101).
11 Informao n. 115 [Confidencial], Ministrio da Aeronutica - QG-4, 28/08/1968. AESP, Fundo
DEOPS, 50D-26-1143/1144.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 12
Assim, a subverso moral (dos costumes) tambm vigorava como elemento da
estratgia de incriminao, ao lado da subverso poltica e social, pois
(...) saber detalhes sobre a vida sexual de algum era intil, como
informao, para as decises governamentais; mas poderia ser essencial
para as atividades clandestinas de espionagem do sistema, que poderia como efetivamente fez lanar mo de tais dados para desqualificar o inimigo. (...). Tido como tema explosivo, sexo sempre foi utilizado pela espionagem para desqualificar o inimigo. No caso da espionagem militar, no surpreende que o adultrio e o homossexualismo tenham sido
considerados prticas desabonadoras (FICO, 2001, p. 76; 102).
A inculpao de subverso dos costumes atingia os membros de instituies
religiosas de forma peculiarmente eficaz, visto que as expectativas sociais em relao a
uma conduta moral condizente com certos valores tradicionais eram maiores para
aqueles que exerciam funes entendidas como outorgadas por Deus. Foram inmeras
as vezes que autoridades policiais e governamentais lanaram mo de tal estratgia
contra o clero progressista. Entre elas, destacamos o assassinato do padre Antonio
Henrique Pereira Neto. Ordenado por dom Hlder e lotado na Arquidiocese de Olinda e
Recife, padre Henrique desenvolveu um trabalho com a juventude entre 1965 e 1969,
ano de sua morte. Embora no tenha sido devidamente esclarecido, muitos elementos
levam a crer que o crime teria motivaes polticas. As verses dadas pelas autoridades
ligadas ao regime militar, entretanto, tentaram afastar esta hiptese. Em uma destas
verses atribua um significado passional para o crime, insinuando que o padre
Henrique saa como mulheres casadas (CUNHA, 2008, p. 155).
O prprio dom Hlder seria algumas vezes, vtima desta estratgia de inculpao
moral. Sua tentativa de aproximao com a juventude e a abertura que tinha com
relao a elementos da cultura moderna nem sempre foram vistos com bons olhos. No
arquivo DEOPS-SP, um informe originado do CISA-RJ enuncia que o arcebispo de
Olinda e Recife teria sido visto por um informante em outubro de 1970, em um museu
de Bonn, capital da Alemanha, na companhia do militante comunista Apolnio de
Carvalho e do lder estudantil Wladimir Palmeira. Na ocasio, ainda conforme o tal
informante, dom Hlder carregava no pescoo uma cruz pastoral e um emblema
HIPIE.12 O segundo elemento identificado aparece como sinal de condescendncia
12 Informe n. 046 [confidencial], Ministrio da Aeronutica - DSEG4, 02 de fevereiro de 1971. AESP,
Fundo DEOPS, 50D-26-3054.
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com uma cultura de desregramento moral e sexual, como sinal de apoio subverso dos
costumes morais tradicionais.
ATUAO E EXPULSO DE PADRES ESTRANGEIROS
A ditadura militar uniu em sua oposio grupos que traziam diferenas
significativas em seus projetos e mtodos de atuao, formando um movimento com
contradies inerentes, mas que s iriam emergir de forma manifesta, atravs de
dissenses e rupturas em uma conjuntura mais favorvel. As diferenas e divergncias,
no entanto, existiam, e os prprios agentes do regime embora muitas vezes tivessem
uma propenso homogeneizao estavam atentos a algumas destas singularidades.
Em um dos documentos encontrados, os agentes do DOPS/SP, por exemplo, distinguem
as atividades dos padres progressistas da dos grupos esquerdistas:
No podemos concluir que os mtodos usados pelos padres progressistas
sejam os mesmos adotados pelos esquerdistas, mas podemos afirmar, sem
dvida, que os objetivos so comuns: descrdito das autoridades
constitudas. (...). Ideologicamente, o clero progressista aceita como vlida a
teoria marxista, embora no concorde com as solues postas em prtica
pelos pases da cortina de ferro, pois prope uma soluo brasileira para o problema, sem contudo esclarecer como poder fugir aos mtodos
comunistas, que o prprio clero condena, para alcanar o objetivo a que se
prope.13
Estudando as memrias de operrios protagonistas da greve de Osasco de 1968,
Marta Rovai (2009, p. 161-166) apresenta os relatos de trabalhadores mostrando que
entre eles havia a conscincia demarcatria de lugares distintos, de clivagens de
pertencimento: os membros do grupo de militantes catlicos (ACO, JOC, FTN)
procuram demarcar em suas falas as diferenas que distinguiam a sua atuao com a
daqueles que optaram pela luta armada (VPR), e vice-versa. Foi nesta mesma cidade
paulista que encabea a lista dos focos de subverso apontados pelo DOPS/SP que
atuou o padre francs Pierre Joseph Wauthier.
Padre Wauthier chegou ao Brasil em outubro de 1963, sendo ordenado padre,
trs anos depois pelo cardeal Agnelo Rossi. Era membro de uma associao catlica
internacional, a Misso Operria So Pedro e So Paulo, cujo estatuto convocava seus
filiados a possurem uma profisso manual. Estabeleceu-se na Vila Yolanda, em
13 Informes sobre: clero progressista no estado de So Paulo, Servio Secreto DOPS, 3 de setembro
de 1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-188b.
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Osasco, trabalhando como operrio da indstria (retificador na Braseixos Rockwell S/A
com jornada de trabalho em torno de 9 a 10 horas dirias). Logo se associou ao
Sindicato dos Metalrgicos de Osasco e, em 18 de julho de 1968, foi preso durante a
greve e encaminhado ao DOPS/SP. Sendo interrogado pelo delegado de polcia Newton
Fernandes, respondeu que
(...) se soubesse que apenas uma minoria desejasse a greve, no teria
aderido a mesma, no entanto face a anuncia de provvel maioria (...) no
teve dvidas em solidarizar-se com os colegas; (...) que admite ter
participado da greve, e por mesmo, a mesma ter sido declarado ilegal,
admite, igualmente, ter infligido a lei que regula a matria, contudo no
concorda de forma nenhuma seja ele apontado como elemento subversivo,
pois afirma peremptoriamente, no ter praticado nenhum ato de subverso,
mesmo porque no marxista, e ademais isso, cristo, exercendo o
sacerdcio para o qual foi ordenado e plenamente reconhecido seu grupo
religioso pelo Santo Papa; que em havendo essas ltimas consideraes, tem
a aduzir que seu irmo, tambm padre, Jean Wauthier, foi recentemente
(17/12/67) fuzilado pelos guerrilheiros comunistas no Laus, fato esse que por
si s, tendo em vista as imperiosas razes do sangue, o levariam a repudiar
de toda forma adeptos de to desumano regime.14
Ainda assim, em 28 de agosto de 1968, o jornal Dirio de So Paulo noticiava
sua expulso do pas:
O padre francs Pierre Vauthier foi expulso, hoje, do pas, pelo governo,
viajando s 20 horas, de So Paulo para Paris. (...). O decreto de expulso
do padre francs foi assinado na segunda-feira pelo presidente da Repblica
e publicado no Dirio Oficial da Unio, que circulou hoje. O sacerdote acusado da prtica de atos subversivos em Osasco, principalmente durante a
greve dos metalrgicos, naquela cidade paulista quando o religioso armou piquetes e insuflava os trabalhadores greve, considerada ilegal pelas
autoridades.15
A expulso do padre Wauthier no foi um fenmeno isolado. Na verdade, era
parte integrante de uma estratgia poltica do regime militar. O telogo Jos Comblin,
ainda em 1972, em meio represso, dizia: Desde h alguns anos, as autoridades
brasileiras vm expulsando um sacerdote estrangeiro a cada trs ou quatro meses16.
Valdo Magalhes (2005), baseado em dados da revista SEDOC, conta em nmero de
doze, os padres banidos pela ditadura entre os anos de 1968 e 1982, entre eles, o padre
Jos Comblin, expulso em 24 de maro de 1972, sob a mesma acusao de subverso.
14 Auto de qualificao e interrogatrio: padre Pierre Joseph Wauthier, DOPS SP, 23 de julho de
1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-100.
15 Dirio de So Paulo, 28 de agosto de 1968. AESP, Fundo DEOPS, 50G-1-197.
16 Dirio de Bauru, 4 de abril de 1972. AESP, Fundo DEOPS, 50Z-317-1331.
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Comparado ao caso do padre Wauthier, a expulso de Comblin se apresenta com
um agravante: no houve das autoridades militares nem sequer a preocupao em
apresentar um decreto governamental. Jos Comblin havia retornado da Blgica, seu
pas de origem, onde ministrara um curso na Universidade de Louvain, aproveitando as
frias anuais dos ensinos teolgicos no Brasil. Quando regressava ao pas, chegando ao
aeroporto do Recife, policiais o esperavam para comunicar-lhe de sua expulso por
ordem do governo e proibi-lo de desembarcar. Foi ento, transportado para o Rio de
Janeiro, onde policiais o interrogou e revistou sua bagagem, sendo apreendidas suas
correspondncias, documentos, as notas do curso que dera e fitas cassetes com
gravaes musicais17
.
Sobre os motivos que concorreram para a expulso, o Dirio de Bauru apresenta
as verses dadas por ambas s partes envolvidas:
no foi dada nenhuma razo para a expulso de Comblin, a no ser uma
carta que havia remetido ao bispo de Crates, Antonio Fragoso. Fragoso
encontra-se entre os lderes catlicos progressistas de maior prestgio. A
polcia argumentou que a carta demonstrava que Comblin mantinha
amistosas relaes com o bispo e que usava termos marxistas como
quadros e conscientizao. Perguntado qual havia sido a principal razo de sua expulso, Comblin respondeu que no havia, mas supunha que
era parte de um plano para desfazer-se de todos os sacerdotes estrangeiros
de ideologia progressista, considerados conselheiros subversivos dos bispos
brasileiros.18
Em uma circular comunicando ao episcopado a expulso do padre Jos Comblin
do pas, redigida logo aps o acontecimento, dom Hlder Cmara e seu bispo auxiliar
dom Jos Lamartine Soares, criticam a atitude arbitrria do regime, questionam a
existncia de motivos vlidos para tal ato de banimento e recriminam a ingerncia do
Estado nas coisas da Igreja, como demonstra o seguinte trecho do comunicado transcrito
no Boletim Informativo do Centro de Informaes Ecclesia de So Paulo:
Que poderemos dizer, da maneira mais serena e objetiva, em face do
ocorrido? O que antes de tudo nos choca a falta de clareza, de atitudes
definidas, sabendo-se quem as toma e autorizado por quem. Decreto de
interdio de desembarque? Datado de quando? Assinado por quem?
Baseando-se em que crime? No de haver participado de um curso de pastoral
em Crates? At quando nossas Autoridades Militares se sentiro autorizadas
a supervisionar atividades da Igreja, superpondo-se aos Bispos e ao prprio
Santo Padre? Quem no percebe que o episdio-Comblin um captulo do
17 Comunismo Internacional: Sumrio de Informaes n. 4 [reservado], SNI, abril de 1972. AESP,
Fundo DEOPS, 20C-43-3705.
18 Dirio de Bauru, 4 de abril de 1972. AESP, Fundo DEOPS, 50Z-317-1331.
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que vem acontecendo em todo Pas com a Igreja, na medida em que esta ela
recusa continuar servindo de suporte a estruturas de opresso e compromete-
se, de modo pacfico, mas vlido, com o povo e sua libertao? (...). Muito a
propsito Cristo anunciou: o servo no maior do que seu Senhor. Se eles me perseguiram a mim, tambm vos ho de perseguir a vs... Eles vos
lanaro fora das Sinagogas e chegar o tempo em que todo o que vos matar
julgar que nisso faz servio a Deus. Eu vos digo isto, para que no vos
escandalizeis. (Joo, XV, 20 e segs.). Ainda bem que sabemos que depois das Trevas, da Paixo e da Morte, irrompe, invencvel, a alegria da Pscoa.19
CONSIDERAES FINAIS
Os documentos disponveis no arquivo do DEOPS/SP nos indicam
possibilidades de interpretaes para a relao estabelecida entre cristianismo e lutas
sociais na dcada de 60-70, relao que se verifica tanto atravs da produo de uma
reflexo teolgica, como pela presena dos agentes religiosos nos movimentos sociais
do perodo.
Muitos agentes religiosos buscaram afastar a desconfiana de qualquer
envolvimento ideolgico com o marxismo, pois reivindicar tal corrente contribuiria para
o enfraquecimento poltico do seu grupo scio-religioso, deslegitimando suas aes
dentro e fora da Igreja. Mas isso, sem dvida, no esgota a anlise. Este distanciamento
revela tambm que, embora houvesse uma apropriao do marxismo por parte de
setores do clero e de telogos catlicos, as especificidades prprias da reflexo e da
ao crist configuram um setor peculiar, com caractersticas particulares, em dilogo
com outras correntes de esquerda, mas que tinha na Bblia, e no em teorias sociais sua
fonte inspirativa primordial. Assim, o recurso s citaes de versculos bblicos no
corpo dos documentos produzidos pelo clero progressista e a constante referencia s
autoridades e documentos eclesisticos, embora expressem uma tentativa de legitimao
scio-institucional, tambm revelam que o discurso produzido parte de um lugar de f.
Por parte dos agentes do regime ditatorial, tem-se a tentativa de atribuir aos
religiosos um carter subversivo, atravs da comparao do discurso teolgico-social e
da atuao destes, com o marxismo e com prticas comunistas. Assim, tudo isso
revelaria os desvios destes agentes pastorais da doutrina crist e de sua funo
19 Centro de Informaes Ecclesia Boletim Informativo n. 108, 7 de abril de 1972. AESP, Fundo
DEOPS, 50G-2-319.
Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 17
estritamente religiosa na sociedade: a opo crist no implicaria uma atitude tico-
poltica.
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