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O espaço do trabalho doméstico e o papel da mulher através da revista Casa & Jardim
(1960)
RAFAELA CRISTINA MARTINS
Introdução
Este trabalho propõe analisar algumas propagandas de eletrodomésticos veiculadas na
revista Casa & Jardim durante a década de 1960. A proposta não se restringe apenas em
analisar as imagens, mas também procura vincular tal análise com a proposta da pesquisa de
doutorado em andamento, que é a de indagar como os eletrodomésticos, apesar de gerarem
maior conforto para o cotidiano doméstico, também reafirmam uma antiga estrutura
doméstica, tanto espacial como social, onde homem e mulher tem lugares, afazeres e
representações distintos e hierarquizados. A mulher, em especial, figura que tem como
responsabilidade involuntária o cuidado da casa e da família.
Sobre a casa e divisão de seus espaços.
A habitação pode ser explorada para estudo em diversos âmbitos e assuntos que
podem tangenciar uns aos outros. A arquitetura, a divisão do espaço por função, o trabalho
doméstico, o âmbito privado e a família. Walter Benjamin, por exemplo, associa a casa
burguesa a um estojo.
O interior não é apenas o universo do homem privado, mas também seu estojo.
Habitar significa deixar rastros. No interior, eles são acentuados. Colchas e
cobertores, fronhas e estojos em que os objetos de uso cotidiano imprimam a sua
marca são imaginados em grandes quantidade. Também os rastros do morador ficam
expressos no interior. Daí nasce a história do detetive, que persegue esses rastros. A
“Filosofia do mobiliário”, bem como as novelas de detetive apontam Poe como
primeiro fisionomista de tal interieur. Os criminosos das primeiras novelas de
detetive não são cavaleiros nem apaches, mas pessoas privadas pertencentes à
burguesia. (BENJAMIN, 1985, 38)
O estojo é um objeto que serve tanto para guardar e proteger algo como para esconder
ou emoldurar através de caixas ornamentadas e foscas que não permitam que se enxergue o
componente. Assim, para Benjamin, a habitação burguesa serviria para proteger e distrair seus
moradores do seu entorno. O burguês estaria protegido do que se veria exposto nas cidades
como as péssimas condições de vida, tanto pública quanto privada1, dos operários. Dentro da
Doutoranda pela de Pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade
Estadual de Campinas. Bolsista: CAPES. 1 A separação entre o público e o privado funciona de maneira mais coerente nos modos de vida burguesa, porém
se considerarmos a vida pública como a vida no trabalho, os operários trabalhavam em péssimas condições nas
2
residência burguesa só se promoveria o conforto e a beleza, seria assim um invólucro contra o
que o capitalismo, que sustenta o mesmo burguês, pode gerar de hostilidades, como a pobreza
e o medo dessa classe operária que vivia de forma tão distinta das classes mais abastadas.
Esse espaço privado seria um privilégio dos burgueses que não dependiam de aluguel, nem
corriam o risco de serem despejados, portanto, a casa burguesa funcionaria como um recanto,
um lugar de descanso para o burguês.
Walter Benjamin considera que a ideia de estojo relacionada às habitações burguesas
perde força no século XX através do art nouveau. Em termos estéticos o novo estilo deu um
ar mais arejado e harmonioso às habitações, perdendo-se assim o acúmulo de objetos e
coleções que a casa burguesa do século XIX ostentava. Mas, para a arquiteta Silke Kapp, a
analogia entre moradia e estojo ainda pode nos elucidar questões. No século XX arquitetos
como Henry van de Velde e Otto Wagner projetaram habitações que dividiam os espaços
entre as categorias de coisas que ali deveriam estar, ou seja, um lugar para cada coisa.
Segundo Kapp, o arquiteto Adolf Loos criticou esse tipo de estilo várias vezes, uma dessas
críticas foi feita através de uma crônica intitulada "De um pobre homem rico". Nessa história
o personagem principal sentia-se morto porque não poderia adquirir nenhum novo gosto, ou
ganhar presentes, ou comprar coisas novas, pois sua casa já estava com todos os espaços
preenchidos. O art nouveau teria acentuado a ideia da habitação como estojo porque tal estilo
exacerbava a singularidade do habitante, e evidenciava como a moradia deveria ser pensada
para guardar determinadas pessoas e cada espaço serviria a uma função (KAPP, 2007: 3).
Em 1929 o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) foi dedicado à
moradia mínima, uma habitação com conforto básico necessário e a disposição para qualquer
classe social. Segundo a autora as proposições desse congresso ainda utilizam o
enquadramento da população trabalhadora em um estilo de vida normatizador e abstrato, ao
invés de flexibilizar o espaço doméstico de acordo com a necessidade atual e possíveis
mudanças no futuro do real indivíduo e família (KAPP, 2007: 4). Essa habitação pensada com
vários compartimentos para cada função carregaria um status quo, o congresso propôs passar
esse status para as classes mais pobres. Porém, na análise de Kapp, esse tipo de espaço, que
fábricas e sem direitos garantidos; e se levarmos em conta a habitação como invólucro da vida privada os
operários também possuíam suas moradias em condições insalubres.
3
prevê e define o roteiro de atividades do morador, e não contribuiu para um desenvolvimento
flexível ou uma ação inusitada do habitante.
No limite, a habitação mínima serviria para o repouso e a manutenção da saúde do
trabalhador e sua família. Espaços com reguladores de hábitos saudáveis, não pela imposição,
e sim através do conforto como, por exemplo, a água encanada e a eletricidade, foram temas
discutidos por outros tipos de técnicos e estudiosos no século XX. Um exemplo desse modelo
de normatização pelo conforto seria o taylorismo, que contribuiria para a diminuição do
esforço de trabalho, normatizando os movimentos do trabalhador de maneira que tornasse a
produção mais eficiente. Esse modelo extrapolou a fábrica e foi usado em espaços
domésticos, especialmente na cozinha. O maior conforto em uma fábrica ou em uma cozinha
serviria para aprimorar a produção fazendo com que o operário produzisse mais em menos
tempo (KAPP, 2007: 6).
Kapp entende que esse apego ao modelo estojo de habitação ocorre porque acredita-se
que ele torna a construção mais barata, porém a autora aponta como essa forma de planejar a
moradia reflete os autoritarismos propagados na nossa sociedade. Para exemplificar tais
autoritarismos cito as desiguais relações de gênero e diferenças sociais.
O aparelhamento dos espaços da habitação com eletrodomésticos e eletrônicos,
especialmente a cozinha com geladeiras e fogões, ajudam enfatizar as funcionalidades dos
ambientes. As instalações elétricas e de circulação de água, encanamento e esgoto,
contribuíram para a definição estática de certos espaços na habitação, como a cozinha, a
lavanderia e o banheiro. Para além dessa questão propõe-se debater se haveria também uma
divisão de gênero entre os espaços e afazeres domésticos, e como a apresentação dos
eletrodomésticos, através das propagandas, podem refletir e enfatizar a generificação desses
espaços, especialmente a cozinha.
A propaganda e a Revista Casa & Jardim
A revista Casa & Jardim foi escolhida por ser uma publicação que focava a decoração
e construção voltada para o público em geral, e não apenas profissionais e especialistas.
Segundo a doutora e pesquisadora, Marinês Ribeiro dos Santos (SANTOS, 2010: 63), essa
revista tinha o objetivo de expor os novos utensílios domésticos do mercado e vendia a ideia
de modernização do lar, era característico da revista a exposição do tecnologicamente
4
moderno para moradias, daquilo que deveria ser objeto de desejo e consumo da classe média,
mas tal publicação não questionava ou propunha a modificação da estrutura da família
tradicional.
O material escolhido para análise foram algumas propagandas de eletrodomésticos,
tais anúncios utilizavam e ainda utilizam a imagem da mulher de maneira exaustiva.
Importante citar a constante presença da figura feminina também nos comerciais de
cosméticos e roupas, algumas pesquisam apontam que essa preferência pelo público feminino
se dê porque é pressuposto que a mulher possui um menor poder aquisitivo e esses produtos
são mais baratos em comparação a outros. Um artigo acadêmico americano, sobre a análise
comparativa dos papéis da mulher na propaganda de 1976, apontava essa tendência.
Apresentava-se a imagem feminina em propagandas de produtos mais baratos, porque era
suposto que as decisões de compra de itens mais caros, como carros, não partiam das
mulheres. O artigo ainda destaca que mesmo com a participação das mulheres americanas no
mercado de trabalho, elas eram retratadas em ambientes domésticos ou em cargos inferiores,
como secretárias, por exemplo.
The researches analyzed the content of 729 advertisements in eight general interest
magazines published the week of April 8, 1970: Life, Look, Newsweek, The New
Yorker, Time, Saturday, Review, U.S. News and World Report, and Readers’ Digest.
They found that few print advertisements presented showed women in working
roles. They concluded that the advertisements presented the following clichés about
women’s roles: (1) a woman’s place is in home, (2) women do not make important
decisions or do important things. (3) women are dependente and need men’s
protection, and (4) men regard woman primarily as sexual objects: they are not
interested in women as people2 (BELKAOUI, BELKAOUI, 1976: 168).
Para a pesquisadora Vania Carneiro Carvalho a industrialização foi grande responsável
pela profusão do consumo de novos itens como objetos para decorar a casa, variedade de
roupa de cama, mesa e pessoal, equipamentos para lavar roupa e cuidar da cozinha.
Por outro lado, era ilusão pensar que a industrialização e a tecnologia
proporcionariam a diminuição dos serviços da casa. A abundância de objetos de
decoração, tapetes, cortinas, louças, pratarias, [...]... tudo exigia um trabalho de
limpeza pesado, regular e, pode-se dizer, especializado. O barateamento dos tecidos
2 Tradução livre: As pesquisas analisaram o conteúdo de 729 anúncios de oito revistas de interesse geral
publicadas na semana de 08 de abril de 1970: Life, Look, Newsweek, The New Yorker, Time, Saturday, Review,
U.S. News and World Report, e Readers’ Digest. Foi descoberto que poucos anúncios impressos apresentados
mostraram as mulheres em local de trabalho. Eles concluíram que os anúncios apresentados representam os
seguintes clichês sobre os papéis das mulheres: (1) o lugar da mulher é em casa, (2) as mulheres não tomam
decisões importantes ou fazem coisas importantes. (3) as mulheres são dependentes e precisam da proteção dos
homens, e (4) os homens consideram mulher primeiramente como objetos sexuais: eles não estão interessados
nas mulheres como pessoas.
5
gerava um aumento de roupa pessoal, de cama e mesa, exigindo mais tempo na sua
confecção e manutenção. A disponibilidade de farinhas e açúcar processados gerou
uma demanda doméstica por mais alimentos. O número de receitas e a sofisticação
dos pratos são notórios nesse período. Os investimentos em equipamentos de lavar
roupa e cozinha vão dispensar as lavanderias comerciais e vão aumentar a
responsabilidade feminina no preparo da roupa e a comida. (CARVALHO, 2008:
246-247).
Uma expressão chave da citação é “responsabilidade feminina”, porque é de
responsabilidade da mulher, dentro da estrutura familiar tradicional, os cuidados da casa, da
alimentação dos moradores, e das roupas de cama, mesa e pessoal, mesmo que essas tarefas
sejam delegadas a outras mulheres, as empregadas domésticas, é de responsabilidade da dona
da casa monitorar o trabalho de suas funcionárias. Este pode também ser um dos motivos que
fazem com que propagandas de roupas e cosméticos sejam direcionadas a figura feminina.
No caso das propagandas de eletrodomésticos parece haver uma mensagem do papel
da mulher no consumo e utilização de produtos vinculados ao trabalho doméstico, este por sua
vez pouco ou nada valorizado. Geladeiras, fogões, máquinas de lavar, frigideiras elétricas são
utensílios que nos remetem a produção de alimentos e a manutenção da limpeza de uma casa,
aparelhos que de maneira geral foram apresentados com uma figura feminina ao lado.
A cultura visual e as propagandas
Os debates sobre cultura visual são vastos, no primeiro capítulo do livro de Margaret
Dikovitskaya, a autora faz uma genealogia dos estudos visuais e coloca a construção de
métodos de diversos pesquisadores, assim como comenta sobre os choques entre os campos
de saber, como história da arte e cultura visual. Dentre as visões apresentadas há a de Michael
Ann Holly que reflete como a cultura visual pode ser um campo de estudos no qual se fundem
trabalhos de arte e teoria contemporânea trazidos de outras áreas de saber. Segundo Holly, tais
estudos visuais destacam qualquer imagem da cultura de uma sociedade, através disso esses
trabalhos deixam de lado classificações como arte erudita e arte popular. Essas imagens
podem ser analisadas como representações culturais.
Michael Ann Holly, former chair of the Art and Art History Department at the
University of Rochester (home to the first U.S. graduate program in visual studies)
and now diretor of research at the Clark Art Institute, thinks of visual culture as a
hybrid term that describes a situation when one fuses works of art with
contemporary theory imported from other disciplines and fields, particularly
semiotics and feminism [...]. For Holly, visual studies calls into question the role of
all images in culture, from oil painting to twenteth-century TV. These images can be
compared on the basis of their working as visual representations in culture rather
6
than through the use of such categories as “masterpieces” and “created by geniuses”
versus “low art” (DIKOVITSKAYA, 2005: 50). 3
Assim, como debatido acima, no caso do presente trabalho a propaganda e seus
repertórios de imagens não serão tratados como história da propaganda, e sim um estudo que
envolva análise de imagens, história contemporânea e gênero. Primeiramente o cuidado de
tratar tais imagens, porque a propaganda é manipulada e montada para que receba reações
positivas. Afinal, o objetivo central da propaganda é tornar o produto atraente para o
consumo. O propósito é tratar da imagem e sua visualidade percebendo como ela é uma
dimensão importante dos processos sociais e culturais.
Na propaganda os temas abordados são feitos de maneira específica e, muitas vezes,
de forma repetitiva. Como é o caso da apresentação dos aparelhos eletrodomésticos, exibidos
em detalhes, denotando um esforço em demonstrar uma aparência moderna e bela. Tais
aparelhos geralmente aparecem acompanhados de imagens de mulheres dentro dos padrões de
beleza e moda de sua época.
Também seria importante destacar como essas imagens fazem parte de uma repetição
de figuras, ou de um repertório4, isso porque foram veiculadas em meio a revistas e jornais
que atingiriam grande público, de modo a chamar maior atenção do público. Para isso, a
imagem da propaganda deveria conter determinados símbolos ou signos que se refiram ao
tema proposto e que seja acessível para vários tipos de pessoas. No caso das propagandas de
eletrodomésticos não raro as formas dos aparelhos são um dos principais atrativos por serem
relacionadas com a decoração e modernização do lar. Modernização esta relacionada com a
diminuição do tempo do trabalho doméstico, o que pode ser traduzido na propaganda como a
eficiência do produto. E é eficiência e modernidade um dos principais apelos da primeira
propaganda apresentada.
3 Tradução livre: Michael Ann Holly, foi do Departamento de História da Arte e Arte da Universidade de
Rochester (onde nasceu o primeiro programa de pós-graduação dos EUA em estudos visuais) e agora Diretora de
pesquisa do Clark Art Institute, pensa a cultura visual como um termo híbrido que descreve uma situação quando
se combinam obras de arte com a teoria contemporânea importadas de outras disciplinas e campos,
particularmente da semiótica e do feminismo [...]. Para Holly, estudos visuais põe em causa o papel de todas as
imagens da cultura, da pintura a televisão do século XX. Estas imagens podem ser comparadas através das
representações visuais da cultura, em vez de através do uso de categorias como "obras-primas" e "criadas por
gênios" versus "arte popular". 4 Repertório ou “iconoesfera” como citado por Meneses: “a) o visual, que engloba a “iconosfera” e os sistemas
de comunicação visual, os ambientes visuais, a produção / circulação / consumo / ação dos recursos e produtos
visuais, as instituições visuais, etc” (MENESES, 2003: 30).
7
A propaganda do fogão Wallig escolhida para análise faz parte da edição de maio de
1963, toma toda a página e inicialmente
apresenta uma imagem colorida, nela
encontra-se em primeiro plano o produto posicionado de maneira a mostrar maior parte da sua
superfície, revelando a parte da frente e detalhes da lateral do fogão. Posicionada atrás do
eletrodoméstico está uma mulher, bem vestida, branca, com os braços posicionados de
maneira a apresentar e oferecer o produto para quem comtempla a propaganda. O segundo
plano da imagem mostra outros modelos
de fogões da mesma marca, a foto traz
um fundo vermelho, sem uma dimensão
espacial específica, porque os objetos
estão recortados no fundo
monocromático oferecendo autonomia à
cena, por fim na parte superior da
propaganda está a palavra “exclusivo”.
Nesta imagem a mulher não está
vinculada ao objeto como aquela que
utiliza o produto, a sua postura e o
modo como é apresentada, vestida
luxuosamente, não oferece indícios de
que essa mulher seja a responsável
pelos trabalhos da cozinha. Ao
contrário, sua imagem oferece indícios de ser uma mulher de classe abastada, não está ali para
realizar uma demonstração do fogão, e sim para apresentar e vender o produto. A sua figura
vem antes acompanhada da palavra “exclusivo”, que atribui um sentido de distinção na
propaganda. Com todos esses elementos: a imagem recortada em um fundo vermelho, o termo
“exclusivo” intitulando a propaganda, uma mulher luxuosa junto do produto, essa imagem
quer passar uma mensagem de que o produto é exclusivo e quem o adquirir se beneficiará
dessa característica. Mas, o fogão seria exclusivo para alguém em específico? A exclusividade
se vincularia a imagem de quem obtém o produto? Essas são questões que podemos fazer
Figura 1: Casa & Jardim, nº 100, maio de 1963, p. 23.
8
sobre a propaganda, afinal parece existir um apelo ao status do produto que pode ser
confundido com o status de quem consume o eletrodoméstico.
A propaganda ainda apresenta um pequeno texto logo abaixo na foto, as diferenças dos
tamanhos e cores das letras servem para destacar as principais informações. Em fonte maior
está escrito “WALLIG VISORETTE AUTOMATIZADO dotado de CONTROLE DE
TEMPO único no Brasil” (CASA & JARDIM, 1963: 23). A palavra “automatizado” é parte
do nome do produto, está escrita em vermelho e ajuda a descrever o principal diferencial do
fogão, que é o “controle de tempo”, esta característica também está escrita em caixa alta. Por
fim o fabricante se enaltece por ser a única marca que pode oferecer tal produto no país. Após
essa apresentação inicial existe um texto explicando em maiores detalhes o produto.
Este tem tudo que você pode exigir no gênero porque reúne as características
técnicas dos fogões de grande porte à funcionalidade dos modelos menores. Dispõe
de notáveis aperfeiçoamentos, tais como CONTROLE DE TEMPO exclusivo de
WALLIG – que avisa quando completa o tempo de cozimento – e CONTROLE
AUTOMÁTICO DE TEMPERATURA DO FORNO. (CASA & JARDIM, 1963:
23)
9
Esse texto expõe que além do
“controle de tempo”, o fogão também possui
“controle de temperatura do forno”,
características que apenas fogões de grande
porte teriam, e somente o produto da Wallig
ofereceria tais aperfeiçoamentos em fogões
menores. Esta segunda parte da propaganda
explica porque o modelo de eletrodoméstico
em questão é exclusivo. O texto é divido em
dois pela imagem de um timer, que representa
a inovação e principal atrativo do produto e
era utilizado para controlar o tempo de
cozimento dos alimentos. A marca Wallig se
apresenta como confiável por seu período de
existência no mercado: “É mais um lançamento com a tradicional qualidade da
METALURGICA WALLIG, que há mais de meio século vem contribuindo para tornar mais
fácil e agradável sua tarefa de cozinhar.”
Além disso, é possível observar que as marcas na década de 1960 já procuravam
inserir seus slogans em suas propagandas, a Wallig se apresentava por ser a fábrica que
produzia uma variada linha fogões: “METALURGICA WALLIG S.A. A maior e mais
completa linha de fogões domésticos da América Latina”.
A segunda propaganda apresentada, de setembro de 1963, oferece uma estrutura da
imagem parecida com a primeira, ambas ocupam toda uma página da revista, se dividem entre
imagem na parte superior e texto na inferior, o produto e a mulher estão recortados em um
fundo claro, a lavadora é mostrada em primeiro plano e como na primeira propaganda a figura
feminina também está atrás do produto, deixando o eletrodoméstico mais exposto. Porém, a
figura 2 é apresentada em preto e branco e possui a representação de apenas um produto,
diferente da figura 1. Apesar das estruturas parecidas, essa propaganda tem uma abordagem
bastante diferente da primeira, é possível notar que apresenta, como um todo, uma imagem
mais limpa, menos carregada de objetos e informações.
Figura 2 - Casa & Jardim, nº 104, setembro de 1963,
p. 33.
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No centro está a imagem da lavadora e atrás do objeto uma mulher branca, bem
vestida, porém sua vestimenta tem como marca do trabalho doméstico o avental, e segura um
cesto com o que parecem ser roupas claras. Mesmo que esta mulher esteja com o cabelo bem
arrumado e bem vestida, ela claramente está pronta para usar a lavadora, o avental e o cesto
de roupas indicam que ela está fazendo o trabalho doméstico. A dona de casa apresentada é
diferente da mulher luxuosa da primeira propaganda, mais do que apresentar o produto a
figura dessa mulher quer representar a própria usuária do eletrodoméstico, ainda sim é uma
mulher branca usando trajes bem
compostos, o que denota ser de uma classe
social remediada.
Acima da imagem da lavadora estão
as imagens recortadas de quatro pesos, e no
final da página um texto que se inicia com a
pergunta “4 quilos?”, já indicando que a
lavadora suporta até quatro quilos de roupa
e a pergunta deixa o espaço para que a
resposta se estenda e mostre mais
características do produto.
4 quilos? Até aí nada de novo. Todas lavam 4 quilos
de roupas, mas, somente as lavadoras da linha
Brastemp reúnem essas vantagens: lavam por
agitação; secam por centrifugação; filtro exclusivo
que limpa a água de lavagem; enxague por agitação e
jatos de água limpa; inteiramente porcelanizadas,
livres de cheiros; tampa superior; deixam a roupa de
molho pelo tempo desejado; não amassam e não
quebram as fibras dos tecidos; 3 modelos: Super-
Automática de Luxo, Super-Automática e
Princesinha. (CASA & JARDIM, 1963: 33).
Os atributos apresentados são vários,
desde a constituição da lavadora que são
“porcelanizadas” até os meios de limpeza da
roupa como “molho”, “agitação” e “centrifugação”, ou seja, o texto oferece uma descrição
completa do produto e informa que existem três modelos diferentes. Mesmo que os três
modelos não apareçam na imagem, através de seus nomes podemos inferir que talvez existe
uma diferença de preço entre esses modelos, ou assim as denominações querem fazer parecer.
Figura 3 - Casa & Jardim, nº 118, novembro de 1964, p.
67.
11
O primeiro modelo chama-se “Super-Automática de Luxo”, o nome do segundo modelo perde
a palavra que indica grandeza, “luxo”, e denomina-se “Super-Automática”, o terceiro modelo
é despojado de todas as palavras que remetem a modernidade, como “automática”, e altivez,
como “super” e “luxo”, chama-se “Princesinha”, o que demonstra um apelo totalmente
diferente dos dois outros modelos. Sobre a diferença dos modelos não é possível supor mais
características, porque não há imagens nem a descrições que apresentem as diferenças de cada
um. Como na primeira propaganda, a Brastemp deixa seu slogan: “Brastemp um orgulho para
sempre” (CASA & JARDIM, 1963: 33), que parece recorrer para a longevidade do produto
com a expressão “para sempre”.
A terceira propaganda apresentada também possui uma estrutura semelhante das
outras, divididas entre imagem e texto, porém traz elementos novos e explícitos para o debate.
O produto não está mais em primeiro plano e centralizado, na frente da geleira está uma
mulher branca, bebendo refrigerante e usando um maiô, ou seja, em algum momento anterior
ela estava na piscina, essa imagem representa alguém em seu tempo de lazer e descanso. A
geladeira está aberta e repleta de alimentos frutas, doces, garrafas de bebida, o
eletrodoméstico divide o segundo plano com uma empregada doméstica, representada por
uma mulher negra, trajando uniforme e em postura de trabalho, pois parece estar separando
produtos, tirados de um grande cesto a sua frente, para colocar na geladeira. A imagem não
poderia ser mais clara, a geladeira está sendo vendida para mulheres brancas de classe média
e alta que possuem em casa uma empregada.
Embora a usuária mais frequente da geladeira seja a empregada doméstica, afinal ela
quem irá distribuir os alimentos dentro do eletrodoméstico, ela não é o alvo da propaganda.
Aqui podemos inferir as mesmas suposições feitas no início do texto, a propaganda em
questão não se dirige a empregadas domésticas talvez pelo baixo poder aquisitivo dessas
mulheres. Outra importante questão ligada a imagem é a representação da empregada como
uma mulher negra. É preciso afirmar que mulheres negras não possuem representação em
imagens de propagandas, especialmente no período estudado, o apagamento dessas mulheres
nessas imagens é ainda mais gritante quando as raras vezes em que uma mulher negra é
representada é feito através de uma trabalhadora uniformizada e de postura curvada por estar
realizando trabalho doméstico remunerado, esse reconhecido por ser pouco reconhecido.
12
Além disso, os anúncios quando mencionavam a eficácia dos aparelhos não
destinavam essa eficiência às trabalhadoras domésticas, ao contrário, eram atrelados às
patroas e aqueles que teriam um poder aquisitivo mais elevado para conseguir comprar as
últimas novidades do mercado, ou seja, a classe média e alta branca. Os eletrodomésticos e
eletrônicos se tornaram sim objetos de desejo, porém em muitos casos essa ânsia pelo objeto
vinha acompanhada de poder se igualar as classes mais altas, isso é o que mostra o artigo de
Jorgetânia da Silva Ferreira. Em uma das entrevistas feita para sua pesquisa, Ferreira mostra
como a trabalhadora doméstica, Márcia, se sentiu satisfeita ao poder comprar uma batedeira
igual a de sua patroa.
Márcia desejou ter uma batedeira igualzinha à da patroa. Seu depoimento nos remete
a sua aspiração de igualdade na relação com a patroa, que ela pensa se concretizar na
aquisição de equipamentos, no caso a batedeira Arno. Destacamos também a
importância que determinadas marcas de eletrodomésticos tiveram no processo
tecnificação das casas, o que significava economia de trabalho e surgimento de
outras tarefas, mas também prestígio para as pessoas que conseguiam adquirir
determinados produtos (FERREIRA, 2009: 23).
Na figura 3 a imagem da empregada traz uma fala, através de um recurso utilizado por
gibis, o balão de conversação: “... pois é, patroazinha, gostei muito do Duplex. Tudo fica mais
fácil agora... não se incomode, pode tomar seu guaraná. Depois eu guardo isto tudo no
congelador. Puxa! Vamos ter carne para muito tempo” (CASA & JARDIM 1964: 67).
Interessante notar que na imagem a mulher branca está em silêncio, apenas a mulher negra
tem fala, porém o seu discurso serve para reafirmar a sua representação em um lugar
subalterno quando ela coloca “não se incomode, pode tomar seu guaraná. Depois eu guardo
tudo no congelador.”. Ao mesmo tempo ela é quem irá apresentar a geladeira e elogiar o
produto da seguinte forma: “... pois é, patroazinha, gostei muito do Duplex. [...]Puxa! Vamos
ter carne para muito tempo”. A última parte do discurso que diz respeito a quantidade de
carne que cabe no congelador serve para mostrar as grandes dimensões do produto, porém não
é possível desvincular a construção do discurso com a desigualdade da situação, quando ela
diz “Vamos ter carne para muito tempo” embora ela se coloque na situação, ao usar a primeira
pessoa do plural, sabemos que é apenas a patroa e sua família que possuem muita carne.
Com relação texto apresentado na propaganda da figura 3 ele utiliza de letras maiores
nas palavras que compõe o nome do produto, nome esse que já anuncia as principais
características da geladeira.
13
CONFORTO EM DOBRO refrigerador-congelador DUPLEX: refrigera (porta de
baixo) para uso habitual e congela (porta de cima) para uso durante meses;
satisfação dobrada; 2 portas magnéticas: uma para o congelador e outra para o
refrigerador, inteiramente aproveitáveis; 348 litros de capacidade total; congelador
com 62 litros e refrigerador de 286 litros; degelo automático do refrigerador, por
processo exclusivo. (CASA & JARDIM, 1964:67).
A expressão “conforto em dobro” e parte do nome do produto “duplex” estão escrito
em letras maiores e em caixa alta. Existe um apelo para aquele que contempla a propaganda
entender as vantagens de ter uma geladeira com duas portas. Esse esforço continua ao longo
do texto com a expressão “satisfação dobrada”.
De um modo geral as três propagandas apresentaram estruturas semelhantes, porém
cada uma ofereceu uma mensagem e um apelo diferente para leitor da revista. A primeira
propaganda do fogão Wallig recorreu ao argumento de exclusividade e status do produto, a
segunda propaganda da lavadora Brastemp apelou para a identificação da dona casa com
aquela que está ao lado da lavadora na imagem e a terceira propaganda da geladeira Brastemp
usou a empregada doméstica como porta voz da satisfação e qualidade do produto, porém
uma porta voz que fala para os seus patrões e não para outras empregadas domésticas como
ela. Todas as propagandas tem em comum a utilização da mulher, se na primeira a figura
feminina vende o fogão, a segunda utiliza a lavadora e a terceira utiliza a geladeira no
trabalho doméstico remunerado, ou seja, temos aqui a evidente vinculação da imagem
feminina a esses eletrodomésticos e, consequentemente, ao serviço doméstico obrigatório ou
remunerado.
A difusão de eletrodomésticos parece ter dado novas características ao que deveria ser
uma casa de status social elevado, mas, de acordo com seus meios de transmissão, parece não
ter desafiado a rigidez dos papéis de homens e mulheres nos espaços domésticos. Afinal
muitas vezes os eletrodomésticos eram apresentados exclusivamente para mulheres com o
benefício de tornar mais eficiente os afazeres domésticos economizando tempo, não
desafiando assim o os lugares da estrutura familiar clássica. A mulher ainda era responsável
pelos cuidados da casa e família e o homem estaria ou não vinculado a outros ambientes e
afazeres fora do espaço privado.
14
Fontes:
- Casa & Jardim, n. 100, maio de 1963.
- Casa & Jardim, n. 104, setembro de 1963.
- Casa & Jardim, n. 118, novembro de 1964.
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