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INSUBORDINAÇÃO NO ESPAÇO MASCULINO: agora é a vez das mulheres na altinha
Lidiane Ramos Lima1
Adyla Barbosa Lucas2
RESUMO: Em meio as mudanças ocorridas entre os espaços públicos e privados que exigem atualmente novas formas de participação feminina, pode-se dizer, que estas mudanças ainda acontecem de forma lenta, e dentre os espaços a serem conquistados, o meio esportivo, ainda fomenta velhos e novos desafios. A partir de um recorte da investigação de natureza qualitativa, sobre o envolvimento de mulheres numa modalidade esportiva praticada na orla da cidade de Paracuru-Ce, observa-se que estas foram desafiadas a irem além dos valores masculinizadores, encontrados nos dispositivos existentes nas relações construídas nas areias da praia, estas mulheres, insubordinaram-se as exigências e modelos estabelecidos.
Palavras-chave: Mulher. Insubordinação. Altinha.
ABSTRACT: Amid the changes that have taken place between the public and private spaces that currently require new forms of female participation, it can be said that these changes still happen slowly, and among the spaces to be conquered, the sporting environment still fosters old and new challenges. Based on a qualitative research on the involvement of women in a sporting modality practiced on the edge of the city of Paracuru-Ce, it is observed that these were challenged to go beyond the masculinizing values found in the existing devices in built relationships in the sands of the beach, these women, insubordinate the established requirements and models.
Keywords: Woman. Insubordination. Altinha.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo é mediado pelas reflexões feitas a partir de uma pesquisa que foi
apresentada para obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, vinculado
1 Assistente Social da Prefeitura de Paracuru. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, Especialista em Serviço Social, Direitos Sociais e Competências [email protected] 2 Terapeuta Ocupacional da Prefeitura de Itapipoca. Especialista em Saúde Mental. [email protected]
à Universidade Estadual do Ceará-UECE. O estudo focou a atenção sobre a participação
política das mulheres da classe popular que participavam na condição de usuárias da Política
de Assistência Social na cidade de Paracuru. A partir daí, foram se intensificando o olhar sobre
a mulher nos seus mais diversos contextos e práticas existentes na cidade. Como o
envolvimento da mulher na política, também chamou-me a atenção o envolvimento da mulher
no esporte. É uma cidade marcada pela presença feminina nos espaços de poder, como
também vem sendo marcada pelos casos de feminicídios no litoral oeste do Estado do Ceará.
Ocorrências estas registradas justamente no mês de março, período de mobilizações e lutas
pela visibilidade dos direitos das mulheres.
Contudo, é possível pensar que nos mais diversos espaços há anos, mulheres da
cidade marcam com suas atitudes, pensamentos e experiências as vidas de seus pares.
Driblam os arquétipos e dispositivos sociais que foram potencializadores ao longo dos anos
das questões de gênero mais conhecidas e popularizadas, que destinavam a mulher apenas
aos espaços privados. Sendo assim, este estudo, dedica-se a categoria insubordinação, a
partir da compreensão sobre subordinação, acreditando-se que esta também pode ser
mutável, a partir daí, sugere-se dizer que as condições para esse estado de subordinação e
inserção social também podem ser modificados tanto por homens como por mulheres, isto é,
o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado; ela assume seu
reconhecimento político, ancorando-se na “ideia de que o que une as mulheres ultrapassa,
em muito, as diferenças entre elas [...].” (PISCITELLI, 2004, p. 46).
Sendo assim, a mulher na sua inserção política, torna-se sujeito de mudanças, não
obstante, foram transformadas em sujeitos políticos principalmente a partir do movimento
feministas, ao politizar as desigualdades de gênero como remete Carneiro (2004, apud
FERREIRA, 2018). Contudo, Woolf (2018, p.01) já dizia
O que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu não sei. Não acredito que vocês saibam. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana.
Neste estudo, estas mulheres estão sendo pensadas a partir das suas
pluralidades, reconhecendo suas várias identidades e experiências, principalmente as suas
várias lutas, a partir desta vertente, chamou-me atenção o envolvimento de mulheres,
adolescentes em jogos de praia, ou esportes praticados na praia ou no mar. Ao considerar
que Paracuru já teve entre as melhores surfistas do mundo uma de suas nativas, que começou
a prática sobre uma tabua de madeira. As vivencias na orla de Paracuru partiu dos seguintes
questionamentos: onde estão as demais meninas e mulheres do surf de Paracuru, que outras
modalidades estas mulheres se interessam? Que espaços existem ou incentivos, para que as
mesmas possam ser reconhecidas tecnicamente? Perguntas como estas nortearam por vezes
os pensamentos e o engajamento em ações pontuais na orla da praia de Paracuru, a partir
do envolvimento num Coletivo de pessoas atentas a desenvolver atividades de mobilização
em prol da fauna e flora na cidade, Coletivo este, que na sua maioria é constituído por
mulheres, nomeado como Serei Amor. Daí surgiu, o interesse sobre a modalidade esportiva
Altinha. Quando buscou-se saber exatamente o que esta modalidade causa de impacto na e
para participação da mulher na vida esportiva, tendo em vista, sua ascensão entre os jogos
praticados nas praias de Paracuru.
Altinha, é uma terminologia mais conhecida na região nordeste, segue uma
mistura de diversão e esporte, seria, portanto, neste trabalho a modalidade em destaque,
tendo em vista, que a mesma tem sido um espaço para maior engajamento de mulheres
praticando esportes na praia. Ao ser considerado que ainda é um campo de dominação
masculina, seja na prática do futebol de areia, vôlei, futevôlei e outros. Altinha surgiu no Rio
de Janeiro, exigindo do (a) jogador (a) habilidade, controle de bola e equilíbrio corporal em
um jogo em que a equipe precisa deixar a bola o maior número de vezes no alto. A Altinha se
caracteriza por unir as noções básicas do futevôlei, em forma de círculo, valendo qualquer
movimento tais como chutes, joelhadas e cabeçadas, geralmente composta em competições
por quatro pessoas (ABRAHAM 2019). Não há uma definição especifica quanto a idade para
a prática, em Paracuru é comum a participação de crianças até as mães dessas crianças no
exercício do jogo de Altinha.
Para uma aproximação com a realidade, este trabalho teve, portanto, sua base
metodológica na abordagem qualitativa, pois segundo Hernández Sampieri (2013 apud LIMA
et al, 2015), uma pesquisa qualitativa sugere que se fique atento ao olhar, que se treine para
observar o que é diferente da simples visualização, pois propõe a utilização de todos os
sentidos para entrar profundamente em situações sociais e, de forma ativa, para chegar a
uma reflexão permanente. Desta forma, buscou-se a partir de uma perspectiva ancorada na
busca bibliográfica, documental e de vivência no campo relatado, por meio de uma proposta
atuante e participativa junto à realidade em estudo, com foco na inserção em espaços de
dominação masculina, apropriando-se de diálogos, narrativas expostas pelos participantes de
jogos e observadores (as) da orla de Paracuru. Destarte, o estudo que se apresenta, segue
para uma exposição breve sobre o pretendido a partir da própria introdução, seguido por
sessões que trabalham questões pertinentes as discussões sobre os espaços públicos e
privados destinados a mulher e por outra sessão que fala do poder exercido por esta e o seu
papel no processo de insubordinação através do corpo, alinhada ao vivenciado com a Altinha,
e por fim, as conclusões que apontam para um processo de ruptura com dispositivos
normatizadores, principalmente masculinizadores que recaem sobre as mulheres.
2 O PÚBLICO E O PRIVADO: noções básicas para entender as lutas das mulheres
Os significados dos termos público e privado tornaram-se importantes nos estudos
sobre as relações e condições de vida entre mulheres e homens em sociedade, entretanto,
pode-se dizer que, durante longos anos de estudos, sofreram várias interpretações. Nos
estudos de Arendt (2010 apud LIMA, 2015), precisamente na literatura sobre a condição
humana, estes termos estão relacionados às esferas do lar (família) e da vida na pólis
(política). Segundo a autora, no período antigo, precisamente na Grécia, a linha que
assinalava uma distinção entre a esfera do lar e a da pólis era que, na primeira, os homens
viviam juntos por serem a isso compelidos diante das suas necessidades: “A comunicação
natural do lar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades
realizadas nela” (ARENDT, 2010, p. 36).
Já no domínio da pólis, ao contrário da esfera do lar, era o âmbito da liberdade que
predominava, de maneira que nessa só conhecia iguais; existindo na dimensão do lar, da vida
privada, a mais severa desigualdade. Assim, no domínio do lar, a liberdade não existia, pois
seu chefe, seu governante (no caso o homem), só era considerado livre na medida em que
tinha o poder para deixar o lar e ingressar no domínio político, no qual todos eram iguais.
Nessas circunstâncias, mulheres e escravos estavam destinados apenas ao espaço privado.
Arendt (2010, p. 40) analisa que, no mundo moderno, os domínios sociais (lar,
família) e político vão se diferenciar menos entre si. Para ela, os dois domínios (público e
privado) “constantemente recobrem um ao outro, como ondas no presente fluir do processo
da vida”. Por fim, a vida pública passa a estar a serviço da vida privada. Nesse âmbito, convém
referendar Rabay (2008), quando afirma que a dicotomia entre o público e o privado tornou-
se menos rígida a partir da Idade Média e no final do século XIX, de maneira que as atividades
relacionadas com a sobrevivência foram se tornando de interesse também da esfera pública,
passando as autoridades privadas e públicas a se fundirem de toda forma até se confundirem
com o poder público. Para autora, citando Costa, “privado passa a ser somente uma esfera
da intimidade”, contudo, a autora enfatiza que “as mulheres permaneciam excluídas da
cidadania, sujeitas a toda uma série de restrições e normas legais, que limitam seus direitos
dentro e fora da família” (COSTA, 1998, p. 55 apud RABAY, 2008, p. 166). Rabay (2008)
assevera que, mesmo com todo o processo de mudança ocorrida no decorrer da história, o
acesso a certos segmentos do espaço público, ainda é muito restrito às mulheres. Seja no
sentido do domínio do poder público institucionalizado e das relações pessoais, seja no
sentido da visibilidade política social, até recentemente, a mulher foi restringida à esfera
privada, doméstica. Sua atuação, rompendo o âmbito privado, na modernidade, ainda não
conquistou plenamente a visibilidade necessária ao exercício do poder na contemporaneidade
(RABAY, 2008, p. 167).
Em âmbito nacional, pode-se dizer que a sociedade brasileira, a partir do século
XIX, sofreu forte influência do Estado em sua formação cultural, por meio da medicina social,
sendo possível observar a fomentação e o desenvolvimento de uma sociedade burguesa e
de um Estado Nacional preocupado com a “estatização dos indivíduos” (COSTA, 1983, p. 33).
É significativo referendar que, mesmo incluso num contexto familiar patriarcal, os
papéis para homens e mulheres caracterizavam-se pela distinção entre eles e pela separação
profunda entre o espaço público e o privado, como observa Costa (1983, p. 83):
O ‘estar’ da família colonial [...] regulava-se pela distinção social do papel do
homem e da mulher e pela natureza das atividades domésticas. O homem, a quem era
permitido um maior contato com o mundo, com a sociabilidade, permanecia menos tempo em
casa. Os cuidados da residência eram entregues à mulher, que, entretanto, não podia imprimir
aos aposentos a marca de sua necessidade.
Segundo Lima (2001), a estratégia de intervenção do modelo higienista, a partir
do século XIX, provocou mudanças na estrutura da casa e da própria intimidade familiar,
passava-se os costumes de uma sociedade agrária para os produzidos por uma burguesia
emergente em pleno século XIX. Numa sociedade burguesa que “buscava impor freios morais
ao patriarca, cuja incontinência sexual estava associada à prostituição, sífilis e mortalidade
infantil” (COSTA, 1983, p. 244), este homem seguiu valores burgueses correspondentes à
importância do trabalho e de sua competência como profissional; valorizou o aspecto físico,
estimava pela competição e gostos diversos em torno do saber e cultura em um segmento de
valores morais que nortearam comportamentos em específico como a valorização do afeto
junto aos filhos; enquanto a mulher permaneceu em casa, embora considerada como “rainha
do lar”, exercendo várias funções, “como enfermeira e professora” (COSTA, 1983, p. 244),
submetida ao domínio de alguém ou da ordem médica vigente.
Para Fonseca (2012), no século XIX, a norma oficial acabava ditando que a mulher
devia ser resguardada em casa, responsável pelos afazeres domésticos enquanto ao homem
cabia assegurar o sustento da família. Esse modelo, entretanto, tratava-se de um estereótipo
baseado nos valores da elite de resquícios coloniais, longe de retratar a realidade da mulher,
sobretudo da pobre. Para a autora, era um instrumento ideológico inclusive espalhado pelos
viajantes europeus com a função de marcar a distinção entre as mulheres burguesas e as
mulheres pobres. Com isso, ela ainda descreve que a “mulher pobre, diante da moralidade
oficial completamente deslocada de sua realidade, vivia um dilema imposto pela necessidade
de escapar à miséria com o seu trabalho e o risco de ser chamada de ‘mulher pública’”
(FONSECA, 2012, p. 519).
Samara (1986), em obra acerca da família brasileira, já dizia, no capítulo sobre o
mito da mulher submissa e do marido dominador que, provavelmente, houve certo exagero
dos estudiosos quanto aos estereótipos transmitidos sobre as condições de dominação e
submissão entre os gêneros. Esta pesquisadora afirma que “as variações nos padrões de
comportamento de mulheres provenientes dos diferentes níveis sociais indicam que muitas
delas trouxeram situações de conflito para o casamento, provocadas por rebeldia e mesmo
insatisfação” (SAMARA, 1986, p. 57).
Nessa perspectiva, em meio às relações permeadas por resíduos de uma cultura
moralizadora a serviço do âmbito doméstico e sob controle dos preceitos e dispositivos legais
é totalmente possível visualizar que muitas mulheres ao longo dos séculos assumiram novas
práticas sociais no processo de socialização. A partir de uma interlocução entre Foucault e
Deleuze, a partir do ato de pensar esta realidade, é possível até mesmo argumentar que estes
dispositivos atravessam as pessoas e instituições, impactam também em razão de serem
estes “como componentes linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas
de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam[...]”
(DELEUZE 1990, p. 02).
Tal reflexão provoca a ideia de que as subjetividades, o saber e o poder não têm
contornos definitivos, tampouco são representações universais de uma verdade. Dessa forma,
pode-se pensar que, as mais diversas mulheres estudadas no município de Paracuru, ainda
se submetem a certos princípios de conduta, mas existem as que caminham num processo
de reinvenção, de resistência a determinadas subjetividades moralmente constituídas.
3 ALTINHA, UM CAMPO PARA A INSUBORDINAÇÃO AOS VALORES MORAIS
Para Foucault (2014), as regras e valores podem, ao mesmo tempo, ser
formuladas de forma coerente, doutrinariamente, como também podem ser transmitidas de
forma difusa, sem uma sistematização, passando a constituir-se num jogo complexo de
elementos que acabam por se compensarem, anularem-se e cederem a compromissos ou
escapatórias. De maneira que para Foucault (2014, p. 32), a partir dessas ressalvas, moral é
compreendida igualmente como,
comportamento real dos indivíduos em relação aos valores e regras que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta, pela qual eles obedecem ou resistem a
uma interdição ou a uma prescrição.
Esta reflexão abre caminhos para exposição acerca do espaço e lócus das
observações realizadas para fins deste estudo, ou seja, a praia de Paracuru, precisamente as
areias da orla de Paracuru, onde se pratica a modalidade esportiva Altinha. Esta, originada
nas areias fluminenses, tem uma proximidade com o futevôlei, como o futebol, um esporte
que tem na sua base, caraterísticas marcantes dos valores masculinos, constituída a partir do
despertar masculino. Como o futevôlei a Altinha foi pensada por um grupo masculino, na
década de 1990, contudo, ao ganhar expressividade pelas praias do Rio de Janeiro, expandiu-
se para o nordeste, precisamente para João Pessoa, e nesta terra, o reinado é feminino. No
Ceará, pouco se sabia sobre a modalidade, precisamente não tinha conotação competitiva,
até o ano de 2018. Quando também, fora realizado pela primeira vez um campeonato na
cidade de Paracuru. A modalidade, consiste em manter o máximo possível a bola no alto, sem
ter que tocá-la com as mãos, onde os (as) jogadores (as) que devem constituir um quarteto,
sob uma formação circular, precisam destacar habilidade, controle de bola, equilíbrio corporal,
dinâmica, agressividade, criatividade. Dentre os passes mais comuns podem-se destacar: os
chutes, joelhadas e cabeçadas. De acordo com Murilo Abraham (2019), coordenador de
competições em Niterói, Rio de Janeiro, há necessidade de se observar sobretudo, a técnica
e criatividade para não deixar a bola cair.
Diante desta breve exposição sobre a Altinha, destaca-se que a modalidade nas
sus competições exige atualmente que tenha pelo menos uma mulher, ou pessoa que se
identifique com o gênero feminino em cada quarteto. Abrindo assim um novo espaço para
aproximação do mundo feminino com a bola. A atenção dada a esta modalidade se deve
exatamente a esta condição nas competições, o que fez a mesma ser abraçada por mulheres
na cidade de Paracuru, para que fosse realizado o primeiro campeonato de Altinha,
envolvendo doze quartetos, contando todos com a participação mínima de uma mulher. Ao
transpor um pouco dos modelos até então vistos para realizações de competições de esportes
de praia- desde o surf, ao futevôlei na cidade, também foi o primeiro campeonato nas últimas
décadas realizados por mulheres. Estas mulheres, conseguiram romper com as construções
sociais em torno do papel de mera expectadoras, para serem sujeitos pensantes e executoras
de direitos aos mais diversos segmentos, nas mais diversas idades na prática oficial do
esporte.
Já se sabe que o momento constituiu-se fora das regras e padrões das
competições até então vistas na cidade, ou seja, a organização fora feminina e conseguiu-se
ter a participação feminina nos quartetos. Restava saber os impactos destas participações, os
rebatimentos sobre os doutrinamentos dos corpos destas mulheres participantes. Tendo como
exemplo o futebol, sabe-se que para inserção feminina o imaginário masculino e os discursos
reproduzem a necessidade da masculinização das mulheres ou buscam reconhece-las pelo
processo de erotização dos seus corpos, o que não deve ser tão distante nas demais
modalidades. A exposição das participantes, chamou a atenção pela técnica ou pela beleza
jovial exibida a cada jogada? Na tentativa de responder certas questões, o estudo
bibliográfico e documental ajudou na compreensão acerca das limitações postas as mulheres
para prática esportiva, e os dispositivos existentes para que os códigos morais por muito
tempo ainda em evidencia cheguem a prevalecer em certos habitus e lócus (BOURDIEU,
2014), contudo, não se pode perder de vista jamais o pensamento de que estes não serão
para sempre incorporados e imutáveis.
De acordo com Batista e Devide (2009, p.08), a mulher sofreu uma exclusão na
área esportiva, pois não conheciam os seus organizadores e influenciadores o corpo feminino
nos séculos XIX e início do século XX, sendo sobre “bases biológicas que se construíram os
discursos que normatizavam a participação das mulheres no exercício físico e no esporte,
inclusive sob o formato de decretos.” Os mesmos autores expõem que
acreditava-se que algumas práticas esportivas poderiam masculinizar as mulheres, além de afetar o sistema reprodutivo feminino, cabendo às mulheres apenas o papel social de mãe e protetora do lar. Novas concepções na área biomédica interligadas com a política contribuíram para uma nova fase na Educação Física brasileira, o higienismo, que através de um discurso eugênico, compreendia que a atividade física beneficiava a saúde das mulheres, que com um corpo forte e sadio poderiam gerar filhos saudáveis, tornando a raça brasileira mais forte. Comprovados os benefícios da prática esportiva para as mulheres, as atividades indicadas à Educação Física Feminina eram relacionadas ao desenvolvimento da beleza, feminilidade e maternidade (GOELLNER, 2003), tais como a dança, a ginástica e a natação (DEVIDE, 2004). No entanto, apesar dos avanços históricos em termos de participação, restaram os preconceitos culturais sobre a inserção de mulheres em algumas modalidades esportivas consideradas masculinas, como o futebol (BASTISTA E DEVIDE, 2009, p.08).
Ao entender que estas questões transformam o universo da mulher ou destinam-
nas apenas a um espaço no processo de socialização, como o espaço privado, deve-se dizer
que as condições para esse estado de subordinação e inserção social também podem ser
modificados, isto é, o espaço social a ser ocupado pela mulher pode ir além do meio privado;
Sendo assim, pode-se dizer que, mesmo existindo diferenças apresentadas pelas
mulheres envolvidas no processo em análise como organizadoras de um campeonato de uma
modalidade esportiva, ou o simples fato de se apresentarem como jogadoras de Altinha nas
areias de Paracuru, pode-se dizer que estas mulheres se aproximaram pelo que lhes é
oportuno, aguçavam-lhes e impulsionavam-lhes a trilhar; por semelhanças pautadas na
condição de vida, de direitos negados, já expressados anteriormente, bem como, no fato de
poderem usar o espaço como imposição também ao direito de serem reconhecidas
tecnicamente, capazes de realizarem ou estarem onde quiserem. A necessidade de praticar
algum esporte para distanciarem-se da vida sedentária, no caso de mães que simplesmente
acompanhavam seus filhos aos jogos e viram na Altinha uma possibilidade de melhorar o
condicionamento físico, bem como, aquelas que estavam vivenciando as descobertas da sua
sexualidade, entregues aos desejos de serem desejadas, visto portanto, as duas perspectivas
como empoderamento feminino diante do universo predominantemente masculino existente
na prática de esportes de praia. Diante do espectro, por que não considerar a citação de
Gohn (2012, p. 23), quando afirma que “experiências vividas no passado, como opressão,
negação de direitos etc., são resgatadas no imaginário coletivo do grupo, de forma a fornecer
elementos para a leitura do presente”. Estas mulheres, meninas, estão se aproveitando de
elementos experimentados no passado, bem como novos elementos do presente e criando
novos devires, num processamento de novos territórios, fortalecendo a passos curtos um
discurso de identidade. Pode-se dizer que em Paracuru há chamas para um compromisso
com a perspectiva de ruptura do espaço privilegiado e moralizador exclusivo para homens, ou
seja, o espaço público também é destinado às mulheres. Portanto, para além de como foram
vistas, sejam pelas belezas, pelo cuidado com a saúde e até mesmo pela vivencia familiar,
estas solidificaram a participação na modalidade e disputam saberes e emancipação na
conjuntura atual. O corpo, portanto, expressa uma mensagem na sua simples aparência
estética, de que está entrelaçado a uma luta ética e de convicções sociais, sobretudo de
posicionamentos acerca do espaço que é de direito da mulher (LIMA, 2015), portanto, como
diz Ferreira (2013), de confrontação social, numa revelação de forças tanto de controle como
de resistência, de subordinação e de emancipação. O mesmo autor ao citar-se afirma que se
deve olhar o corpo como um lugar que vai além de uma atuação disciplinar, devendo ser
olhado
também como lugar de oposição, resistência e emancipação social. A mobilização social do corpo não está efetivamente reduzida a mecanismos que operam no sentido da sua sujeição e contenção, nomeadamente quando o sujeito investe em usos corporais que têm na sua base a intenção de desafiar a ordem corporal e social existente [...] (FERREIRA, 2013, p. 509).
Ferreira (2013), em suas análises, ao citar Hardin (1999 apud LIMA, 2015, p.112),
“vai conceituar que o corpo é passível socialmente de ser apropriado e reagir enquanto uma
instância de contra-poder, podendo existir reações e enunciações”. No caso das mulheres e
meninas participantes da Altinha, o que se observa ainda é um corpo que se utiliza de
estratégias de poder, estratégias mediadas por artefatos externos como a “própria roupa
utilizada, para manter-se proprietária do seu corpo e do seu olhar para si”, embora ainda não
tenham consciência de si, desse olhar para si e tão pouco do contra-poder como um processo
de insubordinação, contudo, esta existe nas suas mais variadas refrações.
3 CONCLUSÃO
Pode-se dizer o quanto é desafiante adentrar no universo em estudo, tendo em
conta, as diversidades de elementos envolvidos, ao considerar um espaço tão pouco
estudado nesta cidade e tão pouco visto como importante a sistematização das construções
sociais desta realidade em questão. Em meio aos caminhos de retrocessos no país, e na
cidade de Paracuru, o contexto não está diferente, tendo em vista, que fora praticamente
extinta das mesas técnicas de discussões a pauta da mulher, ou mesmo, não há uma política
pública que olhe para os direitos das mulheres e promovam as igualdades necessárias entre
os gêneros.
Contudo, pode-se enfatizar que no meio dos turbilhões de emoções e questões
objetivas postas quanto a participação feminina em espaços como o esportivo, precisamente
da Altinha em Paracuru, fora possível perceber que há anseios, desejos e vontades das
mulheres deste estudo, como um processo que se aproxima da contestação de seus corpos
aos poderes disciplinadores. Mulheres que lutam contra valores e arquétipos que os tornaram
exclusivos do gênero feminino, que as levaram à subordinação, ou mesmo a perfis
estereotipados e preconceituosos, passando a ser marginalizadas, no caso do esporte muitas
vezes masculinizadas e erotizadas. Hoje, porém, encontram-se num processo de reação e
enunciação de novas territorializações, resistentes e ressignificando seus espaços.
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