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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O AVANÇO DO MODELO DE DESENVOLVIMENTO DO CAPITAL SOBRE A VIDA
DAS MULHERES: UMA REFLEXÃO A PARTIR DAS MILITANTES DO MOVIMENTO
DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB) DO CEARÁ
Larissa Souza Pinheiro1
Resumo: Entender o processo histórico de opressão dos homens sobre as mulheres, a fim de
desnaturalizar essa relação e desvelar como as relações sociais de sexo se reproduzem nos mais
diversos espaços, é um dos aspectos necessários para a construção de uma sociedade de seres
humanos livres e emancipados. A partir disso, o presente trabalho pretende discutir acerca do
avanço do capital e do seu modelo de desenvolvimento sobre os territórios e as vidas das mulheres,
a partir da percepção das mulheres atingidas por barragens que compõem a coordenação estadual do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) do estado do Ceará.
Palavras-chave: Desenvolvimento. Mulheres. Movimento dos (as) Atingidos (as) por Barragens.
Introdução
Entender o processo histórico de opressão dos homens sobre as mulheres, a fim de
desnaturalizar essa relação e desvelar como as relações sociais de sexo se reproduzem nos mais
diversos espaços, é um dos aspectos necessários para a construção de uma sociedade de seres
humanos livres e emancipados. A partir disso, o presente trabalho pretende discutir acerca do
avanço do capital e do seu modelo de desenvolvimento sobre os territórios e as vidas das mulheres,
a partir da percepção das mulheres atingidas por barragens que compõem a coordenação estadual do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) do estado do Ceará.
O Brasil tem um modelo de desenvolvimento energético, centrado nas hidrelétricas
como uma das principais fontes geradoras de energia, onde 92% da energia produzida vêm da fonte
hídrica, com isso a construção de barragens se tornou uma prática corriqueira, que afeta de forma
direta as comunidades que vivem na região onde essas barragens são construídas. Na grande
maioria das vezes, a população atingida, não participa dos processos de decisão que dizem respeito
as suas próprias vidas, gerando assim, várias violações de direitos, pois os interesses que envolvem
a construção das barragens estão sempre voltados aos lucros do grande capital e não a um modelo
de desenvolvimento social e ambiental que sirva para diminuição das desigualdades sociais e para
uma noção de progresso que beneficie, igualmente, a todos. (BENINCÁ, 2011)
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Direitos Sociais da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN), RN – Brasil.
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Segundo dados de 2012, da Comissão Especial de Barragens do Conselho Nacional de
Defesa da Dignidade da Pessoa Humana (CDDPH)1, muitas das famílias atingidas tem as suas
terras desapropriadas não recebendo uma indenização justa, ou tendo que sair do campo, sendo
reassentadas em áreas urbanas, onde perdem o vínculo com a terra que plantavam e tinham criações
de animais, ou seja, a vinda das barragens muda completamente a vida dessas famílias tanto na
esfera territorial, de produção e trabalho, quanto de vínculos comunitários e históricos com o lugar
onde vivem.
Não é raro encontrar comunidades, que rodeiam as barragens, que ainda se encontram
com acesso à água e energia restritos, fato que só mostra de forma concreta a quais interesses a
construção das barragens respondem. É nesse contexto de impacto na vida das famílias, a partir de
um processo de organização, que surge o MAB.
Segundo dados2 do próprio MAB, cerca de pelo menos 80% das comunidades atingidas,
onde o movimento se organiza e atua, provém de barragens construídas para geração de energia
elétrica, principalmente no Sul e Norte do país, porém o movimento também atua frente a
construção de barragens para outros fins, como para redistribuição de águas, como é o caso da
barragem do Castanhão, no Ceará. Pois, o MAB entende que o processo de exclusão das
comunidades atingidas e dos impactos que elas sofrem, tem um mesmo padrão e servem a um
mesmo fim.
Compreendendo isso e entendendo o patriarcado, como um sistema social, político e
econômico, no qual os homens controlam, individual e coletivamente, o trabalho, o corpo e a
sexualidade das mulheres, compreendemos que elas vão sofrer de forma mais intensa com o peso do
capital e do patriarcado, fazendo com que os impactos nas suas vidas se manifestem com mais
violações de direitos com a chegada das barragens.
Para dar conta da problemática apresentada, a pesquisa possuiu caráter qualitativo, onde
em sua fase exploratória foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental. Já no processo de
tentativa de apreender temporal e, especialmente, a dinâmica da realidade a qual se desejava
pesquisar, ou seja, das mulheres militantes do MAB, foi realizada a entrevista semiestruturada na
qual usamos como critério de inclusão para a entrevista, a escolha de mulheres que compõe a
1Disponível em: www.mabnacional.org.br/content/relat-rio-da-comiss-especial-do-conselho-defesa-dos-direitos-da-
pessoa-humana-2010 2Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/content/cartilha-sobre-relat-rio-viola-direitos-humanos-em-reas-
barragens. Acesso em: 10 de outubro de 2015.
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coordenação Estadual do MAB Ceará, pelo histórico delas dentro do movimento, onde elas tiveram
a oportunidade de vivenciá-lo de diferentes posições, pois, já ocuparam diferentes cargos dentro da
sua organicidade. Além disso, as mulheres da coordenação estadual apresentam uma visão sobre o
processo organizativo das mulheres que compõe a base do movimento, visualizando dificuldades e
pontos em comum desde a base até a direção das militantes que formam o MAB Ceará de forma
geral.
A fim de mantermos a confidencialidade da pesquisa adotamos nomes fictícios, e
aproveitamos, com isso, para lembrar de mulheres que são símbolos para a luta feminista, serão
eles: Frida Kahlo, Angela Davis, Jana Barroso e Olga Benário. As mulheres entrevistadas têm 19,
23, 25 e 31 anos, apenas uma delas tem filho e vive em uma união estável. Duas delas são
Heterossexuais e duas são bissexuais, nenhuma delas tem vinculo empregatício, nem vinculo
partidário.
O modelo de desenvolvimento e a vida das mulheres
O conceito de desenvolvimento construído e imposto pelo sistema capitalista não incluí
as mulheres como sujeitas do “progresso” gerado por ele, bem como, se utiliza do patriarcado, e do
racismo para se estruturar e lucrar mais. Sobre isso Silva (2011, p. 114-115) nos fala,
A noção de desenvolvimento não inclui as diversidades. Está permeada por um modelo
único - branco, ocidental, heterossexual –, como fator que movimenta a vida e como meta
para a felicidade na aventura humana na terra. (…) Desenvolvimento é uma prerrogativa do
capital e da racionalidade moderna ocidentalista europeia, que é, ao mesmo tempo, racista e
patriarcal. Não temos, a meu ver, como redimi-lo de seu cerne uniformizante, urbanizante,
evolucionista, higienista. Não temos como libertá-lo de sua face ardilosa, que concebe a
história em um caminho que vai sempre para cima e para frente numa racionalidade
marcada pela acumulação ou desprovimento de mercadorias, estas sempre entendidas como
as coisas que trazem a felicidade e mediam as relações entre as pessoas.
A partir do que nos traz Silva (2011), podemos perceber que esse conceito de
desenvolvimento não é pensado por todos e todas e nem muito menos os beneficia, onde com base
no sistema capitalista, vai gerar desigualdades, estruturado, alimentado e gerador de pobreza
espalhada e de riqueza concentrada. Nessa lógica tudo é passível de venda e de troca, terras, águas,
territórios e vidas. Mas não quaisquer vidas, vidas com sexo e cor, Silva (2011, p. 118) nos diz
sobre como essa lógica funciona,
Se o trabalho da mulher vale menos, então contratemo-nas e paguemos menos; se o corpo
da mulher é objeto, então vendamos para quem o quiser comprar; se as mulheres acumulam
múltiplas habilidades, então exploremo-nas, façamos delas também as gestoras da miséria.
Se os negros e negras valem menos, situemo-nos nos piores locais.
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As desigualdades geradas por esse modelo de desenvolvimento se manifestam na
divisão sexual do trabalho onde o trabalho doméstico que é construído social e historicamente como
responsabilidade das mulheres é tido como improdutivo, não sendo remunerado, e as profissões
tidas como femininas, que são aquelas relacionadas aos cuidados como Enfermagem, Serviço
Social, Pedagogia entre outras são desvalorizadas e mal remuneradas, passando por um processo
histórico de precarização e flexibilização das suas práticas profissionais.
Como nos alerta Souza-Lobo (2011, p. 166) “O trabalho doméstico não assalariado não
é considerado trabalho e o trabalho doméstico assalariado é considerado um trabalho particular em
que as relações não são regulamentadas da mesma forma que nas outras relações de emprego”.
Assalariadas ou não, são as mulheres que assumem efetivamente a reprodução social por meio do
que Souza-Lobo denominou de “serviço reprodutivo familiar”.
Como exemplo concreto disso, a pesquisa do IBGE revela que em 2002, o rendimento
das mulheres era equivalente a 70% do rendimento dos homens. Dez anos depois, em 2012, a
relação passou para 73%. No grupo com 12 anos ou mais de estudo, o rendimento feminino cai para
66% da renda masculina, mostrando assim a desigualdade salarial entre homens e mulheres e a
desvalorização do trabalho feminino.
Esse modelo de desenvolvimento capitalista afeta a vida das mulheres de uma forma
mais intensa, pois além dos aspectos do capital, recaem sobre elas o peso do patriarcado e no caso
das mulheres negras, o peso do racismo que também são aspectos estruturantes nessa sociedade.
Marcelino, Faria e Moreno(2014, p.6),nos mostram a relação direta entre as políticas econômicas e
a vida das mulheres,
A falsa neutralidade das políticas econômicas, se mostra, ao revelar que a implementação
de políticas de ajuste estrutural se deu em sociedades estruturadas por relações sociais
desiguais. Verificou-se um aumento do trabalho remunerado das mulheres, marcado pela
precariedade, ao mesmo tempo em que também se verificava o aumento do trabalho no
âmbito doméstico e comunitário, em virtude da redução dos gastos sociais e do aumento
dos preços de produtos básicos. Neste cenário, em geral, se explicitou que os custos das
políticas de ajuste recaíram sobre a família, considerando a habilidade das mulheres para
desenvolver estratégias que permitem a sobrevivência da família com menos rendimentos e
mais trabalho como “fator de equilíbrio”.
A partir dessa reflexão feita por Marcelino, Faria e Moreno (2014), é possível perceber
a necessidade de encarar as políticas econômicas para além do entendimento monetário e mercantil,
rompendo a dicotomia entre produtivo e reprodutivo, reconhecendo o trabalho doméstico e de
cuidados, que recaem sobre as mulheres, como parte fundamental dos processos de produção e
reprodução da vida. Onde a não remuneração desses trabalhos e/ou precarização e flexibilização dos
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trabalhos designados as mulheres, pela divisão sexual do trabalho, são base de sustentação desse
sistema.
A reprodução das pessoas não é um problema específico das mulheres. Resultado da
divisão sexual do trabalho, elas interiorizam o conflito produção/reprodução que não é
adequadamente elaborado no âmbito social. Tal interiorização se dá com as mulheres
suportando na família e no trabalho remunerado os custos de uma contradição básica do
sistema (...) No capitalismo, houve a separação progressiva desses processos, ao lado da
ocultação do vínculo entre eles. Ou seja, não é o trabalho doméstico e de cuidados em si
que é invisibilizado, mas seu vínculo com a sustentação deste sistema. (MARCELINO;
FARIA; MORENO, p. 5)
Tomando como base o que já foi dito, temos um peso duplo sobre as mulheres, por um
lado o patriarcado e a divisão sexual do trabalho, que as coloca em lugar de subalternidade,
invisibilizando o seu trabalho, as mantendo no âmbito privado da vida cotidiana e servido de forma
direta para a estruturação do sistema capitalista, que se utiliza dessas estruturas para amenizar os
efeitos colaterais da sua crise estrutural, ora responsabilizando as mulheres por todo o trabalho de
reprodução da classe trabalhadora, ora superexplorando a sua força de trabalho para garantir os seus
lucros.
É preciso dar a conhecer que as estratégias de sobrevivência e de produção do viver,
asseguradas pelas mulheres em diversos espaços, estão constantemente ameaçadas por
interesses econômicos das grandes empresas e do capital. A água, a energia, a terra para a
produção de alimentos e a biodiversidade são elementos que garantem a sustentação da vida
e interessam às mulheres, que são as primeiras a sofrer com sua escassez. A ação do capital
não altera as dinâmicas da divisão sexual do trabalho e, ao contrário, reforça as
desigualdades na medida em que grandes obras de infraestrutura, como usinas hidrelétricas
e rodovias, priorizam a circulação de capital e mercadorias em detrimento da qualidade de
vida das comunidades. (MARCELINO; FARIA; MORENO, p.6)
O movimento feminista junto ao feminismo acadêmico formulou e fez críticas ao
modelo de desenvolvimento imposto pelo capital e a como a economia política clássica
simplesmente ignora as mulheres e o seu trabalho nas suas leituras e análises. A partir da crise
estrutural do capital e com a chegada forte do neoliberalismo na América Latina, na década de
1990, as mulheres, constroem uma leitura feminista dos processos econômicos e de produção, a
economia feminista,
Olhar para o modelo de desenvolvimento a partir a economia feminista significa,
necessariamente, ampliar a análise, buscando considerar o conjunto das práticas necessárias
para a produção do viver, e não apenas aquilo que é quantificado, comprado e vendido no
mercado. (...) Além das críticas aos paradigmas estabelecidos da teoria econômica, a
economia feminista propõe novos modelos teóricos que incorporam a totalidade das
relações econômicas – considerando, portanto, a experiência das mulheres -, e tomam a
satisfação das necessidades humanas como ponto de partida. Ao contrário do paradigma
neoclássico da economia, que se centra na alocação eficiente e racional dos recursos do
mercado, a economia feminista se volta para compreender como as sociedades se
organizam para atender um determinado padrão de vida para toda a população. (Idem, p. 8-
9)
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A partir da leitura feminista da economia, entendendo que os refluxos dos ajustes
estruturais da crise do capital recaem sobre as mulheres, os movimentos de mulheres formaram uma
frente que orientou uma atuação feminista que passou pela crítica às políticas neoliberais orientadas
pelo Consenso de Washington e aos acordos de livre comércio, sobretudo na Campanha Continental
contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
Além de dar centralidade a divisão sexual do trabalho e a criação de uma visão crítica e
de questionamento global ao modelo neoliberal, que buscou realizar a conexão entre uma visão
crítica da sociedade de mercado e a mercantilização do corpo e da vida das mulheres, essa análise
também se centrava na coextensividade das relações de sexo, classe e raça no atual modelo de
desenvolvimento econômico. Essa leitura coextensiva entre sexo, classe e raça dentro desse modelo
de desenvolvimento é importante, pois, nas palavras de Silva (2011, p. 117)
As mulheres pobres e pretas, são vítimas desde sempre das mais diversas formas de
violência, são as gestoras da miséria, as reprodutoras dos marginalizados, as
responsabilizadas e culpabilizadas pelas ausências. Saúde, educação, saneamento são
ausentes ou oferecidos em versões pobres para pobres, tal como eles são: em sua classe, sua
cor e seu sexo.
A ideia e discuso de desenvolvimento também invade territórios, realocando uma
grande quantidade de pessoas, acabando com os recursos naturais, mercantilizando a vida e a
biodiversidade, indo na lógica extrativista do capital, de extração da força de trabalho e da natureza.
No Brasil exemplos de avanço do capital sobre os territórios, em defesa da lógica do
desenvolvimento, são a instalação de mineradoras e a construção de barragens, que seguindo os
padrões desse modelo de desenvolvimento, atinge muitos de forma negativa e gera lucros e
progresso para poucos.
As estratégias da ocupação dos territórios são diferentes de acordo com cada atividade
econômica. No caso das grandes barragens e do agronegócio, há uma dinâmica marcada
pelo deslocamento. A instalação no território implica a expansão da fronteira,
desmatamento, expulsão das comunidades e esvaziamento dos territórios. No Brasil, cabe
ressaltar que boa parte da energia produzida nas hidroelétricas são destinadas a abastecer
projetos extrativos da região. No caso na mineração, petróleo e gás, a dinâmica é a de
economia de enclave. As empresas desembarcam nos territórios, desarticulam a economia
existente e reorientando-a em torno de sua presença. As empresas disputam os recursos, ou
os destroem e contaminam, como acontece com a água. (MARCELINO; FARIA;
MORENO, p.13)
Esse processo de avanço do capital sobre os territórios, significa a expulsão e
deslocamento de populações tradicionais, como populações ribeirinhas, quilombolas e pequenos
agricultores, aumentando o nível de pobreza entre essas populações e modificando a relação delas
com a família, com a terra e com o trabalho. Ou seja, a partir do apontado por Marcelino, Faria e
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Moreno, podemos ver de forma concreta como as atividades desenvolvidas em nome do
desenvolvimento, tanto não incluem as mulheres, como pioram as suas vidas, aumentando as
responsabilidades das mulheres perante a família, as empurrando para o subemprego e diminuindo a
possibilidade de construção de uma autonomia financeira das mulheres perante os homens.
Os processos de construção de barragens geram impactos negativos nas vidas e corpos
das mulheres, segundo a cartilha “O modelo energético e a violação dos direitos humanos na vida
das mulheres atingidas por barragens” (2011) produzida pelo MAB, no processo de décadas de
construção das barragens, foi consolidado não só um método de construção, mas também um
método de violação de direitos. Nas palavras da militante Frida,
Nas regiões onde existe a construção das barragens, há muitos direitos negados, direitos
violados e na maioria das vezes as mulheres que estão lá nas comunidades, lá nas regiões,
são as que tem mais os seus direitos negados. E nós, dentro do movimento, com um
trabalho mais intencional, tem tentado fazer com que as mulheres se deem conta desse
processo, naquela região (de construção de barragens) há todo um processo de exploração e
de negação de direitos e a gente quer cada vez mais deixar claro, para as mulheres
atingidas, para as mulheres ribeirinhas, pescadoras, com as mulheres jovens que esse
processo com elas é ainda maior.
No caso das mulheres, o que tem acontecido, via de regra é que há um retrocesso brutal
nas condições de vida, seja no aspecto do trabalho, na produção e vivência cultural das pessoas, seja
nas áreas sociais, como educação e saúde. Para exemplificar como as mulheres são afetadas de
forma diferente no processo de construção das barragens, usaremos o levantamento feito por
Marcelino, Faria e Moreno (2013, p. 19) na construção da barragem de Belo Monte.
A divisão sexual do trabalho é uma marca dos empregos gerados na construção das
hidroelétricas. Dos 22 mil trabalhadores contratados no Consórcio Belo Monte, apenas 12%
são mulheres. O salário mais baixo pago aos homens gira em torno de R$ 1.200,00,
enquanto as mulheres ganham entre R$800,00 e R$1.000,00; nos empregos de limpeza dos
alojamentos e escritórios.
Ainda segundo a cartilha “O modelo energético e a violação dos direitos humanos na
vida das mulheres atingidas por barragens” (2011) o próprio reconhecimento da mulher enquanto
atingida é mais difícil, pois a maioria das empresas responsáveis pela construção das barragens usa
o conceito patrimonialista de atingido, onde só quem é o (a) proprietário(a) da terra ou do imóvel é
considerado atingido e tem poder de decisão sobre as questões de indenização e reassentamentos.
Pela própria condição de subalternidade histórica que marca a vida das mulheres, poucas são as
mulheres atingidas que são proprietárias das terras, isso faz com que as mulheres tenham os seus
direitos ainda mais restringidos e impõe um limite claro de poder, para as mulheres, sobre suas
próprias vidas e destinos.
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Muitas vezes, as mulheres são vítimas preferenciais de chantagens e pressão por parte das
empresas construtoras e, outras vezes, não são consideradas como interlocutoras legítimas
no processo de negociação. Além disso, por sua condição de dependência econômica com
relação à família, acabam não sendo reconhecidas como atingidas e, por consequência, têm
seus direitos negados. (MAB, 2011, p. 17)
Mais um aspecto da construção das barragens que afeta diretamente a vida das mulheres
é o crescimento da prostituição, da exploração sexual e dos estupros nas áreas onde elas são
construídas, a ida de muitos homens para as obras têm relação direta com isso. De acordo com o
relatório da Plataforma DHESCA, na construção da barragem em Porto Velho registrou-se um
aumento geral nos índices de violência após o início das obras. A quantidade de crianças e
adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual subiu 18% e o número de estupros cresceu
208% entre 2007 e 2010.
Ainda segundo dados da Plataforma DHESCA, agora referente as obras de Belo Monte,
entre 2010 e 2011, houve um aumento dos crimes sexuais em 18,75% nos 11 municípios
impactados pelas obras entre 2010 e 2011; na cidade de Altamira, houve um aumento de 75%. Foi
onde houve o maior impacto, o maior recrudescimento da situação de exploração sexual ou de
violência sexual nesses municípios. As meninas têm começado sua vida sexual mais cedo e a
gravidez na adolescência aumentou. E os homens se sentem livres para abandonar as mulheres e os
filhos.
Além da elevação nos números de violência sexual, o índice de prostituição também
cresce de forma exponencial, tendo muitas vezes relação direta com as próprias construtoras, que
em alguns casos chegam a disponibilizar um “vale-crédito” para os seus funcionários, que
apresentassem melhor desempenho nas obras, gastarem nos bordéis da cidade. Durante a construção
de uma barragem em Rondônia, a maioria das mulheres que eram encontradas nos bordéis tinham
entre 13 e 17 anos e os “programas” com estas meninas e também com as mulheres adultas podiam
ser feitos por até 30,00 reais.(MAB, 2011)
O que se pode concluir de todos esses dados é que as mulheres são vistas nessas
situações de duas formas: primeiro como uma forma de amenizar as extenuantes condições de
trabalho, vividas pelos operários, sendo completamente despropriadas de si mesma, e segundo
como mais uma parte do território que pode ser violado, vendido e comprado.
A partir da banalização da sexualidade feminina, a mulher vai ser apresentada como
uma “extensão” do objeto a ser comercializado, deste modo, como objetos ou mercadorias, no plano
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do sexo as mulheres passam a ser apresentadas como disponíveis e pertencentes aos homens. Esse
processo é o que Guillaumin (GUILLAUMIN apud CISNE, 2013, p. 150),vai chamar de
apropriação,
“Guillaumin [...] explica muito claramente que as relações de classe social, organizadas em
torno da exploração, se situam em um plano material diferente das relações de sexo e de
‘raça’, organizadas em torno da apropriação. A apropriação afeta a pessoa como um todo,
corpo e ‘alma’ sem medida, enquanto que a exploração afeta somente a força de trabalho,
mensurada por peça ou em horas. Guillaumin igualmente relatou que existiam dinâmicas
históricas de transformação da apropriação para a exploração. Em particular, segundo ela, a
capacidade de recuperar uma parte de sua força de trabalho para vendê-la no mercado,
graças ao enfraquecimento da apropriação individual (tanto nas relações de escravidão
como de sexagem) permite escapar em parte da apropriação (sobretudo individual, ressalta-
se mais uma vez). É igualmente o que analisaram Juteau e Laurin ao afirmarem que o
assalariamento feminino foi organizado pela apropriação coletiva”
A partir disso, podemos afirmar que as mulheres, principalmente as mulheres negras,
passam por um processo de negação de si mesmas, que vai para além da exploração do capital,
afetando-as no plano material, econômico, simbólico e cultual de forma coletiva e organizada dos
homens e estruturas patriarcais sobre suas vidas e corpos.
No Ceará, as formas de opressão sobre a vida das mulheres causadas por esse modelo de
desenvolvimento, apesar das peculiaridades, não se reproduz de forma tão diferente do resto do
país. A militante Olga nos conta que a violação dos corpos das mulheres faz parte da sua memória
em relação a construção da barragem do Castanhão.
Aqui, apesar de ser uma experiência diferente dos outros locais, mas em relação a violação
de direitos é sempre a mesma coisa. Na minha comunidade eu via muito as meninas que
engravidavam dos, que a gente chama de barrageiros3, e aí eles enganavam elas, prometiam
várias coisas, elas engravidavam e depois eles iam embora, abandonavam e ficavam as
meninas bem novinhas, com filhos e sem ter condições nem de se manter e ainda sendo
expulsas de suas casas. Na época, o número de cabarés também cresceu, era normal vê as
meninas se prostituindo, as mães todas ficavam muito preocupadas.
A partir da fala da Olga, é possível perceber que existe um padrão no processo de
violação dos direitos das mulheres e que elas além de serem atingidas pela chegada da barragem e
com a violação dos seus territórios, elas sofrem de forma aguda com o avanço desse sistema sobre
as suas vidas.
Apesar do forte impacto que a construção das barragens impõe a vida das mulheres, elas
também encontram formas de resistência, entre as mulheres entrevistadas foi apontado a própria
militância no MAB e a aproximação com as pautas do feminismo, ou seja, a participação política,
3 Barrageiros é um termo utilizado pelas militantes do MAB e integrantes das comunidades atingidas para se referir aos homens que
vem de fora para trabalhar na construção das barragens.
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como principal estratégia de reivindicação de direitos e para a construção de uma outra sociedade.
Nas palavras da militante Jana Barroso,
Saber, conhecer, estudar e construir o feminismo é algo muito importante para nós
mulheres atingidas, por quê ao conhecer você se reafirma enquanto mulher, você se
reafirma enquanto companheira, enquanto militante social. Eu acho que o feminismo ele é
essencial, como a gente sempre coloca “Sem feminismo não há socialismo”, sabendo que
essa luta das mulheres, que vem quebrando barreiras ao longo dos anos, mas que a gente
ainda vê o quanto ainda é forte essa questão do machismo, do preconceito contra as
mulheres, o quanto a gente ainda é oprimida em todos os espaços. Eu enquanto mulher,
vejo o quanto é importante a gente se apropriar das pautas do feminismo para se
autoafirmar. (…) Além de entender o feminismo, a gente tem que praticar, para que cada
vez mais a gente se aproxime de uma outra sociedade.
A partir do apontado por Jana Barroso, podemos perceber que o feminismo além de se
apresentar como forma de participação política, também se apresenta como uma possibilidade para
que as mulheres iniciem um processo de apropriação de si, se reconhecendo enquanto sujeitos de
transformação coletiva e enquanto donas de si e não como mais um pedaço do território que pode
ser usado e apropriado pelo capitalismo-racista-patriarcal.
Considerações finais
Tentar traçar uma linha entre modelo de desenvolvimento e a vida das mulheres não se
configura como tarefa fácil, pois ainda predomina um intencional afastamento delas dos temas
macroestruturais, tornando temas como economia e política pretensamente neutros quando dizem
respeito a forma com que as mulheres atuam e são atingidas por eles.
Porém, partindo do entendimento que não só o capital é estrutural nessa sociedade, mas
também as relações sociais de sexo e raça, observaremos que não podemos fazer os debates
macroestruturais sem entender que a classe também tem sexo, sexualidade, raça e etnia, ou seja,
essas relações têm que ser entendidas de forma consubstancial e coextensiva. A partir disso
podemos concluir que as mulheres, principalmente as negras, vão sofrer de forma mais intensa com
os avanços do capital sobre as suas vidas, pois, também serão afetadas com o peso do racismo e do
patriarcado.
Sem a intenção de esgotar o assunto debatido aqui, podemos perceber que as mulheres
tanto servem a manutenção do modelo de desenvolvimento do capital, tendo seu trabalho
apropriado e desvalorizado gerando lucro, como também vão ser vistas como mais uma mercadoria
que pode ser vendida e/ou violada. Entendendo as mulheres como as mais atingidas por esse
modelo de desenvolvimento e também como sujeito político com enorme potencial transformador,
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consideramos urgente a construção de práticas de resistência no qual o combate ao capital caminhe
com a mesma força e intensidade que o combate as outras formas de opressão que estruturam essa
sociedade.
Para romper com esses limites dentro e fora das organizações de esquerda, acreditamos
no processo de auto-organização das mulheres e na aproximação delas com o feminismo como algo
fundamental, coisa que também pudemos observar nas falas das militantes entrevistadas. Aqui
concordamos com Cisne (2014, p. 256)
Esse processo de auto-organização desconstrói o sistema patriarcal do ser mulher nessa
sociedade. Um ser que, marcado pela ideologia da natureza, abnega-se, em grande medida,
e é voltado para o outro ainda que em detrimento de si. Processo esse que leva a mulher a
ser apropriada pelo outro, o qual deve subserviência, conduzindo-a a perda de autonomia
sobre si, sobre o seu corpo e a sua vida. Assim, se para um trabalhador é difícil romper com
a ideologia burguesa para a formação de uma consciência revolucionária, para uma mulher
há ainda um passo anterior e talvez, mais difícil: percebe-se como sujeito e reapropriar-se
de si.
A partir do que Cisne (2014) nos traz e do percebido durante a realização desse trabalho,
concluímos, que as mulheres têm um duplo desafio, romper primeiro com a ideologia patriarcal que lhe
afasta de si mesma, para assim seguir na tarefa de se libertar da ideologia burguesa. Sendo assim, os
movimentos sociais de esquerda que se comprometem com a libertação das mulheres como um eixo central
da sua ação e atuação têm que tomar como base esse duplo desafio que recai sobre elas, trabalhando para
superá-los.
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The Progress of the capital developmente model on the life of women: A reflection from the
militants of the movement of those affected by dams (MAB) of Ceará.
ABSTRACT: Understand the historical process of oppression of men over women in order to
deconstruct this relationship and how to uncover the social relations of gender reproduce the most
diverse spaces, it is one of the aspects necessary to build a society of free and emancipated people.
From this, the present work aims to discuss about the progress of capital and its development model
over the territories and the lives of women, from the perception of women affected by dams that
make up the state coordination of the Affected Movement of Dam ( MAB) of the state of Ceará.
Keywords: Development. Women. Movement of Suffering by Dams.
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