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Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
INTERDISCIPLINARIDADE E AMBIENTE
Selene Herculano selene@vm.uff.br
www.professores.uff.br/seleneherculano
"Eu sou pluralista...Quando se fala da psiquiatria, da medicina, da gramática, da biologia, da economia, de que se fala? Que são estas curiosas unidades que se acredita poder reconhecer ao primeiro olhar, mas em relação às quais ficaríamos bem embaraçados para definir os limites?... Unidades que se mantém obstinadamente depois de tantos erros, tantas novidades, tantas metamorfoses, que sofrem às vezes mutações tão radicais que se teria dificuldade em considerá-las como idênticas a elas mesmas...
Michel Foucault1
"O que observamos não é a natureza propriamente dita, mas a natureza exposta ao nosso método de questionamento".
(Heisenberg, W. apud F. Capra)
Introdução
Este texto é uma versão ampliada e revista de um artigo publicado em 2000. Aqui
enfocamos as formas de conhecimento, as classificações dos saberes e das ciências, suas
inter-relações, as propostas de convergência e síntese.
A defesa da interdisciplinaridade e sua construção paulatina ganharam corpo com a
questão ambiental. Sua defesa situa-se em um ponto de confluência entre, de um lado, a
questão epistemológica/metodológica e, de outro, o princípio da gestão social e participativa
da coisa pública.
No que tange à questão epistemológica/metodológica, focalizamos as propostas de
se sentarem cientistas de diversas áreas de procedência, em regime de colaboração e de
socialização de chaves conceituais, dados e informações para o melhor entendimento de
uma realidade complexa e da melhor forma de nela intervir. São propostas ora afinadas com
a busca de uma alteração paradigmática, conforme sugerida por E. Morin, da passagem do
“paradigma da simplificação” (“conjunto de princípios de inteligibilidade próprios da
cientificidade clássica e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção
simplificadora do universo físico, biológico, antropossocial”) para o paradigma da
complexidade, defendido por ele como o “conjunto de princípios de inteligibilidade que,
ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do
universo físico, biológico, antropossocial” (MORIN, 1990:330). A operacionalidade desta
1 Foucault, M. Resposta a uma questão. In: Epistemologia. A teoria das ciências questionada por Bachelard, Miller, Canguilhem, Foucault. ( Rio, Tempo Brasileiro, n. 28, jan/mar 1972)
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
busca tem-se dado através da tentativa de construção da interdisciplinaridade. Até que ponto
isto vem sendo conseguido é um dos aspectos que enfocaremos aqui.
Quanto ao princípio da democracia participativa, da gestão social da coisa pública,
dele se depreende a necessidade de se baixarem as barreiras que separam o conhecimento
científico do saber do senso comum, das experiências vividas pelo cotidiano da população,
valorizando o seu saber prático no trato com os seus problemas e advogando pela
colaboração entre cientistas e cidadãos: o popular detém um saber prático que técnicos e
governos não têm acerca dos efeitos inesperados das políticas e decisões sobre suas vidas
cotidianas. A questão da necessidade da participação popular em processos decisórios pode
ser exemplificada de diversas formas: em estudos ambientais sobre externalidades sofridas
pela população mais vulnerável, que não é ouvida quando da alocação de indústrias ou de
depósitos de resíduos perigosos, nem nos seus reclamos sobre os seus efeitos sobre sua
saúde; em estudos sobre a aplicação do orçamento-participativo e sobre, de forma mais
genérica, a criação de metodologias para a gestão social da coisa pública, para a
transparência da atuação dos governos.
O reconhecimento de uma sabedoria popular vem sendo introduzido no debate
epistemológico através de propostas diversas, que serão aqui enfocadas, como a de
Funtowicz & Ravetz sobre a “ampliação da comunidade de pares” e a de Irwin, sobre a
construção de uma “ciência-cidadã”, uma ciência que atenda às necessidades e problemas
dos cidadãos e que aproxime experts e cidadãos. E que tem também a ver com o que Morin
chamou de “Ética cívica e humana”, que ultrapassa uma Ética do conhecimento para que se
possa atender à necessidade de se “dominar o domínio” (MORIN, 1998:36).
O paradigma da complexidade e a ampliação da comunidade de pares trazem
aspectos desafiantes e promissores, bem como algumas linhas de tensão, confusões e
mesmo ingenuidades. Pretendemos aqui iniciar o exame de alguns destes aspectos, como,
por exemplo:
1 – tendências e impasses da volta da busca por uma síntese, par a par com o
intensíssimo aprofundamento das especializações: como operacionalizar o paradigma da
complexidade?
2- o relacionamento de dois campos científicos – os da natureza e os sociais – que,
na história da metodologia científica, sempre apareceram em relações hierárquicas (com o
bem conhecido e histórico sentimento de inferioridade das ciências sociais vis à vis as
ciências da natureza, bem como com as bem conhecidas e já anedóticas atitudes a respeito
de profissionais das ciências da natureza que se arrogam a competência para a temática
social, sem maiores investimentos em estudos);
3- a linha divisória entre o que é ciência social e o saber do homem leigo que,
membro da sociedade e a partir das suas próprias percepções e vivências, cria sua matriz
interpretativa: em que o saber deste homem comum, membro da sociedade e aprendendo
sobre ela nas suas vivências, está aquém do conhecimento sistematizado pelo sociólogo? O
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que este último acrescenta ao senso comum e para além dele? Aqui a questão oscila entre
uma certa arrogância de cientistas que desqualificam o saber comum e a atitude oposta, de
vezo romântico e populista, de valorizar apenas o senso prático em detrimento das
observações sistematizadas e desencantadas do cientista social.
Bourdieu criticou o que chamou de "sociologia espontânea" e sua visão dos
problemas sociais vistos pelo prisma do senso comum; criticou a ilusão do saber imediato e a
fé na “tríade mítica” dos pesquisadores empiricistas-positivistas em arquivos, dados e
computadores. Mas ele sublinhou a necessidade de irmos ao banal, ao cotidiano, procurando
objetos a propósito dos quais se possam colocar problemas bem genéricos, assim
enxergando através do pontual, do imediato, as disposições duráveis que funcionam como
matrizes de percepções, de julgamentos e de ações. A história social da miséria, por
exemplo, ele a faz indo ao encontro de miseráveis e do seu cotidiano na periferia pobre de
Paris, ouvindo-os, resgatando suas histórias, trajetórias, percepções e vendo nelas o
epifenômeno de algo mais amplo, a concretização das políticas neoliberais globais. No
enfoque de Bourdieu, o homem comum não é o agente direto com sua fala reflexiva, como
em Habermas, mas ele é mediado pelo sociólogo bem-treinado e sensível, que sabe ler além
das circunstâncias do agente. O pesquisador revela “as coisas enterradas nas pessoas que
as vivem e que não as conhecem e que também conhecem melhor do que ninguém”
(Bourdieu, 1998: 708).
Assim, abordaremos a relação entre: 1) ciência e senso comum; 2) ciências da
natureza e ciências sociais; 3) os passos de todas na busca de convergência e até de
síntese e se esta é possível e desejável.
O homem foi à lua, fármacos e novas técnicas da medicina ampliam a vida,
inovações nas tecnologias de comunicação deixam o saber e a informação ao alcance
imediato. Podemos ter hoje mais conforto, conhecimento e liberdade que o mais poderoso
dos reis do passado. Por outro lado, desde os anos 70 vivemos também questionamentos e
certo ressentimento em relação à ciência e à tecnologia por conta dos problemas ambientais
que causam e das incertezas que trazem. Saberes e técnicas tornam o mundo melhor e
também o ameaçam de maneira inaudita. São niveladores sociais e também criam novas
hierarquias. Seria possível vir a desvencilhar-se a ciência do poder?
O processo plural e contingente do conhecimento:
Eis algumas argumentações contemporâneas que apontam para o processo plural e
contingente de construção do conhecimento, para a necessidade da cooperação e
integração entre formas de saberes e ciências:
Habermas, a razão dialógica na ação comunicativa e a intersubjetividade de concordância;
Maturana & Varela e a importância da aceitação dos outros como fundamento do conhecimento;
Popper e a lógica situacional;
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
Funtowicz e a comunidade ampliada de pares.
Para Habermas a verdade e a razão são construídas pelo diálogo, emergem do
diálogo e moram na praça pública, no mundo da comunicação discursiva. Não são um a
priori, como pensava Kant, algo com o qual nascemos, nem são históricas, no sentido de
evoluírem histórica, progressiva e teleologicamente, como dizia Hegel. A racionalidade
comunicativa, construída no diálogo, diz respeito à esfera do mundo vivido, onde estão,
segundo Habermas, os chamados alternativos, os verdes, as mulheres, os jovens, etc..., que
procuram vias alternativas de participação e de reconstrução do mundo. Tais alternativos
seriam os agentes daquilo que Habermas denomina um "reformismo radical" e vivenciariam
novas crises, que estariam além da contradição entre forças produtivas e relações de
produção. Habermas modifica e amplia o sujeito revolucionário marxista, que não mais seria
o proletariado fabril. O processo de mudança também se altera: não mais é pensado o plano
de preparação para o dia "D" de tomada do palácio de governo. Torna- se um processo
cotidiano. Tal mundo vivido contrapõe-se ao mundo enquanto sistema, seus poderes
instituídos, suas expertises, que sempre tenta colonizar o primeiro.
Racionalizar, para Habermas, significa cancelar as relações de coerção, superar as
comunicações sistematicamente distorcidas e encontrar o que chama de "intersubjetividade
de concordância" (HABERMAS, 1990:34). Assim, as estruturas da racionalidade não
estariam dadas apenas pelas tecnologias, estratégias, organizações, mas estariam
dependentes de novas estruturas normativas, de um agir comunicativo.
Na ação comunicativa, os participantes seguem seus planos em acordo mútuo,
sobre a base de uma definição comum da situação; a ação social parte, portanto, da
negociação da definição da situação. A ação comunicativa se contrapõe à ação estratégica:
a primeira se orienta para o entendimento mútuo, a segunda para o sucesso, para a
concorrência e a competição.
"Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as consequências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta então das faixas de interesses dos participantes. Ao contrário, falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas... o modelo estratégico da ação pode se satisfazer com a descrição de estruturas do agir imediatamente orientado para o sucesso, ao passo que o modelo do agir orientado para o entendimento mútuo tem que especificar condições para um acordo alcançado comunicativamente sob as quais Alter pode anexar suas ações às do Ego".(HABERMAS, 1989:164,165)
Na ação estratégica os atores se comunicam para alcançar poder ou influência sobre
o outro e/ou através do outro e não com o objetivo de chegar a um consenso, a um
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entendimento último. A ação estratégica é assimétrica e vertical, é racional com relação a
fins. Já a ação comunicativa é simétrica, horizontal, e só pode ser racionalizada em seu
aspecto prático-moral, necessitando, portanto, do cancelamento das relações de coerção. A
ação comunicativa, onde se dá a construção da razão dialógica, só é possível num diálogo
entre iguais, no qual a estrutura de dominação que permeia a situação de diálogo seja
desmontada.
Maturana & Varela (1994) discordam da perspectiva que define o conhecimento como
fundamentado na apreensão de traços característicos pertinentes a um mundo pré-dado, que
é decomposto em fragmentos, perspectiva que deixa de perceber a autonomia de um ser vivo
que cria significados e sentidos. Discordam também do voluntarismo construcionista,
solipcista, que afirma que o organismo inventa e constrói o mundo à sua vontade. Para esses
autores, que unem os aspectos biológicos e cognitivos, o animal e o meio ambiente são como
duas faces do mesmo processo através do qual objeto e sujeito do conhecimento se
especificam mutuamente. Segundo eles, a Biologia nos mostra que o caráter único do ser
humano reside exclusivamente no acoplamento estrutural e social que tem lugar graças à
linguagem e que engendra regularidades próprias à dinâmica da vida social humana. O
fenômeno do conhecimento não pode ser abordado como se existissem "fatos" ou objetos
exteriores a serem estocados em nossa cabeça. Há uma identidade entre cognição e ação. A
experiência de cada coisa exterior é validada de maneira particular pela estrutura humana,
que torna possível a "coisa" que surge da descrição. Há uma circularidade e uma conexão
entre ação e experiência. Cada ato de conhecimento faz emergir um mundo: "toda ação é
conhecimento e todo conhecimento é ação". Tudo que é dito, é dito por alguém. Ou seja, há
uma inseparabilidade entre o modo de ser particular e a maneira pela qual o mundo nos
aparece.
Maturana & Varela concluem que devemos estar sempre vigilantes em relação à
tentação das certezas: a certeza não é uma prova da verdade. O mundo que cada um pode
ver não é o mundo, mas um mundo. Isto implica em uma ética, cujo ponto de referência está
na estrutura biológica e social dos seres humanos e que coloca a reflexão humana no centro
de todo fenômeno social. Se soubermos que nosso mundo é necessàriamente o mundo que
fazemos emergir junto com os outros, cada vez que estivermos em conflito com um outro ser
humano com quem desejamos continuar a coexistir, devemos ver que a certeza dele -
embora tão indesejável quanto possa parecer - é tão legítima quanto a nossa.
Maturana e Varela arrematam que existe uma fundamentação biológica dos
fenômenos sociais, que eles chamam de amor, ou de aceitação de outras pessoas a nosso
lado em nossa vida cotidiana, o que nos faz ampliar nosso domínio cognitivo. Tudo aquilo
que mina nossa aceitação dos outros, seja competição, posse da verdade ou certezas
ideológicas, mina o processo social porque mina o processo biológico que o engendra.
Portanto, o cerne de nossos problemas atuais, segundo os autores, está na nossa ignorância
relativa ao próprio ato do conhecimento. Precisamos não do conhecimento, mas do
conhecimento sobre o conhecimento, o que implica na percepção da responsabilidade dos
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nossos atos cotidianos, tendo em vista que todas as nossas ações participam do processo
que consiste em fazer emergir onde nos tornamos o que nos tornamos juntamente com os
outros.
Maturana e Varela focalizaram a construção do conhecimento na relação entre
sujeito e objeto. Sugerimos aqui acrescentar a esta análise a condição social daquele que
conhece, para insistir na pluralidade de mundos e ângulos percebidos: se cada ato de
conhecimento faz emergir um mundo, e se o conhecimento é ação mais experiência,
podemos inferir que os mundos conhecidos variam em função do sujeito que os apreende.
Tal afirmação nos faria cair no solipcismo e relativismo se não acrescentássemos que a
realidade total construída ou apreendida será a resultante, todavia sempre incompleta, do
conjunto complexo dos diferentes atos de conhecimento dos diferentes sujeitos em suas
diferentes condições sociais (culturais, econômicas, etc…).
O matemático, físico, filósofo e cientista social Karl Popper afirmou (1978) que a
verdade não é a correspondência exata entre uma idéia ou conceito e a realidade. Para ele o
conhecimento, a ciência, não começam por um processo indutivo, observando coleções de
fatos, mas começam por problemas, pela tensão entre conhecimento e ignorância. O ponto
de partida é sempre um problema. O método de solucionar problemas na ciência é o método
da experimentação, do ensaio e erro. Não há ciência objetiva, não há isenção de valor, o
caráter indutivo das ciências naturais é um mito, o cientista natural não é mais objetivo do
que o cientista social, a objetividade científica é um constructo. O que passa por sendo
objetividade é uma tradição de crítica recíproca entre cientistas. A objetividade está no
caráter público e social da ciência, dela ser testada por terceiros. Popper propõe uma
metodologia para as ciências sociais: a lógica situacional, que consiste em analisar a
situação social dos homens para explicar sua ação com a ajuda da situação. Nesta lógica
situacional, há um mundo físico e um mundo social, com suas instituições, que agem sobre
nós e sobre os quais agimos. Popper assim abre espaço para a atividade interdisciplinar e
democrático-participativa no exame de problemas e propostas de soluções.
Funtowicz & Ravetz (1997) nos dizem que a visão tradicional de ciência como um
conhecimento seguro e um controle eficiente sobre o mundo natural vem sendo modificada,
introduzindo-se os conceitos de incerteza, de complexidade e de qualidade. A ciência hoje é
vista como algo que coloca em confronto complexidades, que lida com incertezas e defronta
decisões tecnológicas e ambientais urgentes, tanto em escala global quanto local. Assim,
neste contexto novo e amplo, o controle da qualidade dos resultados das pesquisas não
pode mais ser delegado a comunidades de especialistas, o diálogo deve ser estendido a
todos os afetados por uma questão, desde que estejam comprometidos por um debate
genuíno. A isso chamam de "comunidade ampliada de pares". Esta nova comunidade seria o
agente de saber de uma “ciência pós-normal”, que busca resolver problemas advindos de
riscos e do meio ambiente, caracterizados por fatos incertos, valores controvertidos, apostas
elevadas e decisões urgentes. A ciência pós-normal não substitui as formas tradicionais de
ciência, nem contesta a perícia técnica dos especialistas, mas incorpora o diálogo com os
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leigos - membros da comunidade em questão, ecologistas, advogados, jornalistas -
necessários para a transmissão de habilidades e para a garantia de resultados.
As quatro formas de conhecimento; ciência e senso comum, uma relação antagônica
ou complementar?
Os compêndios de Epistemologia e de Metodologia das Ciências classificam as
quatro formas possíveis através das quais nós, seres humanos, portanto racionais,
apreendemos o mundo à nossa volta e construímos uma explicação sobre ele. As formas do
conhecimento humano são:
1. O conhecimento popular ou senso comum: a doxa
2. O conhecimento mágico-religioso: os mistérios, o dogma
3. O conhecimento filosófico, reflexivo: a metafísica, a dúvida
4. O conhecimento científico: a teoria
1 - o conhecimento popular, ou do senso comum, está baseado na experiência concreta e
imediata das nossas vidas particulares e na sua transmissão uns aos outros e às demais
gerações através da cultura popular. Esta forma de conhecimento, segundo os gregos
clássicos, formaria a doxa, a opinião. Para o filósofo Platão (século IV a.C.), a doxa é a
ambiguidade, é falsa, ela "enrosca e gira" e não conduz à verdade (a alethéia), ao verdadeiro
objetivo do conhecimento (a teoria), que seria desvendar a verdade essencial que se oculta
por trás da aparência dos fenômenos. Platão, um filósofo aristocrático que sonhava com uma
sociedade guiada e administrada pelos mais sábios e mais virtuosos, pelo rei-filósofo, via a
doxa como o resultado falso e enganoso dos ardis dos sofistas e seus exercícios de retórica
persuasiva.
A alegoria da caverna, contida na República de Platão, é um bom exemplo de como
o conhecimento falso, do senso comum, é representado como algo oposto ao conhecimento
verdadeiro, obra dos filósofos: imaginemos uma caverna, dentro da qual homens
acorrentados e de costas para a sua entrada vêem as sombras do mundo lá de fora
projetadas sobre a parede ao fundo. Para eles, tais sombras aparecem como sendo reais.
Mas um dia, imaginemos que um desses homens se solta, sai da caverna, contempla a luz,
as essências e desvenda a realidade lá de fora. Aí começa a sabedoria, na contemplação
deste mundo real na sua essência, depois de se ter libertado dos limites do ilusório, da
projeção, do mundo aparente. O que acontece quando esse ser iluminado volta aos seus
companheiros e tenta dizer-lhes que as sombras que pensam ser a realidade são apenas
sombras?
"Figura-te agora o estado da natureza humana em relação à ciência e à ignorância sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda a extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhe estão adiante. presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho
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escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes a mola dos bonecos maravilhosos que lhes exibem ... Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro. com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretém em conversa, outros guardam silêncio ... Supondo-se que se pusessem a conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes das próprias representadas? ... E se um eco lhes repetisse as palavras dos que passavam, não julgariam certo que os sons eram articulados pelas sombras dos objetos? Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilavam... Vejamos agora o que aconteceria se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro que laboravam. Imaginemos um desses cativos desatados, obrigado a levantar-se de repente, volver a cabeça a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer isso sem grande pena; a luz, sendo-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-o de discernir os objetos cuja sombra antes via... Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? ... Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o libertar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? ... O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla, é a alma que se eleva ao mundo inteligível ... Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se nos impõe à razão como a causa universal de tudo que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos. (Platão, A República, Livro VII)
É em defesa da doxa, do senso comum, que militantes das esquerdas e ecologistas
críticos do cientificismo moderno defendem o conhecimento tradicional das etnias e das
classes sociais subalternas, que vem sendo espezinhado e extinto pelo mundo moderno,
científico. Ou roubado pelos cientistas, que isolam princípios ativos da fauna e flora
amazônica às quais são apresentados pelas populações tradicionais locais. Por outro lado, o
senso comum, apartado das informações científicas, provoca acidentes como o do Césio 137
(em Goiânia, em 1986), ou do envenenamento pelo uso doméstico do óleo ascarel (Rio de
Janeiro).
2 - Uma segunda forma do conhecimento humano é o mágico-religioso, cuja lógica
explicativa se concretiza no dogma, algo no qual se acredita por uma razão de fé, sem
comprovação ou experiência direta. Para os pensadores positivistas do século XIX, o estágio
teológico era uma das fases anteriores e inferiores das sociedades e do conhecimento.
Marilena Chauí (1995) destaca dentre as finalidades da religião a busca de orientação contra
o medo que temos da natureza, buscando forças benéficas contrapostas às forças maléficas
e destruidoras, além de, através da religião, construirmos explicações para a origem, forma,
vida e morte de todos os seres e dos próprios humanos.
No conhecimento mítico-religioso, porém, tendemos a estabelecer falsas relações
entre os fenômenos, a ter uma visão anímica da natureza (as forças da natureza como seres,
animadas como almas), a estabelecer correlações estapafúrdias. (Entre os Aztecas,
sacrificava-se ao deus da chuva as crianças que nascessem com o cabelo em redemoinho,
sinal de que pertenceriam às forças míticas das águas, vitais e difíceis para um povo
habitante de um solo semiárido com o de Yucatán).
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
O conhecimento mítico-religioso é criticado por ter a ver com o fabuloso, com o
imaginário, com as invencionices e ilusões, mas é também celebrado como algo arquetípico,
que remonta ao inconsciente coletivo, algo místico e que, curiosamente, continua presente
na liturgia do conhecimento científico. (Lembremo-nos também que o Positivismo, método de
celebração ao Cientificismo, acabou curiosamente como catecismo e como religião da
humanidade). Para o antrópologo Lévi-Strauss, que estudou a estrutura do pensamento
selvagem, não se deveria colocar a magia (o dito conhecimento selvagem) e a ciência (o
conhecimento moderno) como opostos, ou como hierarquizados: melhor seria colocá-las em
paralelo, como duas formas válidas de explicar o mundo e classificá-lo.
Por outro lado, o conhecimento dogmático-religioso tem se caracterizado
historicamente pela intransigência, intolerância, prepotência e arrogância através das quais
os privilégios do monopólio do direito de interpretar o mundo são defendidos pelos seus
sacerdotes. Além do célebre caso da excomunhão de Galileu Galilei, a história da ciência
ocidental está cheia de exemplos da violência e da arbitrariedade através das quais a igreja
tentava coibir as heresias e a ousadia de pensar autonomamente. A este propósito, Carlo
Ginzburg conta-nos, em seu livro O Queijo e os Vermes, a história verídica de um moleiro
dos arredores de Montereale, perseguido pela Inquisição, denunciado por heresia e
impiedade por ter criado uma cosmogonia, isto é, um modelo explicativo para o surgimento
do mundo e seu funcionamento a partir de uma analogia com o seu próprio universo
conhecido, o dos queijos e seus vermes:
"Eu sou sapateiro, você moleiro, e você não é culto. Sobre o que é que vamos discutir? As
coisas da fé são grandes e difíceis, fora do alcance dos moleiros e sapateiros". (Ginzburg, 1987, p.41)
Mas Menocchio insistia, obcecado por ser ouvido e passar aos demais a sua visão
interpretativa do mundo à sua volta:
"Se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas, falaria tanto que iria surpreender. Depois, se me calassem, não me incomodaria." (op.cit, p. 235)
O próprio procedimento científico contemporâneo, tão celebrado em sua
racionalidade, guarda traços litúrgicos e até dogmas de fé que relembram a religião e seus
mistérios. O economista e ex-ministro Delfim Netto já apontou para esta presença, ao criticar
o que ele mesmo denominou de "a mística do mercado":
"Depois das maluquices e estrepolias feitas por "economistas" a partir da pajelança que se chamou Plano Cruzado, aconteceram dois fatos interessantes: 1) generalizou-se a idéia de que os economistas são agentes do mal e que é melhor dispensá-los e 2) generalizou-se a idéia de que o "mercado" é uma instituição religiosa, capaz de produzir o bem, a despeito dos homens maus, o que deu margem a um substancial aumento da crença de que o Estado sempre produz o mal. (...) A inocência com que certas pessoas acreditam na mística do mercado e do Estado mínimo revela, apenas, um dos traços da personalidade brasileira, a sua profunda religiosidade. (...) (Antonio Delfim Netto, A Mística do Mercado, Folha de São Paulo, 19/6/91).
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3 - A terceira forma do conhecimento humano é o conhecimento filosófico, reflexivo, que
pode ser definido como um conhecimento não-experimental, que duvida e que especula
sobre as essências e as causas últimas, tendo por principais objetos de reflexão a própria
construção do conhecimento - uma epistemologia, uma cosmogonia - e uma ética, ou teoria
da ação moral. Para Aristóteles (384 a.C.), a filosofia, com este cunho teórico-especulativo,
refletia sobre a physis (o mundo), produzindo uma sabedoria - sophía - que hoje estaria
próximo à teologia, à psicologia e à física. Seria, ainda segundo Aristóteles, algo diferente
das ciências práticas, ou filosofia ativa (a Ética, a Política e a Retórica), que produzem não a
sabedoria - sophía - mas o discernimento - phronésis. A sabedoria seria uma contemplação
sobre aquilo que não podemos modificar, enquanto que o discernimento diria respeito ao que
podemos modificar. (Abaixo da filosofia e do discernimento estariam, para Aristóteles, as
técnicas, dizendo respeito aos modos de fazer da esfera da produção e da gestão do espaço
doméstico e eram atributos dos não-cidadãos, das mulheres, dos metecos (os estrangeiros)
e dos escravos, como por exemplo a Economia.
O saber filosófico, a filosofia, sofreu críticas: críticas dos positivistas do século XIX,
que dela escarneceram, denominando-a de metafísica e atribuindo a ela um estágio
intermediário na evolução social e das mentalidades, mais ou menos correspondente à fase
adolescente no desenvolvimento humano, que seria suplantada pela ciência, entendida como
o alcance da maturidade. Sofreu críticas no seu próprio campo, através de Nietzsche, para
quem a filosofia teria perdido seu valor quando, com Sócrates e a partir dele, tornou-se uma
busca moral, do bem e da virtude e não mais cosmogonias. Segundo Nietzsche, a filosofia
se tornara apenas um inventário das razões que o homem se dá para obedecer.
É recentemente, dos anos 70 para cá, que o interesse pela Filosofia se amplia,
coincidindo com a sensação crescente de nos sentirmos ameaçados pela ciência e
tecnologia contemporâneas nas quais depositávamos tanta confiança e discutindo,
sobretudo, como reintegrar Ética e Ciência, que a neutralidade positivista apartara. A filosofia
tem na dúvida a sua base.
4- A quarta forma do conhecimento humano é o conhecimento científico moderno, que,
embora teórico e conceitual, como o filosófico, é factual, empírico, sistemático, experimental,
verificável e pretende ser neutro nos seus valores. A ciência moderna aproxima-se daquilo
que Aristóteles chamou de filosofia ativa ou ciências práticas, definindo-as como sendo o tipo
de conhecimento do qual decorre uma ação útil, isto é, que incide sobre algo sobre o qual
podemos deliberar e influenciar com as nossas ações. Segundo Aristóteles, não deliberamos
sobre fins, mas sobre meios. Assim, pode-se dizer que, enquanto a filosofia faz exercícios
lógicos tentando responder ao por que, a ciência se resigna a não atingir ao conhecimento
das causas finais, limitando-se a tentar responder ao como, ou, segundo os positivistas, a
estudar as relações entre fenômenos.
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
Os saberes dogmático/religioso e científico tem como um ponto comum a criação de
estruturas sociais hierarquizadas: o sacerdote e o cientista estão em relação de
superioridade ao leigo; opõem esoterismo a exoterismo; criam igrejas e fronteiras; estimulam
a reverência, enquanto que os saberes do senso comum e o filosófico não: o último porque
tem na dúvida seu elemento-chave; o saber do senso comum por vir do plano da vida
imediata, da experiência individual e se ater a ela.
Na perspectiva positivista, estes saberes teriam uma gradação e uma relação de
evolução entre um e outro, passando por diferentes estágios2, indo da explicação religiosa
do mundo, fase que corresponderia à infância da humanidade, passando pela filosofia, etapa
de rebeldia adolescente até, finalmente, atingir o estágio científico, positivo. Assim, teríamos
vivenciado historicamente os três estados ou estágios, o teológico, o metafísico e o positivo,
que corresponderiam a três fases do desenvolvimento humano:
Estado Teológico Religião Sociedades
Teocráticas
Infância
Estágio Metafísico Filosofia Revoluções européias
do século XVIII
Juventude
Estágio Positivo Ciência Sociedade Moderna Virilidade
O Positivismo busca aplicar os métodos das ciências naturais às sociais. Neste
sentido, renuncia à busca das causas e das essências dos fenômenos, que seriam
indagações filosóficas, e estuda as relações entre estes para encontrar as leis de
regularidade que os determinam. O sentido do conhecimento na perspectiva positivista é
tornar o mundo previsível - saber para prever, prever para prover. (Certamente inspirado em
Francis Bacon: "saber é poder".)
"Todos os fenômenos estão sujeitos a leis invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objeto dos nossos esforços." (Comte, Curso de Filosofia Positiva)
Na verdade, essas quatro formas de conhecimento não são etapas dispostas
linearmente e progressivamente suplantadas, à medida em que a humanidade avança, como
acreditavam os positivistas. Elas se mesclam e representam antes formas de pensamento de
segmentos sociais diversos, que convivem e conflitam em nossa sociedade. A pressuposição
de que o conhecimento científico moderno é uma forma superior deve ser tomada com
cautela, pois também ele tem seus mitos e sua liturgia, também ele tenta, através do próprio
poder social que lhe é conferido, desqualificar a capacidade do homem comum de construir
sua interpretação para os fenômenos à sua volta em benefício de um novo sacerdote, o
2 O Positivismo foi proposto por Augusto Comte (1798-1857), um francês que foi secretário de Saint-Simon e admirador de Hobbes e que veio, por sua vez, a influenciar J.Stuart Mill, Spencer, Darwin e Durkheim..
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tecnocrata, o cientista. O próprio Positivismo descambou para uma religião, com todo o seu
ritualismo e liturgia. Morin chama nossa atenção para os aspectos dogmáticos de saberes
tidos como teorias científicas – como o marxismo e o freudismo -, que seriam
predominantemente formadas por núcleos não-científicos.3 Ele cita Popper para definir a
diferença entre o dogma, inatacável pela experiência, e a teoria, biodegradável, transitória,
contestável e refutável pelas experiências. (Tendo isto em mente, até que ponto as teorias
das ciências humanas e sociais, pouco sujeitas à experimentação, dado mesmo às
limitações éticas, ficam mais no plano dos dogmas do que no plano científico, eis uma
questão.)
Levi-Strauss em O Pensamento Selvagem, como já mencionado acima, também se
opôs a esta hierarquização de saberes, advogando que as classificações e o pensamento
das tribos ditas primitivas tem a mesma complexidade das classificações científicas.
Frijtof Capra alcançou enorme sucesso de público ao lançar mão de sua autoridade
de Doutor em Física pela Universidade de Viena para chamar nossa atenção para as
aproximações entre as visões de mundo dos físicos e dos místicos orientais, assim fazendo
sua incursão na valoração das filosofias orientais trazidas pelos anos 70 e pela contracultura
hippie. Não que estivesse dizendo novidades, pois a dialética e o Marxismo de há muito
insistiam em noções tais como a Unidade dos Contrários, o eterno devir, a não-neutralidade
da Ciência, etc., mas constituía novidade que essas afirmações viessem do campo das
ciências da natureza, tradicionalmente de cunho empirista, positivista e cientifista e sob a
chancela de um titulado.
Se a doxa era menosprezada no pensamento platônico, ela é revalorizada no mundo
contemporâneo. A doxa significa o diálogo, a palavra não mais do homem excepcional,
iluminado, ou do guerreiro aristocrático e virtuoso, mas de todo aquele que, numa reunião da
sua coletividade, vem ao centro da assembléia e fala das suas experiências e, a partir delas,
da sua visão do mundo.
É assim que, como já mencionado, Habermas nos fala da necessidade de
buscarmos uma razão comunicativa, dialógica, a ser construída democraticamente no
espaço público, num fórum, na praça, no parlatório; que Funtowicz & Ravetz insistem na
necessidade de incorporarmos, em uma ciência pós-normal, o diálogo com os leigos -
membros da comunidade em questão, ecologistas, advogados, jornalistas - necessários para
a transmissão de habilidades e para a garantia de resultados.
A classificação e separação das ciências
A Epistemologia classifica e decompõe as ciências, mas com variações, segundo a
época e o olhar do classificador. Aristóteles, como vimos, as separou em ciências práticas ou
ativas, sobre aquilo a respeito do qual podemos deliberar, e teóricas ou contemplativas sobre
mundos fora do alcance de nossa intervenção (como, por exemplo, as esferas celestes). As
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ciências práticas eram a ética, a política e a retórica e por meio delas o cidadão atingiria a
phronésis, o discernimento, e influenciaria os destinos coletivos da pólis, da coletividade,
através da construção dos valores éticos-morais, da organização política e via fala
comunicativa.
As ciências teóricas seriam, segundo Aristóteles, puramente contemplativas (daí
vem a palavra teoria, cerne da ciência, pois que theorein, no grego clássico, significava ver,
contemplar); eram ciências especulativas, englobando o que hoje temos como a teologia, a
física e a psicologia, sendo seu objeto de reflexão a physis, o mundo físico e espiritual, um
mundo que não poderíamos modificar com nossas ações, mas que, todavia, poderíamos
tentar entender. Assim, o conhecimento teórico diria respeito ao estudo dos seres que
existem e agem independentemente da ação humana. As ciências teóricas foram divididas
por Aristóteles segundo o critério de imutabilidade ou de movimento: a metafísica, estudo do
ser sem qualquer mudança; a física ou ciências da natureza (estudo dos seres que têm
matéria e forma e que estão submetidos ao movimento); a matemática (estudo de seres
imutáveis, dotados de forma, mas sem matéria).
Na Idade Média os Escolásticos (os padres da Igreja Católica e os mestres monacais
que, do século IX ao XV elaboraram uma filosofia cristã, de inspiração platônica-aristotélica)
dividiam os estudos em dois grupos: o quadrivium (aritmética, geometria, música e
astronomia), onde era tomado por objeto de conhecimento tudo o que podia ser medido, e o
trivium (a gramática, a lógica e a retórica). As artes técnicas, estas eram transmitidas pelas
corporações de ofícios.
Chauí sublinha a permanência da classificação de Aristóteles até hoje, que se reflete
na estrutura das nossas universidades: ciências matemáticas ou lógico-matemáticas,
ciências naturais (teórico-contemplativas, segundo Aristóteles), ciências humanas ou sociais
(ciências práticas ou ativas), ciências aplicadas (arquitetura, direito, etc).
Para um filósofo francês contemporâneo, Foucault (1926-1984), contudo, há
diferenças. Segundo ele, as ciências se dividiram a partir do século XIX em:
1 - ciências dedutivas; 2 - ciências empíricas, que estabelecem relações entre fenômenos objetivos ou objetiváveis; 3 - reflexão filosófica.
As ciências empíricas, no que diz respeito ao ser humano, segundo Foucault, seriam
básicamente três, ou três "regiões epistemológicas", para ser fiel ao palavreado do autor:
a Biologia, que estuda o homem como um ser vivo que tem funções, recebe estímulos e se adapta;
a Economia, que o estuda como um animal que trabalha, produz riquezas, modifica o meio ambiente; um ser que tem necessidades, interesses e conflitos;
3 Morin, op.cit, pp 21 – 23.
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a Filologia, que o estuda como um animal que cria e usa uma linguagem, que diz alguma coisa, que tem sentido, que cria significados.
Dito de outra forma:
1) Vida, 2) Trabalho-produção-garantia da vida-sobrevivência 3) Linguagem, comunicação, criação de significados e sistematização dos saberes
sobre vida e trabalho são as três regiões epistemológicas por excelência.
Dessas três regiões, derivam as ciências humanas:
O CONHECIMENTO SOBRE O SER HUMANO, SEGUNDO FOUCAULT:
CIÊNCIAS EMPÍRICAS CIÊNCIAS HUMANAS
Biologia: Vida; funções, estímulos e adaptações do ser vivo
Psicologia: ajustamento (função e norma)
Economia: Trabalho; necessidades, desejos e interesses; produção; sobrevivência
Sociologia: conflito e regra
Filologia: linguagem; significados; comunicação; ciências
Linguística: significação e sistema
Assim, o estudo a respeito do homem seria empírico apenas enquanto estudasse
suas três realidades objetivas: sua vida, seu trabalho/produção, sua linguagem. A estas três
"regiões epistemológicas", a este "triedro dos saberes" corresponderiam, como projeções, a
"região psicológica", a "região sociológica" e a "região de estudo da literatura e dos mitos".
Tais projeções seriam as ciências humanas (ou ciências desumanas, na medida em que têm
por objeto construções, discursos a respeito do que se pensa ser o Homem); elas são
recentes e nem seriam ciências, por terem um pé na filosofia.
As ciências humanas, sublinhava Foucault, não estudam o que o homem é, mas
como ele pensa ser, isto é, estudam suas representações; não estudam relações entre
fenômenos empíricos, mas construções humanas a partir deles, estudam conceitos, normas,
regras, instituições e sistemas que são construídos pelos homens a partir da vida, da
produção, da comunicação. As ciências humanas - e a Sociologia dentre elas - teriam por
isso familiaridade com a filosofia, seriam precárias e perigosas, não seriam ciências. Por que
precárias? Porque elas não poderiam ter a metodologia das ciências naturais empíricas, já
que o corte, o distanciamento entre o estudioso e seu objeto seria impossível, porque a
mensuração teria pouco sentido, porque a neutralidade seria inviável, porque a
experimentação controlada seria aética. Por que perigosas? Porque, em sendo filosóficas,
seriam críticas, libertárias, tornariam evidentes que os fenômenos sociais não são realidade
naturais, portanto perenes e universais, mas seriam históricos, construídos em determinadas
circunstâncias de enfrentamentos sociais. Um estudo sociológico sobre a produção e
circulação das riquezas, por exemplo, pode envolver aspectos filosóficos, questionamentos
éticos que um estudo empírico, dos fatos em si, não poderia ter.
"Pode-se dizer que o domínio das ciências humanas é coberto por três "ciências"- ou, antes, por três regiões epistemológicas, todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas umas com as outras; essas regiões são definidas
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pela tríplice relação das ciências humanas em geral com a biologia, a economia, a filologia. Poder-se-ia admitir que a "região psicológica" encontrou seu lugar lá onde o ser vivo, no prolongamento de suas funções, de seus esquemas neuromotores, de suas regulações fisiológicas, mas também na suspensão que os interrompe e limita, se abre à possibilidade de representação; do mesmo modo, a "região sociológica" teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha, produz e consome re confere a representação da sociedade em que exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ele reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; enfim, naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos, a análise de todas as manifestações orais e de todos os documentos escritos, em suma, dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos." (FOUCAULT, 1987: 372-373)
No campo específico das ciências humanas, Chauí destaca ter a investigação do
humano evoluído também de três maneiras diferentes:
1. o período do Humanismo, com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo. É o estudo do homem como agente moral, criador de civilização; 2. o período do Positivismo, quando as ciências sociais se investem de uma aura científica, saindo do campo filosófico e mimetizando as ciências da natureza; 3. o período do Historicismo (com Dilthey 1883 - 1911, filósofo e historiador alemão herdeiro de Kant, Fichte, Hegel): Dilthey insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e, portanto, entre ciências naturais - Naturwissenschaften - e as humanas, que seriam vistas por ele como ciências do Espírito ou da Cultura - Geisteswissenschaften. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor, de significado, de sentido e finalidade. O homem não criou a Natureza, mas o mundo social e aí residiria a originalidade das ciências humanas: são históricas, porque são obras do homem. Assim, as ciências do espírito - Hermenêutica -, não podem e não devem usar o método de observação-experimentação, mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, que são históricos, surgindo no tempo e transformando-se com o tempo. As Ciências Humanas não são irredutíveis às ciências naturais: e cada época histórica tem sua visão de mundo, seus fatos psíquicos, políticos econômicos etc.
O problema com o Historicismo é que pode resultar em relativismo (validade para
apenas uma época e cultura, não podendo haver universalização) e em Filosofia da História
(que considera cada formação sócio-cultural como etapa de um processo histórico universal).
Chauí identifica ainda a ocorrência de três “rupturas epistemológicas”, três mudanças
paradigmáticas importantes no campo das ciências humanas, no século XX:
1. a Fenomenologia, que, contrariando a visão positivista, garantiu validade às ciências humanas, diferentemente da validade das ciências naturais: os fenômenos humanos, em sua essência, não podem ser decompostos em fenômenos da natureza.
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2. O Estruturalismo, que veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, de sistemas, de totalidades organizadas na qual o todo não é a soma das partes. 3. O Marxismo, que fala das condições objetivas e os fatos humanos e sociais como expressão e resultado de contradições sociais, lutas e conflitos.
Tais correntes, no entanto, não parecem ser rupturas e também trazem problemas: a
perspectiva fenomenológica pode cair no psicologismo e solipcismo; o estruturalismo levado
ao extremo desconsidera a agencia humana e parece ser resultante de uma visão pessimista
produzida por uma sociedade de não-sujeitos; o marxismo torna irrelevantes as variáveis
culturais, reduzidas a epifenômenos das lutas econômicas.
Metodólogos das Ciências Sociais, como Pedro Demo e Maria Clara Minayo,
definem algumas características como particulares das ciências humanas e sociais e que as
distinguiriam das ciências da natureza: o objeto das ciências sociais é histórico, neste sentido
é provisório; elas tem consciência histórica; não há separação entre sujeito e objeto, suas
manifestações são mais qualitativas; e as ciências sociais têm um caráter ideológico
inevitável. Até que ponto não poderíamos estender tais particularidades às ciências em
geral?
Bruno Latour critica um sistema de saber que vê um “monoculturalismo” do lado da
natureza unificada e universal, que nos une em um mundo de partículas, átomos, genes,
neurônios, e um “multiculturalismo” do lado da cultura, que nos dividiria e nos particularizaria.
Assim, o que nos uniria seria a natureza, as qualidades primeiras e o que nos separaria
seriam aspectos superficiais, crenças, representações falaciosas, ou seja, as qualidades
segundas. Estaríamos concordantes sobre a natureza e discordaríamos sobre as culturas.
Para Latour, as duas posições, a do mononaturalismo e a do multiculturalismo são
prematuras ou mesmo ilícitas. 4
A proposta classificatória de Foucault sobre as ciências empíricas não é
absolutamente um consenso. Prodi, por exemplo, notório biólogo italiano contemporâneo, vê
a linguagem e o pensamento como partes da biologia humana, não os colocando, portanto,
como fez Foucault, em diferentes regiões epistemológicas:
"Geralmente, falando de biologia, referimo-nos a digestão, hormônios, impulso venoso, biologia molecular e assim por diante. A linguagem e o pensamento são considerados parte de outro capítulo (...). Nós, pelo contrário, afirmamos que a linguagem e o pensamento fazem parte da biologia humana e constituem seu traço distintivo. O fato de serem complicados e atualmente obscuros não autoriza a distinguí-los da biologia para formar um capítulo próprio, o das chamadas ciências humanas (PRODI, 1993:103)
4 Bruno Latour e a guerra das ciencias, Folha de São Paulo/Mais, 15/11/98)
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As buscas por síntese ou convergência
Todo o acima exposto nos exemplifica e confirma as diferentes buscas de
recomposição de saberes fragmentados, ora como síntese, ora como formas de
convergência e cooperação. A busca por uma síntese das ciências se dá a partir do
surgimento de um novo tema: a chamada crise dos paradigmas, por sua vez um tema
derivado de um novo debate construído nos anos 80 a respeito da pós-modernidade:
estaríamos vivendo uma realidade de tal forma original e tão intensa em seu processo de
mutação que os modelos explicativos tradicionais e suas premissas seriam por demais
simplistas e inadequados para enfocar uma realidade multifacetada, poliédrica, complexa,
para usar a expressão de Morin.
Essas buscas ocorrem de maneiras diferentes: 1- a partir da convicção a respeito da
crise paradigmática e de rupturas epistemológicas; 2- a partir da proposta de integração-
convivência e troca de saberes, entre as ciências e entre as ciências e o senso comum; 3- a
partir da reintrodução da Ética na construção do conhecimento; 4- a partir da retomada da
consiliência, com a hegemonia da Biologia. São formas embrionárias, ensaísticas e ainda
muito insuficientes. Vejamos cada uma:
A primeira delas tem a ver com o diagnóstico de uma crise paradigmática. Segundo
Thomas Kuhn, as ciências e as comunidades científicas são caracterizadas pela existência
de paradigmas compartilhados. São os paradigmas nada mais que modelos ou padrões de
explicação vigentes e aceitos. Derivam de soluções concretas de problemas e também
funcionam como um critério para selecionar quais problemas a comunidade científica supõe
solucionáveis e que vão então se tornarem objeto de estudo. O que não for solucionável é
rechaçado para o campo da metafísica, das abstrações filosóficas, dos enigmas. Assim, o
paradigma também serve como definidor do campo científico. Mas novos problemas surgem,
enigmas até então fora do campo científico se impõem à decifração, fazendo com que a dita
“ciência normal”, a ciência já aceita, entre em crise e novas teorias, esboçando um
movimento por um novo paradigma, apareçam para dar conta de tais problemas, decifrando-
os. Como sublinha Kuhn, as teorias não se desenvolvem gradualmente para se ajustarem a
fatos que se encontravam presentes todo o tempo; em lugar disso, elas surgem ao mesmo
tempo que os fatos. (Por exemplo, a teoria quântica e os fenômenos subatômicos
desconhecidos antes do século XX). Ou seja, elas problematizam, elas criam problemas, se
colocam questões. (Algo semelhante já havia sido dito por Marx, quando este afirmou que a
humanidade só se propõe problemas que possa resolver). Um paradigma também é definido
pelo autor como sendo uma constelação de crenças, valores e técnicas compartilhados pelos
membros de uma comunidade científica. Uma vez aceito o paradigma norteador, a
comunidade científica estaria liberada da necessidade de reexaminar constantemente seus
próprios princípios, aumentando, assim a sua própria eficiência.
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O propósito do ensaio de Kuhn é o de examinar a mudança paradigmática no campo
das ciências naturais ou empíricas e tecer considerações críticas entre a ciência
normalmente aceita e a ciência em crise, um momento fecundo para a elaboração e
disseminação de novos paradigmas. E também para a resistência a eles. A ciência evolui
através de mudanças paradigmáticas, por vezes difíceis de serem aceitas pela própria
comunidade científica, que, segundo o autor, frequentemente suprime inovações
fundamentais que seriam demasiado subversivas para a "ciência normal" já estabelecida e
para suas realizações e fundamentos já amplamente reconhecidos. Foi assim, por exemplo,
com a Revolução de Copérnico na astronomia, que marcou uma mudança fundamental em
relação à teoria de Ptolomeu, que acreditava ser a Terra o centro do sistema solar: o
paradigma geocêntrico caiu por terra, substituído pelo paradigma heliocêntrico.
Essa transição de um paradigma a outro não é um mero processo de acumulação e
sim uma reconstrução revolucionária do campo científico. Tais revoluções científicas são
precedidas por um sentimento crescente de que o paradigma anterior deixou de funcionar,
deixou de ter força explicativa para novos problemas emergentes.
Para Kuhn, a ciência passa por diferentes estágios: um estágio pré-paradigmático,
quando um bom número de escolas ou correntes competem entre si pelo domínio explicativo;
um estágio pós-paradigmático, quando o número de escolas se reduz muito, quase sempre a
um - o paradigma. É quando, segundo o autor, começa de forma mais eficiente a prática
científica. A partir daí, a evolução científica far-se-á por saltos paradigmáticos e que
caracterizam o padrão de desenvolvimento daquilo que Kuhn designa como uma ciência
madura. A evolução científica recusa um paradigma quando já há um outro pronto a ocupar
seu lugar, quando há a propensão de aceitar um outro.
Kuhn abre algum espaço para considerar as ciências sociais. Por que, pergunta-se
ele, as ciências sociais estão sempre debatendo se são ou não são ciências? Não há este
tipo de preocupação entre as ciências da natureza. (O autor ressalva que, dentre as ciências
sociais, é a Economia a que menos se pergunta tal coisa). Uma das respostas que dá diz
respeito à coexistência de paradigmas, o que colocaria as ciências sociais na fase pré-
científica, a bem dizer. Na Economia podemos citar os monetaristas, os estruturalistas etc.
Na Sociologia, marxistas, funcionalistas, interacionistas etc...
Chauí, todavia, nos lembra que diferentes teorias, diferentes paradigmas podem
coexistir também nas ciências da natureza, como, por exemplo na Física, que hoje abrigaria
"três teorias físicas simultâneas - a quântica, para os átomos; a newtoniana, para os corpos
visíveis; a da relatividade, para o movimento da velocidade da luz, regidas por conceitos e
métodos diferentes, excluindo-se umas às outras e todas elas verdadeiras para os
fenômenos que explicam"5. É algo que guarda pontos de contato com o que o filósofo
brasileiro Newton Da Costa chama de 'quase-verdades' das ciências.6
5 A teoria quântica foi elaborada por Max Planck (1858- 1947) para explicar as propriedades dos átomos e moléculas. De acordo com a teoria quântica, a energia é emitida em pacotes denominados quanta; A Teoria da Relatividade, elaborada por Albert Einstein (1879 - 1955) nos diz da velocidade
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Vivemos um momento de intensificação dos ritmos, dado principalmente pelos
avanços das tecnologias de comunicação. Vivemos também um momento de surgimento e
de agudização de novos problemas, tais como a deterioração ambiental, da perda da
biodiversidade, da interferência do ser humano na essência dos processos naturais, como
com as sementes transgênicas e as experiências de clonagem e criação in vitro. Todas estas
mudanças têm sido vistas, com base em Kuhn, como sintomas de uma crise paradigmática.
Outros argumentam que todas estas alterações convergem para a mesma velha coisa de
sempre: a exacerbação da dominação, do paroxismo do poder, de renascimento de proto-
colonialismos etc…7 Dito de outra forma, mudanças tecnológicas não se fazem acompanhar
por mudanças nas relações e nas estruturas sociais.
A aludida crise dos paradigmas é vista por Bourdieu como um falso dilema. Para ele,
essa crise só pode ser assim percebida pelo saber hegemônico, ameaçado na sua
hegemonia. Ao contrário, o que temos é uma pluriparadigmaticidade bem-vinda, oriunda do
reconhecimento de diferentes atores construindo diferentes conhecimentos. Ao propor a
superação da falsa dicotomia entre o subjetivismo do construtivismo (a realidade como um
constructo) e o objetivismo positivista da realidade como um fato (o realismo da estrutura), e
ao criar o enfoque do "Estruturalismo construtivista" ou "Construtivismo estruturalista"8,
Bourdieu mostrou o poder simbólico que certas categorias profissionais modernas -
jornalistas, intelectuais, cientistas, juristas, artistas - têm de criar realidades, na medida em
que são socialmente dotadas da autoridade da versão universalizante e oficial, que impõe
como universal o que é particular, que neutraliza o contexto histórico, que desenraíza, oculta
e naturaliza questões.
constante da luz e da expressão da energia de um corpo pela sua massa. Mostra ainda que a gravidade dos corpos deofrma o espaço ao seu redor.. Eistein mostrou que a teoria newtoniana não se aplica a corpos muito pesados ou de velocidades muito altas. 6 Newton da Costa: filósofo brasileiro, autor de O Conhecimento. SÃo Paulo, Discurso Editorial/Fapesp, 1997, criou em 1963 a lógica paraconsistente, que admite contradições, tida como a lógica da liberdade. Enquanto a lógica clássica se baseia na não-contradição – uma sentença não pode ser falsa e verdadeira a um só tempo – na evolução da ciência as contradições aparecem. Da Costa proõe entao a lógica não-clássica ou lógica paraconsistente. Da convivência do que é tido como incompatível. Lógica que tem sido pensada também para a robótica, pois, admitindo contradições, faria o robô pensar mais como um ser humano. Ou nas atividades bélicas, no controle dos sinais de trânsito etc. Tudo que sai do binário sim e não. Morin também nos fala da convivência de duas idéias contrárias para conceber o mesmo fenômeno, como o da partícula, que ora se manifesta como onda, ora como corpúsculo (MORIN, op. cit.: 29) 7 Refiro-me aqui aos autores que recusam a perspectiva de uma era pós-moderna, como, por exemplo, Callinicos, em seu libelo marxista Against Postmodernism, a marxist critique. Oxford: Polity press/Basil Blackwell, 1989. 8 "Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existe, no mundo social e não apenas em termos simbólicos, linguagem, mitos, enfim, estruturas objetivas que independem da consciência e do desejo dos agentes e são capazes de guiar e de constranger práticas e suas representações. Por construtivismo, quero dizer que existe uma gênese social, de um lado, dos padrões de percepção, pensamento e ação que são constitutivos do que chamo habitus e, do outro lado, de estruturas sociais e em particular do que chamo campos e grupos, especialmente do que é usualmente chamado de classes sociais." Pierre Bourdieu em Outras palavras: ensaio para uma Sociologia reflexiva, 1990. Ver também do autor O poder Simbólico e Sobre a Televisão.
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
A suposta crise da Sociologia é para Bourdieu um progresso em direção à
cientificidade, pois é a crise da ortodoxia, que se vê enfrentada e desafiada pelas heresias.
Assim, a suposta crise paradigmática tem mais a ver com um processo de democratização e
de reconhecimento da pluralidade de atores e suas diferentes verdades.
Na segunda proposta, mais do que exatamente uma síntese, haveria a
integração/convivência e troca de saberes: a coexistência e a cooperação entre disciplinas.
De acordo com Naomar de Almeida Filho (1997), haveria seis formas diferentes de
construção desta coexistência e cooperação: a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a
metadisciplinaridade, a interdisciplinaridade auxiliar, a interdisciplinaridade, e a
transdisciplinaridade:
1) Na multidisciplinaridade, temos um conjunto de disciplinas que tratam simultaneamente de uma dada questão, problema ou assunto, sem que os profissionais implicados estabeleçam entre si efetivas relações no campo técnico ou científico. Nela há uma justaposição de disciplinas, sem uma cooperação sistemática entre os diferentes campos disciplinares e a coordenação, quando existente, é de ordem administrativa, na maioria das vezes externa ao campo científico. O exemplo dado pelo autor versa sobre as práticas ambulatoriais tradicionais, ou no acompanhamento de pacientes hospitalizados, quando os profissionais da saúde trabalham isoladamente, cada um na sua competência, sem intercâmbio e sem cooperação.
2) Na pluridisciplinaridade há objetivos comuns e um certo grau de cooperação mútua
e uma perspectiva de complementaridade. Por exemplo: ainda na área da saúde, as reuniões clínicas onde casos de pacientes são discutidos por algum supervisor ou chefe de serviço, trocando-se informações de diversos profissionais; as mesas-redondas ou painéis de diferentes especialistas sobre um mesmo tema, etc… A pluridisciplinaridade pode assim, portanto, ser entendida como uma prática interna a um campo e suas subdisciplinas.
3) A metadisciplinaridade se dá quando “a interação e as inter-relações entre as disciplinas são asseguradas por uma metadisciplina que se situa em um nível epistemológico superior”, que não funciona como coordenadora, mas como integradora do campo metadisciplinar. O exemplo de Almeida Filho são as matemáticas e o uso de sua linguagem formalizada de comunicação científica aplicada pelas diversas disciplinas. No que diz respeito as ciências sociais, a metadisciplinaridade pode ser exemplificada pela presença da Economia como catalisadora das interpretações sobre o mundo sócio-político-cultural.
4) Quanto a interdisciplinaridade, Almeida a desmembra em interdisciplinaridade
auxiliar, salientando uma relação assimétrica: “diferentes disciplinas interagem sob a dominação de uma delas, que se impõe enquanto campo integrador e coordenador”. O exemplo ainda nos vem da área da saúde, entre as chamadas disciplinas paramédicas e a medicina.
5) A segunda forma de interdisciplinaridade, a interdisciplinaridade tout court, seria
“estrutural, com tendência à horizontalização das relações de poder entre os campos” e implica na identificação de uma problemática comum, levantamento de uma axiomática teórica e/ou política básica e uma plataforma de trabalho conjunto.
Podemos afirmar que, no campo das ciências sociais – Sociologia, Ciência Política,
Antropologia Social, Psicologia Social, a interdisciplinaridade é hoje praticada. Mas vale
chamar a atenção para a Sociologia, que parece ter nascido sob a chancela da
metadisciplinaridade, no sentido de que se pautou por outra disciplina já consagrada, situada
em nível epistemológico superior: a Biologia, que foi inicialmente o grande paradigma
norteador. E assim evoluiu, seguindo a Matemática, ao introduzir o cálculo como elemento de
Versão revista e ampliada do artigo publicado em Meio Ambiente: questões conceituais. Niterói, UFF/PGCA-Riocor, 2000, pp. 177 – 212, sob o título Elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade.
verdade, e a Economia e a hegemonia da produção ao tomá-las como fator explicativo da
sociedade.
6) Por último, a difícil questão da transdisciplinaridade, que adviria da criação de um campo teórico, operacional ou disciplinar de tipo novo e mais amplo. Nele há “a integração de disciplinas de um campo particular sobre a base de uma axiomática geral compartilhada”. A coordenação seria dada por uma finalidade comum, haveria a tendência à horizontalização de poder e este novo campo desenvolveria uma autonomia teórica e metodológica diante das disciplinas que o compõem.
É voz corrente e aceita que a temática ambiental vem despontando enquanto um
campo novo, complexo, de encontro e cooperação entre os diferentes saberes que lhe dizem
respeito. No caso brasileiro, esta nova temática tem inspirado a criação de alguns programas
de pós-graduação interdisciplinares, que foram desenhados como este espaço desejado de
cooperação e de integração dos diferentes saberes afetos ao meio ambiente, tais como:
Biologia, Ecologia, Medicina, Ciências Sociais, Engenharia, Direito, Química, Filosofia, etc.9
Até que ponto as experiências destas pós-graduações caminham em direção a uma
transdisciplinaridade?
As questões ambientais, nos seus aspectos globalizantes, holísticos, totalizantes,
vêm impondo estudos que construam uma aproximação e trabalho comum entre as ciências
da natureza e as ciências sociais: algumas destas confluências são fáceis, como no caso da
Geografia, que passa a examinar: ajustes/desajustes da relação sociedade/natureza através
das temáticas da água (inundações, secas, energia), da erosão (natural e antrópica), do solo
(sistemas agrícolas), do subsolo (mineração); ou no caso da Demografia, estudando a
pressão demográfica sobre o espaço. Todavia, a aproximação com as ciências empíricas ou
da natureza vem sendo difícil pelo lado da Sociologia: Como admitir os fatores biológicos
sem cair no campo do determinismo e da execrada Sociobiologia? Além de dificuldades
metodológicas, a política desta aproximação também oferece percalços: como conciliar a
proposta moral e seu tom normativo com a premissa da neutralidade das ciências empíricas?
A terceira proposta de convergência se dá pela troca entre ciências e senso comum,
já abordada.
A quarta seria uma proposta de síntese, de superar a fragmentação pela Ética.
Como salientou Morin, falta reconhecer a complexidade – do real e dos saberes – pelos
“cientistas burocratizados” e formados por modelos clássicos de pensamento, que
enclausuram e fragmentam o saber, que separam o homem da natureza e que revestem o
conhecimento científico de esoterismo. Morin propõe a unidade da ciência e da filosofia – via
Ética – apontando para o mote “Ciência com Consciência”. A Ética suplantaria os aspectos
negativos e os efeitos perversos de uma suposta neutralidade científica. (E que está
exemplificada nas polêmicas atuais sobre clonagem, alimentos transgênicos, etc.). Por outro
9 Ver o trabalho “Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e similares no Brasil – uma listagem preliminar”, feito por José Augusto Drummond e Andreia Schroeder. Revista Ambiente e Sociedade, NEPAM, Campinas, ano I, número 2, 1º semestre de 1998, pp. 139 – 149,
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lado, é necessário, todavia, levarmos em consideração a ameaça de, em nome da Ética,
virmos a ter os avanços cientificos obstaculizados por dogmas religiosos.
Nesse sentido, a propalada unicidade da ciência tem se limitado até aqui a ser
apenas uma forma romântica de se acenar para a superação de uma fragmentação de
saberes trazida pelo instrumentalismo das especializações e está envolta no desejo
manifesto da retomada da inspiração ética. Assim, a complexidade está reconhecida. Mas
continua faltando a invenção metodológica para a apreensão e operacionalização desta
complexidade.
Seria a consiliência uma quinta proposta de síntese? Para o biólogo Edward Wilson,
propositor de uma nova disciplina, a Sociobiologia, uma exploração cooperativa entre as
ciências sociais e naturais seria possível, desde que a Biologia fosse o campo fundacional. O
conhecimento tenderia assim a uma coerência, que ele chama de “consiliência”, adotando
um termo cunhado em 1840. Segundo ele, teria sido a ausência de conexão consiliente entre
as ciências naturais e as sociais - entre as considerações sobre a natureza biológica da
humanidade e as maneiras como as pessoas pensam, como a sociedade se organiza, como
criam suas leis e pensamento moral - a explicação das experiências totalitárias, de busca de
sociedades pretensamente ideais. (Trata-se de uma reviravolta engenhosa na crítica que lhe
fazem, a de ser a Sociobiologia um determinismo de pensamento que se harmonizaria com
ideários totalitários como o nazista). O argumento de Wilson dirige-se contra o
construtivismo, que leva a acreditar não ser nenhuma verdade relevante, na medida em que
cada um e cada profissão teria a sua verdade. Para Wilson, a verdadeira cultura é a
chamada cultura viva, uma “atividade coletiva de mentes” operante em cérebros, em mentes
ativas. Ele então distingue esta cultura dos “artefatos culturais” produzidos e que estariam
fora da esfera da cultura viva. Quando exploramos a cultura de civilizações extintas, seus
artefatos não existem, segundo ele, até que sejam reintroduzidos em uso através do estudo
realizado por mentes vivas. A cultura se transmite pelas mentes de uma geração às mentes
da outra, pelos artefatos.
As propostas de Wilson têm sido rechaçadas pela academia. Por ser perigosa, por
ser simplista, por ser redutora, etc. E por retomar a proposta de unidade da ciência, que,
segundo Rorty, teria sido o grito de guerra dos positivistas lógicos nos anos 30 e 40, quando
pretendiam a unidade entre a Psicologia, a Ciência Política e a Biologia.10
Conclusões
1. As formas de conhecimento humano – prático, religioso, filosófico e científico – estão
entrelaçadas e coexistem, não somente como exteriorizações de visões de mundo de
diferentes grupos sociais, mas também porque há componentes dos demais em cada um
10 Ver R. Rorty em seu artigo “Contra a Unidade”, transcrito na Folha de São Paulo/Mais, de 22/3/98.
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destes (aspectos dogmáticos e litúrgicos no conhecimento científico, aspectos filosóficos no
conhecimento religioso, aspectos científicos no conhecimento prático, etc.)
2. Se as Ciências Sociais nasceram tentando mimetizar os métodos das ciências da
natureza, estas últimas parecem agora permeáveis a se enxergarem com certas
características até então tidas como peculiares tão somente às Ciências Sociais: a
historicidade, a contingência, a não-neutralidade.
3- A proposta de construção da interdisciplinaridade tem ficado muito aquém das
expectativas, no que tange às ciências naturais e sociais, ao passo que, entre os ditos
domínios conexos, ela consiste mais em uma volta sobre algo que já havia antes que
recortes profissionais e corporativos impusessem sua tática definidora de campos distintos.
4. Dado o nível de aprofundamento das especializações, é impossível e romântica a proposta
da grande síntese, que vem se reduzindo a exortações de inclusão de aspectos éticos nas
escolhas da racionalidade científica, a ensaios anticientificistas decepcionantes, de
roupagem new age”, e a um debate sobre a unidade da ciência, eivado de conteúdo
ideológico por ambos os lados contendores. A busca da unidade da ciência – no caso em
tela, a Ciência Ambiental (no singular) é, por enquanto, uma proposta que diz mais respeito a
aproximação dos saberes – filosófico, religioso, prático e científico, do que a construção de
um campo cientifico unificado.
5. O conhecimento prático do homem comum é tão valioso quanto o do cientista na busca da
solução de problemas, principalmente naqueles relacionados aos riscos ambientais.
6. Como disse Bourdieu, não há crises paradigmáticas e sim uma bem-vinda crise de
hegemonia.
7. A experiência interdisciplinar na área do meio ambiente não ultrapassou as fases
multidisciplinar e pluridisciplinar. Estamos motivados pelo bom desejo de formar um campo
comum, com regras e operações, vocabulário e pressupostos compartilhados, e por um
aceno de boas intenções, de defesas arriadas, de convite ao convívio entre estudiosos e
pesquisadores de campos distintos e até aqui vividos com exemplos de assimetria e
desconfiança, mas não construimos ainda a interdisciplinaridade, que tem ficado no nivel
individual, singular, na própria pessoa do pesquisador de uma área que é autodidata em
outras. É o modelo que chamo provisoriamente de padrão Leonardo Da Vinci e que, embora
bem-vindo, corre o risco de se caracterizar pela superficialidade generalista e que porisso
tende a ser visto com reservas. Complementando o quadro desfavorável, nossas agências
de fomento à pesquisa ainda não dispõem de um campo/comitê de avaliação interdisciplinar
e tendem a ver em propostas interdisciplinares apenas uma justaposição tática de
departamentos e/ou unidades mais frágeis. As universidades, que reproduzem em seus
programas de pós-graduações a sua estrutura departamental estanque, têm dificuldades
administrativas para enquadrar projetos interdisciplinares. A proposta de se trabalhar
juntando ciência e senso comum, isto é, colocando ombro a ombro cientistas e movimentos
sociais, também é vista com reticências, com temor de aparelhamentos e partidarizações
políticas.
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8. Na perspectiva construtivista da elaboração do conhecimento, iniciada com o século XX, a
ciência não mais é vista como uma observação da própria realidade para a definição dos
fatos, leis, propriedades, seus efeitos posteriores e previsões, mas como uma construção de
modelos. Assim, o conhecimento é uma aproximação, é contingente e é corrigível.
9. Dizia Kant, o filósofo alemão (1724-1803) que para muitos inaugura a filosofia moderna11,
que o conhecimento racional tem dois objetos: a natureza (conhecer seus fenômenos para
controlá-la) e a liberdade (criar a sociedade libertária). O primeiro objeto estaria no campo
das ciências empíricas, o segundo no campo da filosofia. As ciências humanas, enquanto
inspiradas pela liberdade, pelo bem-estar e pela felicidade do homem, estariam neste campo
filosófico. Estaria aí a razão da impotência das ciências sociais? Marx, também, por outra
linha argumentativa, nos fala das mudanças intensas no crescimento das forças produtivas,
enquanto que as relações sociais de produção mudam muito mais lentamente.
10. No entanto, as coisas vêm mudando nas últimas décadas, contrariando Aristóteles: a
engenharia genética, a biotecnologia contemporâneas são evidências do quanto passamos a
poder alterar o mundo físico com nossas ações. É interessante salientar que, de Aristóteles
para cá, os usos possíveis do conhecimento parece que viraram pelo avesso: hoje as
ciências naturais sentem-se capazes de alterar o mundo com as suas ações (sementes
transgênicas, bichos patenteados, clonagem, criação de órgãos artificiais, modificação da
rota de asteroides, etc...), enquanto que as ciências sociais hoje em dia sentem-se
impotentes para compreender o mundo social e, menos ainda, capazes de nele interferirem.
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11Nossa filósofa Marilena Chauí acentua que a contruibuição de Kant ao estudo da Razão é usualmente referida como tendo sido uma "revolução copernicana" em Filosofia. (Chauí. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 1995:77)
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