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UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI – URCA
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE HISTÓRIA
CÍCERO SOARES VARELA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA E O ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
CRATO - CE
2020
CÍCERO SOARES VARELA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA E O ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Dissertação apresentada ao Programa do
Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA) - URCA, na Linha de
pesquisa Linguagens e Narrativas Históricas:
Produção e Difusão, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ensino de
História.
Orientadora: Profª Drª Paula Cristiane de Lyra
Santos
CRATO - CE
2020
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Regional do Cariri – URCA
Bibliotecária: Ana Paula Saraiva de Sousa CRB: 3/1000
Varela, Cícero Soares.
V293a Aprendizagem histórica e o ensino de história por meio das histórias em
quadrinhos/ Cícero Soares Varela. – Crato - CE, 2020
152p.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação de
Mestrado Profissional em Ensino de História – PROFHISTÓRIA da Universidade
Regional do Cariri – URCA.
Orientadora: Profa. Dra. Paula Cristiane de Lyra Santos.
1. Ensino de História, 2. HQs históricas, 3. Aprendizagem Histórica, 4. Cultura
histórica; I. Título.
CDD: 907
CÍCERO SOARES VARELA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA E O ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Dissertação apresentada ao Programa do
Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA) - URCA, na Linha de
pesquisa Linguagens e Narrativas Históricas:
Produção e Difusão, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ensino de
História.
Aprovada em 06 de março de 2020
Banca Examinadora
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr. ª Paula Cristiane de Lyra Santos (Orientadora)
Universidade Regional do Cariri
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr. ª Rosilene Alves de Melo (Examinadora Interna)
Colaboradora - Universidade Federal de Campina Grande
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Mariano Martins da Silva (Examinador Externo)
Universidade Regional do Cariri
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Paula Cristiane de Lyra Santos, pela orientação, por seu olhar sempre
atento e por acreditar neste projeto.
Agradeço à banca de qualificação composta pela professora Rosilene de Melo e pelo professor
Guilherme Mariano pelas observações e indicações para a pesquisa e encaminhamentos.
A todos os professores do ProfHistória/URCA, por terem sido parte essencial deste processo.
A todos da turma do ProfHistória/URCA, pelos momentos descontraídos, de debate profícuo e
de troca de experiências enriquecedoras sobre o ensino e a aprendizagem de História.
Um agradecimento especial ao amigo Josemar de Medeiros Cruz, pelas inúmeras caronas e
conversas, que amenizaram nossas angústias e dúvidas e com quem aprendi muito.
A Danilo Linard, pelas primeiras indicações sobre a Teoria do Quadrinhos, e sobretudo, pela
amizade.
Aos alunos e alunas de minhas turmas, pela receptividade e atenção.
Aos meus pais e irmãos pelo apoio.
Especialmente, por todo apoio e incentivo, à minha companheira Maria Regilânia e aos meus
filhos, Íris Regina e Cícero Varela Filho.
Ao programa de pós-graduação em ensino de História ProfHistória/URCA, pela oportunidade
de formação acadêmica de excelência na universidade pública.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa
concedida, que muito auxiliou no desenvolvimento deste estudo.
A todos que fazem partem das escolas públicas estaduais Adauto Leite e André Cartaxo,
Mauriti-CE, pelo apoio e compreensão durante a realização do mestrado, para que eu pudesse
me dedicar inteiramente à pesquisa.
Por fim, agradeço a todos que tornam possível as História em Quadrinhos, que de alguma
maneira direta ou indireta participaram para que o presente trabalho fosse realizado.
RESUMO
Esta dissertação constitui-se em um conjunto de análises sobre Histórias em Quadrinhos,
aprendizagem históricas e sua relação com o ensino de História. Para isso, apresenta-se uma
contextualização teórica a partir da teoria da narrativa e cultura histórica (RÜSEN, 2009, 2011,
2012) e sua relação com o ensinar história (SCHMIDT, 2004, 2006 e 2008; BARCA, 2005) e
com a HQs (FRONZA, 2007, 2009, 2012). Para compreendermos a linguagem das Histórias
em Quadrinhos, fizemos uso das contribuições de Will Eisner (2010, 2013), Scott McCloud
(2005, 2006), Valdomiro Vergueiro (2018), Barbara Postema (2018) e Nobu Chinen (2011).
Na perspectiva teórico-metodológica, visando explorar a relação História em Quadrinhos e
ensino, a narrativa gráfica foi compreendida através dos elementos propostos por alguns autores
como Vilela (2018) e Vergueiro (2003) para refletir sobre o seu uso didático. Para efeito de
discussão, o presente texto está divido em três capítulos. No primeiro, levantamos observações
sobre a origem das histórias em quadrinhos, bem como estabelecemos as articulações com o
ensinar e aprender História e as HQs histórica. No segundo, discutimos as aproximações entre
as histórias em quadrinhos e o processo de compreensão histórica. E no último, expomos
análises sobre HQs históricas e o ensino de História a partir da nossa experiência docente ao
longo dos anos de ensino, mas especificamente entre 2018 a 2019. Como parte propositiva
apresentamos nos apêndices uma sequência didática e duas propostas de atividade para consulta
dos professores contendo orientações didáticas e trechos de HQs para o trabalho nas aulas de
História.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de História. HQs históricas. Aprendizagem Histórica. Cultura
Histórica.
ABSTRACT
This dissertation consists in a set of analyzes on Comic Stories, historical learning and its
relationship with the teaching of History. For that, a theoretical contextualization is presented
from the theory of narrative and historical culture (RÜSEN, 2009, 2011, 2012) and its
relationship with teaching history (SCHMIDT, 2004, 2006 and 2008; BARCA, 2005) and with
Comic Stories (FRONZA, 2007, 2009, 2012). To understand the language of Comics, we used
the contributions of Will Eisner (2010, 2013), Scott McCloud (2005, 2006), Valdomiro
Vergueiro (2018), Barbara Postema (2018) and Nobu Chinen (2011). In the theoretical-
methodological perspective, aiming to explore the relationship between Comic History and
teaching, the graphic narrative was understood through the elements proposed by some authors
such as Vilela (2018) and Vergueiro (2003) to reflect on its didactic use. For the purpose of
discussion, this text is divided into three chapters. In the first, we raise observations about the
origin of comic books, as well as establish the links with teaching and learning History and
historical comics. In the second, we discuss the approximations between comic books and the
process of historical understanding. And in the last, we expose analyzes on historical comic
books and the teaching of History from our teaching experience throughout the years of
teaching, but specifically between 2018 and 2019. As a propositional part, we present in the
appendices a didactic sequence and two activity proposals for consultation of teachers
containing didactic guidelines and excerpts from comic books for work in History classes.
KEY WORDS: Teaching History. Historical comics. Historical Learning. Historical Culture.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Ganga Zumba sendo avisado de um entrada. ......................................................... 15
Figura 2 - Dificuldades de sair do país. ................................................................................... 16
Figura 3 - As aventuras de “Nhô-Quim”, ou impressões de uma viagem à corte. .................. 22
Figura 4 – A Wild Political Fight in Hogan's Alley--Silver Against Gold. New York World
August 2, 1896 .......................................................................................................................... 24
Figura 5 - Vinhetas do prestativo e atrapalhado de Happy Hooligan de Frederick Burr Opper.
.................................................................................................................................................. 26
Figura 6 - Capa da Action Comics n.1 (1938), da National Periodicals. ............................... 28
Figura 7 - Relação entre postura do corpo e o texto. ............................................................... 52
Figura 8 - Campo de refugiado ................................................................................................ 66
Figura 9 - releituras do quadro de Debret ................................................................................ 68
Figura 10 - Discurso de ódio contra os Judeus. ....................................................................... 77
Figura 11 - Tiradentes ............................................................................................................. 84
Figura 12 - Capas da série Grandes Figuras em quadrinhos ................................................... 85
Figura 13 - Produto de consumo e esquecimento .................................................................... 88
Figura 14 - Localização geografia e movimentação................................................................ 94
Figura 15 - Infância e pega de boi ........................................................................................... 98
Figura 16 - Motivação: Vingar a morte do pai. ..................................................................... 104
Figura 17 - Preparação para uma rebelião. ............................................................................ 109
Figura 18 - Nana e Valu. Ficar e fugir................................................................................... 110
Figura 19 - O Quibungo. ....................................................................................................... 113
Figura 20 - Ideograma proverbial quioco. ............................................................................. 113
Figura 21 - Cágado, desenho cabina...................................................................................... 114
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Nomes relacionados ao cangaço. .......................................................................... 91
Gráfico 2 - Fontes mencionadas em porcentagem. .................................................................. 97
Gráfico 3 - Respostas em porcentagem. .................................................................................. 99
Gráfico 4 - Acontecimentos mencionados ............................................................................. 102
Gráfico 5 - Motivos para Lampião entrar no cangaço ........................................................... 103
Gráfico 6 - Confiabilidade de Cumbe .................................................................................... 120
Gráfico 7 - Sentimentos evidenciados ................................................................................... 125
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Justificativas das afirmativas .................................................................................. 99
Tabela 2 - Justificativas das negativas ................................................................................... 100
Tabela 3 - Gostou de ler Cumbe ............................................................................................ 120
Tabela 4 - Reconhecimento de situações ............................................................................... 121
Tabela 5 - Situações do passado ............................................................................................ 122
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Tipologia da aprendizagem histórica ................................................................... 71
Quadro 2 - Tipologia da narração histórica ............................................................................. 82
LISTA DE SIGLAS
CMAA - Comics Magazine Association of America.
EBAL - Editora Brasil-América Ltda.
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio.
HQs - Histórias em Quadrinhos.
HQ - História em Quadrinhos.
SPAECE - Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará.
TV – Televisão.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
CAPÍTULO 1 - A NARRATIVA GRÁFICA E SUAS ARTICULAÇÕES COM O
ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA. ............................................................................... 19
1.1 A origem das Histórias em Quadrinhos .......................................................................... 19
1.1.1 Da origem crítica humorística .................................................................................. 21
1.1.2 Dos comic books a graphic novel ............................................................................ 27
1.2 A narrativa gráfica .......................................................................................................... 31
1.2.1 História em quadrinhos como narrativa gráfica ....................................................... 33
1.2.2 Conceitos e elementos que constituem uma narrativa gráfica ................................. 34
1.2.3 A coexistência da realidade histórica e da ficção nas HQs ...................................... 38
1.3 Das HQs históricas .......................................................................................................... 40
1.3.1 Do conceito e classificação ...................................................................................... 46
CAPÍTULO 2 - HQs HISTÓRICA E OS PROCESSOS DE COMPREENSÃO
HISTÓRICA ........................................................................................................................... 55
2.1 Didática da História, cultura histórica e HQs históricas ................................................. 55
2.1.1 Da Didática da História e as HQs históricas ............................................................ 55
2.1.2 Da cultura histórica e as HQs históricas................................................................... 58
2.2 Aprendizagem histórica e as HQs históricas .................................................................. 63
2.2.1 Das tipologias da aprendizagem histórica ................................................................ 70
2.3 Narrativa históricas e as HQs históricas ......................................................................... 78
2.3.1 Das tipologias da narrativa histórica e as HQs históricas ........................................ 81
CAPÍTULO 3 - HQS HISTÓRICAS E O ENSINO DE HISTÓRIA: EXPERIÊNCIA DE
ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA. ............................................................................... 90
3.1 Observações e possibilidades a partir de Lampião em quadrinhos. ............................... 90
3.1.1 Ensino de História a partir da biografia em quadrinhos ........................................... 90
3.1.2 Da produção e narrativa de Lampião em quadrinhos ............................................... 93
3.1.3 Das observações a partir de Lampião em quadrinhos .............................................. 95
3.2 Projeto “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de Marcelo D’Salete” ......... 105
3.2.1 Ensino de História a partir da ficção-histórica em quadrinhos .............................. 105
3.2.2 Da produção e narrativa de Cumbe ........................................................................ 107
3.2.4 Das análises a partir de Cumbe .............................................................................. 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 127
FONTES DE PESQUISA ..................................................................................................... 132
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 133
APÊNDICES ......................................................................................................................... 139
13
INTRODUÇÃO
A presente dissertação constitui-se em um estudo sobre o uso de Histórias em
Quadrinhos (HQs) como recurso didático no processo de aprendizagem de histórica. Tomamos
como referência para a abordagem do tema nossa experiência com o uso de diversas narrativas
gráficas, e em particular, duas HQs históricas: Lampião em quadrinhos (1997), de Ruben
Wanderley Filho, e Cumbe (2018), de Marcelo D’Salete. A escolha dos referidos quadrinhos,
deu-se em função de estarmos, na época em que cursávamos as disciplinas do ProfHistória -
URCA, turma 2008.1, discutindo os temas Cangaço e Escravidão na América portuguesa, nas
turmas as quais leciono na rede pública estadual de ensino do Ceará, no município de Mauriti
– CE.
Quando se trata de estudar a narrativa gráfica (EISNER, 2013), evidenciamos, através
de nossa prática docente, que as HQs Históricas não são apenas um meio de entretenimento,
mas também um artefato da cultura histórica e de uso didático nos ambientes escolares. Assim,
esse trabalho proporcionou uma reflexão sobre as Histórias em Quadrinhos (HQs) como
referencial de narração e capaz de possibilitar o desenvolvimento da aprendizagem histórica
para a experiência, interpretação e orientação histórica. Além de entender como as experiências
históricas são apreendidas por meio da aprendizagem histórica, já que as HQs trazem as mais
diversas fontes de pesquisa na construção da narrativa.
Por isso foi oportuno realizar as primeiras observações e considerações da importância
dos quadrinhos para o processo de ensino-aprendizagem. As HQs que antes, eram vistas como
nocivas para a aprendizagem, nos dias de hoje são amplamente utilizadas em livros didáticos e
nas avaliações externas (ENEM e SPAECE). Vergueiro (2018), por exemplo, discute e elenca
algumas particularidades das HQs: I. Existe um nível elevado de informações dentro dos
quadrinhos que são bastante pertinentes de serem discutidas em sala de aula; II. Podem ser
utilizadas de forma eficiente para a transmissão de conhecimentos específicos; III. Apresentam
um leque de oportunidades para a ampliação da comunicação através da linguagem gráfica; IV.
Exigem do leitor imaginação e criatividade; e por fim, V. Agregam um caráter cultural, em que
trazem culturas, línguas, etnias e sociedades diferentes para as demais temáticas.
Isso posto, nossa escolha pela temática da pesquisa deu-se através de dois fatores
essenciais: o primeiro, de foro particular, pautado pelo nosso interesse por narrativas gráficas,
por estas estarem presentes em nosso cotidiano didático e social como leitor de HQs e um
estudioso desse gênero narrativo; e o segundo fator, de foro acadêmico, por estar relacionado à
linha de pesquisa Linguagens e Narrativas Históricas: Produção e Difusão, do Programa de
14
Mestrado Profissional em Ensino de História – ProfHistória, cujos estudos voltam-se à
questão da linguagem e da narrativa histórica, considerando diferentes tipos de suportes.
Assim, o projeto de dissertação, originalmente intitulado “Histórias em Quadrinhos e
experiências do tempo: competência narrativa e aprendizagem histórica a partir das HQs
“Angola Janga: uma história de Palmares (2017)” e “O Melhor Que Podíamos Fazer (2017)”1,
objetivou investigar a relação entre aprendizagem histórica e Histórias em Quadrinhos (HQs),
partindo da premissa de que as HQs viabilizam a compreensão histórica, por elas oferecerem
aos discentes elementos acerca das experiências do passado. Consideramos, também, que as
HQs têm a capacidade de apresentar, por intermédio, elementos estéticos essenciais para o
desenvolvimento das narrativas gráficas, o passado do presente, o que as tornam importantes
para o ensino de História.
Na construção do objeto de pesquisa, verificou-se que no âmbito das novas
metodologias aplicadas ao ensino de História, especialmente aquelas voltadas à linguagem,
consideramos relevante o papel evidenciado pelas HQs históricas2 nos estudos de temáticas
históricas e problemáticas sociais. Na prática, esses quadrinhos podem ser objetos de pesquisas
pensadas a partir das abordagens historiográficas, e assim, documento histórico, e como
material didático3 para o ensino de História que evidencia as experiências no tempo.
Como indica Schmidt e Cainelli (2004, p. 24), o uso de documento histórico no processo
ensino-aprendizagem “é indispensável como fundamento do método de ensino, principalmente
porque permite o diálogo do aluno com as realidades passadas e desenvolve o sentido da análise
histórica”. Assim, ao entendermos as HQs como documentos históricos, temos a nítida
compreensão de que a narrativa gráfica emprega uma sequência de imagens para se estruturar
enquanto narrativa acerca de uma determinada temática ou experiência temporal, à ela
atribuindo sentido(s).
Para citarmos um exemplo, entre diversas temáticas e narrativas apresentadas na HQs
Angola Janga: uma história de Palmares (2017), de Marcelo D’Salete, encontramos a figura
de Zumbi, Ganga Zumba, Domingos Jorge Velho e o cotidiano dos escravizados que
1 Originalmente, a pesquisa teria as duas HQs citados como objeto de análise dessa dissertação, que seriam
trabalhadas com os alunos em Aulas-oficinas. Entretanto, preferimos fundamentar nossa prática com este artefato
da cultura histórica, que por sua vez, tornou-se possível por causa do ProfHistória. Por isso, no decorrer deste texto
fazemos menções as diversas HQs que já fizeram ou ainda fazem parte de nossas aulas de História no Ensino
Médio, como também, de nossas leituras.
2 Conceito que será discutido no primeiro capítulo.
3 Entendemos como material didático todo artefato da cultura história utilizado nas aulas como suporte do
conhecimento histórico, a exemplo: livros didáticos, histórias em quadrinhos, filmes, novelas, jornais, imagens,
jogos, músicas entre outros.
15
problematizam eventos históricos e os conflitos sociais e políticos do período. No quadrinho a
seguir (Figura 2), vemos Ganga Zumba recebendo a notícia de Zona que em breve acontecerá
uma nova entrada, e um avaliação a respeito da força dessa expedição.
Figura 1 - Ganga Zumba sendo avisado de um entrada.
D'SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. p. 84
Logo, dado o contexto e o espaço em que estão inseridas (Figura 1), as HQs constroem
significados e sentidos interligando imagens e textos. Esse processo de construção é um
elemento importante na produção da narrativa gráfica. E, sem dúvida, fomenta a
problematização deste suporte como fonte e documento em sala de aula.
Dessa maneira, com a intenção de promover a compreensão histórica, o contato dos
alunos com as narrativas gráficas e o contexto histórico, apresentado no livro didático,
proporciona a construção do conhecimento histórico e o entendimento da conjuntura social e
política. Um exemplo dessa dinâmica é apresentado em O melhor que podíamos fazer (2017),
de Thi Bui. Materializada na autobiografia em quadrinhos, a narrativa articula os fatos
históricos sobre a descolonização da Ásia, a Guerra do Vietnã e as dificuldades de sua família
de sair do país depois da vitória dos vietcongues. Na página 244 da autobiografia gráfica
(Figura 2), a sequência gráfica mostra as adversidades e os problemas de uma fuga clandestina,
como fadiga, medo, frio, sede. Nesses quadros, a família de Thi Bui encontra-se no porão de
16
um barco. Má, a mãe, está grávida outra vez e é representada exausta, enquanto Thi tem sede
e, a água pútrida, o que leva Lan a cuspi-la.
Figura 2 - Dificuldades de sair do país.
Fonte: BUI, Thi, O melhor que podíamos fazer. São Paulo: Nemo, 2017. p. 244
Feitas essas primeiras análises, a pesquisa que possibilitou essa dissertação partiu da
premissa de que a utilização das HQs favorece a aprendizagem histórica e a aquisição de
competências narrativas que habilitam os discentes, e também os docentes de História, a
articularem conceitos importantes para o ensino desta disciplina. Como material didático, as
HQs auxiliam na compreensão da experiência temporal, como também das mudanças e
permanências, anacronismos, representação, fatos e sujeitos históricos de forma mais explícita
e didática.
Por isso, em nossa investigação, baseamo-nos no argumento que as HQs Históricas
ultrapassam os aspectos ilustrativos, lúdicos e de mero entretenimento, porque são artefatos da
cultura histórica repletos de sentido que estão articulados às experiências do passado, às
17
expectativas de futuro e suas intencionalidades e às orientações do sentido de agir no tempo. A
cultura histórica, em essência, é inerente ao cotidiano e orientadora de sentidos de um
imaginário sobre o passado, em razão de que todos os elementos dessa cultura dialogam com a
vida prática dos sujeitos e sociedades nos quais estão inseridos.
Assim, através de uma HQ histórica, a partir do conceito rüseano de cultura histórica,
pode-se oportunizar um contato maior dos alunos com as experiências do passado. Isso porque
os estorvos para a compreensão e concepção de determinado tema são subjugados pela narrativa
gráfica, durante a problematização da realidade histórica, partindo de uma leitura crítica,
dinâmica e envolvente estabelecida nessa linguagem. Essa abordagem mostra a contingência
desse artefato para o ensino de História, destaca a relevância de percebê-las como um registro
histórico concreto e possível por apresentar uma série de temáticas sobre política, mitologia,
dilemas éticos, fatos históricos, conjunturas históricas e cenas do cotidiano.
Esta pesquisa observou a abordagem referente à investigação qualitativa baseada no
estudo de Michelle Lessard-Hébert (LESSARD-HÉBERT; GOYETTE; BOUTIN, 2012), visto
que a relação entre aprendizagem histórica e as HQs históricas foi analisada a partir dos
significados que os alunos atribuíram a experiência do tempo. Nesse trabalho, os autores
asseveram que esse tipo de investigação é interpretativa porque o cerne dessa abordagem reside
no interesse “pelo significado conferido pelos atores às ações nas quais se empenharam” (2012,
p. 32, grifo dos autores). Logo, a análise feita, no último capítulo dessa dissertação, está
moderada nos significados atribuídos pelos alunos aos instrumentais de pesquisa e às
observações feitas durante as aulas de História.
O método de levantamento de dados aconteceu em dois momentos e classes de alunos
distintos no decorrer de 2018 e 2019. No primeiro, as informações foram coletadas mediante
observações feitas tanto na participação oral dos alunos quanto nas atividades escritas, a partir
da leitura da HQ Lampião em quadrinhos (1997), de Ruben Wanderley Filho. No segundo, os
dados foram recebidos via formulário online e de participação facultativa e anônima, como
atividade extra da Aula-Oficina “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de Marcelo
D’Salete”. A construção dos dados alicerçou-se a partir do modelo interativo da análise das
informações composto por três componentes: 1. A redução dos dados referente ao processo “de
seleção, de centração, de simplificação, de abstração e de transformação” das fontes de
informação (LESSARD-HÉBERT; GOYETTE; BOUTIN, 2012, p. 109); 2. A apresentação dos
dados através de tabelas e gráficos; 3. Interpretação/verificação das conclusões.
Para efeito de discussão, a dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro,
intitulado “A narrativa gráfica e suas articulações com o ensinar e aprender história”,
18
elaboramos observações sobre a origem das histórias em quadrinhos, bem como estabelecemos
as articulações com o ensinar e aprender História e as HQs histórica. Nesse caminho,
analisamos os elementos que constituem as narrativas gráficas, o lugar e as possibilidades das
HQs como artefatos de cultura histórica portadora de narrativas de constituição de sentido e a
coexistência da ficção e da realidade histórica nas Histórias em Quadrinhos. Para isso, foram
considerados os trabalhos de Waldomiro Vergueiro (2018), Roberto Elísio Santos (2012), Will
Eisner (2010, 2013), Scott McCloud (2005), Barbara Postema (2018), Nobun Chinen (2011),
Alexandre Barbosa (2009) e Túlio Vilela (2018).
No segundo capítulo, “HQs históricas e os processos de compreensão histórica”,
discutimos as aproximações entre as histórias em quadrinhos e o processo de compreensão
histórica. Para tal, fizemos uso dos conceitos de aprendizagem histórica, cultura histórica e
narrativa histórica (RÜSEN, 2007a, 2009, 2011, 2012) para analisar as HQs históricas. Nesse
percurso do texto, utilizamos os quadrinhos A arte de voar (2018), D. João Carioca. A corte
portuguesa chega ao Brasil (1808-1821) (2007), Caveira Vermelha – Encarnado (2013),
História do Brasil em quadrinhos: independência do Brasil (2008) e Quarto de despejo: diário
de uma favelada (2018) estabelecendo diálogos aproximando essas narrativas gráficas aos
conceitos operacionalizados.
O terceiro, intitulado “HQs históricas e o ensino de história: Experiência de ensinar
e aprender História”, tem como cerne expor consideração sobre HQs históricas e o ensino de
História a partir da nossa experiência docente ao longo dos anos de docência, mas
especificamente entre 2018 a 2019. A partir das HQs Lampião em quadrinhos, de Rubem
Wanderley Filho e Cumbe, de Marcelo D’Salete, mobilizaremos os conceitos desenvolvidos
nos capítulos anteriores para a interpretação dos dados coletados, procurando compreender os
significados e inferências que alguns alunos forneceram em relação à experiência temporal nos
quadrinhos mencionados. É importante ressaltar que essa análise foi realizada no tópico:
“Observações e possibilidades a partir de Lampião em quadrinhos” e no projeto
“Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de Marcelo D’Salete”.
Nas considerações finais, mencionamos algumas conclusões feitas a partir da
investigação sobre a relação entre a aprendizagem histórica e as HQs históricas no tocante ao
ensino de História na Educação Básica, desenvolvidas durante os capítulos dessa dissertação.
E nos apêndices, apresentamos uma sequência didática e duas propostas de atividade para
consulta dos professores contendo orientações didáticas e trechos de HQs para o trabalho nas
aulas de História.
19
CAPÍTULO 1 - A NARRATIVA GRÁFICA E SUAS ARTICULAÇÕES COM O
ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA.
O propósito deste capítulo é elaborar observações sobre a origem das histórias em
quadrinhos, bem como estabelecer articulações com o ensinar e aprender História e as HQs,
especialmente, as históricas. Nesse caminho, serão analisados os elementos que constituem as
narrativas gráficas, o lugar e as possibilidades das HQs como artefatos de cultura histórica
portadora de narrativas de constituição de sentido e a coexistência da ficção e da realidade
histórica nas Histórias em Quadrinhos.
1.1 A origem das Histórias em Quadrinhos
Atualmente, frente à consolidação da indústria das Histórias em Quadrinhos4 (HQs), aos
títulos lançados anualmente em diversas partes do mundo e ao gradativo espaço que a nona arte
vem logrando no ensino básico, as HQs têm sido adquiridas, consumidas e problematizadas por
um público cada vez maior e múltiplo. Percebe-se, a diversidade de publicações em vários
países e a presença de uma ampla variedade de temas, assuntos e títulos, chegando aos milhões
fomentados, principalmente, pelo cinema e pelas séries de TVs.
No entanto, essa estima pelos quadrinhos não ocorreu por acaso ou em separado de
outras formas narrativas. A linguagem das HQs, que daria origem ao formato e à narrativa
gráfica, tem sua gênese nas chamadas literaturas em gravuras ou histórias em gravuras, datadas
do início do século XIX, com destaque para Les Amours de monsieur Vieux Bois, de Rodolphe
Töpffer, de 18275. Mas a primeira massificação das HQs, resultados da produção, divulgação
e comercialização estão intrinsecamente ligados à evolução da indústria tipográfica e ao
advento do jornalismo na transição do século XIX para o XX.
Como aponta Vergueiro (2018, p. 10), o desenvolvimento da indústria tipográfica e a
emergência de extensas cadeias jornalísticas no século XIX “criaram as condições necessárias
para o aparecimento das histórias em quadrinhos como meio de comunicação de massa”,
assente em uma consistente tradição iconográfica. Com efeito, na medida que o público leitor
4 Consideramos neste artigo o conceito de Paulo Ramos, este estudioso dos quadrinhos considera que as HQs não
se resumem as tirinhas, mas aos cartuns, charges, as tiras cômicas, tiras cômicas seriadas e tiras seriadas.
5 Foi a primeira história firmada por imagens em sequência acompanhada de recordatórios cujo texto escrito não
apenas explicava o que estava ilustrado, mas completava o sentido dos desenhos. Segundo McCloud (2005),
Töpffer foi pioneiro na Europa na combinação interdependente entre texto e imagem, empregando também
caricaturas e requadros em suas publicações, o que lhe garantiu a “titulação” de “pai dos quadrinhos”.
20
aumentava, principalmente nos Estados Unidos da América, a indústria jornalística e as HQs
puderam desenvolver-se, devido à crescente população urbana, na qual se destacavam as classes
médias e a burguesia em ascensão6, ao mesmo tempo, que o avanço da industrialização levou
ao aperfeiçoamento gráfico e à redução dos custos das edições dos jornais diários. Essas novas
condições, acirraram a concorrência e impulsionaram o desenvolvimento de jornais e
complementos dominicais.
Mesmo considerando um grande número de obras que agrupava a palavra impressa à
elementos pictóricos nos folhetins publicados nos séculos XVIII e XIX na Europa, como o já
citado Les Amours de monsieur Vieux Bois, Waldomiro Vergueiro assinala para os Estados
Unidos da América como marco inicial do surgimento das características que acompanham as
HQs como uma forma de comunicação visual impressa e linguagem própria, tendo como
suporte o papel.
Ainda que histórias ou narrativas gráficas contendo os principais elementos da
linguagem dos quadrinhos possam ser encontradas, paralelamente, em várias regiões
do mundo, é possível afirmar que o ambiente mais propício para seu florescimento
localizou-se nos Estados Unidos do final do século XIX, quando todos os elementos
tecnológicos e sociais encontravam-se devidamente consolidados para que as histórias
em quadrinhos se transformassem em um produto de consumo massivo, como de fato
ocorreu. (VERGUEIRO, 2018, p. 10).
Para o historiador Ian Gordon (1998), as publicações de narrativas sequenciais, charges,
cartuns e ilustrações converteram-se em meios para a difusão e circulação dos jornais, a
princípio como complementos das edições dominicais no final do século XIX nos Estados
Unidos. Desse enlace, “surgiram, ainda na primeira década do século XX, os suplementos
dominicais coloridos de quadrinhos (denominados Sundays) encartados nos principais
periódicos norte-americanos e as tiras diárias (as daily-strips)” (SANTOS, 2009). Assim, a
produção, a divulgação e o consumo de HQs tornaram-se novas possibilidades para os jornais.
Em terras brasileiras, o primeiro periódico a apresentar elementos pictóricos – charges,
quadrinhos e retratos – foi o jornal Diabo Coxo7 (1864-1865). Fundado pelo ilustrador ítalo-
6 Cf. SOUSA, Jorge Pedro. O jornalismo nos Estados Unidos no século XIX. In: SOUSA, Jorge Pedro. Uma
história breve do jornalismo no Ocidente. Universidade Fernando Pessoa e Centro de Investigação Media &
Jornalismo. 2008. Disponível em < http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-uma-historia-breve-do-
jornalismo-no-ocidente.pdf> Acesso em 19 nov. 2018
7 O jornal tinha a dimensão de 18 por 26 cm, com 8 páginas sendo quatro de ilustrações (caricaturas, retratos, cenas
cotidianas, eventos) e as demais com textos (artigos, notícias, críticas, anedotas, adivinhações etc). Colaboraram
com textos Luís Gama e Sizenando Barreto de Araújo. Pela assinatura anual (12 números) era cobrado 4$000 reais
para assinantes da Capital e 5$000 reais para outros locais, o que correspondia a três vezes o valor dos exemplares
de jornais diários.
21
brasileiro Angelo Agostini (1843-1910)8 e pelo escritor abolicionista Luís Gama (1830-1882)
e com a colaboração de Sizenando Nabuco – irmão mais novo do defensor da causa
abolicionista Joaquim Nabuco, na província de São Paulo, diferiu-se dos outros pela impressão
de imagens numa sociedade constituída, em sua maioria, por um público iletrado, fazendo das
ilustrações um potencial recurso de divulgação de ideias e valores. Agostini foi o precursor das
narrativas quadrinizadas brasileiras e suas obras eram, em geral, bem recepcionadas pela
sociedade carioca, então capital do Império do Brasil.
Dessa forma, o jornal, a partir da década de 1860, sobrepujou por meio das imagens a
estreita população de letrados, contribuindo com a formação de público maior para os jornais,
e consequentemente, abrindo espaço para veiculação de narrativas gráficas. Contudo, apesar da
publicação do jornal Cabrião (1866-1867), também de Angelo Agostini, o principal veículo
das HQs no Brasil será A Revista Ilustrada (1876-1895), o periódico de maior duração e de
grande importância, durante o período do Segundo Império no Brasil (1840 a 1889),
principalmente no Rio de Janeiro.
1.1.1 Da origem crítica humorística
A partir do final do século XIX, com a colaboração de Angelo Agostini, diversas revistas
se destacaram na imprensa ilustrada do Rio de Janeiro: a Vida Fluminense (1868-1875), O
Mosquito (1869-1877) e A Revista Illustrada (1876-1895). Nesse período, o comentário político
ganhava, paulatinamente, espaços nas revistas ilustradas e essas publicações faziam críticas,
através do humor, dos problemas sociais e políticos vividos no país, como a manutenção da
escravidão no Brasil e as contradições inerentes a mesma.
Em Vida Fluminense, publicada no Rio de Janeiro entre os anos de 1868 e 1875, Angelo
Agostini inicia, sistematicamente, a produção de folhetins ilustrados, um gênero narrativo
praticamente inédito à época no Brasil. Seguindo a tradição do romance-folhetim9, bastante
8 Angelo Agostini nasceu em Vercelli - Itália, no dia 8 de abril de 1843 e faleceu no Rio de Janeiro - Brasil, em 28
de janeiro de 1910) foi um desenhista ítalo-brasileiro que firmou carreira no Brasil e foi o mais importante artista
gráfico do Segundo Reinado.
9 De acordo com Luíza Alvim (2008), a palavra “folhetim” vem do francês feuilleton, que por sua vez vem de
feuillet (LAROUSSE, 1989), que significa pequena folha (feuille). Como a palavra, os folhetins se originaram na
França. Inicialmente feuilleton servia para designar a parte inferior da primeira página dos jornais, destinada à
publicação de textos de entretenimento: piadas, charadas, receitas de cozinha, críticas de peças e de livros,
pequenos textos em geral (MEYER,1996). Portanto, no início, o termo folhetim se referia genericamente a um
espaço na geografia do jornal.
A partir de 1836 o termo passou a se referir a “romances-folhetim”, ou seja, romances publicados de forma
fragmentada em jornais e marcados por uma estratégia de corte que provocava a curiosidade do leitor pelos
“próximos capítulos”, estratégia mantida atualmente pelas novelas televisivas. Foi justamente em 1836 a
22
popular no século XIX e um dos alicerces de enorme parte da imprensa europeia e do Brasil,
publica nesta revista, Aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma Viagem à Corte10 (1869-
1872), considerada a primeira contribuição à história das HQs no Brasil. Além, da publicação
de uma série de ilustrações que noticiavam e faziam críticas à Guerra do Paraguai (1864 –
1870).
A HQ Aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma Viagem à Corte abordava, por
intermédio de uma narrativa gráfica humorística, o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro no
final do século XIX e os problemas do homem comum. Em “Aventuras de Nhô Quim”, o
ilustrador ítalo-brasileiro descreve as venturas e desventuras de um filho de proprietário mineiro
rico, ingênuo e trapalhão, visto que, no final da década de 1860, o dia a dia da corte na capital
do Império era demarcado, entre outras contradições, pelo convívio entre os representantes da
aristocracia rural e os habitantes da corte.
Figura 3 - As aventuras de “Nhô-Quim”, ou impressões de uma viagem à corte.
Fonte: CAMPOS, Rogério de. Imageria: o nascimento das histórias em quadrinhos. São Paulo: Editora Veneta,
2015, p. 210.
publicação do primeiro romance-folhetim na França por ninguém menos que Balzac. O romance se chamava La
vieille fille (“A velha moça”) e foi publicado em doze episódios no jornal La Presse de Émile de Girardin
(MEYER, 1996). ALVIM, Luiza. Os jornais, o romance e o folhetim. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/6o-encontro-2008-1/Os%20jornais-
%20o%20romance%20e%20o%20folhetim.pdf. Acessado em 21 de out de 2019.
10 O primeiro capítulo de Nhô-Quim foi desenhado por Agostini em 30 de janeiro de 1869. No ano seguinte, em 8
de janeiro, a série foi interrompida sem final. Dois anos depois, em 6 de janeiro de 1872, Faria continuou a história,
suspendendo-a em 12 de outubro do mesmo ano, sem conclusão.
23
A narrativa principia com a partida da fazenda e a viagem de trem até o Rio de Janeiro,
onde se desenvolve a maior parte dos casos (Figura 3). No Rio, Nhô Quim é ludibriado e
explorado por malandros e astutos, caracterizando o matuto à época, alguém que era muito rico,
mas nada familiarizado com a vida na Corte.
As aventuras de Nhô Quim eram, sem dúvida, antes de tudo uma distração e a narrativa
expunha cenas da cidade, que exibia em cada capítulo de maneira bastante particular, além das
críticas sutis aos problemas urbanos e costumes sociais. Apesar disso, Balaban (2005)
reconhece que o motivo do sucesso desse personagem se explica de outra maneira.
A construção de um personagem matuto, ou caipira, vindo não por acaso da província
de Minas Gerais, tinha um significado bem específico. Agostini fazia uso de um
repertório humorístico comum à época, segundo o qual o mineiro era visto como uma
figura simplória, como um roceiro que, em razão dessa sua característica, tinha a Corte
como um lugar algo mítico. Essa não era uma temática nova, já tendo sido apresentada
em peças teatrais e romances da época. (BALABAN, 2005, p. 138).
No que diz respeito à linguagem, em Aventuras de Nhô Quim podemos citar, por
exemplo, a ordenação sequenciada dos desenhos, já seguindo o padrão ocidental de leitura das
histórias em quadrinhos; a quadrinização – a inserção em quadros fechados – de alguns
desenhos; e o uso do texto como uma espécie de guia para a leitura. Entre os estudiosos de
quadrinhos no Brasil, muito se discutiu se As aventuras de Nho-Quim poderia ou não ser
consideradas como uma das primeiras HQs do mundo. A discussão avança por argumentações
técnicas como a existência ou não dos textos em balões para definir o início do gênero; se o
parâmetro for este, o pioneirismo é do Yellow Kid estadunidense, criado em 1895, se o balão
não for preponderante poderia ser “Nho-Quim” ou outras narrativas gráficas publicadas na
Europa.
Em 1889, nos Estados Unidos da América, o jornalista Joseph Pulitzer (1947-1911)
criou a página ilustrada em preto e branco The World’s Funny Side na edição de domingo,
seguindo o legado das revistas burlescas e satíricas repletas de humor, chamadas de comics ou
funnies. Com os desenhos, o enquadramento e a linguagem visual tipografada, esse
complemento já despontava como marco histórico para as narrativas gráficas sequenciais.
Segundo Marcos Nicolau (2007)11, Joseph Pulitzer para conseguir novos leitores para o
seu jornal New York World (1860-1931), na última década do século XIX, quando travaram
uma acirrada competição contra William Randolph Hearst12 (1863-1951), transformou seu
11 NICOLAU, Marcos. As tiras de jornal como gênero jornalístico. Revista Eletrônica Temática. ISSN: 1807-
8931. Disponível em: < http://www.insite.pro.br/2007/05.pdf > acesso em: 18 nov. 2018.
12 Em 1895, empresário William Randolph Hearst adquiriu o New York World.
24
periódico “em um jornal sensacionalista com artigos provocantes e títulos grandes, investindo
muito no suplemento ilustrado de domingo”, muitas vezes, voltado para as populações de
migrantes. Foi justamente nesse espaço dominical que ele percebeu como as HQs poderiam ter
periodicidade semanal.
Em 1895, o New York World, publica pela primeira vez o suplemento dominical
ilustrado com quadros coloridos intitulado Hogan’s Alley13, feito por Richard Felton Outcault
(1863-1928), resultado da concorrência com New York Journal (1895-1937). Com as
publicações do Yellow Kid, como os leitores passaram a chamar o Hogan’s Alley, as
possibilidades de narrativa se ampliaram, pois os textos de sua fala eram inseridos na camisola
amarela que identificava o personagem (Figura 4). As narrativas eram ambientadas nas
periferias da cidade, que se desenvolviam com a chegada de imigrantes de várias regiões do
mundo, sempre com um toque cômico, satírico e caricatural.
Figura 4 – A Wild Political Fight in Hogan's Alley--Silver Against Gold. New York World
August 2, 1896
Fonte: https://cartoons.osu.edu/digital_albums/yellowkid/1896/1896.htm. Acesso em: 16 nov. 2018.
13 Que mostrava a influência clara dos espetáculos realizados nos vaudevilles. Vaudeville foi um gênero de
entretenimento de variedades predominante nos Estados Unidos e Canadá no final do século XIX ao início dos
anos 1930. Desenvolvendo-se a partir de muitas salas de concerto, apresentações de cantores populares, "circos de
horror" e literatura burlesca, o vaudeville tornou-se um dos mais populares tipos de empreendimento dos Estados
Unidos.
25
Rogério de Campos (2015) sustenta que se os quadrinhos não tivessem sido inventados
anteriormente, Richard Outcault os teria criado, como recurso para atrair a atenção de leitores
para sua página no jornal, em algum momento de 1896. A partir de 18 de outubro de 1896,
Hogan’s Alley passa a ser publicado pelo New York Journal (1895-1937), consolidando o
espaço para as HQs no jornal nova-iorquino e garantindo um grande sucesso de vendas. Esse
sucesso, segundo o autor, foi alçando porque a série do Yellow Kid era uma representação da
Nova York do final do século XIX.
Olhando hoje essas páginas, mais do que vermos o que foram os bairros miseráveis
da Nova York do final do século XIX, temos a impressão de que podemos ouvir sua
algazarra. Os berros dos vendedores, as brigas dos vizinhos, o apito da fábrica, vários
latidos, o choro do bebê, os gritos das crianças brincando, a exuberância da miserável
multidão rindo da classe alta, rindo de si própria e aproveitando qualquer motivo para
fazer festa. (CAMPOS, 2015, p. 293).
Diante da receptividade e sucesso, o suplemento de quadrinhos na edição dominical,
sem demora, seria adotado por outros jornais estadunidenses no início do século XX, como o
The Chicago Sunday Tribune (1888-1927). Segundo a professora Sonia Maria Bibe-Luyten, “a
supervalorização das HQs, devido à exigência dos leitores, mostrou aos empresários que os
quadrinhos tinham o seu lugar assegurado, e eles ‘compreenderam’ rapidamente o fenômeno,
saindo à procura de autores cada vez melhores, criando uma efervescência no setor” (1987,
p.18). As páginas desses encartados podiam comportar uma ou mais narrativas diferentes,
utilizando todo espaço ou apenas a metade dele, usando o humor para atrair público e
impulsionar as vendas do jornal. Nessas HQs, encontramos um dos primeiros personagens, cujo
tipo é bastante presente nos quadrinhos cômicos: o vagabundo (Ally Sloper, Weary Willie and
Tired Tim e Happy Hooligan), que apareceu no final do século XIX nos jornais ingleses e, no
início do século XX, nos estadunidenses.
Em relação a esse personagem é importante apontar que, ao mesmo tempo, em que os
leitores exorcizavam por meio do riso uma categoria desprovida de posse, ele também
simbolizava o medo de sujeição a uma situação social inferior, desempenhando, assim, um
papel compensador. Não obstante, para Roberto Elísio Santos (2012), a marginalidade do
mendigo garantia aos autores a “liberdade para contestar, pela sátira, a sociedade burguesa e o
governo, de maneira que os operários não podiam fazer na época. As tiras de Happy Hooligan14
14 “Happy Hooligan, o mendigo triste e ridicularizado por todos, que usava uma lata de conserva como chapéu.
Alvo de chacotas das crianças e vítimas dos adultos, Hooligan já era o esboço do Carlitos, que Chaplin
imortalizaria alguns anos depois”. IANNONE, Leila Rentroia; IANNONE, Roberto Antônio. O mundo das
histórias em quadrinhos. São Paulo: Moderna, 1994. (Coleção Desafios), p. 36.
26
denunciavam o autoritarismo e a repressão da sociedade, em especial o abuso de autoridade
policial” (2012, n.p), como pode ser visto na Figura 5.
Figura 5 - Vinhetas do prestativo e atrapalhado de Happy Hooligan de Frederick Burr Opper.15
Fonte: http://comicbookplus.com/?dlid=41198. Happy Hooligan (1902 – 1916) (17 of 98).
Em resumo, percebendo a necessidade de atender a diferentes segmentos do público, as
primeiras narrativas sequenciais impressas nos Estados Unidos, especialmente em Nova York,
surgiram nos jornais como estratégia das empresas jornalísticas para ampliar seu público.
Apesar do cunho humorístico, tratavam de assuntos do cotidiano, da política, dos
comportamentos coletivos, sendo publicadas ao lado de textos que tratavam de assuntos
15 Observe que Happy Hooligan é agredido e detido pelo policial (quadros 5 e 6), apesar da intenção ser de ajudar
(quadros 1, 2 e 3). No penúltimo quadro, o prestativo mendigo é agredido pelo entregador que o acusa de ter
tropeçado nele e pelo policial que fala para Happy Hooligan “Foi uma das suas tramas profundas”, apesar do
mesmo tê-lo elogiado no quadro 3. No último quadro, Happy Hooligan é levando pelo policial que se indagar qual
será o próximo crime de nosso mendigo, e para piorar, o homem a quem ele tentou ajudar diz “Vou contar ao juiz
sobre isso”.
27
políticos e econômicos. Em menos de uma década, a partir de publicações das tiras diárias, as
diversificações temáticas dos quadrinhos, abriram espaço para histórias com foco nos núcleos
familiares, animais antropomorfizados e protagonistas femininas, apesar de manterem o aspecto
cômico (VERGUEIRO, 2018, p.10).
1.1.2 Dos comic books a graphic novel
No final da década de 1920, a quebra da Bolsa de Valores de Nova York e a Grande
Depressão, a partir de 1929, dissolveram a euforia e a infalibilidade econômica dos Roaring
Twenties (Loucos Anos Vinte), aumentando o desemprego e a miséria. O ambiente de
insegurança individual e coletiva, frente à opressão e à marginalização social, impeliam os
leitores a negligenciar o riso e a sátira cotidiana, criando espaço para o gênero de aventura e a
construção de personagens inabaláveis, resolutos, independentes, carismáticos e messiânicos,
oferecendo modelos para incentivar a atitude humana.
Como observa Bibe-Luyten (1987),
É talvez por isso que se explica como o gênero “Aventura” chegou ao auge e um
turbilhão de histórias surgiu nesta época, explorando ao máximo esta nova mina de
ouro. A aventura indica um desejo de evasão e a criação de mitos, de heróis positivos.
Revela a necessidade de novos modelos nos quais se inspirar para a conduta humana.
E a era de Tarzã (aventura na selva), Flash Gordon (aventura de ficção científica) e
do Príncipe Valente (aventura no passado medieval). É como se os heróis envolvidos
nas histórias compensassem as perturbações e inseguranças da triste realidade e todos
resolvessem fugir para lugares desconhecidos. (1987, p. 26, grifos do autor).
Esse contexto simbolizou a ruptura com as lépidas narrativas cômicas e as ilustrações
caricatas, e o investimento nas extensas histórias repletas de suspense e aventura, sendo assim,
impulsionador de um novo suporte para a difusão das HQs, as comic books. Como destaca
Marília Santana Borges, influenciadas pelos pulps16 estadunidenses,
eclodiram nos quadrinhos histórias policiais, de super-heróis, ficção científica,
faroeste, suspense e horror, movimentando sua linguagem com um estilo mais realista
e atento aos detalhes, que fazia uso de técnicas cinematográficas, tais como close-ups
e panoramas, além de cores mais vivas e vibrantes. Inclusive, alguns personagens dos
próprios pulps ganharam releituras nas HQs, como por exemplo Tarzan (1929), em
uma parceria de Edgar Rice Burrough’s e Hal Foster, e Buck Rogers (1929), uma
coautoria de Philip Nowlan e Dick Calkins. (2012, p. 56).
16 Feitas em papel de baixa qualidade e com preços extremamente acessíveis, os pulps eram revistas que traziam
histórias de aventura, ficção científica, policial, de suspense e horror.
28
Nos anos de 1930, as aventuras policiais, Dick Tracy (1931), de Chester Gould,
Detective Picture Stories (1936), de William Allison, e as de ficção científica, Flash Gordon
(1939), de Alex Raymond, Amazing Mystery Funnies (1938), de Arthur Pinajian e Steve Jussen,
foram decisivas para conseguir inúmeros apreciadores. Todavia, quem ampliou o alcance das
HQs e potencializou a indústrias dos quadrinhos foram as aventuras de super-heróis, sobretudo,
junto à juventude.
Foi justamente no final dos anos de 1930, que a Action Comics nº 1 (1938), publicada
pela National Periodicals, futura DC Comics, apresentou o principal ícone dos quadrinhos, o
Superman, de Jerry Siegal e Joe Shuster (Figura 6). Embora direcionado à crianças e
adolescentes, com a história de um alienígena superpoderoso, mas com características humanas,
conforme evidencia Silva (2010, p. 26), “é com o lançamento de Superman que se cria o
primeiro modelo de Super-Herói e uma nova espécie de mito da sociedade americana”. Assim,
embalados pelo contexto sócio-político-econômico, sem delongas, os super-heróis se firmaram
como autênticas figuras midiáticas.
Figura 6 - Capa da Action Comics n.1 (1938), da National Periodicals.
Fonte: http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao-estrangeira/action-comics-(1938)-n-1/3/2
29
Durante a Segunda Guerra Mundial, a popularidade dos quadrinhos cresceu
vertiginosamente, principalmente com o engajamento fictício dos heróis nesse conflito bélico
e seu intenso consumo por grande parte dos adolescentes estadunidenses. As comic books
tiveram suas tiragens ininterruptamente ampliadas até o final do conflito, com o surgimento das
aventuras de terror e suspense, com representações extremamente realistas, viés mais violento
e sanguinário das histórias, o que levou parte da sociedade estadunidense a ficar preocupada
com a enorme influência dos quadrinhos sobre os leitores infantis (VERGUEIRO, 2018, p. 11),
convertendo os quadrinhos em bode expiatório das forças conservadoras que continham grande
prestígio e poder nos Estados Unidos na década de 1950.
Esse foi, sem dúvida, um período histórico complicado e constrangedor para os
quadrinhos, principalmente, com a publicação do livro Sedução de Inocentes (1954), do
psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham, que remodelou o trajeto a
ser delineado pela indústria de HQs. Preconizando que os comics eram um dos principais
responsáveis pela delinquência juvenil, criminalidade e estimulante de graves problemas como
“desvio de comportamento sexual”. De acordo com Waldomiro Vergueiro,
Wertham reuniu suas observações em um livro denominado A sedução dos inocentes,
publicado em 1954, que foi um grande sucesso de público e marcou, durante as
décadas seguintes, a visão dominante sobre os quadrinhos nos Estados Unidos e, por
extensão, em grande parte do mundo. Entre outras teses, o livro defendia, por
exemplo, que a leitura das histórias do Batman poderia levar os leitores ao
homossexualismo, na medida em que esse herói e seu companheiro Robin
representavam o sonho de dois homossexuais vivendo juntos. Ou que o contato
prolongado com as histórias do Superman poderia levar uma criança a se atirar pela
janela de seu apartamento, buscando imitar o herói. (VERGUEIRO, 2018, p. 12).
O livro Sedução do Inocentes foi promovido em uma sociedade vulnerável pelo pós-
guerra, sobre forte influência do período conhecido como macarthismo17, que vislumbrou nos
quadrinhos um alvo excelente para expiar seus medos e perturbações. Esse cenário alinhou o
preconceito de pais e educadores e resultou na censura contra os quadrinhos. Assim, o livro de
Wertham serviu como base para o código de censura que entraria em vigor nos anos seguintes
tanto nos Estados Unidos, quanto na França, Itália, Grã-Bretanha e Brasil.
Devido ao impacto das denúncias do dr. Wertham e de outros segmentos da sociedade
norte-americana - como associações de professores, mães e bibliotecários, além de
grupos religiosos das mais diferentes tendências não tardou para que todos os produtos
da indústria de quadrinhos passassem a ser vistos como deletérios, exigindo uma
17 O termo macarthismo surgiu em referência a cruzada anticomunista do senador Joseph McCarthy, principal
nome desse período de amplas perseguições testemunhado pela sociedade americana, e foi cunhado para designar
tais práticas e condutas coercivas.
30
“vigilância” rigorosa por parte da sociedade. Para fazer frente a essa visão, ao final da
década de 1940 alguns editores norte-americanos reunidos na Association of Comics
Magazine já haviam elaborado uma primeira proposta para depuração das publicações
da indústria dos quadrinhos, um Comics Code, que visava garantir a pais e educadores
que o conteúdo das revistas não iria prejudicar o desenvolvimento moral e intelectual
de seus filhos e alunos. (VERGUEIRO, 2018, p. 12-13).
Nas décadas de 1960 e 1970, diante da censura da Comics Magazine Association of
America (CMAA) e principalmente ao momento cultural, artístico, social e político do Estados
Unidos, emerge uma divisão nos quadrinhos, que impulsionaria a mudança de mentalidade
sobre esta linguagem. De um lado, conservando o establishment do mercado editorial dos
quadrinhos e, de outro, a cena independente underground comix, de livre contrato, tinham ritmo
próprio e liberdade de criação, tratavam de temas que até o momento, não eram versados,
dialogando efetivamente com o movimento da contracultura18 de então, sobretudo hippie e
punk.
Entretanto, somente com o desenvolvimento das ciências da comunicação e dos estudos
culturais, particularmente no final do século XX, que os meios de comunicação passaram a ser
considerados com qualidades menos apocalípticas e mais integradas. Assim como se verificou
com o cinema, o rádio, a televisão, as HQs também acompanharam esse processo, chamando a
atenção para as especificidades narrativas e aproximando os quadrinhos das práticas
educacionais, fazendo com que muitos obstáculos ou recriminações fossem gradativamente
derrubadas e anuladas (VERGUEIRO, 2018, p. 17). Um exemplo é a receptividade da primeira
edição de Maus (2009) entre 1980 e 1991, de Art Spiegelman, vencedora do prêmio especial
Pulitzer19, apresentando os relatos do pai do autor sobre a Shoah, um sobrevivente do
holocausto nazista.
Nesse ínterim, os quadrinhos, apesar das contingências negativas, prosperaram e se
estabeleceram como uma linguagem própria. Passaram de tiras diárias (daily-strips) a histórias
completas (comic books), até consolidar-se como narrativa gráfica20 através da graphic novel
18 Na década de 1960, eclodiram em diversos países ocidentais o movimento de contracultura, caracterizado pela
contestação dos valores e práticas do establishment. Tal movimento, de uma forma geral, rejeitavam o militarismo,
o autoritarismo, o nacionalismo, o capitalismo e lutavam pela liberdade sexual e pelas questões ambientais. Nos
Estados Unidos, destacaram-se, dentre outros, as culturas hippie e punk.
19 O Prêmio Pulitzer, dado pela Universidade de Columbia, foi criado em 1917 e é um importante prêmio
estadunidense, concedido àqueles que realizam trabalhos de destaque na área do jornalismo, literatura e
composição musical.
20 O uso do termo narrativa gráfica não apresenta uma substituição ao termo história em quadrinhos (HQ), nem
se esquiva das preocupações apresentadas por Barbara Postema, em Estrutura narrativa nos quadrinhos:
construindo sentido a partir de fragmentos (2018), sobre a tendência de substituir o termo quadrinhos por “graphic
novel” e “narrativa gráfica” pelo mercado editorial. Tão somente, a escolha reside no fato de relacioná-lo ao termo
narrativa histórica. Também usaremos em algumas oportunidades os termos arte sequencial, dialogando assim
31
(romance gráfico, como histórias longas e complexas, publicadas em formato de livro). Com
esse formato, emergiram a necessidade de continência literária dos quadrinhos e a sofisticação
de roteiristas e ilustradores, ampliando as funções das HQs a incentivarem reflexões nos
leitores.
De acordo com Will Eisner,
Entre 1965 e 1990 os quadrinhos começaram a procurar um conteúdo literária. Isso
começou com o movimento underground de artistas e escritores criando o mercado de
distribuição direta. Isso foi seguido pelo surgimento das lojas especializadas em
quadrinhos, que facilitaram acesso a um maior número de leitores. Foi o começo do
amadurecimento do meio. Por último, os quadrinhos procuraram tratar de assuntos
que até então haviam sido considerados como território exclusivo da literatura, do
teatro ou do cinema. Autobiografias, protestos sociais, relacionamentos humanos e
fatos históricos foram alguns dos temas que passaram a ser abraçados pelas histórias
em quadrinhos. As graphic novels com os chamados “temas adultos" proliferaram e a
idade média dos leitores aumentou, fazendo com que o mercado interessado em
inovações e temas adultos se expandisse. Acompanhando essas mudanças, um grupo
mais sofisticado de talentos criativos foi atraído para essa mídia e elevou seus padrões.
(2013, p.8, grifo do autor).
Após a publicação de Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (1978)21, por
Will Eisner, a primeira do gênero graphic novels, abriram-se novas vertentes e oportunidade
para a produção de HQs, rompendo o paradigma dos críticos literários sobre os limites e
entraves dessa linguagem. Com a escolha do termo graphic novel, Eisner despertou a atenção
de editores e leitores para uma nova forma de se fazer quadrinhos e literatura ao mesmo tempo.
As novas referências, progressivamente, fizeram crescer o número de autores que conseguiram
ampliar o foco e o conteúdo narrativo das HQs, através da arte, dos conteúdos bem elaborados,
das suas longas histórias e de seus enredos bem estruturados.
1.2 A narrativa gráfica
Antes de expormos os conceitos e elementos das narrativas gráficas, é necessário
entendermos o lugar e as possibilidades das HQs como artefatos de cultura histórica portadora
de narrativas de constituição de sentido, inserindo as multiplicidades dos registros humanos que
evidenciam sentidos e experiências sobre o passado. De acordo com Fronza (2009, p. 200-201),
como conceito de Will Eisner, ou simplesmente quadrinhos. Cf. POSTEMA, Barbara. Estrutura narrativa nos
quadrinhos: construindo sentido a partir de fragmentos. São Paulo: Peirópolis, 2018. p. 13-16.
21 Nessa HQs, Eisner narra as histórias dos inquilinos de um velho cortiço localizado no número 55 da Avenida
Dropsie, Bronx, Nova York, em quatro contos que se entrelaçam tendo como foco as pequenas tragédias do
cotidiano dos habitantes. As histórias baseiam-se em fatos reais da vida do autor, memórias de sua infância e
adolescência no Bronx, durante os difíceis anos da grande recessão de 1930, que são recontados e ficcionalizados.
32
os elementos formais constituidores do documento presentes nas HQs autorizam a sua
compreensão como artefato cultural por estarem intimamente relacionados à ideia de que todo
documento, é concebido de uma determinada forma, por determinada sociedade, em
determinado contexto espaço-temporal.
Logo, para estabelecermos o lugar e a amplitude das HQs no ensino de História na
educação básica, consideramos que elas ultrapassam os aspectos ilustrativos, lúdicos e de mero
entretenimento. Uma vez que, como artefatos da cultura histórica encontram-se repletas de
sentidos articulados às experiências do passado, às expectativas de futuro e suas
intencionalidades e às orientações do sentido de agir no tempo.
Nesse sentido, entendemos que a experiência histórica, evidente nas narrativas gráficas,
como a própria narrativa histórica, não está cerceada pelo espaço acadêmico, e sim inserido em
uma “cultura histórica”, que alcança tanto o meio acadêmico, o espaço escolar quanto as
diversas narrativas. A cultura histórica, em essência, é inerente ao cotidiano e orientadora de
sentidos e um imaginário sobre o passado, em razão de que todos os elementos dessa cultura
dialogam com a vida prática dos sujeitos e sociedades nos quais estão inseridos, como explica
Rüsen,
O que é a cultura histórica? É o epítome daquelas orientações da vida humana em que
o passado desempenha um papel essencial. Estas orientações foram produzidas pela
consciência histórica humana. As suas atividades constituem cultura histórica e
realiza-se de formas muito distintas, por exemplo, em monumentos, memoriais,
museus, estudos históricos, filmes históricos, comemorações públicas, feriados
nacionais, ensino da história na escola, literatura histórica, historiografia profissional
e popular. A cultura histórica também inclui as relações privadas com o passado, por
exemplo, memórias pessoais, narrativas familiares sobre correlações intergeracionais
entre o presente e o passado. (2016, p 167).
Assim, através de uma HQ, a partir do conceito rüseano de cultura histórica, pode-se
oportunizar um contato maior dos alunos com as experiências do passado. Isso porque os
estorvos para compreensão e concepção de determinado tema são subjugados pela narrativa
gráfica, durante a problematização da realidade histórica partindo de uma leitura crítica,
dinâmica e envolvente estabelecida nessa linguagem.22
22 Retomaremos este assunto no capítulo 2.
33
1.2.1 História em quadrinhos como narrativa gráfica
Sobre Histórias em Quadrinhos23, é relevante acentuar que esta estabelece um elo com
a realidade histórica desde o momento em que identificamos as suas origens e condições de
produção e circulação. Nelas, encontramos uma correspondência, explícita ou implícita, com
os elementos acerca das experiências temporais, narrativas históricas, lugares, memórias,
intenções e sentidos na construção de uma diegese, compondo a realidade da própria narrativa
gráfica.
Tal como a narrativa histórica, a narrativa gráfica pode ser vista como registro da
aproximação entre existência histórica – dos autores, do texto, do suporte, da forma, do público
– e o conhecimento histórico. Para David Carr (2016b, p. 252), “o conhecimento histórico e a
escrita histórica podem ser vistos como extensão de outros meios de existência histórica”.
Existiria uma temporalidade coletiva e individual ligada à historicidade humana, uma vez que
a vivência e o ato de narrar são inerentes à experiência humana.
Na narrativa, o passado e o futuro são pensados em relação com o presente nas formas
de conservação, manutenção, permanência, continuidade e de expectativas, ainda que
cognitivamente distantes. Carr, defende que a narrativa é uma estrutura temporal intrínseca à
vida e à ação humana, ou seja, “elas são narradas por serem vividas, e vividas por serem
narradas” (2016a, p. 240). Portanto, a narrativa não é simplesmente uma forma de escrita da
história e um vetor para o conhecimento histórico; ela é também um elemento imprescindível
da própria existência humana, que é uma existência histórica.
No que diz respeito às histórias em quadrinhos, podemos conferir as mesmas estruturas
temporais presentes nas narrativas históricas, bem como, um veículo para o conhecimento
histórico. Nobu Chinen (2011) destaca a importância narrativa nas HQs por considerar que esta
é insubstituível no processo da criação, logo, sendo a essência da linguagem dos quadrinhos.
Para este pesquisador e membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos, podem existir
HQs sem os elementos constitutivos, “o importante é que todas, sem exceção, contêm uma
narrativa e isso é o que todo autor de quadrinhos precisa ter em mente” (2011, p. 7).
O elo com a realidade histórica que as HQs estabelecem é o que torna a narrativa gráfica
inteligível e aceitável porque acomoda em sua intenção de narrar um referencial histórico e
cultural, mesmo em enredos ficcionais por excelência. Essa conexão se evidencia como um
expediente para observação da experiência temporal individual ou social e, concomitantemente,
23 Usaremos a abreviação HQ ou HQs fazendo referência a História em Quadrinhos ou Histórias em Quadrinhos.
34
revela certos aspectos históricos da sociedade em que foram constituídas e integradas. Ou seja,
as experiências individuais e coletivas devem ser consideradas pelo narrador para compreensão
de sua escrita.
Nos quadrinhos, de acordo com Eisner (2013), existe um contrato tácito entre o narrador
e o público para inteligibilidade e aceitabilidade da narrativa gráfica, esse contrato é tributário
da memória, da vivência e do letramento visual do narrador e do leitor. De tal maneira que, nas
histórias em quadrinhos, “espera-se que o leitor entenda coisas como tempo implícito, espaço,
movimento, som e emoções. Para que isso ocorra, um leitor deve não apenas se utilizar de
reações viscerais, mas também fazer uso de um acúmulo razoável de experiências” (2013. p.
53), visto que o objetivo de qualquer HQ, de uma narrativa gráfica, só é alcançado pelo ato de
se contar uma história.
Isto posto, as HQs, assim como as narrativas históricas, também possuem uma
relevância cognitiva para a efetuação do conhecimento histórico. Com as narrativas gráficas,
podemos desenvolver as competências geradoras de uma consciência sobre os aspectos da
sincrônica do espaço e da diacrônica do tempo, e, portanto, uma das formas que possibilitam a
compreensão e o conhecimento do passado por meio da existência histórica desse artefato da
cultura histórica.
1.2.2 Conceitos e elementos que constituem uma narrativa gráfica
Para compreensão da linguagem das Histórias em Quadrinhos, faremos uso das
contribuições conceituais de Will Eisner (2010, 2013), Scott McCloud (2005), Barbara Postema
(2018), e Nobun Chinen (2011). Esses estudos, de modo geral, apontam os elementos de
constituição, natureza e estrutura narrativa, bem como, a expressão criativa e o potencial
didático das HQs, como expressão política e ideológica, artística e linguística, poética,
filosófica e histórica, entendendo as HQs como um expressivo canal de difusão do pensamento
e agir humano.
Em Quadrinhos e arte sequencial (2010), Eisner afirma que seu trabalho tem o
propósito de “considerar e examinar a singular estética da Arte Sequencial como um veículo de
expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária” que faz uso da
“disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia”
(2010, p. IX.). Essa estruturação envolvendo figuras ou imagens e palavras direcionada para a
narração, típica da arte sequencial, é o que define narrativa gráfica para este quadrinista. Eisner
35
ainda enfatiza a importância da relação entre o criador, a linguagem e o público leitor destas
narrativas gráficas.
As histórias em quadrinhos comunicam numa “linguagem” que se vale da experiência
visual comum ao criador e ao público. Pode-se esperar dos leitores modernos uma
compreensão fácil da mistura imagem palavra e da tradicional decodificação de texto.
A história em quadrinhos pode ser chamada “leitura” num sentido mais amplo que o
comumente aplicado ao termo. (2010, p. 1, grifo do autor).
Em Narrativas Gráficas (2013, p. 5) Eisner define as histórias em quadrinhos como,
essencialmente, um meio visual composto de imagens. Ainda que as palavras sejam uma parte
vital, a maior dependência para descrição e narração encontram-se nas “imagens entendidas
universalmente, moldadas com a intenção de imitar ou exagerar a realidade”. Segundo Eisner,
o ato de ler, no caso do texto, compreende uma transformação de palavras em imagens, nos
quadrinhos. Esse processo é acelerado por fornecer as imagens. Assim,
[...] quando executados de maneira apropriada, eles vão além da conversão e da
velocidade e tornam-se uma só coisa. Em todos os sentidos, essa forma de leitura
recebe [...]. Quando é empregada como veículo de ideias e informação, essa
linguagem se afasta do entretenimento visual desprovido de pensamento. E isso
transforma os quadrinhos numa forma de narrativa. (EISNER, 2013, p. 9-10).
Scott McCloud, em Desvendando os Quadrinhos (2005, p. 9), define as Histórias em
Quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas
a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. Esta definição, assim
como a de Eisner, também apresenta as funções de uma História em Quadrinhos a partir da
relação entre o autor e o público leitor a contar da transmissão e/ou apropriação das mensagens
pelos sujeitos envolvidos.
Ainda em Desvendando os Quadrinhos (2005, p. 63-67), McCloud destaca como
elemento imprescindível das HQs o fenômeno da conclusão que ocorre no espaço entre os
quadros – a sarjeta, ou seja, a habilidade e a competência que o leitor tem de considerar as partes
percebendo o todo a partir de experiências culturais anteriores, pois, nos quadrinhos o “público
é um colaborador consciente e voluntário” e a conclusão permite que ele produza tempo,
mudança e movimento. É, portanto, no limbo da sarjeta que leitores, quando aderem às histórias
em quadrinhos, transformam imagens em ideias.
Nas HQs, de acordo com este quadrinista estadunidense e defensor dos quadrinhos como
uma forma literária e de arte autônoma, o passado é mais do que uma lembrança, e o futuro não
é só uma possibilidade: “o passado e o futuro são reais e visíveis, e estão ao nosso redor” (2005,
p. 104), podem a qualquer instante se tornar o presente ou o agora, já que onde a atenção do
36
leitor estiver, ali será o presente ou o agora sem que o mesmo deixe de se apoderar das imagens
circunvizinhas do passado e do futuro. Assim, a leitura da narrativa gráfica é
extraordinariamente interativa, pois este artefato da cultura histórica fomenta o ato criativo de
ler e explorar os espaços entre os quadros.
A importância da sarjeta também é verificada por Bárbara Postema em livro Estrutura
narrativa nos quadrinhos: construindo sentido a partir de fragmentos (2018), para ela:
[...] as sarjetas - os lapsos de tempo entre os diferentes momentos da sequência - são
o que produz a continuidade da sequência, como se dois quadros (ou vinhetas)
funcionassem para inferir o que acontece entre eles. As sarjetas podem substituir ações
e funções narrativas, tais como a troca de cenas ou, meramente, a passagem tempo.
As sequências expõem a narrativa dos quadrinhos, em que ela própria é repleta de
lacunas, como é típico da narrativa. (2018, p.16).
Vale ressaltar, que as sarjetas são, para esta autora, as lacunas da página, como também
marcam as lacunas presentes no nível seguinte do sistema, pois, na medida que os quadros são
justapostos nas páginas, eles criam uma sequência de imagens. Assim, conforme a influência
das sarjetas, os quadros viram momentos isolados, com o lapso de tempos entre eles. É
justamente nesse espaço entre os quadros, na orla da sarjeta, que reside a diferença entre a
narrativa das HQs e a da literatura.
Uma das diferenças entre quadrinhos e a literatura textual é que, nos primeiros, essas
lacunas são visíveis de forma literal, colocando os processos narrativos dos
quadrinhos em evidência. Isso faz dos quadrinhos uma forma consciente de si mesma,
e que também envolve seus leitores bem diretamente. (2018, p. 16).
Assim, para Barbara Postema (2018, p 15), os quadrinhos, como uma forma de arte e de
narrativa, são um sistema em que os elementos pictóricos, textuais e por vezes, um híbrido dos
dois operam juntos para criar um todo complexo. Esses elementos englobam: a) as imagens dos
quadrinhos ou cartoons; b) as molduras ou quadros que compõem as imagens das quais o
layout24 da página é uma parte importante; c) os recordatórios, os balões de fala e as próprias
palavras – sejam as inseridas nos balões e recordatórios ou as integradas à imagem.
A partir da compressão do potencial do layout nos quadrinhos, Postema estabelece mais
uma diferença das HQs com outro artefato da cultura histórica, o filme. Na estruturação da
narrativa, os quadrinhos podem alterar o tamanho e o formato das molduras para construir
sentido espacial e temporal, enquanto no cinema, pelo menos no que se refere às películas
24 Estrutura visual da composição das páginas, ou seja, a sequência de quadros.
37
amplamente utilizadas, elas estão sempre adstritas a um enfoque simetricamente fixo, o que
garante leque amplo de escolha. Como exemplifica Postema,
A localização e o espaço das sarjetas e molduras são uma questão de escolha nos
quadrinhos, o que mostra como o layout se relaciona com a significação de forma
integral, na construção do sentido em quadrinhos. As funções de significação nos
quadrinhos não são baseadas apenas nos signos presentes como o conteúdo do quadro,
e sim fortemente regidas pela maneira como os quadros são organizados na página e
como, se for o caso, que eles são emoldurados. O layout e as lacunas, que fazem parte
do seu todo, são um componente essencial da significação dos quadrinhos. As sarjetas
e as molduras oferecem estrutura ao layout e, ainda, relacionam-se com outros
elementos formais da página, como as margens. Esses são elementos paratextuais, que
transformam a página em uma estrutura significante e sinalizam a existência da
sequência ao criar uma progressão de quadro a quadro. (2018, p. 60).
Em síntese,
Os quadrinhos compartilham características com uma série de formas de arte
diferentes. Como a literatura escrita, os quadrinhos contam histórias e utilizam
palavras. Além do texto, e diferentemente (a maioria) da literatura, os quadrinhos
também usam imagens, frequentemente na forma de quadros nas páginas. Como o
cinema, os quadrinhos contam histórias e usam imagens, mas, em contraste ao filme,
as imagens nos quadrinhos existem simultaneamente, separadas apenas pelo espaço,
enquanto as imagens no filme estão todas no mesmo espaço (a tela) e vão sendo
substituídas ao longo do tempo. Ainda, o aspecto formal dos quadrinhos que mais o
distancia claramente desses dois gêneros narrativos é a maneira como a forma é
construída com sequências de imagens que trabalham juntas para compor a narrativa.
(POSTEMA, 2018, p. 22).
O pesquisador Nobu Chinen, em seu livro Linguagem HQ: conceitos básicos (2011),
elaborou uma sintaxe dos itens/elementos constitutivos dos quadrinhos, que têm uma função
expressiva na narrativa gráfica, e necessários para a integração de elementos pictóricos, textuais
característicos dos quadrinhos e para o desenvolvimento da sequência. Esse conjunto de itens,
construído historicamente, é formado por vinheta ou quadrinho, balão, recordatório,
onomatopeia, metáforas visuais e figuras cinéticas ou de movimentos. Cada um desses
elementos desempenha uma função própria na composição da linguagem das narrativas gráficas
e se relaciona com os demais na construção de significados.
Esses itens podem ser definidos da seguinte forma:
Vinheta ou quadrinhos: é a área limitada onde a ação vai ocorrer, onde se situa
cada momento da história, ou seja, o espaço em que se passam as cenas da
narrativa.
Balão: é o elemento que mais diferencia os quadrinhos de outras formas de
ilustração e o que mais tem sido usado para simbolizar a linguagem dos
38
quadrinhos. É esse elemento que apresenta as falas e pensamentos dos
personagens.
Recordatório: este item é uma outra maneira de inserir textos nos quadrinhos.
É usado para incluir falas ou lembranças dos personagens, mas sua função mais
comum é inserir texto nos quadrinhos sem precisar, necessariamente, ser através
de personagens, tipo um narrador externo.
Onomatopeia: é um recurso para “reproduzir” sons ambientais ou que são
produzidos pelas cordas vocais, ou seja, simulam sons através de textos e que
muitas vezes apresentam características imagéticas que o relacionam com o
barulho que se quer reproduzir.
Metáforas visuais: uma das criações mais elaborada dos quadrinhos, funcionam
como as figuras de linguagens, e costumam substituir ou sintetizar conceitos
somente com uma simples imagem.
Figuras cinéticas ou de movimentos: estes itens são utilizados para reforçar a
impressão de mobilidade através das linhas cinéticas ou da multiplicação de
contornos, isto é, mediante linhas e figuras que se repetem, reproduzindo ação e
dando mais dinâmica às imagens estáticas das HQs.
Em suma, os quadrinhos encerram em si dois elementos essenciais que formam seus
constituintes: 1. As imagens e o texto. As imagens ou figuras são delimitadas por linhas ou pela
moldura dos quadrinhos, representam ações e gestos das personagens para insinuar, na
sequência, o significado de movimento; 2. O texto é exposto no balão, que abriga as falas e os
diálogos, na legenda, que acomoda o narrador situando o leitor nas passagens que não são
representadas pela imagem e nas onomatopeias, já incorporadas às histórias em quadrinhos
(CAGNIN, 2014, p. 34).
1.2.3 A coexistência da realidade histórica e da ficção nas HQs
As histórias em quadrinhos estão situadas na lacuna que define uma conexão da
realidade histórica e da ficção. No ato criativo, a realidade histórica está inserida na realidade
ficcional, tanto na dimensão artística quanto na dimensão narrativa das HQs, podendo assim,
ser compreendida a partir do contexto da produção e da subjetividade dos autores – roteiristas,
ilustradores, arte-finalistas, editores e tradutores. Nesta lacuna, as experiências do passado e/ou
do presente e a evidência da realidade histórica também reside na existência de um vínculo
entre os quadrinhos e a história e sua relevância como fonte de documentação histórica.
39
As histórias em quadrinhos – em especial, as de ficção inserida em realidade histórica
(ficção-histórica); as comics ou de super-heróis; biografias em quadrinhos; e as autobiografias
em quadrinhos – têm ocupado cada vez mais os espaços acadêmico e escolares como artefatos
que possibilitam o entendimento do passado. Seus enredos e tramas aludem a acontecimentos,
épocas, processos do passado, a historicidade e a consciência histórica, ao mesmo tempo, que
compartilham, com outros artefatos da cultura histórica a verossimilhança, difundindo-se como
relevante na construção do conhecimento histórico.
Convém destacar, que as HQs são imagens da humanidade imbuídas pelo conhecimento
das experiências temporais e do mundo. As HQs, por meio de uma linguagem própria,
reinventam o mundo e retratam homens e mulheres - suas ações, comportamentos, atitudes;
suas aspirações, devaneios, utopias e quimeras; suas alegrias, deleite, distrações, emoções e
angústias – assente na experiência comum e em um histórico de observação necessários para
interpretar a realidade. Para Eisner (2013, p. 21), a arte dos quadrinhos emprega representações
facilmente reconhecíveis da conduta humana. “Seus desenhos são reflexo no espelho, e
dependem de experiências armazenadas na memória do leitor para que ele consiga visualizar
ou processar rapidamente uma ideia”.
Nessa direção, Alexandre Barbosa (2009, p. 104) afirma que “o artista de história em
quadrinhos trabalha com as informações sobre a história e o cotidiano, transformando em
ficção”. Admite, ainda, que as HQs servem como base para uma informação direta e simples,
aceita pelo receptor como parâmetro da realidade, atualizando ou refletindo o pensamento de
uma sociedade em determinado momento histórico. Trata-se da percepção do referencial
cultural no qual estão inseridos o autor, o leitor e os quadrinhos e que fornecem os princípios
interpretativos que orientam e conferem sentido à experiência da narrativa.
Para Barbosa, a relação entre a realidade histórica e a narrativa gráfica encontram-se na
tríade cotidiano, realidade e ficção. Nessa perspectiva, as histórias em quadrinhos operam uma
narrativa ficcional, mas alicerçadas em elementos que aduzem a realidade, tanto no discurso da
escrita como no discurso visual. Ao mesmo tempo em que
o autor de quadrinhos – principalmente aquele que trabalha como os chamados
quadrinhos históricos – remete o leitor a documentos que são tidos como verdadeiros,
por uma visão subjetiva, que é aquela dada pelo artista: dessa forma, ele constrói a
cada momento uma nova história, com um olhar cotidiano, influenciado pelos novos
estereótipos ou novos ícones da cultura de massa. (BARBOSA, 2009, p. 106).
É imperativo ressaltar as preocupações do uso dos quadrinhos no ensino de História
levantadas por Vergueiro, em artigo publicada pelo Omelete e intitulado Os quadrinhos nas
40
aulas de história: uma empreitada que exige cuidados (2013). Para ele, para o uso didático das
HQs são necessários cuidados com a preparação, análise do ponto de vista do conhecimento
histórico e familiaridade com a linguagem. Portanto,
[...] uma atenção especial deve ser dada em relação a possíveis anacronismos, não se
deixando o professor demasiadamente levar seja pela beleza do traço, seja pela
sagacidade do enredo. A experiência demonstra que informações adquiridas por meio
das histórias em quadrinhos tendem a se fixar com mais firmeza na mente dos alunos
do que aquelas recebidas no processo tradicional de aula, o que é válido tanto para as
informações corretas quanto para as incorretas. Além disso, a experiência também
demonstra que as informações incorretas tornam-se evidentes com muito maior
rapidez. E isso não interessa aos professores. E muito menos aos quadrinhos.
(VERGUEIRO, 2013, online).
Contudo, Túlio Vilela assegura que as HQs que comportam anacronismo têm seu lugar
no ensino de História, principalmente pelo próprio fato de, em si, oferecerem exemplos que
facilitam a compreensão do conceito de anacronismo. Para isso, o professor precisa convidar o
aluno a pensar sobre este conceito e “mediar a leitura dos quadrinhos, chamando a atenção para
os anacronismos. Assim, os ‘erros’ podem servir como ponto de partida para informações
historicamente corretas, contribuindo para a construção do conhecimento (2018, p. 121, grifo
do autor) ”.
Reforçando a ideia acima, Sandra Regina Ferreira de Oliveira, sublinha que o uso de
situações anacrônicas na aula de História permite ao professor construir um ambiente propício
[...] para promover questionamentos que põem em evidência que a compreensão da
história requer um deslocamento temporal e uma empatia histórica que exige, dentro
do possível, despir a veste do seu tempo e vestir-se com as vestes de outro tempo,
ainda que o corpo permaneça no mesmo tempo-espaço. (OLIVEIRA, 2019, p. 22).
Vilela ainda sublinha que “independentemente de uma história em quadrinhos conter ou
não anacronismos, de ser baseada ou não em fatos verídicos, um conceito que convém ser
trabalhado pelo professor que pretenda utilizar os quadrinhos no ensino de História é o de
verossimilhança” (2018, p. 123). Porque mesmo, ainda que na direção contrária da
historiografia, o anacronismo presente em algumas HQs possibilita o exercício imaginativo e
ficcional, que enriquece – com seus devidos cuidados – o processo de aprendizagem histórica.
1.3 Das HQs históricas
Pensar as HQs no ensino de História na Educação Básica tem se tornado uma prática
constante, em especial em decorrência da ampliação da noção de fontes e pela abertura do
espaço escolar para a utilização de novas linguagens. Nas primeiras décadas do século XXI,
41
observamos a presença de estudos sobre a relação entre HQs e história em revistas eletrônicas,
eventos e pesquisas acadêmicas, construindo um arcabouço teórico e didático ampliando por
meio do diálogo as possibilidades do uso dessa linguagem.
Essa presença pode ser verificada nos anais de “Jornadas Internacionais das Histórias
em Quadrinhos”, realizadas pela Universidade de São Paulo, desde de 2011. Nas duas primeiras
jornadas, encontramos no eixo temático Quadrinhos e História 42 títulos, entre eles: A
construção da identidade nacional na série “Grandes FIGURAS em quadrinhos” da EBAL,
de Eliza Bachega Casadei; e Bob Cuspe: O quadrinho como fonte para análise do movimento
punk da década de 80, de Jefferson Lima. Na 3ª e 4º jornadas, o eixo temático Quadrinhos,
História e Cultura, foram publicados 69 artigos e na 5º jornada, já com outra nomenclatura,
Quadrinhos, História e Sociedade, 26 artigos.
Apesar do distanciamento entre conhecimento histórico acadêmico e o conhecimento
histórico escolar, o ensino de História tem sido tributário da demanda em torno das mudanças
e abordagens historiográficas a respeito do uso de fontes históricas e novas linguagens,
especialmente, com o aumento dos objetos, das problematizações e das resistências decorrentes
das discussões a partir dos anos de 1970. Registra-se, a partir desses inovadores aportes
teóricos, a possibilidade de uso de diversas fontes históricas e materiais didáticos nas pesquisas
e na docência.
De acordo com José D’Assunção Barros, a considerar a importância cultural, social e
mercadológica, as histórias em quadrinhos representam um exemplo significativo de fontes
históricas trazidas à cena pelos trabalhos históricos, por constituírem um grande e especial
gênero de periódicos que se desenvolveu como uma linguagem específica, tornando uma nova
forma de expressão artística e uma indústria própria, a qual passou por ensejar, a partir da última
metade do século XX (2019, p. 181).
Nesse contexto, a utilização de novas fontes, suportes e linguagens, como as Histórias
em Quadrinhos, ampliaram as abordagens didáticas do ensino de História. E, por conseguinte,
o ensino desta disciplina na Educação Básica foi igualmente influenciado por este debate25. Na
dinâmica da sala de aula, as HQs permitem articulação entre a prática e os saberes docentes,
por possibilitarem a compreensão das experiências no tempo e do conhecimento,
25 É oportuno lembrar que este debate é muitas vezes conciso, lacônico ou negligenciado na Educação Básica,
principalmente, nas formações continuadas.
42
historicamente construído, especialmente aquelas que apresentam temáticas históricas, os
quadrinhos históricos26.
Na prática, as HQs podem ser objetos de pesquisas pensadas a partir das abordagens
historiográficas, como fonte histórica e material didático para o ensino de História evidenciando
as experiências no tempo. Como aponta Schmidt e Cainelli (2004), o uso de documento
histórico no processo ensino-aprendizagem “é indispensável como fundamento do método de
ensino, principalmente porque permite o diálogo do aluno com as realidades passadas e
desenvolvem o sentido da análise histórica”. Assim, ao entendermos as HQs como fontes
históricas, temos a nítida compreensão de que a narrativa gráfica emprega uma sequência de
imagens para se estruturar enquanto narrativa acerca de uma determinada temática ou
experiência temporal, a ela atribuindo sentido.
As HQs que antes, eram vistas como nocivas ou inadequadas para a aprendizagem por
alguns, atualmente são bastante utilizadas em pesquisas acadêmicas em diversas áreas do
conhecimento, nos livros didáticos, em provas de vestibular e nas avaliações externas (ENEM
e SPAECE27). Waldomiro Vergueiro (2018), por exemplo, discute e elenca algumas
particularidades das HQs responsáveis pela aceitação desse artefato da cultura histórica nos
âmbitos de ensino: I. Existe um nível elevado de informações dentro dos quadrinhos que são
bastante pertinentes de serem discutidas em sala de aula; II. Podem ser utilizadas de forma
eficiente para a transmissão de conhecimentos específicos; III. Os quadrinhos auxiliam no
desenvolvimento do hábito de leitura e enriquecem o vocabulário dos estudantes; IV. O caráter
elíptico da linguagem dos quadrinhos obriga o leitor a pensar e imaginar; e por fim, V. Agregam
um caráter cultural, em que trazem culturas, línguas, etnias e sociedades diferentes pelo seu
caráter globalizador.
Assim, a aproximação das Histórias em Quadrinhos das práticas de ensino, revelam as
suas potencialidades didáticas como meios para transmissão de conhecimento histórico.
Segundo Vergueiro,
A percepção de que as histórias em quadrinhos podiam ser utilizadas de forma
eficiente para a transmissão de conhecimentos específicos, ou seja, desempenhando
26 Apesar de considerar todas as HQs como quadrinhos históricos, devido a sua historicidade. Aqui, usaremos o
termo para nos referir as narrativas gráficas, cujo enredo e/ou a trama estão situados em algum lugar ou situação
do passado.
27 O Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará – SPAECE, na vertente Avaliação de
Desempenho Acadêmico, caracteriza-se como avaliação externa em larga escala que avalia as competências e
habilidades dos alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, em Língua Portuguesa e Matemática. As
informações coletadas a cada avaliação identificam o nível de proficiência e a evolução do desempenho dos alunos
das escolas públicas do estado do Ceará.
43
uma função utilitária e não apenas de entretenimento, já era corrente no meio
“quadrinhístico” desde muito antes de seu “descobrimento” pelos estudiosos da
comunicação. As primeiras revistas em quadrinhos de caráter educacional publicadas
do Estados Unidos, tais como True Comics, Real Life Comics e Real Facto Comics,
editadas durante a década de 1940, traziam antologias de histórias em quadrinhos
sobre personagens famosos da história, figuras literárias e eventos históricos. (2018,
p. 17, grifo do autor).
Essa capacidade didática foi percebida por Entidades governamentais, como o
Departamento de defesa dos Estados Unidos28, pelo governo de Mao Tse-Tung, com campanhas
educativas e propaganda ideológica. Esse caso é descrito por Vergueiro (2018)
A percepção dos benefícios pedagógicos dos quadrinhos não ficou restrita apenas a
autores e editores. Nos anos 50, na China comunista, o governo de Mao Tse-Tung
utilizou fartamente a linguagem das histórias em quadrinhos em campanhas
“educativas”, utilizando-se do mesmo modelo de retratar “vidas exemplares”
explorado pelas revistas religiosas, mas enfocando representantes da nova sociedade
que se pretendia estabelecer no país. As histórias podiam enfocar, por exemplo, a vida
de um soldado que, a caminho de seu quartel, ao encontrar uma pobre velhinha sem
forças para caminhar, desviava-se de seu caminho e a levava às costas até sua casa,
passando a imagem de “solidariedade” que o governo chinês pretendia vender à
população. (VERGUEIRO, 2018, p.18).
Observadas as possibilidades, a utilização das HQs na aula de História deverá estar
relacionada às abordagens específicas e aos objetivos de ensino. Vergueiro também destaca este
aspecto ao mostrar que as HQs,
[...] tanto podem ser utilizadas para introduzir um tema que será depois desenvolvido
por outros meios, para aprofundar um conceito já apresentado, para gerar uma
discussão a respeito de um assunto, para ilustrar uma ideia, como uma forma lúdica
para tratamento de um tema árido ou como contraposição ao enfoque dado por outro
meio de comunicação. (2018, p. 26).
Dessa forma, as narrativas gráficas encontram-se, portanto, marcadas pela existência de
narrativas, imagens e ideias que pretendem explicar ou esclarecer cenas, personagens,
conjunturas e experiências temporais. Porém, a compreensão destes elementos através das HQs
e de suas finalidades exigem uma análise crítica e uma reflexão didática. É imperativo, portanto,
perceber os aspectos fundamentais das metodologias de ensino de História e aproximar ensino
e pesquisa.
28 Durante a Segunda Guerra Mundial, como a colaboração de Will Eisner, o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos utilizou os quadrinhos na elaboração de manuais para o treinamento de tropas.
44
Vergueiro, analisando as vantagens do uso das HQs, ainda preconiza a necessidade de
“buscar a integração dos quadrinhos a outras produções das indústrias editorial, televisiva,
radiofônica, cinematográfica etc., tratando todos como formas complementares” (2018, p. 27),
assim como as narrativas históricas, presentes no ensino de História, sobre o tema abordado nas
narrativas gráficas. Concordamos que a interatividade entre as HQs e outros artefatos da cultura
histórica, ampliam o “desenvolvimento da compreensão da narrativa histórica mediante a
narrativa gráfica e a aquisição de habilidades na assimilação de noções e conceitos próprios da
História” (VARELA, 2018, p. 157).
Túlio Vilela, em Os quadrinhos na aula de História (2018), expõe as diversas
possibilidades e enfoques que as HQs podem ter no ensino de História. Para esse pesquisador,
a) é possível utilizar as histórias em quadrinhos para a difusão do conhecimento histórico
produzido pela academia; b) como suporte de um conteúdo; c) para lecionar o conceito de
tempo e suas dimensões: sucessão, duração e simultaneidade; d) para ilustrar ou fornecer uma
ideia de aspectos da vida social de comunidades do passado; e) para serem lidos e estudados
como registros da época em que foram produzidas.
Notamos aqui, uma relação latente entre histórias em quadrinhos e ensino de história,
pois o conhecimento histórico, a noção de tempo, o passado e sua relação com o presente,
constitui uma particularidade das HQs históricas. Nesse sentido, Túlio Vilela assevera que:
Os quadrinhos, por exemplo, podem ser utilizados pelos professores para trabalhar o
conceito de tempo e suas dimensões: sucessão, duração e simultaneidade. Os
“recordatórios” presentes na maioria das histórias em quadrinhos podem ser utilizados
para ilustrar esses conceitos: um recordatório onde se lê “Mais tarde...” ou “Logo
depois...” pode ser um exemplo de sucessão e, de outro lado, aquele em que se lê
“Enquanto isso...” pode facilitar ao aluno a percepção da ideia de simultaneidade. Os
elementos visuais utilizados para indicar a passagem do tempo em uma história em
quadrinhos (um desenho da Lua para indicar o anoitecer; um relógio na parede de um
escritório; uma personagem marcando o cartão de ponto no final do expediente)
podem ser usados para uma reflexão sobre os diferentes tempos: o tempo da natureza,
o tempo do relógio, o tempo da fábrica. (2018, p. 107).
É oportuno salientar a necessidade de reunir informações a respeito do autor das HQs e
pensar sua produção a partir do contexto e dos elementos socioculturais e políticos presentes na
narrativa gráfica, no momento da elaboração. Relacionar estas informações, envolvidas de
intencionalidades, proporciona lastro para a compreensão e análise da história em quadrinhos.
Vilela (2018) ressalta essa importância ao propor alguns procedimentos de leitura.
Quem é(são) o(s) autor(es)?
Sempre que possível, o ideal é reunir informações a respeito dos autores. Se
quisermos, por exemplo, analisar uma história em quadrinhos do Capitão América,
45
super-herói, criado durante a Segunda Guerra Mundial, antes da entrada (declarada)
dos Estados Unidos no conflito, é importante levarmos em conta o fato de que seu
criador, o desenhista Jack Kirby (1917-1994), pseudônimo de Jacob Kurtzberg, era
um norte-americano de ascendência judaica. Assim, tinha fortes razões pessoais para
criar um herói que lutava contra o nazismo, cujo antissemitismo era notório.
(VILELA, 2018, p. 113)
Nesse procedimento de leitura, o autor citado, ainda reforça a necessidade de levantar
outros questionamentos, como “Quando e onde foi produzida?”, “Por quem fala?”, “A quem se
destina?” e “Qual a sua finalidade?”. Essa metodologia, relacionada, também, às funções da
narrativa gráfica, encontra aporte quando Vilela afirma que “ainda que inconscientemente, toda
história em quadrinhos reflete valores, visões de mundo, ideologias”. E que, autor “pode tanto
expressar uma posição estritamente pessoal”, como ainda, no caso de uma história em
quadrinhos criada sob encomenda “reproduzir um discurso que reflita o posicionamento
político da editora ou companhia para qual trabalha”. (VILELA, 2014, p. 113). Quanto a
finalidade, trazemos outra vez a fala do autor por considerarmos pertinente para nossa
compreensão desse artefato cultural.
A maioria das histórias em quadrinhos faz parte da chamada “indústria do
entretenimento”. Foram publicadas com fins comerciais, portanto. Mas isso não
impede que uma história em quadrinhos seja uma obra de arte ou que tenha pretensões
intelectuais. Além do mero entretenimento, uma história em quadrinhos pode ter
caráter informativo; institucional; educativo; didático e, até, de propaganda (ideias
políticas). Um bom exemplo são as tiras de Mafalda, criação do cartunista argentino
Quino (pseudônimo de Joaquim Lavado), cuja aparente ingenuidade muitas vezes
camuflava sérias críticas à ditadura militar na Argentina. (2018, p. 115).
Entretanto, o uso de HQs nas aulas de História ainda carece de algumas reflexões que
pretendemos fazer, mas sem a intenção de responder todas as questões sobre a relação
quadrinhos e ensino de História, apenas para abrir um novo capítulo nessa seara. Esse uso pode
ter inúmeros objetivos, porém, os mais enfatizado, embora ainda de maneira tímida, tem sido
como suporte de conteúdo, como indicação de leitura, e, ainda mais raro, em atividades para
desenvolvimento da compreensão histórica, como se verifica nos livros didáticos do PNLD
201829. De qualquer forma, é importante frisar, que não desmerecemos ou desqualificamos
esses objetivos, até fazemos usos deles, como também não superestimamos outros, por entender
que a utilização de HQs não é uma panaceia para os problemas da disciplina de História na
Educação Básica.
29 http://www.fnde.gov.br/pnld-2018/
46
Por outro lado, podemos observar e questionar alguns aspectos específicos da história
em quadrinhos para maximizar sua presença nas aulas: qual a relação entre narrativa histórica
e narrativa gráfica, e suas articulações com o ensinar e aprender História? Quais aspectos
das/nas HQs oportunizam desenvolver a competência narrativa para a experiência,
interpretação e orientação histórica dos discente? Qual construção de sentido sobre experiência
temporal é proporcionada pelas Histórias em Quadrinhos?
Para tentar responder esses questionamentos, faremos o emprego do termo HQs
históricas para designar os quadrinhos em que a narrativa ficcional ou não-ficcional é
ambientada no passado e relacionadas com fatos e temas históricos, alicerçadas em documentos,
referências históricas, historiografia, memórias, reportagens, biografias e autobiografias. Cabe
aqui uma consideração importante, não abordaremos os quadrinhos a partir da dicotomia
falso/verdadeiro, evitando julgá-los como ficção, num sentido pejorativo do termo, nem como
ilustrativo sem reflexão crítica, nem como um produto fora de seu tempo, desconsiderando as
estruturas do passado/presente em que foram produzidas. Pelo contrário, trataremos as HQs a
partir de uma perspectiva singular de tentativa de compreensão histórica na HQs histórica e a
partir dela.
1.3.1 Do conceito e classificação
Na dinâmica da sala de aula, as HQs permitem articulação entre a prática e os saberes
docentes, por possibilitarem a compreensão das experiências no tempo e do conhecimento
historicamente construído, especialmente, aquelas que apresentam temáticas históricas, os
quadrinhos históricos30. Na prática, as HQs históricas podem ser objetos de pesquisas pensadas
a partir das abordagens historiográficas, como documento histórico – fonte secundária –, e
material didático para o ensino de História evidenciando as experiências no tempo, como foi
usado as HQs históricas Lampião em quadrinhos, de Rubem Wanderley Filho e Cumbe, de
Marcelo D’Salete.
Entendemos que as HQs históricas – tanto com fonte, quanto material didático – criam
formas e condições para que a compreensão histórica alcance os espaços escolares e os
extraescolares. Ler uma HQ histórica, além de ser uma experiência de envolvimento com a
narrativa gráfica, é ter conhecimento, sistemático ou não, sobre algo do passado e uma
30 Apesar de considerar todas as HQs como quadrinhos históricos, devido a sua historicidade. Aqui, usaremos o
termo para nos referir às narrativas gráficas, cujo enredo e/ou a trama estão situados em algum lugar ou situação
do passado, como dito neste capítulo.
47
possibilidade de construção de sentido sobre a experiência temporal, oportunizando a
aprendizagem histórica.
Desde o início dessa pesquisa, a escolha pelos quadrinhos exigiu uma definição e
classificação das HQs históricas para se realizarem as análises e orientar a seleção das
narrativas gráficas para a oficina. Levando-se em conta o curto período de tempo disponível
para a conclusão do mestrado e as exigências do ofício de professor da educação básica31, a
partir do acervo pessoal, das pesquisas na internet e da experiência didática com essa linguagem
no ensino de História, entendemos as HQs históricas como aquelas em que a narrativa ficcional
ou não-ficcional transcorre em algum contexto do passado da humanidade e concerne, direta
ou indiretamente, a fatos e temas históricos, alicerçadas em documentos, referências históricas,
historiografia, memórias, reportagens, biografias e autobiografias.
Para fins de uso didático, de maneira bastante ad hoc, as narrativas gráficas foram
classificadas como: 1) ficção-histórica, ficção inserida em realidade histórica; 2) comics ou de
super-heróis; 3) biografias em quadrinhos; 4) autobiografias em quadrinhos; 5) quadrinhos
jornalísticos; e 6) outras32. Todas elas, à sua maneira, procuram dar sentido ao passado,
algumas, pelo trabalho com fontes históricas, aproximam-se do trabalho dos historiadores.
As HQs classificadas como ficção-histórica são aquelas em que o enredo está inserido
em uma realidade histórica, cujo fato histórico e a construção ficcional dialogam criando uma
diegese, na qual a narrativa é marcada pela possibilidade real das ações dos personagens, ou
seja, é sublinhada tanto pela verossimilhança33 externa – no esforço de reconstituir as estruturas
sociais, culturais, políticas do passado –, quanto pela verossimilhança interna, a partir do
pressuposto de que as ações dos personagens não tem obrigatoriedade de terem acontecido fora
da diegese, mas que sejam concebidas lógica e coerentemente, fazendo sentido na trama. Essa
31 No Estado do Ceará, a Portaria Nº 0435/2017, que estabelece normas e procedimentos para o afastamento de
docentes para participar de programas de pós-graduação stricto sensu, determina para os cursos de Mestrado
Profissional o afastamento de forma integral por até no máximo 60 (sessenta) dias ou de forma parcial,
correspondente a 50% (cinquenta por cento) da carga horária do referido servidor, por até no máximo 120 (cento
e vinte) dias, de acordo com solicitação do servidor, anexada aos autos.
32 Durante a pesquisa, nos deparamos com as adaptações literárias para os quadrinhos e com narrativas gráficas
que dialogam com a História do Tempo Presente. Nessas HQs, a depender do enredo também podem ser
consideradas HQs históricas. Entretanto, as deixamos de fora por dois motivos básicos: 1. Por entender que
precisaríamos discutir literatura e história em quadrinhos, História do Tempo Presente e HQs, o que demandaria
mais tempo de pesquisa e leitura; 2. A falta dessas HQs em nosso acervo pessoal, que por sua vez, exigiria novas
leituras e outros aportes teóricos.
33 É possível distinguir dois tipos de verossimilhança. A interna: apreendida pela própria estrutura da narrativa,
pela coerência dos elementos que a estruturam e, a externa: percebida no mundo real, conferindo ao mundo
imaginário a percepção de realidade.
48
classificação aproxima-se do conceito romance histórico, um gênero literário em prosa em que
a narrativa ficcional se ambienta no passado.
Nesse grupo, encontram-se Cumbe (Veneta, 2018)34 e Angola Janga: uma história de
Palmares (Veneta, 2017) de Marcelo D’Salete, ambientadas no século XVII no Brasil colonial;
Holandeses (Veneta, 2017), no Brasil holandês do século XVII e Adeus, Chamigo Brasileiro:
Uma História da Guerra do Paraguai (Companhia das Letras, 1999), ambas do antropólogo e
historiador André Toral; D. João Carioca. A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821)
(Companhia das Letras, 2017), de Spacca (pesquisa, roteiro e ilustrações) em parceria com a
historiadora Lilia Moritz Schwarcz (pesquisa e supervisão); Estórias Gerais (Nemo, 2012), de
Wellington Srbek e Flavio Colin, narrativa inserida no sertão mineiro da década de 1920; Do
Inferno (Veneta, 2014), de Alan Moore e Eddie Campbell, que traz a história do misterioso
serial killer que assassinou prostitutas e espalhou horror na Londres vitoriana do fim do século
XIX: Jack, o Estripador; Era a Guerra de Trincheiras (Nemo, 2011), de Jacques Tardi,
originalmente em 1984, que descortina a situação brutal e desumana dos campos de batalha da
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), essa HQ histórica faz um relato realista e uma
indispensável denúncia do absurdo de todas as guerras.
Sobre as chamadas comics ou de super-heróis: são as HQs históricas nas quais os
protagonistas e antagonistas são arquétipos fictícios com superpoderes ou super-habilidades (ou
simplesmente ricos, como Bruce Wayne). Nesses quadrinhos, os personagens protagonizam
aventuras em determinado contexto histórico, interagindo com os eventos históricos ou
intervindo neles, criando um tempo e espaço diegéticos, cuja narrativa elabora imagens e
representações, fundamentando seus enredos nos dilemas próprio do seu tempo. São narrativas
plurais acerca do passado, os autores percebem e interpretam o mundo e os acontecimentos e,
então, de um modo sui generis, retratam-nos através das superaventuras, criando, em sua
maioria, uma realidade distópica.
Podemos citar: Watchmen (Panini Books, 2011) de Alan Moore e Dave Gibbson,
publicada em doze volumes entre setembro de 1986 e outubro de 1987. Produzida e ambientada
durante a Guerra Fria, as personagens interferiram nos eventos históricos, modificando-os à
favor dos Estados Unidos, que vencerá a Guerra do Vietnã em 197135, mas também guardando
34 Editora e data de publicação.
35 Em Watchmen, Allan Moore nos apresenta uma realidade alternativa, onde heróis realmente existem e seu peso
é extremamente significante no contexto político, social – nacional e internacionalmente. Nessa diegese, o
Comediante e Dr. Manhattan - o único que apresenta superpoderes, podendo controlar e moldar a matéria,
participam da Guerra do Vietnã, interferindo nos eventos históricos, dado que os Estados Unidos ganha a guerra,
49
diversas semelhanças com a realidade do leitor, sendo a principal delas a corrida armamentista
e medo do apocalipse nuclear do período; Marvel 1602 (Panini Books, 2017), de Neil Gaiman
(roteiro) e Andy Kubert (ilustração), por sua vez, apresenta vários personagens do Universo
Marvel no início do século XVII, inserindo-os em uma primorosa ambientação no reinado da
rainha Elizabeth I; Magneto: testamento (Panini Books, 2010), de Greg Pak (roteiro), Carmine
Di Giandomenico (arte), ambientada no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
apresentando um Max Eisenhardt, futuro Magneto, que é introduzido do contexto e sofre os
horrores dos campos de concentração do Terceiro Reich, devido sua origem judaica; e Caveira
Vermelha – Encarnado (Panini Books, 2013), também de Greg Pak que será apresentada no
capítulo 2, por ser uma das fontes de análise dissertação.
Uma comics importante para o ensino interdisciplinar é Superman – Entre a Foice e o
Martelo (Panini Books, 2017), com roteiro de Mark Millar e as ilustrações de Dave Johnson e
Kilian Plunket, publicada em três volumes em 2003. Nessa HQ, o kryptoniano Kal-El aterrissa
numa fazenda da Ucrânia soviética, antes do início da Guerra Fria, e não numa fazenda no
estado do Kansas, no Estados Unidos, partindo de “uma visão ocidental sobre a União Soviética
que não foi produzida enquanto ela existiu, mas que opera com certo imaginário sobre ela”
(BERTOLINO, 2019, p. 74).
Matheus Bertolino, em sua dissertação Das HQs à imaginação histórica: reflexões para
o ensino de História (2019), elenca as possibilidades dessa história em quadrinhos a partir da
viagem “do absurdo da ficção para o absurdo da realidade”: 1. Comparar com eventos reais,
como a criação da bomba de hidrogênio, em 1952, ou a Crise dos Mísseis Cubanos, com os
eventos da história; 2. Debater com os estudantes acerca do significado da fala e do visual de
Superman na cena em sua relação com a compreensão geral de que o socialismo é uma corrente
baseada na luta contra privilégios e no princípio da igualdade social; 3. Nas aulas de Filosofia,
refletir sobre o que faríamos na posição em que se encontrava o Superman, tais como: Será que
demonstraríamos a mesma postura? Qual princípio ético nos guiaria? Poderíamos ser seduzidos
pelo poder e abusar dele?; 4. Discutir o conceito de totalitarismo; 5. Aprofundar conceitos
pertinentes à época e buscando, através dos personagens da trama e intertextualidades, um
mergulho na mente daqueles que viveram e temeram o confronto entre as superpotências.
(2019, p. 72-79).
alterando o panorama social e político estadunidense. Um dos exemplos é a reeleição do presidente Richard Nixon,
que nesta realidade ainda é o chefe do executivo em 1985.
50
Já as HQs históricas classificadas como comics tornam viáveis as reflexões com “o que
aconteceria se os super-heróis existissem de verdade?”, abrindo as discussões sobre o “E se?”
exercitando a imaginação histórica dos alunos. Nas palavras de Bertolino,
“E se...?” não costuma ser uma pergunta usual entre historiadores, não há fontes
suficientes para o “se”. Por outro lado, o exercício imaginativo da ficção pode
colaborar para vislumbrarmos aspectos da história que o olhar ordinário por vezes
diminui. É importante que os alunos reconheçam esta diferença, pois brincar com os
limites entre os fatos históricos e a ficção não deve ser sinônimo de abolir os mesmos
limites. (2019, p. 80, grifos do autor).
As biografias em quadrinhos são presenças constantes na indústria dos quadrinhos
desde da década de 1950 no Brasil, principalmente através da editora EBAL. São narrativas que
podem sintetizar estruturas sociais e políticas, como também, revelar desvios dissolvendo as
homogeneidades e a ideia de determinismo histórico, a partir da história de vida ou trajetória
de indivíduos em seu tempo e espaço. Assim, essas HQs históricas nos fazem pensar sobre o
papel do indivíduo na História, sem hierarquização, qualquer personagem biografado nos
auxilia a conhecer melhor outras sociedades e outros tempos.
Entretanto, é necessário que o professor ao fazer uso de biografias em quadrinhos esteja
atento aos riscos da “ilusão biográfica”, proposto por Pierre Bourdieu, ou seja, da ideia de que
a vida seria coerente, um todo coeso e sem desvios. Essas narrativas gráficas, com poucas
exceções, organizam os fatos e eventos da vida de um indivíduo em uma narrativa linear, uma
história com começo, meio e fim, determinada pelo destino. No ensino de História, é essencial
compreender que as biografias gráficas são narrativas de referência, são recortes, escolhas a
partir das quais a vida de alguém é narrada, ou seja, não é a história de vida, mas a interpretação
desta.
Neste trabalho, já mencionamos algumas biografias em quadrinhos, entre elas:
Lampião em Quadrinhos (Pancron, 1997), de Ruben Wanderley Filho; A arte de voar (Veneta,
2018), de Antonio Alatarriba e Kim; Carolina (Veneta, 2018), de Sirlene Barbosa e João
Pinheiro. Além das citadas biografias romanceadas da série Grandes Figuras em quadrinhos,
da editora EBAL e Maus (Companhia das Letras, 2009), de Art Spiegelman, destacamos Castro
(8Inverso, 2011), de Reinhard Kleist; Che - Os Últimos Dias de um Herói36 (Conrad, 2008),
de Hector Oesterheld (roteiro) e Alberto Breccia e Enrique Breccia (arte); Marx: uma biografia
36 Che - Os Últimos Dias de um Herói, é ótimo um exemplo para pensarmos a importância e o impacto das
biografias em quadrinhos. Publicada na Argentina em 1968, três meses após o assassinato do comandante da
Revolução Cubana em selvas bolivianas, causou a captura, tortura e assassinato de Hector Oesterheld e suas quatro
filhas pela ditadura militar argentina.
51
em quadrinhos (Boitempo, 2018), de Corinne Maier e Anne Simon; A arte de voar (Veneta,
2018) e Asa Quebrada37 (Veneta, 2018), de Antonio Altarriba (roteiro) e Kim (arte), nessas
HQs, o roteirista narra as histórias de seu pai e sua mãe, respectivamente, no mesmo contexto
histórico da ascensão dos regimes fascistas na Europa; As barbas do Imperador (Companhia
das Letras, 2014), de Lilia Schwarcz e Spacca, a adaptação do livro homônimo da historiadora
sobre d. Pedro II; Artistas Brasileiras (Editora Miguilim, 2018), da historiadora Aline Lemos,
sobre a presença das mulheres na história da arte; Olympe de Gouges (Record, 2014), e Kiki de
Montparnasse (Record, 2014), de Catel e Bocquet. Nesta última, o roteirista José-Loui Bocquet
conta a vida da musa da boemia francesa, Kiki, na Paris agitada do início do século 20, período
entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial;
As classificadas como autobiografias em quadrinhos são narrativas gráficas que
remetem à vida do autor, criando uma imagem que representa a si mesmo no passado, a partir
da relação intrínseca com a sua memória. São narrativas fragmentadas da própria história,
escritas de si conexas à noção de sinceridade, presente nos textos inseridos nos recordatórios e
na representação gráfica do protagonista e da interação com os outros personagens e com
contexto histórico, tendo assim como cenário narrativo os eventos e acontecimentos históricos.
Assim como as biografias em quadrinhos, as autobiografias em quadrinhos nos fazem refletir
sobre o papel do indivíduo na história, ampliando a noção diacrônica do tempo.
Vamos aos exemplos: Ao coração da tempestade (Companhia das Letras, 2010), de
Will Eisner, retrata o preconceito e a situação dos judeus na Europa e nos Estados Unidos, nos
anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial ao início da Segunda, através da história de sua
família; Persépolis (Companhia das Letras, 2010), de Marjane Satrapi, relata as mudanças
causadas em sua vida e seu país durante a implantação do regime xiita, em 1979; Cuba: minha
revolução (Panini Books, 2014), de Inverna Lockpez (roteiro), Dean Haspiel (arte) e José
Villarubia (cores), cuja narrativa foi construída com base nas memórias de Inverna Lockpez,
uma jovem que viveu o movimento em duas situações diferentes, sobre sua experiência com a
Revolução Cubana e o governo de Fidel Castro; Adeus tristeza: A história dos meus ancestrais
(Companhia das Letras, 2012), de Belle Yang, retrata a complexidade da cultura chinesa, a
invasão da Manchúria pelos japoneses, a grande fome, a Segunda Guerra Mundial e a subida
dos comunistas ao poder; e O melhor que podíamos fazer (Nemo, 2018), de Thi Bui, que será
analisada adiante.
37 Nas HQs, Antonio Altarriba narra as histórias de seu pai e sua mãe, respectivamente, no mesmo contexto
histórico da ascensão dos regimes fascistas na Europa.
52
Acreditamos que as biografias e as autobiografias em quadrinhos são narrativas que
não são nem ficção nem documento histórico, mas podem tornar-se, conforme a construção do
enredo e os objetivos didáticos, respectivamente. Nelas temos sempre a presença de um
narrador que conta as experiências temporais, interpretando-as, revisando-as, sintetizando-as e,
até mesmo, modificando-as pela linguagem dos quadrinhos, o que torna flexíveis as fronteiras
entre essas classificações. Um exemplo: tanto em Maus quanto em O melhor que podíamos
fazer, o narrador conta a própria história, ao mesmo tempo em que constrói uma diegese para
narrar a história de seus familiares, transitando entre a biografia e a autobiografia gráficas.
Na utilização das biografias e autobiografias em quadrinhos, devemos levar em
consideração quatro pontos importantes para o ensino de História a partir dessas HQs
históricas: 1) os estudos sobre memória e história oral; 2) o interesse por trajetórias de vida que
possam oferecer parâmetros para os comportamentos e ações a serem tomadas no presente pelos
alunos; 3) as narrativas de uma história de vida em quadrinhos se distanciam no tempo da
produção, ao mesmo tempo, em que tentam uma aproximação do tempo vivido fazendo uso de
reduções e condensações; 4) a postura do corpo38 e o gesto têm primazia sobre o texto (Figura
7), ou seja, as situações em que são usadas modificam e definem o significado que se pretende
dar ao texto (EISNER, 2010, p.106).
Figura 7 - Relação entre postura do corpo e o texto.
Fonte: EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 106.
38 “A arte dos quadrinhos lida com reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana. Seus desenhos são
o reflexo no espelho, e dependem de experiências armazenadas na memória do leitor para que ele consiga
visualizar ou processar rapidamente uma ideia. Isso toma necessária a simplificação de imagens transformando-as
em símbolos que se repetem. Logo, estereótipos. Nos quadrinhos, os estereótipos são desenhados a partir de
características físicas comumente aceitas e associadas a uma ocupação. Eles se tornam ícones e são usados como
parte da linguagem na narrativa gráfica”. EISNER, Will. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2013. p. 21-22.
53
A classificação quadrinhos jornalísticos é tributária do conceito Jornalismos em
quadrinhos39, mas guarda em si um pré-requisito que o diferencia para fins dessa pesquisa: o
distanciamento temporal da publicação. Assim, mesmo tendo sua historicidade, somente
aquelas em que a reportagem faz uso da retrospectiva histórica em sua narrativa jornalística são
consideradas HQs históricas, ou seja, uma ambientação histórica necessária para o
entendimento das reportagens, lembrando sempre que essa classificação tem finalidade apenas
para esta pesquisa.
Nos quadrinhos jornalísticos, a compreensão do presente é feita a partir da evocação de
fatos e acontecimentos históricos, criando um diegese que distancia do momento da reportagem.
Essa característica narrativa nos ajuda a pensar como o passado é apropriado por jornalistas
com o propósito de tornar sua matéria instigante e validar seus argumentos. No ensino de
História, essas HQs podem servir para refletirmos sobre como o passado histórico foi concebido
e que como concebemos atualmente o mesmo passado histórico, intercalando o passado e o
presente.
O principal expoente é Joe Sacco com as obras Palestina: Uma nação ocupada (Conrad
Editora, 2000), lançado originalmente em 1996; Uma História de Sarajevo (Conrad Editora,
2005); Notas sobre Gaza (Companhia das Letras, 2010); Reportagens (Companhia das Letras,
2016). No Brasil, um ótimo exemplo é Notas de um Tempo Silenciado (BesouroBox, 2015),
de Robson Vilalba, publicado na série Pátria Armada Brasil pelo jornal paranaense Gazeta do
Povo em março e abril de 2014, com formato similar a um documentário. Notas... apresenta a
história silenciada de índios, negros, guerrilheiros e mulheres, que sofreram os horrores da
ditadura no Brasil. A HQ recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Feitas essas considerações, é importante salientar que as HQs históricas não são
produzidas conforme exigências teóricas e metodológicas da pesquisa histórica, apesar de
alguns historiadores fazerem uso dessa linguagem, como André Toral, Lilia Moritz Schwarcz
e Aline Lemos. São produtos que visam, a princípio, o entretenimento e a recepção de demandas
mercadológicas de um nicho característico e com carências específicas, mas que, legitima
narrativas e conhecimentos históricos socialmente aceitos em determinada época, colocando
em debate as possibilidades de se compreenderem e interpretarem as experiências do passado.
39 No jornalismo em quadrinhos, a principal característica é a narrativa jornalística e a reportagem, mantendo os
mesmos critérios técnicos e de objetividade encontradas no jornalismo produzido para qualquer outro veículo de
comunicação, ou seja, informar, opinar, interpretar e entreter. Nessas HQs, a narrativa tem características,
princípios e códigos próprios da reportagem e o enredo não estruturado a partir de um personagem, sem, contudo,
a própria participação do repórter nos acontecimentos narrados. De fato, é inquestionável as possibilidades do
Jornalismo em quadrinhos para o ensino de História.
54
Diante dessa perspectiva, os pressupostos epistemológicos da Didática da História,
sobre as formas e funções do conhecimento histórico na vida cotidiana40, são imprescindíveis
para a atividade docente, uma vez que contribuem na apreensão de que, mesmo as HQs
históricas cujas diegeses não pretendam ser um discurso historiográfico, nos assistem com
fontes tanto para a pesquisa quanto como material para construção do saber histórico em âmbito
escolar, proporcionando uma compreensão histórica, para além da simples memorização de
fatos e datas históricas. São, portanto, artefatos da cultura histórica pertencentes, de maneira
essencial, aos seus tempo e espaço de produção e recepção, mais que aos acontecimentos
relativos a algum passado que por ventura se busque reconstruir, sem, contudo, deixar
evidenciar esse passado ilustrado.
As HQs históricas, ao construírem uma diegese ambientada no passado histórico,
dialogam nos domínios do imaginário, das representações e das sensibilidades construídas em
diferentes temporalidades e contextos por indivíduos ou grupos sociais, ao mesmo tempo, que
a experiência vivida dos sujeitos se tornam ponto de partida para construção de seus enredos.
Outro diálogo importante reside, ainda que não explícito nas narrativas gráficas, nas discussões
acerca da constituição da narrativa histórica e seu papel da narrativa para o conhecimento
histórico41. Esse diálogo favoreceu a literatura, o cinema, a televisão e as HQs, em particular,
como suporte para as narrativas de histórias de vida, memórias e eventos históricos, com o
propósito de pensar o passado e a constituição do sentido da experiência temporal, dando
relevância aos diversos sentidos e significados conferidos pelos indivíduos nas suas relações
com seu tempo e espaço.
Dessa forma, as HQs históricas se constituem como saberes históricos que transitam
nas fronteiras entre: história e literatura; ficção e verdade; evidência e invenção; fato e
intepretação; experiência e relato; objetividade e subjetividade; fonte e material didático. Em
nossa inferência, essa transição é análoga às narrativas presentes nos livros didáticos e no ensino
de História, assente nas falas dos professores e dos alunos. Esse expediente narrativo tem a
possibilidade de promover a compreensão das dimensões da temporalidade, de modo que os
alunos possam entender que fazem parte do passado vivido por homens e mulheres,
estabelecendo uma relação dinâmica com o passado e com o saber histórico.
40 Abordaremos este assunto no capítulo 2.
41 ROIZ, Diogo da Silva. A reconstituição do passado e o texto literário: a resposta dos historiadores à ‘virada
linguística’. Revista Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 13, n. 3, 2009. p. 587-624; ROIZ, Diogo da Silva. Linguagem,
cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores. Jundiaí: Paco Editorial, 2012; MALERBA,
Jurandir. Ciência e arte na escritura histórica. In: MALERBA, Jurandir (Org.). História & Narrativa: a ciência e
a arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016. p. 15-33.
55
CAPÍTULO 2 - HQs HISTÓRICA E OS PROCESSOS DE COMPREENSÃO
HISTÓRICA
A intenção deste capítulo é discorrer sobre a HQs e os processos de compreensão
histórica. Para tal, farei uso dos conceitos de aprendizagem histórica, cultura histórica e
narrativa histórica para analisar as HQs históricas. Nesse percurso do texto, utilizaremos os
quadrinhos A arte de voar (2018); D. João Carioca. A corte portuguesa chega ao Brasil 1808-
1821 (2007); Caveira Vermelha – Encarnado (2013); História do Brasil em quadrinhos:
independência do Brasil (2008) e Quarto de despejo: diário de uma favelada (2018)
estabelecendo diálogos aproximando essas narrativas gráficas aos conceitos operacionalizados.
2.1 Didática da História, cultura histórica e HQs históricas
2.1.1 Da Didática da História e as HQs históricas
Com base no lugar e nas possibilidades das HQs como artefatos da cultura histórica
portadora de narrativas de constituição de sentido, propomos uma análise acerca do conceito de
cultura histórica e Didática da História a partir das formulações teóricas de Jörn Rüsen (2001;
2007a; 2007b; 2012; 2014) e respaldado nas reflexões de Oldimar Cardoso (2008), Maria
Auxiliadora Schmidt (2012; 2017), Rebeca Gontijo (2014), Ronaldo Cardoso Alves (2011), e
Estevão de Rezende Martins (2012) no intuito de indicar como este conceito pode ser
operacionalizado para analisar o processo de aprendizagem histórica e a utilização de HQs no
ensino de história.
A Didática da História – Geschichtsdidaktik –, concebida na Alemanha, é uma disciplina
específica que traz no cerne de seus interesses a adversidade da formação histórica dos
indivíduos na sociedade, em oposição às definições da Didática como arte de ensinar —
Lehrkunst — ou como coleção de métodos indiferentemente utilizáveis no ensino de qualquer
disciplina escolar — Unterrichtsmethoden. Apesar de possuir relações intensas com a História
instruída nas escolas, esse campo não considera somente as circunstâncias de aprendizagem em
sala de aula, mas a totalidade das manifestações e representações da cultura e da consciência
histórica dentro e fora da escola (CARDOSO, 2008, p.165-166).
Nesse sentido, Cardoso ainda ressalta que “como escola e sociedade se influenciam
mutuamente, de um ponto de vista didático-histórico não faz sentido diferenciar a História
escolar das outras elaborações da História sem forma científica” (2008, p. 166). Assim, a
56
Didática da História investiga as peculiaridades existentes, viáveis e necessárias dos processos
de ensino e aprendizagem e o significado da História na sociedade, na produção, veiculação e
nos usos e funções sociais dos conhecimentos históricos. E, por consequência, aferir como
influenciam a percepção e a interpretação dos estudantes sobre o passado.
Ao inquirir os usos e funções sociais dos conhecimentos históricos presentes na História
Escolar e na História sem forma científica, e como estes instigam e interferem no ensino,
Cardoso (2008, p. 163) defende que uma pesquisa de campo didático-histórica jamais deve
ignorar ou mesmo relegar a segundo plano os conteúdos tratados numa aula. Conforme esse
autor, quando um pesquisador das ciências da educação, e aqui eu acrescento um
professor/professora da Educação Básica, desconsidera ou se distancia dos artefatos da cultura
histórica, não escapa dela, pois esta sempre se apresentará tanto na forma como no conteúdo da
aula.
Deste modo, uma investigação na área didático-histórica deve sempre se submeter ao
pressuposto de entender forma e conteúdo da aula como um todo inseparável. Muito além disso,
[...] ela sempre entende o que ocorre na sala de aula como apenas uma parte de um
todo mais amplo, que engloba todas as elaborações da História sem forma científica.
O que ocorre na sala de aula é só uma parte da cultura histórica, aquela chamada de
História escolar, que mantém relações indissociáveis com outras expressões dessa
cultura — livros didáticos, filmes, programas de televisão, sites da internet etc. —,
mesmo que tais relações não sejam sempre visíveis aos olhos dos atores de campo ou
do pesquisador. Essas relações indissociáveis típicas da cultura histórica impedem o
pesquisador de tratá-la como um texto — culture-as-text —, pois ela não é algo
separado de seus autores e contexto histórico. (CARDOSO, 2008, p. 163).
É relevante ressaltar que dentre as diversas linhas de estudos evidencia-se o referencial
epistemológico da Didática da História proposta por Jörn Rüsen, que emana da premissa de
relacionar a escrita historiográfica resultante da ciência História com a Vida Prática dos
indivíduos na sociedade. Na concepção de Rüsen, essa disciplina juntou temas, conteúdos,
matérias e questões orientados pela prática sobre o ensino e aprendizagem em âmbito escolar
com uma compreensão teórica dos processos e funções da consciência histórica comum a todas
as pessoas.
De acordo com a teoria da consciência histórica de Rüsen (2001), todo pensamento
histórico, em todas de suas nuances e particularidades - o que compreende a ciência da história,
a memória e as narrativas sobre o passado - é uma articulação da consciência histórica. Esta,
por sua vez, está instantaneamente e sem interrupções associada à vida humana prática,
caracterizada com a síntese da faculdade mental com as quais os homens interpretam o mundo
e a si mesmo, orientando intencionalmente sua vida prática no tempo.
57
A partir dessas orientações, os entendimentos sobre a Didática da História expandiram
amplamente, indo além de refletir somente os impasses e dilemas do ensino e aprendizado na
escola. Assim, essa disciplina passou a analisar todas as formas e funções – estéticas, políticas
e cognitivas – do conhecimento histórico na vida cotidiana e prática, o que engloba
[...] o papel da história na opinião pública e as representações nos meios de
comunicação de massa; ela considera as possibilidades e limites das representações
históricas visuais em museus e explora diversos campos onde os historiadores
equipados com essa visão podem trabalhar. (RÜSEN, 2011, p. 32-3).
De acordo com Maria Auxiliadora Schmidt (2017), do ponto de vista epistemológico, a
Didática da História estabelece compromisso com o processo do aprender a pensar
historicamente, ou seja, com realizar a “formação histórica” envolvendo dois aspectos
organicamente interligados – a vida prática e a ciência da História.
Numa perspectiva transversal, significa entender o saber histórico como síntese da
experiência humana com a sua interpretação para orientação na vida prática; e na
horizontal, seria considerar a formação como socialização e individualização
(dinâmica da identidade histórica) a partir de sua relação com a ciência. (2017, p. 62).
Nesse sentido, a Didática da História investiga, para além do ensino e aprendizagem da
história, os usos públicos da história e suas consequências, objetivos e sequelas na vida prática.
É inegável o papel do espaço escolar na aprendizagem histórica, todavia não se aprende história
unicamente na sala de aula, mas também por intermédio da cultura histórica presente na mídia,
nos jornais, nas redes sociais, nos discursos políticos, na novela televisiva, no cinema, nos jogos
eletrônicos, nas histórias em quadrinhos, na literatura, nas festas, entre outros42.
É nesse sentido que dialogamos com as HQs históricas Lampião em Quadrinhos e
Cumbe, considerando que, a relação que os autores e a recepção dessas narrativas mantêm com
a ciência História e com a História escolar, e em particular, os seus recortes temporais – século
XVII e XX, respectivamente -, proporcionam a compreensão histórica para além dos elementos
factuais, alcançando a apreensão de significados de uma experiência histórica do passado nos
dias atuais, para os indivíduos no presente. Ou seja, compreender um acontecimento histórico
na vida presente, e sobretudo, na sala de aula, por meios da elaboração histórica e da atribuição
de sentido sobre o passado presente nessas narrativas gráficas.
42 Atualmente, a chamada História do Tempo Presente tem explorado a relação entre História e Mídia e as
apropriações do passado numa escrita de fronteira. MENESES, Sônia. História e mídia: as apropriações do passado
numa escrita de fronteira. IN: REIS, Tiago Siqueira; et al. organizadores. Coleção história do tempo presente:
volume 1. Boa Vista: Editora da UFRR, 2019.
58
Com base nos esboços sobre Didática da História sintetizado acima, podemos balizar a
pesquisa de campo didático-histórico como situada no cotidiano de todos os espaços de
manifestação da cultura ou do conhecimento histórico. Esses espaços não se limitam às aulas
de História, mas abrange também “os espaços de atuação de museólogos, jornalistas, escritores,
letristas, roteiristas, cineastas, desenhistas, turismólogos, diretores e autores de teatro que
utilizam conteúdos históricos em seus produtos ou obras” (CARDOSO, 2008, p. 166). Embora
a pesquisa nessa área seja realizada, em primazia, na realidade escolar, ela não é exclusivamente
uma pesquisa educacional, uma vez que suas inferências não se restringem a essa realidade.
Dessa forma, concebemos que a Didática da História não engloba apenas as histórias
ensinadas nas instituições de ensino, mas em todos os contextos sociais permeados de
historicidades ou de sentidos sobre o passado. Em fase do exposto, a Didática da História tem
por propósito investigar a cultura histórica em todas as suas peculiaridades e no contexto geral
da vida em sociedade. No entanto, segundo Rüsen (2012), o ensino de História é o cerne dos
estudos dessa disciplina, dado que o ensino é uma das instituições mais importantes da cultura
histórica, e é, como tal, circunscrito de modo especial pelo aprendizado.
2.1.2 Da cultura histórica e as HQs históricas
Para Rüsen (2007a), a cultura histórica, a princípio, é o campo de interpretação do
mundo e de si mesmo, pelo ser humano, em que devem empreender as operações de
constituição do sentido da experiência do tempo, determinantes da consciência histórica
humana. É uma articulação sistemática entre os aspectos cognitivos da elaboração da memória
histórica, exercida na e pela consciência histórica, semeada pela ciência, com os aspectos
políticos e estéticos dessa mesma elaboração.
Cultura histórica nada mais é, de início, do que o campo da interpretação do mundo e
de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as operações de constituição
de sentido da experiência do tempo, determinantes da consciência histórica humana.
É nesse campo que os sujeitos agentes e padecentes logram orientar-se em meio as
mudanças temporais de si próprios e de seu mundo. (RÜSEN, 2007a, p.121).
Maria Auxiliadora Schmidt (2012, p. 96) aponta que a cultura histórica é uma categoria
de análise que permite a compreensão da produção e usos da história no espaço público na
sociedade atual. Para ela, refere-se a um fenômeno do qual faz parte o imenso boom da História,
o sucesso que os debates acadêmicos têm tido fora da área de influência de especialistas e a
grande receptividade do público face o uso de argumentos históricos para fins políticos. Desse
processo, segue a autora, fazem parte as contendas, os enfrentamentos e aproximações entre a
59
investigação acadêmica, o ensino escolar, a conservação dos monumentos, os museus e outras
instituições, em torno de uma aproximação comum do passado.
A partir dessa aproximação, o passado pode ser ratificado, interpelado, problematizado
e historicizado segundo as carências e interesses dos sujeitos, o que os qualifica, ao mesmo
tempo, como produto e produtores da cultura histórica. Uma vez que, a cultura histórica é
compreendida como algo vivido de um tempo e um espaço, e assim, uma elaboração/realização
histórica de um determinado período e sociedade, marcada pela intencionalidade da história da
humanidade. E assim, a cultura histórica possibilita e efetiva as mediações dos e entre sujeitos,
diante das relações presentes na vida prática.
Nessa linha argumentativa, Rebeca Gontijo (2014, p. 45) entende que o conceito de
cultura histórica demanda da necessidade de perceber a relação efetiva e afetiva que um grupo
mantém com o seu passado. Dialogando com os autores citados, assevera que a cultura histórica
não se limita à historiografia, porque tem a pretensão de estender-se aos múltiplos agentes
envolvidos com a sua produção, os meios pelos quais se veiculam, as representações que
legitima e, não menos importante, sua recepção. Para essa autora, o estudo desse conceito
abrange os inúmeros modos de elaboração da experiência histórica e sua articulação com a vida
de uma comunidade, considerando que agentes sociais díspares cooperam nessa elaboração e
muitas vezes concorrem entre si.
Assim, para Rüsen (2009) a cultura histórica contempla os distintos métodos de
investigação científico-acadêmica, da criação artística, da luta política pelo poder, da educação
escolar e extraescolar, do lazer e de outros procedimentos da memória histórica pública, como
concretudes e expressões de uma única potência mental. Desse modo,
[...] a cultura histórica sintetiza a universidade, o museu, a escola, a administração, a
mídia e outras instituições culturais como um conjunto de locais de memória coletiva
e integra as funções de ensino, entretenimento, legitimação, crítica, distração,
iluminação e outras formas de memorizar [lembrar], na unidade global da memória
histórica. (RÜSEN, 2009, p 2-3, tradução nossa)43.
A partir das funções da cultura histórica em determinadas sociedades, esse autor
apresenta três dimensões principais44, articuladas entre si, abrangidas pelo saber histórico: a
43 “[...] la 'cultura histórica' sintetiza la universidad, el museo, la escuela, la administración, los medios, y otras
instituciones culturales como conjunto de lugares dela memoria colectiva, e integra las funciones de la enseñanza,
del entretenimiento, de la legitimación, de la crítica, de la distracción, de la ilustración y de otras maneras de
memorar, en la unidad global de la memoria histórica”. (RÜSEN, 2009, p 2-3). Tradução para o espanhol por
F.Sánchez Costa eIb Schumacher.
44 Numa argumentação mais complexa podem distinguir-se outras dimensões: estética, política, cognitiva, retórica,
didática, moral, religiosa, a dimensão da visão do mundo e da ideologia.
60
estética, a política, e a cognitiva. A dimensão estética aparece aos indivíduos e grupos através
de diferentes linguagens e abordagens do saber histórico – cientificamente construído ou não.
A literatura, o teatro, o cinema, a novela, as histórias em quadrinhos, os desenhos animados, a
arquitetura, a pintura, o grafite, a pichação, a música, a dança e tantas outras manifestações
artísticas, ou seja, as representações relativas à experiência humana nas diversas temporalidades
e espaços, e, portanto, portadores de significados e orientações, como afirma Ronaldo Cardoso
Alves:
A dimensão estética da cultura histórica se apresenta aos seres humanos em suas
construções artísticas. A literatura, o teatro, o cinema, a arquitetura, as tradições
populares representam aspectos da experiência humana e são portadoras de
significados e sentidos. Seus autores sejam indivíduos, grupos ou instituições geram,
com suas criações, formas de pensar e vivenciar o cotidiano. Aqueles que recebem
essa produção cultural as percebem, interpretam, trazem à memória o que pode
alimentar suas convicções de orientação na vida. A cultura histórica representa em sua
dimensão estética, a beleza da produção cultural da humanidade. (ALVES, 2011, p.
30).
Assim, ao investigar HQs históricas, os embates presentes na dimensão estética das
narrativas gráficas podem evidenciar a estrutura narrativa efetiva e afetiva no entendimento
básico de que alguém narra a alguém uma história sobre uma experiência do passado
interpretada no presente, a partir de suas intencionalidades e carências de orientação, e que a
articula com as expectativas de futuro, dando à existência um sentido histórico. Essas HQs
revelam a percepção, a interpretação e a orientação vivenciadas e celebradas pelos seus autores
e leitores, e que, por sua vez, também investigam os preâmbulos do passado e dissertam,
narrativamente, a concepção de si e de mundo pensada e proposta por seu autor.
A dimensão política é reconhecida na organização institucional da operação da
consciência histórica, como a escola, o currículo para a disciplina História – na educação básica
e no ensino superior -, o arquivo, o museu, as políticas estatais e de governo, em suma, a
fronteira entre a legitimação da memória e do esquecimento. Essa construção da legitimidade
das ações está potencialmente respaldada em argumentos provenientes da memória histórica,
uma vez que esta, encerra em si a função genuína de legitimação política.
De acordo com Rüsen (2009), a dimensão política da cultura histórica fundamenta-se
no advento de que, qualquer sistema ou forma de dominação demanda da adesão/consentimento
dos dominados e o passado tem uma função imprescindível nesse processo, dado que este é
mobilizado essencialmente como passado prático, justificando as relações de poder em relação
ao conhecimento do passado, sobretudo devido à urgência de legitimação para o consentimento.
É a dimensão política da cultura histórica que diz que:
61
Legitimidade é a capacidade estrutural do domínio para receber consentimento. A
memória histórica é um meio importante desse consentimento. Consolida
mentalmente o domínio político, pois o inventa nas construções de sentido da
consciência histórica que servem para a orientação cultural da vida prática. (RÜSEN,
2009, p 18, tradução nossa)45.
A dimensão cognitiva da cultura histórica se materializa, essencialmente, por intermédio
da ciência histórica e de seus processos de regulamentação metódica das operações
historiográficas e da consciência histórica. Em pleno desenvolvimento tecnológico e científico,
sua relevância reside em gerar mecanismos que concebam coerência e autorizem a seleção de
experiências a serem interpretadas com o intuito de se obter orientação temporal. Ou seja, “é o
princípio da coerência do conteúdo, que se refere à confiabilidade da experiência histórica e ao
alcance das normas usadas para sua interpretação” (RÜSEN, 2009, p. 20, tradução nossa)46.
Logo, a História exerce um papel capital nesse processo seletivo e interpretativo, ao fornecer
parâmetros de análises que possibilitam a investigação de artefatos produzidos culturalmente.
O professor Estevão de Rezende Martins, tradutor e comentador brasileiro de Rüsen,
complementa a importância dessa dimensão ao entender que
A consciência histórica difusa, com seus temas, interesses e objetivos, é passada pelo
crivo metódico da ciência para assegurar tanto coerência interna, plausibilidade e
fiabilidade do resultado quanto controle intersubjetivo da(s) história(s) produzida(s) a
partir da aplicação interpretativa das regras e normas do trabalho científico ao material
empírico da pesquisa. O tratamento científico das fontes faz encontrarem-se a cultura
histórica presente no tempo passado e em seus vestígios e a cultura histórica presente
no pesquisador e em seu meio cultural. As regras metódicas funcionam como
convenções de garantia para que sejam evitadas a arbitrariedade de um subjetivismo
incontrolado e a ilusão de uma objetividade absoluta. (MARTINS, 2012, p. 76).
Atualmente, essas dimensões da cultura histórica caracterizam-se por constantes
disputas narrativas sobre o saber histórico na medida em que o processo de construção de
sentido do passado na vida prática tem se dado por meio de formações compensatórias47 e
45 “Legitimidad es la capacidad estructural del dominio de recibir consentimiento. La memoria histórica es un
medio importante de este consentimiento. Cimienta el dominio político mentalmente, ya que lo acuña en las
construcciones de sentido de la conciencia histórica que sirven para la orientación cultural de la praxis vital”.
(RÜSEN, 2009, p. 18). Tradução para o espanhol por F.Sánchez Costa eIb Schumacher.
46 “Se trata del principio decoherencia de contenido, que se refiere a la fiabilidad de la experiencia histórica
y al alcance de las normas que se utilizan para su interpretación”. (RÜSEN, 2009, p. 20). Tradução para o
espanhol por F.Sánchez Costa eIb Schumacher.
47 Para Rüsen (2007a, p. 96), “A formação é compensatória quando, acriticamente, de fora da produção científica
do saber ou contra ela, deixa-a ao sabor de suas próprias regras, separa da racionalidade intrínseca ao saber
científico as carências de orientação voltadas ao todo, à relação à vida e à subjetividade, enfim, satisfaz essas
carências com meios não-científicos”.
62
complementares48. Esse processo relaciona-se à competência dos sujeitos no presente de
perceber, acomodar e criticar as apropriações do passado, tornando paulatinamente o passado e
o futuro presente no presente consciente de sua historicidade.
Assim, a articulação entre as três dimensões da cultura histórica influencia
potencialmente o cotidiano dos indivíduos na sociedade. Por sua vez, dão origem à manipulação
ideológica do passado para atender a determinado grupo social ou mesmo acarretar em um
relativismo moral e ético agressivo. Por outro lado, forjam concepções de mundo fundamentado
no respeito à dignidade humana, na receptividade da diversidade para que os princípios de
liberdade e igualdade sejam plenamente vivenciados. Martins assevera que esta articulação
exprime:
[...] a riqueza da cultura histórica pela beleza, pela vinculação com o poder decorrente
da legitimidade e pela busca da verdade possível, constitui-se tanto em desafio
mobilizador da pesquisa e da inquietação acerca de explicações bem fundadas e
convincentes como em uma espécie de surdina redutora de pretensões abusivas de
unilateralidade (subjetivismo) ou de neutralidade (objetivismo) ou, ainda, de
manipulação ideológica, por exemplo. (2012, p. 76).
Cada uma dessas dimensões, incluem elementos sistemáticos e assistemáticos de
constituição de sentido sobre a experiência temporal, tanto individuais e sociais, quanto
públicos e privados, através da aplicação de sentidos e eficácia do conhecimento histórico, bem
como, sua utilização no ensino e aprendizagem da história e seus usos públicos na vida prática.
Ao mesmo tempo, em que constrói no intelecto dos indivíduos e grupos, a noção de
pertencimento e identidade histórica, também legitima suas escolhas políticas e artísticas
envoltas à especificidades e relações culturais e sociais.
Assim, podemos afirmar que é por intermédio da cultura histórica que os indivíduos
interagem com as noções e narrativas históricas convergentes e divergentes que se apresentam
de modo disperso (família, vizinhança, escola, movimentos sociais, trabalho, nas mídias – em
destaque para o “efeito bolha”49 causado pelos algoritmos das redes sociais), estabelecendo uma
48 “Formação pode dar-se ainda de modo complementar. Trata-se de fazer adotar seus próprios pontos de vista nos
saberes científicos e em sua produção pelas ciências. Isso só é possível mediante a reflexão sobre as regras e os
princípios com que as ciências organizam categorialmente sua relação à experiência, à práxis e à subjetividade.
Essas reflexões colocam em evidência o universal no particular dos saberes, a práxis na teoria e a subjetividade na
disciplinação metódica do pensamento. Elas instituem, para os sujeitos envolvidos na produção e na utilização dos
saberes, uma possibilidade de comunicação, na qual as diversas competências para produzir entendimento sobre
as interpretações e o manejo dos problemas comuns são adquiridas. Nesse trabalho de entendimento são afastados
os limites do saber, saberes são integrados, possibilidades de orientação cognitiva da práxis adquiridas e testadas,
subjetividade para o autoconhecimento e entendimento mútuo fortalecida” (RÜSEN, 2007a, p. 69-97).
49 Por meio da seleção automática de conteúdo pelos algoritmos de inteligência artificial, os usuários acabam
sendo expostos prioritariamente a opiniões e ideias similares às suas próprias visões de mundo. O efeito disso é
conhecido como efeito bolha, que por sua vez, tem restringido potencialmente o acesso das pessoas à diversidade
dos conteúdos e opiniões, o que tem gerado vários questionamentos quanto ao seu potencial antidemocrático.
63
relação efetiva e afetiva que um grupo mantém com o seu passado, através das experiências
vividas individualmente e das interpretações subjetivas, e intersubjetivas que dela decorre, ou
seja, da historicidade dos artefatos da cultura histórica e da aproximação dos indivíduos aos
processos de formações compensatória e complementar.
As HQs históricas apresentam muitos elementos para pensarmos essas três dimensões
da cultura histórica, ainda que, em sua maioria, não as percorram de forma direta, porque
entendemos as HQs históricas como leituras/releituras e usos que os roteiristas e ilustradores
fazem do passado. Sem dúvida, a dimensão estética é claramente perceptível em uma narrativa
gráfica, mas, ao mesmo tempo, demandam legitimidade e consentimento assentes em
argumentos oriundos da memória histórica, especialmente, da coerência facultada pelas
investigações no âmbito da Educação Histórica.
Esses referenciais permitem a construção de um diálogo específico entre a cultura
histórica e as histórias em quadrinhos, pertinentes ao ensino da História, representados pelos
currículos e livros didáticos, bem como pelas narrativas, as práticas e usos dos espaços
escolares, constitutivos do ensinar História e que indicam que a História, como matéria de
ensino, é tributária das carências de orientação temporal. E aqui, nos deparamos com o potencial
das HQs históricas para construção do saber histórico, e, portanto, para a aprendizagem
histórica nos diversos espaços, rompendo as fronteiras existentes entre a sala de aula e os
artefatos da cultura histórica.
2.2 Aprendizagem histórica e as HQs históricas
Para Rüsen, o aprendizado histórico pode ser “compreendido como um processo mental
de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica, na qual
competências para tal narrativa surgem e se desenvolvem” (2011, p. 43). Para esse autor, este
aprendizado representa a consciência histórica manifestada no momento em que os sujeitos
narram a história, concebendo nexos no diálogo sobre a formação de suas identidades históricas.
Visto que as narrativas são elaborações da mente humana e, através delas, os indivíduos
compreendem espaço e tempo, de um modo lógico e cabível sobre suas experiências temporais.
Nessa abordagem, construir sentido sobre a experiência temporal é um ato de narrar o
passado por intermédio de recursos da linguagem, proporcionando internamente explicações
coerentes para a intencionalidade das ações humanas no tempo. Sendo assim, a narrativa
histórica, em tese, pode ser entendida como aprendizado e importante base para o ensino de
História quando as competências narrativas forem obtidas mediante a atividade produtiva dos
64
sujeitos, com as quais a história será vista como fator de orientação cultural no cotidiano
humano.
É importante frisar que essas competências narrativas não devem ser compreendidas
como ato técnico ou procedimentos metódicos de produção escrita. Elas devem ser entendidas
no âmbito do contato dos discentes com as experiências históricas, atribuindo sentido por
intermédio de suas próprias experiências e necessidades de orientação temporal, tomando como
base uma realidade (presente), uma experiência (passado) e sua intencionalidade (futuro).
Entendemos, assim, a competência narrativa como a síntese das dimensões do tempo, que
permite a articulação entre os vínculos do passado e os princípios interpretativos, a partir das
carências de orientação dos alunos.
Por este viés, os quadrinhos, sobretudo, as HQs históricas, oferecem aos discentes
elementos acerca das experiências do passado. Uma vez que, a narrativa gráfica é veículo de
expressão criativa, uma linguagem distinta, uma forma artística que compartilha com a
literatura e com o cinema a capacidade de narrar uma história ou representar uma ideia. E,
assim, elas têm a capacidade de apresentar, por intermédio de elementos estéticos essências
para o desenvolvimento das narrativas gráficas, o passado do presente, o que as tornam
importantes para os estudos em Educação Histórica50.
De acordo com Mateus Bertolino,
A forma como texto e imagem se completam em seus quadros é o mais próximo do
cinema que vemos em mídias impressas, nos exigindo outro tipo de atenção ao
considerarmos seu encadeamento narrativo distinto. Tendem a motivar a leitura,
sendo muitas das vezes uma introdução lúdica a um universo mais amplo da literatura,
da qual fazem parte em suas especificidades. São acessíveis, se considerarmos sua
distribuição e o formato digital, e veem-se transcendidas a outros suportes. Nas aulas
de História, simbolizam um convite à reflexão sobre tempo, memória, identidade,
fornecem aspectos da vida social e servem como pontos de ignição para discussões
conceituais. (BERTOLINO, 2018, p. 13).
Segundo Walter Gallie (2016, p. 141), “[...] uma estória exige, como condição
necessária de sua inteligibilidade e de sua aceitabilidade, alguma indicação do tipo de evento
ou contexto que ocasionou ou o evocou, ou, ao mesmo tempo, tornou-se”, assim como
expressam as histórias em quadrinhos A arte de voar (2018), biografia gráfica de Antonio
Altarriba e Kim, publicada em dezembro de 2012 no Brasil pela Veneta, e D. João Carioca. A
corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), narrativa gráfica estruturada na operação
50 De acordo com Isabel Barca, “nestes estudos, os investigadores têm centrado a sua atenção nos princípios,
fontes, tipologias e estratégias de aprendizagem em História, sob o pressuposto de que a intervenção na qualidade
das aprendizagens exige um conhecimento sistemático das ideias históricas dos alunos, por parte de quem ensina
(e exige também um conhecimento das ideias históricas destes últimos).” (2005, p. 15, grifos do autor)
65
historiográfica de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca, publicada pelo selo Quadrinhos na Cia em
2007, da editora brasileira Companhia das Letras.
Em A arte de voar, a narrativa gráfica ambientada no período da Guerra Civil Espanhola
(julho de 1936 a abril de 1939), incorpora aventuras, amores, dramas e humor, tecendo um
panorama da Europa no turbulento século XX, adquirindo sentido a partir de um equilíbrio entre
a experiência pessoal e os fatos históricos, tributários da historiografia. A sequência dos eventos
é apresentada através da história de vida de Antonio Altarriba Lope, pai do roteirista, um
camponês que testemunha a ascensão do fascismo na Espanha em meio à miséria e à
instabilidade política dos anos de 1920 e 1930 e seu engajamento na Guerra Civil, ao lado dos
anarquistas. Nessa HQ, o personagem biografado percorre as trincheiras do país encontrando a
solidariedade, o heroísmo e, por fim, a derrota. Juntamente com milhares de outros espanhóis,
Altarriba é compelido a um campo de refugiados (Figura 8) e, posteriormente, a se exilar na
França, onde outra vez se engaja na luta contra o fascismo, fazendo parte da resistência ao
nazismo.
66
Figura 8 - Campo de refugiado
Fonte: ALTARRIBA, Antonio; KIM. A Arte de Voar. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018.
67
Em D. João Carioca. A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), o cartunista
Spacca (pesquisa, roteiro e ilustrações) e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz (pesquisa e
supervisão) narram a presença da família real lusitana que atravessa o oceano e pela primeira
vez governa um império a partir de sua colônia americana. A HQ relata essa história usando a
linguagem dos quadrinhos fazendo uso da iconografia da época, elaborada a partir de uma
ampla pesquisa documental e historiográfica. O quadrinho ainda fornece bibliografia sobre o
tema, uma cronologia que ajuda a entender os fatos e inclui uma galeria de esboços preliminares
e estudos de personagens, cenários e vestimentas.
Nas ilustrações, Spacca combina com competência um traço caricato e expressivo e
cenários bem detalhados. Muitas vinhetas são releituras de quadros históricos de artistas
famosos daquele período, como Debret (Figura 9). No roteiro, nos deparamos com os
equívocos, divergências e as adversidades da vinda da corte portuguesa ao Brasil, tanto para os
colonos, quantos para os metropolitanos, que permaneceram e tiveram que resistir às tropas de
Napoleão Bonaparte. Com uma narrativa perspicaz, o cartunista e ilustrador, incorpora sempre
diferentes pontos de vista sobre cada evento, contexto e fato, transfigurando as contradições
entre eles em humor.
68
Figura 9 - releituras do quadro de Debret
Fonte: SCHWARCZ, Lília Moritz; SPACCA. D. João Carioca. A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-
1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
69
Ao trabalhar com diversas temáticas e experiências do passado, as HQs históricas
evidenciam mudanças sociais e políticas, dinamizam a relação dos alunos com o conhecimento
histórico, tornando-a um impulso sensível ao desenvolvimento das competências narrativas,
posto que sua concepção remete às aspirações ou objetivos específicos. Dessa forma, podemos
considerar a narrativa gráfica relevante para propor uma análise como escrita da história por
mostrar um contexto histórico em e de determinada época. Assim, trabalhar com as HQs
históricas, na Educação Básica, significa aproximar conteúdos e temáticas da realidade ao
universo dos alunos, justificado pela distância entre a linguagem acadêmica muito rebuscada e
a recepção dos discentes.
Sinalizamos, aqui, para uma relação fecunda entre a aprendizagem histórica e as HQs
históricas, com a consequência da inevitabilidade de se desenvolver a capacidade de dar sentido
ao passado por meio do ato de narrar. No ensino de História, esta relação implica em criar
estímulos para orientação dos alunos e alunas - ora agentes, ora pacientes -, impulsionado pelas
HQs históricas, mas nunca apático em relação ao conhecimento histórico, no escopo de
transformar a relação com a vida prática e com o outro através de narrativas.
Esse impulso reside, de fato, das HQs apresentarem uma sobreposição de palavra e
imagem que exige que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais para
compreensão dos personagens, eventos e contextos narrados. Pois, como afirma Rüsen (2011),
em Aprendizado histórico,
O caráter processual do aprendizado histórico nas narrativas da(s) história(s) pode ser
descrito como segue: o estímulo e a força pulsional do aprendizado histórico
encontram-se nas necessidades de orientação de indivíduos agentes e pacientes,
necessidades que surgem para tais indivíduos quando de desconcertantes experiências
temporais. O aprendizado histórico pode ser posto em andamento, portanto, somente
a partir de experiências de ações relevantes do presente. (RÜSEN, 2011, p. 44).
Essas necessidades de orientação são convertidas, nesse caso, em possibilidades
questionadoras no tocante ao passado, que assimilam o potencial experiencial da memória
histórica. É, portanto, a análise das diferenças de temporalidades e o reconhecimento que faculta
interpretar as experiências passadas em compreensão do presente e expectativas do futuro. Por
sua vez, a orientação oportuniza a aprendizagem histórica como guia da ação na vida cotidiana.
Schmidt (2014) enfatiza o fato de que “a aprendizagem histórica só é aprendizagem
quando ela muda os padrões de interpretação do passado, o que pressupõe um processo de
internalização dialógica e não passiva do conhecimento histórico”. Perceba que a aprendizagem
histórica é um processo de uma construção sobre a experiência temporal evidenciada na
70
narrativa histórica a partir do interesse dos sujeitos, o que é um dos pré-requisitos para o
desenvolvimento da consciência histórica.
Assim, na compreensão de Rüsen (2011, p. 84), a aprendizagem histórica é efetuada por
meio de três dimensões/competências narrativas: experiência, interpretação e orientação. A
competência de experiência é a faculdade de perceber o passado e buscar seu caráter temporal,
diferenciando-o do presente; a competência de interpretação é a capacidade para sintetizar as
diferenças de tempo entre o passado, o presente e o futuro, operando como um dispositivo de
interpretação de experiências do passado e uma compreensão do presente; a competência de
orientação é a habilidade para dispor da interpretação do passado, analisar o presente e ampliar
o horizonte de expectativas.
2.2.1 Das tipologias da aprendizagem histórica
Rüsen (2011) aponta para o fato de que na aprendizagem histórica, os fatos objetivos
são adquiridos no processo de ensino e aprendizagem - ou seja, a história, coisas que
aconteceram no tempo - e tornam-se subjetivos, um assunto do conhecimento consciente. Cabe
salientar, que a aprendizagem histórica,
[...] é um processo de fatos colocados conscientemente entre dois polos, ou seja, por
um lado, um pretexto objetivo das mudanças que as pessoas e seu mundo sofreram
em tempos passados e, por outro, o ser subjetivo e a compreensão de si mesmo assim
como a sua orientação no tempo. Este processo pode ser caracterizado por um duplo
movimento: em primeiro lugar, é a aquisição de experiência enquanto o tempo
prossegue (formulado de maneira abstrata: é a subjetivação do objeto); em segundo
lugar, é a escravização do sujeito em relação à experiência (a objetivação do sujeito).
(RÜSEN, 2011, p. 82).
A História tenciona ser “objetiva”, segundo Rüsen, de duas formas. A primeira é
compreendida como substrato do desenvolvimento temporal da vida no presente; a segunda,
objetiva nos documentos, os quais disponibilizam sobre quando, como, por que e por quem algo
aconteceu. Tais formas de objetividades integram quatro tipos de aprendizado histórico:
tradicional, exemplar, crítico e genético (RÜSEN, 2011; 2012). Eles conferem aos fatos um
significado histórico, designam sentidos, interpretações e fazem discernimentos possíveis de
acordo com a concepção do que é importante (Quadro 1).
71
Quadro 1 - Tipologia da aprendizagem histórica
APRENDIZADO
HISTÓRICO
CARACTERÍSTICAS
Tradicional
Na forma de aprendizado da construção tradicional do sentido da
experiência temporal, as experiências temporais serão processadas em
tradições possibilitadoras e condutoras de ações. As tradições se tomam
visíveis e serão aceitas e reconstruídas como orientações estabilizadoras
da própria vida prática.
Exemplar
Na forma de aprendizado da construção exemplar do sentido da
experiência temporal, para além do horizonte de tradições, serão
processadas experiências temporais em regras gerais condutoras de ações.
Nesta forma de aprendizado se constrói a competência de regra em relação
à experiência histórica; os conteúdos da experiência serão interpretados
como casos de regras gerais, e formam-se, na interação entre
generalização de regras e isolação de casos, como condição necessária
para um emprego prático na vida da adquirida competência de regras de
juízo.
Crítico
Na forma de aprendizado da construção crítica do sentido da experiência
temporal, as experiências temporais serão empregadas de modo que o
afirmado modelo de interpretação da vida prática será anulado e será feito
valer as necessidades e interesses subjetivos, O aprendizado histórico
serve aqui à obtenção da capacidade de negar a identidade pessoal e social
do modelo histórico afirmado.
Genético
Na forma de aprendizado de construção genética do sentido da experiência
temporal serão empregadas experiências temporais em temporalizações da
própria orientação das ações. Os sujeitos aprendem, na produtiva
aquisição da experiência histórica, a considerar sua própria autorrelacão,
como dinâmica e temporal. Eles compreendem sua identidade como
"desenvolvimento" ou como " formação", e ao mesmo tempo, com isso,
aprendem a orientar temporalmente sua própria vida prática de tal forma
que possam empregar produtivamente a assimetria característica entre
experiência do passado e expectativa de futuro para o mundo moderno nas
determinações direcionais da própria vida prática.
Fonte: RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2011. p. 45-46.
Porém, Rüsen nos alerta para fato que “a determinação teórica da narrativa, da unidade
e da processualidade da consciência da história, aqui esboçada, é abstrata” (2011, p. 45). Com
isso, os processos tangíveis de aprendizagem dificilmente poderão ser decodificados
empiricamente, estabelecidos normativamente e organizados sistematicamente. Entretanto,
[...] pode-se recorrer a diferenciações tipológicas do aprendizado histórico no âmbito
da didática, e, com isso, elaborar uma tipologia das formas do aprendizado histórico,
72
que pode ser utilizada como um instrumento ideal-típico para a análise e a
interpretação de processos concretos de aprendizado. De acordo com as quatro formas
típicas de construção narrativa de sentido sobre a experiência temporal, diferenciam-
se quatro formas de aprendizado histórico: tradicional, exemplar, crítico e genético.
Todas as quatro formas existem tendencialmente em cada processo de aprendizado
histórico, de forma que este, com auxílio da distinção artificial-analítica das quatro
formas de aprendizado, pode ser decomposto em seus elementos essenciais, cuja
relação de interação pode ser identificada. Dessarte, a estrutura complexa do processo
global de aprendizado pode ser tornada transparente. (RÜSEN, 2011, p. 45).
Na forma de aprendizado da construção tradicional de sentido temporal, as tradições
têm caráter de assegurar e conduzir as ações acionadas pelas experiências temporais. As
tradições se tornam ostensíveis e serão admitidos como orientações solidificadas da própria
vida prática. Concerne em atender as necessidades da orientação por meio da tradição. A
aprendizagem histórica tradicional ocorre, segundo esse teórico,
[...] em grande parte (pelo menos na primeira parte da vida) de forma inconsciente.
Em um nível mais elementar, as formas de interpretação adquiridas estão localizadas
na experiência histórica. Sobre elas, relaciona-se uma grande parte da
autocompreensão em lidar com o passado que pertence às formas de vida coletiva.
(RÜSEN, 2012, p. 80-81).
Rüsen (2012, p. 81) ainda salienta que “[...] a aprendizagem histórica tradicional
também é executada conscientemente e é influenciada intencional e sistematicamente,
especialmente quando se trata de tradição como um fator essencial para a legitimidade de
governo”. Inconsciente ou consciente, nessa forma são levados em consideração a lógica do
repetir para aprender, o que pode ser apontado primordial como história no âmbito de
comunicação das reminiscências humanas.
Assim, aprender história tem sentido de, nessa forma, “identificar a duração de ordens
da vida na mudança dos tempos, ver essa duração como uma garantia de estabilidade da própria
ordem da vida e, por meio da própria busca pela vida, afirmar-se intencionalmente” (RÜSEN,
2012, p. 80). Ainda sobre essa tipologia, este historiador afirma que a aprendizagem tradicional
adquirida é um pré-requisito necessário para qualquer comunicação sobre problemas de
orientação históricos, por possibilitar uma comunicação sobre a compreensão do que está em
questão.
Na forma de aprendizado da construção exemplar de sentido temporal, para além da
esfera de tradições, serão acionadas experiências temporais em normas e condutas gerais de
ações. As demandas de orientação, nessa forma, têm necessidade de satisfazer devido a algumas
experiências temporais estarem submetidas às regras gerais que são justapostas a casos
individuais. Nessa aprendizagem,
73
[...] as experiências de determinadas mudanças temporais são relacionadas a outras
experiências de tal modo que se reconheça uma regra abrangente de todos os casos,
relacionável a outros casos análogos, que porventura ocorram tanto no âmbito da
experiência de vida atual quanto no da expectativa de futuro. “Historia Magistra
Vitae” é o princípio dessa forma de aprendizagem; nela, a capacidade de julgamento
Histórico é adquirida - a capacidade de ligar regras gerais do comportamento humano
às circunstâncias temporais concretas a comportamentos e vice-versa, sequências
temporais específicas da vida prática humana, relacionadas, de forma eficaz e
transparente, a regras gerais do comportamento humano. (RÜSEN, 2012, p. 81,
destaque do autor).
A aprendizagem exemplar, por sua vez, condensa a experiência do passado com o
conhecimento prático de uma experiência temporal, tornando os alunos letrados em história
para sempre, mediante a capacidade prática de controle gerada historicamente. Por meio da
demonstração, e até mesmo da revelação, ela tem capacidade de formar uma identidade
histórica como competências de regra e de sentença, dado a abrangência e o vínculo entre a
generalização das ações e os atos isolados, como circunstância necessária para uso prático na
vida.
Na forma de aprendizagem da formação de sentido crítico sobre a experiência temporal,
as experiências temporais funcionarão de conduta para o que for afirmado como modelo de
interpretação da vida prática seja suprimido, fazendo valer as necessidades e interesses
subjetivos. Aqui, “[...] os sujeitos aprendem a dizer não às amostras de interpretação histórica
sobre a realização do passado, que orientam suas vidas, nas mudanças temporais dos seus
mundos e de si mesmos” (RÜSEN, 2012, p. 82). Esta aprendizagem corrobora com o poder de
rejeitar e repudiar rapidamente padrões, moldes ou arquétipos de interpretação da vida prática,
com influência da experiência histórica. Os alunos aprendem
[...] a remar contra a corrente das interpretações históricas que estão armazenadas na
cultura do seu tempo; eles aprendem a quebrar as representações práticas eficazes de
continuidade e tirar a força da formação da identidade histórica como núcleo central.
Ela abre a possibilidade de conceber outras e novas formas de auto interpretação e
interpretação temporal histórica, e conceber sua vida de acordo com elas. Esta forma
de aprendizagem contribui para a educação da identidade humana, fazendo com que
o sujeito possa e queira ser outro, com as competências que possui, assim como os
outros que o incentivam e esperam dele. (RÜSEN, 2012, p. 82-83).
A aprendizagem histórica assiste aqui à aquisição da capacidade de negar a identidade
pessoal e social do modelo histórico reconhecido, consolidado e comprovado pela experiência
temporal. Ela promove a construção de sentido sobre as experiências temporais, por intermédio
diferente daqueles depósitos de conhecimento e sistemas de aceitação já acondicionado e
fechado na memória. Como consequência,
74
[...] as experiências de alienação devem ser usadas historicamente, e o sujeito deve ter
a coragem de sair do chão (em oposição ao terreno familiar de seu ambiente cultural)
para se fortalecer historicamente, isto é, preparar o solo para novas interpretações
históricas de sua própria situação. (RÜSEN, 2012, p. 83).
De acordo com Rüsen (2012, p. 83), na forma de aprendizado de construção genética,
“[...] as experiências temporais sobre as memórias históricas são processadas de modo que o
momento da mudança temporal torna-se, ele próprio (histórico), como a garantia da estabilidade
da orientação prática e da auto compreensão [...]”, ou seja, mudança e capacidade de mudar são
condições necessárias da duração e continuidade. Nessa forma, os alunos devem aprender, na
propícia aquisição da experiência histórica, a refletir sua própria autorrelação como ativa e
temporal.
A aprendizagem histórica, dessa maneira, proporciona ao aluno transformar a si mesmo
e a seu mundo, não permitindo a mudança temporal ser uma advertência à estabilidade, mas
sim conduzindo-a para a eficácia do seu dinamismo interno. Portanto, no aprendizado de
construção genética,
[...] os alunos compreendem sua identidade como “desenvolvimento” ou como
“formação”, e ao mesmo tempo, com isso, aprendem a orientar temporalmente sua
própria vida prática de tal forma que possam empregar produtivamente a assimetria
característica entre experiência do passado e expectativa de futuro para o mundo
moderno nas determinações direcionais da própria vida prática. (Rüsen, 2011, p. 46).
Entretanto, como o próprio historiador esclarece, estas quatro formas de aprendizagem
nunca são puras em si mesmas, mas transitam por sínteses estruturadas de maneiras distintas,
as quais equivalem às situações de aprendizagem diferentes. Nesse sentido, o desenvolvimento
da aprendizagem histórica está articulado com as condições e possibilidades dos alunos a partir
da intencionalidade de suas ações no tempo, criando nexos entre a experiência temporal e a
formação de suas identidades históricas, que sejam elas espontâneas ou induzidas.
Portanto, a aprendizagem histórica está relacionada diretamente à capacidade inerente
aos seres humanos de orientar-se no tempo, e esta, por excelência, à consciência histórica.
Assim, a aprendizagem tende sempre ao processo que ocorre no pensamento dos sujeitos que,
na vida prática, tornam constante o fluxo entre passado, presente e futuro, com o intuito de
interpretar o presente a partir da experiência no tempo e projetar ações referentes ao futuro.
É nesse sentido que as HQs históricas oportunizam a compreensão histórica, por meio
da narrativa gráfica, que agindo como mobilizadoras da consciência histórica, realizam a
orientação temporal da vida prática no tempo, mediante quatro formas diferentes da
aprendizagem histórica: 1) a afirmação das orientações dadas pela tradição; 2) a regularidade e
75
generalização dos modelos culturais e dos modelos de vida; 3) a negação da identidade e dos
modelos de pensamentos historicamente afirmados; 4) a transformação dos modelos de
orientação temática caracterizada pela assimetria entre a experiência do passado e expectativas
de futuro.
Partindo dos diálogos entre as questões teóricas que envolvem a experiência do tempo,
cultura histórica e consciência histórica – conceitos caros para essa dissertação –, e suas
relações com o uso das HQs históricas no ensino de História, e com o propósito de articular a
teoria de aprendizagem histórica descrita anteriormente, vejamos um exemplo de narrativa
gráfica ambientada nos anos de 1920 e 1930, período muito fascinante e sedutor nas turmas de
ensino médio, devido à grande quantidade de livros, filmes, documentários sobre a ascensão e
as consequências do nazismo.
Caveira Vermelha - Encarnado, com roteiro de Greg Pak, arte de Mirko Colak e cores
de Matthew Wilson, é uma minissérie de cinco números publicada nos EUA em 2011 e, no
Brasil, em janeiro de 2014 já como encadernado de capa dura pela Panini, ambientada no
contexto histórico da Alemanha depois da Grande Guerra (1914-1918). Com um roteiro linear
e cores pensadas para a época, a história transcorre ao longo da vida do órfão Johann Schmidt
– futuro Caveira Vermelha - que torna-se adulto em meio a ascensão do Partido Nazista e o
declínio da República de Weimar, em uma Alemanha destruída.
No posfácio, Grek Pak elucida suas carências e interesses para compreensão do mundo
e de si, da orientação da vida prática, o que já pode ser o ponto de partida para pensarmos a
aprendizagem histórica. Essas motivações, que podem ou não estarem explícitas nas HQs
históricas, exigiram do roteirista a recepção, o trato, o engajamento diante do saber histórico,
bem como a sua utilização. Nas palavras de Grek Pak,
Eu assumi Caveira Vermelha – Encarnado porque, como intocáveis outros que
aprenderam um pouco sobre o Holocausto, me debatia para compreender como uma
nação não raro descrita como a mais culta de toda a Europa pôde se rebaixar ao
barbarismo incomensurável do regime nazista. Para evitar repetir os horrores do
passado, nós precisamos lutar contra a questão de como as pessoas comuns podem
abraçar com tal disposição o mal. (2013, n.p).
Para tanto, no decorrer da narrativa gráfica, Caveira Vermelha - Encarnado faz várias
menções a personagens e episódios históricos como Marinus van der Lubbe, acusado de
incendiar o Reichstag; Edmond Heines, líder da SA e o próprio Adolf Hitler –, além da
rivalidade entre a Sturmabteilung - SA e a Schutzstaffel- SS e a atuação da Frente Vermelha, de
orientação comunista, trazendo assim os conturbados anos de 1920 e 1930, marcados tanto por
76
um cenário político em ebulição, como diversas crises sócio-políticos importantes na
Alemanha.
A narrativa retrata diversos personagens em situações à época, como a pobreza causada
pela hiperinflação, o desemprego provocado pela Crise de 1929 e a violência consequente dos
discursos de ódios (Figura 10). Mesmo que a personagem central abordada na HQ seja ficcional,
os acontecimentos por ele vivenciados são legitimados pela memória, pelos jornais da época e
pela historiografia sobre o período – no posfácio encontramos as notas finais apresentando as
referências históricas utilizadas. Portanto, Caveira Vermelha - Encarnado aborda por meio de
linguagem acessível e de fácil aceitação pelos jovens – as comics ou de super-heróis – um
assunto traumático que ainda permanece atual, que é a escalada dos discursos de ódio,
especialmente na conjuntura política atual do Brasil.
77
Figura 10 - Discurso de ódio contra os Judeus.
Fonte: PAK, Greg; COLAK, Mirko. Caveira Vermelha - Encarnado. São Paulo: Panini Books, 2013.
78
Reiterando, o conceito de aprendizagem histórica é fundamental para o entendimento
das HQs históricas, como um elemento da cultura histórica para o desenvolvimento da
compreensão histórica e das experiências sobre tempo. Com Caveira Vermelha – Encarnado
podemos mobilizar o saber histórico, tanto escolar quanto acadêmico, ao ser confrontado com
outras narrativas presentes em diversos artefatos, como filmes e livros. Como salienta Plinio Sá
de Araujo,
[...] reconhecendo que um mesmo acontecimento descrito na HQ pode ser narrado por
vários personagens e de diferentes pontos de vista, é importante dentro do processo
de aprendizagem histórica identificar tais ações, pois o mesmo conteúdo gráfico pode
apresentar narrativas concorrentes. Essa circunstância deve ser exercitada como um
recurso de demonstração do entendimento de diferentes versões da história, oriundas
da subjetividade de cada narrativa. Cabe aos profissionais do Ensino de História
aprofundar o debate crítico em relação às histórias em quadrinhos, analisando às
próprias narrativas produzidas na HQ, ou narrativas. (ARAUJO, 2019, p. 99-100).
Nesse contexto, a utilização das HQs históricas na sala de aula estabelece demandas que
apontam questões imprescindíveis para aprendizagem histórica, tais como: quanto a experiência
histórica – o que o aluno entendeu e como ele interpretou?; quanto a compreensão do passado
de outrem – o que significou a ação das pessoas no passado?; quanto a orientação da dimensão
temporal de vida do aluno – como ele percebeu o seu lugar no tempo?; quanto as suas carências,
escolhas e motivações – que horizonte de expectativas o aluno concebeu? Dessa forma,
tomando como exemplo Caveira Vermelha – Encarnado, podemos perceber como as
aprendizagens tradicional, exemplar, crítica e genérica se articulam tanto na própria narrativa
gráfica como na compreensão histórica dos alunos.
2.3 Narrativa históricas e as HQs históricas
Doravante, a respeito da escolha teórica dessa dissertação, apresentaremos os elementos
e tipos que constituem uma narrativa histórica na concepção de Jörn Rüsen (2011). A
apreciação a estes dois aportes teóricos sobre a narrativa histórica justifica-se, como observados
anteriormente, por possibilitar investigar a relação entre aprendizagem histórica, cultura
histórica e histórias em quadrinhos, bem como, refletir sobre as experiências do tempo e a
competência narrativa no ensino da disciplina História na etapa final da educação básica.
Rüsen, no texto Narrativa histórica: fundamento, tipos e razões, ressalta que a narrativa
é um processo que corresponde às esperanças e às intenções humanas de sentido da experiência
do tempo. Ela está vinculada a uma deliberada conduta humana de interpretar a si mesmo e a
seu mundo através do ato de narrar. Essa atitude antrópica, de interpretar sua presença no tempo,
é a forma com que os seres humanos elaboraram para contar, partilhar e encontrar sentido na
79
experiência temporal. “A narrativa é, portanto, o processo de constituição de sentido da
experiência do tempo” (2011, p. 95).
A partir dessa definição, a narração histórica é entendida como uma rede de operações
mentais que constituem e elucidam a consciência histórica de um determinado grupo social e
como os seres humanos dão sentido ao passado. Em sentido amplo, consciência histórica é,
comumente, compreendida como a competência e habilidade intelectual que propicia a
percepção e posicionamento no tempo e espaço em que o indivíduo se encontra. Situando esse
conceito no âmbito da Teoria da História de Rüsen, necessitamos conceber e organizar um
quadro explicativo do que experimentamos como mudança de nós mesmos e de nosso mundo,
através do tempo, com a intenção de poder agir nesse decurso temporal, isto é, apoderar-se dele
de maneira que possamos efetivar as intenções de agir. Assim, ele entende consciência histórica
como
[...] o modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção no
tempo se realiza no processo da vida humana. (O termo “vida” designa, obviamente,
mais do que o mero processo biológico, mas sempre também – no sentido mais amplo
da expressão - um processo social.). Para essa forma de consciência, é determinante a
operação mental com a qual o homem articula, no processo de sua vida prática, a
experiência do tempo com as intenções no tempo e estas com aquelas. (2001, p. 58,
grifo do autor).
Inferimos, que a consciência histórica pode ser interpretada como uma operação
cognitiva que contém em si fatores que vão além da necessidade biológica da vida humana,
incorporando vontades, desejos e expectativas para dar sentido ao tempo presente e às ações
humanas e situá-lo como sujeito no mundo, estabelecendo a relação entre História e vida. E,
assim, evidenciamos a função orientadora da consciência histórica, uma vez que, essa atividade
cognitiva é elucidada “[...] em função do que se tenciona para além das condições e
circunstâncias dadas da vida” (2001, p. 59).
Para Luis Fernando Cerri, um dos historiadores brasileiros que tem fornecido
significativos subsídio para o ensino de história, a “[...] consciência histórica não é memória,
mas a envolve: o tempo significado é a experiência pensada em função do tempo como
expectativa e perspectiva, compondo um sistema dinâmico” (2011, p. 48). Para ele, é um
fenômeno intrínseco cultural, elementar e geral, da espécie humana, “[...] na qual os sujeitos
fazem suas sínteses entre objetivo e subjetivo, empírico e normativo”. Neste sentido, a
consciência histórica não se restringe apenas ao conhecimento do passado e à memória, mas
também engloba os horizontes de expectativas, dado que, assente nela, é possível ao sujeito a
percepção de sua própria historicidade e o caráter diacrônico da vida.
80
Nesse sentido, David Carr (2016b, p. 249) reconhece, que tanto na história quanto na
ficção, as narrativas são essencialmente sobre a realidade humana, ou seja, sobre os atos e
sofrimentos, projetos e planos, sentimentos e experiências das pessoas, e podem ser narradas
tendo uma estrutura narrativa implícita (e às vezes explícitas) preexistente e independentemente
de ser apresentada por um historiador ou outro narrador. Elas tornam-se possibilidades de
compreensão histórica que vêm à consciência histórica a partir de determinado contexto, muito
embora não sejam, a princípio, uma condição de aprendizagem, mas sim, uma condição humana
de dar sentido a existência.
No entanto, para Rüsen, para que a função orientadora seja efetuada, apenso ao
desenvolvimento da consciência histórica, é necessário desenvolver a capacidade de formar
sentido sobre a experiências temporal, com o objetivo de orientar suas ações no tempo (2012,
p. 54). Essa competência se manifesta mediante a narrativa histórica, porque é a competência
narrativa que conduz os indivíduos a ponderar as mudanças pessoais e as do mundo no decurso
do tempo.
Essa competência de “dar sentido ao passado” pode ser elucidada, em três elementos
que, juntos, integram uma narração histórica: forma, conteúdo e função (2011, p. 59).
Identificamos nesses três elementos da narrativa histórica um vínculo direto com a compreensão
histórica e a aprendizagem histórica. Visto que, em relação ao elemento conteúdo, está se
referindo à “competência para a experiência histórica”; em relação à forma, à “competência
para a interpretação histórica”; e, em relação à função, à “competência para a orientação”. Logo,
a narrativa deve estar vinculada à “[...] experiência do tempo de maneira que o passado possa
tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea” (RÜSEN,
2001, p. 155).
Em O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma
hipótese ontogenética relativa à consciência moral, Rüsen reafirma que a narrativa como
síntese das dimensões temporais, responsável pela articulação das experiências do passado a
valores interpretativos. De modo conceitual, a competência narrativa pode ser definida como a
“[...] habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos que dão sentido ao
passado, fazendo efetiva uma orientação temporal na vida prática presente por meio de uma
recordação da realidade passada” (2011, p. 59).
No âmbito da educação básica, a narrativa histórica é uma das maneiras pelas quais
discentes e docentes dão sentido ao passado histórico, sobretudo, quando refletem sobre outras
narrativas do passado presentes no contexto escolar e/ou extraescolar. Visto que, a estrutura da
narração exige um modo de organização do passado, possibilitando a sua inteligibilidade, e
81
estimulando diversas formas de pensar o passado e sobre como ele foi vivenciado. Assim, narrar
em aulas de História é um ato de relatar, descrever e expor o passado e, a partir com embate
com outras narrativas, uma prática de comunicação, informação e interpretação deste passado
narrado, presente nos livros didáticos, filmes, nos romances e nas HQs.
2.3.1 Das tipologias da narrativa histórica e as HQs históricas
Posto que a competência narrativa da consciência histórica se evidencia nos elementos
apresentados, sucintamente acima, Rüsen ressalta a especificidade de uma narrativa histórica
exibir três qualidades relacionadas entre si. Sistematicamente, essas particularidades concernem
ao âmbito da memória, à noção de continuidade e à identidade dos autores e públicos das
narrativas históricas. Por esta tríade, a narrativa histórica viabiliza a orientação da vida prática
o estabelecimento de uma relação presente-passado-futuro, por entender que:
1) Uma narrativa histórica está ligada ao ambiente da memória. Ela mobiliza a
experiência do tempo passado, a qual está gravada nos arquivos da memória, de modo
que a experiência do tempo presente se torna compreensível e a expectativa do tempo
futuro, possível.
2) Uma narrativa histórica organiza a unidade interna destas três dimensões do tempo
por meio de um conceito de continuidade. Esse conceito ajusta a experiência real do
tempo às intenções e às expectativas humanas. Ao fazer isso, faz a experiência do
passado se tornar relevante para a vida presente e influenciar a configuração do futuro.
3) Uma narrativa histórica serve para estabelecer a identidade de seus autores e
ouvintes. Essa função determina se um conceito de continuidade é plausível ou não.
Este conceito de continuidade deve ser capaz de convencer os ouvintes de suas
próprias permanência e estabilidade na mudança temporal de seu mundo e de si
mesmos. (RÜSEN, 2011, p, 97).
Dessa forma, o teórico pressupõe que a narrativa histórica tem, como já dito antes, a
função de nortear a vida prática no tempo, articulada ao espaço de experiência e ao horizonte
de expectativas, mediante o desenvolvimento da noção de continuidade e mudança. Em tempo,
ainda na esteira do pensamento rüseano, inferimos que a narração histórica produz uma história
para o presente respaldado em acontecimentos e eventos do passado. Essa construção pode ser
elaborada de formas substancialmente diferentes, a depender de princípios distintos do
significado histórico. Dessa maneira, a narração histórica também se encontra conceituada a
partir de ideal-tipológica de formação de significado da experiência do passado: tradicional,
exemplar, genético e crítico (Quadro 2).
82
Quadro 2 - Tipologia da narração histórica
Memórias de
Continuidade como
Identidade pela
Sentido de tempo
Narrativa
Tradicional
Origens constituindo
os presentes modos de
vida.
Permanência dos
modos de vida
originalmente
constituídos
Afirmação de
determinados
padrões culturais de
autocompreensão
Ganho de tempo
no sentido da
eternidade
Narrativa
Exemplar
Casos demonstrando
aplicações de regras
gerais de conduta
Validade das regras abrangendo
temporalmente
diferentes sistemas
de vida
Generalização de
experiências do
tempo
transformando-as
em regras de
conduta
Ganho de tempo
no sentido da
extensão espacial
Narrativa
Crítico
Desvios
problematizando os
presentes modos de
vida
Alteração das ideias
de continuidade
dadas
Negação de
determinados
padrões de
identidade
Ganho de tempo
no sentido de ser
um objeto de
julgamento
Narrativa
Genético
Transformações de
modos de vida alheios
para modos mais
apropriados
Desenvolvimento em que os modos de
vida mudam a fim de
estabelecer a sua
permanência
dinamicamente
Mediação da
permanência e da
mudança para um
processo de
autodefinição
Ganho de tempo
no sentido da
temporalidade
Fonte: RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2011. p. 98.
É, portanto, alicerçado na inter-relação deliberada entre os elementos e as qualidades da
competência narrativa que Rüsen apresenta as tipologias das narrativas históricas, as quais
consoante às articulações que se fundam entre a memória, a noção de continuidade, e identidade
e o sentido do tempo são proficientes no sentido da temporalidade (origem, casos, desvios e
transformações) e no estabelecimento de significação das experiências históricas (permanência,
regras atemporais, rupturas, desenvolvimentos).
Logo, como prática cultural, toda narrativa é inerente ao contexto a ser interpretado a
partir da afirmação, generalização, negação e mediação, estabelecendo um diálogo ininterrupto
com as demandas e expectativas do presente. É, assim, um esforço narrativo elaborado pelo ser
humano com a intenção de se orientar no tempo e de preservar ou proteger a memória. E,
portanto, a narrativa pode ser compreendida como um elemento antropológico universal
relativo à condição histórica do ser humano, que está no substrato das formas como ele lida
com a temporalidade (RÜSEN, 2001).
83
Doravante, pretendo explanar as tipologias rüseana e apresentar os tipos de exemplos
extraídos nas HQs históricas. É oportuno salientar que, tanto nas narrativas históricas quanto
nas narrativas gráficas, os quatro tipos são encontrados em todas as HQs históricas, pois uma
implica inevitavelmente a outra e existe um curso, ora espontâneo, ora induzido, do tipo
tradicional ao exemplar e do exemplar à narrativa genética, sendo a narrativa crítica a
motivadora fundamental dessa conversão.
Na narrativa tradicional, a consciência histórica está condicionada exclusivamente pelas
informações, referências e noções concedidas pela tradição, sendo uma reverberação do
paradigma cultural vigente de modos explícitos ou implícitos. Nesse tipo narrativo, o indivíduo
narra e interpreta o mundo deslocando o passado para o presente, de tal maneira que o primeiro
prescreve o segundo e organiza o futuro, evitando problematização das conjunturas em que se
está inserido.
De acordo com Rüsen (2011, p. 99), a narrativa tradicional está fundamentada na
articulação das tradições como condição fundamental para os indivíduos reconhecerem seu
caminho, sem, contudo, terem a necessidade de elaborar questões complexas sobre a existência
humana. Ela edifica a continuidade como permanência da formação originária das sociedades
e formam a identidade pela reafirmação dos conceitos e padrões culturais já existentes,
limitando o alcance narrativo como forma de orientação, porque nela o tempo ganha o sentido
da eternidade.
O tipo exemplar emerge quando as tradições são substituídas por regras gerais e
atemporais como cerne da constituição de sentido prático, as experiências do passado
configuram e personificam regras gerais de conduta humana. Nessa narrativa, a consciência
histórica explica o presente apoiado em exemplos do passado e referências de situações vividas,
e assim, o passado não é inserido no presente, mas o desvenda, revelando o decoro de um valor
ou de um sistema de valores pela demonstração de sua generalidade. Nessa tipologia, a história
é vista como uma lição para o presente, como algo didático: historiae vitae maestrae.
Um caso específico nas HQs histórica com essa tipologia é História do Brasil em
quadrinhos: independência do Brasil, de Edson Rossatto e Jota Silvestre, lançada em 2008 e
publicada pela Editora Europa. Nessa HQ, a história do Brasil é narrada pelo professor Daguerre
a três crianças, Marcelo, Catarina e Gustavo, que fugiram da excursão escolar no Museu do
Ipiranga, em São Paulo, abordando episódios significativos dos acontecimentos históricos que
marcaram o período de 1808 a 1822, dois marcos cronológicos para compreensão histórica da
Independência do Brasil. De maneira didática e descontraída, porém claramente preocupado
em afirmar “as origens” constituintes da identidade nacional, como relacionar o período e o
84
discurso unidade nacional e de amor pela pátria a tempos coloniais, o que facilita a formar na
mente do leitor a trajetória percorrida rumo a nação. (Figura 11).
Em toda narrativa, diferente da HQ D. João Carioca. A corte portuguesa chega ao
Brasil (1808-1821), os fatos, acontecimentos e ações são transmitidos sem fazer o juízo de
valor, repetindo o discurso oficial. Em História do Brasil em quadrinhos: independência do
Brasil, deparamo-nos com a trajetória da nação até o momento ápice de sua independência, com
a aclamação de Dom Pedro em 12 de outubro de 1822. Na exaltação de Dom Pedro como herói
nacional, a narrativa gráfica reconstrói uma história dos grandes líderes, omitindo a experiência
temporal da população, e assim, coloca o príncipe regente como sendo o principal provedor da
emancipação política do Brasil.
Figura 11 - Tiradentes
Fonte: ROSSATTO, Edson; SILVESTRE, Jota. História do Brasil em quadrinhos: independência do Brasil.
São Paulo: Editora Europa, 2008.
85
Já na série de HQs Grandes Figuras em Quadrinhos, publicadas pela Editora Brasil-
América Ltda. (EBAL)51 a partir do final dos anos de 1950 no Brasil, encontramos narrativas
gráficas que tinham o objetivo claro de mostrar os grandes feitos dos heróis da história do
Brasil. Entre agosto de 1957 a janeiro de 1961, a editora EBAL publicou vinte produções,
intituladas Grandes Figuras em quadrinhos, tendo como temática a biografia romanceada de
heróis nacionais, como Tamandaré, o “Nelson Brasileiro”; D. Pedro II, o Magnânimo; Caxias,
o Pacificador; Raposo Tavares, o Maior dos Bandeirantes; Castro Alves, o Poeta dos Escravos;
Getúlio Vargas, o Renovador. Todas as HQs da série fogem de pontos polêmicos, pois a
intenção é ensinar o básico de uma maneira fácil de ser compreendida, mostrando os fatos de
maneira simples e objetiva baseados na versão oficial adotada à época.
Ao se posicionar ao lado dos discursos oficiais do governo, essas HQs históricas,
terminam por constituírem uma representação histórica que mostrava elementos da identidade
nacional que eram enaltecidos na época da publicação das HQs pelas narrativas históricas
oficiais. Em suas narrativas, essas HQs ora procuravam legitimar as origens da sociedade
(narrativa tradicional), ora apresentam as realizações, as capacidades, a importância e a
eficiência das experiências do passado (narrativa exemplar). Segundo Eliza Bachega Casadei,
as HQs da série Grandes Figuras em quadrinhos “são permeados por elementos de construção
histórica que edificam, através da evocação de uma determinada figura, a formação de uma
identidade nacional bastante conveniente à época em que elas foram publicadas” (2011, p. 3).
Figura 12 - Capas da série Grandes Figuras em quadrinhos
Fonte: http://www.guiadosquadrinhos.com/capas/grandes-figuras/gr001102.
51 “A década de 1950 é marcada, na história das HQs, como uma época em que esta mídia sofreu uma série de
críticas ao seu conteúdo, alicerçadas, por um lado, na visão de que elas eram somente um produto de massas e,
mais grave do que isso, na imagem das tirinhas como pervertoras dos costumes e da ordem e, portanto, prejudiciais
às crianças” (CASADEI, 2011). Essa série faz parte de um conjunto de tentativas de responder as críticas que as
HQs sofriam e, ao mesmo tempo, aumentar as vendas e o alcance dos quadrinhos.
86
Por sua vez, a narrativa crítica exterioriza-se quando a consciência histórica realiza uma
ruptura com os modelos culturais vigentes, numa negação de sua legitimidade, a partir de uma
narrativa de oposição a outras alternativas para orientação, e assim, desenvolvendo a percepção
de que o presente está ao passado, mas que esse não é mais imperativo. Essa narrativa apresenta
como aspiração uma transformação dos paradigmas que envolvem os padrões culturais de
compreensão histórica, até então instituídos, criando espaço para novas referências.
Para Rüsen, em termos teóricos
[...] as narrativas críticas nos lembram dos desvios que tornam problemáticas as
presentes condições da vida, elas esquematizam a continuidade apenas indiretamente,
ou seja, pela dissolução ou destruição de ideias culturalmente eficazes. No que diz
respeito à continuidade, estas histórias vivem naquilo que elas destroem. Constituem
uma identidade negando determinados padrões de autocompreensão. É a identidade
da obstinação. (2011, p. 101).
Logo, as narrativas do tipo crítico elaboram pontos de vista históricos, balizando-os,
diferenciando-os das orientações históricas sustentadas por outros. Por meio dessas histórias
críticas refutamos e impugnamos as orientações temporais predeterminadas de nossa vida,
intimamos a experiência temporal, e dessa forma, o pensamento histórico-crítico elucida o
caminho para a constituição da identidade pela força da negação.
A narrativa genética aponta para a superação da narrativa crítica, na medida em que
apenas a negação (a afirmação, também) não é o bastante para levar adiante o processo de
alteração necessária para a transformação da compreensão de si, perante o todo social. As
histórias desse tipo indicam direção para mudança temporal e mostram a continuidade como o
desenvolvimento no qual a variação de modos de vida é vital para a sua permanência, é a forma
de pensamento histórico que percebe a vida social em toda a sua complexidade e sua
temporalidade integral, visto que os diversos pontos de vista têm a faculdade de serem aceitos
por se constituir em compreensão que abrange a mudança temporal.
Nessa tipologia, a consciência histórica ao restaurar as experiências do passado,
adiciona na memória histórica são possibilidades mutáveis de desenvolvimento, isto é, a
realidade passada tem em si uma temporalidade, e os modelos culturais têm o potencial de se
transformarem e distintas perspectivas podem coexistir. Nesse aspecto da consciência histórica,
“... os valores morais se temporizam, a moral se despoja de sua natureza estática...” (RÜSEN,
2011, p. 70), e passam a ser submetidos à mudança temporal para poder precisar a validade dos
valores morais.
Em certa medida, a narrativa genética incorpora e elabora as narrativas tradicional,
exemplar e crítica, sobretudo essa última, salientando que a consequência da diversidade é a
87
igualdade mediada por toda uma interpretação mais ampla no horizonte de expectativas. No
contexto escolar, para tal intento, é imprescindível que os alunos entendam escolhas com a
intenção de enfrentar, suportar, resolver e superar as desafiadoras alterações do tempo,
contingências necessárias para que a identidade não se oblitere entre as diversas recém-
adquiridas formas de interpretação da vida. Mas, é preciso levarmos em consideração que estas
quatro formas de narrativa histórica, apesar de corresponderem a uma condição necessária, “a
qual deve ser satisfeita se a vida humana encontrar o seu caminho no curso do tempo. Portanto,
os quatro tipos não se excluem um ao outro, mas estão intimamente ligados, embora cada um
deles seja claramente distinto dos outros” (RÜSEN, 2011, p. 102).
Dialogando com esta última tipologia, a HQ Carolina (2018) de Sirlene Barbosa e João
Pinheiro, publicada pela Editora Veneta, aprovada no edital do Plano Nacional do Livro
Didático Literário (PNLD Literário 2018), correspondente ao tema Cidadania, enseja um
diálogo para o recolhimento do outro na sua identidade e alteridade. Ao tornar consciente a
experiência da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), mulher, negra e catadora de
papel, essa HQ biográfica torna possível a superação do conhecimento histórico baseado na
tradição para garantir aos alunos em formação novos espaços para pensarem o “eu” e
reconhecerem o “outro” em meio à diversidade e a diacronia.
A narrativa relata três fases da história de vida da escritora, desde a sua vida de privações
e estorvos em uma favela paulista, como catadora de lixo, até sua ascensão e reconhecimento
social, mediante a publicação de seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada em 1960.
A HQ se estrutura a partir da narração onisciente, intercalada com os diálogos entre os
personagens e a citação de trechos da sua produção literária, narrando o cotidiano na favela do
Canindé, as ilusões, decepções com a fama e, por fim, seu esquecimento.
Com amplo suporte histórico e bibliográfico, Carolina traz um retrato das trincheiras
sociais e raciais dos anos 1960, e ainda presentes no Brasil, ampliando a possibilidade de
interpretação por parte do professor e do aluno, uma vez que, sua literatura (e sua pessoa) passou
de consumo da classe média (Figura 13) ao silenciamento por ser considerada inadequada para
o contexto da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985).
Em Carolina, o racismo, a misoginia e o machismo são apresentados com excelente
criticidade, ratificando o quanto são nocivos e tóxicos esses comportamentos e o quanto são
comuns nas sociedades e legitimadas por discursos conservadores. As ilustrações, sempre
sinalizando as ações de Carolina e enfatizando as expressões de sentimentos dos personagens,
auxiliam o desenvolvimento da compreensão histórica, geração de sentido histórico. Como
explica Marcelo Fronza,
88
Esse tipo de quadrinho que personaliza narrativas históricas é caracterizado pela
humanização dos sujeitos que atuam historicamente por uma narrativa que dá sentido
de orientação temporal à história. Este sentido de orientação temporal é fundamentado
na formação histórica relacionada às representações de continuidade significativas
(interpretações históricas), criando perspectivas de ação para o futuro a partir da
narrativa histórica. (Fronza, 2019, p. 79).
Figura 13 - Produto de consumo e esquecimento
Fonte: PINHEIRO, João; BARBOSA, Sirlene. Carolina. São Paulo: Veneta, 2018.
Na esteira das discussões encetadas sobre as tipologias narrativas rüseanas, na utilização
da narrativa gráfica é imperativo que o professor evite as simplificações visuais acerca dos
89
personagens, temas e contextos históricos, reduzindo, portanto, o conhecimento histórico a
caricaturas ou arquétipos do bem e do mal, presentes na produção de HQs voltadas à didatização
de conteúdos históricos. Além disso, as HQs históricas não devem ser utilizadas como
narrativas prontas e acabadas como pretextos e meios para atingirem um fim, isto é, para a
construção da compreensão histórica.
A narrativa gráfica, portanto, não é um fim espontaneamente, sua finalidade didática é
subsidiar a compreensão sobre as experiências do passado e a construção de sentido. Ou seja,
o professor “[...] se apresenta nesse contexto como um orientador que oferece ao aluno
condições de pesquisa acerca dos gêneros presentes nas histórias em quadrinhos e questioná-lo
acerca da qualidade e direcionamento da sua história” (PESSOA, 2015, p. 63). Dessa forma, a
compreensão histórica proporcionada pelas narrativas gráficas se posiciona como importante
material de análise da aprendizagem histórica, possibilitando ao aluno instigar sua capacidade
interpretativa de acordo com as carências e orientações latentes que sinalizará seus atos na vida
prática, assim como possibilitará aos professores de história compreenderem o alcance das
narrativas presentes em diversos artefatos da cultura histórica.
Além disso, a utilização de HQs históricas nas aulas de História, independente de qual
tipologia, abre diversas oportunidades que podem representar uma ruptura e uma negação à
visão da história nos bancos escolares como algo inerte, morto e sem importância para a vida
prática, ou como espaço de disputa, legitimar narrativas tradicionais ou exemplares como
orientadores de sentido temporal, eis aqui, o principal desafio de ensinar história hoje.
90
CAPÍTULO 3 - HQS HISTÓRICAS E O ENSINO DE HISTÓRIA: EXPERIÊNCIA DE
ENSINAR E APRENDER HISTÓRIA.
O cerne deste capítulo é expor uma análise sobre HQs históricas e o ensino de História
a partir da nossa experiência docente ao longo dos anos de ensino, mas especificamente entre
2018 a 2019. No primeiro momento, apresentaremos algumas observações e possibilidades a
partir da utilização da HQ Lampião em quadrinhos, em seguida, faremos a análise dos dados
coletados no projeto “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de Marcelo D’Salete”,
como parte do plano de ensino direcionado às turmas do segundo ano do Ensino Médio, nas
quais lecionamos.
3.1 Observações e possibilidades a partir de Lampião em quadrinhos.
Qual a relação entre o ensino de História e a biografia em quadrinhos, e suas
articulações com o ensinar e aprender História? Para explorar tal questionamento, traremos os
primeiros olhares sobre a biografia em quadrinhos de Virgulino Ferreira da Silva, de Ruben
Wanderley Filho52. Primeiro, apresentaremos os motivos das escolhas por esta HQ histórica.
Depois, informações sobre a produção e a narrativa. E por fim, as observações coletadas por
meio de atividades didáticas e diálogos com os alunos durante as aulas sobre o Cangaço e o uso
deste quadrinho.
3.1.1 Ensino de História a partir da biografia em quadrinhos
A utilização de biografias e autobiografias em atividades de sala de aula, como suporte
da memória social e da produção cultural, configura em uma apropriação de personagens em
contextos históricos para estudar e compreender o passado, e através deles, os eventos, relações
sociais, conceitos e experiência temporais. Assim, ao selecionarmos uma biografia em
quadrinhos, independente da tipologia narrativa rüseana53, permitimos que o professor e os
52 O alagoano Ruben Wanderley Filho fez um profundo trabalho de pesquisa para ilustrar em HQ a vida de
Lampião, com desenhos os mais autênticos, tanto do sertão como dos personagens; é possível identificar em sua
narrativa gráfica o Rio São Francisco, a cidade Lapinha das Piranhas. Seu traço é uma amálgama do quadrinho
europeu com a xilogravura nordestina.
53 Rüsen concebe um quadro tipológico de como sua teoria da narração histórica se aplica na vida social. Este
quadro é dividido em quatro tipologias de narrativas – tradicional, exemplar, crítica e genérica – e em quatro
aspectos – como a memória é trabalhada, a continuidade e a identidade desenvolvidas e o tempo sentido. Assim,
desde do ato como a construção de monumentos, museus, nomes de ruas e edifícios até o trabalho de obras
91
alunos sejam capazes de refletir sobre o que é pertinente a escolha e atitudes dos indivíduos
diante das conjunturas pretéritas. Uma vez que, das narrativas exemplares de grandes figuras
da história ou das trajetórias “moralmente” relevantes, às narrativas genéricas da vida de
indivíduos comuns, é imprescindível que o professor fique atento as interpretações dos alunos
e a subjetividade e intersubjetividade dos autores.
Para esse tópico, escolhemos abordar Lampião em quadrinhos por três motivos: 1) pelo
interesse dos alunos pelo cangaço e as narrativas em torno desse fenômeno, o que sempre
facilitou o uso desse quadrinho; 2) em virtude de nossa experiência didática com esta HQ
histórica, adquirida para apresentar conceitos importantes para a compreensão histórica dos
eventos que caracterizam o coronelismo no Nordeste brasileiro, no período conhecido como
República Velha (1889-1930); e 3) pelo fato da vida de Lampião estar intrinsecamente
relacionada a memória popular do cangaço, personificando e sintetizando esse fenômeno, como
pode ser visto nas respostas dadas à pergunta “Quais nomes você lembra relacionado ao
cangaço?” feita em sala de aula(Gráfico 1).
Gráfico 1 - Nomes relacionados ao cangaço.
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
Esses números referem-se à ocorrência dos nomes em um universo de 200 alunos.
É importante ressaltar que essa narrativa gráfica sobre a vida de Virgulino Ferreira da
Silva (1898-1938), sempre atendeu ao objetivo, acima mencionado, e sempre indo além, porque
literárias, filmes e HQs que visam tirar valores do passado ou promover críticas ao presente, compõem o mosaico
das narrativas.
200190
100 100
5540 40
33
14
36
Lampião Maria
Bonita
Curisco Dada Jararaca Meia
Noite
Cabeleira Asa
Branca
Maçarico Outros
92
partimos do princípio de que não há aprendizagem histórica sem indivíduos em experiências
temporais verificadas, sentidas, faladas, relembradas e temporalizadas pelo aluno.
Não por acaso, a biografia sempre se dirigirá ao tema da unidade, coerência e sentido
das experiências vividas por um indivíduo (OLIVEIRA, 2017), e isso a torna inteligível, ao
mesmo tempo acompanhável. Posto que, a princípio, nenhuma história de vida é pensável fora
da estrutura biológica desenvolvida pela consciência histórica, inerente à própria experiência
do passado e da ordenação da vida no tempo, ou seja, a mediação narrativa, que Bourdieu (2000)
critica como “ilusão biográfica”54, é construto que possibilita os alunos a atribuir sentido à
temporalidade e à relação entre as contingências e as necessidades sociais.
A narrativa inteligível presente na biografia em quadrinhos, torna Lampião em
quadrinhos recurso didático profícuo porque oportuniza a compreensão de conceito de ideias
substantivas da História, relacionados ao próprio conteúdo da disciplina escolar, tais como,
Coronelismo, Cangaço, República Velha, Banditismo Social. Ao mesmo tempo, que permite
pensar no processo de construção desses conceitos a partir do relato biográfico da HQ,
estabelecendo um diálogo entre os saberes históricos e a narrativa gráfica apresentada, ou seja,
aos conceitos de Segunda Ordem.
Os conceitos de ideias substantivas da História são aqueles referentes ao conteúdo da
História, aos objetos da história como agricultor, impostos, datas e eventos. Os conceitos de
Segunda Ordem, relacionam-se à epistemologia da disciplina, como narrativa, relato,
explicação, que dá consistência à História (LEE, 2001). Isabel Barca (2011, p. 25) explica que
“os conceitos ‘de segunda ordem’, também designados conceitos estruturais ou meta-históricos,
exprimem noções ligadas à natureza do conhecimento histórico”, envolvendo conceitos como
evidência, causa, mudança, explicação, consciência histórica e narrativa, entre outros. E os
conceitos substantivos “referem-se a noções ligadas aos conteúdos históricos”.
Esse referencial conceitual, apreendido a posteriori, no ProfHistória tem colaborado
para nosso entendimento do Ensino de História com a construção da aproximação dos alunos
com o conhecimento histórico, através de um ensino que integra os conteúdos específicos da
História a compreensão desse saber por intermédio dos conceitos de continuidade, progresso,
narrativa, evidência e inferência. Dessa forma, entendendo o lugar dos conteúdos substantivos
e dos conceitos de segunda ordem para a compreensão histórica e sua importância para a
aprendizagem histórica e atribuição de sentido ao passado nas aulas de História.
54 Para Pierre Bourdieu, considerar na possibilidade de biografar é, antes, apropria-se como verdade o fato
de que a vida constitui um todo, “um conjunto coerente e orientado que pode e deve ser apreendido
como uma expressão unitária de uma intenção subjetiva e objetiva, de um projeto.” (BOURDIEU, 2000, p.184).
93
3.1.2 Da produção e narrativa de Lampião em quadrinhos
A HQ Lampião em quadrinhos é um trabalho de pesquisa de campo e documentação
histórica. Publicada em 1997 com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da
Cultura55 e patrocinada pela CIPESA Engenharia S.A.56. A obra traz a biografia de Virgulino
Ferreira, o Lampião, de maneira um tanto didática, um retrato do sertão nordestino com
realismo, apesar de não ter essa pretensão. Na sequência dos quadros, identificamos imagens
que representam o Rio São Francisco, a residência da Baronesa de Água Branca – AL, a estação
ferroviária de Mossoró e a igreja de São Vicente em Mossoró, ambos no Rio Grande do Norte.
Nas páginas de Lampião em quadrinhos, deparamos com traços claro-escuro que Ruben
Wanderley Filho escolheu para representar o sertão nordestino, um desenho que mistura a arte
sequencial clássica com a xilogravura nordestina. O autor registra em quase 150 páginas,
lugares, cidades, situações cotidianas, representações, mudanças, injustiças, desigualdades e
conflitos sociais e políticos. Trilha uma narrativa centrada em Lampião, dentro do contexto
social do sertão. Ambienta a problemática do cangaço em um espaço geográfico marcado pela
ocorrência da seca, ressaltando as determinações econômicas, políticas e sociais para a
compreensão do Nordeste e do fenômeno do cangaço nas primeiras décadas do século XX.
Preocupado com a veracidade histórica, Wanderley empreendeu uma pesquisa aparada
na historiografia, biografias e outras narrativas, como pode ser vista no final da HQ. O roteiro
foi baseado na coletânea do padre Frederico Bezerra Maciel, Lampião, seu tempo e seu reinado
(1994), o que se evidencia em vários trechos presentes no recordatório, no qual o uso é
recorrente, estabelecendo, assim, o vínculo entre a narrativa gráfica e sua pesquisa. O autor
enfatiza o referencial teórico ao enunciar que
Para realizar este trabalho, procurei esboçar um roteiro e escolhi a coletânea do Padre
Frederico Bezerra Maciel – Lampião, seu tempo e seu reinado – não por ser o melhor
de tantos bons livros escritos sobre o tema, mas, principalmente por ser o que melhor
se adaptava ao que pretendia realizar em quadrinhos. Neste sentido, procurei
condensá-los aos desenhos. Utilizei-me, também, de outros livros, como “Lampião, o
Rei do Cangaço”, do escritor americano Billy Jaynes Chandler; “Capitão Lampião”,
de Nertan Macedo; “Sila, uma Cangaceira de Lampião”, de Ilda Ribeiro e Israel
Araújo; “Como dei cabo de Lampião”, do Capitão João Bezerra, com prefácio de
Frederico Pernambucano de Melo (FILHO, 1997).
55 Uma abordagem possível é analisar a HQ Lampião em quadrinhos a partir do edital do Ministérios da Cultura.
O que não será feito neste trabalho.
56 Empresa de construção em Maceió, Alagoas. Atualmente faz parte do grupo GAFISA S.A., formam Joint-
Venture para atuar em Alagoas.
94
Em Lampião em quadrinhos, Wanderley faz uso de mapas com elemento de construção
da narrativa biográfica. Esse recurso é usado com a estratégia básica de locação geográfica e
como subsídio para imaginarmos Lampião e seu bando nos meandros da caatinga nordestina,
como também, ambientar as referências que a narrativa gráfica, a sequência e linearidade da
narrativa não são capazes de expor (Figura 14). Assim, a intencionalidade do traço de
Wanderley pode ser percebida na aproximação estética com a xilogravura nordestina, no
imaginário sobre as características da vegetação cinza e na necessidade de migrar para enfatizar
o sertão nordestino.
Figura 14 - Localização geografia e movimentação.
FONTE: FILHO, Ruben Wanderley. Lampião em Quadrinhos. Maceió/AL: s/ed., 1997. p. 93.
Considerando os procedimentos de leitura propostos por Vilela (2018), apresentados no
primeiro capítulo, os elementos extratextuais presentes em Lampião em quadrinhos, revela
aspectos que demonstram o contexto em que a história em quadrinhos foi produzida, mas,
também, indica as questões, as informações, os conceitos e problemas a respeito do tema e da
narrativa gráfica. A compreensão da elaboração e a subjetividade do autor contribuirá para
análise a respeito da representação do cangaço e do aspecto histórico, sem prejuízo à
aprendizagem histórica.
95
Com base em uma ampla pesquisa documental e de campo, a maneira pela qual o autor
apresentou suas personagens e as desenvolveu na narrativa gráfica contribui para revelar a
preocupação cronológica. O enredo segue a cronologia dos fatos, prólogo com o nascimento e
epílogo com a morte de Lampião e seu bando, apresentando recorte temporal. Entre esses dois
fatos, há uma série de encontros e desencontros apresentados na história de Lampião como a
formação e atuação do cangaço, e a tensão entre a liberdade individual e os condicionamentos
sociais, fazendo com que o leitor perceba o “tempo implícito, espaço, movimento, som e
emoções” (EISNER, 2013, p. 53).
Em Lampião em quadrinhos, Wanderley percorreu um panorama muito vasto do
contexto cultural do sertão nordestino e se projetou para compreensão da problemática social,
conduzindo a narrativa transitando entre coronelismo, política e religião; sertão, propriedade e
miséria; cangaço, violência e banditismo envolvendo as relações do homem com seu meio e
seu tempo. Entretanto, essas relações são construídas a partir de interpretações românticas e
deterministas acerca do tema, como também, da estética fatalista presente na bibliografia
utilizada e dos discursos historiográficos que o autor teve acesso.
3.1.3 Das observações a partir de Lampião em quadrinhos
No âmbito do ensino de História, as observações expostas até agora, dialogam com uso
das HQs históricas como fonte histórica. As estruturas em torno da produção de Lampião em
quadrinhos indicam como as representações e significados sobre o cangaço, especificamente,
e de modo geral, sobre as primeiras décadas do século XX no Nordeste brasileiro foram
construídas pelo autor no final dos anos de 1990, ou seja, em uma aula com Lampião em
quadrinhos, é possível a compreensão do contexto histórico da produção, circulação, interesses
e vinculações.
A apreciação do documento histórico e, de natureza igual, das possibilidades didáticas
são imprescindíveis para o estudo e uso de HQs históricas nas perspectivas da Didática da
História. Pois, se, em um primeiro momento, os discentes são impelidos a compreender todo o
entorno de produção da História em Quadrinhos, em outro, eles terminam por produzir novos
entendimentos a respeito da realidade que, a princípio, eram verdades e conceitos absolutos.
Assim, o ensino de História aponta tanto para uma atividade própria dos historiadores – a crítica
documental e as circunstâncias da produção, respeitando o nível de ensino, quanto para uma
aprendizagem histórica multiperspectivada e baseada na ideia da interpretação histórica
(SCHMIDT, p. 38).
96
Nesse aspecto, a sala de aula rompe com o estigma de espaço de transposição didática57,
estabelecendo uma relação profícua entre professores, alunos e documento histórico na
constituição do saber histórico. Por sua vez, essa relação posiciona o professor de História como
o articulador da aprendizagem histórica na Educação Básica, quando possibilita a interpretação
do passado para compreensão da construção de sentido e usos deste, na narrativa gráfica, como
também, em outras narrativas. O tratamento de Lampião em quadrinhos como documento
histórico tem sido relevante para problematizar e humanizar, não apenas a HQ, mais outros
artefatos da cultura histórica, percebendo as intencionalidades e escolhas de Wanderley.
Proporcionar esse primeiro contato com Lampião em quadrinho tem sido uma atividade
pautada no processo do aprender a pensar as condições históricas da narrativa gráfica, no qual
os alunos são impelidos a indagar ou a conhecer as predileções e os caminhos do autor. Com o
auxílio de projetores, cópias da bibliografia e o nosso exemplar, algumas perguntas são feitas.
Entre elas: Quais desses livros vocês conhecem?, Quais livros sobre o cangaço você já leu? e
outras que, eventualmente, surgem. Com estas perguntas, chamamos a atenção para importância
das fontes históricas e abrimos a possibilidade para a pergunta Qual a fonte de seu saber sobre
o cangaço?58.
As respostas produzidas pelos alunos do Ensino Médio apontaram diferentes fontes de
acesso sobre o cangaço. Segue a lista das mais recorrentes nas observações.
57 De acordo Yves Chevallard, “um conteúdo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar, sofre, a partir
de então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de
ensino. O ‘trabalho’ que faz de um objeto de saber a ensinar, um objeto de ensino, é chamado de transposição
didática” (CHEVALLARD, 1991, p. 39, apud LEITE, 2004, p. 45). Assim, o termo Transposição Didática, usado
neste trabalho, relaciona-se a diferenciação entre saber acadêmico e saber escolar, que são de natureza e funções
distintas, nem sempre evidentes nas análises sobre a dimensão cognitiva do processo de ensino e aprendizagem. É
entendida, portanto, como um processo no qual um conteúdo do saber que foi designado como saber a ensinar
sofre, doravante, um conjunto de transformações adaptativas que vão torna-lo apto para ocupar um lugar entre os
objetos de ensino.
58 Dentre as diversas perguntas e atividades que já realizamos nesses nove anos como professor efetivo da rede
estadual de ensino do Ceará, optamos por algumas por dois motivos: 1. Fazem parte de um banco de dados
formados a partir de atividades nos últimos dois anos; e 2. A importância para esta dissertação. Essas respostas
foram coletadas tanto na participação oral dos alunos quanto nas atividades escritas.
97
Gráfico 2 - Fontes mencionadas em porcentagem.
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
O gráfico acima mostra que entre as principais fontes de conhecimento sobre o cangaço
estão três artefatos da cultura histórica: a novela, o cinema e o cordel59. No total, 52,84% do
alunado tem contato com as narrativas sobre o cangaço a partir das produções audiovisuais,
como a telenovela Cordel Encantado60 e a minissérie Lampião e Maria Bonita61. Os professores
foram citados, 22,73%, aparecendo em segundo lugar. Idosos e familiares somam 11,36%, o
mesmo valor dos alunos que não lembram. Como já aludido nos primeiros capítulos, todos
esses acessos a temas históricos fazem parte da construção do conhecimento e implicam em um
reposicionamento do professor face ao ensino.
As três próximas questões selecionadas para este tópico tentaram promover o
conhecimento e o reconhecimento das experiências de Lampião, a partir de algumas páginas da
HQ, com o propósito de abordar as relações entre o indivíduo, o meio e o tempo. Serão
apresentados alguns elementos narrativos desse artefato cultural para que possam ser
relacionadas as respostas do alunado, a partir das inferências dos mesmos.
59 Tenho pensando sobre a importância do Cordel na construção do imaginário sobre cangaço nos dias de hoje.
Lembro que o primeiro contato que tivemos com essa temática provinha dessa literatura, como também, das
narrativas de nossos parentes e vizinhos.
60 Novela produzida pela Rede Globo no ano de 2011 e exibida no horário das 18 horas, em 143 capítulos, e
reexibida pelo Vale a Pena Ver de Novo de 14 de janeiro a 3 de maio de 2019, em 77 capítulos.
61 Minissérie brasileira produzida pela Rede Globo, cuja exibição ocorreu entre 26 de abril e 5 de maio de 1982,
em 8 capítulos. Foi reapresentada em 22 de janeiro de 2015, no festival Luz, Câmera, 50 Anos, em uma edição
especial, como telefilme, compactada em duas horas.
38,64
22,73
14,20
5,68 5,681,70
11,36
Novela Professores Filme Idosos Familiares Cordel Não lembram
98
Figura 15 - Infância e pega de boi
FONTE: FILHO, Ruben Wanderley. Lampião em Quadrinhos. Maceió/AL: s/ed., 1997.
Nessa sequência narrativa, a ação é desenvolvida em três vinhetas, na transição
momento-a-momento (MCCLOUD, 2005, p.70). Na primeira, apresenta a situação inicial da
ação da pega de boi e a presença do narrador no recordatório, indicando se tratar da infância de
Lampião. A segunda vinheta repete a anterior, mas expressa, por intermédio da sarjeta, a
continuação da ação. Na última vinheta, o desfecho da ação é valorizado pelo tamanho do
quadro, alterando o ritmo da leitura e pelo balão de fala com indicação do “Valeu Boi!” a
Lampião.
A partir desta sequência narrativa, propomos a seguinte pergunta:
99
1. Em sua opinião, é possível que Lampião tenha tido uma infância como a representada
no quadrinho? Por quê?
Gráfico 3 - Respostas em porcentagem.
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
Em sua maioria, os alunos reconheceram que Lampião poderia ter tido uma infância
“igual a de qualquer outro menino de seu tempo e de sua região”. Vinte e seis porcento
indicaram que não era possível saber e seis porcento, não responderam. No entanto, as situações
do passado foram identificadas por todos que responderam como ações que aconteceram no
sertão nordestino. Pode-se, assim, considerar que é um ponto importante para o entendimento
do passado vivido e de uma temporalidade pelas ações humanas facilmente vista como
realizável.
Para apresentar as justificativas dos alunos à questão acima produzimos duas tabelas de
síntese de dados. A primeira tabela se refere às justificativas das afirmativas e a segunda é
focada nas de negação.
Tabela 1 - Justificativas das afirmativas
FONTE: Tabela construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
68%
26%
6%
Sim Não Não responderam
100
Tabela 2 - Justificativas das negativas
FONTE: Tabela construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
A tabela l explicita os argumentos utilizados para justificar suas respostas sobre a
eventualidade de Lampião ter tido uma infância como a representada no quadrinho. Já na tabela
2, encontramos as justificativas das negativas para a pergunta 1. Nota-se que nas duas tabelas a
condição “menino” aparece com fundamento necessário para a defesa das suas explicações,
enquanto “brincar” aparece como fundamento suficiente para sustentar a opinião. E em quase
quinze porcento, o ceticismo diante da possibilidade de se conhecer a infância de Lampião.
Pode-se ainda inferir pela síntese de dados a força da manifestação cultural da pega de boi62,
pois, somando as ocorrências, essa atividade soma 34,97% na primeira e 41,67%, na segunda.
Seguramente, estas respostas estão ligadas à identificação desse alunado com o espaço
e as vivências onde as práticas da pega de boi se manifestam, na medida em que percebem que
compartilham, no presente, elementos culturais com o passado, visto que são alunos do interior
nordestino, onde esta atividade é bastante praticada e valorizada. Todavia, se por um lado, as
respostas são correspondentes a elementos culturais do aluno, por outro, a linguagem dos
quadrinhos e sua função narrativa atuaram como guia de leitura gerando um recorte e atraindo
a atenção dos alunos, primeiramente, para a pega de boi. Isso acontece porque “o narrador
seleciona um evento de interesse que pode ser contado sozinho” fazendo uso da “experiência
de vida ou da imaginação do leitor para dar impacto à história” (EISNER, 2013, p. 40).
Ainda a respeito das justificativas, percebemos que as mesmas apontam para a relação
entre as situações do passado e o contexto do presente. Tanto nas ocorrências que se opõe,
“caçar é divertimento” e “caçar não é brincadeira”, “eram brincadeiras daquele tempo” e
62 A expressão “pega de boi” corresponde às atividades relativas, neste caso, à captura do gado na caatinga, quando
este se perdia na mata, por uma dupla de vaqueiros. Dessa prática foi derivada outra, a “pega de boi no mato”.
Também chamada, em algumas regiões do Nordeste, de vaquejada, ela corresponde a uma disputa onde diversos
vaqueiros partem em busca de reses soltas no mato com a finalidade de serem premiados, visando a festividade e
a comemoração.
101
“pega de boi não é brincadeira”, quanto em “porque ele não precisava ir para escola”, são
indícios da comparação entre o passado e os espaços de experiência dos alunos, e da relação
passado-presente imprescindível para a aprendizagem histórica. No nosso entendimento, essa
verificação permite ampliar a capacidade de intervenção do professor por evidenciar
significados e a compreensão da realidade de seu alunado.
Nas justificativas que sintetizamos em “pega de boi é para homem valente”, inferimos
tratarem de representações do Nordeste, que mobilizam a formação da identidade do homem
do sertão, reforçando referências sociais que foram estabelecidas na construção cultural da
região. Como aponta Durval Albuquerque Júnior (2011), essa construção identitária está
associada a relação cangaço-nordeste, uma vez que o cangaço vai imprimir o Nordeste e o
nordestino com o estereótipo da ‘macheza’, da violência, da valentia, sendo motivo de orgulho
e vaidade para diversos setores da sociedade.
Nessa síntese de dados feita a partir de narrativas presentes nas justificativas,
percebemos que os alunos estabeleceram, a partir das ações possíveis de pessoas concretas, um
diálogo temporal no qual o passado foi revisto, reafirmado e comparado ao presente. Essa
capacidade, no processo de compreensão histórica, é parte da competência narrativa de
constituição de sentido à experiência do tempo, que se adiciona à faculdade de sintetizar as
diferenças temporais entre o passado e o presente. Dessa forma, a experiência histórica dos
alunos, visíveis nas justificativas, mostram que eles operaram “um sentido para a alteridade
temporal e para os processos temporais, que o conduz do outro experimentado ao eu vivenciado,
tomando esse eu muito mais consciente e conferindo-lhe uma dinâmica temporal interna muito
mais elaborada” (RÜSEN, 2007, p. 113). É nesse contexto que a biografia em quadrinhos
adquire relevância para o ensino de História.
A partir desta constatação a respeito dessa HQs histórica, elaboramos outras duas
perguntas:
2. Quais acontecimentos na vida de Lampião você acha que foram mais importantes? Por
quê?
3. Quais foram os principais motivos para Lampião entrar para o cangaço?
Para apresentar as respostas e justificativas dos alunos às questões acima produzimos
dois gráficos de síntese de dados. O primeiro (Gráfico 4) se refere a quantidade de
acontecimentos mencionados e o segundo (Gráfico 5), a síntese dos motivos que levaram
Lampião para o cangaço. É importante considerar que não foram estabelecidos nenhum limite
102
numérico para as escolhas dos alunos, tendo respostas como mais de três acontecimentos, assim
como motivos.
Gráfico 4 - Acontecimentos mencionados
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
Esses números referem-se à ocorrência dos nomes em um universo de 200 alunos.
No conjunto das respostas, inferimos pela síntese dos dados que os acontecimentos
relacionados à “entrada de Lampião no cangaço” e “a sua morte” foram apresentados como
mais importantes. Referente a entrada no cangaço “a morte do pai (morte da mãe)63” foram
apontadas por 97,5% dos alunos, seguindo “as injustiças sociais e políticas” (89%), “a seca”
(81%), “a disputa por terras” (79%), “a briga com Zé Saturnino” (39,5%).
No tocante à morte, “a traição” (91%) e “a perseguição dos poderosos” (85%).
A religiosidade (encontro com Padre Cícero) e afetividade (encontro com Maria
Bonita) foram mencionadas, respectivamente, em 40% e 28% das respostas. O cangaço (88%)
aparece tanto com motivo para entrada quanto para a morte, como podemos observar nesses
três exemplos: A) A morte do pai e o cangaço. B) Porque lampião só virou cangaceiro para
vingar a morte do pai. A morte do pai e o cangaço. Porque foi no cangaço que Lampião
conseguiu vingar a morte dos pais. C) A morte do pai e da mãe e o cangaço. Lampião viu no
cangaço uma forma de se vingar daqueles que mataram os seus pais64.
63 Optamos em condensar a ocorrência “morte da mãe” por esta não aparecer sozinha nas respostas. A morte da
mãe apareceu sempre com a do pai (a morte do pai e da mãe) ou como parte do casal (a morte dos pais).
64 Suprimirmos os nomes porque na construção do banco de dados, as informações foram agregadas em planilhas.
195182 178 176 170 162 158
80 79
28
A morte do
pai (morte
da mãe 132)
A traição As injustiças
sociais e
políticas
O cangaço A
perseguição
dos
poderosos
A seca A disputa
por terra
O encontro
com Padre
Cícero
A briga com
Zé Saturnino
O encontro
com Maria
Bonita
103
Gráfico 5 - Motivos para Lampião entrar no cangaço
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base no banco de dados pessoal entre 2018 a 2019.
Esses números referem-se à ocorrência dos nomes em um universo de 200 alunos.
A maioria absoluta dos alunos respondeu a “vingança” com o principal motivo para a
entrada de Lampião no cangaço. A “justiça” apareceu nas respostas de 92,5% dos alunos,
“necessidade” e “poder” estão presentes em mais de oitenta porcento das respostas e em pouco
mais de cinquenta porcento das respostas, “crueldade/maldade”. Notamos que as duas
primeiras estão relacionadas aos acontecimentos que os alunos mencionaram como fatos
importantes na vida de Lampião: “a morte do pai (morte da mãe)” e “as injustiças sociais e
políticas”.
Por sua vez, essas respostas precisam ser entendidas à luz da influência narrativa dessa
HQ, como fizemos na primeira pergunta. Lampião em quadrinhos se apropria das narrativas de
um Nordeste rígido e regido pelas relações sociais e pelo determinismo geográfico, enraizados
na nossa cultura para construir sua diegese. Nela, o enredo é condicionado por uma estética
muito característica do Sertão nordestino e do cangaço, como a indumentária, as lutas entre
coronéis e cangaceiros, a perseguição das volantes, a religiosidade, a violência, o ódio, a
geografia - paisagem árida, vegetação rasteira, cactos, estiagem, imprimidas na escolha da
paleta de cores.
Para McCloud, as imagens nos quadrinhos, por serem estáticas, colocam em interação
diversos elementos no quadro, captam e provocam a atenção do leitor, exercendo uma função
persuasiva e criando efeitos desejados pela narrativa porque “o olhar do leitor é guiado de
quadrinho em quadrinho e é como sua mente é persuadida a dar importância ao que vê” (2008,
p. 3). Essa persuasão é potencializada pelo caráter narrativo da imagem por fazer uso de uma
série de estereótipos65 facilmente reconhecidos pela conduta humana, visto que “a arte dos
65 “No dicionário, “estereótipo” é definido como uma ideia ou um personagem que é padronizado numa forma
convencional, sem individualidade. Como um adjetivo, “estereotipado” se aplica àquilo que é vulgarizado. O
estereótipo tem uma reputação ruim não apenas porque implica banalidade, mas também por causa do seu uso
como uma arma de propaganda ou racismo. Quando simplifica e categoriza uma generalização imprecisa, ele pode
10092,5 87,5 85
50,5
Vingança Justiça Necessidade Poder Crueldade/Maldade
104
quadrinhos lida com reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana. Seus desenhos
são o reflexo no espelho, e dependem de experiências armazenadas na memória do leitor para
que ele consiga visualizar ou processar rapidamente uma ideia” (EISNER, 2013, p 21).
Figura 16 - Motivação: Vingar a morte do pai.
Fonte: FILHO, Ruben Wanderley. Lampião em Quadrinhos. Maceió/AL: s/ed., 1997.
Na figura 16, a sequência é criada mostrando a ação de um sujeito real do passado
estabelecendo um vínculo com o sujeito real do presente, tecendo uma rede de identificação
antrópica e cultural, a partir da dor de perda de um ente querido. Percebemos, ainda, um vínculo
ser prejudicial ou, no mínimo, ofensivo. A própria palavra vem do método usado para moldar e duplicar as placas
na impressão tipográfica. Apesar dessas definições, o estereótipo é bastante comum nos quadrinhos. Ele é uma
necessidade maldita — uma ferramenta de comunicação da qual a maioria dos cartuns não consegue fugir. Dada
a função narrativa do meio, isso não é de se surpreender.” (EISNER, 2013, p. 21)
105
entre aprendizagem histórica e a vida prática dos alunos na formação do pensamento histórico,
na medida em que eles notam semelhanças e diferenças entre as experiências do passado e as
do presente nas atitudes reais de seres humanos. É nesse contexto que a biografia em
quadrinhos adquire relevância para o ensino de História por mobilizar informações e valores
culturais a partir das experiências, contribuindo para a compreensão histórica.
Doravante, as diversas problemáticas foram estudadas e analisadas em sala de aula,
especialmente, os conceitos substantivos da História referentes a este contexto histórico, mas
sempre mobilizados a partir das inferências e explicação histórica dadas pelos alunos, ou seja,
instigados pelos conceitos de segunda ordem66. Dessa forma, a atividade da consciência
histórica em dar sentido ao passado mediante a experiência temporal pode ser considerada como
aprendizado histórico por acarretar na “ampliação da experiência do passado humano, aumento
da competência para a interpretação histórica dessa experiência e reforço da capacidade de
inserir e utilizar interpretações históricas no quadro de orientação da vida prática” (RÜSEN,
2007, p. 110).
3.2 Projeto “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de Marcelo D’Salete”
Qual a relação entre aprendizagem histórica e a ficção-histórica em quadrinhos, e suas
articulações com o ensinar e aprender História? Para explorar tal questionamento, traremos os
resultados obtidos a partir da aula-oficina “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de
Marcelo D’Salete”. Primeiro, esboçaremos algumas considerações sobre a ficção-histórica em
quadrinhos e o ensino de História. Em seguida, apresentaremos informações sobre a produção
e a narrativa e resistência negra em Cumbe. E, por fim, as análises dos dados coletados a partir
de um formulário Google.
3.2.1 Ensino de História a partir da ficção-histórica em quadrinhos
A utilização de ficção-histórica em quadrinhos, representa o entendimento de que “a
ficção se encontra também no campo da ciência” (CERTEAU, 2011, p. 46)67. Se, pela
66 Como já mencionado anteriormente, os conceitos de segunda ordem, em história, são identificados como ideias
da natureza da história - como explicação, objetividade, subjetividade, evidência narrativa - e que a partir delas,
os objetos da história- os conceitos substantivos da história - podem ser entendidos claramente, uma vez que os
conceitos de segunda ordem estão contidos na interpretação de conceitos substantivos tais como ditadura,
revolução, democracia, Idade Média ou Renascimento.
67 A relação entre ficção e realidade, de acordo com Certeau, reside “no plano tanto dos procedimentos de análise
(exame e comparação dos documentos) quanto das interpretações (produtos da operação), o discurso técnico capaz
106
linguagem, os quadrinhos correspondem à narrativa ficcional por excelência da diegese, a
narrativa dos quadrinhos não se limita à ficcionalidade, por entendermos, que toda ficção tem
respaldo nas carências do real e nas ciências que ampliam os horizontes de expectativas. Ou
seja, como os quadrinhos não se limitam à ficção, tampouco a ficção é desprovida de
temporalidade.
As HQs históricas em que o enredo cria uma diegese inserida na realidade histórica
permitem perceber que tanto a historiografia quanto a aula de história fazem parte, com suas
diferenças, do gênero narrativo. Algumas dessas HQs são tributárias da produção
historiográfica e no ensino de História tendem a codificar e dar coerência aos fatos, uma vez
que “no caso da história (como na ficção), as narrativas são, principalmente, sobre a realidade
humana, ou seja, sobre as ações e sofrimentos, projetos e planos, sentimentos e experiências
das pessoas” (CARR, 2016, 249).
Essa aproximação por intermédio da narrativa parte do pressuposto “do interesse que os
homens têm - de modo a poder viver - de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorear-se do
passado, pelo conhecimento, no presente”, necessidade essa que está no cerne da “consciência
histórica” (RÜSEN, 2001, p. 30). Assim, segundo Rüsen, as diversas formas de pensamento
histórico, manifestada através de narrativas, procuram atender a essa carência humana de
orientação temporal e de dar sentido ao passado. Todavia, é importante ressaltar que articuladas
na matriz disciplinar da ciência da história, a historiografia adquire “a especificidade que
permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico
comum” (RÜSEN, 2001, p. 35). Isto é, o que o historiador de ofício realiza tem a sua unicidade
em relação a outras narrativas sobre o passado, como as HQs histórica, sem, contudo,
subestimar o potencial narrativo presente nos artefatos da cultura histórica.
Na ficção-histórica em quadrinhos, os roteiristas, quando ambientam sua narrativa
gráfica em algo ocorrido no passado, acessam essa temporalidade por via indireta, por meio de
outros artefatos da cultura histórica. Dessa forma, a ficção-histórica em quadrinhos também
participa da demanda de produção do conhecimento histórico, uma vez que a dimensão estética,
ao dar a liberdade criativa para expressão do passado, possibilita a articulação entre ficção e
realidade histórica na estrutura do enredo, tornando-se capaz de proporcionar a aprendizagem
histórica.
de determinar os erros característicos da ficção, autoriza-se por isso mesmo, a falar em nome do real” (2011, p.
46).
107
Porém, a diferença entre a ficção-histórica em quadrinhos e as outras narrativas reside
no fato de que as primeiras se expressam por meio de “imagens pictóricas e outras justapostas
em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no
espectador” (MCCLOUD, 2005, p. 9), mediando nossa interpretação das experiências do
passado. Desse ponto de vista, os quadrinhos, possuidores de uma linguagem própria,
mobilizam as dimensões da consciência histórica, transmitem significados e elaboram sentidos
para orientação temporal, dado que, através da sua diegese, nos versam a respeito dos desejos,
dos sonhos e das expectativas possíveis e impossíveis.
Para esse tópico, abordaremos Cumbe, de Marcelo D’Salete por três motivos: 1) por
permitir abordar a temática da resistência negra contra a escravidão, em sala de aula,
mobilizando conhecimento sobre o passado por meio da aprendizagem histórica com HQs
históricas; 2) por possibilitar aos alunos inferir as experiências dos próprios escravos,
entendendo o sentido que eles mesmos conferiam aos seus labores e lutas cotidianas; e 3) em
razão da Escola ter adquirido 50 exemplares da HQ Cumbe através do PNLD Literário 201868.
3.2.2 Da produção e narrativa de Cumbe
Cumbe (2018), publicada pela primeira vez em 2014 pela editora Veneta, é uma ficção-
histórica em quadrinhos roteirizada e ilustrada por Marcelo D’Salete, vencedora do Eisner
Awards69 em 2018, o mais importante prêmio de quadrinhos do mundo. Em 2015, foi indicada
ao HQMIX 2015 (categoria desenhista, roteirista e edição nacional); selecionada pelo Plano
Ler+ para leitura em escolas de Portugal; e indicada ao prêmio Rudolph Dirks Award 2017
(categoria roteiro) na Alemanha. E junto com Angola Janga, outra HQ do autor, foram
aprovadas no edital do Plano Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário 2018)70.
Esta HQ histórica é resultado de um processo de pesquisa de 11 anos. Seus estudos
englobaram a escravidão no Brasil colonial e diversas maneiras de existência e resistência negra
no período, bem como, a cultura dos povos bantos, que serviram para construção das
68 A escolha por esta linguagem foi feita através de consultas à professores e professoras das áreas de Linguagem
e Ciências Humanas, com propósito de se realizar atividades interdisciplinares.
69 The Will Eisner Comic Industry Awards, abreviado para Eisner Awards, é um prêmio que laureia os envolvidos
nas produções das Histórias em quadrinhos. A cerimônia foi estabelecida em 1988 e desde então é realizada
durante a convenção “Comic-Com”, que ocorre anualmente em San Diego, Califórnia. Entre os prêmios estão os
de Melhor História Curta, Melhor Edição Única, Melhor Graphic Novel em Álbum Inédito, Melhor Roteirista,
Melhor Roteirista/Artista, Melhor Letrista entre outros. À grosso modo, equivale ao Oscar para o cinema.
70 <https://s3.us-east-2.amazonaws.com/plataforma-pnld/guias/Guia_PNLD_2018-literario_ensino_medio.pdf>
p. 62.
108
personagens. Nesse ínterim, o professor e quadrinista examinou e estudou vários documentos,
em textos, imagens e mapas, existentes por exemplo, no Museu Afro Brasil, em São Paulo,
Memorial de Palmares, em Alagoas, obras de artistas holandeses atuantes em Recife no século
XVII - além de estudos acadêmicos.
Nas 192 páginas de Cumbe, D’Salete narra por meio de imagens sequenciais em uma
estrutura narrativa a luta de negros e negras na América portuguesa contra a escravidão no
período colonial da história do Brasil. Com foco na análise da sociedade escravista brasileira,
evidencia a percepção e as labutas diárias que os povos escravizados passavam em uma
sociedade que frequentemente os oprimiam. O livro traz em quatro histórias - Calunga,
Sumidouro, Cumbe e Malungo – protagonizadas por escravizados, mostrando a resistência
negra contra a violência cotidiana física e simbólica. Cumbe, vocabulário banto que dá nome a
HQ, é uma palavra polissêmica. “É um termo de origem quimbundo, significa luz, sol e força”
(D’SALETE, 2018), maneira de compreender a vida e o mundo.
Cada uma dessas histórias evidencia dimensões e circunstâncias diferentes da vida das
personagens, percorrendo relações assimétricas: um casal de apaixonados, que se dividem entre
eles pelo sonho da fuga e a preferência de ficar no conhecido; a atroz condição dos recém-
nascidos na escravatura e o cuidado materno; a traição entre as fileiras dos escravos revoltosos
que tentam fugir e construir o mocambo; a violência necessária para essa libertação e o medo
da repressão.
Em Cumbe, o foco narrativo é centrado nos escravizados. Existem poucos textos e
poucos recordatórios, e estes sempre dizem respeito a uma das personagens. Mesmo quando o
ponto de vista narrativo converge para fazendeiros, donos de engenhos e capitão do mato,
ressalta o papel, os atos e a vida dos escravizados. Ou seja, o foco narrativo é a compreensão
da vida dessas pessoas, em seu cotidiano - experiências e expectativas, em sua condição humana
e cultural, as angústias, os amores, ódio e violência.
Marcelo D’Salete faz uso de representações e situações vividas dentro do contexto
social da colonização portuguesa na América e das relações escravistas e a resistência negra,
conforme podemos observar no quadrinho a seguir (Figura 17). Nessa sequência, observamos
a representação de um diálogo entre Soares, Ofraso e Ganzo - respectivamente, requadro 1, 2 e
3 -, os quais conversam sobre o começo de uma rebelião que está por acontecer, a existência de
traidores, números de homens para tal motim e a ajuda do mocambo. E assim, essa narrativa
gráfica possibilita a análise histórica nas aulas de História a partir das experiências do tempo.
109
Figura 17 - Preparação para uma rebelião.
Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018. p. 90.
Dessa forma, consideramos possibilidades das HQs conterem fragmentos e indícios de
situações, eventos e episódios vividos no passado e escritas a partir de um prisma particular,
como encontramos na figura 18. Essa escrita, portanto, não releva todo o passado, mas veicula
narrativas sobre o passado, uma vez que, emanam do ponto de vista de quem o produziu. Sob
essa perspectiva o documento deixa de ser dado como revelação e passa a ser compreendido
como evidência e testemunho do passado e se torna inteligível a partir da narrativa gráfica, e
com ela, dá sentido ao passado.
As experiências e expectativas dos escravizados presentes em Cumbe ampliam as
possibilidades de leitura sobre o passado, sempre enfatizando a esperança e a resistência contra
todo tipo de violência. Na primeira história, Calunga, um casal de apaixonados Nana e Valu,
divide-se entre o sonho da fuga e a preferência de ficar no conhecido, demonstrando as
110
inquietudes e medos intrínsecos de uma sociedade marcada pela agressividade e crueldade
(Figura 18).
Figura 18 - Nana e Valu. Ficar e fugir.
Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018.
Nessa sequência gráfica, inferimos que a relação entre senhores e escravos era
fundamentada na dominação pessoal e estava determinada principalmente pela coação direta e
indireta. Podemos observar, ainda, aspectos essenciais para manutenção da escravidão como os
castigos físicos e a exploração sofrida por Valu, e o medo expresso por Nana. Além disso,
depreendemos que o trabalho escravo não esteve ligado apenas à dinâmica do engenho, mas
também às diversas atividades na casa grande.
É oportuno salientar, que as situações em que se vivenciam no presente e, nesse, o lugar
ocupado por pessoas ou grupos, podem ser propícios a algumas experiências em detrimento de
111
outras, ora por limitações físicas e sociais, ora por limitações conjunturais e históricas. Assim,
a fuga para Valu representa a descontinuidade do passado no presente e as projeções para o
futuro, ainda que se apresente rompimentos com o passado. Enquanto para Nana, continuidade.
Mas mesmo sob o cativeiro, os escravos criaram condições sociais específicas: relações
de amizade, solidariedade e amor. Não eram seres passivos cuja a obediência podia ser
garantida através somente da violência física. Os dramas em Cumbe apresentam personagens
em contextos perpassados ou mergulhados em situações verossímeis com a realidade vivida à
época, pois a invenção de diálogos e personagens são importantes auxiliares na construção do
significado e da experiência histórica da escravidão.
Nas quatro histórias de Cumbe, a presença de poucos textos, característica importante e
marcante dessa HQ, é um exemplo de construção, opção proposital do autor, de uma narrativa
que enfatiza um ambiente opressivo e silencioso. Entretanto, permeado por “espaços de
experiências” e “horizontes de expectativas” que encorajavam a resistência, encontrando
espaços para encerrar todas as histórias de forma poética e até esperançosa, situando as
personagens entre carências e a todo momento estabelecendo um diálogo entre passado, futuro
e presente com a experiência individual e coletiva.
Essa percepção sobre a temporalidade dos sujeitos históricos em função de seu presente
estabelece a relação entre História e tempo. Esse vínculo tem como suporte a experiência dos
homens no mundo, sua vida em sociedade, seu cotidiano. Assim, o tempo histórico é uma
realidade múltipla, diversificada e versátil como a diversidade da experiência humana e das
sociedades. Nesse sentido, Reinhart Koselleck (2014) evidencia que o tempo histórico está
vinculado à ação de homens concretos que atuam, sofrem e compreendem sua existência
humana do mundo.
Em Koselleck, percebe-se por “espaço de experiência” a ressignificação do passado, e
esse tornando-se atual nas perspectivas de que nas relações do presente coexistem e concorrem
ao mesmo tempo diversos tempos pregressos na memória e apensos no cotidiano. José
D’Assunção Barros, ressalta que “experiência pertence ao passado que se concretiza no
presente, de múltiplas maneiras: através da memória, dos vestígios, das permanências e, para
os historiadores, das fontes históricas” (2010, p. 67).
Por “horizonte de expectativa”, entende-se o presente orientado para o futuro. São
projetos, esperas, angústias e dúvidas canalizados e direcionados para o póstero, para o amanhã.
São em essência, experiências que não podem ser presenciadas, vividas. Discorrendo sobre a
expectativa, Barros (2010, 68) evidencia que ela corresponde a todo um conjunto de sensações
112
e antecipações que se referem ao que ainda virá, e que tudo o que direciona para o futuro, faz
parte do horizonte de expectativas.
Sobre essa categoria, Koselleck (2006, 310) nos diz que, assim como a experiência, a
expectativa é “ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal” nos levando a observar as
expectativas individuais e alheias como comportamentos marcados pelas condições do
presente. Nesse sentido, o historiador nos fala que
a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o
não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e
vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a
curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem (KOSELLECK, 2006, 10).
A categoria “horizonte de expectativa” é, portanto, a possibilidade de que algo se realize
ou não. Ainda que os prognósticos sejam possíveis, é contingencial, um espaço não
experimentado. Assim, a apreensão do passado e do futuro, percebida na relação entre “espaço
de experiência” e “horizonte de expectativa”, altera a própria passagem do tempo. Nessa
perspectiva, o tempo histórico é o efeito dos liames entre essas categorias, e pode ser pensado
mediante a relação histórica entre passado e futuro.
Em Cumbe, Marcelo D’Salete procurou criar uma narrativa sobre a resistência negra
contra a escravidão a partir de experiências, consciência temporal do passado e das expectativas
da população negra. Orientado para o futuro, ele confere uma narrativa gráfica aos
acontecimentos referentes aos fatos registrados e presentes em documentos e fontes históricas
sobre as diversas lutas pela liberdade. Assim, as HQs históricas são entendidas como ficção-
histórica em quadrinhos capaz amenizar a impossibilidade de “conhecer realmente o passado”,
construindo um passado em imagens e textos, ao mesmo tempo que cria uma relação e
acrescenta algo à narrativa histórica da qual deriva e ao qual, inevitavelmente se refere. Dessa
maneira, mais do que tentar adaptar o discurso historiográfico, Cumbe ilustra significados que
dizem respeito à importância das experiências temporais através da narrativa de fatos históricos.
Nesse sentido, em Cumbe os elementos dessas culturas africanas tais como os costumes,
os dialetos, os grafismos, as danças, suas crenças e os símbolos ancestrais existentes na cultura
africana são bem representados. Intencionalmente a história Calunga começa com um
ideograma quioco e na última, Malungo, temos a presença do Quibungo71 (Figura 6), uma
71 “Quibungo. Na língua quimbundo, significa ‘lobo’. No Brasil, nomeia o ser que é meio bicho e meio gente, com
um buraco no meio das costas, no qual joga suas presas. O buraco se escancara quando o Quibungo desce a cabeça,
porém se fecha quando ele se levanta. Segundo Nei Lopes (2006), sua origem é a língua quimbundo, do cruzamento
113
criatura metade bicho e metade gente, com uma boca nas costas, com a qual devora suas presas.
Nas figuras 19 e 20, encontramos dois símbolos relevantes para narrativa gráfica.
Figura 19 - O Quibungo.
Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018. p. 160.
Figura 20 - Ideograma proverbial quioco.
Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018. p. 19.
entre ‘kimbungu’ (‘lobo’) e ‘kibungu’ (‘esperto’). Algumas istórias sobre o Quibungo foram compiladas por Nina
Rodrigues em Os africanos no Brasil (1982). Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. São Paulo: Veneta, 2018.
114
Figura 21 - Cágado, desenho cabina.
Fonte: D’ Salete, Marcelo. Cumbe. 2ª ed. São Paulo: Veneta, 2018.
115
Na figura 20, no quadros 1, em plano geral, o ideograma proverbial quioco72 assume um
papel importante na narrativa, pois representa um ninho de dois pássaros (Nana e Valu) e trança
os sentidos de espera resguardada e de liberdade mundo afora (D’SALETE, 2018, s/p),
destacando-se na representação de Nana (espera) e Valu (liberdade). Já na figura 21, um
desenho cabina73 é destacado nos quadros 2, 3 e 4. No último quadro, em plano geral, Soares,
Ofraso e Ganzo se reúnem em torno do cágado para traçar os planos de rebelião. O cágado é
um tema frequente da arte cabinda, o povo o vê como símbolo ancestral. De acordo com
D’Salete, “ele é evocado como símbolo de resistência, por sua carapaça, emblema de defesa, e
por levar a própria casa nas costas; símbolo de independência e a capacidade de adaptação”
(2018, s/p).
Assim, deparamos nessa leitura imagética de Cumbe, com vestígios do passado e marcas
gráficas estimadas pelo universo banto, como situações de mistérios, tradição e cosmovisão
africanos. Decerto que somente temos acesso aos pensamentos das personagens e a seus
horizontes de expectativas em virtude da dimensão e da liberdade estética do autor. Uma vez
que “para isso a ficção tem um papel significativo. É a partir dela que podemos transpor muros
e acessar, pela poesia e arte, aqueles homens e mulheres” (D’SALETE, 2017, p. 419).
Por último, é essencial destacar o prefácio escrito por Allan da Rosa - escritor, angolano
e pedagogo – intitulado “O sol no horizonte do tronco banto brasileiro” e o material anexado
no posfácio dessa HQ: um glossário com alguns termos apresentados por D’Salete ao longo da
HQ; um texto do próprio quadrinista titulado “Sobre histórias e levantes”; esboços e estudos;
capas de edições estrangeiras; e as referências bibliográficas, que incluem nomes como Aires
da Mata Machado, Clóvis Moura, José Redinha, Maria Helena de Figueiredo Lima, Nei Lopes,
Nina Rodrigues, Renato Mendonça, Suely Robles Reis Queirós, entre outros.
72 “Ideograma proverbial quico. Para José Redinha (1974), esse símbolo quioco representa um ninho e dois
pássaros. Trançam os sentidos de espera resguardados e de liberdade mundo afora. Ideogramas dessa natureza
integram fábulas, adivinhas e delineiam regras de jogos matemáticos. Riscados em areias e árvores, em corpos e
couros, entre a República Democrática do Congo e o sul de Luanda, há séculos acompanham ou antecedem
contações de histórias e também ensinam valores relacionados à economia e ai ambiente comunitários”. Fonte: D’
Salete, Marcelo. Cumbe. São Paulo: Veneta, 2018.
73 “Desenho cabinda. O cágado é um tema frequente da arte cabinda, sendo os padrões dos desenhos de sua
carapaça reproduzidos no traçado de esteiras, por exemplo. O povo cabinda a vê como símbolo ancestral. Ele é
evocado como símbolo de resistência, por sua carapaça, emblema de defesa, e por levar a própria casa nas costas;
simboliza a independência e a capacidade de adaptação. O pioneiro antropólogo Jose Redinha (1974) destaca no
símbolo a ideia de ‘levar consigo o lar, a esposa, buscar apenas o que for preciso’”. Fonte: D’ Salete, Marcelo.
Cumbe. São Paulo: Veneta, 2018.
116
3.2.3 Procedimentos metodológicos e desenvolvimento do projeto “Experiência do tempo e
resistência em Cumbe, de Marcelo D’Salete”
Durante a nossa experiência como professor de História na Educação Básica,
procuramos viabilizar um diálogo entre as diversas linguagens fazendo da sala de aula um
espaço dinâmico, na pretensão de auxiliar os alunos na construção de sentidos e significados
sobre as experiências de homens e mulheres no tempo74. Em vista disso, a compreensão que
compartilhamos com outros docentes sobre o ensino de História, está vinculada ao conceito
rüseano de aprendizagem histórica e cultura histórica.
Concordamos com Maria Auxiliadora Schmidt (2017), que ensinar História é oferecer
condições para que o aluno seja capaz de fazer, de construir a História, sendo a aula de História
a oportunidade em que, consciente do saber histórico que possui, o professor pode proporcionar
ao discente a aquisição do conhecimento histórico, mediante atividades que embasam essa
ciência. Ou seja, a sala de aula não é um espaço, exclusivamente, onde se relatam informações,
“mas onde uma relação de interlocutores constrói sentidos. Trata-se de um espetáculo
impregnado de tensões em que se toma inseparável o significado da relação teoria e prática,
ensino e pesquisa” (2007, p. 57).
Partindo dessa pretensão, tendo em vista as diferenças entre a aula conferência, a aula
colóquio e a aula-oficina (BARCA, 2004), a escolha por esta última se efetivou por servir de
base conceitual para a pesquisa e para outras metodologias complementares para a
aprendizagem histórica dos alunos, a partir da interpretação e compreensão das experiências
humanas ao longo do tempo com sapiência e empatia, utilizando a HQ histórica Cumbe.
Portanto, a metodologia da aula-oficina “Experiência do tempo e resistência em Cumbe, de
Marcelo D’Salete”, partiu do entendimento que as experiências presentes nessa HQ histórica,
causam uma identificação e dinamizam o envolvimento dos alunos, e procuramos articular o
modelo Aula-Oficina, proposto por Isabel Barca (2004), com as proposições da didática da
história, compreendida como ciência da aprendizagem histórica.
No modelo da Aula-oficina, o professor é considerado como um investigador social com
a incumbência de “aprender e interpretar o mundo conceptual dos seus alunos, não para de
74 Evidentemente, que essa pretensão tem sido acompanhada a de um ensino de História “para passar no vestibular
e no Enem”, uma vez que, estes objetivos são de fato, e na prática o que a maioria dos pais e dos coordenadores e
superintendentes das Credes e Seduc-CE entendem como importante para essa disciplina curricular. O que de certa
maneira, também é desse autor, sem, contudo, fazer da aula uma mera e simples exposição de fatos, datas e
acontecimentos históricos. Principalmente, por compreender que uma das funções, mas não a mais importante, da
Educação Básica é preparar os alunos para o ingresso ao Ensino Superior.
117
imediato o classificar certo/errado”, mas para oferecer condições para alterar, de maneira
edificante, os conceitos, as ideias e as experiências temporais que os mesmos possuem sobre os
temas e conteúdos históricos. Por este prisma, o aluno é “visto como agente do seu próprio
conhecimento” e as atividades propostas nas aulas deveriam ser “diversificadas e
intelectualmente desafiadoras [...] de forma que todos os materiais produzidos pelos alunos, os
testes os diálogos fossem produtos a serem avaliados pelos professores”. (BARCA, 2004, p.
134).
Dessa forma, no planejamento da aula, os professores precisam ter como ponto central
as competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos e não os conteúdos a serem
ensinados. As competências e habilidades devem levar em conta “os domínios da cronologia,
conhecimento e compreensão de temas em âmbito e profundidade, interpretação histórica
(interpretação de fontes) e comunicação” (BARCA, 2004, p. 136). Assim, os planejamentos da
atividade docente exigiriam, para além da aquisição dos conteúdos, promover a aprendizagem
histórica.
Para Isabel Barca, os planos de aula norteados pelos referenciais da Aula-Oficina
precisam recepcionar alguns princípios de aprendizagem como:
I – É possível que as crianças compreendam a História de uma forma genuína, com
algum grau de elaboração, se as tarefas e contextos concretos das situações em que
forem apresentados tiverem significado para elas.
II – Os conceitos históricos são compreendidos gradualmente, a partir da relação com
os conceitos de senso comum que o sujeito experiência. O contexto cultural e as
mídias são fontes de conhecimento que devem ser levadas em conta, como ponto de
partida para a aprendizagem histórica.
III – Quando o aluno procura explicações para uma situação do passado à luz da sua
própria experiência revela já um esforço de compreensão histórica. Este nível de
pensamento poderá ser mais elaborado do que aquele que assenta em frases
estereotipadas, desprovidas de sentido humano.
IV – O desenvolvimento do raciocínio histórico processa-se com oscilações e não de
uma forma invariante. Tanto crianças como adolescentes e adultos poderão pensar de
uma forma simplista, em determinadas situações, e de uma forma mais elaborada
noutras.
V – Interpretar o passado não significa apenas compreender uma versão acabada da
História que é reproduzida no manual ou pelo professor. A interpretação do
“contraditório’, isto é, da convergência de mensagens, é um princípio que integra o
conhecimento histórico genuíno (2004, p. 139).
Ao fazermos a escolha por esta metodologia, entendemos que a importância do
conhecimento prévio e das narrativas dos alunos, em particular, reside no caráter dialético da
compreensão histórica. Visto que as explicações e narrativas prévias são entendidas como um
entrelaçado de operações mentais que constituem a consciência histórica dos discente, e são
promissor ponto de partida para a concepções mais abrangentes sobre determinado contexto
118
histórico a partir das experiências temporais, posto que, “a investigação e a análise dos
conhecimentos prévios também servem de ponto de partida para a seleção das fontes, materiais
e problematizações que serão trabalhadas em aula” (SCHMIDT; GARCIA, 2006, p. 23).
De acordo com Barca (2004), nessa proposta de aula o docente reconhece seu papel
como investigador social e organizador de atividades problematizadoras, tendo o aluno como
agente de sua formação a partir das ideias prévias resultante de suas experiências. Embora não
seja um modelo rebuscado, a Aula-Oficina demanda de profuso trabalho de análise, o que
demonstra a sua relevância para o ensino de História. Assim, na aula-oficina “Experiência do
tempo e resistência em Cumbe” partimos do princípio de que o conhecimento proporcionado
através das questões suscitadas pelo professor por meio de atividades de interpretação vai de e
ao encontro de narrativas enraizadas na consciência históricas dos alunos por diversos artefatos
da cultura histórica.
Do ponto de vista do currículo escolar, o projeto “Experiência do tempo e resistência
em Cumbe” foi inserido nas temáticas “Africanos na américa portuguesa” e “Riqueza e
conflitos na região açucareira da colônia portuguesa”, dentro da proposta curricular e do plano
anual de ensino para a disciplina História, e subsidiada pelo livro didático adotado, de acordo
com o programa do Estado do Ceará. Assim, o projeto mencionado não foi uma atividade de
contraturno ou extracurricular, mas parte do planejamento de ensino direcionadas às turmas do
segundo ano do Ensino Médio, nas quais lecionamos.
Como ponto de partida, utilizando os encaminhamentos da Aula-oficina para o ensino
de História, foi inicialmente feita a averiguação do conhecimento prévio da turma sobre a
presença dos africanos no Brasil Colonial e, em seguida, a apresentação das temáticas. O
levantamento do conhecimento prévio da turma sobre a presença dos africanos no Brasil
Colonial, herdeiros de narrativas presentes nas aulas de histórias e nos livros didáticos, ratificou
as observações de Marçal (2009) e Corrêa (2000) sobre o estigma e desumanização da presença
negra no ensino de História. Enquanto indivíduo, o negro é sempre retratado no coletivo e
raramente como sujeito. Ao mesmo tempo que, como escravo, são compreendidos como mera
mercadoria, objeto e mão de obra do regime escravista de produção.
Após a análise dos conhecimentos prévios, discutimos os conceitos e as ideias
levantadas pelos discentes e apresentamos Cumbe. Na ocasião, a leitura foi motivada por
mostrar um retrato diferenciado da escravidão no Brasil em razão de ser narrada do ponto de
vista dos escravizados e ser alicerçada por fontes históricas, resultados de um processo de
pesquisa de 11 anos. Para instigar e suscitar o interesse pela HQ, analisamos a sequência da
narrativa da página 20 (figura 18), presente na história Calunga. Depois, os alunos foram
119
estimulados a ler a HQ Cumbe. Para a investigação, foi produzido um instrumental com 12
(doze) perguntas75, contendo questões abertas e fechadas, abordando 1) a relação dos alunos
com a história em quadrinhos; 2) a relação da HQ com os fatos e contextos históricos; 3) a
relação da narrativa gráfica com o conteúdo histórico; 4) a relação de Cumbe com o
conhecimento histórico.
A coleta de dados para esta pesquisa foi realizada através da ferramenta Google Forms,
um aplicativo de administração de pesquisas incluído no pacote do escritório do Google Drive.
O formulário, composto por 12 perguntas referentes a HQ Cumbe, teve como objetivo solicitar
um feedback sobre a leitura e a compreensão da HQs. Este instrumental foi enviado por e-mail
e disponibilizado, por intermédio do link, nos computadores da escola, sem a possibilidade de
identificação e de resposta facultativa.
3.2.4 Das análises a partir de Cumbe
Doravante, temos o propósito de apresentar a análise das vinte e cinco (25) respostas76
coletadas pelo formulário Google, com questões abordando alguns aspectos da HQ Cumbe. Este
instrumental era composto por 12 perguntas, entretanto, selecionamos cinco perguntas e suas
respectivas respostas para essa análise. Isso se deu por dois motivos: 1. Algumas perguntas
como “Qual história você gostou?” foram aplicadas sem espaço para justificativa, o que
inviabilizou a análise. 2. A pergunta “Você reconhece algum personagem em Cumbe?” devido
à incompreensão de uma pergunta e um erro estratégico, ela foi pensada para o estudo com a
HQ Angola Janga: uma história de Palmares, do mesmo autor. 3. A pergunta “Por que você
considera Cumbe confiável?” foi preterida porque se tornou redundante.
75 No formulário, a quinta pergunta foi enumerada 4a, a sétima ficou 5a, a décima, 7a, e décima primeira, 8a.
76 A coleta de dados foi feita por intermédio de um formulário Google contendo 12 questões. A participação foi
facultativa. O link do formulário foi disponível via e-mail ou nos laboratórios de informática. Foi garantido
anonimato, uma vez que não era necessário fazer qualquer login.
120
1. Você gostou de ler Cumbe?77
Tabela 3 - Gostou de ler Cumbe
FONTE: Tabela construída pelo autor com base nas respostas do formulário.
Essa pergunta procurou conhecer a sensibilização e aceitação deste artefato da cultura
histórica. Das vinte e cinco respostas, 24 (vinte e quatro) responderam que gostaram de ler.
Verifica-se que os estudantes, em sua maioria, gostaram de ler Cumbe, o que corrobora com as
observações que HQs são “obras ricas em simbologia - podem ser vistas como objeto de lazer,
estudo e investigação. A maneira como as palavras, imagens e as formas são trabalhadas
apresenta um convite à interação autor-leitor” (REZENDE, 2009).
2. A narrativa gráfica Cumbe poder ser considerada como?
A esta pergunta foi sugerida as seguintes opções:
Gráfico 6 - Confiabilidade de Cumbe
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base nas respostas do formulário.
77 A sequência da análise das questões não corresponde a sequência do formulário.
4
9
11
1
Definitivamente
confiável
Provavelmente
confiável
Parcialmente
confiável
Não confiavel
121
Quarenta e cinco porcento dos alunos consideraram Cumbe parcialmente confiável,
enquanto que para nove a HQ é provavelmente confiável (37,5%). Nas extremidades, quatro
alunos a consideraram definitivamente confiável e apenas um, não confiável. Essa pergunta
refere-se à competência narrativa de dar sentido ao passado de forma inteligível e à dimensão
cognitiva da cultura histórica, revelando a confiabilidade dessa HQ como uma narrativa sobre
a experiência do tempo. Pelas respostas intermediárias é possível constatar, nos alunos que
responderam o formulário, uma pré-disposição tradicional em relação a concepção de
desconfiança sobre as histórias em quadrinhos, e ao mesmo tempo, uma crítica documental.
Mesmo que essas respostas sejam aparentemente pouco desenvolvidas, junto com as
posteriores, Cumbe não apresentou um obstáculo à compreensão histórica, uma vez que
mobilizou uma relação de empatia devido a sua relação com o conhecimento histórico e as
experiências temporais. Ainda que essa HQs histórica faça uso da verossimilhança, a dimensão
estética e narrativa dos quadrinhos mobilizaram a aprendizagem histórica, mediante o enredo,
a expressividade das personagens e a representação do contexto histórico, respaldando o uso de
ficção-histórica em quadrinhos para a aprendizagem histórica.
3. Você reconheceu alguma situação do passado em Cumbe? Quais situações?78
Para apresentar as respostas às questões acima produzimos duas tabelas de síntese de
dados. A primeira tabela se refere à afirmativa ou negativa e a segunda é focada nas situações
reconhecidas. Também faremos uso de algumas respostas diretas, nestas, identificaremos as
falas pelo número do formulário.
Tabela 4 - Reconhecimento de situações
FONTE: Tabela construída pelo autor com base nas respostas do formulário.
78 Esta pergunta se refere as questões 5 e 5a do formulário.
122
Tabela 5 - Situações do passado
FONTE: Tabela construído pelo autor com base nas respostas do formulário.
Algumas transcrições diretas das respostas abertas:
A escravidão, as lutas que já tinha ouvido falar dos mocambos contra os homens
brancos. (Aluno 15)
Os escravos, pessoas trabalhando com muito sofrimento e sendo discriminada por
causa da cor. (Aluno 16)
O tempo das guerras entre escravos e branco, tempos que muita gente morreu
querendo apenas ser uma pessoa livre. (Aluno 17)
Dos castigos que os escravos sofriam dos abusos que as mulheres negras sofriam.
(Aluno 22)
Nota-se a existência de um pensamento homogêneo sobre escravidão. Apesar das
histórias em Cumbe apresentarem diversas situações como visto nas figuras anteriores, os
discentes têm construída uma ideia de escravos no Brasil somente envoltos no cotidiano de
trabalho compulsório, violência e o sofrimento, sem considerar que o cotidiano dos cativos
poderia alcançar experiências e expectativas além do trabalho escravo, como situações
interpessoais e intrapessoais.
Nas respostas dos Alunos 15 e 17, a resistência dessa população contra a escravidão é
apontada pelo conflito entre escravos e brancos, enfatizando que os negros não eram passivos
e que lutavam pela liberdade. Entretanto, outras formas de resistência foram preteridas na
leitura da história em quadrinhos, tais como, as fugas individuais e coletivas, as negociações
123
com os senhores, a manutenção de elementos culturais, como crenças, danças e simbologias
bantos.
Em Cumbe, a narrativa expressa os diversos aspectos relacionados à experiência
temporal dos escravos sem ignorar a opressão e a violência como características essenciais do
período. Entretanto, essas abordagens possibilitam novas problematizações de ensino de
História e a análise de outras narrativas num contexto em que a violência das relações
escravistas é ponto de partida, e não modo de sequestrar a aula de História no momento mesmo
em que devia iniciar-se. E assim, mobilizando uma aprendizagem histórica para além dos
significados cristalizados nas narrativas tradicionais ou exemplares sobre a escravidão na
América ibérica.
Dessa forma, em âmbito escolar, Cumbe viabilizou debates, conversas e novas
narrativas em sala de aula a respeito dos negros. Essa HQ histórica, tornou possível que a
resistência negra contra a escravidão explícita, como as fugas e os quilombos, e as implícitas,
negociações, experiências e expectativas de vida, fizessem parte do ensino de História. Sem,
contudo, adjetivar a escravidão na América portuguesa como brando, harmonioso, consensual
e benevolente presente em Casa Grande e Senzala, publicado nos anos 1930. Tampouco como
“algo bom”, porque os escravos não eram tão miseráveis e nem tão agredidos e ultrajados, visto
que havia uma espécie de “igualdade”, sendo que senhores e escravos trabalhavam juntos e
tinham a mesma qualidade de vida.
Nessas respostas, ainda é verificável que a identificação do negro como escravo é
predominante na concepção dos alunos que responderam o instrumental. Esse fato também é
evidente nas narrativas presentes nas aulas de história e nos livros didáticos. Enquanto
indivíduo, o negro é sempre retratado no coletivo e raramente como sujeito. Ao mesmo tempo
que, como escravo, são compreendidos como mera mercadoria, objeto e mão de obra do regime
escravista de produção. Desse modo, a presença negra no ensino de história é marcada pela
desumanização e estigma, uma vez que, “a negação da visibilidade do escravizado acha-se
sedimentada numa visão tradicional acerca da escravidão negra no Brasil que reduzia a
participação do negro na história do nosso país à condição de mão de obra, ou ainda do “não-
ser” (MARÇAL, 2009).
4. Qual a relação destes personagens e situações do passado com seu cotidiano?
Cinco discentes afirmaram que os personagens e situações do passado narradas na
história em quadrinhos não estão presentes em seu cotidiano, dentre eles, um assim justificou:
124
“Nenhuma, hoje acho que não existe mais aqueles tipos de sofrimento, tristeza e dor”
(Aluno 19), o que evidencia a noção de um passado morto e distante. No entanto, apontamos
que outros apenas negaram a relação das narrativas e o cotidiano, sem justificar ou matizar sua
negação, e quatro não responderam.
Contudo, os 19 (dezenove) alunos não se depararam como nenhum personagem apenas
com situações.
Ainda hoje pode vir a existir a escravidão não como no passado. Mas existem pessoas
que ainda são cruelmente maltratadas fazendo serviços pesados e brutos, além de
mulheres que por algum motivo são agredidas fisicamente e sexualmente, isso acaba
com a sociedade. (Aluno 2)
Ainda hoje podemos ver pessoas que acham que tem o direito de mandar nos outros.
Muitas mulheres são mortas por homens ciumentos que acha que tem o poder e que
manda na mulher. (Aluno 23)
Essa história tem algumas coisas parecida com a vida cotidiana, como o sofrimento,
amor proibido e violência. (Aluno 24)
A tristeza, a saudade. Às vezes você está se sentindo tão triste, tão sozinha. Às vezes a
gente sente muito saudade de quem já se foi e de quem a gente o tanto amava. (Aluno
25)
É importante notar que tanto Aluno 24 como Aluno 25 relacionam as narrativas em
Cumbe com seu cotidiano destacando os sentimentos evidenciados na HQ. Essas respostas
reconhecem as subjetividades e as experiências próprias dos escravizados a partir das
contingências do presente desses alunos. Por consequência, humaniza o passado concebendo o
escravizado como indivíduo para além do esquema Negro-Escravo, responsável pela
invisibilidade dos africanos e afro-descentes na história do Brasil, sem, contudo, ignorar a
opressão e a violência características desse contexto histórico.
Nas respostas Aluno 2 e Aluno 23, o passado é trazido para entender condições análogas
à escravidão e a violência contra a mulher. Aqui, o pensamento histórico é constituído pelo
sentido de continuidade determinante para a interpretação da experiência do tempo, e elaborada
como representação da duração na mudança (RÜSEN, 2007, p. 49). Nesse sentido, a
compreensão histórica existe no entendimento da mudança temporal, fundamental para
aprendizagem histórica produzindo o sentido histórico e a compreensão que fazem parte desse
passado.
125
5. Quais sentimentos são evidenciados em Cumbe?79
Gráfico 7 - Sentimentos evidenciados
FONTE: Gráfico construído pelo autor com base nas respostas do formulário.
No gráfico 7, apesar de muito aberta, a questão tem a finalidade de aproximar as
experiências do passado às experiências dos alunos, abrindo a possibilidade para compreensão
do outro a partir de situações verossímeis com a realidade da época. Essas respostas foram
operacionalizadas a partir do conceito de Escravidão, no sentido de compreender Cumbe como
uma história possível, algo que pode ser apreendido como experiências e expectativas possíveis,
o que auxilia na compreensão histórica.
O que se destaca nessas respostas é o entendimento da existência do amor, desfazendo
lugares-comuns que sustentam o imaginário que coloca os negros e negras em lugares e
situações exclusivamente determinados pelo binômio negro-escravo, onde ser negro-escravo
significava um ser economicamente ativo, mas submetido ao sistema escravista, no qual as
possibilidades de tornar-se sujeito histórico, tanto no sentido coletivo como particular do termo,
foram quase nulas (CORRÊA, 2000, p. 87).
Nesse sentido, Cumbe é uma HQ histórica essencial, tanto porque traz à tona as
experiências temporais no Brasil do século XVII quanto pela construção da narrativa centrada
em pessoas escravizadas. No enredo, as experiências de negros e negras vão além das condições
79 Os alunos podiam escolher mais um de sentimentos.
22
17
14
11
8
43
2 2 2 2 2 2 21 1 1 1
126
cristalizadas pelas narrativas tradicionais e exemplares sobre a escravidão: as mulheres
aparecem em situações relevantes e como integrantes ativas da comunidade; os escravizados
são inteligentes e procuram outras formas de resistência para além do conflito armado; seus
corpos não são erotizados, nem subjugados a atividades manuais, nem animalizados; muito
menos dependentes de um branco para pensar, agir e se libertar do cativeiro. São pessoas
instruídas e aptas a pensar sobre suas carências e orientações em harmonia com suas crenças,
costumes e histórias.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa dissertação teve como objetivo investigar a relação entre aprendizagem histórica e
Histórias em Quadrinhos (HQs), advinda do argumento de que as HQs históricas viabilizam a
compreensão histórica, por elas oferecerem aos discentes elementos acerca das experiências do
passado. Enunciamos, neste trabalho, que esses artefatos da cultura histórica têm a capacidade
de apresentar, por intermédio de elementos estéticos essenciais para o desenvolvimento das
narrativas gráficas, o passado do presente, o que as tornam importantes para o ensino de
História.
No primeiro capítulo, procuramos compreender como realizava-se as articulações com
o ensinar e aprender História e as HQs históricas. Nessa demanda, primeiramente, elaboramos
observações sobre a origem das histórias em quadrinhos, intrinsecamente ligadas à evolução da
indústria tipográfica e ao advento do jornalismo na transição do século XIX para o XX nos
Estados Unidos da América, e impulsionadas pelo desenvolvimento de jornais e suplementos
dominicais (Sundays e daily-strips). E em terras brasileiras, encorajadas pelo ilustrador ítalo-
brasileiro Angelo Agostini, com destaque para Aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma
Viagem à Corte (1869-1872), publicada pela revista Vida Fluminense (1868-1875), considerada
a primeira contribuição à história das HQs no Brasil.
Em seguida, expomos os conceitos e elementos das narrativas gráficas, estabelecendo o
lugar e a amplitude das HQs no ensino de História na educação básica, concluindo que elas
ultrapassam os aspectos ilustrativos, lúdicos e de mero entretenimento. Uma vez que, como
artefatos da cultura histórica, os quadrinhos encontram-se repletos de sentidos articulados às
experiências do passado, às expectativas de futuro e suas intencionalidades e às orientações do
sentido de agir no tempo.
Assim como a narrativa histórica, a narrativa gráfica pôde ser vista como registro da
aproximação entre existência histórica – dos autores, do texto, do suporte, da forma, do público
– e o conhecimento histórico. Portanto, o elo com a realidade histórica que as HQs estabelecem
é o que torna a narrativa gráfica inteligível e aceitável por acomodar em seu propósito de narrar
um referencial histórico e cultural, mesmo em enredos ficcionais por excelência. Nesse estudo,
esse vínculo se evidenciou como um recurso para observação da experiência temporal
individual ou social e, concomitantemente, revelando certos aspectos históricos da sociedade
em que foram constituídas e integradas.
128
Percebemos que as HQs estão situadas na fronteira entre a realidade histórica e a ficção.
Uma vez que, no ato criativo, a realidade histórica está inserida na realidade ficcional, tanto na
dimensão artística quanto na dimensão narrativa das HQs, podendo assim, ser compreendida a
partir do contexto da produção e da subjetividade dos autores – roteiristas, ilustradores, arte-
finalistas, editores e tradutores. Nessa fronteira, as experiências do passado e/ou do presente e
a evidência da realidade histórica também reside na existência de um vínculo entre os
quadrinhos e a história e sua relevância como fonte de documentação histórica.
Ainda nesse capítulo, estabelecemos o conceito e as classificações das HQs históricas
com o intuito de delimitar nossa abordagem. Conceituamos as HQs históricas como aquelas
em que a narrativa ficcional ou não-ficcional transcorre em algum contexto do passado da
humanidade e concernente, direta ou indiretamente, a fatos e temas históricos, alicerçadas em
documentos, referências históricas, historiografia, memórias, reportagens, biografias e
autobiografias. E para fins de uso didático, de maneira bastante ad hoc, classificamos em: 1)
ficção-histórica, ficção inserida em realidade histórica; 2) comics ou de super-heróis; 3)
biografias em quadrinhos; 4) autobiografias em quadrinhos; e 5) quadrinhos jornalísticos.
No segundo capítulo, desenvolvemos os conceitos rüseanos de aprendizagem, cultura e
narrativa históricas por entendermos serem essenciais para a compreensão histórica a partir das
HQs históricas, mostramos que os quadrinhos são condutos de expressão criativa, uma
linguagem distinta, uma forma artística capaz de narrar uma história ou representar uma ideia.
E, assim, verificamos sua capacidade de apresentar, por intermédio de elementos estéticos
primordiais para o desenvolvimento das narrativas gráficas, o passado do presente, o que as
tornam importantes para os estudos em Educação Histórica.
Com o intuito de articulação, utilizamos os quadrinhos A arte de voar (2018); D. João
Carioca. A corte portuguesa chega ao Brasil 1808-1821 (2007); Caveira Vermelha –
Encarnado (2013); História do Brasil em quadrinhos: independência do Brasil (2008) e
Quarto de despejo: diário de uma favelada (2018) estabelecendo vários diálogos aproximando
essas narrativas gráficas aos conceitos de aprendizagem histórica e narrativa histórica.
Nessa aproximação, constatamos que para a utilização da narrativa gráfica no ensino de
História é impreterível que o professor se esquive das simplificações visuais dos personagens,
temas e contextos históricos, limitando, dessa maneira, o conhecimento histórico a caricaturas
ou arquétipos do bem e do mal, presentes na produção de HQs voltadas à didatização de
conteúdos históricos. Portanto, as HQs históricas não devem ser utilizadas como narrativas
prontas e acabadas como pretextos e meios para atingirem um fim, isto é, para a construção da
129
compreensão histórica, logo, não é um fim espontaneamente, sua finalidade didática é subsidiar
a compreensão sobre as experiências do passado e a construção de sentido.
Dessa forma, chegamos à conclusão de que a compreensão histórica proporcionada
pelas HQs históricas se posiciona como importante material didático de análise da
aprendizagem histórica, ao possibilitar que o aluno estimule sua capacidade interpretativa de
acordo com as carências e orientações latentes que mobilizará seus atos na vida prática, assim
como tornará viável aos professores de história conhecerem a abrangência das narrativas
presentes em diversos artefatos da cultura histórica. Além disso, o uso de HQs históricas,
independente de qual tipologia, desdobra-se em inúmeras oportunidades que podem representar
uma ruptura e uma negação à visão da história como algo inerte, morto e sem importância para
a vida prática, ou como espaço de disputa, legitimar narrativas tradicionais ou exemplares como
orientadores de sentido temporal, eis aqui, o principal desafio de ensinar história hoje.
No último capítulo, fundado nas inferências realizadas com base nas informações
coletadas, concluímos que as HQs históricas precisam ser manuseadas por intermédio de uma
metodologia que pondere as características da linguagem dos quadrinhos e os significados
históricos que os alunos depreendem a partir delas. É necessário que o professor se distancie do
paradigma clássico da transposição didática e se posicione como articulador da aprendizagem
histórica, possibilitando a interpretação do passado e o uso deste, na narrativa gráfica, como
também, em outras narrativas.
A partir das observações e análises desenvolvidas nesse capítulo, também deduzimos
que as HQs históricas viabilizaram aos alunos elaborar conceitos substantivados e de segunda
ordem (LEE, 2001; BARCA, 2011). Os elementos que constituem uma narrativa gráfica
asseguraram que os estudantes desenvolvessem a capacidade de dar sentido às experiências
temporais, após a leitura dos artefatos da cultura histórica, sejam elas, ficcionais ou não
presentes no enredo e expressos nas ações das personagens, bem como, na realidade histórica
ou na diegese, relacionados aos conteúdos históricos escolares. Assim, é imprescindível que a
utilização de HQs históricas seja realizada por meio de critérios de verossimilhança interna ou
externa.
Por fim, a relação entre aprendizagem histórica e HQs históricas aponta para a
possibilidade de contribuírem para compreensão do passado histórico, das experiências do
tempo e das temporalidades. O diálogo das narrativas gráficas que apresentam uma
representação do passado com a produção historiográfica é, em primeira instância, uma
operação de recorte de texto com a história, na medida em que esta, em alguns trabalhos, é uma
narrativa histórica.
130
Nessa dissertação, procuramos elucidar, ainda que em momentos distintos, a interação
entre discurso historiográfico e HQs no ensino de História não reside apenas nas condições de
produção da narrativa, mas na relação externa com as fontes históricas, já que as narrativas
gráficas são também uma das formas de construção de sentido da experiência e do
conhecimento histórico.
Assim, percebemos que as relações entre as problemáticas e as finalidades da HQ
Lampião em quadrinhos interligam as estruturas em torno da produção e do contexto social,
tecendo uma rede de representações e significados sobre o cangaço, especificamente, as
relações entre o indivíduo, o meio e o tempo, nas primeiras décadas do século XX no nordeste
brasileiro. Amparado nessa narrativa gráfica, os alunos puderam perceber situações do passado
como ações que aconteceram no sertão nordestino. Considerando que é um ponto importante
para o entendimento do passado vivido e de uma temporalidade pelas ações humanas facilmente
vista como realizável.
Outro ponto potencializado, foi a identificação dos alunos com o espaço e as vivências
onde as práticas culturais se manifestam, na medida em que percebem que compartilham, no
presente, elementos culturais com o passado. Ainda inferimos que a aprendizagem histórica
desse alunado é influenciada por representações do Nordeste, que mobilizam a formação da
identidade do homem do sertão, reforçando referências sociais que foram estabelecidas na
construção cultural da região. Ao mesmo tempo em que estabeleceram uma compreensão na
qual o passado foi revisto, reafirmado e comparado ao presente. Essa capacidade, no processo
de compreensão histórica, é parte da competência narrativa de constituição de sentido à
experiência do tempo, que se adiciona à faculdade de sintetizar as diferenças temporais entre o
passado e o presente.
Os resultados apontados no projeto Aula-Oficina “Experiência do tempo e resistência
em Cumbe, de Marcelo D’Salete” possibilitaram algumas considerações. 1) A história em
quadrinhos permitiu uma abordagem temática para além das narrativas presentes no livro
didático, ao mesmo tempo, que estimulou novas reflexões sobre a resistência negra contra a
escravidão, inferindo as experiências dos próprios escravizados a partir de fragmentos e indícios
de situações, eventos e episódios vividos no passado.
2) As Histórias em Quadrinhos entendidas como ficção inseridas em realidade histórica
(ficção-histórica) nos ajudam, enquanto docentes, a amenizar a impossibilidade de “conhecer
realmente o passado”, construindo-o em imagens e textos, ao mesmo tempo que cria uma
relação e acrescenta algo à narrativa histórica da qual deriva e ao qual, inevitavelmente se refere.
Seus enredos e tramas aludem acontecimentos, épocas, processos do passado, a historicidade e
131
a consciência histórica, no mesmo momento em que compartilham, com outros os artefatos da
cultura histórica, a verossimilhança, difundindo-se como relevante na construção do
conhecimento histórico.
Dessa forma, verifica-se um vínculo potencial entre HQs históricas e a aprendizagem
histórica, porque o conhecimento histórico, a noção de tempo, o passado e sua relação com o
presente, constitui uma característica das HQs, cujo enredo e trama se desenvolvem em algum
lugar do passado. Uma vez que, como afirma Jörn Rüsen (2012), a aprendizagem histórica
apenas é aprendizagem quando ela é capaz de transformar, renovar e mudar os padrões de
interpretação do passado, o que pressupõe um processo de internalização dialógica e não
passiva do conhecimento histórico.
Por fim, como parte propositiva desse trabalho, apresentamos uma sequência didática
(Apêndice A) e duas propostas de atividade (Apêndice B e Apêndice C) para consulta dos
professores da Educação Básica contendo orientações didáticas e trechos de HQs para o
trabalho nas aulas de História. Esse material, que se encontra nos apêndices da presente
dissertação, sem caráter normativo, apresenta um conjunto de atividades e instruções aos
docentes que oportunizam a construção de saberes históricos junto aos discentes por meio da
utilização de HQs históricas nas aulas de História.
132
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WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios de crítica cultural. São Paulo: Edusp, 1994.
139
APÊNDICES
APÊNDICE A
SEQUÊNCIA DIDÁTICA
Os soldados e a Primeira Guerra Mundial: um estudo partir da HQs histórica Era a Guerra
das Trincheiras: 1914 – 1918, de Jacques Tardi.
Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses, que travaram a maior parte
da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, esta tenha permanecido como a
“Grande Guerra”, mais terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra
Mundial. Os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se
incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente estropiados e
desfigurados — os “gueules cassés” [“caras quebradas”] que se tornaram parte tão
vivida da imagem posterior da guerra —, não muito mais de um terço dos soldados
franceses saiu da guerra incólume.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O Breve século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.p. 33.
APRESENTAÇÃO
A Primeira Guerra Mundial é o acontecimento histórico que estabeleceu o cenário
contemporâneo, isso se deu em função das mudanças que o conflito trouxe para o breve século
XX (HOBSBAWN, 1995). Dentre os motivos desse conflito bélico, podemos mencionar as
rivalidades econômicas e imperialistas, o revanchismo francês e a expansão do nacionalismo.
Para além do cenário político e econômico, esta sequência didática trata de um estudo a
partir da HQ Era a Guerra das Trincheiras: 1914 – 1918, narrativa gráfica do francês Jacques
Tardi, que apresenta a história de uma série de personagens ocorrida no período da Primeira
Guerra Mundial. A HQ retrata o soldado comum perante as destruições da guerra, suas
angústias, medos, pensamentos e sofrimentos.
PÚBLICO ALVO:
Alunos 3º do ensino médio.
DURAÇÃO
2 aulas.
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EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM
Compreender o conceito Guerra de trincheiras.
Identificar o sofrimento tanto o físico quanto o psicológico dos soldados mostrado nos
quadrinhos.
Reconhecer que rotina cansativa e brutal para corpo e mente nas trincheiras eram
semelhantes, independentemente da nacionalidade: franceses, ingleses, alemães.
RECURSOS E MATERIAIS NECESSÁRIOS
Caderno de anotações.
Recursos informacionais como computadores, notebooks, tablets ou smartphones.
Internet.
Projetor multimídia.
PREPARAÇÃO
Arquivo completo (artigos, entrevistas, fotos, vídeos) organizado pela Folha de São
Paulo nos 100 anos da Primeira Guerra Mundial.
http://infograficos.estadao.com.br/especiais/100-anos-primeira-guerra-mundial/
Baixar um trecho de Era a Guerra das Trincheiras: 1914 – 1918.
https://issuu.com/grupoautentica/docs/guerra_de_trincheiras_isuu
MOMENTO 1
Inicie registrando o tema “Os soldados e a Primeira Guerra Mundial: um estudo partir
da HQs histórica Era a Guerra das Trincheiras: 1914 – 1918, de Jacques Tardi”.
Verifique o conhecimento prévio dos alunos sobre o tema.
Faça uma breve apresentação sobre a HQ.
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MOMENTO 2
Neste momento, proporcione a leitura do trecho da HQs.
(Em pequenos grupos, com fotocópias. Ou a partir da projeção)
Solicite aos alunos que formulem um conceito para “Guerra de Trincheiras”.
MOMENTO 3
Em seguida, destaque um último quadro da página 11 e explore o recordatório “De uma
parte e de outra, alemães e franceses não têm nenhum motivo sério para se matarem uns aos
outros, apesar de no início terem partido para a guerra com entusiasmo semelhante”.
Questione se os alunos sabem qual era esse “entusiasmo semelhante”.
Por meio de exposição oral, solicite aos alunos que relatem as condições das trincheiras.
Anote as contribuições dos alunos na lousa.
CONCLUSÃO
Enriqueça as contribuições apresentadas com as fotos do arquivo organizado pela Folha
de São Paulo nos 100 anos da Primeira Guerra Mundial.
ACOMPANHAMENTO DE APRENDIZAGEM
Verificar a capacidade do aluno de articular o conhecimento adquirido previsto nos
conteúdos programados sobre a Primeira Guerra Mundial e a narrativa gráfica Era a Guerra
das Trincheiras: 1914 – 1918.
142
APÊNDICE B
PROPOSTA DE ATIVIDADE
Esta proposta de atividade tem por principal objetivo analisar a partir da HQ D. João Carioca:
A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca, aspectos
relacionados ao contexto histórico que levou à independência do Brasil. Em especial, o
posicionamento da Corte portuguesa em relação às exigências impostas por Napoleão
Bonaparte e a abertura dos portos brasileiros às nações amigas de Portugal, em 1808. Nesta
sequência, os alunos farão a leitura e interpretação das páginas 8, 9 e 31.
OBJETIVOS
Identificar o processo histórico que levou à independência do Brasil.
Relacionar a presença da família real no Brasil a transformações que levaram ao
processo de independência.
Entender as consequências políticas, econômicas e sociais da vinda da família
real para o Rio de Janeiro.
PREPARAÇÃO
RECURSOS E MATERIAIS NECESSÁRIOS
Caderno de anotações.
Recursos informacionais como computadores, notebooks, tablets ou
smartphones.
Projetor multimídia.
HQ D. João Carioca: A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), de Lilia
Moritz Schwarcz e Spacca.
https://www.dropbox.com/s/mspbuorvko1eeqo/D.%20Jo%C3%A3o%20Carioca.p
df?dl=0
Atividade proposta.
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MOMENTO 1
Apresente a HQ D. João Carioca: A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), de
Lilia Moritz Schwarcz e Spacca.
Realize a leitura compartilhada das páginas 8 e 9.
(Se necessário, explique brevemente a expansão territorial francesa e explique os
motivos do bloqueio continental)
Se preferir, promova uma discussão com a classe.
MOMENTO 2
Realize a leitura compartilhada da página 31.
Contextualize a abertura dos portos brasileiros às nações amigas de Portugal, em 1808.
Estimule os alunos a estabelecer relação entre o narrado na HQ e seu cotidiano.
MOMENTO 3
Peça aos alunos que, em grupos, resolva as questões para auxiliar na aferição, presente
na atividade proposta.
Recolha as respostas.
ACOMPANHAMENTO DE APRENDIZAGEM
O acompanhamento de aprendizagem pode ser realizado por meio das atividades
propostas nesta sequência didática e deve considerar a participação individual e as respostas
dadas às questões.
Para verificar se os objetivos foram alcançados, corrija as atividades e faça a devoluta
(por escrito, na própria atividade, ou numa exposição oral).
Ainda, espera-se que os alunos sejam capazes de analisar o processo de independência
do Brasil, e refletir a partir dele sobre as relações entre o conteúdo e a narrativa gráfica.
144
ATIVIDADE PROPOSTA
A situação retratada nos quadrinhos80 abaixo destaca os reflexos da crise política em Portugal
decorrente do Bloqueio Continental decretado por Napoleão Bonaparte.
1. A ideia da transferência da família real portuguesa e sua corte ao Brasil não foi proposta apenas nos
anos finais do século XVIII e em função das pressões inglesa e francesa. Sabe-se que várias propostas vinham
sendo feitas pelos assessores reais desde o século XVI, apresentando as vantagens da administração do
Império português a partir da sua “tranquila” colônia tropical, na América.
Considerando essa perspectiva, a partir de duas posições dicotômicas81 expostas nos quadrinhos:
apresente uma favorável à transferência da corte para o Brasil e outra contrária à vinda da família real.
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80 D. João Carioca – A Corte Portuguesa Chega ao Brasil 1808-1821. Em 1808, o príncipe d. João aportou no Brasil com a família
real e boa parte da corte portuguesa. O cartunista Spacca e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz narram essa passagem da história
brasileira com a irreverência dos quadrinhos e o rigor histórico que a aventura merece. 81 Adjetivo. Em que há dicotomia, classificação cujas divisões ou partes apresentam somente dois termos: argumento dicotômico.
145
Seis dias depois de desembarcar em Salvador (28 de janeiro de 1808), o príncipe regente dom João
decretou a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, ou seja, às nações com as quais Portugal
mantinha relações diplomáticas amigáveis.
2. Nos quadrinhos acima, observamos tantas mudanças econômicas quanto permanências nas relações
de trabalhos. Tendo em vista essa situação, responda:
a) Qual a principal alteração decorrente da abertura dos portos para colônia?
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b) Quais as consequências para o comércio da cidade do Rio de Janeiro?
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APÊNDICE C
PROPOSTA DE ATIVIDADE
Esta proposta de atividade tem por principal objetivo analisar Esparta a partir da HQ Os 300 de
Esparta, de Frank Miller e a tirinha Um dia qualquer...Em Esparta, de Álvaro Trigo Fernandes.
Em especial, o modelo do soldado-cidadão e a educação em Esparta. Nesta sequência, os alunos
farão a leitura e interpretação de quatro sequência gráfica da HQ de Frank Miller e da tirinha.
OBJETIVOS
Identificar os ideais espartanos que tornaram a cidade-estado em uma sociedade
altamente militarizada.
Identificar as características e peculiaridades da educação em Esparta.
Inferir o conceito de liberdade na sociedade espartana a partir de elementos das
narrativas gráfica.
PREPARAÇÃO
RECURSOS E MATERIAIS NECESSÁRIOS
Recursos informacionais como computadores, notebooks, tablets ou
smartphones.
Projetor multimídia.
HQ Os 300 de Esparta, de Frank Miller.
http://www.mediafire.com/file/awrxahkmi5u9lgj/O300SED.cbr/file
Tirinha Um dia qualquer...Em Esparta, de Álvaro Trigo Fernandes.
http://cientistasocialnerd.blogspot.com
Atividade proposta.
MOMENTO 1
Apresente a HQ Os 300 de Esparta, de Frank Miller.
Realize a leitura compartilhada das narrativas 1 a 4, presentes no anexo.
Realize a leitura da Um dia qualquer...Em Esparta, de Álvaro Trigo Fernandes.
Se preferir, promova uma discussão com a classe.
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MOMENTO 2
Peça aos alunos que, em grupos, resolva as questões para auxiliar na aferição, presente
na atividade proposta.
Recolha as respostas.
ACOMPANHAMENTO DE APRENDIZAGEM
O acompanhamento de aprendizagem pode ser realizado por meio das atividades
propostas nesta sequência didática e deve considerar a participação individual e as respostas
dadas às questões.
Para verificar se os objetivos foram alcançados, corrija as atividades e faça a devoluta
(por escrito, na própria atividade, ou numa exposição oral).
Ainda, espera-se que os alunos sejam capazes de identificar as características e
peculiaridades sociedade espartana, e refletir a partir dele sobre as relações entre o conteúdo e
a narrativa gráfica.
ATIVIDADE PROPOSTA
1. Extraia de Os 300 de Esparta de Frank Miller, um trecho que demonstre a
preocupação com a formação dos espartanos como guerreiros.
2. Em qual narrativa gráfica “o próprio nascimento implica num ato heroico”? Por quê?
3. Em qual narrativa gráfica a iniciação da vida do guerreiro espartano é representada?
Por quê?
4. Qual a relação entre tirinha Um dia qualquer... Em Esparta e a narrativa gráfica de
Frank Miller?
5. De acordo com conteúdo de Grécia Antiga, quais grupos sociais desempenhavam as
atividades do segundo quadrinho da tirinha Um dia qualquer... Em Esparta de Álvaro Trigo
Fernandes?
6. De acordo com a tirinha, o que significa ser livre em Esparta?
7. Na HQs podemos inferir diversos aspectos da sociedade espartana. Assim, qual é o
objetivo da educação espartana explicitado nas narrativas gráficas?
NARRATIVAS GRÁFICAS
Narrativa gráfica 1
Narrativa gráfica 2
Narrativa gráfica 3
Narrativa gráfica 4
Tirinha
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