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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13a15 de outubro de 2016)
A cidadania na prateleira: a ressignificação da cidadania através da mídia, a partir da ausência do Estado1
Eurípedes Ferreira de CARVALHO JÚNIOR2
Simone Antoniaci TUZZO3
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás
Resumo Este trabalho parte do princípio que na sociedade atual, as relações de cidadania são pautadas
nas relações de consumo. Na ausência de plenitude de direitos, reflexo do enfraquecimento das
esferas convencionais, do Estado, da família, da escola e da religião, a cidadania é transferida
do coletivo para o individual. Os direitos sociais vão sendo substituídos por uma busca de
direitos ao consumidor. Através da publicização de desejos, ambições e frustrações dos
indivíduos, a mídia pauta as relações sociais e ressignifica o conceito de cidadania. A partir de
uma análise do discurso crítica do programa “Fantástico – o show da vida” da Rede Globo,
objetiva-se perceber a construção midiática nesta apropriação da cidadania e verificar como a
mídia constrói uma exposição, uma prateleira de desejos para ser consumida simbólica e
materialmente pelos cidadãos-consumidores, e pretende sugerir a necessidade da criticidade do
consumo, numa nova perspectiva de compreensão e exercício do ser cidadão.
Palavras-chave: cidadania; consumo; mídia; construção social.
Um olhar para a cidadania e seu imbricamento no consumo
Há algumas expressões que são costumeiramente ditas e reforçadas
socialmente, mas apesar de seu uso habitual parecem não possuir uma definição precisa,
ou melhor, não se percebe uma definição uniforme nos agentes comunicativos quando
1Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho – Comunicação, Consumo e Identidade: materialidades,
atribuição de sentidos e representações midiáticas, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação-
Comunicon, realizado nos dias 13, 14 e 15 de outubro de 2016. 2Eurípedes Ferreira de Carvalho Junior é Mestrando do PPGCOM da FIC/UFG - Brasil. Graduado em
Comunicação Social habilitação em Publicidade e Propaganda pela UFG. Pesquisador do Laboratório de
Leitura Crítica da Mídia da UFG. E-mail: euripedesj@gmail.com. 3Simone Antoniaci Tuzzo é Pós-Doutora e Doutora em Comunicação pela UFRJ; Mestre e Bacharel em
Relações Públicas pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora Efetiva do PPGCOM da
FIC/UFG. Coordenadora do Laboratório de Leitura Crítica da Mídia da UFG. E-mail:
simonetuzzo@hotmail.com.
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a utilizam. Há uma gama de situações em que são empregadas, e há uma diversidade
de percepções a estas informações pelos receptores. Cidadania, indubitavelmente, é um
bom exemplo de casos assim.
Cidadão e cidadania são expressões repetidas no dia a dia social. Há no discurso
da mídia o cidadão quando entrevistado na fila do hospital lotado, ou o cidadão sem
transporte público adequado na confusão do terminal de ônibus, lê-se na notícia sobre
o aumento de juros que vai influenciar a vida do cidadão, ou se fala do governo que
criou um novo “programa de cidadania” e como isto altera as relações na sociedade.
Naquelas propagandas em que se incentivam solidarizar uns com os outros como bons
cidadãos, utilizando produtos recicláveis, econômicos e que não agridem a natureza;
seja também quando se olha as ruas e se percebe ações como “a prefeitura no bairro”,
“dia do cidadão”, “amigos da escola” e tantas outras ações do governo, de sindicatos
ou de empresas solidárias na busca da melhoria social. Ou por fim, nas conversas
informais em que se reclama da falta de cidadania, na ausência de boas escolas e de
praças nas cidades para os cidadãos. São inúmeros os exemplos cotidianos em que a
cidadania e suas formas de compreensão estão presentes.
Mas enfim, como conceituá-la? O que se deve entender por cidadania?
Etimologicamente, cidadania é derivada de civitas, vocábulo que deu origem à palavra
"cidade", conceitua-se como o conjunto de direitos atribuídos ao cidadão. Cidadania
estabelece, inicialmente, uma relação de pertencimento do indivíduo a uma comunidade
territorial e politicamente articulada. Na história, o conceito de cidadão origina-se na
Grécia e é ressignificado em Roma, sociedades organizadas, entretanto, oligárquicas e
autocráticas, em que a cidadania era exclusividade dos homens, livres e capazes de se
manifestar social e politicamente (GUARRINELO, 2003).
Conceito este que foi se expandindo e alterando-se ao longo do tempo,
influenciado por revoluções burguesas e populares que disseminaram um pensamento
mais social, diversificado, e por vivências mais democráticas de povos e governos,
trazendo aos dias atuais valores relacionados à igualdade, aos direitos e deveres cívicos,
políticos e sociais daquilo que se apreende do “ser cidadão”. Para tanto, conhecer e
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perceber como o conceito de cidadania se alterou ao longo do tempo é apenas o
princípio, uma vez que é necessário entender como a cidadania está realmente inserida
na vida dos indivíduos na sociedade atual e quais fatores os fazem mais ou menos
pertencentes a esta cidadania.
Todas aquelas situações sociais descritas anteriormente, ilustrando como
“ouvimos” e “inserimos” a cidadania no nosso dia a dia, são comuns e pautadas ou
influenciadas por discursos midiáticos. O conceito clássico de cidadania parece ser
ressignificado levando-se em consideração contextos e interesses outros. As ausências
de esferas sociais fortes, principalmente o Estado, fortalecem esta mudança. Tem-se a
impressão de que o exercício da cidadania é uma ação externa, algo fora de nós, parece
ser algo a ser buscado, adquirido e não socialmente garantido e constitucionalizado.
A compreensão da ampliação do conceito de cidadania ocorre a partir dos
estudos de Marshall (1967), com um olhar para a sociedade inglesa, sobre a extensão e
a história da legalização de direitos sociais, civis e políticos, nesta ordem, para todos.
Sustentando que a cidadania só é plena se dotada dos três tipos de direito. “A cidadania
é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos
aqueles que possuem o status igual com respeito aos direitos e obrigações pertinentes
ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76). José Murilo de Carvalho (2010), com um olhar
direcionado à história da cidadania no Brasil, reforça que o cidadão pleno seria sim
aquele que fosse titular dos três direitos e cidadãos incompletos seriam os que
possuíssem apenas alguns destes direitos. E sem dúvida, na sociedade brasileira não
possuímos a completude dos direitos do “ser cidadão”. Além do que a construção de
nossa cidadania foi invertida, nos foi garantido primeiramente os direitos políticos e
civis, e aos poucos estão sendo legalizados os direitos sociais. Estando a plenitude
destes direitos ainda no campo da utopia.
Com a globalização outros fatores de distanciamento desta cidadania tornaram-
se ainda mais fortes, as inter-relações culturais e as distâncias entre o que se tem de
cidadania em um país que não apresenta o desenvolvimento para todos e o que se tem
de cidadania nos países que apresentam tornaram-se muito mais visíveis e distantes.
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Imaginava-se que com a modernização houvesse de igual modo uma aproximação das
diferenças sociais e da diminuição da exploração, se vê, no entanto, multidões
procurando sobreviver sob formas arcaicas, reforçando uma existência, conforme
Souza (2012), de uma subcidadania, situação que está abaixo da cidadania, vê-se
também o aumento da violência social, refletida da ausência de direitos, e da estadania
(CARVALHO, 2010) dos governos como o Brasil para, de forma mínima, garantir
direitos básicos e importantes para a sobrevivência dos indivíduos, relações de direitos
sociais que hoje também dependem da atuação do trabalho social de empresas privadas.
Na mídia se encontra um discurso cidadão, e a ausência das relações de
cidadania em outras esferas sociais, principalmente na do Estado, que deveria com mais
excelência fomentar e contribuir para a formação da igualdade social na saúde, na
educação, no lazer, na segurança, no transporte público, e em outras esferas, permite a
mídia incorporar o discurso para a ressignificação de seu sentido. “A legitimidade
creditada à mídia foi dada pela própria sociedade, ao transferir os diálogos das ruas para
o monólogo da mídia” (TUZZO, 2014, p. 165).
Cirino e Tuzzo (2016) propõem a elaboração de uma pirâmide social com
estágios de cidadania. Iniciando com indivíduos que recorrem ao desejo da cidadania
porque não a possuem, os “subcidadãos” (SOUZA, 2012), visto que esta expressão não
se encontra no discurso midiático, é substituída sempre por cidadania, mas reforçando
a ausência de seu exercício. Posteriormente nessa pirâmide, estaria o “cidadão”, aquele
que pode pagar pela cidadania, que pelo consumo compra o que naturalmente deveria
ser oferecido pelo Estado, saúde, educação, segurança, transporte e lazer. A cidadania
sendo definida pelo status privado e não pelo público, social. Deste cidadão “habilitado
pelo consumo”, Cirino e Tuzzo (2016) avançam para o estágio de “célebre-cidadão”,
aquele indivíduo que ascendeu por alguma característica célebre, deixou de ser
“alguém”, para ser “o” alguém, no esporte, na economia, no direito, na música, e que é
tratado midiaticamente acima dos demais. E ainda há aqueles que são os semideuses
sociais, os “supracidadãos”, que estão acima das leis e deveres, ligados ao poder, muitas
vezes ao poder midiático, e mantêm o sistema.
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Nessa relação, entre expectativas e perspectivas de direitos e deveres, a sensação
de pertencimento do indivíduo com certeza é exposta numa prateleira de possibilidades
da mídia, que vai alterando as relações locais e territoriais, que passa a ansiar desejos
inatingíveis e verdades ulteriores de uma pseudo-realidade disseminada. O cidadão
passa a ser múltiplo e transnacional, e começa a ser representado mais pelos bens que
consome do que pela comunidade que vivencia, como diz Goiadanich (2002, p. 74)
“encontramos nossas identidades mais como consumidores globais do que como
cidadãos locais”, corroborada por García Canclini (2015, p. 47), que afirma “em
contraposto a noção jurídica de cidadania, os indivíduos desenvolvem formas
heterogêneas de pertencimento, cujas redes se entrelaçam com as do consumo”.
A noção de cidadania e reforçada quando consumimos, porque ao pagar pela
cidadania temos direito a ela, ou a sensação do direito, como se já não o tivéssemos
anteriormente. Tondato (2014, p. 199) diz que “o consumo é uma atividade essencial
não apenas pelo preenchimento de necessidades materiais e físicas, mas, e
principalmente, pelo atendimento do simbólico, especialmente a partir da mídia, outro
aspecto relevante da cultura de nossos tempos”, se é, portanto, essencial o consumo, e
hoje indissociável das relações sociais, o que nos falta é uma criticidade na percepção
e realização deste consumo. Talvez seja necessária uma percepção mais apurada da que
nos é ofertado pela mídia, uma ação social mais forte na busca de direitos já legalizados
e não usufruídos, e uma racionalidade naquilo que precisamos ou desejamos consumir.
A cidadania na prateleira
É notório que a mídia possui, pelo enfraquecimento de outras esferas, a
hegemonia na formação dos valores dos sujeitos, e há pouco diálogo entre os pilares
sociais que deveriam ser responsáveis por essa formação. Tuzzo (2014, p. 164) propõe
uma reflexão sobre “os quatro “Ps” referidos ao Pai, Pastor/Padre, Professor e Político
que serviam de modelo para o comportamento social e foram substituídos pela mídia”,
o que se percebe hoje é o cidadão se moldando mais pelos modelos ditados nos meios
de comunicação do que pelas antigas referências. Além disso, é por meio da
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apropriação de bens e valores adquiridos pelo cidadão-consumidor na mídia, que ele se
utiliza para representar-se socialmente.
O que se percebe, e é proposto no estudo aqui discutido, é a compreensão que
há, por analogia, se inter-relacionando aos quatro “Ps” citados por Tuzzo
representativos na sociedade, um novo “P”: que se pode definir com uma Prateleira.
Um locus de exposição midiática que evidencia o desejo de uma cidadania que não é
exercida. Um ambiente criado para se extasiar, se almejar, e, sobretudo, consumir
formas mercadorizadas de ser cidadão. Com variadas formas de aquisição ou
simplesmente deslumbramento.
A “cidadania na prateleira” é uma apropriação da mídia na ressignificação da
cidadania, na clara percepção da ausência de referências cidadãs tradicionais na
formação social atual - família, escola, religião e Estado - há uma apropriação das
relações de direitos e deveres pelo discurso da mídia, como cita Fernandes (2013)
quando diz que “nessa sociedade influenciada pela mídia foi estabelecido um novo
imaginário social com novas ações, práticas e relações sociais”. Muito além do
exercício da função informativa, que para o observador comum é a principal função da
mídia na construção e ressignificação da cidadania, há uma construção simbólica de
poder que confirma ser de sua capacidade exclusiva a possibilidade do exercício
cidadão. Cria-se a necessidade do exercício da cidadania que muitas vezes só é
concretizado a partir do discurso midiático.
Além disso, a prateleira da cidadania exibida pela mídia é de vidro, que por ser
um material transparente, permite que o que esteja nela exposto seja visto por vários
ângulos, por todos aqueles que estejam em contato com as possibilidades de consumo
midiático oferecidas, destacando-se bela, iluminando tudo que nela consta. Entretanto,
por ser de vidro, se quebra com facilidade, dificultando o acesso, não suportando o peso
de todos aqueles que desejarem o que estiver aí exposto. Uma prateleira que está
distante, inatingível para a maioria, somente podendo ser alcançada e usufruída às vezes
por poucos, que mesmo quando adquirem bens simbólicos e palpáveis sempre são
estimulados a novas buscas em uma eterna incompletude. Estas características da
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mídia: o deslumbramento, a inacessibilidade e um poder onipresente, são o que dota
seus produtos, aqueles que expõem na prateleira, de magia, tornando-a uma porta voz
social “constituída”.
Para conceituar a cidadania exposta na prateleira utilizamos ainda da analogia
de uma vitrine de loja, que nos chama a atenção por sua beleza e espetacularização do
que lá é exposto, mas que também se mostra como uma barreira que nos impossibilita
de tocar, ou até, adquirir os produtos.
A prateleira é um nicho de exposição, onde os produtos adquirem uma aura de
desejos, mas também de uma nobreza não permitida para todos. Ainda que não seja
uma barreira física, legaliza-se socialmente como uma barreira simbólica, ninguém
pode adquirir aquilo pelo que não pode pagar. A prateleira pode ser admirada por quem
assim desejar, mas seus produtos serão consumidos apenas por alguns. Só se consegue
chegar até os produtos pagando por eles. Só se entra na loja e adquire o que está exposto
quando se pode realizar o consumo material. Somos impactados por construções
simbólicas exacerbadas que visam a preencher nossos desejos e necessidades sociais e
confortar nossos medos, mas a materialização deste consumo é apenas para aqueles que
podem pagar por essa cidadania, e quando o bem for simbólico a venda é a continuidade
do próprio consumo de bens não palpáveis. E nesta relação vamos “construindo” e
comprando valores cidadãos, numa constante busca de desejos realizados e outros
frustrados. Quando na realidade os direitos sociais, políticos e civis deveriam ser
postos, e o consumo deveria estar além dessas premissas básicas, numa relação crítica
sobre necessidades e impactos sociais, e não apenas uma questão de sobrevivência.
Tondato (2011, p. 154) afirma que vivemos “em um tempo de identidades
múltiplas, em um ambiente dominado pela mídia, em que o próprio homem se
transforma em mercadoria como estratégia de inserção”. Neste sentido, é importante
frisar que o homem é um receptor ativo, sujeito das suas escolhas, que consegue avaliar
subjetivamente suas decisões, a partir do seu grau de criticidade construído com base
na educação formal, por exemplo, e por isso diferente em cada receptor. Não se pode
ver mídia como uma simples emissora de informações e o indivíduo como um receptor
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uniforme e reprodutor de ideologias. O indivíduo é carregado de subjetividades,
portanto carregado de aspectos sociais e culturas, é também ativo no processo de
comunicação.
Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso descontruir
as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores como
predominantemente irracionais e as que somente veem os cidadãos atuando em
função da racionalidade dos princípios ideológicos. (GARCÍA CANCLINI,
2015, p.35)
Ao mesmo tempo, ao se falar de consumo não se está falando apenas do
consumismo, mercadorização do próprio consumo. Como afirma Baccega (2010, p.51)
é preciso pensar o consumo também “como um conjunto de comportamentos no âmbito
privado, que revelam as mudanças culturais da sociedade em seu conjunto”, como ação
ativa de sujeitos na busca de sua inclusão social, como meio utilizado para o
pertencimento e a confiabilidade nas relações.
Souza (2003) comenta sobre um “desconhecimento específico” que se tem pelas
configurações sociais que a sociedade adquire, pela ilusão do sentido imediato das suas
relações. E muito dessa falsa percepção do todo advém da mídia que fraciona e exibe
pedaços de várias realidades, promovendo um descentramento das identidades e da
própria comunidade que estamos inseridos. Exerce-se a cidadania aos pedaços e de
acordo com as formas de pertencimento midiatizadas, prontas para serem consumidas.
Estas relações favorecem uma nova percepção do social, não como cidadãos
munidos de direitos e deveres pré-estabelecidos pelo nascimento ou pela nação,
tampouco como indivíduos-cidadãos munidos de uma formação moral de respeito às
diferenças e ao próximo, valores tradicionalmente transmitidos pela família e pela
religião. Ou ainda, nem mesmo na escola recebem, uma formação racional e crítica da
sociedade. Há na verdade uma massa de clientes, satisfeitos ou não com as relações que
compram, com os direitos que pagam ou com bens e valores que apropriam. Percebe-
se que a cidadania está imbricada nessa relação de consumo, indissociando o cidadão e
o consumidor. (CARVALHO JÚNIOR, 2015)
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A ressignificação midiática, uma análise crítica do discurso no Programa
“Fantástico – o show da vida” da Rede Globo.
Para pesquisar esta associação entre a cidadania e seu exercício promovido
pelas relações de consumo fomentadas e difundidas pela mídia, tomamos, a partir de
uma análise crítica do discurso, o programa da Rede Globo de Televisão, “Fantástico
– o show da vida”, especificamente a edição exibida, ao vivo, dia 1º de maio de 2016.
A escolha do “Fantástico” se deu por ser um programa de grande audiência4, por ser
exibido em horário nobre no domingo e está na grade de uma emissora muito presente
no dia a dia da sociedade brasileira. O “Fantástico” tem como premissa ser uma
revista eletrônica do cotidiano, com reportagens sobre a sociedade, seus problemas e
soluções, sobre política, relações de cidadania e relações da sociedade com o Estado,
ou seja, possibilita o estudo de uma fração midiática relevante que auxilia na busca
do objeto estudado.
A escolha pela Análise do Discurso Crítica (ADC) tem como premissa a
desconstrução da linguagem, a partir do que o pesquisador, calcado numa perspectiva
crítica, faz de uma releitura dos enunciados, reinterpretando os conteúdos em análise,
visando compreender aspectos conjunturais e não tão evidentes (TUZZO, 2014).
Resende (2006, p. 35) explica que a “ADC considera a organização da vida social em
torno de práticas, ações habituais da sociedade institucionalizada, traduzidas em ações
materiais, em modos habituais de ação historicamente situados”, possibilitando assim
perceber discursos aparentemente comuns na estrutura midiática, mas que reforçam a
posse simbólica, dentro de uma narrativa de onipotência.
Além disso, a escolha de um programa televisivo tem respaldo em Temer (2014
p.166) que afirma que “ver televisão[...] é embarcar em uma rápida sucessão de
imagens esteticamente sedutoras que exigem do receptor se abstrair das condições de
produção[...], mas também é o esforço permanente de ignorar/recompor as dimensões
que faltam”. Se permite levar pela sedução de imagens, edições e infinitas
4 Audiência de 18,8 pontos e 6.281.160 televisores ligados em media. Fonte: Kantar IBOPE
https://www.kantaribopemedia.com/ranking-semanal-15-mercados-25042016-a-01052016/
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possibilidades de se “narrar” a realidade existente, e muitas vezes não se percebe os
extratos sociais, os recortes opinativos desta realidade criados pelas lógicas/condições
das produções midiáticas.
Dentre as 21 reportagens exibidas no programa analisado, 11 apresentaram um
discurso cidadão, sendo as demais com foco maior no entretenimento, esporte e meio
ambiente. Destas 11, foram selecionadas três para este trabalho, levando-se em
consideração a relevância e possibilidade de serem relacionadas entre si pela
proximidade dos temas.
A reportagem 1, intitulada: “Preso injustamente, empresário volta para casa
depois de mais de um ano”, conta a história de um microempresário, negro, pastor
evangélico, casado, pai de quatro filhos, de família pobre de São Paulo, que foi preso
após ter sido reconhecido por uma testemunha como um dos assaltantes do roubo
acontecido em julho de 2014 no depósito da fabricante de equipamentos eletrônicos
Samsung, localizado em Campinas, São Paulo. Para fins da discussão aqui
desenvolvida, consideramos esta matéria relevante, pois este roubo, avaliado em 20
milhões de reais, amplamente divulgado na época de seu acontecimento, envolveu um
dos maiores fabricantes de produtos eletrônicos, categoria amplamente desejada,
cobiçada e consumida, portanto com forte expressão no imaginário da população, o
que, acreditamos, seja relevante para sua divulgação no contexto simbólico das
mensagens televisivas.
Dalmo Arnaldo Pinto ficou 501 dias preso injustamente de acordo com a
reportagem. Este aspecto foi amplamente repetido, grifando a ineficiência da justiça e
impossibilidade do Estado em auxiliar àqueles que são erroneamente injustiçados,
segundo o discurso midiático empregado. Justiça que pode ser conduzida pela mídia.
A matéria enfatiza que o Fantástico estava há oito meses acompanhando de perto o
caso e já teria produzido três reportagens sobre o assunto, colaborando para que
absurdos assim não continuassem acontecendo. Como, autodenominada, representante
cidadã da sociedade, a mídia estava presente no momento de solução do caso,
acompanhando o preso em sua saída do presídio. Assim como estava com sua família
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na volta ao lar, representando ser a “única” esfera social que pode zelar pela
população.
Apesar do roubo e da questão da injustiça cometida, a reportagem não informa
sobre uma nova investigação, sobre a existência um outro indivíduo que se assemelhe
fisicamente ao injustiçado e por isso a possibilidade de erro por parte da polícia; não
foi mostrado se de fato existe uma outra pessoa que participou do crime e esteja sendo
procurado, investigado. A matéria não possuía este objetivo, tendo sido o foco a ênfase
no papel exercido pelo programa, deixando claro ser a mídia a única geradora e
gerenciadora da cidadania brasileira. Aquela que garante a justiça numa sociedade
onde este item é falho.
A reportagem dois é emblemática. Na comemoração do Dia do Trabalho no
Brasil, a matéria “atos contra e a favor do impeachment marcam comemorações do 1°
de maio” procurou mostrar a diversidade política que foi criada no Brasil e suas
manifestações neste dia festivo. Aconteceram eventos em todo país, mas os dois
maiores foram realizados em São Paulo, um a favor e outro contra o processo de
impeachment, contando com grande estruturas, shows artísticos e até, sorteio de
carros. Uma organização que analisamos como sendo o consumo pautando a discussão
social e política no Brasil, na sua relação com o entretenimento. Ou seja,
demonstrando que sem a presença do consumo, não haveria representatividade popular
e, portanto, não existe uma força que mobilize a população ideologicamente, ou pelo
menos nos parece que assim pensaram os organizadores.
Uma relação tratada pela mídia como natural, não sendo em nenhum momento
questionada ou no mínimo ironizada. No dia em questão, a presidente Dilma Rousseff
participou de manifestação realizada pela CUT (Central Única do Trabalhador),
anunciando na ocasião várias medidas populistas, como o reajuste do programa
cidadão “bolsa família”, uma correção do Imposto de Renda e o aumento da licença
paternidade, mas na narrativa midiática do programa é claro o posicionamento
político-ideológico contrário ao governo do editor. Em especial é reforçado o registro
de que as manifestações pró-presidente Dilma foram em menor número em todo o
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país, diferentemente do ocorrido em outras ocasiões, além do questionamento feito em
relação aos recursos a serem utilizados pelo Governo para a implementação do pacote
de bondades, e finaliza a reportagem divulgando uma pesquisa feita pelo partido
Democratas que constatou uma diminuição importante de verbas destinadas aos
programas sociais nos últimos dois anos. Muito além da função informativa, o
programa de forma evidente é opinativo, e utiliza da edição ideológica para valorizar
seu posicionamento.
Importante destacar que nesta relação a cidadania é fornecida pelo Estado como
uma Estadania, ou seja, a cidadania que é garantida pelo Estado e de quem os
subcidadãos são dependentes. O mais relevante é saber que, neste caso, as benfeitorias
governamentais colocam os subcidadãos em condições de compra, tentando iludi-los
sobre uma participação em outras camadas sociais marcadas pelo consumo.
A última reportagem analisada (reportagem 3) não cessa a leitura do discurso,
mas pelas limitações de espaço deste artigo, elucida esta primeira análise uma vez que
a pesquisa terá continuidade e será guia para estudos maiores. A matéria intitula-se:
“reportagem investiga esquema de contratação de matadores de aluguel” mais uma vez
a narrativa midiática reforça a ausência do Estado na legitimação da segurança em
regiões pobres e distantes dos grandes centros do país. O relato é sobre uma
investigação da polícia do Rio Grande do Norte sobre uma série de assassinatos que
ocorreram no interior do estado e que estão sendo investigados em relação a uma rede
de pistoleiros que teriam como chefe, e gerenciador financeiro dos crimes, um senhor
aparentemente pacato e proprietário de um bar na região. Ao mesmo tempo que é
valorizado o trabalho da polícia e do ministério público local, a matéria enfatiza a
ausência do Estado na prevenção destes assassinatos. A presença da mídia nestes locais
“perigosos” mostra sua força e amplia no telespectador a importância do trabalho social
que ela realiza na ausência do Estado, fomentando assim a exposição cidadã que é
vendida para a população. A cultura do medo é sempre artifício valorizado nessa
construção da cidadania pela mídia, porque intensifica sua onipotência, que somada ao
discurso do consumo, com construções simbólicas como esta: “quanto se custa uma
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vida? ” – altamente reforçada no discurso da reportagem -, apenas acentua a ideia de
que os valores sociais estão se perdendo, e a insegurança está aumentando, e a mídia
precisa intervir no bem social sendo a voz do cidadão, com capacidade e legitimidade
para protege-lo.
Consumidor-cidadão crítico
Baccega (2010, p. 51) descreve que o consumo é o “pilar da
contemporaneidade, construtor de identidades[...] o consumo de bens tangíveis e
intangíveis tem se manifestado importante mediação constitutiva dos sujeitos”. O
conhecimento é indispensável, assim sendo, para a formação de consumidores capazes
e críticos. Ao que completamos com García Canclini (2015, p.35) quando diz que pelo
consumo “definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos
de nos integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o pragmático e
o aprazível”, mudando, portanto, a maneira como consumimos se pode alterar e
influenciar as formas de exercer a cidadania.
Quando se vê o consumo como o espaço de produção de sentidos, como afirma
Martin-Barbero (1997) e se relaciona com os hábitos, identidades, “tribos”, ideologias,
em qualquer estratificação social, percebe-se um processo importante e intrínseco nas
relações humanas atualmente. A seleção de um bem ou sua apropriação é o atestado
daquilo que é valioso, é a satisfação da necessidade. O ato de consumir significa
participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos
de usá-lo (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004)
Estamos admirando a cidadania na prateira, inebriados pelo recorte midiático
feito da realidade e muitas vezes partimos do deslumbre para a ação do consumo
mercadológico sem a criticidade necessária. Mais do que perceber no discurso da mídia
uma verdade absoluta, é preciso perceber o contexto social, os fatores dominantes que
precisam ser valorizados ou não nas narrativas criadas pela mídia. É necessário utilizar
da razão para análise do que pode ou não ser benéfico para a comunidade e para o
indivíduo. Como nos diz García Canclini (2015), o consumo deve servir para pensar,
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inclusive aquele consumo de ordem simbólica, e para “expressar a nacionalidade
integrativa e comunicativa de uma sociedade”, que a liberdade de expressão se
manifeste e que vejamos a mídia como instrumento de complemento e não de
completude social.
Referências
BACCEGA, Maria Aparecida (2010). Comunicação/educação: relações com o consumo.
Importância para a constituição da cidadania. Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo,
vol. 7, nº 19, p. 49-65, julho 2010
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.
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