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8/8/2019 2008.Izilda Cristina Johanson Doc
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Izilda Cristina Johanson
Pensamento e InvenoBergson e a busca metdica do tempo perdido
So Paulo2008
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Izilda Cristina Johanson
Pensamento e Inveno
Bergson e a busca metdica do tempo perdido
Tese apresentada ao programa de
Ps-Graduao em Filosofia doDepartamento de Filosofia daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidadede So Paulo, para obteno dottulo de Doutora em Filosofia sob aorientao do Prof. Dr. Victor Knoll.
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Assim nos colocaramos no fluxo da vidainterior, do qual a filosofia parecia apenas reter,freqentemente, no mais do que a camadasuperficial, congelada. O romancista e o moralistano tinham avanado, nessa direo, mais longeque o filsofo? Talvez; mas apenas parcialmente,
sob a presso da necessidade, que haviamtransposto o obstculo; nenhum deles se tinhaproposto a ir metodicamente em busca do tempoperdido.
Henri Bergson
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Agradecimentos
Agradeo ao prof. Victor Knoll, pelo apoio integral, inclusive nos
momentos de decises importantes relativas trajetria investigativa etambm acadmica, apoio, alis, que j vem sendo dado desde a
graduao. Acredito sinceramente que t-lo tido como meu orientador foi
uma das coisas mais positivas dessa trajetria.
Obrigada secretaria do Departamento de Filosofia, particularmente
Maria Helena Barbosa e Marie Mrcia Pedroso, por terem sido sempre
to prestativas e atenciosas.
Agradeo muito especialmente ao prof. Bento Prado Jr. (in
memoriam), que incentivou e apoiou o meu trabalho, desde o incio, em
vrios e decisivos momentos e de vrias maneiras, sempre com a
generosidade, inteligncia e elegncia que lhe eram particulares. Fao um
agradecimento tambm especial ao prof. Frdric Worms, pela recepo
atenciosa e pelas "discutions", que influenciaram de maneira decisiva nos
rumos que minha pesquisa acabou tomando durante e depois da
temporada em Paris.
Quero agradecer muito calorosamente minha famlia: a Ademir (in
memoriam), Rosicler e Guilherme Johanson, pelo apoio e, sobretudo, a
Gustavo e Mrgara Johanson, pelo "suporte" e, mais ainda, pela acolhida
aconchegante nos momentos mais duros. Obrigada ao Bernardo Johanson
Moreira, bravo e valente companheiro de muitas empreitadas inclusiveas mais difceis! , obrigada pela proximidade e pelo carinho: voc
mesmo e sempre imprescindvel.
Aos bons amigos, s boas amigas, agradeo. Maria do Carmo
Souza Freitas, a Carminha, pela compreenso e companheirismo, muitas
vezes revelados em boas e s vezes fundamentais conversas. Patrcia
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RESUMO
Johanson, Izilda. Pensamento e Inveno, Bergson e a busca metdica dotempo perdido. 2008. 142 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade deSo Paulo, So Paulo, 2008.
A presente tese pretende investigar, no mbito do pensamento deHenri Bergson, a questo do impulso criador a partir de sua realizaocomo arte, mas no apenas ali, isto , na medida em que esse impulso secaracteriza como esforo de inveno, sua investigao dir respeitotambm aos possveis desdobramentos concernentes vida intelectual,moral e social. Sero examinados elementos que permitam discutir otema da inveno noo que em Bergson se apresenta de maneiraindissociada da discusso acerca da intuio a partir da relao entrepercepo, esforo intelectual e criao. Mais precisamente, importaaprofundar o conhecimento a respeito do modo e das condies depossibilidade de insero dessa experincia criadora no mundo, isto ,numa histria, como fazer. A potncia criadora, suas aes e suas obrasdevero, assim, ser examinadas luz de uma leitura bergsoniana quecompreende a realidade da vida a partir de seus dois sentidos, a saber: o
aberto e o fechado, ou, o que o mesmo, o esttico e o movente, onecessrio e o contingente, o biolgico e o metafsico, o da servido e,enfim, o da liberdade. O propsito dever ser, por fim, o de tirar asconseqncias filosficas dessas diferenas que se apresentam como aprpria realidade da vida.
Palavras-chave: inveno, pensamento, intuio, arte, criao.
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ABSTRACT
Johanson, I., Thought and Invention, Bergson and the methodic search ofthe lost time. 2008. 142 f. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade deSo Paulo, So Paulo, 2008.
The present thesis intends to investigate, in the scope of Henri
Bergsons thought, the issue of the creator impulse from its realization asart, but not only there, that is, while this impulse is characterized asinvention effort, its inquiry will also deal with the possible unfoldingpertaining to the intellectual, moral and social life. Elements that allowdiscussion of the theme invention will be examined - notion that inBergson is presented as an attached manner to the debate on intuition -from the relationship between perception, intellectual effort and creation.In particular, it is important to deepen into the knowledge regarding themode and the conditions of insertion possibility of this creator experiencein the world, that is, in a history, how to make it. The creator power, itsaction and its masterpiece will be examined upon the light of a
bergsonians reading that comprises the reality of life from its twodirections: open and the closed one, or with the same meaning, the staticand the moving one, the necessary and the contingent, the biological andthe metaphysical, that of the servitude and, at last, that of the freedom.The purpose will be, finally, to draw the philosophical consequences ofthese differences that are shown as the reality of life itself.
Key Words: invention, thought, intuition, art, creation.
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SUMRIO
Introduo 10
Captulo I - Arte e Filosofia 20
- Percepo, esforo intelectual e criao 22
Captulo I I - Os dois sentidos da vida 49
- Natureza e histria 52- Os dois sentidos da vida 70
Captulo II I Entre o fechado e o aberto em arte 75
- O esttico e o dinmico 77
- Funo social da arte 85
- Aporte metafsico da arte 101
Captulo IV Intencionalidade e filosofia 117
- Moral de presso e moral de aspirao 119
- Inveno moral 122
- Mstica e filosofia 126
guisa de concluso 132
Referncias Bibliogrficas 137
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Lista de abreviaes
As pginas indicadas nas citaes de Bergson correspondem s dasObras Completas, edio do Centenrio. As obras especficas s quaisse referem sero assim abreviadas:
DI Ensaio sobre os dados Imediatos da conscincia
MM Matria e memria
EC Evoluo criadoraR O Riso
ES Energia Espiritual
DS Duas fontes da moral e da religio
PM O pensamento e o movente
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Introduo
A discusso acerca da especificidade do objeto artstico sempre
interessou filosofia. J em Plato se trava a discusso sobre o lugar
da arte na cidade idealizada na Repblica; em Aristteles, temos o
estudo sistematizado da tragdia; de l para c o lugar que a arte
ocupa no meio em que se integram seres e fenmenos naturais e
sociais tem se tornado objeto do interesse da filosofia. Neste sentido,
vemos ao longo da histria da filosofia o surgimento paulatino de
uma disciplina especfica voltada para a questo da arte, a esttica.
Levando-se em conta os desdobramentos histricos da arte e
tambm da prpria filosofia, no nos parece descabido questionarmo-
nos sobre o sentido atual de uma disciplina de esttica, uma vez que
as delimitaes entre arte e reflexo sobre o fenmeno artstico tm
sido, sob certo ponto de vista, cada vez menos precisas.
Entendemos, assim, que a discusso acerca da relao entre esttica
e filosofia, arte e filosofia, arte e esttica, poderia muito bem se
pautar, em princpio, pela seguinte questo: em que medida a arteinteressa filosofia? Esta questo, por sua vez, implica ainda uma
anterior, a saber: qual a especificidade do objeto de arte?
a partir do artista que a obra se constitui e vem ao mundo
como objeto nico e particular. Mas isso no significa que a obra seja
prolongamento ou apndice do artista. No momento em que
finalizada, surge como ser autnomo que sustenta a si prpria, que
diz e provoca (idias, sensaes, reflexes, sentimentos) por si
prpria. Constitui-se a partir de uma subjetividade j que nica e
exclusiva em relao ao ato que a produziu, o qual, por seu turno,
est ligado a um indivduo em particular , contudo guarda algo de
objetivo, uma vez que, estando em meio aos demais objetos do
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11mundo, pode ser reconhecida como um outro objeto e,
particularmente, um objeto que teria algo a nos dizer. Nesse
sentido podemos dizer que a obra de arte apresentao ou
reapresentao do mundo e da vida a partir do filtro, da
personalidade, da histria pessoal, da memria, do olho, dossentidos, enfim, do artista.
Certamente no ser o caso de remontarmos aqui a discusso
iniciada j na Antigidade, com Plato e Aristteles sobre se esse
processo de recriao das coisas e dos seres se encaixa
perfeitamente na noo de imitao: o artista copia a natureza, ou
ele apenas procede como ela, criando, tal como ela o faz, seres eindivduos autnomos? Na poca atual em que a arte se encontra, em
que uma infinidade de critrios tcnicos, tecnolgicos, ideolgicos,
mercadolgicos, entre outros, foram incorporados a esse fenmeno o
qual ela nomeia, torna-se difcil, seno invivel, estabelecer um nico
critrio como fundamento para a discusso acerca da natureza da
obra de arte, seja este imitao, metfora, representao,
construo, desconstruo, etc. Mais relevante nos parece o fato de
que, por mais problemtica, questionvel ou intangvel que possa ser
a definio de arte nos tempos atuais, existe um tpico fundamental
para a discusso acerca do fenmeno artstico que no pode ser
descartado, sob pena de atentar contra a prpria inteligibilidade da
arte enquanto fenmeno especfico: de alguma maneira existe algo
que faz de um objeto comum, prosaico e cotidiano um objeto
diferenciado, que tem algo a dizer ou promover por si prprio. Ora,
dizer que no h, do ponto de vista terico, diferena entre umobjeto comum e uma obra de arte simplesmente dizer que no h
obra e, portanto, no haveria sentido falar sequer de uma arte que
fale de uma no-arte, pois se algo fala sobre o que quer que seja,
esse algo tem de possuir necessariamente uma especificidade.
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12Como dizamos acima, h que se considerar que um escritor,
um poeta, recria a linguagem na medida que a utiliza para expressar
algo que no est dado nela de uma vez por todas, algo de novo
portanto, de inesperado e de insuspeitvel. O mesmo se pode dizer
do msico em relao aos sons, ou o escultor em relao s formas evolumes, e assim por diante. A questo que se pe , pois, o que faz
com que aquela idia original, relacionada experincia nica de um
nico indivduo aquele que escolheu as palavras, ou os sons, ou
as imagens, que as disps segundo uma construo muito prpria e
obteve um resultado muito particular torne-se, a partir do trabalho
desse indivduo, algo que poder ser experimentado e apreendido em
si mesmo pelas demais pessoas, to diferentes umas das outras, comvises e percepes do mundo to dspares e variadas?
A obra de arte, enquanto fenmeno, ou melhor, a experincia
esttica enquanto criao de formas, idias, pensamentos, pode
muito bem se apresentar aos olhos do filsofo como lugar privilegiado
para a investigao acerca das condies de possibilidade de uma
sntese entre objetividade e subjetividade, assim como de sua
ocorrncia no plano da experincia efetiva. Assim, se a questo
principal da disciplina de esttica diz respeito natureza e
especificidade do objeto artstico, ento a passagem pela esttica
poderia bem ser necessria filosofia que reconhecesse na arte um
campo de investigao fecundo e preciso acerca do que possa vir a
ser o Real.
possvel identificar, numa perspectiva histrica, que medidaque a filosofia reconhece a insuficincia da razo para reconciliar, no
plano epistemolgico, subjetividade e objetividade (problema que se
impe fortemente a partir da filosofia moderna com a ruptura radical
entre sujeito e objeto), dirige tanto mais sua ateno para o potencial
cognitivo da sensibilidade. A Esttica, no sentido de uma investigao
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13consistente acerca da sensibilidade e sua relao com o intelecto
enquanto esta se d na experincia, isto , enquanto obra, viria ao
encontro dessa filosofia que, diante do conhecimento do real, por um
lado, reconhece os limites e a impotncia da razo (do entendimento,
da inteligncia) e do pensamento racionalista e, por outro, no seabandona aos ceticismos ou aos irracionalismos pura e simplesmente.
Talvez por essa razo mesma Kant tenha contribudo to forte e
decisivamente para a constituio da disciplina de esttica, no
obstante isto no estivesse provavelmente entre seus objetivos
principais1. Pode-se dizer, de maneira geral, que a Crtica do Juzo
refora a idia de uma certa racionalidade imanente sensibilidade,
na medida que a prpria imprevisibilidade da expresso genial encarada por Kant, antes de tudo, como um princpio reorganizador
(sentido do no-sentido, diria Lebrun) do entendimento, este sim
figura central da Reflexo: exceo de algumas intuies felizes
que nela se pode salientar, a 3 Crtica considerada como um
balano da cultura do entendimento a obra de um Aufklrer e no
de um homem de cultura (Gebildete), capaz de elevar-se acima do
ponto de vista comum dos homens e que no teme seguir o caminho
difcil que vai para o interior do ser humano, para encontrar o
princpio de sua ao e de seu pensamento2. Assim, e tendo em
mente a evoluo das investigaes acerca da subjetividade esttica3,
ao propor as coisas nesses termos, a nfase que se d ainda na
aposta (e, evidente, no caso kantiano no poderia ser de outro
1 Cf. Lebrun, G., Kant e o Fim da Metafsica, So Paulo, Martins Fontes, em especiala segunda parte.2 Idem, p. 560.3 Compartilhamos da compreenso de que a concepo de uma esfera estticaautnoma no se d de uma vez por todas e simultaneamente ao nascimento oficialda disciplina de esttica, em meados do sculo XVIII, com Baungarten, ou mesmocom seu aprofundamento em Kant. (Cf. tambm Dumouchel, D., Kant et la Gensede la Subjectivit Esthtique, Paris, Vrin, 1999).
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14modo) de que um conhecimento vlido e verdadeiro tem de ser
exclusivamente ou prioritariamente racional4.
Da perspectiva de abordagem desta tese, bergsoniana por
princpio, interessaria aprofundar essa ltima proposio, mas entocom os termos invertidos, ou seja, procurando aprofundar a reflexo
sobre a busca de um mtodo adequado a uma sensibilidade
cognoscente e uma razo em princpio coadjuvante do processo
cognoscitivo. Pois em Bergson, o verdadeiro objeto da filosofia,
dada sua natureza temporal e contnua, inacessvel inteligncia e
razo pura, as quais so aptas a operar sobre o imvel, a fixidez e
a partir de representaes, contudo no totalmente inacessvel aopensamento humano.
O propsito principal, inicialmente, era o de investigar, no
mbito do pensamento de Henri Bergson, a legitimidade e as
implicaes para o projeto filosfico bergsoniano da relao que sua
doutrina estabelece entre arte e filosofia, obra de arte e mtodo
filosfico, esttica e metafsica, a fim de constituir alguma reflexo
sobre a possibilidade de um sentido mais profundo para a questo em
torno de algo que acreditava poder denominar dimenso esttica do
empirismo metafsico bergsoniano.
O ponto de partida fora o trabalho desenvolvido ao longo do
mestrado, no qual afirmava a existncia de uma esttica em
Bergson5. Assim, se por um lado, eu encontrava a chave para
4 Para mim, pobre filho da terra, no tenho nenhuma disposio para entender alngua divina da razo intuitiva. Aquilo que podem me soletrar, a partir de conceitoscomuns segundo a regra lgica, isso eu ainda posso alcanar (Kant, I., Carta Hamann, citado por Lebrun, G., obra citada, p. 556).5 Ainda que no propriamente de direito, mas certamente de fato, j que todos ostemas clssicos de uma esttica l se encontram e de modo intrnseco filosofiabergsoniana como um todo. Alm disso, a compreenso de Bergson sobre anatureza e o valor da arte em muito contribui, assim entendo, para a compreenso
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15compreender o lugar da percepo, tomada agora em sua acepo
esttica, na constituio de um certo conhecimento filosfico, a
saber, a Intuio bergsoniana e esse papel da percepo seria, no
meu entender, o que sustentaria fundamentalmente a afirmao
acerca da profunda afinidade entre arte e filosofia, esttica emetafsica em Bergson , por outro, acreditava estar no caminho da
constituio de uma esttica de cunho metafsico que pudesse atuar
num campo epistemolgico mais amplo, isto , para alm do universo
das artes particulares.
Em resumo, colocava-me muito prxima do caminho traado,
por exemplo, por Denis Huisman quando, a propsito da perguntasobre a existncia ou no de uma esttica bergsoniana, afirmara:
"no existe, em Bergson, percepo esttica; h somente uma vasta
esttica da percepo"6. Ou de F. Fabre-Luce de Gruson quando,
envolvida com a mesma questo, declarara: "A percepo da arte a
nossa prpria percepo"7. A compreenso aqui seria a de que, em
relao filosofia bergsoniana, no haveria lugar para uma esttica
ao lado de uma epistemologia e de uma metafsica, mas que "a
epistemologia e a metafsica no seriam outra coisa que a esttica".
Estabelecidos dessa maneira os termos da pesquisa, e sob a
influncia de uma leitura mais detida das ltimas obras de Bergson
(As duas fontes da moral e da religio, particularmente), uma
questo se imps imediatamente, a qual, ao contrrio do que se
poderia esperar, foi menos a de procurar saber se, seguindo por essa
via inicial, estaria praticando certo reducionismo e seria a estaconcluso que eu inevitavelmente chegaria em relao
da arte de seu tempo, estando sua "esttica" em perfeita sintonia com a produoartstica contempornea a ela.6 Huisman, D., Bergson et nous Actes du X Congrs des Socits de Philosophiede Langue Franaise - Bulletin de la socit franaise de philosophie, Paris: ArmandColin, 1959, p. 195.7 Idem, p. 195.
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16compreenso da busca bergsoniana de constituio de uma
metafsica que, acima de tudo, afasta-se das opes que
tradicionalmente lhe oferecem o racionalismo e o idealismo, fincando
seus fundamentos na experincia real e concreta (a qual pressupe,
de fato, entre outras coisas e semelhana do que acontece na arte,o alargamento da percepo comum, assim como a constituio de
um mtodo que seja simultneo constituio do prprio objeto que
visa investigar), do que se esse seria mesmo um ponto de vista
privilegiado para pensar o papel da arte e do pensamento que se
constitui em torno dela em relao prpria filosofia bergsoniana. As
leituras e essa nova linha de estudos adotada levaram-me
compreenso de que a questo da afinidade, ou mesmo identidadeexistente entre intuio filosfica, intuio esttica e intuio mstica,
remetem a um universo mais amplo do que o estritamente
epistemolgico. Melhor dizendo, a intuio, na medida que se
caracteriza - como pretendemos mostrar ao longo deste trabalho -,
mais do que tudo, como processo, que toca o real em seus mais
diversos graus, remete a um universo em que conhecer no se reduz
"descoberta" de algo, mas pretende antes penetrar fundo na
realidade da vida, que virtualidade e contingncia pura, e atualiz-
la, ou seja, invent-la.
E se ns, estudiosos e estudiosas, interessados e interessadas
na filosofia bergsoniana, que nos propomos a discorrer ou explicar
algo a respeito dessa filosofia somos levados a discorrer e explicar
tambm a oposio entre intuio e inteligncia, sabemos muito bem
que no podemos faz-lo recorrendo a um discurso e a conceitossimplesmente, a representaes e idias espacializantes por
exemplo, as do tipo que procuram mostrar onde se opem, no ser
humano, inteligncia e intuio. Porque sabemos que tanto num caso
como noutro o processo que nos liga ao real que est em questo,
seja essa realidade a da matria (a insero de nossa ao numa
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17prxis organizada) seja a do esprito (reencontro com a
temporalidade absoluta, que pura mobilidade e devir). De modo
que, em relao filosofia de Bergson, no nos possvel discorrer
exatamente sobre o que se conhece, na melhor das hipteses talvez
possamos dizer algo sobre esse processo de conhecimento - esta finalmente a razo principal que nos leva arte, investigao sobre
a natureza e a experincia esttica.
Contudo, mais do que dizer e se queremos mesmo saber algo
sobre isso mais valioso ser certamente o nosso esforo para nos
colocarmos o tanto quanto possvel em meio a esse processo de
conhecimento. A partir de uma expresso de Bergson "no ouam oque eles dizem, vejam o que eles fazem" , recorrente em Duas
fontes da moral e da religio8, Vladimir Janklvitch chama a ateno
para esse propsito mais profundo da obra bergsoniana que, como
diz, no exprime apenas o profundo vnculo do filsofo com a
experincia vivida, significa primeiro e acima de tudo que "existem
coisas que no so feitas para que se fale delas, mas feitas para que
as faamos"9. So coisas, prossegue Janklvitch, as mais
importantes e preciosas da vida, em meio as quais a palavra
puramente expressiva parece secundria, pouco convincente,
miseravelmente ineficaz. "Por oposio tica intelectualista,
geradora de aporias vertiginosas, de fantasias e pseudoproblemas, a
intuio, que ao mesmo tempo gnstica e drstica, no se define
como simpatia e como engajamento? isto, engajar-se, e apenas
isto! No fazer conferncia sobre engajamento, nem conjugar o
verbo; nem engajar-se como os homens de letras, mas engajar-separa valer; por um ato imediato e primrio, por um ato efetivo e
drstico, por um ato srio da pessoa total; no aderir sem muita
8 Cf. DS, pp. 1001, 1096, 1114, 1131.9 Janklvitch, Vladimir, Primeiras e ltimas pginas, Campinas, Papirus, 1995, p.95.
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18convico, mas converter-se verdade apaixonadamente, isto , com
a alma inteira, como em Plato os cativos libertos"10.
Sendo por essa via tocada pela filosofia de Henri Bergson, parti
para a reformulao da estrutura da tese, procurando dessa vez, porum lado, restringir basicamente a pesquisa ao mbito da filosofia
bergsoniana (inicialmente pretendia buscar uma espcie de gnese
da disciplina de esttica qual julgava estar relacionada a esttica
bergsoniana) e, por outro, e a partir disso, ampliar a discusso sobre
o papel da arte. Seguindo a trilha aberta pela prpria obra de
Bergson, o trabalho de escritura pretender, em primeiro lugar, dar
conta de uma discusso possvel sobre o impulso criador, em arte,mas no apenas ali, isto , na medida em que tambm esforo de
inveno, sobre seus desdobramento em relao vida social,
moral e religio. Em seguida, o propsito dever ser o de tirar as
conseqncias filosficas dessas relaes (o lugar da filosofia) para,
enfim, levar a pesquisa a termo.
No primeiro captulo estaro em causa os elementos que
permitem discutir o tema da inveno a partir da filosofia
bergsoniana, ou, o que o mesmo, a intuio estudada a partir da
relao (como composio e evoluo, no sentido mesmo musical)
entre percepo, esforo intelectual e criao. No segundo captulo a
discusso girar entorno do modo de insero dessa experincia
criadora no mundo, isto , numa histria, do que seja uma
experincia verdadeiramente histrica e sobre suas condies de
possibilidade, que se d partir de um certo sentido da vida. Por fim,os dois sentidos da vida, a saber: o aberto e o fechado, ou, o que o
mesmo, o esttico e o movente, o necessrio e o contingente, o
biolgico e o metafsico, o da servido e, enfim, o da liberdade, sob o
10 Janklvitch, Vladimir., op. cit., p. 97.
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19vis da arte e da experincia esttica sero o tema do terceiro
captulo.
Este ser o percurso, seus desdobramentos devem estar
certamente ainda por se realizar. Fica aqui, contudo, o depoimentoem forma de tese de algum que tanto se interessa pela experincia
do pensamento e que julga ter aprendido com o exemplo de Henri
Bergson, em cuja Filosofia as identidades entre pensamento e ao,
realidade e mudana, mudana e felicidade so to exemplarmente
reveladas.
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CAPTULO I
ARTE E FILOSOFIA
Percepo, esforo intelectual e criao
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A inteligncia um instrumento a
servio de um esprito cuja espiritualidade
est essencialmente em seu poder de
inveno; se o sbio no inventa a verdade
ele a descobre a golpes de invenes.Henri Gouhier
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I .Em Filosofia da dana11, Paul Valry nos apresenta uma
questo particularmente interessante em relao ao tema deste
trabalho. Nesse ensaio, o autor menciona a dificuldade no apenas de
falar, mas, sobretudo, de explicar algo do qual ele no teve e nem
teria experincia integral: a dana. Como falar algo consistente e
verdadeiramente proveitoso sobre a dana sendo filsofo e no
bailarino, ou seja, no tendo a experincia de como se constitui ou seexecuta um passo de dana, as evolues corporais das pernas,
braos, no tendo a idia de como se evolui, inclusive, no domnio
tcnico dessa arte? Esta bem poderia ser a pergunta que algum de
fora, um artista talvez, faria filosofia no momento em que esta se
dispusesse a falar sobre a arte, ou como se costuma dizer, constituir
uma Esttica e isto nos daria uma idia do quo eqidistantes
podem estar artista e filsofo de algo comum que os una. Quando
enfim, responde Valry, no se possui, para tratar dos prodgios que
fazem as pernas, outra coisa que no os recursos de uma cabea,
no encontramos salvao seno numa filosofia isto quer dizer que
retomamos as coisas de muito longe com a esperana de fazer
dissipar as dificuldades pela distncia.
Esta resposta pode certamente se constituir no ponto central de
uma discusso geral acerca da relao entre arte e filosofia, mas aquineste estudo sobre a filosofia bergsoniana em particular ela ganha
contornos mais precisos, que podem contribuir para o
aprofundamento da nossa questo inicial sobre o conhecimento da
realidade e a noo de criao.
11 Valry, P., Oeuvres, vol. 1, Paris, Gallimard, 1957.
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Freqentemente a constituio da Esttica como disciplina
filosfica se baseia fundamentalmente nessa aplicao, para utilizar
as palavras de Valry, dos recursos de uma cabea s questes
relativas experincia artstica. sabido que ao longo de sua obraBergson no constituiu formalmente uma Esttica, no h nenhuma
obra especialmente dedicada anlise de obras de arte e do
fenmeno artstico em geral ou em particular. Certamente esta falta
no seria a principal razo para se negar a possibilidade de uma
teoria esttica do nosso filsofo, afinal, preciso que se diga, o fato
de no haver obra especfica sobre o tema no inviabiliza o
reconhecimento das condies de reflexo e a existncia mesma deuma reflexo em Bergson sobre a experincia artstica e a natureza
da arte. Ainda assim, ou melhor, ainda que se dispusesse a tal
empreitada, Bergson jamais poderia constituir uma reflexo sobre a
arte nos moldes desta denunciada por Valry, esta a qual no restaria
outra alternativa que no aplicar os recursos de uma cabea a algo
do qual o corpo no tem nem pode ter experincia integral.
Reconheamos que essa uma das principais caractersticas da
Esttica tradicional, disciplina geralmente acoplada a um sistema
filosfico particular, ligada e comprometida antes de tudo com a
lgica desse sistema. Voltada para discusses sobre o belo (a arte,
neste caso, vem a ser, por definio, a bela arte), a universalidade do
juzo em oposio subjetividade criadora, o papel da imaginao, a
relao entre sujeito e objeto, entre arte e natureza, forma e
contedo, idia e representao entre outros temas, essa esttica se,por um lado, se aproxima em certa medida da realidade artstica ao
elucidar certas "verdades" sobre ela, por outro, por se deter
sobretudo no plano do pensamento abstrato, acaba por se distanciar
de seu objeto concreto, assoberbando-se com questes acerca da
consistncia do seu prprio sistema de idias. Assim, se a Esttica
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24assim concebida declara a arte seu objeto e procura legitimar sua
atitude especulativa em relao a ele por meio de um discurso
conceitual, ao buscar fundamentar sua especificidade, pode acabar,
como muitas vezes aconteceu ao longo da histria, por perder seu
objeto de vista e discutir de certa maneira no vazio, de to distanteda realidade emprica que lhe corresponde12.
De uma perspectiva bergsoniana, podemos depreender que o
caminho trilhado por essa Esttica que se afasta de seu objeto de
estudo medida que se aprofunda em investigaes de ordem
conceitual na verdade pouco contribui para a arte propriamente dita,
ou, mais que isto, em relao a esta ltima, ela totalmenteprescindvel, j que a arte pode resolver seus problemas de modo
artstico. Melhor dizendo, os problemas da arte, ou de uma arte
especfica, se resolvem na prpria produo artstica, no nas
especulaes dos filsofos! E no haveria como ser de outra forma,
uma vez que a arte, enquanto arte, isto , realidade de uma
experincia especfica e singular no mundo e para o mundo, s pode
ser o que se for uma atividade autnoma, que pode se alimentar e
mesmo se apropriar da reflexo filosfica, tanto quanto do que de
mais houver no mundo, e que nem por isso perde sua autonomia.
Nesse sentido, lcito dizer e o afirmamos com L. Pareyson
que uma crtica de arte, na medida em que sua natureza se distingue
radicalmente da reflexo esttica, seja possivelmente o que mais se
aproxime do objeto artstico e o apreenda de fato, isto , como algo
12 Cf. Ernest Cassirer, stimo captulo de A Filosofia do Iluminismo. Nele o autor nosd uma ampla viso histrica da esttica como disciplina filosfica e de suas duaslinhas bsicas de evoluo. Em linhas gerais, na primeira desenvolve-se umaesttica de cunho estritamente conceitual, ligada e comprometida principalmentecom o sistema filosfico ao qual se liga; na segunda linha, e em sentido oposto aoda primeira, desenvolve-se uma esttica que busca justificar teoricamente a arte noprprio fazer artstico, no em conceitos e abstraes, na ao da fabricao e nona do conhecimento. Neste estudo Cassirer ressalta esse movimento pendular, deoscilao do estritamente conceitual ao emprico total e suas implicaes naspretenses de constituio de uma cincia aplicada aos problemas da arte.
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25vivo e presente no mundo13. De todo modo, esse conhecimento de
arte, nos diz Bergson, que deveria partir do artista, dificilmente
poderia surgir de um esteta: "Sem desconhecer o valor desse
mtodo, nem a utilidade que pode haver em rodear a obra de arte
para tomar o maior nmero possvel de vistas sobre ela, pensamosque a esttica aguarda, para se constituir definitivamente, o dia em
que algum grande artista far para sua arte o que um Descartes fez
por sua cincia, o dia em que ele ser surpreendido em pleno ato de
criao e em que ter podido extrair, das profundezas de si mesmo,
os elementos de um novo Discurso do Mtodo. Saberemos ento por
qual mecanismo a emoo e a idia se materializam em sons e em
cores, escolhem seu ritmo e sua medida. A esttica ser fundadasolidamente, e tambm uma crtica de arte que no comparar
apenas obras a outras obras, mas ainda e sobretudo a ela mesma, ao
que ela teria sido se a matria, que o instrumento, no fosse ao
mesmo tempo obstculo" 14. Mas e quanto ao filsofo?
Ainda que a questo da natureza, da especificidade da obra de
arte e da experincia esttica permeiem toda a obra filosfica
bergsoniana, no h como considerar num sentido estrito a arte o
objeto dessa filosofia. Em Bergson, a arte em geral e mesmo as
artes, ou cada arte em particular, no encarada como um fora ao
qual a filosofia procura aplicar sua reflexo e inclu-la ao seu corpo
prprio; ao contrrio, a reflexo sobre a arte no apenas surge do
problema filosfico como se constitui juntamente com ele15. Em
outros termos, se h de fato uma discusso filosfica sobre arte, ou
13 Ora, potica e crtica, mesmo podendo ser traduzidas em termos de reflexo,nem se incluem na esttica nem se identificam com ela, porque, de preferncia,fazem parte de seu objeto, isto , da experincia esttica. (...) A crtica o espelhono qual a obra se reflete: ela pronuncia o seu juzo enquanto reconhece o valor daobra, isto , enquanto repete o juzo com que a obra, nascendo, aprovou a simesma. (Pareyson, L., Os Problemas da Esttica, So Paulo, Martins Fontes, 1989,p. 21).14 Bergson, Mlanges, ano de 1914, pp.1119-1120.15 Mostrar como isso se desenvolve na obra bergsoniana foi o principal objetivo dapesquisa de mestrado que antecedeu esta tese.
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26se se quiser, uma esttica, esta no se destaca e nem se desenvolve
de modo independente em relao metafsica bergsoniana. Isto
porque, em Bergson, arte e filosofia se relacionam no
exteriormente, tal como numa abordagem de literatura comparada,
mas intimamente: a filosofia no fala simplesmente sobre a arte, elacoincide com ela; e se no coincidisse, no falaria. Em outras
palavras, se h em Bergson, como acreditamos, uma afinidade entre
arte e filosofia, esta s pode ser uma afinidade profunda, algo como
uma ligao interior prpria arte e prpria filosofia, algo, enfim,
que se d muito mais no plano de uma experincia do que no de um
discurso16. Mas qual seria a experincia que um filsofo e um
bailarino, para retomar a fala de Valry, ou poeta, ou msico,poderiam ter em comum? Antes de tudo, a experincia do esforo de
criao17.
I I .
A idia de criao, sobretudo em arte, freqentemente
associada espontaneidade. Um deixar-se levar simplesmente,
principalmente pela capacidade de sentir, perceber e,
conseqentemente, imaginar, inventar, a partir de determinado
estmulo externo ou interno. Avanando nesta idia e mesmo tendo
em conta a revelao do artista moderno, que desnuda a si prprio ,
16 Vale acrescentar que dizer isto no o mesmo que afirmar que a filosofiabergsoniana seja literatura, ou que literatura e filosofia sejam duas coisasindistintas para nosso filsofo, nem to pouco, como ressalta Gouhier, que afuno do filsofo se confunda com a operao do artista. (...) A arte entra nametafsica para lhe fornecer a imagem engrandecedora de um ato criador.(Gouhier, Introduo, in BERGSON, Oeuvres, p. 29).17 Acreditamos que, em Bergson, uma reflexo sobre o fenmeno artstico sejainerente prpria constituio do mtodo filosfico, j que o conhecimento a queeste se reporta diz respeito antes de tudo a uma experincia e compreensodesse tipo de experincia, ou seja, Intuio. E dessa perspectiva intuitiva, a idiade esttica num sentido mais estrito, ou a idia de uma esttica bergsoniana dedireito, perde sentido totalmente, e mesmo a pertinncia da questo sobre se aesttica seria ou no aqui uma espcie de subsidiria da prpria metafsica, ousimplesmente metafsica se apaga, se desfaz.
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27talvez encontremos ainda que a potncia criativa seja inversamente
proporcional ao esforo de elaborao da obra que dele resulta: tanto
mais imbudo em sua viso ou percepo especial, tanto menos
esforo despender o esprito criador; e, de modo inverso, onde mais
houver contato material, trabalho, resoluo de problemas,fabricao enfim, menos a intuio incidir.
Mas ser mesmo assim? O que pode pretender, por exemplo, o
poeta-ferramenteiro? Seu trabalho, como em E. A. Poe, dirige-se
antes de tudo produo de um efeito18. Diz o poeta preferir
comear com a escolha de um efeito sem jamais perder de vista a
originalidade, a fonte de interesse acessvel ao artista , efeitosou impresses mais apropriados ocasio, aqueles aos quais o
corao, o intelecto, ou, de um modo mais geral, a alma esteja mais
propensa19. Cada ao que merea ser assim chamada deve ser
estudada profundamente at que o n seja desfeito; somente tendo
sempre presente o desfecho que se pode dar ao um carter
consistente. Um tal efeito neste caso, menos uma conseqncia
secundria do que o prprio ncleo do processo criador, e justamente
em virtude disto est relacionado, assim, a uma certa tenso, a
qual, por sua vez, ser diretriz da ao em face de um sistema
complexo de representaes em vias de ocupar o intelecto. Em
oposio ao esforo intelectual, que est relacionado tenso, h a
alternativa de uma atitude de relaxamento em face desse mesmo
18 Muitos escritores poetas em especial preferem deixar compreendido quecompem sob uma espcie superior de frenesi uma intuio extasiante erealmente haveriam de estremecer ao deixar que o pblico espreitasse, por detrsda cena, as elaboraes e vacilaes do pensamento bruto, as proposiesverdadeiras que s aparecem no ltimo momento, as inmeras vises que nochegam maturidade nem plena clareza, as proposies plenamenteamadurecidas abandonadas em desespero como inajustveis, as escolhas erejeies cautelosas, as penosas rasuras e intercalaes; em uma palavra: as rodase pinos, os aparelhos dos cenrios, as escadas e os alapes, as penas de pavo, atinta vermelha e o retalho preto, os quais, em noventa e nove por cento dos casos,constituem as propriedades da histrio literria (POE, E. A., A Philosophy ofComposition. IN: The Portable Edgar Allan Poe, New York, Penguin, 1977, p. 551).19 POE, obra citada, p. 550 e ss.
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28sistema representacional. Bergson, especialmente em LEffort
Intellectuel, nos mostra as razes desse ato criador, produtor de
efeitos ou impresses, estar relacionado a uma tenso e a um
esforo, e no a um relaxamento ou simples deixar-se levar do
esprito. E ainda, que esse esforo diz respeito a uma atividadeintelectual a qual, por sua vez, no se destaca de uma ao concreta,
fabricante, sobre a qual a prpria matria a ser trabalhada exerce
tambm influncia.
Uma ao pode ser direcionada por uma atividade intelectual
na qual os elementos representacionais se organizam seguindo as
regras de um jogo relacional do qual eles j participam. Isto seria oque, em Bergson, entenderamos por reproduo. Num extremo
oposto, h a possibilidade de uma atividade de inveno ou criao,
na qual as representaes se organizam em torno de uma fonte
indeterminada de formas e relaes, as quais se configuram medida
que se realizam como produto dessa mesma ao. Repetio e
imprevisibilidade encontram-se, pois, cada qual a sua vez, na base
geradora de toda atividade produtora, a qual demandar um esforo
maior na medida em que a imprevisibilidade ditar as regras e os
procedimentos para sua realizao. Para reproduzir o que j existe,
ao contrrio, preciso deixar-se levar apenas, seja pelo hbito, por
uma atitude mecnica ou simplesmente pela tendncia (a reproduzir)
da prpria natureza. Neste caso, e em se tratando da atividade da
escrita, o esprito labora a frio, combinando idias entre si, h muito
vazadas em palavras, que a sociedade lhe entrega em estado slido.
No outro, parece que os materiais fornecidos pela inteligncia entrampreviamente em fuso, e que se solidificam em seguida de novo em
idias agora nutridas pelo prprio esprito: se essas idias acham
palavras preexistentes para as exprimir, isso constitui para cada uma
o efeito da boa-sorte inesperada; e, na verdade, sempre foi preciso
ajudar o acaso, e forar o sentido da palavra para que se modelasse
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29o pensamento. O esforo agora doloroso, e o resultado aleatrio,
mas somente ento que o esprito se sente ou se cr criador20.
, pois, no prprio produto da ao, levando-se em conta as
reaes interiores e a forma que ele realiza, que encontramos tudo oque necessrio para distinguir o pensamento que se deixa viver
daquele que se concentra e faz esforo. No caso de uma inveno
ou criao, a ao direcionada por uma tenso e no por um
relaxamento em virtude da atividade estar vinculada promoo de
um tipo particular de experincia, a da novidade originalidade a
qual, por princpio, no se encaixa nos moldes j dados pelas
experincias j vividas. Criar exige, pois, um trabalho intelectualintenso, voltado subverso do sistema representacional ordinrio e
habitual em proveito da melhor adequao entre uma origem e seu
destino. Para retomar Poe, o efeito ao qual o esprito estaria mais
propenso e que o poeta tem todo o tempo em vista no deve ser
seno a determinao de uma moldura possvel dentre uma
infinidade de outras igualmente possveis e, portanto, de uma
unidade, para uma individualidade em vias de se constituir: no caso,
a obra.
Criar imaginativamente resolver um problema, ressalta
Bergson citando M. Ribot. E acrescenta: Ora, como resolver um
problema de outra maneira que no o supondo solucionado?21.
Fazendo referncia menos a uma sntese de representaes situadas
num mesmo plano de conscincia (o puramente abstrato) do que ao
movimento pelo qual uma representao simples (pura abstrao) sedesenvolve em imagens (algo concreto, efetivo), Bergson introduz a
noo de esquema dinmico nas condies de gnese e de
inteligibilidade do real-fenomenal: da percepo primordial
20 DS, p. 1014.21 ES, p. 946-947.
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30realizao efetiva, a ao criadora dever ser mediada por um
movimento constante de transformaes, sugeridas pelo objeto
percebido, das relaes abstratas entre si em imagens concretas
capazes de recobrir esse mesmo objeto percebido. Seja reproduo,
seja inveno ou criao, todo processo de realizao (passagem doabstrato para o concreto) mediado pela ao esquemtica, segundo
Bergson, uma atitude intelectual destinada tanto a preparar a
chegada de uma certa imagem precisa (como em relao
memria), quanto a organizar um jogo mais ou menos prolongado
entre imagens concretas capazes de nele se inserirem22. , contudo,
no esforo de inveno que encontramos as formas mais altas de
esforo intelectual. A imprevisibilidade seria responsvel pela tenso,pelo n, pela hesitao toda especial na qual se encontra a
caracterstica do esforo, a qual apenas uma ao verdadeiramente
livre pode em alguma medida resolver, pois a experincia de
produo, neste caso, deve estar relacionada no a uma descrio de
relaes formais pr-existentes, mas constituio de relaes novas
e atuais, originalmente correspondentes, isto , correspondentes
organizao da prpria experincia do devir23. Oesquema seria ento
algo prximo dessa soluo suposta, porm no prvia e em nada
comparvel a uma idia pr-concebida ou pr-existente. O
esquematismo bergsoniano relaciona-se idia de uma imanncia
total da forma em suas realizaes graduais a qual no tem nem
contedo prprio nem realidade independente escapando assim
antinomia tradicional do Uno e do Mltiplo, uma vez que s pode ser
pensado num contexto antiplatnico em que o molde do ser puro e
esttico d lugar individuao do prprio tipo.
22 ES, p. 957.23 medida que o inventor realiza os detalhes de sua mquina, ele renuncia a umaparte daquilo que ele queria obter, ou ele obtm outra coisa. Da mesma maneira,os personagens criados pelo romancista e pelo poeta reagem idia ou sentimentoque esto destinados a exprimir. A est, sobretudo, a parte do imprevisto; elaest, pode-se dizer, no movimento pelo qual a imagem se volta para o esquemapara modific-lo ou faz-lo desaparecer (BERGSON, Oeuvres, ES, p. 948).
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Se, como se diz aqui, a ao criadora consiste basicamente na
transformao da matria com vistas a um fim um efeito, como
vimos , vemos que a relao existente entre idealizao e produo
de uma obra , antes de tudo, uma relao de identidade, j que acomposio processo de maturao, algo que se d num tempo
real, numa temporalidade que essencialmente mudana,
movimento contnuo em que perceber e produzir ou, se se quiser,
em que o problema e sua soluo s podem se realizar num gesto
nico. O exemplo que o prprio Bergson nos oferece a respeito do
esforo corporal realizado para aprender um movimento complexo de
dana pode bem nos ajudar a compreender melhor sua noo deesquema dinmico e, a partir dele, a natureza da ao
verdadeiramente criadora.
Para realizar um movimento complexo de dana, nos diz
Bergson, comeamos por perceb-lo. Para aprend-lo, comeamos
por ver danar. Em seguida, preciso memorizar o movimento e
execut-lo, ou seja, dar aos nossos olhos uma impresso
semelhante quela que nossa memria guardou. Mas o que poderia
guardar, num primeiro momento, nossa memria? No se pode dizer
que seja uma impresso ntida e definitiva do movimento visto, pois
dizer assim implicaria considerar que no h movimento a aprender e
que, na verdade, j vemos bem a dana mesmo desconhecendo-a
completamente: ora, evidente que, se para aprender essa dana,
preciso que se comece por ver sua execuo, inversamente, no a
vemos bem, em seus detalhes e mesmo em seu conjunto, senoquando j temos algum hbito de danar24. A imagem definitiva a
dana plenamente aprendida no dever ser, pois, a primeira
imagem da qual iremos nos servir; esta dever sofrer variaes,
24 ES, p. 950.
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32tornar-se progressivamente mais precisa ao longo do aprendizado
que ela prpria est encarregada de dirigir.
Uma tal imagem no seria puramente visual, como ressalta
Bergson, trata-se de uma imagem tambm motriz, uma vez que dizrespeito a uma evoluo. E o que poderia ser uma imagem
parcialmente visual, parcialmente motriz, ou melhor, visual e motriz
ao mesmo tempo? Algo muito prximo daquilo que Bergson chama de
esquema: uma indicao de configurao, que aproxima as
lembranas adquiridas da imagem em formao e vice-versa; ou,
para ser mais precisa, um desenho de relaes, sobretudo
temporais, entre as partes sucessivas do movimento a serexecutado. A amplitude dessa espcie de vai-e-volta entre o
esquema e a imagem est diretamente relacionada intensidade do
esforo despendido para realizar o movimento. Saber danar, neste
caso, significa obter de nosso corpo os movimentos sucessivos
correspondentes ao modelo que o esquema, supostamente completo,
prope. Essas lembranas de sensaes motrizes, medida que se
revivificam, convertem-se em sensaes motrizes reais e,
conseqentemente, em movimentos executados25.
Para que o esquema seja recoberto pelas sensaes motrizes
correspondentes dana, necessrio, pois, que haja uma variedade
de imagens motoras parciais disposio e que elas, juntas, o
preencham plenamente. Assim sendo, para que se contraia o hbito
do movimento novo e complexo de dana preciso que j se tenha o
hbito dos movimentos elementares nos quais a dana se compe.Refundir novas combinaes de movimentos elementares significa,
pois, criar um movimento novo, aprend-lo inteiramente. A
dificuldade agora est em que a experincia j vivida ou hbito dos
movimentos elementares essenciais composio do movimento
25 ES, p. 951.
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33novo esto ligados a outras combinaes, que compem outros
movimentos mais ou menos complexos, mas que no tm qualquer
relao ou proximidade com aquele que se pretende realizar. Ao
contrrio, podem at ser antagnicos. Em se tratando de uma valsa
e valsa que Bergson se refere em seu texto , o hbito de andar,por exemplo, contraria a tentativa de danar. Em outros termos, o
hbito adquirido de movimentar-se desta ou daquela maneira, em
funo desta ou daquela necessidade, transforma-se num verdadeiro
empecilho para a realizao dos passos de valsa. O esquema seria,
nesse sentido, uma abertura de caminho, um contorno sugestivo para
a nova forma, a nova moldura para a experincia da nova dana.
Essa necessidade de o esquema conduzir gradualmente as
imagens mltiplas elementares a um novo modus vivendi caracteriza-
se por uma espcie de atraso no processo de realizao do
movimento. Trata-se de um atraso sui generis, feito de tentativas,
de ensaios mais ou menos frutferos de adaptao de imagens ao
esquema e do esquema s imagens, e no qual o sentimento de
esforo pode melhor ser expresso. Seja numa evoluo corporal, seja
numa evoluo intelectual, em geral, quando muitas imagens
diferentes esto em jogo, porque nenhuma delas satisfaz
inteiramente s condies do esquema, o que faz com que este
tenha de modificar-se por si mesmo para obter o desenvolvimento
em imagens. Em parte alguma esse jogo to visvel quanto no
esforo de inveno. Nele h um sentimento ntido de uma forma em
organizao, uma forma varivel (no fixa nem pr-determinada),
porm anterior (e no pr-existente) aos elementos que devem seorganizar; h ainda uma concorrncia entre esses elementos que
devem melhor se adaptar sugesto do esquema; por fim, h um
equilbrio no caso de a criao se realizar , que significa adaptao
recproca entre forma e matria. Assim para o esforo de
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34inveno, tomado em alguns segundos, ou que exija anos26. Ele ,
sobretudo, processo de maturao, evoluo, realizao material,
construo, elaborao temporal. Temporalidade essencialmente
musical.
I I I .
A ligao dos elementos no tempo. essa a msica que soa ao
ouvido criador27. Uma msica no s para os ouvidos, mas de e para
todos os sentidos. Ou, para ser mais precisa, uma imagem sonora
que, semelhana de uma msica propriamente dita, que liga as
notas e seus sons numa melodia, constitui-se numa espcie deligao interior dos elementos envolvidos entre si e, ao mesmo
tempo, nos meios pelos quais esses elementos daro forma unidade
criada. Pode-se dizer que, da perspectiva bergsoniana, as leis da
msica revelam em alguma medida o desenrolar do pensamento, o
qual no se reduz a uma racionalidade estrita, mas alcana a
dimenso especificamente humana da temporalidade da conscincia.
A msica nos d o prprio tempo, pois origem, emoo original,
realidade do puro devir, e, ao mesmo tempo, nos d os meios pelos
quais apreendemos essa realidade essencialmente temporal.
26 ES, p. 952-953.27 A arte do escritor semelhante arte do msico; mas no acreditemos que amsica de que se trata aqui seja dirigida simplesmente ao ouvido, como se imaginaordinariamente. Um ouvido estrangeiro, por mais habituado que esteja msica,no far diferena entre a prosa francesa que achamos musical e a que no o ,entre o que est perfeitamente escrito em francs e o que est apenasaproximativamente: prova evidente de que se trata de coisa totalmente diferentede uma harmonia material de sons. Na realidade, a arte do escritor consistesobretudo em nos fazer esquecer que ele emprega palavras. A harmonia que elebusca uma certa correspondncia entre as idas e vindas de seu esprito e as deseu discurso (...). O ritmo da palavra no tem, pois, outro objetivo alm dereproduzir o ritmo do pensamento; e o que pode ser o ritmo do pensamento senoaquele de movimentos nascentes, apenas conscientes, que o acompanham?(BERGSON, Oeuvres, ES, p. 849).
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35O que torna a msica paradigmtica para o bergsonismo ,
sobretudo, o seu carter sugestivo. Sugesto se ope aqui
representao. E, neste ponto em especial, a msica que aproxima
Bergson das artes de seu tempo. Como acontece em relao, por
exemplo, msica de Debussy, ou msica da durao, nas palavrasdo filsofo. Um dos aspectos originais deste artista que talvez mais o
aproxime da filosofia bergsoniana e que aqui mais nos interessa
ressaltar est no modo de composio com o qual trouxe tona
uma nova concepo de temporalidade narrativa: em que a
descoberta de acontecimentos sonoros, ou de segmentos mais
antigos, obriga a uma constante ateno, formulada por uma
conscincia participante
28
. Em termos gerais, contrariamente aosprocedimentos dos msicos que o antecederam mais proximamente
(clssicos e romnticos, por exemplo), que escolhiam um tema
especfico e o desenvolviam no decorrer da pea, a msica de
Debussy perseguia, pode-se dizer, intenes musicais feitas
sobretudo de materiais sonoros timbres variados, escalas, gamas
de tons que poderiam aparecer e desaparecer sem buscar qualquer
desenvolvimento; ou poderiam hesitar e se voltar algumas vezes
sobre si mesmos antes mesmo de se desenvolverem, fazendo com
que o tema ou a idia principal da obra passasse a ter durao
efmera, isto , um desenvolvimento no linear ao longo do discurso
musical. Discurso no linear, contudo expressivo e, dada sua
imprevisibilidade, imprprio a uma elaborao lgica maneira
ortodoxa. Em Debussy, a msica um afeto imaterial como que
encarregado de penetrar no eu interior daquele que o escuta. A
hipnose advm por meio de um simples esquema sonoro29
. ParaBergson, os processos artsticos possuem, ainda que sob uma forma
mais sutil, mais espiritualizada, as caractersticas mesmas dos
processos pelos quais normalmente se obtm o estado de hipnose. A
28 KREMER, J-F., Les Prludes pour piano de Debussy en correspondance avec laRecherche du Temp Perdu de Marcel Proust, Paris, Kim, 1996, p. 80.29 KREMER, J-F., obra citada, p. 62.
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36arte precisa primeiramente nos desligar de nossos hbitos
perceptivos, j que estes, como vimos acima, constituem-se num
verdadeiro empecilho para a percepo de uma novidade, de uma
originalidade. A qual, por sua vez, no nos pode ser dada, mas
unicamente recriada em ns, a partir de um esforo prprio que temcomo ponto de partida uma imagem no plenamente definida, um
efeito, um contorno enfim, sugestivos. Como numa composio de
Debussy, na msica, declara nosso filsofo, o ritmo e o compasso
suspendem a circulao normal das nossas sensaes e idias
fazendo oscilar a nossa ateno entre pontos fixos (...). Se os sons
musicais agem mais poderosamente sobre ns do que os da natureza
porque a natureza se limita e exprimir sentimentos, ao passo que amsica no-los sugere30. prprio de uma arte particularmente
sugestiva imprimir sentimentos, muito mais do que express-los,
represent-los por meio de sons ou palavras. Melhor dizendo,
sugestiva a arte que, ao se expressar, visa imprimir: um processo
antes de tudo, processo de auto-realizao para uma conscincia
participativa, movimento de organizao interna, o qual, no caso do
escritor, consiste sobretudo em nos fazer esquecer que emprega
palavras, e por meio do qual o artista, semelhana do msico,
busca certa correspondncia entre as idas e vindas de seu esprito e
de seu discurso.
IV.
de fundamental importncia, no nosso entender, apontar a
pertinncia histrica da compreenso musical bergsoniana, sobretudoporque, como sublinha o prprio Bergson, esta se origina menos de
uma hiptese do que de uma experincia. Contudo, no se pode
deixar de ressaltar a especificidade dessa compreenso musical do
ponto de vista epistemolgico: no plano terico Bergson procura
30 DI, p. 14.
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37dissociar a msica como fato histrico (circunscrita, portanto, a um
tempo e lugar especficos) da msica como fenmeno temporal
universal31, visando lanar a discusso ao mago da questo do
impulso criador. Nas artes particulares, verdade, mas no s ali:
Criao significa emoo. No se trata somente da literatura e daarte. Sabemos o que uma descoberta cientfica implica de
concentrao e de esforo. O gnio foi definido como longa pacincia.
(...) (a emoo) que impele a inteligncia para frente, apesar dos
obstculos. Ela sobretudo que vivifica, ou antes, que vitaliza, os
elementos intelectuais com os quais far corpo; junta a todo o
momento o que se poder organizar com eles, e obtm finalmente do
enunciado do problema que ele se expanda em soluo
32
.
Uma tal emoo diz respeito no sensao fsica e seu
equivalente psicolgico. A emoo criadora em nada se assemelha
emoo comum, isto , s afeces resultantes de sensaes e de
associaes de idias, e no se reduz, como estas, acrescenta nosso
filsofo, transposio psicolgica de uma excitao fsica. Para
Bergson, h uma emoo cuja origem no se encontra no corpo
fsico, como uma afeco corporal, mas diz respeito diretamente ao
esprito. Diz respeito antes ao contato com a pura temporalidade, que
durao, com a evoluo do pensamento em harmonia com o
prprio movimento propulsor da vida. Sobre esses dois tipos de
emoo, diz-se ainda do primeiro tipo, ou seja, sobre a emoo
comum, que infra-intelectual, consecutiva a uma idia ou imagem
representada; em relao a ela o estado sensvel resulta
precisamente de um estado intelectual que nada lhe deve, que sebasta a si mesmo e que, se lhe sofrer o efeito por ressonncia, perde
dele mais do que recebe. a agitao da sensibilidade pela
representao que nele desemboca; dela que em geral se ocupam
31 Cf. CAPOGRECO, N., IN: Henri Bergson : esprit et langage, Sprimont, PierreMardaga, 2001.32 DS, p. 1013.
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38os psiclogos, nela que se pensa quando se contrasta a
sensibilidade com a inteligncia ou quando se faz da emoo uma
vago reflexo da representao. Enquanto que sobre a emoo
criadora chamar-se-ia de supra-intelectual, se a expresso no
evocasse imediatamente, e exclusivamente, a idia de certasuperioridade de valor; trata-se, isto sim, de certa anterioridade no
tempo, e da relao daquilo que engendra com o que engendrado.
De fato, s a emoo do segundo gnero pode tornar-se geradora de
idias33. Neste sentido, as idias de emoo e percepo, em
Bergson, esclarecem uma a outra, na medida que esta ltima
encarada, antes de tudo, no seu sentido esttico, isto , como
simpatia: insero de uma personalidade (singularidade) nomovimento vital (totalidade) e, por conseguinte, ocasio de revelao
isto , de realizao em atos dessa natureza no mundo.
Entendida dessa maneira, e oposto mesmo ao que um
julgamento comum poderia estabelecer, no a percepo que
provoca a emoo, que determina ou seleciona as lembranas, no
ela, enfim, responsvel por suscitar a emoo. Tudo se passa de
modo inverso: a emoo que configura o essencial da percepo.
Do mesmo modo, no a viso ou audio, por exemplo, que nos
fazem buscar uma lembrana semelhante que propiciem o
reconhecimento do visto e do ouvido, mas a verdade que a
lembrana que nos faz ver e ouvir; e que a percepo seria incapaz,
por si s, de evocar a lembrana que a ela se assemelha, j que para
isso seria preciso que ela j tivesse tomado forma e fosse
suficientemente completa; ora, ela apenas torna-se percepocompleta e adquire forma distinta por meio da prpria lembrana, a
qual se insinua nela e lhe fornece a maior parte de sua matria34.
Assim, e para recuperarmos um dos exemplos de relao entre
33 DS, p. 1012.34 ES, p. 944.
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39percepo e lembrana mais significativos da histria da literatura,
no o gosto da madeleine que traz a infncia de Combray para
Marcel, mas a infncia perdida, isto , esquecida, guardada no
subsolo da conscincia, que se coloca no gosto da madeleine. Dito
de outro modo, do ponto de vista bergsoniano, a sensao no caso,o gosto surge para o esprito do romancista como uma ocasio
especial, nica, singular e, preciso que se diga, que poderia
nunca vir a surgir a qual seu inconsciente, sua memria integral, o
eu temporal, verdadeiro (ou verdadeiramente vivo), no apenas
encontrou, mas, num sentido mais preciso, criou para se manifestar.
Torna-se assim perfeitamente clara e compreensiva a felicidade
alegada pelo escritor ao perceber esse momento nico, em que sepode sentir verdadeiramente a vida35.
Momento que, tambm do ponto de vista bergsoniano, no
possui nada de contemplativo, isto , de passividade, mas, ao
contrrio, s se completa verdadeiramente numa existncia, numa
elaborao formal (forma que ao mesmo tempo contedo, porque,
como vimos, j no se trata mais de representaes, smbolos
estticos que visam transportar para o plano da imobilidade o
movente, mas um movimentar-se que , acima de tudo, passagem,
transformao). No caso do escritor, essa criao se realiza como
obra literria36. por meio desta que sua experincia d-se
realmente a conhecer: antes de tudo e principalmente, a si mesmo.
De todo modo, e para alm do mbito artstico, o eu profundo, o eu
das profundezas de ns mesmos, nos diz Bergson, est sempre
aguardando uma ocasio (geralmente rara, j que a maior parte do35 Assim, o que acabava de deleitar o ser trs ou quatro vezes suscitado em mimtalvez fossem mesmo fragmentos de existncia subtrados ao tempo, mas essapercepo, embora de eternidade era fugidia. E no obstante eu sentia como onico fecundo e verdadeiro o prazer que ela me concedera em raros intervalos deminha vida. (Proust, M., O tempo redescoberto, So Paulo, Globo, p.155) grifonosso.36 Esse meio que se me afigurava o nico, que era seno a feitura de uma obra dearte? (Proust, M., obra citada, p. 158).
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41instrumentais e em si desprovidos de significao39, como tambm
precisa ser entendido a partir do contraste entre duas de suas
instncias, a saber, a do conhecimento abstrato (contemplao) e a
da emoo criadora (intuio). A significao verdadeira s pode
advir como resultado de uma emoo; no o mesmo quedecodificao simblica e no se d a partir de uma representao
pr-existente. Emoo que implica lanar-se na pura mobilidade e
que por sua vez est relacionada muito mais vontade do que
razo. Assim acontece em relao s formas de arte e suas poticas,
filosofia e seu mtodo, e em relao s mximas morais: aquelas
oriundas de uma emoo original (causa e no efeito das
representaes) se impem a partir de um impulso determinado, umaorientao, no de uma determinao racional. Isto equivale dizer
que o Conhecimento pressupe, necessariamente, a Experincia. Em
vo se alegar que esse salto adiante no sups atrs de si nenhum
esforo criador, que no exista aqui nenhuma inveno comparvel
quela do artista. Isso seria esquecer que a maior parte das grandes
reformas alcanadas pareceram em princpio irrealizveis, e que o
eram de fato. Elas no poderiam se realizar seno numa sociedade
cujo estado de alma fosse j aqueles que elas deveriam introduzir
para sua realizao; mas existia ali um crculo do qual no se sairia
se uma ou vrias almas privilegiadas, tendo dilatadas em si a alma
social, no tivessem rompido o crculo levando atrs de si a
sociedade. Ora, esse o milagre mesmo da criao artstica. Uma
obra genial que comea mesmo por desconcertar, poder criar pouco
a pouco unicamente por sua presena uma concepo de arte e uma
atmosfera artstica que permitam compreend-la; ela ento se39 O interesse, que seja mesmo o do cientista pelo seu problema, no existe partedo trabalho intelectual, ou seja, no h como explicar que um interesse isolado dainteligncia possa captar sozinho os elementos necessrios para o saber emquesto e em seguida conduzi-los de volta a ela para que esta os organize econstitua, por fim, sua descoberta. O que se afirma que uma emoo muitoparticular que d o nimo, que vivifica, vitaliza, os dados que a prpriainteligncia apreendeu, ou seja, que estiveram todo o tempo com ela e no foradela, e com os quais criar as solues para os problemas em questo.
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42tornar genial retrospectivamente: do contrrio permaneceria o que
era no comeo, simplesmente desconcertante40.
Num ato menos refletido poder-se-ia mesmo supor e muitos
adversrios de Bergson j o escreveram que a intuio bergsonianaestivesse no plano da contemplao. Mas, para Bergson, na esfera da
contemplao que se encontram justamente a atividade puramente
racional, as idias e os conceitos fixos! Contemplao sinnimo de
imobilidade, espcie de torpor e encantamento pelas idias, enquanto
que a intuio bergsoniana justamente o colocar-se em movimento,
criao.
Voltamos, assim, msica. Esta, entendida ento como
produo intencional do tempo, d sentido atividade intelectual
humana, uma vez que remonta, intrinsecamente, sua gnese e
sua prpria inteligibilidade, em seus diversos graus de complexidade.
Como vimos dizendo at aqui, em meio a essa reflexo no s a
concepo de arte de Bergson que est em pauta, mas tambm, e
principalmente, a sua prpria concepo de filosofia. A ao criadora
deve estar na base de todo conhecimento41. O que no significa
negar pura e simplesmente a racionalidade operante do indivduo,
tampouco de retomar o tema da criao pelo outro extremo, de um
ocultismo ou intuicionismo mstico. Em Bergson, a msica coincide
com o fenmeno da temporalidade, que duracional, ao mesmo
tempo em que situa o plano metodolgico de acesso a ela; afasta a
investigao da esfera mstica e, ao mesmo tempo, das armadilhas
de um racionalismo estreito, fazendo-a erguer-se sobre o plano daexperincia efetiva.
40 DS, p. 1038.41 Freqentemente sucumbimos iluso de que o principal discorrer sobre ascoisas e que as conhecemos suficientemente quando sabemos falar delas. Mas sse compreende, s se conhece o que se pode em alguma medida reinventar. (PM,p. 1327) grifo nosso.
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V.
Repudiamos, pois, a facilidade. Recomendamos uma certa
maneira difcil de pensar. Prezamos acima de tudo o esforo. Comoalguns puderam se enganar? No diremos nada dos que queriam que
nossa intuio fosse instinto ou sentimento. Nenhuma linha do que
escrevemos se presta a tal interpretao. Em tudo o que escrevemos
h a afirmao contrria: nossa intuio reflexo. (...) Tenso,
concentrao, tais so as palavras pelas quais caracterizamos um
mtodo que requer do esprito, para cada novo problema, um esforo
inteiramente novo
42
.
Vencer, primeiramente, a resistncia da matria. No no
sentido de transcend-la, mas antes, no sentido de superar os velhos
hbitos ligados por sua vez, s necessidades ou s contingncias da
vida social em torno dos quais essa matria vem primeiramente, e
naturalmente, associar-se. Ultrapassar as imagens e formas rgidas
que se interpem entre o indivduo e sua conscincia. Em favor de
uma temporalidade musical Bergson recusa a dimenso esttica
do pensamento, privilegiando o contato, a experincia qualitativa
que, a rigor, no pode ser transposta ou traduzida pela linguagem
comum. Tampouco pela linguagem conceitual. Os conceitos so
exteriores uns aos outros, como se fossem objetos no espao. E tm
a mesma estabilidade que os objetos, sobre cujo modelo foram
criados. (...) so elementos mais leves, mais difanos, mais fceis de
manejar pela inteligncia do que a imagem pura e simples das coisasconcretas; com efeito, j no so a prpria percepo das coisas,
mas a representao do ato pelo qual a inteligncia se fixa sobre
elas. J no so portanto imagens, mas smbolos43. A via de
42 PM, p. 1328-1329.43 EC, p. 631.
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44expresso filosfica, em Bergson, a via musical. E isto a aproxima
muito da literatura: aqui a arte da escrita e o discurso filosfico
obedecem a um mesmo esquema expressivo, coincidente, por sua
vez, com o esquema fundador da obra. Se a ao criadora
conhecimento imprescindvel que o pensamento que o realiza sejacriador.
Como se disse anteriormente44, ainda que se considere
possvel, a msica no se constitui para Bergson num meio de
substituio pura e simples da frmula escrita pela musical. A msica
antes reveladora de uma individualidade, de uma singularidade, de
uma interioridade em si mesma irredutvel a uma racionalidade lgicae vazia. A durao no um conceito, ou uma idia, uma construo
abstrata; a realidade temporal no est nos instantneos dados ao
longo de um deslocamento, mas na prpria mobilidade. Que, por
princpio, no pode ser dada, representada, dita, recomendada. A
linguagem precisa fixar os elementos, e a representao de um
movimento justamente imobilidade. A apreenso do tempo s pode
se dar de maneira temporal e, portanto, individual em meio ao
movimentar-se de uma conscincia , como percepo polifnica
dos estados passados (memria) em vias de expanso e de
desenvolvimento nos estados presentes. No caso da escrita, o
escritor precisa jogar com os smbolos da linguagem, relacionando-os
entre si no tempo, fazendo com que se interpenetrem e se
desenvolvam a partir da sucesso dos acontecimentos, ao invs de
deixar, por um lado, seguirem a tendncia espontnea da linguagem,
que privilegia o encadeamento lgico e a exatido, ou, por outro,sucumbirem heteronomia de uma legislao formal e restritiva. o
movimento criador, impresso na forma criada, que o leitor dever
recuperar e, em certa medida, refazer por si prprio. Ele coincidir
44 Mais precisamente, no segundo captulo do nosso primeiro trabalho sobre aquesto esttica em Bergson.
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45com o estilo do escritor e, por meio deste, ser levado a adotar uma
certa posio, no habitual e ordinria, em relao ao que v, ao que
sente, ao que pensa.
Em termos bergsonianos, tanto para a filosofia quanto para aliteratura, o estilo no dever opor resistncia, pois a virtude de uma
obra est precisamente em colocar seu leitor em contato com a
experincia que a promoveu, no propriamente com os smbolos que
pretensamente a representariam. O ritmo desempenha, neste
sentido, um papel fundamental. ele o responsvel por permitir que
o leitor tome contato com o pensamento do escritor antes mesmo
que as palavras venham dar expresso cor e nuance. O ritmo,segundo Bergson, esboa o sentido da frase verdadeiramente
escrita. Da a recomendao de que uma leitura em voz alta venha
no incio do aprendizado. Como professor no Collge de France
Bergson chegou a colocar em prtica tal procedimento, como declara
numa nota da Introduo a La Pense et le Mouvant: Nesta aula
havamos tomado como exemplo uma pgina ou duas do Discurso do
Mtodo, e tentamos mostrar como as idas e vindas do pensamento
de Descartes, cada uma com direo determinada, passam do
esprito de Descartes para o nosso somente pelo efeito do ritmo, tal
como a pontuao o indica, tal como indica sobretudo uma leitura
correta em voz alta45. Um bom leitor, neste sentido, , como mostra
o mestre, um bom imitador. Ou, em termos bergsonianos, um
perfeito recriador. A leitura em voz alta desempenha aqui o papel da
apreenso sinttica do sentido por meio de uma estrutura rtmica que
deve anteceder a anlise semntica. Assim, o movimento que oesprito realiza durante a leitura de uma obra verdadeiramente
escrita dever ser, ao fim e ao cabo, um movimento na direo
contrria marcha habitual da inteligncia, a partir da qual, ressalta
Bergson, pensar consiste em ir dos conceitos s coisas e no o
45 PM, p. 1327.
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46contrrio. Assim como literatura, filosofia cabe inverter a marcha
habitual do pensamento: Ou no h filosofia possvel e todo
conhecimento das coisas um conhecimento prtico orientado pelas
vantagens que podemos tirar delas, ou filosofar consiste em se
colocar no prprio objeto por um esforo de intuio. (...) A anliseopera sobre o imvel enquanto a intuio se coloca na mobilidade ou,
o que a mesma coisa, na durao. (...) Da intuio podemos passar
anlise, mas no da anlise intuio46.
Em Bergson, arte e filosofia caminham juntas. Comunicam-se,
pois, na intuio, que a base delas em comum. Contudo, em termos
de realizao, a intuio, em arte, obra, em filosofia, metafsica.No , pois, linguagem conceitual que o filsofo deve
primeiramente aderir, no entanto, e ainda que recorra a imagens e
metforas, no maneira idntica a de um poeta ou romancista
que desenvolve seu discurso. As imagens e metforas, para o
filsofo, possuem funo distinta. Se, para o poeta, elas constituem,
como vimos, o efeito que norteia a produo da obra, para o filsofo
elas so muito mais um meio do qual no pode prescindir para
alcanar o pensamento. Se na linguagem organiza-se um corpo sem
o qual no h poesia ou romance, a fluidez do discurso filosfico em
certo sentido disperso. No caso bergsoniano, o discurso depende
fundamentalmente de uma diversificao no modo de expresso, ou
melhor, de uma diversidade expressiva. Nesta filosofia, o movimento
contnuo; como diz Herch, o raciocnio deve ser religado pelas
constataes empricas (entenda-se conhecimentos cientficos,
experincia esttica, etc.), as constataes empricas pelasmetforas, as metforas por outros raciocnios ou por outras
metforas, e assim por diante. Tal estilo deve ser fcil, ao menos
aparentemente, pois ele tem de promover o percurso ao invs do
objeto, impedindo a parada ou a acomodao do pensamento num
46 PM, 1411-1413.
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47ponto fixo. preciso, enfim, que por meio dele abram-se os caminhos
de um conhecimento que s pode ser autoconhecimento, isto , que
apenas a conscincia prpria pode completar, em si mesma, por meio
de um esforo prprio. A claridade, ento, no ser somente uma
qualidade do estilo e um resultado, mas um meio de expresso47.
preciso que a metafsica ultrapasse os conceitos e os hbitos
de pensamentos que os promovem e nos quais eles se enrazam. No
se trata, insistimos uma vez mais, de neg-los, mas preciso vencer
tudo aquilo que o oferece resistncia ao pensamento. Porque, ento,
no se trata mais de reproduzir os mecanismos de um pensamento
constitudo, remodelar suas formas e desenvolver novos arranjospara o que j existe; mas de encontrar os verdadeiros problemas,
isto , de recoloc-los, ou ainda, de enunci-los: Enunciar um
problema no somente descobrir, inventar. A descoberta
relaciona-se ao que j existe, atual ou virtualmente; certamente ela
viria cedo ou tarde. A inveno doa o ser ao que no era, ela poderia
no vir jamais48. O pensamento s ser plenamente compreendido
no momento em que os obstculos no lhe oferecerem mais
resistncia; em contrapartida, pode-se dizer que ele no pode se
realizar seno como compreenso dessa superao. Em certo sentido,
como a audio de si prprio. Para o esprito encontrar o prprio
esprito preciso que haja obstculos, j que por meio da
resistncia que este oferece que ele se d a conhecer. O
pensamento que apenas pensamento, a obra de arte que apenas
concebida, o poema apenas sonhado, no custam muito; a
realizao material do poema em palavras, da concepo artsticanum quadro ou numa esttua que demandam esforo. O esforo
penoso, mas tambm precioso, mais precioso do que a obra que
resulta dele, porque graas a ele, tiramos de ns mais do que
47 Cf. Herch, in : Henri Bergson Essais et Tmoignages, Neuchatel, La Baconnire,1943, p. 218.48 PM, p. 1293.
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48tnhamos, elevamo-nos acima de ns mesmos. Ora, este esforo no
seria possvel sem a matria: pela resistncia que ela ope e pela
docilidade a que podemos conduzi-la, ela ao mesmo tempo
obstculo, instrumento e estmulo; ela experimenta nossa fora,
conserva-lhe a marca e provoca a intensificao49.
Tal como os momentos de pura liberdade, esses esforos da
filosofia em favor do pensamento, essas inverses de movimento, so
raros. Cedo ou tarde o pensamento buscar a facilidade, deixar
levar-se pela sua tendncia reproduo; cedo ou tarde, como
ressalta Thibaudet, nossas idias pensaro por ns, e o corpo do
pensamento ser tomado ento pelo automatismo que ele prpriocriou. Uma vigilncia constante pode, contudo, diferenciar o reino dos
hbitos, retardar o automatismo e manter o controle sobre essas
idias que tendem sempre a pensar por ns50. Estender logicamente
uma concluso, aplic-la a outros objetos sem ter realmente alargado
o crculo de suas investigaes, uma inclinao natural do esprito
humano, mas qual preciso no ceder nunca 51. A filosofia de
Bergson nem em seu fundo, nem em sua forma, pode ser concebida
como um monumentum aere perennius. Ela antes um gnero
do qual as diversas artes seriam as espcies, como diz o filsofo,
mas na medida em que objeto ela se apaga e quer se apagar:
nunca nos empenhamos em escrever um livro.
x
49 ES, P. 831-832.50 Thibaudet, Le Bergsonisme, 2 vol., Paris, NRF, 1923 , p. 177.51 PM, 1330.
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Trata-se de compreender que a
distino entre a durao e o espao no somente uma distino terica, mas que elatem tambm, de pronto, um aporte prtico,ou ainda que intervm em nossa prpria vida.Se ela remete pois a dois sentidos da vida,no como duas entradas num dicionrio!Nem apenas como a um duplo fundamento,biolgico ou metafsico, em princpio, paracada um de ns, como dois modos de vida ouduas maneiras de viver, como se a filosofia deBergson reencontrasse de pronto a tarefa
mais antiga da filosofia, que no a dedistinguir conceitos, mas condutas, noapenas a de pensar, mas a de intervir navida, para reform-la ou transform-la.
Frdric Worms
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52seria possvel alcanar a histria pelos caminhos do materialismo
dialtico.
I .A noo de Histria, do ponto de vista da teoria crtica, no
pode existir desvinculada da idia de felicidade. A questo, contudo,
a de buscar na razo da prpria histria52, em primeiro lugar, qual
felicidade ela promete ou vem prometendo; em segundo, o que ela
tem oferecido em troca do que prometera; em terceiro, o porqu
deste descompasso. Em outros termos, cabe reinterrogar a razo
para que ela cumpra suas promessas no concretizadas, tudo o queficou a dever s suas prprias esperanas: quanto ao consumo no
futuro, o que assunto para o pensamento crtico, no existem tais
exemplos [como o do manejo dos sinais matemticos]. (...) Desta
coincidncia enigmtica entre o pensamento e o ser, entre
entendimento e sensibilidade, entre necessidades humanas e suas
satisfaes dentro da economia catica atual, coincidncia que
aparenta ser acidental na poca burguesa, vir a ser em pocas
futuras a relao entre a inteno racional e a realizao53. Como
ressalta Olgria Matos, o materialismo revisitado da teoria crtica, s
pode significar uma considerao do singular e a redeno das
geraes que passaram pela histria.
52 A ao conjunta dos homens em sociedade o modo de existncia de suarazo; assim utilizam suas foras e confirmam suas essncias. Ao mesmo tempo,esse processo, como seus resultados, estranho a eles prprios; parece-lhes, comtodo o seu desperdcio de fora de trabalho e vida humana, com seus estados deguerra e toda misria absurda, uma fora imutvel da natureza, um destino sobre-humano. (...) A problemtica no solucionada entre atividade e passividade, entreo a priori e o dado sensvel, entre filosofia e psicologia, no por isso umainsufucincia subjetiva, mas, ao contrrio, uma insuficincia necessariamentecondicionada. (Horkheimer, M., Teoria tradicional e teoria crtica, in Col. OsPensadores, vol. XLVIII, So Paulo, Abril, 1975, p. 136)53 Horkheimer, M., obra citada, p. 145.
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53Mas como reinterrogar a histria? Ora, para os
frankfurtianos, no pode haver cincia, no sentido positivo, da
histria; isto , um conhecimento neutro da vida em sociedade capaz
de controlar e determinar os acontecimentos. H, contudo, uma
racionalidade possvel, uma racionalidade capaz de nos inserir nascontingncias das coisas, na coincidncia enigmtica da qual partir
a relao entre a inteno racional e a realizao. E um dos
momentos dessa racionalidade o da memria. A isto sobretudo,
como afirma Olgria, se liga o inteiramente outro de Horkheimer, a
Grande Recusa de Marcuse, a dialtica em suspenso de Adorno e
o messianismo de Benjamin. O inteiramente outro a memria
da dor como condio de possibilidade de sua supresso, pois onico tesouro que a histria no pode arrancar ao homem sem o seu
consentimento: devemos nos ligar pela nostalgia do que acontece no
mundo, o horror e a injustia no so a ltima palavra, h um
outro54. Esquecer esquecer o que foi, mas tambm o que pode
ser. Esquecer perdoar o que no seria perdoado se a justia e a
liberdade prevalecessem. Esse perdo reproduz as condies que
produzem a injustia e a escravido. (...) As feridas que se curam
com o tempo so tambm as que contm o veneno. Contra essa
rendio do tempo, o reinvestimento da recordao em seus direitos
uma das mais nobres tarefas do pensamento(...) O tempo perde
seu poder quando a recordao redime o passado55. H que
rememorar o passado para que a catstrofe no se repita, para que a
histria como em Walter Benjamin, a runa, a destruio no seja
tambm e ainda uma histria de repeties. Pois o Messias no vem
apenas como Salvador: ele vem como o Anticristo56
.
54 Matos, Olgria, Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo, So Paulo,Moderna, 1993, p.64.55 Marcuse, H., citado por Olgria Matos, em op.cit., p. 64.56 Benjamin, W., Tese VI, Sobre o Conceito de Histria, in Obras Escolhidas, vol.I, So Paulo, Brasiliense, 1985.
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54No contexto da teoria crtica, rememorar, ou seja, fazer o
necessrio resgate da histria, no significa to somente partir para a
reconstituio dos fatos histricos tal como eles simplesmente
aconteceram, isto , a partir de um ideal de neutralidade; significa,
ao contrrio, captar uma lembrana como ela figura num instante deperigo. Para o materialista histrico, trata-se de fixar uma imagem do
passado como ela inesperadamente se articula para o sujeito
histrico no momento de perigo57. Como ressalta Susan Buck-
Morss58, tratava-se, para Benjamin, de buscar contra-evidncias nos
registros histricos, a fim de produzir contra-imagens que, por sua
fora prpria, se impusessem contra a lgica proferida do progresso,
do seu descompasso entre desenvolvimento tecnolgico emelhoramento social e de sua promessa de felicidade terrena futura.
Contra-imagens como, por exemplo, a que Benjamin oferece em
contraste ao desenho que ganhou o prmio do concurso financiado
pela cidade de Paris, em 1931, para restaurar a Porte Maillot. Como
assinala Susan Buck-Morss, o projeto vencedor foi o de uma
escultura alada gigante, um anjo da vitria, celebrando a histria
dos triunfos militares franceses a ser erigida no Rond Point de la
Dfense. Uma figura clssica, ela olha o futuro com calma confiana.
Sua grandiosidade monumental diminui a multido que sente assim
sua insignificncia e sua dependncia infantil de foras maiores, dada
a escala csmica dos eventos mundiais e o destino das naes. O que
poderia ser mais diferente desse monumento ao progresso mtico do
que a pintura de Paul Klee Angelus Novus, em que Benjamin
encontra o Anjo da Histria personificado59, e que, em relao ao
espectador, retm as propores humanas?60
57 Benjamin, W., Tese VI, Sobre o Conceito de Histria, obra j citada.58 Buck-Morss, Susan, Dialtica do Olhar- Walter Benjamin e o projeto daspassagens, Belo Ho
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