Tese Izilda Cristina Johanson

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Izilda Cristina Johanson

    Pensamento e Inveno Bergson e a busca metdica do tempo perdido

    So Paulo 2008

  • Izilda Cristina Johanson

    Pensamento e Inveno Bergson e a busca metdica do tempo perdido

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutora em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Victor Knoll.

    So Paulo

    2008

  • Assim nos colocaramos no fluxo da vida interior, do qual a filosofia parecia apenas reter, freqentemente, no mais do que a camada superficial, congelada. O romancista e o moralista no tinham avanado, nessa direo, mais longe que o filsofo? Talvez; mas apenas parcialmente, sob a presso da necessidade, que haviam transposto o obstculo; nenhum deles se tinha proposto a ir metodicamente em busca do tempo perdido.

    Henri Bergson

  • Agradecimentos

    Agradeo ao prof. Victor Knoll, pelo apoio integral, inclusive nos

    momentos de decises importantes relativas trajetria investigativa e

    tambm acadmica, apoio, alis, que j vem sendo dado desde a

    graduao. Acredito sinceramente que t-lo tido como meu orientador foi

    uma das coisas mais positivas dessa trajetria.

    Obrigada secretaria do Departamento de Filosofia, particularmente

    Maria Helena Barbosa e Marie Mrcia Pedroso, por terem sido sempre

    to prestativas e atenciosas.

    Agradeo muito especialmente ao prof. Bento Prado Jr. (in

    memoriam), que incentivou e apoiou o meu trabalho, desde o incio, em

    vrios e decisivos momentos e de vrias maneiras, sempre com a

    generosidade, inteligncia e elegncia que lhe eram particulares. Fao um

    agradecimento tambm especial ao prof. Frdric Worms, pela recepo

    atenciosa e pelas "discutions", que influenciaram de maneira decisiva nos

    rumos que minha pesquisa acabou tomando durante e depois da

    temporada em Paris.

    Quero agradecer muito calorosamente minha famlia: a Ademir (in

    memoriam), Rosicler e Guilherme Johanson, pelo apoio e, sobretudo, a

    Gustavo e Mrgara Johanson, pelo "suporte" e, mais ainda, pela acolhida

    aconchegante nos momentos mais duros. Obrigada ao Bernardo Johanson

    Moreira, bravo e valente companheiro de muitas empreitadas inclusive

    as mais difceis! , obrigada pela proximidade e pelo carinho: voc

    mesmo e sempre imprescindvel.

    Aos bons amigos, s boas amigas, agradeo. Maria do Carmo

    Souza Freitas, a Carminha, pela compreenso e companheirismo, muitas

    vezes revelados em boas e s vezes fundamentais conversas. Patrcia

  • 5

    Faria, pelos eventos em famlia. s amigas e aos amigos de Maison e de

    Cit: Milena Fernandes Oliveira, Talita Felipe, Mari, Makarius e Carmi,

    por estarem sempre e carinhosamente por perto. famlia Oliveira

    Migliorin: Czar, Flvia, Diego e Elisa, a amizade e o apoio de vocs foi

    absolutamente fundamental. Taisa Palhares, pelo calor de uma antiga e

    slida amizade. Silene Torres Marques, pela costumeira gentileza e

    ateno. Ao Ivan Moreira e Paula Magalhes, pelo apoio e suporte nessa

    etapa final. Cllia Ferrari, pelo amparo. E Rita Paiva, pela

    oportunidade de construo de uma preciosa teia de idias e afetos sem

    os quais nenhum saber, filosfico ou no, faria sentido.

    Agradeo ao Denilson, pela longa histria de philia, no sentido mais

    puro e verdadeiro, em que o cultivo dos vincos do intelecto se d,

    sobretudo, pelo arado gneo do corao.

    Este trabalho de pesquisa recebeu financiamento da Capes, por

    meio de uma bolsa de doutorado de quatro anos, e outra de estgio de

    doutorado no exterior, o conhecido doutorado sanduche. A esta

    instituio eu agradeo.

  • RESUMO

    Johanson, Izilda. Pensamento e Inveno, Bergson e a busca metdica do tempo perdido. 2008. 142 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    A presente tese pretende investigar, no mbito do pensamento de Henri Bergson, a questo do impulso criador a partir de sua realizao como arte, mas no apenas ali, isto , na medida em que esse impulso se caracteriza como esforo de inveno, sua investigao dir respeito tambm aos possveis desdobramentos concernentes vida intelectual, moral e social. Sero examinados elementos que permitam discutir o tema da inveno noo que em Bergson se apresenta de maneira indissociada da discusso acerca da intuio a partir da relao entre percepo, esforo intelectual e criao. Mais precisamente, importa aprofundar o conhecimento a respeito do modo e das condies de possibilidade de insero dessa experincia criadora no mundo, isto , numa histria, como fazer. A potncia criadora, suas aes e suas obras devero, assim, ser examinadas luz de uma leitura bergsoniana que compreende a realidade da vida a partir de seus dois sentidos, a saber: o aberto e o fechado, ou, o que o mesmo, o esttico e o movente, o necessrio e o contingente, o biolgico e o metafsico, o da servido e, enfim, o da liberdade. O propsito dever ser, por fim, o de tirar as conseqncias filosficas dessas diferenas que se apresentam como a prpria realidade da vida.

    Palavras-chave: inveno, pensamento, intuio, arte, criao.

  • ABSTRACT

    Johanson, I., Thought and Invention, Bergson and the methodic search of the lost time. 2008. 142 f. Thesis (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. The present thesis intends to investigate, in the scope of Henri Bergsons thought, the issue of the creator impulse from its realization as art, but not only there, that is, while this impulse is characterized as invention effort, its inquiry will also deal with the possible unfolding pertaining to the intellectual, moral and social life. Elements that allow discussion of the theme invention will be examined - notion that in Bergson is presented as an attached manner to the debate on intuition - from the relationship between perception, intellectual effort and creation. In particular, it is important to deepen into the knowledge regarding the mode and the conditions of insertion possibility of this creator experience in the world, that is, in a history, how to make it. The creator power, its action and its masterpiece will be examined upon the light of a bergsonians reading that comprises the reality of life from its two directions: open and the closed one, or with the same meaning, the static and the moving one, the necessary and the contingent, the biological and the metaphysical, that of the servitude and, at last, that of the freedom. The purpose will be, finally, to draw the philosophical consequences of these differences that are shown as the reality of life itself.

    Key Words: invention, thought, intuition, art, creation.

  • SUMRIO

    Introduo 10

    Captulo I - Arte e Filosofia 20

    - Percepo, esforo intelectual e criao 22

    Captulo II - Os dois sentidos da vida 49

    - Natureza e histria 52

    - Os dois sentidos da vida 70

    Captulo III Entre o fechado e o aberto em arte 75

    - O esttico e o dinmico 77

    - Funo social da arte 85

    - Aporte metafsico da arte 101

    Captulo IV Intencionalidade e filosofia 117

    - Moral de presso e moral de aspirao 119

    - Inveno moral 122

    - Mstica e filosofia 126

    guisa de concluso 132

    Referncias Bibliogrficas 137

  • Lista de abreviaes

    As pginas indicadas nas citaes de Bergson correspondem s das Obras Completas, edio do Centenrio. As obras especficas s quais se referem sero assim abreviadas:

    DI Ensaio sobre os dados Imediatos da conscincia

    MM Matria e memria

    EC Evoluo criadora

    R O Riso

    ES Energia Espiritual

    DS Duas fontes da moral e da religio

    PM O pensamento e o movente

  • Introduo

    A discusso acerca da especificidade do objeto artstico sempre

    interessou filosofia. J em Plato se trava a discusso sobre o lugar

    da arte na cidade idealizada na Repblica; em Aristteles, temos o

    estudo sistematizado da tragdia; de l para c o lugar que a arte

    ocupa no meio em que se integram seres e fenmenos naturais e

    sociais tem se tornado objeto do interesse da filosofia. Neste sentido,

    vemos ao longo da histria da filosofia o surgimento paulatino de

    uma disciplina especfica voltada para a questo da arte, a esttica.

    Levando-se em conta os desdobramentos histricos da arte e

    tambm da prpria filosofia, no nos parece descabido questionarmo-

    nos sobre o sentido atual de uma disciplina de esttica, uma vez que

    as delimitaes entre arte e reflexo sobre o fenmeno artstico tm

    sido, sob certo ponto de vista, cada vez menos precisas.

    Entendemos, assim, que a discusso acerca da relao entre esttica

    e filosofia, arte e filosofia, arte e esttica, poderia muito bem se

    pautar, em princpio, pela seguinte questo: em que medida a arte

    interessa filosofia? Esta questo, por sua vez, implica ainda uma

    anterior, a saber: qual a especificidade do objeto de arte?

    a partir do artista que a obra se constitui e vem ao mundo

    como objeto nico e particular. Mas isso no significa que a obra seja

    prolongamento ou apndice do artista. No momento em que

    finalizada, surge como ser autnomo que sustenta a si prpria, que

    diz e provoca (idias, sensaes, reflexes, sentimentos) por si

    prpria. Constitui-se a partir de uma subjetividade j que nica e

    exclusiva em relao ao ato que a produziu, o qual, por seu turno,

    est ligado a um indivduo em particular , contudo guarda algo de

    objetivo, uma vez que, estando em meio aos demais objetos do

  • 11

    mundo, pode ser reconhecida como um outro objeto e,

    particularmente, um objeto que teria algo a nos dizer. Nesse

    sentido podemos dizer que a obra de arte apresentao ou

    reapresentao do mundo e da vida a partir do filtro, da

    personalidade, da histria pessoal, da memria, do olho, dos

    sentidos, enfim, do artista.

    Certamente no ser o caso de remontarmos aqui a discusso

    iniciada j na Antigidade, com Plato e Aristteles sobre se esse

    processo de recriao das coisas e dos seres se encaixa

    perfeitamente na noo de imitao: o artista copia a natureza, ou

    ele apenas procede como ela, criando, tal como ela o faz, seres e

    indivduos autnomos? Na poca atual em que a arte se encontra, em

    que uma infinidade de critrios tcnicos, tecnolgicos, ideolgicos,

    mercadolgicos, entre outros, foram incorporados a esse fenmeno o

    qual ela nomeia, torna-se difcil, seno invivel, estabelecer um nico

    critrio como fundamento para a discusso acerca da natureza da

    obra de arte, seja este imitao, metfora, representao,

    construo, desconstruo, etc. Mais relevante nos parece o fato de

    que, por mais problemtica, questionvel ou intangvel que possa ser

    a definio de arte nos tempos atuais, existe um tpico fundamental

    para a discusso acerca do fenmeno artstico que no pode ser

    descartado, sob pena de atentar contra a prpria inteligibilidade da

    arte enquanto fenmeno especfico: de alguma maneira existe algo

    que faz de um objeto comum, prosaico e cotidiano um objeto

    diferenciado, que tem algo a dizer ou promover por si prprio. Ora,

    dizer que no h, do ponto de vista terico, diferena entre um

    objeto comum e uma obra de arte simplesmente dizer que no h

    obra e, portanto, no haveria sentido falar sequer de uma arte que

    fale de uma no-arte, pois se algo fala sobre o que quer que seja,

    esse algo tem de possuir necessariamente uma especificidade.

  • 12

    Como dizamos acima, h que se considerar que um escritor,

    um poeta, recria a linguagem na medida que a utiliza para expressar

    algo que no est dado nela de uma vez por todas, algo de novo

    portanto, de inesperado e de insuspeitvel. O mesmo se pode dizer

    do msico em relao aos sons, ou o escultor em relao s formas e

    volumes, e assim por diante. A questo que se pe , pois, o que faz

    com que aquela idia original, relacionada experincia nica de um

    nico indivduo aquele que escolheu as palavras, ou os sons, ou

    as imagens, que as disps segundo uma construo muito prpria e

    obteve um resultado muito particular torne-se, a partir do trabalho

    desse indivduo, algo que poder ser experimentado e apreendido em

    si mesmo pelas demais pessoas, to diferentes umas das outras, com

    vises e percepes do mundo to dspares e variadas?

    A obra de arte, enquanto fenmeno, ou melhor, a experincia

    esttica enquanto criao de formas, idias, pensamentos, pode

    muito bem se apresentar aos olhos do filsofo como lugar privilegiado

    para a investigao acerca das condies de possibilidade de uma

    sntese entre objetividade e subjetividade, assim como de sua

    ocorrncia no plano da experincia efetiva. Assim, se a questo

    principal da disciplina de esttica diz respeito natureza e

    especificidade do objeto artstico, ento a passagem pela esttica

    poderia bem ser necessria filosofia que reconhecesse na arte um

    campo de investigao fecundo e preciso acerca do que possa vir a

    ser o Real.

    possvel identificar, numa perspectiva histrica, que medida

    que a filosofia reconhece a insuficincia da razo para reconciliar, no

    plano epistemolgico, subjetividade e objetividade (problema que se

    impe fortemente a partir da filosofia moderna com a ruptura radical

    entre sujeito e objeto), dirige tanto mais sua ateno para o potencial

    cognitivo da sensibilidade. A Esttica, no sentido de uma investigao

  • 13

    consistente acerca da sensibilidade e sua relao com o intelecto

    enquanto esta se d na experincia, isto , enquanto obra, viria ao

    encontro dessa filosofia que, diante do conhecimento do real, por um

    lado, reconhece os limites e a impotncia da razo (do entendimento,

    da inteligncia) e do pensamento racionalista e, por outro, no se

    abandona aos ceticismos ou aos irracionalismos pura e simplesmente.

    Talvez por essa razo mesma Kant tenha contribudo to forte e

    decisivamente para a constituio da disciplina de esttica, no

    obstante isto no estivesse provavelmente entre seus objetivos

    principais1. Pode-se dizer, de maneira geral, que a Crtica do Juzo

    refora a idia de uma certa racionalidade imanente sensibilidade,

    na medida que a prpria imprevisibilidade da expresso genial

    encarada por Kant, antes de tudo, como um princpio reorganizador

    (sentido do no-sentido, diria Lebrun) do entendimento, este sim

    figura central da Reflexo: exceo de algumas intuies felizes

    que nela se pode salientar, a 3 Crtica considerada como um

    balano da cultura do entendimento a obra de um Aufklrer e no

    de um homem de cultura (Gebildete), capaz de elevar-se acima do

    ponto de vista comum dos homens e que no teme seguir o caminho

    difcil que vai para o interior do ser humano, para encontrar o

    princpio de sua ao e de seu pensamento2. Assim, e tendo em

    mente a evoluo das investigaes acerca da subjetividade esttica3,

    ao propor as coisas nesses termos, a nfase que se d ainda na

    aposta (e, evidente, no caso kantiano no poderia ser de outro

    1 Cf. Lebrun, G., Kant e o Fim da Metafsica, So Paulo, Martins Fontes, em especial a segunda parte. 2 Idem, p. 560. 3 Compartilhamos da compreenso de que a concepo de uma esfera esttica autnoma no se d de uma vez por todas e simultaneamente ao nascimento oficial da disciplina de esttica, em meados do sculo XVIII, com Baungarten, ou mesmo com seu aprofundamento em Kant. (Cf. tambm Dumouchel, D., Kant et la Gense de la Subjectivit Esthtique, Paris, Vrin, 1999).

  • 14

    modo) de que um conhecimento vlido e verdadeiro tem de ser

    exclusivamente ou prioritariamente racional4.

    Da perspectiva de abordagem desta tese, bergsoniana por

    princpio, interessaria aprofundar essa ltima proposio, mas ento

    com os termos invertidos, ou seja, procurando aprofundar a reflexo

    sobre a busca de um mtodo adequado a uma sensibilidade

    cognoscente e uma razo em princpio coadjuvante do processo

    cognoscitivo. Pois em Bergson, o verdadeiro objeto da filosofia,

    dada sua natureza temporal e contnua, inacessvel inteligncia e

    razo pura, as quais so aptas a operar sobre o imvel, a fixidez e

    a partir de representaes, contudo no totalmente inacessvel ao

    pensamento humano.

    O propsito principal, inicialmente, era o de investigar, no

    mbito do pensamento de Henri Bergson, a legitimidade e as

    implicaes para o projeto filosfico bergsoniano da relao que sua

    doutrina estabelece entre arte e filosofia, obra de arte e mtodo

    filosfico, esttica e metafsica, a fim de constituir alguma reflexo

    sobre a possibilidade de um sentido mais profundo para a questo em

    torno de algo que acreditava poder denominar dimenso esttica do

    empirismo metafsico bergsoniano.

    O ponto de partida fora o trabalho desenvolvido ao longo do

    mestrado, no qual afirmava a existncia de uma esttica em

    Bergson5. Assim, se por um lado, eu encontrava a chave para

    4 Para mim, pobre filho da terra, no tenho nenhuma disposio para entender a lngua divina da razo intuitiva. Aquilo que podem me soletrar, a partir de conceitos comuns segundo a regra lgica, isso eu ainda posso alcanar (Kant, I., Carta Hamann, citado por Lebrun, G., obra citada, p. 556). 5 Ainda que no propriamente de direito, mas certamente de fato, j que todos os temas clssicos de uma esttica l se encontram e de modo intrnseco filosofia bergsoniana como um todo. Alm disso, a compreenso de Bergson sobre a natureza e o valor da arte em muito contribui, assim entendo, para a compreenso

  • 15

    compreender o lugar da percepo, tomada agora em sua acepo

    esttica, na constituio de um certo conhecimento filosfico, a

    saber, a Intuio bergsoniana e esse papel da percepo seria, no

    meu entender, o que sustentaria fundamentalmente a afirmao

    acerca da profunda afinidade entre arte e filosofia, esttica e

    metafsica em Bergson , por outro, acreditava estar no caminho da

    constituio de uma esttica de cunho metafsico que pudesse atuar

    num campo epistemolgico mais amplo, isto , para alm do universo

    das artes particulares.

    Em resumo, colocava-me muito prxima do caminho traado,

    por exemplo, por Denis Huisman quando, a propsito da pergunta

    sobre a existncia ou no de uma esttica bergsoniana, afirmara:

    "no existe, em Bergson, percepo esttica; h somente uma vasta

    esttica da percepo"6. Ou de F. Fabre-Luce de Gruson quando,

    envolvida com a mesma questo, declarara: "A percepo da arte a

    nossa prpria percepo"7. A compreenso aqui seria a de que, em

    relao filosofia bergsoniana, no haveria lugar para uma esttica

    ao lado de uma epistemologia e de uma metafsica, mas que "a

    epistemologia e a metafsica no seriam outra coisa que a esttica".

    Estabelecidos dessa maneira os termos da pesquisa, e sob a

    influncia de uma leitura mais detida das ltimas obras de Bergson

    (As duas fontes da moral e da religio, particularmente), uma

    questo se imps imediatamente, a qual, ao contrrio do que se

    poderia esperar, foi menos a de procurar saber se, seguindo por essa

    via inicial, estaria praticando certo reducionismo e seria a esta

    concluso que eu inevitavelmente chegaria em relao

    da arte de seu tempo, estando sua "esttica" em perfeita sintonia com a produo artstica contempornea a ela. 6 Huisman, D., Bergson et nous Actes du X Congrs des Socits de Philosophie de Langue Franaise - Bulletin de la socit franaise de philosophie, Paris: Armand Colin, 1959, p. 195. 7 Idem, p. 195.

  • 16

    compreenso da busca bergsoniana de constituio de uma

    metafsica que, acima de tudo, afasta-se das opes que

    tradicionalmente lhe oferecem o racionalismo e o idealismo, fincando

    seus fundamentos na experincia real e concreta (a qual pressupe,

    de fato, entre outras coisas e semelhana do que acontece na arte,

    o alargamento da percepo comum, assim como a constituio de

    um mtodo que seja simultneo constituio do prprio objeto que

    visa investigar), do que se esse seria mesmo um ponto de vista

    privilegiado para pensar o papel da arte e do pensamento que se

    constitui em torno dela em relao prpria filosofia bergsoniana. As

    leituras e essa nova linha de estudos adotada levaram-me

    compreenso de que a questo da afinidade, ou mesmo identidade

    existente entre intuio filosfica, intuio esttica e intuio mstica,

    remetem a um universo mais amplo do que o estritamente

    epistemolgico. Melhor dizendo, a intuio, na medida que se

    caracteriza - como pretendemos mostrar ao longo deste trabalho -,

    mais do que tudo, como processo, que toca o real em seus mais

    diversos graus, remete a um universo em que conhecer no se reduz

    "descoberta" de algo, mas pretende antes penetrar fundo na

    realidade da vida, que virtualidade e contingncia pura, e atualiz-

    la, ou seja, invent-la.

    E se ns, estudiosos e estudiosas, interessados e interessadas

    na filosofia bergsoniana, que nos propomos a discorrer ou explicar

    algo a respeito dessa filosofia somos levados a discorrer e explicar

    tambm a oposio entre intuio e inteligncia, sabemos muito bem

    que no podemos faz-lo recorrendo a um discurso e a conceitos

    simplesmente, a representaes e idias espacializantes por

    exemplo, as do tipo que procuram mostrar onde se opem, no ser

    humano, inteligncia e intuio. Porque sabemos que tanto num caso

    como noutro o processo que nos liga ao real que est em questo,

    seja essa realidade a da matria (a insero de nossa ao numa

  • 17

    prxis organizada) seja a do esprito (reencontro com a

    temporalidade absoluta, que pura mobilidade e devir). De modo

    que, em relao filosofia de Bergson, no nos possvel discorrer

    exatamente sobre o que se conhece, na melhor das hipteses talvez

    possamos dizer algo sobre esse processo de conhecimento - esta

    finalmente a razo principal que nos leva arte, investigao sobre

    a natureza e a experincia esttica.

    Contudo, mais do que dizer e se queremos mesmo saber algo

    sobre isso mais valioso ser certamente o nosso esforo para nos

    colocarmos o tanto quanto possvel em meio a esse processo de

    conhecimento. A partir de uma expresso de Bergson "no ouam o

    que eles dizem, vejam o que eles fazem" , recorrente em Duas

    fontes da moral e da religio8, Vladimir Janklvitch chama a ateno

    para esse propsito mais profundo da obra bergsoniana que, como

    diz, no exprime apenas o profundo vnculo do filsofo com a

    experincia vivida, significa primeiro e acima de tudo que "existem

    coisas que no so feitas para que se fale delas, mas feitas para que

    as faamos"9. So coisas, prossegue Janklvitch, as mais

    importantes e preciosas da vida, em meio as quais a palavra

    puramente expressiva parece secundria, pouco convincente,

    miseravelmente ineficaz. "Por oposio tica intelectualista,

    geradora de aporias vertiginosas, de fantasias e pseudoproblemas, a

    intuio, que ao mesmo tempo gnstica e drstica, no se define

    como simpatia e como engajamento? isto, engajar-se, e apenas

    isto! No fazer conferncia sobre engajamento, nem conjugar o

    verbo; nem engajar-se como os homens de letras, mas engajar-se

    para valer; por um ato imediato e primrio, por um ato efetivo e

    drstico, por um ato srio da pessoa total; no aderir sem muita

    8 Cf. DS, pp. 1001, 1096, 1114, 1131. 9 Janklvitch, Vladimir, Primeiras e ltimas pginas, Campinas, Papirus, 1995, p. 95.

  • 18

    convico, mas converter-se verdade apaixonadamente, isto , com

    a alma inteira, como em Plato os cativos libertos"10.

    Sendo por essa via tocada pela filosofia de Henri Bergson, parti

    para a reformulao da estrutura da tese, procurando dessa vez, por

    um lado, restringir basicamente a pesquisa ao mbito da filosofia

    bergsoniana (inicialmente pretendia buscar uma espcie de gnese

    da disciplina de esttica qual julgava estar relacionada a esttica

    bergsoniana) e, por outro, e a partir disso, ampliar a discusso sobre

    o papel da arte. Seguindo a trilha aberta pela prpria obra de

    Bergson, o trabalho de escritura pretender, em primeiro lugar, dar

    conta de uma discusso possvel sobre o impulso criador, em arte,

    mas no apenas ali, isto , na medida em que tambm esforo de

    inveno, sobre seus desdobramento em relao vida social,

    moral e religio. Em seguida, o propsito dever ser o de tirar as

    conseqncias filosficas dessas relaes (o lugar da filosofia) para,

    enfim, levar a pesquisa a termo.

    No primeiro captulo estaro em causa os elementos que

    permitem discutir o tema da inveno a partir da filosofia

    bergsoniana, ou, o que o mesmo, a intuio estudada a partir da

    relao (como composio e evoluo, no sentido mesmo musical)

    entre percepo, esforo intelectual e criao. No segundo captulo a

    discusso girar entorno do modo de insero dessa experincia

    criadora no mundo, isto , numa histria, do que seja uma

    experincia verdadeiramente histrica e sobre suas condies de

    possibilidade, que se d partir de um certo sentido da vida. Por fim,

    os dois sentidos da vida, a saber: o aberto e o fechado, ou, o que o

    mesmo, o esttico e o movente, o necessrio e o contingente, o

    biolgico e o metafsico, o da servido e, enfim, o da liberdade, sob o

    10 Janklvitch, Vladimir., op. cit., p. 97.

  • 19

    vis da arte e da experincia esttica sero o tema do terceiro

    captulo.

    Este ser o percurso, seus desdobramentos devem estar

    certamente ainda por se realizar. Fica aqui, contudo, o depoimento

    em forma de tese de algum que tanto se interessa pela experincia

    do pensamento e que julga ter aprendido com o exemplo de Henri

    Bergson, em cuja Filosofia as identidades entre pensamento e ao,

    realidade e mudana, mudana e felicidade so to exemplarmente

    reveladas.

  • 20

    CAPTULO I

    ARTE E FILOSOFIA

    Percepo, esforo intelectual e criao

  • 21

    A inteligncia um instrumento a

    servio de um esprito cuja espiritualidade

    est essencialmente em seu poder de

    inveno; se o sbio no inventa a verdade

    ele a descobre a golpes de invenes.

    Henri Gouhier

  • 22

    I.

    Em Filosofia da dana11, Paul Valry nos apresenta uma

    questo particularmente interessante em relao ao tema deste

    trabalho. Nesse ensaio, o autor menciona a dificuldade no apenas de

    falar, mas, sobretudo, de explicar algo do qual ele no teve e nem

    teria experincia integral: a dana. Como falar algo consistente e

    verdadeiramente proveitoso sobre a dana sendo filsofo e no

    bailarino, ou seja, no tendo a experincia de como se constitui ou se

    executa um passo de dana, as evolues corporais das pernas,

    braos, no tendo a idia de como se evolui, inclusive, no domnio

    tcnico dessa arte? Esta bem poderia ser a pergunta que algum de

    fora, um artista talvez, faria filosofia no momento em que esta se

    dispusesse a falar sobre a arte, ou como se costuma dizer, constituir

    uma Esttica e isto nos daria uma idia do quo eqidistantes

    podem estar artista e filsofo de algo comum que os una. Quando

    enfim, responde Valry, no se possui, para tratar dos prodgios que

    fazem as pernas, outra coisa que no os recursos de uma cabea,

    no encontramos salvao seno numa filosofia isto quer dizer que

    retomamos as coisas de muito longe com a esperana de fazer

    dissipar as dificuldades pela distncia.

    Esta resposta pode certamente se constituir no ponto central de

    uma discusso geral acerca da relao entre arte e filosofia, mas aqui

    neste estudo sobre a filosofia bergsoniana em particular ela ganha

    contornos mais precisos, que podem contribuir para o

    aprofundamento da nossa questo inicial sobre o conhecimento da

    realidade e a noo de criao. 11 Valry, P., Oeuvres, vol. 1, Paris, Gallimard, 1957.

  • 23

    Freqentemente a constituio da Esttica como disciplina

    filosfica se baseia fundamentalmente nessa aplicao, para utilizar

    as palavras de Valry, dos recursos de uma cabea s questes

    relativas experincia artstica. sabido que ao longo de sua obra

    Bergson no constituiu formalmente uma Esttica, no h nenhuma

    obra especialmente dedicada anlise de obras de arte e do

    fenmeno artstico em geral ou em particular. Certamente esta falta

    no seria a principal razo para se negar a possibilidade de uma

    teoria esttica do nosso filsofo, afinal, preciso que se diga, o fato

    de no haver obra especfica sobre o tema no inviabiliza o

    reconhecimento das condies de reflexo e a existncia mesma de

    uma reflexo em Bergson sobre a experincia artstica e a natureza

    da arte. Ainda assim, ou melhor, ainda que se dispusesse a tal

    empreitada, Bergson jamais poderia constituir uma reflexo sobre a

    arte nos moldes desta denunciada por Valry, esta a qual no restaria

    outra alternativa que no aplicar os recursos de uma cabea a algo

    do qual o corpo no tem nem pode ter experincia integral.

    Reconheamos que essa uma das principais caractersticas da

    Esttica tradicional, disciplina geralmente acoplada a um sistema

    filosfico particular, ligada e comprometida antes de tudo com a

    lgica desse sistema. Voltada para discusses sobre o belo (a arte,

    neste caso, vem a ser, por definio, a bela arte), a universalidade do

    juzo em oposio subjetividade criadora, o papel da imaginao, a

    relao entre sujeito e objeto, entre arte e natureza, forma e

    contedo, idia e representao entre outros temas, essa esttica se,

    por um lado, se aproxima em certa medida da realidade artstica ao

    elucidar certas "verdades" sobre ela, por outro, por se deter

    sobretudo no plano do pensamento abstrato, acaba por se distanciar

    de seu objeto concreto, assoberbando-se com questes acerca da

    consistncia do seu prprio sistema de idias. Assim, se a Esttica

  • 24

    assim concebida declara a arte seu objeto e procura legitimar sua

    atitude especulativa em relao a ele por meio de um discurso

    conceitual, ao buscar fundamentar sua especificidade, pode acabar,

    como muitas vezes aconteceu ao longo da histria, por perder seu

    objeto de vista e discutir de certa maneira no vazio, de to distante

    da realidade emprica que lhe corresponde12.

    De uma perspectiva bergsoniana, podemos depreender que o

    caminho trilhado por essa Esttica que se afasta de seu objeto de

    estudo medida que se aprofunda em investigaes de ordem

    conceitual na verdade pouco contribui para a arte propriamente dita,

    ou, mais que isto, em relao a esta ltima, ela totalmente

    prescindvel, j que a arte pode resolver seus problemas de modo

    artstico. Melhor dizendo, os problemas da arte, ou de uma arte

    especfica, se resolvem na prpria produo artstica, no nas

    especulaes dos filsofos! E no haveria como ser de outra forma,

    uma vez que a arte, enquanto arte, isto , realidade de uma

    experincia especfica e singular no mundo e para o mundo, s pode

    ser o que se for uma atividade autnoma, que pode se alimentar e

    mesmo se apropriar da reflexo filosfica, tanto quanto do que de

    mais houver no mundo, e que nem por isso perde sua autonomia.

    Nesse sentido, lcito dizer e o afirmamos com L. Pareyson

    que uma crtica de arte, na medida em que sua natureza se distingue

    radicalmente da reflexo esttica, seja possivelmente o que mais se

    aproxime do objeto artstico e o apreenda de fato, isto , como algo 12 Cf. Ernest Cassirer, stimo captulo de A Filosofia do Iluminismo. Nele o autor nos d uma ampla viso histrica da esttica como disciplina filosfica e de suas duas linhas bsicas de evoluo. Em linhas gerais, na primeira desenvolve-se uma esttica de cunho estritamente conceitual, ligada e comprometida principalmente com o sistema filosfico ao qual se liga; na segunda linha, e em sentido oposto ao da primeira, desenvolve-se uma esttica que busca justificar teoricamente a arte no prprio fazer artstico, no em conceitos e abstraes, na ao da fabricao e no na do conhecimento. Neste estudo Cassirer ressalta esse movimento pendular, de oscilao do estritamente conceitual ao emprico total e suas implicaes nas pretenses de constituio de uma cincia aplicada aos problemas da arte.

  • 25

    vivo e presente no mundo13. De todo modo, esse conhecimento de

    arte, nos diz Bergson, que deveria partir do artista, dificilmente

    poderia surgir de um esteta: "Sem desconhecer o valor desse

    mtodo, nem a utilidade que pode haver em rodear a obra de arte

    para tomar o maior nmero possvel de vistas sobre ela, pensamos

    que a esttica aguarda, para se constituir definitivamente, o dia em

    que algum grande artista far para sua arte o que um Descartes fez

    por sua cincia, o dia em que ele ser surpreendido em pleno ato de

    criao e em que ter podido extrair, das profundezas de si mesmo,

    os elementos de um novo Discurso do Mtodo. Saberemos ento por

    qual mecanismo a emoo e a idia se materializam em sons e em

    cores, escolhem seu ritmo e sua medida. A esttica ser fundada

    solidamente, e tambm uma crtica de arte que no comparar

    apenas obras a outras obras, mas ainda e sobretudo a ela mesma, ao

    que ela teria sido se a matria, que o instrumento, no fosse ao

    mesmo tempo obstculo" 14. Mas e quanto ao filsofo?

    Ainda que a questo da natureza, da especificidade da obra de

    arte e da experincia esttica permeiem toda a obra filosfica

    bergsoniana, no h como considerar num sentido estrito a arte o

    objeto dessa filosofia. Em Bergson, a arte em geral e mesmo as

    artes, ou cada arte em particular, no encarada como um fora ao

    qual a filosofia procura aplicar sua reflexo e inclu-la ao seu corpo

    prprio; ao contrrio, a reflexo sobre a arte no apenas surge do

    problema filosfico como se constitui juntamente com ele15. Em

    outros termos, se h de fato uma discusso filosfica sobre arte, ou 13 Ora, potica e crtica, mesmo podendo ser traduzidas em termos de reflexo, nem se incluem na esttica nem se identificam com ela, porque, de preferncia, fazem parte de seu objeto, isto , da experincia esttica. (...) A crtica o espelho no qual a obra se reflete: ela pronuncia o seu juzo enquanto reconhece o valor da obra, isto , enquanto repete o juzo com que a obra, nascendo, aprovou a si mesma. (Pareyson, L., Os Problemas da Esttica, So Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 21). 14 Bergson, Mlanges, ano de 1914, pp.1119-1120. 15 Mostrar como isso se desenvolve na obra bergsoniana foi o principal objetivo da pesquisa de mestrado que antecedeu esta tese.

  • 26

    se se quiser, uma esttica, esta no se destaca e nem se desenvolve

    de modo independente em relao metafsica bergsoniana. Isto

    porque, em Bergson, arte e filosofia se relacionam no

    exteriormente, tal como numa abordagem de literatura comparada,

    mas intimamente: a filosofia no fala simplesmente sobre a arte, ela

    coincide com ela; e se no coincidisse, no falaria. Em outras

    palavras, se h em Bergson, como acreditamos, uma afinidade entre

    arte e filosofia, esta s pode ser uma afinidade profunda, algo como

    uma ligao interior prpria arte e prpria filosofia, algo, enfim,

    que se d muito mais no plano de uma experincia do que no de um

    discurso16. Mas qual seria a experincia que um filsofo e um

    bailarino, para retomar a fala de Valry, ou poeta, ou msico,

    poderiam ter em comum? Antes de tudo, a experincia do esforo de

    criao17.

    II.

    A idia de criao, sobretudo em arte, freqentemente

    associada espontaneidade. Um deixar-se levar simplesmente,

    principalmente pela capacidade de sentir, perceber e,

    conseqentemente, imaginar, inventar, a partir de determinado

    estmulo externo ou interno. Avanando nesta idia e mesmo tendo

    em conta a revelao do artista moderno, que desnuda a si prprio ,

    16 Vale acrescentar que dizer isto no o mesmo que afirmar que a filosofia bergsoniana seja literatura, ou que literatura e filosofia sejam duas coisas indistintas para nosso filsofo, nem to pouco, como ressalta Gouhier, que a funo do filsofo se confunda com a operao do artista. (...) A arte entra na metafsica para lhe fornecer a imagem engrandecedora de um ato criador. (Gouhier, Introduo, in BERGSON, Oeuvres, p. 29). 17 Acreditamos que, em Bergson, uma reflexo sobre o fenmeno artstico seja inerente prpria constituio do mtodo filosfico, j que o conhecimento a que este se reporta diz respeito antes de tudo a uma experincia e compreenso desse tipo de experincia, ou seja, Intuio. E dessa perspectiva intuitiva, a idia de esttica num sentido mais estrito, ou a idia de uma esttica bergsoniana de direito, perde sentido totalmente, e mesmo a pertinncia da questo sobre se a esttica seria ou no aqui uma espcie de subsidiria da prpria metafsica, ou simplesmente metafsica se apaga, se desfaz.

  • 27

    talvez encontremos ainda que a potncia criativa seja inversamente

    proporcional ao esforo de elaborao da obra que dele resulta: tanto

    mais imbudo em sua viso ou percepo especial, tanto menos

    esforo despender o esprito criador; e, de modo inverso, onde mais

    houver contato material, trabalho, resoluo de problemas,

    fabricao enfim, menos a intuio incidir.

    Mas ser mesmo assim? O que pode pretender, por exemplo, o

    poeta-ferramenteiro? Seu trabalho, como em E. A. Poe, dirige-se

    antes de tudo produo de um efeito18. Diz o poeta preferir

    comear com a escolha de um efeito sem jamais perder de vista a

    originalidade, a fonte de interesse acessvel ao artista , efeitos

    ou impresses mais apropriados ocasio, aqueles aos quais o

    corao, o intelecto, ou, de um modo mais geral, a alma esteja mais

    propensa19. Cada ao que merea ser assim chamada deve ser

    estudada profundamente at que o n seja desfeito; somente tendo

    sempre presente o desfecho que se pode dar ao um carter

    consistente. Um tal efeito neste caso, menos uma conseqncia

    secundria do que o prprio ncleo do processo criador, e justamente

    em virtude disto est relacionado, assim, a uma certa tenso, a

    qual, por sua vez, ser diretriz da ao em face de um sistema

    complexo de representaes em vias de ocupar o intelecto. Em

    oposio ao esforo intelectual, que est relacionado tenso, h a

    alternativa de uma atitude de relaxamento em face desse mesmo

    18 Muitos escritores poetas em especial preferem deixar compreendido que compem sob uma espcie superior de frenesi uma intuio extasiante e realmente haveriam de estremecer ao deixar que o pblico espreitasse, por detrs da cena, as elaboraes e vacilaes do pensamento bruto, as proposies verdadeiras que s aparecem no ltimo momento, as inmeras vises que no chegam maturidade nem plena clareza, as proposies plenamente amadurecidas abandonadas em desespero como inajustveis, as escolhas e rejeies cautelosas, as penosas rasuras e intercalaes; em uma palavra: as rodas e pinos, os aparelhos dos cenrios, as escadas e os alapes, as penas de pavo, a tinta vermelha e o retalho preto, os quais, em noventa e nove por cento dos casos, constituem as propriedades da histrio literria (POE, E. A., A Philosophy of Composition. IN: The Portable Edgar Allan Poe, New York, Penguin, 1977, p. 551). 19 POE, obra citada, p. 550 e ss.

  • 28

    sistema representacional. Bergson, especialmente em LEffort

    Intellectuel, nos mostra as razes desse ato criador, produtor de

    efeitos ou impresses, estar relacionado a uma tenso e a um

    esforo, e no a um relaxamento ou simples deixar-se levar do

    esprito. E ainda, que esse esforo diz respeito a uma atividade

    intelectual a qual, por sua vez, no se destaca de uma ao concreta,

    fabricante, sobre a qual a prpria matria a ser trabalhada exerce

    tambm influncia.

    Uma ao pode ser direcionada por uma atividade intelectual

    na qual os elementos representacionais se organizam seguindo as

    regras de um jogo relacional do qual eles j participam. Isto seria o

    que, em Bergson, entenderamos por reproduo. Num extremo

    oposto, h a possibilidade de uma atividade de inveno ou criao,

    na qual as representaes se organizam em torno de uma fonte

    indeterminada de formas e relaes, as quais se configuram medida

    que se realizam como produto dessa mesma ao. Repetio e

    imprevisibilidade encontram-se, pois, cada qual a sua vez, na base

    geradora de toda atividade produtora, a qual demandar um esforo

    maior na medida em que a imprevisibilidade ditar as regras e os

    procedimentos para sua realizao. Para reproduzir o que j existe,

    ao contrrio, preciso deixar-se levar apenas, seja pelo hbito, por

    uma atitude mecnica ou simplesmente pela tendncia (a reproduzir)

    da prpria natureza. Neste caso, e em se tratando da atividade da

    escrita, o esprito labora a frio, combinando idias entre si, h muito

    vazadas em palavras, que a sociedade lhe entrega em estado slido.

    No outro, parece que os materiais fornecidos pela inteligncia entram

    previamente em fuso, e que se solidificam em seguida de novo em

    idias agora nutridas pelo prprio esprito: se essas idias acham

    palavras preexistentes para as exprimir, isso constitui para cada uma

    o efeito da boa-sorte inesperada; e, na verdade, sempre foi preciso

    ajudar o acaso, e forar o sentido da palavra para que se modelasse

  • 29

    o pensamento. O esforo agora doloroso, e o resultado aleatrio,

    mas somente ento que o esprito se sente ou se cr criador 20.

    , pois, no prprio produto da ao, levando-se em conta as

    reaes interiores e a forma que ele realiza, que encontramos tudo o

    que necessrio para distinguir o pensamento que se deixa viver

    daquele que se concentra e faz esforo. No caso de uma inveno

    ou criao, a ao direcionada por uma tenso e no por um

    relaxamento em virtude da atividade estar vinculada promoo de

    um tipo particular de experincia, a da novidade originalidade a

    qual, por princpio, no se encaixa nos moldes j dados pelas

    experincias j vividas. Criar exige, pois, um trabalho intelectual

    intenso, voltado subverso do sistema representacional ordinrio e

    habitual em proveito da melhor adequao entre uma origem e seu

    destino. Para retomar Poe, o efeito ao qual o esprito estaria mais

    propenso e que o poeta tem todo o tempo em vista no deve ser

    seno a determinao de uma moldura possvel dentre uma

    infinidade de outras igualmente possveis e, portanto, de uma

    unidade, para uma individualidade em vias de se constituir: no caso,

    a obra.

    Criar imaginativamente resolver um problema, ressalta

    Bergson citando M. Ribot. E acrescenta: Ora, como resolver um

    problema de outra maneira que no o supondo solucionado?21.

    Fazendo referncia menos a uma sntese de representaes situadas

    num mesmo plano de conscincia (o puramente abstrato) do que ao

    movimento pelo qual uma representao simples (pura abstrao) se

    desenvolve em imagens (algo concreto, efetivo), Bergson introduz a

    noo de esquema dinmico nas condies de gnese e de

    inteligibilidade do real-fenomenal: da percepo primordial

    20 DS, p. 1014. 21 ES, p. 946-947.

  • 30

    realizao efetiva, a ao criadora dever ser mediada por um

    movimento constante de transformaes, sugeridas pelo objeto

    percebido, das relaes abstratas entre si em imagens concretas

    capazes de recobrir esse mesmo objeto percebido. Seja reproduo,

    seja inveno ou criao, todo processo de realizao (passagem do

    abstrato para o concreto) mediado pela ao esquemtica, segundo

    Bergson, uma atitude intelectual destinada tanto a preparar a

    chegada de uma certa imagem precisa (como em relao

    memria), quanto a organizar um jogo mais ou menos prolongado

    entre imagens concretas capazes de nele se inserirem22. , contudo,

    no esforo de inveno que encontramos as formas mais altas de

    esforo intelectual. A imprevisibilidade seria responsvel pela tenso,

    pelo n, pela hesitao toda especial na qual se encontra a

    caracterstica do esforo, a qual apenas uma ao verdadeiramente

    livre pode em alguma medida resolver, pois a experincia de

    produo, neste caso, deve estar relacionada no a uma descrio de

    relaes formais pr-existentes, mas constituio de relaes novas

    e atuais, originalmente correspondentes, isto , correspondentes

    organizao da prpria experincia do devir23. O esquema seria ento

    algo prximo dessa soluo suposta, porm no prvia e em nada

    comparvel a uma idia pr-concebida ou pr-existente. O

    esquematismo bergsoniano relaciona-se idia de uma imanncia

    total da forma em suas realizaes graduais a qual no tem nem

    contedo prprio nem realidade independente escapando assim

    antinomia tradicional do Uno e do Mltiplo, uma vez que s pode ser

    pensado num contexto antiplatnico em que o molde do ser puro e

    esttico d lugar individuao do prprio tipo.

    22 ES, p. 957. 23 medida que o inventor realiza os detalhes de sua mquina, ele renuncia a uma parte daquilo que ele queria obter, ou ele obtm outra coisa. Da mesma maneira, os personagens criados pelo romancista e pelo poeta reagem idia ou sentimento que esto destinados a exprimir. A est, sobretudo, a parte do imprevisto; ela est, pode-se dizer, no movimento pelo qual a imagem se volta para o esquema para modific-lo ou faz-lo desaparecer (BERGSON, Oeuvres, ES, p. 948).

  • 31

    Se, como se diz aqui, a ao criadora consiste basicamente na

    transformao da matria com vistas a um fim um efeito, como

    vimos , vemos que a relao existente entre idealizao e produo

    de uma obra , antes de tudo, uma relao de identidade, j que a

    composio processo de maturao, algo que se d num tempo

    real, numa temporalidade que essencialmente mudana,

    movimento contnuo em que perceber e produzir ou, se se quiser,

    em que o problema e sua soluo s podem se realizar num gesto

    nico. O exemplo que o prprio Bergson nos oferece a respeito do

    esforo corporal realizado para aprender um movimento complexo de

    dana pode bem nos ajudar a compreender melhor sua noo de

    esquema dinmico e, a partir dele, a natureza da ao

    verdadeiramente criadora.

    Para realizar um movimento complexo de dana, nos diz

    Bergson, comeamos por perceb-lo. Para aprend-lo, comeamos

    por ver danar. Em seguida, preciso memorizar o movimento e

    execut-lo, ou seja, dar aos nossos olhos uma impresso

    semelhante quela que nossa memria guardou. Mas o que poderia

    guardar, num primeiro momento, nossa memria? No se pode dizer

    que seja uma impresso ntida e definitiva do movimento visto, pois

    dizer assim implicaria considerar que no h movimento a aprender e

    que, na verdade, j vemos bem a dana mesmo desconhecendo-a

    completamente: ora, evidente que, se para aprender essa dana,

    preciso que se comece por ver sua execuo, inversamente, no a

    vemos bem, em seus detalhes e mesmo em seu conjunto, seno

    quando j temos algum hbito de danar24. A imagem definitiva a

    dana plenamente aprendida no dever ser, pois, a primeira

    imagem da qual iremos nos servir; esta dever sofrer variaes,

    24 ES, p. 950.

  • 32

    tornar-se progressivamente mais precisa ao longo do aprendizado

    que ela prpria est encarregada de dirigir.

    Uma tal imagem no seria puramente visual, como ressalta

    Bergson, trata-se de uma imagem tambm motriz, uma vez que diz

    respeito a uma evoluo. E o que poderia ser uma imagem

    parcialmente visual, parcialmente motriz, ou melhor, visual e motriz

    ao mesmo tempo? Algo muito prximo daquilo que Bergson chama de

    esquema: uma indicao de configurao, que aproxima as

    lembranas adquiridas da imagem em formao e vice-versa; ou,

    para ser mais precisa, um desenho de relaes, sobretudo

    temporais, entre as partes sucessivas do movimento a ser

    executado. A amplitude dessa espcie de vai-e-volta entre o

    esquema e a imagem est diretamente relacionada intensidade do

    esforo despendido para realizar o movimento. Saber danar, neste

    caso, significa obter de nosso corpo os movimentos sucessivos

    correspondentes ao modelo que o esquema, supostamente completo,

    prope. Essas lembranas de sensaes motrizes, medida que se

    revivificam, convertem-se em sensaes motrizes reais e,

    conseqentemente, em movimentos executados25.

    Para que o esquema seja recoberto pelas sensaes motrizes

    correspondentes dana, necessrio, pois, que haja uma variedade

    de imagens motoras parciais disposio e que elas, juntas, o

    preencham plenamente. Assim sendo, para que se contraia o hbito

    do movimento novo e complexo de dana preciso que j se tenha o

    hbito dos movimentos elementares nos quais a dana se compe.

    Refundir novas combinaes de movimentos elementares significa,

    pois, criar um movimento novo, aprend-lo inteiramente. A

    dificuldade agora est em que a experincia j vivida ou hbito dos

    movimentos elementares essenciais composio do movimento 25 ES, p. 951.

  • 33

    novo esto ligados a outras combinaes, que compem outros

    movimentos mais ou menos complexos, mas que no tm qualquer

    relao ou proximidade com aquele que se pretende realizar. Ao

    contrrio, podem at ser antagnicos. Em se tratando de uma valsa

    e valsa que Bergson se refere em seu texto , o hbito de andar,

    por exemplo, contraria a tentativa de danar. Em outros termos, o

    hbito adquirido de movimentar-se desta ou daquela maneira, em

    funo desta ou daquela necessidade, transforma-se num verdadeiro

    empecilho para a realizao dos passos de valsa. O esquema seria,

    nesse sentido, uma abertura de caminho, um contorno sugestivo para

    a nova forma, a nova moldura para a experincia da nova dana.

    Essa necessidade de o esquema conduzir gradualmente as

    imagens mltiplas elementares a um novo modus vivendi caracteriza-

    se por uma espcie de atraso no processo de realizao do

    movimento. Trata-se de um atraso sui generis, feito de tentativas,

    de ensaios mais ou menos frutferos de adaptao de imagens ao

    esquema e do esquema s imagens, e no qual o sentimento de

    esforo pode melhor ser expresso. Seja numa evoluo corporal, seja

    numa evoluo intelectual, em geral, quando muitas imagens

    diferentes esto em jogo, porque nenhuma delas satisfaz

    inteiramente s condies do esquema, o que faz com que este

    tenha de modificar-se por si mesmo para obter o desenvolvimento

    em imagens. Em parte alguma esse jogo to visvel quanto no

    esforo de inveno. Nele h um sentimento ntido de uma forma em

    organizao, uma forma varivel (no fixa nem pr-determinada),

    porm anterior (e no pr-existente) aos elementos que devem se

    organizar; h ainda uma concorrncia entre esses elementos que

    devem melhor se adaptar sugesto do esquema; por fim, h um

    equilbrio no caso de a criao se realizar , que significa adaptao

    recproca entre forma e matria. Assim para o esforo de

  • 34

    inveno, tomado em alguns segundos, ou que exija anos26. Ele ,

    sobretudo, processo de maturao, evoluo, realizao material,

    construo, elaborao temporal. Temporalidade essencialmente

    musical.

    III.

    A ligao dos elementos no tempo. essa a msica que soa ao

    ouvido criador27. Uma msica no s para os ouvidos, mas de e para

    todos os sentidos. Ou, para ser mais precisa, uma imagem sonora

    que, semelhana de uma msica propriamente dita, que liga as

    notas e seus sons numa melodia, constitui-se numa espcie de

    ligao interior dos elementos envolvidos entre si e, ao mesmo

    tempo, nos meios pelos quais esses elementos daro forma unidade

    criada. Pode-se dizer que, da perspectiva bergsoniana, as leis da

    msica revelam em alguma medida o desenrolar do pensamento, o

    qual no se reduz a uma racionalidade estrita, mas alcana a

    dimenso especificamente humana da temporalidade da conscincia.

    A msica nos d o prprio tempo, pois origem, emoo original,

    realidade do puro devir, e, ao mesmo tempo, nos d os meios pelos

    quais apreendemos essa realidade essencialmente temporal.

    26 ES, p. 952-953. 27 A arte do escritor semelhante arte do msico; mas no acreditemos que a msica de que se trata aqui seja dirigida simplesmente ao ouvido, como se imagina ordinariamente. Um ouvido estrangeiro, por mais habituado que esteja msica, no far diferena entre a prosa francesa que achamos musical e a que no o , entre o que est perfeitamente escrito em francs e o que est apenas aproximativamente: prova evidente de que se trata de coisa totalmente diferente de uma harmonia material de sons. Na realidade, a arte do escritor consiste sobretudo em nos fazer esquecer que ele emprega palavras. A harmonia que ele busca uma certa correspondncia entre as idas e vindas de seu esprito e as de seu discurso (...). O ritmo da palavra no tem, pois, outro objetivo alm de reproduzir o ritmo do pensamento; e o que pode ser o ritmo do pensamento seno aquele de movimentos nascentes, apenas conscientes, que o acompanham? (BERGSON, Oeuvres, ES, p. 849).

  • 35

    O que torna a msica paradigmtica para o bergsonismo ,

    sobretudo, o seu carter sugestivo. Sugesto se ope aqui

    representao. E, neste ponto em especial, a msica que aproxima

    Bergson das artes de seu tempo. Como acontece em relao, por

    exemplo, msica de Debussy, ou msica da durao, nas palavras

    do filsofo. Um dos aspectos originais deste artista que talvez mais o

    aproxime da filosofia bergsoniana e que aqui mais nos interessa

    ressaltar est no modo de composio com o qual trouxe tona

    uma nova concepo de temporalidade narrativa: em que a

    descoberta de acontecimentos sonoros, ou de segmentos mais

    antigos, obriga a uma constante ateno, formulada por uma

    conscincia participante28. Em termos gerais, contrariamente aos

    procedimentos dos msicos que o antecederam mais proximamente

    (clssicos e romnticos, por exemplo), que escolhiam um tema

    especfico e o desenvolviam no decorrer da pea, a msica de

    Debussy perseguia, pode-se dizer, intenes musicais feitas

    sobretudo de materiais sonoros timbres variados, escalas, gamas

    de tons que poderiam aparecer e desaparecer sem buscar qualquer

    desenvolvimento; ou poderiam hesitar e se voltar algumas vezes

    sobre si mesmos antes mesmo de se desenvolverem, fazendo com

    que o tema ou a idia principal da obra passasse a ter durao

    efmera, isto , um desenvolvimento no linear ao longo do discurso

    musical. Discurso no linear, contudo expressivo e, dada sua

    imprevisibilidade, imprprio a uma elaborao lgica maneira

    ortodoxa. Em Debussy, a msica um afeto imaterial como que

    encarregado de penetrar no eu interior daquele que o escuta. A

    hipnose advm por meio de um simples esquema sonoro29. Para

    Bergson, os processos artsticos possuem, ainda que sob uma forma

    mais sutil, mais espiritualizada, as caractersticas mesmas dos

    processos pelos quais normalmente se obtm o estado de hipnose. A 28 KREMER, J-F., Les Prludes pour piano de Debussy en correspondance avec la Recherche du Temp Perdu de Marcel Proust, Paris, Kim, 1996, p. 80. 29 KREMER, J-F., obra citada, p. 62.

  • 36

    arte precisa primeiramente nos desligar de nossos hbitos

    perceptivos, j que estes, como vimos acima, constituem-se num

    verdadeiro empecilho para a percepo de uma novidade, de uma

    originalidade. A qual, por sua vez, no nos pode ser dada, mas

    unicamente recriada em ns, a partir de um esforo prprio que tem

    como ponto de partida uma imagem no plenamente definida, um

    efeito, um contorno enfim, sugestivos. Como numa composio de

    Debussy, na msica, declara nosso filsofo, o ritmo e o compasso

    suspendem a circulao normal das nossas sensaes e idias

    fazendo oscilar a nossa ateno entre pontos fixos (...). Se os sons

    musicais agem mais poderosamente sobre ns do que os da natureza

    porque a natureza se limita e exprimir sentimentos, ao passo que a

    msica no-los sugere30. prprio de uma arte particularmente

    sugestiva imprimir sentimentos, muito mais do que express-los,

    represent-los por meio de sons ou palavras. Melhor dizendo,

    sugestiva a arte que, ao se expressar, visa imprimir: um processo

    antes de tudo, processo de auto-realizao para uma conscincia

    participativa, movimento de organizao interna, o qual, no caso do

    escritor, consiste sobretudo em nos fazer esquecer que emprega

    palavras, e por meio do qual o artista, semelhana do msico,

    busca certa correspondncia entre as idas e vindas de seu esprito e

    de seu discurso.

    IV.

    de fundamental importncia, no nosso entender, apontar a

    pertinncia histrica da compreenso musical bergsoniana, sobretudo

    porque, como sublinha o prprio Bergson, esta se origina menos de

    uma hiptese do que de uma experincia. Contudo, no se pode

    deixar de ressaltar a especificidade dessa compreenso musical do

    ponto de vista epistemolgico: no plano terico Bergson procura 30 DI, p. 14.

  • 37

    dissociar a msica como fato histrico (circunscrita, portanto, a um

    tempo e lugar especficos) da msica como fenmeno temporal

    universal31, visando lanar a discusso ao mago da questo do

    impulso criador. Nas artes particulares, verdade, mas no s ali:

    Criao significa emoo. No se trata somente da literatura e da

    arte. Sabemos o que uma descoberta cientfica implica de

    concentrao e de esforo. O gnio foi definido como longa pacincia.

    (...) (a emoo) que impele a inteligncia para frente, apesar dos

    obstculos. Ela sobretudo que vivifica, ou antes, que vitaliza, os

    elementos intelectuais com os quais far corpo; junta a todo o

    momento o que se poder organizar com eles, e obtm finalmente do

    enunciado do problema que ele se expanda em soluo 32.

    Uma tal emoo diz respeito no sensao fsica e seu

    equivalente psicolgico. A emoo criadora em nada se assemelha

    emoo comum, isto , s afeces resultantes de sensaes e de

    associaes de idias, e no se reduz, como estas, acrescenta nosso

    filsofo, transposio psicolgica de uma excitao fsica. Para

    Bergson, h uma emoo cuja origem no se encontra no corpo

    fsico, como uma afeco corporal, mas diz respeito diretamente ao

    esprito. Diz respeito antes ao contato com a pura temporalidade, que

    durao, com a evoluo do pensamento em harmonia com o

    prprio movimento propulsor da vida. Sobre esses dois tipos de

    emoo, diz-se ainda do primeiro tipo, ou seja, sobre a emoo

    comum, que infra-intelectual, consecutiva a uma idia ou imagem

    representada; em relao a ela o estado sensvel resulta

    precisamente de um estado intelectual que nada lhe deve, que se

    basta a si mesmo e que, se lhe sofrer o efeito por ressonncia, perde

    dele mais do que recebe. a agitao da sensibilidade pela

    representao que nele desemboca; dela que em geral se ocupam 31 Cf. CAPOGRECO, N., IN: Henri Bergson : esprit et langage, Sprimont, Pierre Mardaga, 2001. 32 DS, p. 1013.

  • 38

    os psiclogos, nela que se pensa quando se contrasta a

    sensibilidade com a inteligncia ou quando se faz da emoo uma

    vago reflexo da representao. Enquanto que sobre a emoo

    criadora chamar-se-ia de supra-intelectual, se a expresso no

    evocasse imediatamente, e exclusivamente, a idia de certa

    superioridade de valor; trata-se, isto sim, de certa anterioridade no

    tempo, e da relao daquilo que engendra com o que engendrado.

    De fato, s a emoo do segundo gnero pode tornar-se geradora de

    idias33. Neste sentido, as idias de emoo e percepo, em

    Bergson, esclarecem uma a outra, na medida que esta ltima

    encarada, antes de tudo, no seu sentido esttico, isto , como

    simpatia: insero de uma personalidade (singularidade) no

    movimento vital (totalidade) e, por conseguinte, ocasio de revelao

    isto , de realizao em atos dessa natureza no mundo.

    Entendida dessa maneira, e oposto mesmo ao que um

    julgamento comum poderia estabelecer, no a percepo que

    provoca a emoo, que determina ou seleciona as lembranas, no

    ela, enfim, responsvel por suscitar a emoo. Tudo se passa de

    modo inverso: a emoo que configura o essencial da percepo.

    Do mesmo modo, no a viso ou audio, por exemplo, que nos

    fazem buscar uma lembrana semelhante que propiciem o

    reconhecimento do visto e do ouvido, mas a verdade que a

    lembrana que nos faz ver e ouvir; e que a percepo seria incapaz,

    por si s, de evocar a lembrana que a ela se assemelha, j que para

    isso seria preciso que ela j tivesse tomado forma e fosse

    suficientemente completa; ora, ela apenas torna-se percepo

    completa e adquire forma distinta por meio da prpria lembrana, a

    qual se insinua nela e lhe fornece a maior parte de sua matria34.

    Assim, e para recuperarmos um dos exemplos de relao entre

    33 DS, p. 1012. 34 ES, p. 944.

  • 39

    percepo e lembrana mais significativos da histria da literatura,

    no o gosto da madeleine que traz a infncia de Combray para

    Marcel, mas a infncia perdida, isto , esquecida, guardada no

    subsolo da conscincia, que se coloca no gosto da madeleine. Dito

    de outro modo, do ponto de vista bergsoniano, a sensao no caso,

    o gosto surge para o esprito do romancista como uma ocasio

    especial, nica, singular e, preciso que se diga, que poderia

    nunca vir a surgir a qual seu inconsciente, sua memria integral, o

    eu temporal, verdadeiro (ou verdadeiramente vivo), no apenas

    encontrou, mas, num sentido mais preciso, criou para se manifestar.

    Torna-se assim perfeitamente clara e compreensiva a felicidade

    alegada pelo escritor ao perceber esse momento nico, em que se

    pode sentir verdadeiramente a vida35.

    Momento que, tambm do ponto de vista bergsoniano, no

    possui nada de contemplativo, isto , de passividade, mas, ao

    contrrio, s se completa verdadeiramente numa existncia, numa

    elaborao formal (forma que ao mesmo tempo contedo, porque,

    como vimos, j no se trata mais de representaes, smbolos

    estticos que visam transportar para o plano da imobilidade o

    movente, mas um movimentar-se que , acima de tudo, passagem,

    transformao). No caso do escritor, essa criao se realiza como

    obra literria36. por meio desta que sua experincia d-se

    realmente a conhecer: antes de tudo e principalmente, a si mesmo.

    De todo modo, e para alm do mbito artstico, o eu profundo, o eu

    das profundezas de ns mesmos, nos diz Bergson, est sempre

    aguardando uma ocasio (geralmente rara, j que a maior parte do 35 Assim, o que acabava de deleitar o ser trs ou quatro vezes suscitado em mim talvez fossem mesmo fragmentos de existncia subtrados ao tempo, mas essa percepo, embora de eternidade era fugidia. E no obstante eu sentia como o nico fecundo e verdadeiro o prazer que ela me concedera em raros intervalos de minha vida. (Proust, M., O tempo redescoberto, So Paulo, Globo, p.155) grifo nosso. 36 Esse meio que se me afigurava o nico, que era seno a feitura de uma obra de arte? (Proust, M., obra citada, p. 158).

  • 40

    tempo permanecemos ligados, por uma questo de sobrevivncia,

    vida prtica e portanto superfcie da nossa personalidade e

    exterioridade) para se recolher num ponto e, a partir dele, fazer

    brotar uma ao que, originria desse todo, ir projet-lo por inteiro

    no exterior e, ao mesmo tempo, remodel-lo completamente. ,

    enfim, por meio desse ato livre e criador, que temos acesso a ns

    mesmos, isto , a esse conhecimento mais preciso de ns mesmos e

    tambm da realidade da qual fazemos parte.

    Henri Gouhier, na introduo s obras completas de Bergson,

    enuncia sem rodeios a pergunta sobre o que , afinal, a emoo

    criadora do bergsonismo. E nos reenvia declarao de Bergson,

    conferncia de 1930, sobre sua experincia pessoal: Gostaria de

    retornar a um assunto sobre o qual j falei, a criao contnua de

    imprevisvel novidade que parece se seguir no universo. De minha

    parte, acredito experiment-la a cada instante37. O que emocionara

    e emocionaria Bergson a qualquer tempo, prossegue Gouhier, o

    fato simples da existncia do novo, ou melhor, a percepo da

    novidade radical em cada instante da vida e em tudo que vive. Algo

    que, em termos bergsonianos, define-se como imprevisibilidade. No

    se trata, pois, de pseudo-novidade que seria virtual antes de ser

    atual, que estaria por a, escondida, antes de aparecer, que seria

    imprevisvel unicamente porque nosso entendimento no teria a fora

    de v-la. A emoo de Bergson no se liga a uma falta de nosso

    esprito mas plenitude da existncia: o ser redescoberto com o

    tempo38.

    Em resumo, entende-se que o processo do conhecimento, em

    Bergson, no apenas no se restringe aos mecanismos intelectuais

    superficiais, os quais no podem explicar a si prprios, isto , so

    37 PM, p. 1331. 38 GOUHIER, H., in Bergson, H., Oeuvres, Introduo, p. XXI.

  • 41

    instrumentais e em si desprovidos de significao39, como tambm

    precisa ser entendido a partir do contraste entre duas de suas

    instncias, a saber, a do conhecimento abstrato (contemplao) e a

    da emoo criadora (intuio). A significao verdadeira s pode

    advir como resultado de uma emoo; no o mesmo que

    decodificao simblica e no se d a partir de uma representao

    pr-existente. Emoo que implica lanar-se na pura mobilidade e

    que por sua vez est relacionada muito mais vontade do que

    razo. Assim acontece em relao s formas de arte e suas poticas,

    filosofia e seu mtodo, e em relao s mximas morais: aquelas

    oriundas de uma emoo original (causa e no efeito das

    representaes) se impem a partir de um impulso determinado, uma

    orientao, no de uma determinao racional. Isto equivale dizer

    que o Conhecimento pressupe, necessariamente, a Experincia. Em

    vo se alegar que esse salto adiante no sups atrs de si nenhum

    esforo criador, que no exista aqui nenhuma inveno comparvel

    quela do artista. Isso seria esquecer que a maior parte das grandes

    reformas alcanadas pareceram em princpio irrealizveis, e que o

    eram de fato. Elas no poderiam se realizar seno numa sociedade

    cujo estado de alma fosse j aqueles que elas deveriam introduzir

    para sua realizao; mas existia ali um crculo do qual no se sairia

    se uma ou vrias almas privilegiadas, tendo dilatadas em si a alma

    social, no tivessem rompido o crculo levando atrs de si a

    sociedade. Ora, esse o milagre mesmo da criao artstica. Uma

    obra genial que comea mesmo por desconcertar, poder criar pouco

    a pouco unicamente por sua presena uma concepo de arte e uma

    atmosfera artstica que permitam compreend-la; ela ento se 39 O interesse, que seja mesmo o do cientista pelo seu problema, no existe parte do trabalho intelectual, ou seja, no h como explicar que um interesse isolado da inteligncia possa captar sozinho os elementos necessrios para o saber em questo e em seguida conduzi-los de volta a ela para que esta os organize e constitua, por fim, sua descoberta. O que se afirma que uma emoo muito particular que d o nimo, que vivifica, vitaliza, os dados que a prpria inteligncia apreendeu, ou seja, que estiveram todo o tempo com ela e no fora dela, e com os quais criar as solues para os problemas em questo.

  • 42

    tornar genial retrospectivamente: do contrrio permaneceria o que

    era no comeo, simplesmente desconcertante40.

    Num ato menos refletido poder-se-ia mesmo supor e muitos

    adversrios de Bergson j o escreveram que a intuio bergsoniana

    estivesse no plano da contemplao. Mas, para Bergson, na esfera da

    contemplao que se encontram justamente a atividade puramente

    racional, as idias e os conceitos fixos! Contemplao sinnimo de

    imobilidade, espcie de torpor e encantamento pelas idias, enquanto

    que a intuio bergsoniana justamente o colocar-se em movimento,

    criao.

    Voltamos, assim, msica. Esta, entendida ento como

    produo intencional do tempo, d sentido atividade intelectual

    humana, uma vez que remonta, intrinsecamente, sua gnese e

    sua prpria inteligibilidade, em seus diversos graus de complexidade.

    Como vimos dizendo at aqui, em meio a essa reflexo no s a

    concepo de arte de Bergson que est em pauta, mas tambm, e

    principalmente, a sua prpria concepo de filosofia. A ao criadora

    deve estar na base de todo conhecimento41. O que no significa

    negar pura e simplesmente a racionalidade operante do indivduo,

    tampouco de retomar o tema da criao pelo outro extremo, de um

    ocultismo ou intuicionismo mstico. Em Bergson, a msica coincide

    com o fenmeno da temporalidade, que duracional, ao mesmo

    tempo em que situa o plano metodolgico de acesso a ela; afasta a

    investigao da esfera mstica e, ao mesmo tempo, das armadilhas

    de um racionalismo estreito, fazendo-a erguer-se sobre o plano da

    experincia efetiva.

    40 DS, p. 1038. 41 Freqentemente sucumbimos iluso de que o principal discorrer sobre as coisas e que as conhecemos suficientemente quando sabemos falar delas. Mas s se compreende, s se conhece o que se pode em alguma medida reinventar. (PM, p. 1327) grifo nosso.

  • 43

    V.

    Repudiamos, pois, a facilidade. Recomendamos uma certa

    maneira difcil de pensar. Prezamos acima de tudo o esforo. Como

    alguns puderam se enganar? No diremos nada dos que queriam que

    nossa intuio fosse instinto ou sentimento. Nenhuma linha do que

    escrevemos se presta a tal interpretao. Em tudo o que escrevemos

    h a afirmao contrria: nossa intuio reflexo. (...) Tenso,

    concentrao, tais so as palavras pelas quais caracterizamos um

    mtodo que requer do esprito, para cada novo problema, um esforo

    inteiramente novo 42.

    Vencer, primeiramente, a resistncia da matria. No no

    sentido de transcend-la, mas antes, no sentido de superar os velhos

    hbitos ligados por sua vez, s necessidades ou s contingncias da

    vida social em torno dos quais essa matria vem primeiramente, e

    naturalmente, associar-se. Ultrapassar as imagens e formas rgidas

    que se interpem entre o indivduo e sua conscincia. Em favor de

    uma temporalidade musical Bergson recusa a dimenso esttica

    do pensamento, privilegiando o contato, a experincia qualitativa

    que, a rigor, no pode ser transposta ou traduzida pela linguagem

    comum. Tampouco pela linguagem conceitual. Os conceitos so

    exteriores uns aos outros, como se fossem objetos no espao. E tm

    a mesma estabilidade que os objetos, sobre cujo modelo foram

    criados. (...) so elementos mais leves, mais difanos, mais fceis de

    manejar pela inteligncia do que a imagem pura e simples das coisas

    concretas; com efeito, j no so a prpria percepo das coisas,

    mas a representao do ato pelo qual a inteligncia se fixa sobre

    elas. J no so portanto imagens, mas smbolos43. A via de

    42 PM, p. 1328-1329. 43 EC, p. 631.

  • 44

    expresso filosfica, em Bergson, a via musical. E isto a aproxima

    muito da literatura: aqui a arte da escrita e o discurso filosfico

    obedecem a um mesmo esquema expressivo, coincidente, por sua

    vez, com o esquema fundador da obra. Se a ao criadora

    conhecimento imprescindvel que o pensamento que o realiza seja

    criador.

    Como se disse anteriormente44, ainda que se considere

    possvel, a msica no se constitui para Bergson num meio de

    substituio pura e simples da frmula escrita pela musical. A msica

    antes reveladora de uma individualidade, de uma singularidade, de

    uma interioridade em si mesma irredutvel a uma racionalidade lgica

    e vazia. A durao no um conceito, ou uma idia, uma construo

    abstrata; a realidade temporal no est nos instantneos dados ao

    longo de um deslocamento, mas na prpria mobilidade. Que, por

    princpio, no pode ser dada, representada, dita, recomendada. A

    linguagem precisa fixar os elementos, e a representao de um

    movimento justamente imobilidade. A apreenso do tempo s pode

    se dar de maneira temporal e, portanto, individual em meio ao

    movimentar-se de uma conscincia , como percepo polifnica

    dos estados passados (memria) em vias de expanso e de

    desenvolvimento nos estados presentes. No caso da escrita, o

    escritor precisa jogar com os smbolos da linguagem, relacionando-os

    entre si no tempo, fazendo com que se interpenetrem e se

    desenvolvam a partir da sucesso dos acontecimentos, ao invs de

    deixar, por um lado, seguirem a tendncia espontnea da linguagem,

    que privilegia o encadeamento lgico e a exatido, ou, por outro,

    sucumbirem heteronomia de uma legislao formal e restritiva. o

    movimento criador, impresso na forma criada, que o leitor dever

    recuperar e, em certa medida, refazer por si prprio. Ele coincidir

    44 Mais precisamente, no segundo captulo do nosso primeiro trabalho sobre a questo esttica em Bergson.

  • 45

    com o estilo do escritor e, por meio deste, ser levado a adotar uma

    certa posio, no habitual e ordinria, em relao ao que v, ao que

    sente, ao que pensa.

    Em termos bergsonianos, tanto para a filosofia quanto para a

    literatura, o estilo no dever opor resistncia, pois a virtude de uma

    obra est precisamente em colocar seu leitor em contato com a

    experincia que a promoveu, no propriamente com os smbolos que

    pretensamente a representariam. O ritmo desempenha, neste

    sentido, um papel fundamental. ele o responsvel por permitir que

    o leitor tome contato com o pensamento do escritor antes mesmo

    que as palavras venham dar expresso cor e nuance. O ritmo,

    segundo Bergson, esboa o sentido da frase verdadeiramente

    escrita. Da a recomendao de que uma leitura em voz alta venha

    no incio do aprendizado. Como professor no Collge de France

    Bergson chegou a colocar em prtica tal procedimento, como declara

    numa nota da Introduo a La Pense et le Mouvant: Nesta aula

    havamos tomado como exemplo uma pgina ou duas do Discurso do

    Mtodo, e tentamos mostrar como as idas e vindas do pensamento

    de Descartes, cada uma com direo determinada, passam do

    esprito de Descartes para o nosso somente pelo efeito do ritmo, tal

    como a pontuao o indica, tal como indica sobretudo uma leitura

    correta em voz alta45. Um bom leitor, neste sentido, , como mostra

    o mestre, um bom imitador. Ou, em termos bergsonianos, um

    perfeito recriador. A leitura em voz alta desempenha aqui o papel da

    apreenso sinttica do sentido por meio de uma estrutura rtmica que

    deve anteceder a anlise semntica. Assim, o movimento que o

    esprito realiza durante a leitura de uma obra verdadeiramente

    escrita dever ser, ao fim e ao cabo, um movimento na direo

    contrria marcha habitual da inteligncia, a partir da qual, ressalta

    Bergson, pensar consiste em ir dos conceitos s coisas e no o 45 PM, p. 1327.

  • 46

    contrrio. Assim como literatura, filosofia cabe inverter a marcha

    habitual do pensamento: Ou no h filosofia possvel e todo

    conhecimento das coisas um conhecimento prtico orientado pelas

    vantagens que podemos tirar delas, ou filosofar consiste em se

    colocar no prprio objeto por um esforo de intuio. (...) A anlise

    opera sobre o imvel enquanto a intuio se coloca na mobilidade ou,

    o que a mesma coisa, na durao. (...) Da intuio podemos passar

    anlise, mas no da anlise intuio46.

    Em Bergson, arte e filosofia caminham juntas. Comunicam-se,

    pois, na intuio, que a base delas em comum. Contudo, em termos

    de realizao, a intuio, em arte, obra, em filosofia, metafsica.

    No , pois, linguagem conceitual que o filsofo deve

    primeiramente aderir, no entanto, e ainda que recorra a imagens e

    metforas, no maneira idntica a de um poeta ou romancista

    que desenvolve seu discurso. As imagens e metforas, para o

    filsofo, possuem funo distinta. Se, para o poeta, elas constituem,

    como vimos, o efeito que norteia a produo da obra, para o filsofo

    elas so muito mais um meio do qual no pode prescindir para

    alcanar o pensamento. Se na linguagem organiza-se um corpo sem

    o qual no h poesia ou romance, a fluidez do discurso filosfico em

    certo sentido disperso. No caso bergsoniano, o discurso depende

    fundamentalmente de uma diversificao no modo de expresso, ou

    melhor, de uma diversidade expressiva. Nesta filosofia, o movimento

    contnuo; como diz Herch, o raciocnio deve ser religado pelas

    constataes empricas (entenda-se conhecimentos cientficos,

    experincia esttica, etc.), as constataes empricas pelas

    metforas, as metforas por outros raciocnios ou por outras

    metforas, e assim por diante. Tal estilo deve ser fcil, ao menos

    aparentemente, pois ele tem de promover o percurso ao invs do

    objeto, impedindo a parada ou a acomodao do pensamento num 46 PM, 1411-1413.

  • 47

    ponto fixo. preciso, enfim, que por meio dele abram-se os caminhos

    de um conhecimento que s pode ser autoconhecimento, isto , que

    apenas a conscincia prpria pode completar, em si mesma, por meio

    de um esforo prprio. A claridade, ento, no ser somente uma

    qualidade do estilo e um resultado, mas um meio de expresso47.

    preciso que a metafsica ultrapasse os conceitos e os hbitos

    de pensamentos que os promovem e nos quais eles se enrazam. No

    se trata, insistimos uma vez mais, de neg-los, mas preciso vencer

    tudo aquilo que o oferece resistncia ao pensamento. Porque, ento,

    no se trata mais de reproduzir os mecanismos de um pensamento

    constitudo, remodelar suas formas e desenvolver novos arranjos

    para o que j existe; mas de encontrar os verdadeiros problemas,

    isto , de recoloc-los, ou ainda, de enunci-los: Enunciar um

    problema no somente descobrir, inventar. A descoberta

    relaciona-se ao que j existe, atual ou virtualmente; certamente ela

    viria cedo ou tarde. A inveno doa o ser ao que no era, ela poderia

    no vir jamais48. O pensamento s ser plenamente compreendido

    no momento em que os obstculos no lhe oferecerem mais

    resistncia; em contrapartida, pode-se dizer que ele no pode se

    realizar seno como compreenso dessa superao. Em certo sentido,

    como a audio de si prprio. Para o esprito encontrar o prprio

    esprito preciso que haja obstculos, j que por meio da

    resistncia que este oferece que ele se d a conhecer. O

    pensamento que apenas pensamento, a obra de arte que apenas

    concebida, o poema apenas sonhado, no custam muito; a

    realizao material do poema em palavras, da concepo artstica

    num quadro ou numa esttua que demandam esforo. O esforo

    penoso, mas tambm precioso, mais precioso do que a obra que

    resulta dele, porque graas a ele, tiramos de ns mais do que 47 Cf. Herch, in : Henri Bergson Essais et Tmoignages, Neuchatel, La Baconnire, 1943, p. 218. 48 PM, p. 1293.

  • 48

    tnhamos, elevamo-nos acima de ns mesmos. Ora, este esforo no

    seria possvel sem a matria: pela resistncia que ela ope e pela

    docilidade a que podemos conduzi-la, ela ao mesmo tempo

    obstculo, instrumento e estmulo; ela experimenta nossa fora,

    conserva-lhe a marca e provoca a intensificao49.

    Tal como os momentos de pura liberdade, esses esforos da

    filosofia em favor do pensamento, essas inverses de movimento, so

    raros. Cedo ou tarde o pensamento buscar a facilidade, deixar

    levar-se pela sua tendncia reproduo; cedo ou tarde, como

    ressalta Thibaudet, nossas idias pensaro por ns, e o corpo do

    pensamento ser tomado ento pelo automatismo que ele prprio

    criou. Uma vigilncia constante pode, contudo, diferenciar o reino dos

    hbitos, retardar o automatismo e manter o controle sobre essas

    idias que tendem sempre a pensar por ns50. Estender logicamente

    uma concluso, aplic-la a outros objetos sem ter realmente alargado

    o crculo de suas investigaes, uma inclinao natural do esprito

    humano, mas qual preciso no ceder nunca 51. A filosofia de

    Bergson nem em seu fundo, nem em sua forma, pode ser concebida

    como um monumentum aere perennius. Ela antes um gnero

    do qual as diversas artes seriam as espcies, como diz o filsofo,

    mas na medida em que objeto ela se apaga e quer se apagar:

    nunca nos empenhamos em escrever um livro.

    x

    49 ES, P. 831-832. 50 Thibaudet, Le Bergsonisme, 2 vol., Paris, NRF, 1923 , p. 177. 51 PM, 1330.

  • 49

    CAPTULO II

    OS DOIS SENTIDOS DA VIDA

  • 50

    Trata-se de compreender que a distino entre a durao e o espao no somente uma distino terica, mas que ela tem tambm, de pronto, um aporte prtico, ou ainda que intervm em nossa prpria vida. Se ela remete pois a dois sentidos da vida, no como duas entradas num dicionrio! Nem apenas como a um duplo fundamento, biolgico ou metafsico, em princpio, para cada um de ns, como dois modos de vida ou duas maneiras de viver, como se a filosofia de Bergson reencontrasse de pronto a tarefa mais antiga da filosofia, que no a de distinguir conceitos, mas condutas, no apenas a de pensar, mas a de intervir na vida, para reform-la ou transform-la.

    Frdric Worms

  • 51

    Desde o incio desse trabalho, preciso reconhecer, a postura

    investigativa que se tem adotado tem sido a de falar de arte de

    uma maneira um tanto quanto abrangente, isto , sem precisar a que

    fenmeno exatamente nos referimos, dentro dessa infinidade de

    particularidades que o universo das artes como um todo. De fato

    temos aqui nos reportado a algo que, para alm (ou aqum) de sua

    realidade histrica e cultural, todas as artes e manifestaes

    artsticas teriam em comum; algo como uma natureza profunda

    nica, solo de onde partiriam as razes, o corpo e tambm os frutos

    da diversidade das formas, meios e fins artsticos. Sendo isso

    verdade, perguntamo-nos se no teria chegado ento o momento de

    estabelecer para este plano de investigao a que arte precisamente

    nos referimos, isto , de localiz-la num tempo e num espao,

    relacion-la ao pensamento filosfico em questo e, finalmente,

    justificar essa relao por meio de uma investigao mais detida, por

    exemplo, da idia de esprito de poca ou de sua ocorrncia

    histrica. Bem poderia ser esse o percurso, mas optamos por outro,

    que visa de fato aprofundar a investigao dessa espcie de campo

    comum no qual a Intuio se desenvolve, como arte, mas sobretudo

    como inveno, isto , como esforo de criao. No se trata,

    portanto, de suprimir a dimenso histrica da investigao, mas

    antes de toc-la num ponto diverso do de uma anlise positiva, ou

    gentica, ou materialista.

    Em relao a essa ltima em particular, importa nos determos

    um momento no comentrio de Benjamin e Horkheimer a propsito

    da filosofia de Bergson, sobretudo na tentativa deles de identificar um

    suposto carter a-histrico na intuio bergsoniana, fruto talvez da

    hegemonia na chamada teoria crtica da orientao de que somente

  • 52

    seria possvel alcanar a histria pelos caminhos do materialismo

    dialtico.

    I.

    A noo de Histria, do ponto de vista da teoria crtica, no

    pode existir desvinculada da idia de felicidade. A questo, contudo,

    a de buscar na razo da prpria histria52, em primeiro lugar, qual

    felicidade ela promete ou vem prometendo; em segundo, o que ela

    tem oferecido em troca do que prometera; em terceiro, o porqu

    deste descompasso. Em outros termos, cabe reinterrogar a razo

    para que ela cumpra suas promessas no concretizadas, tudo o que

    ficou a dever s suas prprias esperanas: quanto ao consumo no

    futuro, o que assunto para o pensamento crtico, no existem tais

    exemplos [como o do manejo dos sinais matemticos]. (...) Desta

    coincidncia enigmtica entre o pensamento