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1 O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra Contra o
Terror e o Rastro do Pirata
1.1 Introdução. 1.2 O Combatente Ilegal nos Memorandos da
Guerra contra o Terror. 1.3 O Rastro do Pirata. 1.4 Conclusão.
1.1
Introdução
No contexto do pós 11 de setembro de 2001 e da chamada “guerra global
contra o terror”, o poder executivo norte-americano se reorganizou e se mobilizou
política, jurídica e linguisticamente, tendo em vista a longa campanha contra o
“inimigo-criminoso”, tal como fora anunciada pelo Presidente Bush em seu
discurso de 16 de setembro de 2001221
. Como Karen L. Greenberg destacou, “[n]o
centro desta reorganização de poder, simbólica e legalmente, estava a criação de
uma nova categoria de pessoa, aplicável a cidadãos norte-americanos assim como
a não cidadãos”222
. A nomenclatura utilizada para designar esta nova categoria foi
a de “combatente inimigo ilegal”, ou simplesmente “combatente ilegal”223
.
Ao criar esta categoria, os “linguistas” e consultores jurídicos do governo
Bush, especialmente os advogados do Office of the Legal Counsel do
Departamento de Justiça, exploraram um espaço nebuloso do direito
internacional, favorecendo a confusão e indistinção de outras categorias político-
jurídicas e militares, como, por exemplo, “prisioneiro de guerra inimigo”,
“combatente” e “não combatente”. Procurava-se um termo que pudesse designar
“prisioneiros na guerra contra o terror que não fossem prisioneiros de guerra
convencionais”224
.
221
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror: Redefining Prisoners in the Post-9/11
Era” in Greenberg, Karen J. and Dratel, Joshua L. with Grossman, Jeffrey S. (Ed.), The Enemy
Combatant Papers: American Justice, the Courts, and the War on Terror. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008, p.x. 222
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 223
Ver, sobretudo: BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President, the Secretary of
State, the Secretary of Defense, the Attorney General, Chief of Staff to the President, Director of
Central Intelligence, Assitant to the President for National Security Affairs, Chairman of the Joint
Chiefs of Staff” concerning the “Humane Treatment of al Qaeda and Taliban Detainees”,
February 07, 2002, (Memo 11) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit.,
p.134-135. 224
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x.
68
Dessa forma, e diante do dilema de decidir entre contextos de “crime” e de
“guerra”225
, tais arquitetos político-jurídicos buscaram explorar “a distinção entre
combatentes legais [lawful combatants] e combatentes ilegais [unlawful
combatants], uma distinção que tem implicações específicas para o tratamento
legal de prisioneiros em cada um dos grupos”226
.
Na construção desses juristas do governo norte-americano, combatentes
legais (lawful combatants) eram os membros de forças armadas regulares, tais
quais os exércitos dos Estados soberanos modernos, e também os membros de
forças irregulares, como milícias e forças voluntárias, que respeitavam certas
condições (como ter uma estrutura hierárquica de comando em que uma pessoa
fosse responsável por seus subordinados; utilizar um sinal distintivo reconhecível
à distância; carregar suas armas abertamente; e respeitar as leis de guerra),
conforme estabelecido pelas Convenções de Genebra III e de Haia IV. Estes eram
os combatentes protegidos pelo direito internacional, os quais, quando capturados
pelo inimigo, tinham direito ao status de “prisioneiro de guerra”227
.
Já os combatentes ilegais (unlawful combatants) eram os combatentes que
desrespeitavam tais condições mínimas de beligerância legal que haviam sido
positivadas, inicialmente, pela Convenção de Haia IV228
. Por isso, eles estariam
fora do alcance e, assim, da proteção do direito internacional dos conflitos
armados. Consequentemente, tais combatentes – ilegais – não teriam direito às
proteções e benefícios garantidos a um “prisioneiro de guerra” nos termos das
Convenções de Genebra III229
.
Citando o caso dos sabotadores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial,
os consultores jurídicos do governo norte-americano não apenas distanciaram os
indivíduos presos no contexto da guerra no Afeganistão das figuras jurídicas do
“combatente legal” e do “prisioneiro de guerra”, como sublinharam o caráter
criminoso destes inimigos não convencionais. Assim, estes indivíduos não
225
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals: The Law and the War on Terror” in Karen J. Greenberg
and Joshua L. Dratel, with Jeffrey S. Grossman (Ed.), The Enemy Combatant Papers. Op. cit. 226
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 227
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 228
Ver, por exemplo, o memorando de John Yoo e Robert J. Delabunty (comentado a seguir):
YOO, John and DELABUNTY, Robert J., “Memorandum for William J. Haynes II, General
Counsel, Department of Defense”, concerning the “Application of Treaties and Laws to al Qaeda
and Taliban Detainees”, January 9, 2002, (Memo 4) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.38-79. 229
GREENBERG, Karen J. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x.
69
poderiam apenas ser detidos, mas também julgados e punidos por tribunais
militares por suas condutas criminosas.
Este é o fenômeno que Noah Feldman identificou como o “fenômeno do
inimigo-criminoso”230
, observável, por exemplo, em Guantanamo Bay, onde
aqueles detidos como “combatentes ilegais” estariam sendo julgados por crimes
de guerra231
. Tais prisioneiros eram considerados inimigos e criminosos. E como
tal figura híbrida e excepcional, eles eram considerados fora do alcance das
proteções do direito internacional, mas não de sua jurisdição criminal e de seu
braço punitivo.
De um lado, como combatentes (ilegais), os detentos de Guantanamo Bay
poderiam ser enquadrados pelo regime do direito internacional que se aplica aos
conflitos armados, à guerra, porém, como (combatentes) ilegais, estariam fora do
alcance de proteção deste regime. Os direitos e as proteções garantidos a
“combatentes”, “não combatentes” e “prisioneiros de guerra” não poderiam ser
estendidos ou aplicados aos “combatentes inimigos ilegais”. No entanto, isso não
significaria que as obrigações deste regime e do direito internacional em geral não
mais se aplicariam a tais indivíduos.
Do outro lado, como combatentes ilegais ou supostos criminosos de guerra,
os detentos poderiam ser submetidos aos regimes do direito internacional que
cuidam de crimes internacionais, em geral, e das graves violações às Convenções
de Genebra, em particular. Os prisioneiros poderiam ser responsabilizados
criminalmente e punidos por crimes de guerra.
Ademais, como combatentes ilegais e possíveis criminosos de guerra,
detentos numa base naval sob o controle, mas fora do território soberano dos
Estados Unidos, estariam – jurisdicional, geográfica e politicamente – fora do
alcance do direito (civil) norte-americano, do direito internacional geral e do
direito internacional dos direitos humanos232
.
Assim, ao adotar o caso contra os nazistas como um precedente, os
advogados do governo norte-americano traçaram sua estratégia político-jurídica,
230
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 231
FELDMAN, N. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 232
Ver: PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, concerning the “Possible Habeas Jurisdiction over Aliens Held
in Guantanamo Bay, Cuba”, December 28, 2001, (Memo 3) in Greenberg and Dratel (Ed.), The
Torture Papers, Op. cit., p.29-37.
70
afirmando que, em nome da segurança nacional e em razão do caráter sem
precedentes da ameaça do terrorismo fundamentalista islâmico, era necessário re-
entender e re-construir o direito (norte-americano e internacional)233
. O ponto
crucial desta releitura foi precisamente a criação da categoria de combatente
ilegal, uma nova categoria de indivíduo situado fora das proteções do direito
norte-americano e do direito internacional234
.
Na segunda parte deste capítulo, analisa-se os memorandos do governo
norte-americano, dando particular ênfase àqueles enviados pelos advogados do
Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça. A partir da leitura de tais
documentos, identifica-se importantes traços, categorias e posicionamentos que
fundamentaram a arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror. Em
particular, enfoca-se e comenta-se as construções do status dos membros da al
Qaeda e da milícia Talibã e do “espaço-tempo” (im)próprio destes indivíduos.
Finalmente, comenta-se o “papel estruturante” da categoria de combatente ilegal,
destacando seu “lugar” naquela arquitetura, bem como sua alegada “origem”.
Na terceira parte deste capítulo, especula-se sobre e investiga-se esta
alegada “origem” da categoria de combatente ilegal, analisando o “lugar” desta na
arquitetura político-jurídica internacional. Nesse sentido, inspirado no “quase-
conceito” de rastro de Jacques Derrida (comentado na Introdução desta tese),
seguem-se certos rastros constitutivos da categoria de combatente ilegal inscritos
nos memorandos da guerra contra o terror, e em alguns outros textos conexos.
Mais especificamente ao questionar a originalidade desta “origem” e o espaço-
tempo daquele “lugar”, segue-se o rastro de uma categoria que não está presente
em nenhum memorando, mas que, no entanto, parece ser fundamental para
entender, em termos político-jurídicos e histórico-teóricos – internacionais –, o
“papel estruturante” da categoria de combatente ilegal. A partir daqueles
memorandos, então, segue-se o rastro do pirata.
Em seguida, na quarta e última parte, apresenta-se um resumo dos principais
pontos deste capítulo e alguns comentários finais, assim como, busca-se fazer a
transição para o segundo capítulo deste trabalho.
233
GREENBERG, K. “Caught in the War on Terror”, Op. cit., p.x. 234
FELDMAN, N. “Enemy-Criminals”, Op. cit.; GREENBERG, K. “Caught in the War on
Terror”, Op. cit.; DRATEL, J. “Repeating History”, Op. cit.; e LEWIS, A. “Introduction”, Op. cit.
71
1.2
O Combatente Ilegal nos Memorandos da Guerra contra o Terror
Logo após os ataques contra as torres do World Trade Center, em Nova
York, e contra o Pentágono, em Washington D.C., em 11 de setembro de 2001, o
governo norte-americano requereu, sobretudo de seus advogados do Office of the
Legal Counsel, no Departamento de Justiça, opiniões jurídicas sobre a forma mais
adequada de definir e lidar com os indivíduos que teriam sido responsáveis por
tais ataques235
. Os advogados do governo passaram a analisar se tais indivíduos (e
seus associados) deveriam ser definidos e tratados como criminosos, como
inimigos ou como ambos236
.
Os ataques poderiam ser interpretados como violações às leis norte-
americanas e internacionais, sendo os responsáveis definidos e tratados como
criminosos, conforme havia ocorrido com os acusados pelo ataque ao World
Trade Center em 1991237
. Porém, em razão da magnitude dos ataques, bem como
do fato de que estes teriam sido originados no exterior, a situação poderia ser
definida para além do regime de direito penal norte-americano238
.
Apesar de não envolver um ato de outro Estado, uma vez que os ataques
teriam sido planejados e executados pela organização não governamental al
Qaeda, a situação envolvia agressões contra o Estado soberano norte-americano e,
assim, poderia ser entendida como uma situação de guerra. Nesses termos, os
responsáveis poderiam ser definidos como inimigos239
. Diante deste dilema de
crime e/ou guerra, e orientado pelos advogados do Office of the Legal Counsel, o
governo norte-americano optou por tratar supostos membros da al Qaeda (e seus
associados) como ambos, criminosos e inimigos240
.
Em 14 de setembro de 2001, George W. Bush havia proclamado estado de
emergência nacional (Declaration of National Emergency by Reason of Certain
Terrorist Attacks, Proc. 7463), o que lhe havia garantido poderes constitucionais
235
Ver: GREENBERG, Karen J. and DRATEL, Joshua L. (Ed.), The Torture Papers. Op. cit.; e
GREENBERG, Karen J. and DRATEL, Joshua L., with GROSSMAN, Jeffrey S. (Ed.), The
Enemy Combatant Papers. Op. cit. 236
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”. Op. cit., p.xvii. 237
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 238
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 239
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 240
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii.
72
ainda mais amplos para liderar os Estados Unidos na guerra contra o terror241
.
Ademais, a resolução do Congresso autorizando o uso de força militar (o
RCAUFM), adotada em 18 de setembro de 2001, descrevia o adversário de
maneira extremamente vaga, o que, de certo modo, autorizava o Presidente e
Commander-in-Chief a definir e, portanto, lidar com o inimigo da maneira que
julgasse necessária e mais eficaz para a realização dos fins militares determinados
por ele242
.
Nesse contexto, e supostamente confrontando um inimigo incomum,
assimétrico e não estatal, o poder executivo dos Estados Unidos, auxiliado pelos
advogados do Departamento de Justiça, pôde interpretar o RCAUFM de maneira
expansiva, entendendo-se autorizado para perseguir e prender supostos membros
da al Qaeda (e associados) em qualquer lugar que fossem encontrados, por tempo
indefinido, e sem lhes conceder acesso a advogados; em alguns casos, poderiam
inclusive utilizar métodos e técnicas de interrogatório que, convencional e
costumeiramente, eram proibidos pelo direito internacional243
. A situação era
definida como excepcional e, mobilizada para justificar definições e
interpretações jurídicas igualmente sem precedentes244
.
Os memorandos do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça,
portanto, foram fundamentais para a construção da arquitetura político-jurídica da
guerra contra o terror, na medida em que fundamentaram a definição do status
jurídico-político daquele “inimigo-criminoso”245
; traçaram as linhas fundamentais
do “espaço-tempo” e, assim, da “identidade” que a base naval norte-americana de
Guantanamo Bay, em Cuba, iria adquirir no contexto pós 11 de setembro de
2001246
; bem como pavimentaram a estrada que levaria aos abusos de prisioneiros
em Guantanamo e Abu Ghraib247
.
241
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, concerning the “Detention,
Treatment, and Trial of Certain Non-Citizens in the War Against Terrorism”, (Memo 2) in
Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers. Op. cit., p.25. 242
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”. Op. cit., p.xvii. 243
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xvii. 244
DRATEL, Joshua L. “Repeating History: Rights and Security in the War on Terror” in
Greenberg and Dratel, with Grossman (Ed.), The Enemy Combatant Papers. Op. cit., p.xiii 245
LEWIS, Anthony. “Introduction” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers. Op. cit.,
p.xiii. 246
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit.; FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit.; e
GREENBERG and DRATEL, with GROSSMAN (Ed.), The Enemy Combatant Papers, Op. cit. 247
GREENBERG and DRATEL (Ed.), The Torture Papers: The Road to Abu Ghraib, Op. cit.
73
De acordo com Anthony Lewis, a “racionalidade” que produziu tais
memorandos jurídicos não é difícil de ser entendida. Após os ataques de 11 de
setembro, o governo Bush havia declarado que os Estados Unidos estavam em
guerra contra um inimigo incomum. Para derrotar os terroristas da al Qaeda (e
seus associados), o governo precisava ter serviços de inteligência e informações
mais detalhadas sobre seus inimigos não estatais. Contudo, sem tal serviço de
inteligência, o governo seria obrigado a obter informações dos próprios suspeitos
de envolvimento com a al Qaeda que viessem a ser presos248
.
Assim, os advogados e seus memorandos serviriam, pelo menos em parte,
para “racionalizar” e “legitimar” este processo de obtenção de informações
estratégicas no âmbito de uma guerra assimétrica contra um inimigo não estatal
transnacional249
. A premissa do governo Bush era a de que o fim – combater o
terrorismo – justificava os meios escolhidos. Dessa forma, buscou eliminar todo e
qualquer tipo de restrição ou impedimento jurídico que pudesse limitar os meios a
serem utilizados nesta guerra não convencional250
.
Os memorandos jurídicos que fundamentaram a arquitetura político-jurídica
da guerra contra o terror lidavam fundamentalmente com duas questões. De um
lado, buscavam reinterpretar os limites de técnicas para o interrogatório de
suspeitos terroristas251
e, por isso, tais memorandos serem comumente
identificados como os “memorandos da tortura”. De outro lado, buscavam definir
o status jurídico de centenas de prisioneiros da al Qaeda e do Talibã que haviam
sido capturados durante a guerra no Afeganistão e levados para Guantanamo Bay,
em Cuba252
, e, assim, definir se as Convenções de Genebra se aplicavam ou não
às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento de tais prisioneiros.
Neste trabalho de doutorado, são analisados apenas os (primeiros) memorandos
que tratam desta última questão envolvendo, ao mesmo tempo, o status dos
prisioneiros e a aplicação das Convenções de Genebra.
Depois do conflito armado que levou à queda do regime Talibã, centenas de
mulçumanos não afegãos, encontrados no Afeganistão e em países vizinhos,
foram detidos pelas tropas norte-americanas. O status destes prisioneiros não era
248
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiii-xiv. 249
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiii. 250
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 251
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 252
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv.
74
claramente definido. Eles não vestiam uniformes, mas portavam armas; eles não
eram afegãos, mas estavam no país durante o regime Talibã (o que podia sugerir
uma conexão com a al Qaeda). Tais prisioneiros não podiam ser definidos nem
como prisioneiros de guerra convencionais, nem como criminosos comuns253
.
Diante da detenção desses indivíduos em Guantanamo Bay era preciso
definir o status destes prisioneiros e a aplicabilidade ou não de certas regras do
direito internacional, em geral, e do direito internacional humanitário, em
particular, às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento desses
“criminosos-inimigos” capturados. Afinal, era preciso explicar como e por que o
governo norte-americano poderia detê-los de maneira indefinida, sem
comunicação, e sem direito ao contraditório ou à ampla defesa.
O governo Bush, então, passou a denominar estes indivíduos como
“combatentes inimigos ilegais”254
, ou simplesmente “combatentes ilegais”255
,
definindo-os como indivíduos “mais do que criminosos comuns e menos do que
soldados num exército inimigo”256
. Para tanto, o governo fundamentou sua
posição, sobretudo, nos memorandos enviados pelos advogados do Office of the
Legal Counsel do Departamento de Justiça, nos quais o status daqueles
prisioneiros era definido e a não aplicação das Convenções de Genebra era
justificada, juridicamente257
. Um dos “resultados” de tais definições foi o
tratamento abusivo destes detentos no Afeganistão, em Cuba e no Iraque258
.
De modo geral, como destacou Joshua L. Dratel, o tratamento abusivo
perante tais combatentes ilegais pode ser considerado como o resultado de três
propósitos arquitetados político-juridicamente para facilitar a detenção, o
interrogatório, o julgamento e a punição desses indivíduos: (i) o desejo de colocar
tais detentos fora do alcance de qualquer lei ou tribunal (norte-americano,
estrangeiro ou internacional); (ii) o desejo de fazer inaplicáveis as Convenções de
Genebra aos casos de indivíduos presos no contexto dos conflitos armados em
questão; e (iii) o desejo de proteger ou absolver, política e juridicamente, aqueles
253
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 254
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 255
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 256
FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xix. 257
LEWIS, Anthony. “Introduction”, Op. cit., p.xiv. 258
DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.xxi-xxii. Resultado este de conhecimento público desde as publicações de fotos
de Abu Ghraib e de imagens e documentários de Guantanamo Bay.
75
indivíduos – cidadãos norte-americanos – que estabeleceriam e colocariam em
prática tais políticas259
.
Os memorandos, portanto, teriam seguido uma sequência lógica260
.
Primeiro, definiu-se um local seguro, em que cortes e tribunais (norte-americanos,
estrangeiros e internacionais) não pudessem intervir e estabelecer jurisdição:
Guantanamo Bay, Cuba261
. Segundo, definiu-se o status dos membros da al
Qaeda e da milícia Talibã, argumentando-se pela não aplicação das Convenções
de Genebra (e de Haia) àquelas pessoas capturadas durante o conflito armado no
Afeganistão. Finalmente, em terceiro lugar, interpretou-se a lei de tal forma que os
tomadores de decisão e os executores de tais políticas – e “estratégias de
contrarresistência” – fossem protegidos de qualquer acusação penal futura por
crimes de guerra262
.
De acordo com Karen J. Greenberg, as práticas de tortura em Guantanamo
Bay e Abu Ghraib foram, em grande medida, resultado desses memorandos que
requeriam e fundamentavam um posicionamento jurídico-político em relação (i)
ao status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã capturados durante o
conflito no Afeganistão; (ii) ao “espaço-tempo” e status do local em que estes
combatentes ilegais seriam presos; e (iii) aos limites das técnicas ou “estratégias
de contrarresistência” que poderiam ser utilizadas para interrogar estes “inimigos-
criminosos”263
.
Nesse sentido, a autora destaca a fundamental importância das
“racionalidades” e construções jurídicas para a execução de tais “estratégias de
contrarresistência”. Segundo Greenberg, a “procura de fundações legais para essas
estratégias teve início com o argumento de que o Talibã e a al Qaeda não são
protegidos pelas Convenções de Genebra: o primeiro porque o Afeganistão era
àquela época um Estado falido, o segundo porque a al Qaeda é um ator não
259
DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit., p.xxi. 260
DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit., p.xxi. 261
“The U.S. had leased Guantanamo in perpetuity when Cuba was little more than an American-
controlled banana republic. Since Castro‟s revolution, the U.S. had continued to claim and exercise
control there over Cuban protest – but, crucially for the Bush administration‟s legal strategy, not
sovereignty. Guantanamo was therefore of the United States but not in it. The idea was that the
government could do what it wanted there without falling inside the reach of U.S. law, whether
statutory or constitutional.” FELDMAN, Noah. “Enemy-Criminals”, Op. cit., p.xviii. 262
DRATEL, Joshua L. “The Legal Narrative”, Op. cit.; e os demais memorandos in Greenberg
and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit. 263
GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture” in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.xvii-xx.
76
estatal”264
. Este foi um processo que teve início com os memorandos do governo
norte-americano – sobretudo os do Office of the Legal Counsel– que definiram o
status dos prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã, e justificaram a não
aplicação das Convenções de Genebra a estes indivíduos265
.
A seguir, comenta-se estes (primeiros) memorandos da guerra contra o
terror, com particular ênfase à definição do status desses prisioneiros e, assim, à
categoria de combatente ilegal.
1.2.1
Memorando de 25 de setembro de 2001 (Memo 1)
Em 25 de setembro de 2001, John C. Yoo, Deputy Assistant Attorney
General do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um
memorando para Timothy Flanigan, Deputy Counsel do Presidente dos Estados
Unidos, sobre a questão da autoridade constitucional deste para conduzir
operações militares contra terroristas e Estados-Nações que os apoiassem266
.
Respondendo ao questionamento feito por Flanigan sobre o escopo da
autoridade presidencial para adotar medidas militares como resposta aos ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001, Yoo concluiu que o Presidente teria
poderes não apenas para retaliar contra quaisquer pessoas ou organizações
suspeitas de envolvimento nos ataques de 11 de setembro de 2001, como também
para autorizar o uso da força contra Estados que tivessem abrigado ou apoiado tais
pessoas ou organizações267
. Ele lembrou que o próprio Congresso havia
reafirmado tais poderes presidenciais em sua Resolução sobre Poderes de Guerra
(War Powers Resolution) e, mais recentemente, naquele contexto, por meio da
Resolução Conjunta (Joint Resolution) de 14 de setembro de 2001268
.
Na primeira parte do memorando, Yoo analisou o texto e a estrutura
constitucionais, concluindo que a Constituição norte-americana dava ao
Presidente, como Commander-in-Chief e principal órgão da nação em suas
relações exteriores, amplos poderes para determinar o uso de força militar no
264
GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture”, Op. cit., p.xviii. 265
GREENBERG, Karen J. “From Fear to Torture”, Op. cit. 266
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, concerning the “The
President‟s Constitutional Authority to Conduct Military Operations against Terrorists and Nations
supporting them”, September 25, 2001, (Memo 1) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.3-24. 267
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.3. 268
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.3.
77
exterior, especialmente em casos de autodefesa269
. Na segunda parte, analisou
declarações e decisões executivas e judiciais sobre a Constituição e os poderes
presidenciais que confirmavam aquela conclusão270
. Na terceira parte, destacou as
práticas relevantes do Estado norte-americano que corroboravam o entendimento
de que o Presidente tinha autoridade para decidir sobre o uso de força militar em
situações de emergência, como aquela criada pelos ataques terroristas de 11 de
setembro de 2001271
. E, na quarta parte, comentou as resoluções do Congresso
(War Powers Resolution e Joint Resolution), concluindo que estas reafirmavam os
citados poderes do Presidente272
.
O ponto central deste memorando era ressaltar a autoridade constitucional
do Presidente para autorizar – unilateralmente273
– o uso de força militar contra os
terroristas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001 e contra os
Estados que tivessem dado abrigo ou apoio a tais pessoas ou organizações. De
acordo com Yoo, todos os poderes do governo federal norte-americano (o
Congresso, o Executivo e o Judiciário) concordavam sobre tais prerrogativas
presidenciais274
.
O Presidente, portanto, tinha amplos poderes para tomar, unilateralmente,
decisões concernentes ao uso da força militar contra aqueles indivíduos,
organizações ou Estados responsáveis, direta ou indiretamente, pelos atentados de
11 de setembro de 2001, e contra qualquer outro indivíduo, organização ou estado
que colocasse em risco os Estados Unidos e sua população. Desse modo, diante de
tais ameaças, em tais situações de emergência, de acordo com o memorando, o
Presidente, sem limites, ou soberanamente (em termos muito próximos da
concepção de Carl Schmitt sobre “o soberano”275), podia decidir sobre a
existência de qualquer ameaça terrorista, bem como sobre a resposta militar mais
adequada a ser adotada.
269
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.4-10. 270
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.10-14. 271
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.14-20. 272
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.20-23. 273
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.20-21. 274
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan”, Op. cit., p.4. 275
“Sovereign is he who decides on the exception”. SCHMITT, Carl. Political Theology. Op. cit.,
p.5.
78
1.2.2
Ordem Militar de 13 de novembro de 2001 (Memo 2)
Em 13 de novembro de 2001, George W. Bush, como Presidente e
Commander-in-Chief das Forças Armadas dos Estados Unidos, determinou uma
Ordem Militar sobre a “detenção, tratamento, e julgamento de certos não cidadãos
na guerra contra o terrorismo”276
. Nela, identificou que “terroristas
internacionais”, incluindo membros da organização terrorista al Qaeda, tinham
atacado os Estados Unidos e sua população, dentro e fora do território nacional,
numa escala que havia criado um “estado de conflito armado” que requeria o uso
das Forças Armadas norte-americanas277
.
Entre outras constatações e determinações, Bush afirmou que era preciso
prender os indivíduos que pudessem ameaçar o país e a população e julgá-los
perante tribunais militares por violações às leis de guerra e demais leis aplicáveis.
Contudo, em razão do perigo e da natureza do terrorismo internacional, justificou
a não aplicação de certos princípios jurídicos e regras de evidência que geralmente
eram reconhecidos e aplicados nos processos penais norte-americanos. Assim,
reafirmou sua determinação sobre a existência de um estado de emergência
extraordinário para os propósitos de segurança nacional, destacando a importância
de tal Ordem Militar em uma situação emergencial278
.
O Presidente Bush definiu que esta Ordem Militar fosse aplicada a
indivíduos que, nos contextos relevantes, (i) fossem ou tivessem sido membros da
organização al Qaeda; (ii) tivessem participado de, conspirado para ou apoiado
atos de terrorismo internacional perpetrados contra os Estados Unidos, seus
cidadãos, segurança nacional, política externa e economia; ou (iii) tivessem dado
abrigo a tais indivíduos279
. De acordo com o Presidente, era de interesse dos
Estados Unidos que tais indivíduos fossem submetidos a tal Ordem280
.
Nesse sentido, Bush determinou que o Secretário de Defesa tomasse toda e
qualquer providência para que os indivíduos sujeitos a esta Ordem fossem
capturados e julgados nos termos ali estabelecidos. Na seção III do documento
276
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, concerning the “Detention,
Treatment, and Trial of Certain Non-Citizens in the War Against Terrorism”, (Memo 2) in
Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.25-28. 277
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.25. 278
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.25-26. 279
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26. 280
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26.
79
(“Detention Authority of the Secretary of Defense”), estabeleceu a competência
do Secretário de Defesa no que se referia à detenção de tais indivíduos,
determinando, dentre outras coisas, que estes deveriam ser presos em local
apropriado, fora ou dentro dos Estados Unidos, tal como designado pelo
Secretário281
. Na seção IV (“Authority of the Secretary of Defense Regarding
Trials of Individuals Subject to this Order”), foi tratada a competência do
Secretário de Defesa sobre os julgamentos dos indivíduos sujeitos a tal Ordem,
determinando, por exemplo, que estes fossem julgados por comissões militares282
.
E na seção VII (“Relationship to Other Law and Forums”), determinou-se que:
[…] b. With respect to any individual subject to this order – (1) military
tribunals shall have exclusive jurisdiction with respect to offenses by the
individual; and (2) the individual shall not be privileged to seek any
remedy or maintain any proceeding, directly or indirectly, or to have any
such remedy or proceeding sought on the individual‟s behalf, in (i) any
court of the United States, or any State thereof, (ii) any court of any
foreign nation, or (iii) any international tribunal.283
Para os propósitos deste trabalho de doutorado, vale sublinhar aqui esta
pretensão de exclusividade de jurisdição de tais tribunais militares sobre aqueles
indivíduos sujeitos a esta Ordem Militar, os quais, à luz das definições desta, eram
– e só poderiam ser – “não cidadãos”. Estes “outros”, ou seja, não cidadãos norte-
americanos, não poderiam buscar proteção jurídica nem ser representados
legalmente perante qualquer corte dos Estados Unidos, inclusive cortes estaduais
(não militares) norte-americanas, e também não poderiam buscar tal proteção ou
ser representados perante qualquer corte de qualquer nação estrangeira, e nem
perante tribunais internacionais, ou seja, eles deveriam ser submetidos,
exclusivamente, à jurisdição daqueles tribunais militares norte-americanos.
1.2.3
Memorando de 28 de dezembro de 2001 (Memo 3)
Em 28 de dezembro de 2001, Patrick F. Philbin e John C. Yoo, ambos
Deputy Assistant Attorney General do Office of the Legal Counsel do
Departamento de Justiça, enviaram um memorando para William J. Haynes II,
General Counsel do Departamento de Defesa, posicionando-se sobre “possível
281
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.26. 282
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.27. 283
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001”, Op. cit., p.28.
80
jurisdição de habeas [corpus] sobre estrangeiros mantidos em Guantanamo
Bay”284
. Tal memorando tinha como principal objetivo avaliar “se uma corte
distrital federal teria propriamente jurisdição para analisar uma petição de habeas
corpus impetrada em nome de um estrangeiro detido na base naval dos Estados
Unidos em Gantanamo Bay, Cuba (“GBC”)”285
.
De acordo com Philbin e Yoo, tal questão teria sido colocada a eles e ao
Office of the Legal Counsel em razão de propostas que estavam sendo
consideradas pelo Departamento de Defesa para deter em GBC os membros da al
Qaeda e do Talibã que estivessem aguardando julgamento por tribunal militar286
.
Afinal, caso uma corte distrital federal afirmasse sua jurisdição e analisasse uma
petição de habeas corpus impetrada em nome de um dos detentos, ela “poderia
revisar a constitucionalidade da detenção e do uso da comissão militar, a aplicação
de certas provisões de tratados [internacionais], e talvez até o status jurídico dos
membros da al Qaeda e do Talibã”287
.
Philbin e Yoo concluíram que a maioria das autoridades jurídicas indicava
que uma corte distrital federal não teria jurisdição naqueles casos. Contudo,
ponderaram que este não era um posicionamento totalmente pacífico e imune a
críticas ou à eventual manifestação judiciária contrária, ou seja, em favor da
jurisdição distrital federal em tais casos de petição de habeas corpus288
. Assim,
posicionaram-se com cautela289
.
O afastamento da jurisdição distrital federal nestes casos era fundamentado
no precedente estabelecido pelo caso Johnson v. Eisentrager290
, de 1950, em que
284
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, concerning the “Possible Habeas Jurisdiction over Aliens Held
in Guantanamo Bay, Cuba”, December 28, 2001, (Memo 3) in Greenberg and Dratel (Ed.), The
Torture Papers, Op. cit., p.29-37. 285
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 286
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 287
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 288
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 289
“While we believe that the correct answer is that federal courts lack jurisdiction over habeas
petitions filed by alien detainees held outside the sovereign territory of the United States, there
remains some litigation risk that a district court might reach the opposite result.” PHILBIN,
Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General Counsel,
Department of Defense”, Op. cit., p.29. 290
Em tal caso, alemães que haviam ajudado japoneses na China depois da Alemanha ter se
rendido em abril de 1945, e que foram detidos e julgados por tais atos perante uma comissão
81
a Suprema Corte norte-americana havia decidido que cortes federais não tinham
autoridade para analisar petição de habeas corpus impetrada em nome de um
estrangeiro inimigo (enemy alien) “que tivesse sido preso e mantido durante todo
o tempo relevante fora do território dos Estados Unidos”291
. A Suprema Corte
havia sustentado seu posicionamento no ponto “fundamental” de que um
estrangeiro mantido fora dos Estados Unidos – ou seja, “além da soberania
territorial dos Estados Unidos e fora da jurisdição territorial de qualquer corte
norte-americana”292
– não podia apresentar tal petição.
Philbin e Yoo argumentaram que o precedente estabelecido pelo caso
Eisentrager deveria servir para barrar qualquer petição de habeas corpus
impetrada em nome de um “não cidadão” preso em GBC293
. Ressaltaram que a
Suprema Corte havia baseado sua conclusão “no fato de que os prisioneiros foram
detidos, julgados e mantidos num território que ficava fora da soberania dos
Estados Unidos e fora da jurisdição territorial de qualquer corte dos Estados
Unidos”294
; e que “território soberano” e “jurisdição territorial” eram termos
intercambiáveis que haviam sido utilizados pela Suprema Corte como sinônimos
“para explicar por que um estrangeiro não tem direito a habeas corpus quando
mantido fora do território soberano dos Estados Unidos”295
. Consequentemente, a
mesma lógica se aplicaria a GBC porque este local de detenção ficava fora do
território soberano norte-americano296
.
Os autores deste memorando lembraram que os Estados Unidos controlam a
GBC graças a um tratado internacional assinado com Cuba em 1903, o Agreement
Between the United States of America and the Republic of Cuba for the Lease to
militar em Nanking, na China, e posteriormente presos na Alemanha, apresentaram, a partir deste
país, petição de habeas corpus perante a corte distrital norte-americana de Columbia. PHILBIN,
Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General Counsel,
Department of Defense”, Op. cit., p.29 291
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.29. 292
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.30. 293
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 294
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 295
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 296
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31.
82
the United States of Lands in Cuba for Coaling and Naval Stations297
. Tal acordo
teria reconhecido o exercício pleno de jurisdição e o controle dos Estados Unidos
sobre as áreas que seriam o objeto daquele tratado internacional. Contudo, e este
era o ponto central de Philbin e Yoo, este acordo também afirmava,
expressamente, o reconhecimento, por parte dos Estados Unidos, da soberania de
Cuba sobre aquelas mesmas terras e águas que haviam sido objeto do tratado.
Nesses termos, portanto, eles ressaltaram que Cuba tinha soberania
indiscutível sobre aqueles territórios, e que GBC, consequentemente, não estaria
sujeita à soberania dos Estados Unidos298
. Logo, a conclusão de que o
entendimento mais correto sobre aquele tema era o de que as cortes distritais
federais norte-americanas não tinham jurisdição para receber ou analisar petições
de habeas corpus em nome de não cidadãos presos em GBC299
.
Além disso, apontaram diferentes razões pelas quais cortes distritais federais
não iriam aceitar a possível, mas improvável, tese contrária. Entre elas,
destacaram que as cortes hesitariam em razão da natureza excepcional daquela
situação em GBC, ou seja, uma vez que interfeririam “em matérias sob a discrição
exclusiva dos ramos políticos do governo”300
. Eles explicaram:
Detention and Trial of al Qaeda and Taliban members is undertaken
pursuant to the President‟s Commander-in-Chief and foreign affairs
powers. Without a clear statement from Congress extending jurisdiction
to GBC, a court should defer to the executive branch‟s activities and
decisions prosecuting the war in Afghanistan.301
Mas e se um detento convencesse uma corte distrital federal a exercer
jurisdição sobre sua petição de habeas corpus? Quais seriam as possíveis
consequências jurídicas? Estas eram algumas das questões que preocupavam o
Departamento de Defesa norte-americano, e às quais Philbin e Yoo buscavam
responder – ou construir as respostas mais adequadas, tendo em vista as políticas
determinadas pelos “ramos políticos” do governo. Respondendo ao
297
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31. 298
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.31-33. 299
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.33-34. 300
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha. 301
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36.
83
questionamento feito pelo General Counsel do Departamento de Defesa, eles
revelaram o que poderia ser colocado a perder:
You have also asked us about the potential legal exposure if a detainee
successfully convinces a federal district court to exercise habeas
jurisdiction. There is little doubt that such a result could interfere with
the operation of the system that has been developed to address the
detainment and trial of enemy aliens.302
Primeiro, de acordo com eles, uma petição de habeas corpus permitiria que
um destes “estrangeiros inimigos” questionasse (i) a legalidade de seu status e de
seu tratamento perante tratados internacionais, como, por exemplo, as
Convenções de Genebra e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; (ii)
o uso de comissões militares e a validade das acusações de violações das leis da
guerra, tanto à luz do direito internacional quanto do direito doméstico; (iii) a
constitucionalidade das comissões militares e de seus procedimentos à luz dos
desenvolvimentos mais recentes do direito de habeas corpus nos Estados Unidos;
e (iv) a própria autoridade constitucional do Presidente para determinar o uso de
força militar no Afeganistão303
. Eles comentaram ainda uma última questão:
Finally, you have asked about the rights that an enemy alien habeas
petitioner would enjoy as a litigant in federal court, assuming that the
court has found jurisdiction to exist. We are aware of no basis on which a
federal court would grant different litigant rights to a habeas petitioner
simply because he is an enemy alien, other than to deny him habeas
jurisdiction in the first place.304
Philbin e Yoo, cautelosamente, advertindo sobre a possibilidade, mesmo
que remota, de um entendimento contrário por parte de uma corte distrital federal
(o que significaria a possibilidade desses quatro questionamentos e a consequente
interferência na operação daquele “sistema” que havia sido concebido para lidar
com a detenção e o julgamento daqueles “estrangeiros inimigos”), concluíram que
tais cortes federais, à luz do que eles julgavam como sendo o melhor
entendimento jurídico, não teriam jurisdição para cuidar de petição de habeas
302
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha. 303
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. 304
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.36. Ênfase minha.
84
corpus apresentada em nome de um “estrangeiro inimigo” preso em Guantanamo
Bay305
.
No entanto ao concluir o memorando, eles frisaram que “negar a ele [um
“estrangeiro inimigo”] jurisdição de habeas [corpus] em primeiro lugar” era a
única garantia para que esses questionamentos e interferência não colocassem em
risco aquele “sistema” desenvolvido para lidar com a detenção e julgamento de
tais “estrangeiros inimigos”. Neste caso, era importante garantir que tais “não
cidadãos” fossem colocados e mantidos fora do alcance do direito norte-
americano e do direito internacional.
1.2.4
Memorando de 09 de janeiro de 2002 (Memo 4)
Em 09 de janeiro de 2002, John Yoo, Deputy Assistant Attorney General, e
Robert J. Delabunty, Special Counsel, ambos do Office of the Legal Counsel do
Departamento de Justiça, enviaram um memorando a William J. Haynes II,
General Counsel do Departamento de Defesa, em que discutiam a aplicação de
tratados internacionais e leis norte-americanas aos prisioneiros da al Qaeda e do
Talibã306
. Haynes II havia solicitado a opinião do Office sobre os possíveis efeitos
que tratados internacionais e leis norte-americanas poderiam ter em relação ao
tratamento dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã que haviam sido detidos
durante o conflito no Afeganistão307
.
De modo geral, John Yoo e Robert Delabunty concluíram que os tratados
internacionais em questão não protegiam os membros da al Qaeda porque esta era
uma organização não estatal que, em razão desta natureza, não poderia ser parte
contratante de acordos internacionais que regulassem a guerra. Também
concluíram, mas por outros motivos, que tais tratados internacionais não se
aplicavam à milícia Talibã308
.
Yoo e Delabunty estruturaram seus comentários sobre as questões colocadas
por Haynes II a partir da análise da legislação norte-americana, o War Crimes Act
305
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense”, Op. cit., p.37. 306
YOO, John and DELABUNTY, Robert J., “Memorandum for William J. Haynes II, General
Counsel, Department of Defense”, concerning the “Application of Treaties and Laws to al Qaeda
and Taliban Detainees”, January 9, 2002, (Memo 4) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.38-79. 307
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 308
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38.
85
(WCA), e dos principais tratados internacionais aplicáveis, as quatro Convenções
de Genebra. A primeira parte do memorando tratou dessa arquitetura jurídica
fundamental, que era o “pano de fundo” para os comentários e posicionamentos
jurídicos sobre aquelas questões309
. Seus comentários e posicionamentos levavam
em consideração os dois planos que estavam sendo articulados pelo Departamento
de Defesa para o tratamento destes membros da al Qaeda e da milícia Talibã:
First, the Defense Department intends to make available a facility at the
U.S. Navy base at Guantanamo Bay, Cuba, for the long-term detention of
these individuals, who have come under our control either through
capture by our military or transfer from our allies in Afghanistan. We
have discussed in a separate memorandum the federal jurisdiction issues
that might arise concerning Guantanamo Bay [Memo 3, December 28,
2001]. Second, your Department [of Defense] is developing procedures to
implement the President‟s Military Order of November 13, 2001, which
establishes military commissions for the trial of violations of the laws of
war committed by non-U.S. citizens. The question has arisen whether the
Geneva Conventions, or other relevant international treaties or federal
laws, regulate these proposed policies.310
De acordo com eles, o WCA era o ponto de partida mais adequado para a
análise da aplicação ou não das Convenções de Genebra ao tratamento de tais
prisioneiros, sobretudo, tendo em vista estes dois planos que estavam sendo
articulados pelo Departamento de Defesa311
. Nesse sentido, a seção 2441 do WCA
era particularmente importante, na medida em que havia tipificado certos atos
como “crimes de guerra”, incorporando ao direito norte-americano as normas do
direito internacional da guerra e, mais especificamente, as Convenções de
Genebra312
.
Yoo e Delabunty descreveram esta seção do WCA, destacando as quatro
categorias de “crimes de guerra” listadas ali: (i) graves violações (grave breaches)
das Convenções de Genebra; (ii) certos atos que haviam sido proibidos pela
Convenção de Haia IV; (iii) violações do artigo 3º comum das Convenções de
Genebra; e (iv) certas condutas proibidas por outros tratados internacionais dos
quais os Estados Unidos fizessem parte313
.
309
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.39-47. 310
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.39-40. 311
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40. 312
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40. 313
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.40-41.
86
Eles deram particular atenção às graves violações (grave breaches) das
Convenções de Genebra, comentando rapidamente cada uma destas convenções314
e esclarecendo que, enquanto a Convenção de Haia IV havia estabelecido as
regras de conduta contra o inimigo, as Convenções de Genebra haviam
estabelecido as regras para o tratamento das vítimas de guerra315
.
John Yoo e Robert Delabunty enfatizaram que as Convenções de Genebra,
como todos os demais tratados internacionais, vinculavam apenas Estados
soberanos, ou seja, elas não vinculavam organizações e grupos privados ou
“subnacionais”316
. Nesse sentido, destacaram que o artigo 2º comum destas
convenções estabelecia a aplicação de suas normas a todos os casos de guerras
declaradas ou qualquer outro conflito armado “que possa vir a existir entre duas
ou mais das altas partes contratantes”317
, as quais só poderiam ser estados
soberanos.
A seção 2441 do WCA também havia definido violações ao artigo 3º
comum das Convenções de Genebra como crimes de guerra. Eles sublinharam o
fato de que o artigo 3º comum era um complemento do artigo 2º comum destas
Convenções. Reiteraram que este artigo 2º comum aplicava-se apenas aos
conflitos envolvendo duas ou mais das “altas partes contratantes”. E enfatizaram
que o artigo 3º comum se aplicava exclusivamente a “conflito armado de caráter
não internacional”, ou seja, a conflito que ocorresse dentro do território de uma
das “altas partes contratantes”, e que, consequentemente, não envolvesse ataques
que cruzassem as fronteiras do Estado soberano em questão318
.
Nesses termos, reafirmavam a tradicional dicotomia dentro/fora, bem como
reforçavam outros dualismos como estatal/não estatal e internacional/doméstico.
Dessa forma, defenderam a tese de que o texto literal do artigo 3º comum
reconhecia como tal “conflito armado de caráter não internacional” apenas a
guerra civil, ou seja, um conflito de larga escala entre um dos Estados contratantes
314
Eles explicaram, por exemplo, que a Convenção I cuida do tratamento de feridos e doentes nas
forças armadas no solo; que a Convenção II cuida do tratamento de feridos, doentes, e náufragos
nas forças armadas no mar; que a Convenção III regula o tratamento dos prisioneiros de guerra
(prisoners of war ou POWs, em inglês); e que a Convenção IV lida com o tratamento de civis.
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 315
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 316
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 317
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.42. 318
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44.
87
e um grupo insurgente dentro do território soberano deste319
. Segundo Yoo e
Delabunty, uma análise do contexto em que as Convenções foram concluídas e
em que tal artigo havia sido negociado iria corroborar a seguinte tese:
It appears that the drafters of the Conventions had in mind only the two
forms of armed conflict that were regarded as matters of general
international concern at the time: armed conflict between Nation States
(subject to Article 2), and large-scale civil war within a Nation State
(subject to Article 3).320
A evolução histórica do direito dos conflitos armados tinha se dado em três
etapas distintas e subsequentes. Num primeiro momento, o tradicional direito de
guerra teria sido baseado numa dicotomia entre beligerância e insurgência.
Enquanto a primeira categoria aplicar-se-ia a conflitos armados entre dois ou mais
Estados soberanos, a segunda aplicar-se-ia à violência armada dentro do território
de um desses Estados. Esta seria a época estritamente “soberanista” do direito
internacional, em que a soberania era a regra fundamental e o dualismo
dentro/fora era tido como natural e inquestionável. Enquanto as guerras, por
definição conflitos entre Estados soberanos, eram reguladas por regras
internacionais que governavam tanto o conflito quanto a proteção dos não
combatentes, as violências armadas dentro de um Estado não eram reguladas
internacionalmente. A soberania legitimava o espaço doméstico como um
domínio reservado dentro do qual o Estado poderia definir e lidar com “rebeldes”,
“traidores” e “criminosos” conforme julgasse pertinente, e sem a intervenção de
outros Estados ou de regras internacionais321
.
Num segundo momento, que teria tido início com a Guerra Civil espanhola
(1936-39), o direito de guerra teria expandido suas regras para além (ou aquém)
dos conflitos entre Estados soberanos. Neste contexto, alguns princípios de direito
internacional humanitário seriam aplicados também a casos de guerras civis de
grande escala, como o espanhol e o chinês (1947)322
. De acordo com Yoo e
Delabunty, o artigo 3º comum teria sido negociado e concluído neste contexto; ele
teria sido constituído para lidar com este tipo de “conflito armado de caráter não
319
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44. 320
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.44-45. 321
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 322
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45.
88
internacional”, uma guerra civil de grande escala dentro do território soberano de
uma das “altas partes contratantes”323
.
Numa terceira e última etapa, o direito de guerra teria se distanciado ainda
mais drasticamente daquela concepção “soberanista” do direito internacional, uma
vez que o direito internacional dos direitos humanos teria ocupado um espaço
fundamental na arquitetura jurídica internacional324
. Assim, a distinção entre
conflitos armados internacionais e internos teria sido superada, e outras formas de
“conflito armado de caráter não internacional” também deveriam ser reguladas
pelo direito de guerra, agora, mais humanitário e humanizado325
.
Segundo Yoo e Delabunty, esta interpretação teria sido afirmada
recentemente pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc para ex-Iugoslávia no caso
Tadic. O Tribunal ad hoc teria considerado que o artigo 3º comum aplicava-se não
apenas a guerras civis entre um Estado soberano e um grupo insurgente dentro do
território do primeiro, mas a todos os conflitos armados que não fossem
internacionais, ou seja, que não fossem incluídos no artigo 2º comum326
. Yoo e
Delabunty, no entanto, colocaram-se contrários a esta interpretação do Tribunal
ad hoc da ONU, comentando e enfatizando que esta era uma interpretação errônea
do artigo 3º comum, pois
“In conjunction with common Article 2, the text of Article 3 simply does
not reach international conflicts where one of the parties is not a Nation State.”327
Consequentemente, nem todos os conflitos armados teriam sido incluídos
pela arquitetura jurídica desenhada, complementarmente, pelos artigos 2º e 3º
comuns; sobretudo, aqueles que não tinham sido – e nem poderiam ter sido –
vislumbrados àquela época em que as Convenções de Genebra foram negociadas e
concluídas. Então, o ponto sublinhado por eles era o de que:
[...] an armed conflict between a Nation State and a transnational
terrorist organization, or between a Nation State and a failed State
harboring and supporting a transnational terrorist organization, could
323
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 324
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 325
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.45. 326
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46. 327
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46.
Ênfases minhas.
89
not have been within the contemplation of the drafters of common Article
3.328
Feitos tais comentários e posicionamentos introdutórios, e construído o
contexto normativo-interpretativo mais adequado, Yoo e Delabunty passaram ao
ponto central do memorando: a questão da aplicação ou não das Convenções de
Genebra aos membros da al Qaeda e do Talibã que haviam sido capturados no
conflito do Afeganistão (e no contexto mais amplo da guerra contra o terror). Na
segunda parte do memorando, eles analisaram a aplicação ou não destes tratados
internacionais à al Qaeda329
; e na terceira, a aplicação ou não destes tratados à
milícia Talibã330
.
Logo na primeira frase da segunda parte, Yoo e Delabunty afirmaram,
categoricamente, que os membros da “organização terrorista al Qaeda” não eram
protegidos pelas leis de guerra: “It is clear from the foregoing statements that
members of the al Qaeda terrorist organization do not receive the protections of
the laws of war”331
. E nem as condições de sua detenção ou os procedimentos de
seu julgamento pelas Forças Armadas norte-americanas estavam sujeitos às
Convenções de Genebra332
.
De acordo com eles, havia três razões que sustentavam esta conclusão. Em
primeiro lugar, o status da al Qaeda como um ator não estatal a fazia inelegível
para requerer as proteções das Convenções de Genebra. Segundo, a natureza do
conflito entre os Estados Unidos e a organização terrorista al Qaeda afastava a
possibilidade de aplicação do artigo 3º comum das Convenções de Genebra. E
terceiro, os membros desta organização terrorista não satisfaziam as condições de
elegibilidade ao status de prisioneiro de guerra nos termos, mais recentes, da
Convenção de Genebra III e, originalmente, da Convenção de Haia IV333
.
Num primeiro passo, portanto, os autores buscaram enfatizar a natureza não
estatal da “organização terrorista da al Qaeda”, e, assim, afastá-la dos acordos
internacionais que governavam as leis de guerra e, sobretudo, do regime de
proteção estabelecido pelas quatro Convenções de Genebra. Como uma
328
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.46-47.
Ênfases minhas. 329
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-50. 330
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 331
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 332
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 333
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-50.
90
organização não estatal, a al Qaeda não era – e nem poderia ser – uma “alta parte
contratante” destes tratados internacionais, o que significava que estes não se
aplicavam nem a ela e nem a seus membros334
. Eles argumentaram:
Common Article 2, which triggers the Geneva Convention provisions
regulating detention conditions and procedures for trial of POWs, is
limited only to cases of declared war or armed conflict “between two or
more of the High Contracting Parties.” Al Qaeda is not a High
Contracting Party. As a result the U.S. military‟s treatment of al Qaeda
members is not governed by the bulk of the Geneva Conventions,
specifically those provisions concerning POWs.335
Em seguida, buscaram afastar a possibilidade de aplicação das Convenções
de Genebra ao(s) conflito(s) armado(s) (mais especificamente, ao conflito no
Afeganistão; e, de maneira mais ambígua e questionável, à guerra contra o terror)
em que os Estados Unidos haviam se engajado no pós 11 de setembro de 2001,
destacando que, à luz do artigo 3º comum, lido em harmonia com o artigo 2º
comum, tais Convenções se aplicavam a apenas dois tipos de conflito armado:
guerras entre Estados soberanos (artigo 2º comum) e guerras civis, ou seja,
conflitos não internacionais (artigo 3º comum)336
.
O conflito com a al Qaeda não se encaixava em nenhuma destas duas
categorias, uma vez que se tratava de um conflito “entre um Estado-Nação e uma
organização não governamental”, mas que não era “uma guerra civil nos termos
do artigo 3º”, em razão de seu “caráter internacional”337
. Não se tratava nem de
uma guerra estritamente internacional, ou seja, entre Estados soberanos, e nem de
uma guerra civil entre grupos que disputavam, internamente, o controle de um
governo ou território338
.
Num terceiro momento, Yoo e Delabunty destacaram que, nos termos
estabelecidos pelas Convenções de Genebra III e de Haia IV, os membros da al
Qaeda não satisfaziam as condições de elegibilidade ao status de prisioneiro de
guerra339
. Opuseram-se então, em primeiro lugar, a um possível entendimento de
que os termos do artigo 4º da Convenção de Genebra III pudessem suscitar a
334
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 335
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48. 336
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 337
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 338
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 339
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49-50.
91
inclusão dos membros da al Qaeda no regime de proteção de prisioneiros de
guerra estabelecido por este tratado340
.
Comentaram que o artigo 4º(A)(2) deste tratado internacional definia a
categoria de prisioneiro de guerra não apenas em relação aos membros capturados
das forças armadas de uma “alta parte contratante”, mas também em relação a
forças irregulares como “milícias”, “membros de corpos voluntários” e
“movimentos de resistência organizados”; e que o artigo 4º(A)(3) incluía ainda os
membros de forças armadas regulares associados a uma autoridade ou governo
não reconhecido pelo Estado detentor341
. Preventivamente (e estrategicamente),
especularam a possível tentativa de interpretar tais artigos de modo a incluir os
membros da al Qaeda.
Mas, logo em seguida, concluíram que esta seria uma interpretação errônea,
insustentável juridicamente342
, pois o artigo 4º não expandia a aplicação da
Convenção de Genebra III além dos conflitos expressamente identificados nos
artigos 2º e 3º comuns. Estes artigos estabeleciam a arquitetura jurisdicional da
Convenção, o que significava que o artigo 4º (que não era um “artigo
jurisdicional”) se aplicava apenas quando algum dos conflitos previstos nestes
artigos jurisdicionais existisse343
. E mesmo nestes casos, tal artigo apenas
especificava quem deveria receber o status de prisioneiro de guerra344
.
Para Yoo e Delabunty, o conflito no Afeganistão, pelos motivos comentados
anteriormente, não podia ser definido nem como um conflito (internacional) sob a
jurisdição do artigo 2º comum, nem como um conflito (doméstico) sob a
jurisdição do artigo 3º comum. Portanto, concluíram que o artigo 4º da Convenção
de Genebra III não poderia ser aplicado ao conflito iniciado no contexto pós 11 de
setembro de 2001345
.
Num segundo movimento (igualmente preventivo e estratégico), eles
afirmaram que, mesmo no caso em que o artigo 4º fosse considerado jurisdicional
e substantivo ao mesmo tempo (para além do que estabelecido pelos seus próprios
340
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 341
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 342
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 343
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.49. 344
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 345
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.
92
termos), ainda assim, os membros da al Qaeda capturados não receberiam a
proteção do status de prisioneiro de guerra. Eles explicaram:
Article 4(A)(2), for example, further requires that the militia or volunteers
fulfill the conditions first established by the Hague Convention IV of
1907 for those who would receive the protections of the laws of war.
Hague Convention IV declares that the “laws, rights and duties of war”
only apply to armies, militia, and volunteer corps when they fulfill four
conditions: command by responsible individuals, wearing insignia,
carrying arms openly, and obeying the laws of war.346
A conclusão de Yoo e Delabunty era categórica:
Al Qaeda members have clearly demonstrated that they will not follow
these basic requirements of lawful warfare. They have attacked purely
civilian targets of no military value; they refused to wear uniform or
insignia or carry arms openly, but instead hijacked civilian airliners, took
hostages, and killed them; they have deliberately targeted and killed
thousands of civilians; and they themselves do not obey the laws of war
concerning the protection of the lives of civilians or the means of
legitimate combat. Thus, Article 4(A)(3) is inapt because al Qaeda do not
qualify as “regular armed forces”, and its members do not qualify for
protection as lawful combatants under the laws of war.347
Portanto, no que se referia à aplicação das Convenções de Genebra
(especialmente a da terceira) aos membros da al Qaeda, a conclusão do
memorando de 09 de janeiro de 2002 era objetiva, clara e pontual: não, as
Convenções de Genebra não se aplicavam à al Qaeda, sobretudo porque esta era
uma organização terrorista não estatal, pois o conflito contra ela não era nem
interestatal (guerra) e nem doméstico (guerra civil), uma vez que ela não era uma
força armada regular, e porque seus membros não eram combatentes legais
(lawful combatants).
Após definirem o status dos membros da al Qaeda, a natureza do conflito e
a inelegibilidade destes indivíduos ao status de prisioneiro de guerra, Yoo e
Delabunty concentram-se, então, no caso dos membros da milícia Talibã. E logo
na primeira frase desta terceira parte do memorando348
, sublinharam que a questão
346
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 347
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.
Ênfase minha. 348
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.
93
jurídica sobre a aplicação ou não das Convenções de Genebra à detenção e
julgamento dos membros desta milícia era mais difícil de responder349
.
O Afeganistão era uma “alta parte contratante” das quatro Convenções de
Genebra desde setembro de 1956, o que, para muitos, significava que tais
convenções deveriam ser aplicadas ao conflito em questão e, sobretudo, à milícia
Talibã350
. Contudo, como os autores do memorando se apressaram a enfatizar,
esta conclusão dependia das premissas de que, durante o período em que a milícia
Talibã era dominante no Afeganistão, o Talibã representava o governo, de facto,
deste Estado-Nação; de que o Afeganistão continuou possuindo os atributos
essenciais de um Estado soberano; e de que este governo (Talibã) continuou
cumprindo os termos desses tratados internacionais351
. Foram essas as premissas
que os autores buscaram deslegitimar e refutar nesta parte do memorando.
De modo geral, Yoo e Delabunty concluíram que todas essas premissas
eram falsas. Para eles, o Afeganistão, naquele período, era um Estado falido, um
Estado que havia sido dominado pela violência de uma milícia ou facção
ilegítima. O Afeganistão havia deixado de deter todos os atributos de um Estado
soberano e, assim, falido, não podia continuar sendo reconhecido como uma das
“altas partes contratantes” daqueles tratados. Portanto, a milícia Talibã – tal como
a al Qaeda – não tinha direito às proteções das Convenções de Genebra. O
argumento era que havia provas suficientes de que, àquela época, a milícia Talibã
era dominada pela al Qaeda, o que impedia, logicamente, que a milícia afegã
tivesse um tratamento diferente desta organização terrorista no que se referia à
aplicação ou não das Convenções de Genebra352
.
Yoo e Delabunty começaram esta terceira parte do memorando destacando
os poderes constitucionais do Presidente para interpretar e aplicar tratados
internacionais e determinar, categórica e unilateralmente, que o Afeganistão, sob o
comando do Talibã, havia deixado de atuar plenamente como um Estado
349
Tamanha dificuldade se traduziu no próprio corpo do memorando. Enquanto aquela segunda
parte dedicada à al Qaeda havia ocupado cerca de três páginas apenas, essa terceira parte dedicada
ao Talibã ocupou cerca de vinte páginas, divididas em seis subseções: “A. Constitutional
Authority”; “B. Status as a Failed State”; “C. Implications Under the Geneva Conventions”; “D.
Historical Application of the Geneva Conventions”; “E. Suspension of The Geneva Conventions
as to Afghanistan”; e “F. Suspension Under International Law”. YOO, J. and DELABUNTY, R.
J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 350
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 351
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 352
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.
94
soberano353
. Em seguida, eles exploraram a tese de que o Afeganistão era um
Estado falido, baseando-se, sobretudo, nas informações que haviam sido providas
pelo Departamento de Defesa norte-americano354
.
Essa condição de falência se dava por vários motivos, mais notoriamente,
por causa do colapso do Estado e de suas instituições centrais, evidenciado na
realidade de violência generalizada e no predomínio de uma milícia violenta no
suposto governo daquele território355
. Àquela época de domínio da milícia Talibã,
o Afeganistão vivia num Estado de anarquia ou, mais precisamente, nos termos de
Yoo e Delabunty, numa condição de “statelessness”356
.
O Talibã era identificado como uma “milícia tribal”357
, uma “facção tribal e
guerreira”358
que, além de não ter sido reconhecida pela comunidade
internacional359
, exibia “características de uma gangue criminosa”360
;
características estas que eram ainda mais intensificadas em razão da aproximação
do Talibã à al Qaeda361
.
De acordo com os autores do memorando, o Talibã e a al Qaeda eram tão
próximos, e, por vezes, indistinguíveis, que não era possível considerar a milícia
afegã como um ator independente; pelo contrário, era possível afirmar que esta era
cúmplice da organização em atos terroristas362
. Logo, a milícia Talibã – assim
como a al Qaeda – não era e nem deveria ser protegida pelas Convenções de
Genebra.
Havia basicamente um argumento sendo proposto, o de que o Afeganistão
havia deixado de ser uma “alta parte contratante” destes tratados internacionais. E
a fundamentação deste argumento poderia ser construída de duas maneiras
diferentes, independentes uma da outra ou correlacionadas: (i) por meio do
reconhecimento e determinação presidencial de que o Afeganistão, à época
relevante, era um Estado falido; e/ou (ii) por meio do reconhecimento e
353
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.52-53. 354
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53. 355
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53. 356
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 357
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 358
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.55. 359
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.58. 360
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.57. 361
Ver, sobretudo, YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”,
Op. cit., p.57-59. 362
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.59.
95
determinação presidencial de que a milícia Talibã, na prática, era indistinguível da
organização terrorista al Qaeda363
.
Num terceiro momento desta terceira parte364
, Yoo e Delabunty comentaram
as implicações de tais posicionamentos e determinações para efeitos da aplicação
das Convenções de Genebra aos membros do Talibã. A primeira implicação era a
de que o artigo 2º comum não se aplicava ao caso em questão, uma vez que ele
estabelecia sua jurisdição apenas em casos de guerras internacionais entre “altas
partes contratantes”. A segunda implicação era a de que nem mesmo os padrões
mínimos estabelecidos pelo artigo 3º comum se aplicavam aos membros desta
milícia, não só porque aquele não era um “conflito não internacional”, mas
também porque tal artigo se aplicava apenas a “conflito não internacional” que
ocorresse dentro do território de uma das “altas partes contratantes” daqueles
tratados internacionais365
.
Dessa forma, uma vez que os termos jurisdicionais destes artigos não se
aplicavam ao conflito entre os Estados Unidos e a milícia Talibã366
, os membros
desta milícia estariam fora da proteção das Convenções de Genebra367
. Tais
indivíduos, quando capturados, não teriam direito à proteção do artigo 4º da
Convenção de Genebra III, e, portanto, ao status de prisioneiro de guerra. A
milícia Talibã não era um exército e nem uma força armada regular.
Assim, ela não se encaixava nos termos estabelecidos pelos artigos 4º(A)(1)
e 4º(A)(3). Apesar de o 4º(A)(2) ter reconhecido a proteção de pessoas que
pertencessem a forças armadas que não fossem regulares, como milícias e
movimentos de resistência organizados, a milícia Talibã não cumpria as condições
mínimas necessárias impostas por este artigo368
. Os membros desta milícia,
portanto, não teriam direito à proteção do status de prisioneiro de guerra nos
termos da Convenção de Genebra III, mesmo que aquele artigo 4º se aplicasse ao
caso em tela.
363
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60-61. 364
Este terceiro momento, a subseção “C. Implications Under the Geneva Convention”, não
consta no segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais
adiante, o item 1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 365
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60. 366
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.60. 367
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.61. 368
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.61.
96
Na quarta subseção desta parte369
, os autores explicaram que, mesmo não
vinculando juridicamente os Estados Unidos, as Convenções de Genebra
poderiam, ainda assim, ser aplicadas a este conflito como resultado de uma
decisão política do governo norte-americano370
. Isso significava que os Estados
Unidos poderiam aplicar os padrões consuetudinários do direito de guerra aos
membros da milícia Talibã capturados, mesmo que estes não tivessem direito ao
status de prisioneiro de guerra. Nesses termos, seria possível julgar e punir estes
indivíduos pelos crimes de guerra que tivessem cometido371
.
Na quinta subseção desta parte372
, Yoo e Delabunty comentaram a
possibilidade – jurídica – do Presidente dos Estados Unidos, munido de seus
poderes constitucionais, suspender as Convenções de Genebra em relação ao
Afeganistão. Assim, independentemente deste país ser um estado falido ou não, o
Presidente poderia determinar a não aplicação, temporária e específica, de tais
tratados internacionais ao decidir pela suspensão destas obrigações internacionais
àquele caso pontual. Este posicionamento poderia ser fundamentado por meio de
evidências de que o Afeganistão, sob o controle da milícia Talibã, não estava
cumprido, ou, de fato, estava sistematicamente violando as obrigações
internacionais estabelecidas por aqueles tratados internacionais373
. Ademais, o
Presidente poderia alegar que o Afeganistão mantinha, àquela época, íntimo
relacionamento com a organização terrorista al Qaeda, a qual era responsável por
ataques a populações civis374
.
Por fim, numa última subseção, eles trataram do problema da suspensão de
tratados internacionais no direito internacional. Do ponto de vista doméstico, do
direito constitucional norte-americano, não havia qualquer dúvida quanto à
possibilidade do Presidente adotar aqueles posicionamentos e conclusões em
relação a não aplicação das Convenções de Genebra aos membros da milícia
Talibã. No entanto, era preciso analisar se tais posicionamentos e conclusões
369
Esta quarta subseção (“D. Historical Application of the Geneva Conventions”), não consta no
segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais adiante, o item
1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 370
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.62. 371
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.62. 372
Esta quinta subseção (“E. Suspension of The Geneva Conventions as to Afghanistan”), não
consta no segundo memorando do Office of Legal Counsel sobre o mesmo tema. Ver, mais
adiante, o item 1.2.6 (Memo 6) deste trabalho. 373
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.64. 374
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.65.
97
estavam de acordo ou violavam o direito internacional375
. Para eles, esta questão
deveria ser considerada apenas como uma forma de justificar as ações dos Estados
Unidos no “mundo da política internacional”376
, e não para determinar
juridicamente as decisões do Presidente.
Eles ponderaram, no entanto, que, nos termos das próprias Convenções de
Genebra, assim como nos termos da Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados, seria possível alegar, no caso da decisão norte-americana de suspender
aquelas convenções, que os Estados Unidos estavam violando o direito
costumeiro internacional. Isso porque, à luz de certas interpretações desses
tratados internacionais e do direito internacional costumeiro, certas proteções à
pessoa humana estabelecidas por tratados de caráter humanitário não podiam ser
suspensas, ou seja, as Convenções de Genebra eram aplicáveis aos membros do
Talibã capturados377
.
Contudo, para Yoo e Delabunty, tais interpretações eram incorretas. Pelos
motivos apresentados anteriormente, eles avançaram a tese de que os Estados
Unidos poderiam, sim, suspender tais convenções, sem incorrerem em violações
do direito internacional. Concluíram ainda que o Presidente, valendo-se dos
próprios termos das Convenções de Genebra, dos termos da Convenção de Viena,
bem como dos termos do direito internacional costumeiro, poderia suspender as
Convenções de Genebra especificamente em relação à milícia Talibã378
.
Na última parte do memorando, Yoo e Delabunty comentaram a questão do
direito internacional costumeiro da guerra. Tendo analisado se o direito doméstico
norte-americano, mais especificamente o War Crimes Act, e o direito
internacional convencional, mais especificamente as Convenções de Genebra,
aplicavam-se à detenção e ao julgamento dos prisioneiros da al Qaeda e da
milícia Talibã, eles passaram a analisar a aplicação do direito internacional
costumeiro ao caso em tela379
. Da mesma forma, concluíram que este direito
internacional também não se aplicava ao conflito no Afeganistão380
.
375
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.67. 376
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.67. 377
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.68. 378
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70. 379
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70-79. 380
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70.
98
Num primeiro momento, eles destacaram que o direito internacional
costumeiro não poderia ser considerado lei federal para efeitos do ordenamento
jurídico norte-americano, tendo em vista, por exemplo, que não havia passado
pelo crivo constitucional do processo legislativo adequado. Assim, não tendo
status de lei federal, o direito internacional costumeiro não poderia impor
qualquer forma de limite aos poderes constitucionais do Presidente naquele
contexto específico do conflito armado pós 11 de setembro381
.
Claramente afirmando uma postura “soberanista” – e dualista – do direito
internacional, eles enfatizaram que os poderes constitucionais do Presidente,
como chefe do Executivo e Commander-in-Chief, naquele momento, deveriam ser
entendidos como a principal fonte para a interpretação e aplicação do direito
internacional, fosse ele convencional ou costumeiro. Dessa forma, o Presidente
podia decidir se o direito internacional costumeiro se aplicava ou não àquelas
circunstâncias382
. Mas, de modo algum, ele era constrangido ou impedido pelo
direito internacional geral no que se referia à conduta dos Estados Unidos na
guerra no Afeganistão383
.
No entanto, mesmo que o direito internacional costumeiro não limitasse o
Presidente e nem as ações militares dos Estados Unidos, isso não significava que
o Presidente não podia determinar a aplicação do direito internacional costumeiro
aos membros da al Qaeda e do Talibã, especialmente no que se referia às
obrigações do direito da guerra impostas a estes indivíduos384
. Os autores
concluíram:
Thus, the President can properly find the unprecedented conflict between
the United States and transnational terrorist organizations a “war” for the
purpose of the customary or common laws of war. Certainly, given the
extent of hostilities both in the United States and Afghanistan since the
September 11 attacks on the World Trade Center and the Pentagon, the
scale of the military, diplomatic and financial commitments by the United
States and its allies to counter the terrorist threats, and the expected
duration of the conflict, it would be entirely reasonable for the President
to find that a condition of “war” existed for purposes of triggering
application of the common laws of war. He could also reasonably find
that the al Qaeda, the Taliban militia, and other related entities that are
engaged in conflict with the United States were subject to the duties
imposed by those laws. Even if members of these groups and
381
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.70. 382
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.74. 383
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.76. 384
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.76.
99
organizations were considered to be merely “private” actors, they could
nonetheless be held subject to the laws of war.385
Tendo em vista os propósitos deste trabalho, é importante destacar aqui que
os autores concluíram este parágrafo com uma nota de rodapé (n.132) que fazia
referência ao precedente histórico desta possibilidade de responsabilizar
indivíduos “privados” por violações às leis da guerra386
. Nesta nota, eles citaram
um trecho do caso Kadic v. Karadzic em que se explicava que a responsabilização
criminal de indivíduos “privados” por crimes de guerra era reconhecida desde a
Primeira Guerra Mundial havia sido confirmada no Tribunal de Nuremberg depois
da Segunda Guerra mundial, e continuava sendo, até os dias de hoje, um
importante aspecto do direito internacional387
.
Por fim, eles analisaram a possibilidade de aplicação dessas mesmas leis e
costumes da guerra contra oficiais norte-americanos, em caso de violações
cometidas por estes indivíduos a essas normas. A conclusão, novamente, foi a de
que o Presidente poderia determinar se elas seriam ou não aplicáveis aos soldados
americanos, e em que termos isso se daria388
. No entanto, destacaram que nada
impedia que o Presidente determinasse de forma contrária, e que nada ali
contribuía para a conclusão de que os membros das Forças Armadas norte-
americanas estariam imunes à justiça militar em caso de crimes de guerra
cometidos por eles389
.
Yoo e Delabunty concluíram o memorando reafirmando que nem o War
Crimes Act e nem as Convenções de Genebra se aplicavam às condições de
detenção em Guantanamo Bay ou aos procedimentos do julgamento militar dos
prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã. Eles concluíram, ademais, que o
direito internacional costumeiro não tinha efeito jurídico sobre o Presidente e nem
sobre o exército norte-americano, uma vez que não era lei federal nos termos da
Constituição dos Estados Unidos. No entanto, o Presidente tinha plenos poderes
385
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.77. 386
Ver a nota de rodapé n.132: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J.
Haynes II”, Op. cit., p.77. 387
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.77,
n.132. 388
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.78. 389
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.78-79.
100
constitucionais para impor o direito costumeiro da guerra tanto à al Qaeda e ao
Talibã quanto às Forças Armadas norte-americanas390
.
1.2.5
Memorando de 19 de janeiro de 2002 (Memo 5)
Em 19 de janeiro de 2002, Donald H. Rumsfeld, Secretário de Defesa dos
EUA, enviou um memorando391
para o Presidente do Joint Chiefs of Staff
informando que o governo dos Estados Unidos havia determinado que os
membros da al Qaeda e da milícia Talibã sob o controle do Departamento de
Defesa não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra para efeitos das
Convenções de Genebra de 1949392
. No entanto, determinou que tais indivíduos
fossem tratados humanamente e, respeitada a necessidade militar, de maneira
consistente com os princípios das Convenções de Genebra de 1949393
. Solicitou
ainda que tais ordens fossem transmitidas aos comandantes combatentes e a seus
comandantes subordinados.
1.2.6
Memorando de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6)
Em 22 de janeiro de 2002, Jay S. Bybee, Assistant Attorney General do
Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um memorando
para Alberto R. Gonzales, Counsel do Presidente, e para William J. Haynes II,
General Counsel do Departamento de Defesa, cujo objeto era, novamente, a
aplicação de tratados internacionais e leis norte-americanas aos membros
capturados da al Qaeda e da milícia Talibã394
. O status jurídico destes prisioneiros
e a aplicação ou não desses tratados e leis já haviam sido discutidos anteriormente
por John Yoo e Robert J. Delabunty no memorando encaminhado para William J.
390
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 391
SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”
concerning the “Status of Taliban and Al Qaeda”, January 19, 2002, (Memo 5) in Greenberg and
Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.80. 392
SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”, Op. cit.,
p.80. 393
SECRETARY of Defense, “Memorandum for Chairman of the Joint Chiefs of Staff”, Op. cit.,
p.80. 394
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President, and William
J. Haynes II, General Counsel of the Department of Defense” concerning the “Application of
Treaties and Laws to al Qaeda and Taliban Detainees”, January 22, 2002, (Memo 6) in Greenberg
and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.81-117.
101
Haynes II em 09 de janeiro de 2002 (Memo 4, comentado anteriormente no parte
1.2.4.)395
.
Os dois memorandos (Memos 4 e 6) tinham o – mesmo – propósito de
analisar “se certos tratados [internacionais] que são parte das leis dos conflitos
armados se aplicam [aplicavam] às condições de detenção e aos procedimentos
para julgamento de membros da al Qaeda e da milícia Talibã”396
. E, ressalvadas
certas diferenças e especificidades comentadas a seguir, as conclusões gerais de
Bybee neste memorando de 22 de janeiro foram praticamente idênticas às de Yoo
e Delabunty naquele memorando de 09 de janeiro397
.
Dos memorandos analisados neste trabalho, estes dois eram os mais longos
(e os mais importantes para os propósitos desta tese de doutorado). Enquanto o
memorando de 09 de janeiro, enviado por Yoo e Delabunty, tinha 42 páginas e era
dividido em quatro partes398
, o memorando de 22 de janeiro de 2002, enviado por
Bybee, tinha 37 páginas e cinco partes399
. As duas primeiras partes dos
memorandos eram praticamente idênticas400
. A terceira era a mesma nos dois
documentos, mas sofreu algumas mudanças em suas subseções. Enquanto no
395
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit. 396
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.81. Ver passagem quase idêntica em: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for
William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 397
“We conclude that these treaties do not protect members of the al Qaeda organization, which as
a non-State actor cannot be a party to the international agreements governing war. We further
conclude that the President has sufficient grounds to find that these treaties do not protect members
of the Taliban militia. This memorandum expresses no view as to whether the President should
decide, as a matter of policy, that the U. S. Armed Forces should adhere to the standards of
conduct in those treaties with respect to the treatment of prisoners.” BYBEE, Jay S.,
“Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.81. A única
diferença é que a segunda frase (“We further conclude that the President has sufficient grounds to
find that these treaties do not protect members of the Taliban militia”) é mais curta no memorando
de Yoo e Delabunty: “We further conclude that these treaties do not apply to the Taliban militia.”
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38. 398
As quarto partes eram: “I. Background and Overview of the War Crimes Act and the Geneva
Conventions”; “II. Application of WCA and Associated Treaties to al Qaeda”; “III. Application of
the Geneva Conventions to the Taliban Militia”; e “IV The Customary International Laws of
War” YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.38-
79. 399
As cinco partes eram: “I. Background and Overview of the War Crimes Act and the Geneva
Conventions”; “II. Application of WCA and Associated Treaties to al Qaeda”; “III. Application of
the Geneva Conventions to the Taliban Militia”; “IV. Detention Conditions Under Geneva III”; e
“V. Customary International Law” BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and
William J. Haynes II”, Op. cit., p.81-117. 400
Comparar BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”,
Op. cit., p.81-90 e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”,
Op. cit., p.38-50.
102
memorando de Yoo e Delabunty havia seis subseções401
, no de Bybee havia
quatro402
. Ademais, a antiga quarta parte do memorando de 09 de janeiro foi
transformada numa quinta parte do memorando de 22 de janeiro; e de suas antigas
três subseções apenas a primeira permaneceu403
. Mas, a principal novidade do
memorando de Bybee foi uma nova quarta parte que tratava do tema das
condições de detenção à luz da Convenção de Genebra III, e, numa de suas duas
subseções, comentava especificamente o status dos prisioneiros pertencentes ao
Talibã de acordo com os termos do artigo 4º deste tratado internacional404
.
Em linhas gerais, as conclusões finais sobre o objeto central desses dois
memorandos foram praticamente idênticas. Tanto Yoo e Delabunty como Bybee
posicionaram-se no sentido de que os tratados internacionais e as leis norte-
americanas, mais especificamente as Convenções de Genebra e o War Crimes Act,
não se aplicavam às condições de detenção e aos procedimentos de julgamento
dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã presos em Guantanamo Bay405
. No
entanto, houve diferenças e especificidades importantes.
Em seu memorando de 22 de janeiro de 2002, Bybee concluiu:
For the foregoing reasons, we conclude that neither the federal War
Crimes Act nor the Geneva Conventions would apply to the detention
conditions of al Qaeda prisoners. We also conclude that the President has
the plenary constitutional power to suspend our treaty obligations toward
Afghanistan during the period of the conflict. He may exercise that
401
As seis subseções eram: “A. Constitutional Authority”; “B. Status as a Failed State”; “C.
Implications Under the Geneva Conventions”; “D. Historical Application of the Geneva
Conventions”; “E. Suspension of The Geneva Conventions as to Afghanistan”; e “F. Suspension
Under International Law”. YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J.
Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 402
Neste memorando, três subseções tinham sido mantidas idênticas (“Constitutional Authority”;
“Status as a Failed State”; e, a agora “C”, “Suspension Under International Law”), as antigas
subseções “C”, “D” e “E” haviam sido descartadas, e uma nova subseção havia sido incluída (“D.
Application of the Geneva Convention As a Matter of Policy”). BYBEE, Jay S., “Memorandum
for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90-107. 403
As três subseções da quarta parte do memorando de 09 de janeiro eram: “A. Is Customary
International Law Federal Law?”; “B. Do the Customary Laws of War Apply to al Qaeda or the
Taliban Militia?”; e “C. May a U.S. Servicemember be Tried for Violations of the Laws of War?”.
Para as alterações, comparar: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and
William J. Haynes II”, Op. cit., p.111-116 e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for
William J. Haynes II”, Op. cit., p.70-79. 404
A quarta parte era: “IV Detention Conditions Under Geneva III”). E suas duas subseções: “A.
Justified Deviations from Geneva Convention Requirements”; e “B. Status of Taliban Prisoners
Under Article 4”. BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes
II”, Op. cit., p.107-111. 405
Comparar BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”,
Op. cit., p.117; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op.
cit., p.79.
103
discretion on the basis that Afghanistan was a failed State. Even if he
chose not to, he could interpret Geneva III to find that members of the
Taliban militia failed to qualify as POWs under the terms of the treaty.
We also conclude that customary international law has no biding legal
effect on either the President or the military because it is not federal law,
as recognized by the Constitution.
We should make clear that in reaching a decision to suspend our treaty
obligations or to construe Geneva III to conclude that members of the
Taliban militia are not POWs, the President need not make any specific
finding. Rather, he need only authorize or approve policies that would be
consistent with the understanding that al Qaeda and Taliban prisoners are
not POWs under Geneva III.406
Comparando-se estes termos com os da conclusão daquele memorando de
09 de janeiro de 2002, verificam-se algumas diferenças e especificidades
importantes. Enquanto a conclusão daquele memorando de Yoo e Delabunty tinha
apenas um parágrafo com três frases, esta conclusão de Bybee era composta por
dois parágrafos, sendo que o primeiro tinha cinco frases e o segundo, duas. Para
além dessas diferenças numéricas, as conclusões apresentavam semelhanças,
diferenças e especificidades substanciais bastante relevantes.
A primeira frase das duas conclusões era praticamente idêntica, e apontava
para aquela conclusão geral de que o War Crimes Act e as Convenções de
Genebra não se aplicavam àqueles indivíduos, “estrangeiros inimigos”, detidos
pelos Estados Unidos durante a guerra no Afeganistão. A principal diferença era a
de que no memorando de Bybee ela se restringia às condições de detenção dos
prisioneiros, exclusivamente, da al Qaeda407
. Em comparação com a primeira
frase da conclusão do memorando anterior de Yoo e Delabunty, a primeira frase
da conclusão do memorando de 22 de janeiro: (i) não mencionava a questão da
aplicação de tais tratados e leis aos procedimentos de julgamento por comissões
militares; (ii) não mencionava Guantanamo Bay; e, de maneira ainda mais
importante para os propósitos deste trabalho, (iii) não mencionava os prisioneiros
da milícia Talibã.
No memorando de Yoo e Delabunty, os membros da al Qaeda e da milícia
Talibã apareciam juntos, e a não aplicação daqueles tratados e leis se dava tanto
em relação às condições de detenção quanto aos procedimentos de julgamento por
406
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.117. 407
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.117.
104
tribunais militares408
. Agora, o caso dos membros da al Qaeda era expressamente
diferenciado do caso dos membros da milícia Talibã.
Mas, de certo modo, esta diferenciação não era uma grande novidade, uma
vez que ela já estruturava a parte central dos dois memorandos. Tanto Yoo e
Delabunty como Bybee dedicavam a segunda parte dos memorandos à aplicação
de tratados e leis à al Qaeda, e a terceira parte à aplicação destes à milícia Talibã.
Ademais, todos eles reconheciam que a aplicação ou não das Convenções de
Genebra aos membros desta milícia era uma questão jurídica mais difícil do que
aquela colocada em relação aos membros da al Qaeda409
.
Nesse sentido, é importante destacar que a segunda e a terceira frases da
conclusão deste memorando de 22 de janeiro não faziam parte da conclusão do
memorando do dia 09 de janeiro. Elas estavam diretamente relacionadas a esta
especificidade da aplicação ou não das Convenções de Genebra aos membros da
milícia Talibã. Apesar de tais questões terem sido discutidas nos dois
memorandos, as conclusões do Memo 6 (de que o Presidente tinha totais poderes
constitucionais para suspender, especificamente em relação ao Afeganistão, as
obrigações internacionais norte-americanas advindas daqueles tratados
internacionais410
; e de que o Presidente poderia exercer tal discrição com base no
fato de que o Afeganistão, àquela época, era um “Estado falido”411
) não haviam
sido explicitadas na conclusão do memorando de Yoo e Delabunty (Memo 4).
408
A primeira frase era: “For the foregoing reasons, we conclude that neither the federal War
Crimes Act nor the Geneva Conventions would apply to the detention conditions in Guantanamo
Bay, Cuba, or to trial by military commission of al Qaeda or Taliban prisoners”. YOO, J. and
DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 409
Nos dois memorandos, a primeira frase da terceira parte (“III. Application of the Geneva
Conventions to the Taliban Militia”) era idêntica: “Whether the Geneva Conventions apply to the
detention and trial of members of the Taliban militia presents a more difficult legal question”.
Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.90; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50.
Ademais, vale destacar que a terceira parte destes documentos era substancialmente maior do que
a segunda. No memorando de 09 de janeiro de 2002, enquanto a segunda parte tinha duas páginas
e meia (p.48-50), a terceira parte tinha, aproximadamente, 21 páginas (p.50-70). No memorando
de 22 de janeiro de 2002, enquanto a segunda parte tinha, aproximadamente, 02 páginas (p.89-90),
a terceira parte tinha 16 páginas (p.90-107). Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R.
Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.89-107; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J.
“Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.48-70. 410
As discussões sobre os poderes presidenciais para suspender tais obrigações internacionais,
especificamente em relação ao Afeganistão, durante aquele período de conflito, foram feitas nos
dois memorandos. Nesse sentido, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales
and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90-107; e YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum
for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50-70. 411
As discussões sobre a condição de “Estado falido” do Afeganistão e suas consequências
jurídicas internacionais foram comentadas nos dois memorandos. Nesse sentido, ver: BYBEE, Jay
105
De modo ainda mais importante, sobretudo para os propósitos deste
trabalho, a quarta frase da conclusão do memorando de Bybee indicava que,
mesmo que o Presidente escolhesse não suspender tais obrigações internacionais
em relação ao Afeganistão, ele poderia, ainda assim, interpretar a Convenção de
Genebra III e negar o status de prisioneiro de guerra aos membros da milícia
Talibã, uma vez que estes não teriam cumprido ou satisfeito as condições de
elegibilidade estabelecidas pelo artigo 4º deste tratado412
. Tal conclusão estava
diretamente relacionada à inclusão daquela nova quarta parte do memorando de
22 de janeiro, que tratava das condições de detenção à luz da Convenção de
Genebra III e, mais especificamente, do status dos membros da milícia Talibã à
luz daquele artigo desta Convenção413
.
Nesta nova quarta parte do memorando, Bybee comentou outras duas
possibilidades em relação aos poderes do Presidente para decidir sobre a aplicação
ou não das Convenções de Genebra no caso dos prisioneiros membros do
Talibã414
. Na primeira subseção, destacou que certas doutrinas jurídicas, como as
de “autodefesa” e de “impraticabilidade” (“infeasibility”, em inglês), poderiam
servir para justificar possíveis desvios norte-americanos em relação às obrigações
impostas pela Convenção de Genebra III415
. E na segunda subseção, defendeu a
tese de que o Presidente, mesmo não suspendendo aquelas obrigações
internacionais norte-americanas em relação ao Afeganistão, tinha amplos poderes
para interpretar os termos deste tratado internacional e, assim, determinar o status
jurídico dos membros da milícia Talibã. Na opinião de Bybee, estes prisioneiros
não tinham direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra416
.
De acordo com Bybee, a Convenção de Genebra III estabelecia que, no caso
de um conflito armado internacional, ou seja, de um conflito sob a jurisdição do
artigo 2º comum, os combatentes deveriam se encaixar em uma das várias
S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.95-102; e YOO,
J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.53-62. 412
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.117. 413
Mais especificamente, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and
William J. Haynes II”, Op. cit., p.107-111. 414
Mais especificamente, ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and
William J. Haynes II”, Op. cit., p.107-111. 415
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.108-110. 416
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110.
106
categorias estabelecidas por este tratado para que pudessem receber o status de
prisioneiro de guerra417
.
Para Bybee, o artigo 4(A)(1)–(3) da Convenção de Genebra III determinava
as três categorias relevantes naquele contexto: (i) membros das Forças Armadas
de um Estado que fosse parte do conflito, junto com as milícias e forças
voluntárias que também fizessem parte deste; (ii) membros de milícia ou corpos
voluntários que fossem comandados por um indivíduo responsável por seus
subordinados, que tivessem um sinal distintivo reconhecível à distância, que
carregassem suas armas abertamente, e que respeitassem as leis da guerra; e (iii)
membros de forças armadas regulares que apoiassem um governo ou autoridade
que não fosse reconhecido pelo país detentor418
.
Determinar se os membros da milícia Talibã se encaixavam em uma dessas
três categorias era fundamental para a decisão sobre o direito ao status jurídico de
prisioneiro de guerra. O artigo 5º da Convenção de Genebra III determinava que,
em caso de dúvida, uma pessoa que tivesse cometido algum ato beligerante,
quando detida pelas forças inimigas, deveria receber a proteção da Convenção até
que um tribunal determinasse seu status419
. Bybee explicou que, de modo geral,
dever-se-ia presumir que tais indivíduos detidos tinham status de prisioneiro de
guerra, nos termos daquele artigo 4º, até que um tribunal determinasse o
contrário420
. Porém, logo em seguida, sublinhou que o Presidente poderia
determinar, unilateral e categoricamente, que todos os prisioneiros da milícia
Talibã estariam fora do alcance do artigo 4º da Convenção de Genebra III421
. Ele
explicou:
He [the President] could interpret Geneva III, in light of the known facts
concerning the operation of Taliban forces during the Afghanistan
conflict, to find that all of the Taliban forces do not fall within the legal
definition of prisoners of war as defined by Article 4. A presidential
determination of this nature would eliminate any legal “doubt” as to the
417
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 418
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 419
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 420
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 421
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110.
107
prisoners‟ status, as a matter of domestic law, and would therefore
obviate the need for Article 5 tribunals.422
No entanto, Bybee ponderou que ele e o Departamento de Justiça não
tinham acesso aos “fatos” sobre as condutas e práticas da milícia Talibã durante o
conflito, e que, assim, não poderiam opinar sobre aplicação de tal possibilidade
“de direito” à situação “de fato”.
Dessa forma, orientou William J. Haynes II e o Departamento de Defesa
que buscassem averiguar os seguintes fatos: (i) se as unidades da milícia Talibã
adotavam uma estrutura de comando reconhecível e hierárquica; (ii) se eles
vestiam uniformes distintivos; (iii) se eles operavam usando suas armas
abertamente; (iv) as táticas e estratégias com as quais conduziam suas atividades;
e (v) se eles respeitavam as leis de guerra423
.
O ponto principal de Bybee era o de que, caso verificassem que a milícia
Talibã, “de fato”, havia violado tais requisitos durante o conflito no Afeganistão,
então, o Departamento de Defesa, “de fato” e “de direito”, teria fundamentos
suficientes para aconselhar o Presidente a determinar, unilateral e
categoricamente, que todos os membros da milícia Talibã capturados pelos
Estados Unidos não eram prisioneiros de guerra nos termos do artigo 4º da
Convenção de Genebra III424
.
Ele lembrou ainda que o Presidente, adotando esta linha de raciocínio e
prática, estaria reconhecendo que aquele era um conflito de natureza
internacional, ou seja, um conflito entre dois Estados signatários das Convenções
de Genebra, uma vez que o artigo 4º apenas se aplicava nos casos daqueles
conflitos internacionais previstos pelo artigo 2º comum destes tratados
internacionais425
.
No que se referia a proteção dos oficiais norte-americanos, sobretudo em
relação a possíveis acusações penais por crimes de guerra, Bybee enfatizou que
essa determinação presidencial não poderia suscitar qualquer forma de
422
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 423
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110. 424
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.110-111. 425
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.111.
108
responsabilização nesse sentido. A legislação norte-americana aplicável, o War
Crimes Act, criminalizava, de um lado, graves violações às Convenções de
Genebra ou, de outro lado, violações ao artigo 3º comum.
Assim, se os membros da milícia Talibã não eram prisioneiros de guerra
(mesmo tendo sido parte de um conflito – “de caráter internacional” – sob a
jurisdição do artigo 2º comum), o tratamento destes “combatentes ilegais” não
poderia ensejar uma grave violação nos termos da Convenção de Genebra III. Isso
porque, nos termos do artigo 130 desta Convenção, uma grave violação só poderia
ser cometida contra pessoas que fossem protegidas por este tratado
internacional426
.
Essa determinação presidencial, ao mesmo tempo, constituiria estes
indivíduos como combatentes “fora-da-lei”, ou seja, juridicamente desprotegidos,
e imunizaria os oficiais norte-americanos responsáveis pela detenção,
interrogatório e julgamento de tais combatentes ilegais e, portanto, fora da
proteção do status jurídico de prisioneiro de guerra.
Além disso, não reconhecendo tais indivíduos como prisioneiros de guerra
de acordo com os termos do artigo 4º, mas reconhecendo o caráter – internacional
– do conflito e, assim, a jurisdição do artigo 2º, o Presidente também estaria
reconhecendo a não aplicabilidade do artigo 3º comum ao caso em tela. Dessa
forma, não seria possível alegar violação a este artigo, e nem aos termos
correspondentes do War Crimes Act427
.
Depois de comentar o direito internacional positivo, Bybee comentou, na
última parte do memorando, o direito internacional costumeiro. Sua posição a este
respeito (sintetizada na quinta e última frase do primeiro parágrafo de sua
conclusão) foi idêntica a de Yoo e Delabunty428
. Para todos eles, dualistas, no que
se referia às condições de detenção dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã,
o direito internacional costumeiro não se aplicava, ou seja, não impunha limites
jurídicos nem ao Presidente, nem às Forças Armadas, uma vez que não era lei
426
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.111. 427
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.111. 428
“We also conclude that customary international law has no binding legal effect on either the
President or the military because it is not federal law, as recognized by the Constitution.” YOO, J.
and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79; e BYBEE, Jay
S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.117.
109
federal à luz da Constituição dos Estados Unidos. Contudo, isso não significava
que o Presidente não poderia decidir e aplicar, unilateralmente, o direito
internacional costumeiro, inclusive as normas consuetudinários do direito de
guerra, a tais indivíduos429
.
Bybee concluiu seu memorando com um novo parágrafo, enfatizando que o
Presidente não precisava tomar nenhuma medida específica para suspender as
obrigações de tratados internacionais ratificados pelos Estados Unidos ou para
construir uma interpretação da Convenção de Genebra III que negasse o status de
prisioneiro de guerra aos membros da milícia Talibã. O Presidente precisava
apenas autorizar ou aprovar políticas que fossem consistentes com o entendimento
de que os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã, nos termos deste tratado
internacional, não tinham direito ao status de prisioneiros de guerra430
.
1.2.7
Memorando de 25 de janeiro de 2002 (Memo 7)
Em 25 de janeiro de 2002, Alberto R. Gonzales, White House Counsel,
enviou ao Presidente George W. Bush um memorando cujo objeto era a decisão
sobre a aplicação da Convenção de Genebra III ao conflito com a al Qaeda e o
Talibã431
. Gonzales destacou que o Departamento de Justiça havia apresentado
uma opinião jurídica formal concluindo que a Convenção de Genebra III sobre o
Tratamento de Prisioneiros de Guerra não se aplicava ao conflito com a al Qaeda,
e que havia fundamentos razoáveis para que o Presidente concluísse que tal
tratado internacional também não se aplicava ao conflito com a milícia Talibã. Ele
lembrou ainda que o Presidente, diante daquela opinião formal, havia
determinado, em 18 de janeiro de 2002, que tal tratado não se aplicava àqueles
conflitos e que, assim, os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã não tinham
direito ao status de prisioneiro de guerra.
429
Esta era uma conclusão implícita no memorando de 22 de janeiro de 2002; ela havia sido
explicitada na conclusão do memorando de Yoo e Delabunty: “Nonetheless, we also believe that
the President as Commander-in-Chief, has the constitutional authority to impose the customary
laws of war on both the al Qaeda and Taliban groups and the U.S. Armed Forces” YOO, J. and
DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.79. 430
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit.,
p.117. 431
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President” concerning the “Decision Re
Application of the Geneva Convention on Prisoners of War to the Conflict with al Qaeda and the
Taliban”, January 25, 2002, (Memo 7) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op.
cit., p.118-121.
110
O memorando de Gonzales buscava apresentar as ramificações desta
decisão do Presidente, sobretudo diante da solicitação que havia sido feita pelo
Secretário de Estado, Colin L. Powell, para que Bush reconsiderasse seu
posicionamento432
. De acordo com Gonzales, as bases daquela decisão
presidencial incluíam: (i) a determinação de que o Afeganistão era um Estado
falido; e (ii) a determinação de que o Talibã e suas forças não eram um governo,
mas um grupo militante parecido com um grupo terrorista433
.
Ele comentou possíveis consequências, positivas e negativas, de tal
determinação presidencial. Quanto aos aspectos positivos, destacou, sobretudo, a
questão da flexibilidade em relação às práticas e políticas futuras que poderiam
ser utilizadas na guerra contra o terrorismo, e a redução substantiva da ameaça de
processos penais domésticos contra oficiais do governo. No que se referia à
flexibilidade, enfatizou que a natureza incomum deste novo tipo de conflito
justificava um novo entendimento sobre o tratamento, interrogatório e julgamento
de tais “prisioneiros terroristas”, e argumentou:
By concluding that GPW [Geneva Convention III on Prisoners of War]
does not apply to al Qaeda and the Taliban, we avoid foreclosing options
for the future, particularly against nonstate actors.434
Com relação às possíveis consequências negativas, Gonzales realçou, entre
outras: (i) que desde 1949, quando as Convenções de Genebra haviam sido
concluídas, os Estados Unidos nunca tinham negado sua aplicabilidade; (ii) que
tal posição norte-americana poderia provocar condenações aos Estados Unidos,
inclusive por parte de seus aliados; e (iii) que poderia introduzir um elemento de
incerteza com relação à definição do status de adversários435
.
Gonzales concluiu seu memorando respondendo aos argumentos (do
Secretário de Estado) que defendiam a aplicação da Convenção de Genebra III aos
membros da al Qaeda e do Talibã. Entre outras contrarrazões, ele salientou que
aquele era um novo tipo de guerra, não contemplado à época em que as
432
Nesse sentido, ele destacou que o Attorney General, John Ashcroft, tinha, juridicamente, os
poderes para interpretar o direito (tanto norte-americano quanto internacional) para o ramo
executivo do governo; e que ele havia delegado tal competência interpretativa para o Office of
Legal Counsel do Departamento de Justiça. Lembrou, ademais, que o Legal Adviser do Secretário
de Estado havia expressado opinião diferente daquela apresentada pelo Office. GONZALES,
Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.118-119. 433
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.118-119. 434
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119. Ênfase minha. 435
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120.
111
Convenções de Genebra foram concluídas, e que demandava novas formas de
conduta em relação aos terroristas capturados; que as políticas e costumes norte-
americanos não se aplicavam “a conflitos com terroristas, ou com forças
irregulares, como o Talibã”436
; e que, mesmo que a Convenção de Genebra III não
fosse aplicável a tais indivíduos, os Estados Unidos poderiam acusar, por crimes
de guerra, qualquer indivíduo que cometesse certos atos contra os soldados norte-
americanos437
. Sua conclusão final foi a de que os argumentos apresentados em
favor da aplicação das Convenções de Genebra aos membros da al Qaeda e do
Talibã não eram persuasivos438
.
1.2.8
Memorando de 26 de janeiro de 2002 (Memo 8)
Em 26 de janeiro de 2002, o Secretário de Estado, Colin L. Powell, enviou
um memorando para o Counsel do Presidente, Alberto R. Gonzales, em que
comentou criticamente o memorando que este havia enviado ao Presidente no dia
anterior439
. Nele, Powell expressou sua preocupação com o fato de que tal
memorando não teria apresentado, adequadamente, ao Presidente Bush as opções
que estariam à disposição dele, nem havia identificado, corretamente, os “prós e
contras” relevantes de cada uma dessas opções440
.
De acordo com Powell, o Presidente tinha basicamente duas opções. Na
primeira, ele determinaria que a Convenção de Genebra III não se aplicava ao
conflito no Afeganistão porque este era um “Estado falido”. Na segunda, ele
determinaria que esta convenção aplicava-se ao conflito no Afeganistão, mas que
os membros da al Qaeda, como um grupo, e do Talibã, individualmente ou como
um grupo, não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra nos termos deste
tratado internacional. Nas duas opções, o tratamento de todos os prisioneiros seria
consistente com os princípios do tratado internacional441
.
Para Colin Powell, as duas opções envolviam, entre outras, as seguintes
vantagens: (i) garantiam a mesma flexibilidade prática para o tratamento de
436
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.121. 437
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120-121. 438
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.120. 439
POWELL, Colin L., “Memorandum” concerning the “Draft Decision Memorandum for the
President on the Applicability of the Geneva Convention to the Conflict in Afghanistan”, January
26, 2002, (Memo 8) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.122-125. 440
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122. 441
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122.
112
prisioneiros, inclusive no que se referia ao interrogatório e ao tempo de detenção;
(ii) permitiam que os Estados Unidos não reconhecessem o status de prisioneiro
de guerra aos membros da al Qaeda e do Talibã; e (iii) não implicavam qualquer
risco significativo no que se referia à possibilidade de instauração de processos
penais contra oficiais norte-americanos442
.
Opondo-se às conclusões de Gonzales, Powell ressaltou que aquela primeira
opção tinha apenas uma vantagem, enquanto a segunda tinha pelo menos quatro.
O único “pró” da primeira opção era a “máxima flexibilidade”. A segunda opção,
por sua vez, entre outros, tinha os seguintes “prós”: (i) preservava maior
flexibilidade à luz dos direitos doméstico e internacional, uma vez que a
abordagem seria mais defensável juridicamente; (ii) garantia fundação jurídica
mais sólida para as políticas que o governo norte-americano tinha a intenção de
adotar; (iii) preservava a credibilidade e a autoridade moral dos Estados Unidos
internacionalmente; e (iv) diminuía os incentivos para investigações criminais
internacionais contra tropas e oficiais norte-americanos443
.
Segundo Powell, esta segunda opção tinha apenas um aspecto negativo, o de
que, numa eventual análise, caso a caso, do status dos prisioneiros, alguns
membros da milícia Talibã poderiam ser reconhecidos como prisioneiro de guerra
nos termos da Convenção de Genebra III. A primeira, além de outros, tinha os
seguintes pontos “contra”: (i) um alto custo em termos da reação internacional
negativa; (ii) podia provocar alguns promotores estrangeiros a investigar e
processar as tropas e os oficiais norte-americanos; e (iii) podia gerar críticas e
protestos formais internacionais contra os Estados Unidos perante a (antiga)
Comissão (e atual Conselho) de Direitos Humanos da ONU, bem como perante a
Corte Internacional de Justiça444
.
Powell concluiu seu memorando comentando os erros e imprecisões daquele
memorando de Gonzales, destacando, por exemplo, que a determinação de que o
Afeganistão era um “Estado falido” iria de encontro com a posição oficial norte-
americana, assim como contra o reconhecimento da comunidade internacional de
que tal país era parte legítima das Convenções de Genebra. Ele enfatizou que a
não concessão do status de prisioneiro de guerra aos membros da al Qaeda e da
442
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.122. 443
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.123-124. 444
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.123-124.
113
milícia Talibã também poderia ser determinada pelo Presidente caso ele
reconhecesse que a Convenção de Genebra III se aplicava ao conflito no
Afeganistão445
.
1.2.9
Carta de 01 de fevereiro de 2002 (Memo 9)
Em 01 de fevereiro de 2002, John Ashcroft, o Attorney General, enviou uma
carta ao Presidente George Bush comentando a discussão do National Security
Council sobre o status dos prisioneiros da milícia Talibã446
. De acordo com
Ashcroft, havia duas teorias que estavam sendo aventadas para fundamentar a
conclusão de que os combatentes da milícia Talibã não tinham, juridicamente,
direito ao status de prisioneiro de guerra447
.
De um lado, havia a tese de que, durante o contexto relevante, o Afeganistão
era um Estado falido, e, assim, falido, não podia ser considerado uma das altas
partes contratantes da Convenção de Genebra III. Consequentemente, os termos
deste tratado não se aplicariam ao caso em questão, o que significava que os
membros da milícia Talibã capturados não tinham direito ao status jurídico de
prisioneiro de guerra. De outro lado, havia a tese de que, durante o contexto
relevante, o Afeganistão era uma alta parte contratante deste tratado internacional,
mas os combatentes da milícia Talibã não tinham direito ao status de prisioneiro
de guerra porque eles haviam agido como combatentes ilegais (o termo utilizado,
em inglês, era unlawful combatants)448
.
O Attorney General, juridicamente competente para interpretar a lei para o
Poder Executivo do governo dos Estados Unidos449
, comentou que uma
determinação presidencial de que o Afeganistão era um Estado falido, e, portanto,
de que este país não era parte daquele tratado internacional, iria minimizar
inúmeros riscos jurídicos envolvendo responsabilidade, litigância e processos
criminais. Isso porque, à luz da opinião da Suprema Corte norte-americana no
caso Clark v. Allen, “quando um Presidente determina que um tratado não se
445
POWELL, Colin L., “Memorandum”, Op. cit., p.124-125. 446
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, February 01, 2002, (Memo 9) in
Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.126-127. 447
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 448
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 449
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119.
114
aplica, sua determinação é inteiramente discricionária e não será revista pelas
cortes federais”450
.
Ressaltando um ponto que já havia sido destacado nos memorandos de Yoo
e Delabunty e de Bybee, ele lembrou ao Presidente que, nos termos do War
Crimes Act, certas violações da Convenção de Genebra III eram tipificadas como
crimes de guerra451
. Assim, ele argumentou que afastar a aplicabilidade de tal
tratado era também afastar a possibilidade de responsabilização criminal de
funcionários públicos norte-americanos. De modo geral, o ponto central de
Ashcroft era ressaltar precisamente tais garantias asseguradas pela primeira tese,
em detrimento da segunda tese:
In constrast, if a determination is made under Option 2 that the Geneva
Convention applies but the Taliban are interpreted to be unlawful
combatants not subject to the treaty‟s protections, Clark v. Allen does not
accord American officials the same protection from legal consequences.
In cases of Presidential interpretation of treaties which are confessed to
apply, courts occasionally refuse to defer to Presidential interpretation.
Perkins v. Elg is an example of such a case. If a court chose to review for
itself the facts underlying a Presidential interpretation that detainees were
unlawful combatants, it could involve substantial criminal liability for
involved U.S. officials.452
Ele destacou, em itálico, a diferença entre uma determinação e uma
interpretação presidencial sobre a aplicabilidade ou não daquele tratado
internacional, enfatizando o maior risco – jurídico e político – inerente àquela
segunda tese, interpretativa. Ashcroft enfatizou que as duas opções eram teses
jurídicas, e que, assim, não excluíam outras considerações, práticas e políticas,
que poderiam guiar as decisões do poder executivo norte-americano. Sua
conclusão, no entanto, era a de que a primeira tese era, juridicamente, a mais
segura para evitar futuras revisões judiciais e responsabilizações criminais de
oficiais norte-americanos, bem como para evitar a imposição jurídica de certos
padrões para a detenção, o interrogatório e o julgamento dos prisioneiros da
milícia Talibã453
.
450
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 451
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 452
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. Ênfase no original. 453
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126-127.
115
1.2.10
Memorando de 02 de fevereiro de 2002 (Memo 10)
Em 02 de fevereiro de 2002, William H. Taft IV, Legal Advisor do
Departamento de Estado, enviou um memorando para Alberto R. Gonzales,
Counsel do Presidente, comentando um paper de Gonzales sobre a Convenção de
Genebra454
. Como o próprio Gonzales já havia informado ao Presidente, em seu
memorando de 25 de janeiro de 2002, Taft tinha um entendimento diferente
daqueles expressados pelo Attorney General, John Ashcroft, e, sobretudo, pelo
Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça455
.
Em seu memorando de 02 de fevereiro, Taft reafirmou sua posição em favor
da aplicação das Convenções de Genebra ao conflito no Afeganistão. O Legal
Advisor destacou que, mesmo do ponto de vista prático-político, a decisão de que
tais convenções se aplicavam a tal conflito era a mais acertada, na medida em que
isso iria demonstrar que as condutas norte-americanas se baseavam no direito
internacional e em suas obrigações jurídicas internacionais456
.
Taft criticou a estrutura daquele paper de Gonzales, que sugeria a distinção
entre (i) o conflito dos Estados Unidos contra a al Qaeda e (ii) o conflito dos
Estados Unidos contra a milícia Talibã. Para ele, esta distinção não estava de
acordo com os termos estabelecidos pelas Convenções de Genebra. Isso porque,
caso estas convenções se aplicassem ao conflito no Afeganistão, seus termos
deveriam ser aplicados a todas as pessoas envolvidas (“al Qaeda, Taliban,
Northern Alliance, U.S. troops, civilians, etc.”457
). Caso elas não se aplicassem,
então, ninguém poderia se beneficiar, juridicamente, de suas proteções458
.
Nesse contexto, vale destacar, mesmo que rapidamente, alguns dos termos
deste paper de Gonzales, publicado como anexo ao memorando de Taft459
. Nele,
Gonzales resume os principais pontos sobre a discussão em torno da aplicação ou
não da Convenção de Genebra III aos membros da al Qaeda e da milícia Talibã.
454
TAFT, William H. IV, “Memorandum” (“Comments on Your Paper on the Geneva
Convention”), February 02, 2002, (Memo 10) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture
Papers, Op. cit., p.129-133. 455
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President”, Op. cit., p.119. 456
TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 457
TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 458
TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.129. 459
GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to
Taliban and al Qaeda”, in TAFT, William H. IV, “Memorandum”, Op. cit., p.130-133.
116
No que se referia à aplicabilidade da Convenção de Genebra III ao conflito
com a al Qaeda, Gonzales relatou que os advogados do Departamento de Justiça
(entre outros departamentos e agências do governo) haviam concluído que, em
termos jurídicos, tal conflito, independentemente de onde ele fosse travado, não
era objeto de tal Convenção; ou seja, esta não se aplicava a um conflito contra
uma organização terrorista transnacional460
. De um ponto de vista jurídico, tal
posicionamento era o mais seguro para proteger os oficiais norte-americanos
contra possíveis tentativas de responsabilizá-los criminalmente. De um ponto de
vista prático-político, tal entendimento era o mais apropriado porque ele
enfatizava que o conflito global contra a al Qaeda era um novo tipo de conflito –
que não era regulado pela Convenção de Genebra III. Gonzales destacou também
que os advogados do Departamento de Estado (como Taft) tinham entendimento
diferente, em favor da aplicação desta Convenção de Genebra ao conflito no
Afeganistão461
.
Já em relação à aplicabilidade da Convenção de Genebra III ao conflito com
a milícia Talibã, Gonzales relatou que os advogados do Departamento de Justiça
(entre outros departamentos e agências do governo) concordavam que o
Presidente tinha autoridade constitucional para determinar a suspensão da
Convenção de Genebra III em relação ao Afeganistão, baseado na conclusão de
que este era um Estado falido. Ele destacou que os advogados do Departamento
de Estado (como Taft), de outro modo, não concordavam com esta concepção de
que o Afeganistão era um Estado falido. Mas, frisou que todos os advogados
haviam concordado que os membros da milícia Talibã não tinham direito ao status
de prisioneiro de guerra, independentemente da suspensão ou não da Convenção
de Genebra462
.
Ademais, no que se referia ao status de prisioneiro de guerra, Gonzales
relatou que os advogados envolvidos haviam concordado que tanto os membros
da al Qaeda como os da milícia Talibã não teriam direito às proteções inerentes a
460
GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to
Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131. 461
GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to
Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131. 462
GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to
Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.131-133.
117
tal status. E que, assim, tais advogados haviam sido consistentes com a
determinação do Presidente Bush de 18 de janeiro de 2002463
.
1.2.11
Memorando de 07 de fevereiro de 2002 (Memo 11)
Em 07 de fevereiro de 2002, o Presidente George W. Bush enviou um
memorando para o Vice-presidente, para o Secretário de Estado, para o Secretário
de Defesa, para o Attorney General, para o Chief of Staff to the President, para o
Director of Central Intelligence, para o Assistant to the President for National
Security Affairs, e para o Chairman of the Joint Chiefs of Staff, no qual apresentou
suas determinações sobre a aplicação da Convenção de Genebra III ao(s)
conflito(s) em que os Estados Unidos estavam envolvidos, assim como reafirmou
a ordem para o “tratamento humano de prisioneiros da al Qaeda e do Talibã”464
.
Neste memorando, Bush destacou a complexidade das questões legais
envolvidas nas extensas discussões sobre a aplicação da Convenção de Genebra
III ao(s) conflito(s) contra a al Qaeda e a milícia Talibã. Ele destacou que, de
acordo com os próprios termos desta Convenção, tal tratado internacional se
aplicava apenas a conflitos envolvendo as “altas partes contratantes”. Isso
significava que tais tratados internacionais pressupunham a existência de forças
armadas – “regulares” – que lutassem em nome de Estados soberanos465
.
O Presidente dos Estados Unidos, em seguida, contrastou a natureza da
guerra contra o terrorismo à natureza – estado-cêntrica – dos conflitos regulados
pela Convenção de Genebra III, enfatizando que aquele conflito pós 11 de
setembro de 2001 constituía um novo paradigma. Este novo paradigma
demandava um novo entendimento do direito de guerra; um entendimento que, no
entanto, deveria ser consistente com os princípios das Convenções de Genebra466
.
Valendo-se, então, de sua autoridade constitucional como Commander-in-
Chief e como Chefe do Poder Executivo dos Estados Unidos, e baseando-se na
463
GONZALES, Alberto R., “Status of Legal Discussions re Application of Geneva Convention to
Taliban and al Qaeda”, Op. cit., p.133. 464
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President, the Secretary of State, the Secretary
of Defense, the Attorney General, Chief of Staff to the President, Director of Central Intelligence,
Assitant to the President for National Security Affairs, Chairman of the Joint Chiefs of Staff”
concerning the “Humane Treatment of al Qaeda and Taliban Detainees”, February 07, 2002,
(Memo 11) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.134-135. 465
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134. 466
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134.
118
opinião do Departamento de Justiça – representada no Memo 6, de 22 de janeiro
de 2002 – bem como na opinião jurídica apresentada pelo Attorney General em
sua carta de 01 de fevereiro de 2002 – Memo 9 – George W. Bush determinou:
a. I accept the legal conclusion of the Department of Justice and
determine that none of the provisions of Geneva apply to our conflict with
al Qaeda in Afghanistan or elsewhere throughout the world because,
among other reasons, al Qaeda is not a High Contracting Party to
Geneva.
b. I accept the legal conclusion of the Attorney General and the
Department of Justice that I have the authority under the Constitution to
suspend Geneva as between the United States and Afghanistan, but I
decline to exercise that authority at this time. Accordingly, I determine
that the provisions of Geneva will apply to our present conflict with the
Taliban. I reserve the right to exercise this authority in this or future
conflicts.
c. I also accept the legal conclusion of the Department of Justice and
determine that common Article 3 of Geneva does not apply to either al
Qaeda or Taliban detainees, because, among other reasons, the relevant
conflicts are international in scope and common Article 3 applies only to
“armed conflict not of an international character.”
d. Based on the facts supplied by the Department of Defense and the
recommendation of the Department of Justice, I determine that the
Taliban detainees are unlawful combatants and, therefore, do not qualify
as prisoners of war under Article 4 of Geneva. I note that, because
Geneva does not apply to our conflict with al Qaeda, al Qaeda detainees
also do not qualify as prisoners of war.467
Há inúmeros pontos importantes aqui. Na primeira determinação (a) de
Bush, é importante ressaltar a ênfase dada de que nenhuma das regras das
Convenções de Genebra se aplicava ao conflito contra a al Qaeda, em nenhum
lugar do mundo, ou seja, os membros da al Qaeda estavam, universalmente, fora
do alcance de proteção destas convenções, mas, sobretudo, fora do alcance das
proteções garantidas pelo status de prisioneiro de guerra nos termos da
Convenção de Genebra III.
Nesse sentido, é interessante destacar os termos da quarta determinação (d)
do Presidente, na medida em que seu cerne foi, precisamente, a não qualificação
dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã como prisioneiros de guerra. Note-
se, no entanto, que tais – não – qualificações foram construídas de maneiras
distintas. Com base em “fatos” informados pelo Departamento de Defesa e em
467
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.134-135.
119
recomendações “jurídicas” do Departamento de Justiça468
, os membros da milícia
Talibã foram determinados como “combatentes ilegais” (unlawful combatants), e,
por isso, não qualificados como prisioneiros de guerra nos termos do artigo 4º da
Convenção de Genebra III. Os membros da al Qaeda, por sua vez, simplesmente
foram determinados como não qualificados ao status de prisioneiro de guerra
porque as Convenções de Genebra, conforme aquela primeira determinação (a),
não se aplicavam ao conflito contra esta organização terrorista.
Consequentemente, cumpre sublinhar uma nuance da terceira determinação
(c) de Bush: o plural utilizado para qualificar “os conflitos relevantes” em que os
Estados Unidos estavam envolvidos. Tais conflitos – no plural – eram
internacionais em escopo, e, por isso, ambos, não ensejavam a jurisdição do
artigo 3º comum das Convenções de Genebra, uma vez que este artigo se aplicava
apenas a conflito armado que não tivesse caráter internacional. Por isso, a não
aplicabilidade de tal artigo aos prisioneiros da al Qaeda e do Talibã.
Mas o caráter “internacional” do conflito contra a milícia Talibã era
diferente do caráter “internacional” do conflito contra a al Qaeda, entre outras
razões, porque esta, conforme aquela primeira determinação (a), não era uma “alta
parte contratante” das Convenções de Genebra; ou seja, a al Qaeda não era um
Estado, e nem o governo ou a representação de um ente público e soberano. Daí,
aquele aspecto mais universalista desta determinação (a).
Como Yoo e Delabunty e Bybee já haviam ressaltado, o caso da milícia
Talibã era mais difícil469
, haja vista a relação (legítima ou não, democrática ou
não, mas, inegável) do Talibã com o Estado soberano do Afeganistão. Este não
468
Nesse sentido, vale lembrar que Jay Bybee, o Asssitant Attorney General do Office of Legal
Counsel do Departamento de Justiça, precisamente naquele memorando de 22 de janeiro de 2002
enviado para Alberto Gonzales, Counsel to the President, e para William J. Haynes II, General
Counsel do Departamento de Defesa, havia concluído (e orientado) na subseção “B. Status of
Taliban Prisoners Under Article 4” da parte “IV. Detention Conditions Under Geneva III”: “We
do not have, however, the facts available to advise your Department [of Defense] or the White
House whether the President would have the grounds to apply the law to the facts in this
categorical manner. Some of the facts which would be important to such a decision include:
whether Taliban units followed a recognizable, hierarchical command-and-control structure,
whether they wore distinctive uniforms, whether they operated in the open with their weapons
visible, the tactics and strategies with which they conducted hostilities, and whether they obeyed
the laws of war. If your Department [of Defense] were to conclude that the Afghanistan conflict
demonstrated that the conduct of the Taliban militia has always violated these requirements, you
would be justified in advising the President to determine that all Taliban prisoners are not POWs
under Article 4.” BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes
II”, Op. cit., p.110-111. Ênfase minha. 469
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50; e
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”, Op. cit., p.90.
120
apenas era reconhecido como um Estado soberano pela comunidade
internacional, como também era parte das Convenções de Genebra desde
setembro de 1956470
. O Afeganistão, inquestionavelmente, era uma “High
Contracting Party to Geneva”. Daí, a segunda determinação (b) de Bush de que
as regras de Genebra se aplicavam ao conflito com o Talibã. Portanto, o caráter
“internacional” deste conflito era outro; ou melhor, era o próprio, o tradicional
conflito internacional ou interestatal, ou seja, entre Estados-Nações.
Nesses termos, Bush parece ter adotado aquela segunda tese apresentada
(mas contraindicada) pelo Attorney General, John Ashcroft, em sua carta de 01 de
fevereiro de 2002 (Memo 9). De acordo com esta, os Estados Unidos
reconheceriam que o Afeganistão era uma alta parte contratante das Convenções
de Genebra (e que, portanto, não era um Estado falido), e que tais tratados
aplicavam-se ao conflito em questão. Contudo, por não terem cumprido os
requisitos estipulados pelo artigo 4º da Convenção de Genebra III, ou seja, por
terem agido como combatentes ilegais, os membros da milícia Talibã não teriam
direito ao status de prisioneiro de guerra471
. E assim, no que se referia à forma e à
substância do tratamento dos prisioneiros da al Qaeda e do Talibã, os traços
arquitetônicos – político-jurídicos – fundamentais haviam sido determinados por
Bush.
Nos últimos parágrafos de seu memorando, e evocando os valores da nação
norte-americana, Bush solicitou (apenas solicitou; e, não, determinou!) que os
prisioneiros fossem tratados humanamente, incluindo aqueles que (supostamente)
não tivessem o direito a tal tratamento. Nesse sentido, destacou que, como uma
medida política (e, não, de direito), as Forças Armadas dos Estados Unidos
deveriam continuar tratando os prisioneiros humanamente e, dentro do possível,
de acordo com a necessidade militar, numa maneira consistente com os princípios
das Convenções de Genebra472
.
1.2.12
Memorando de 07 de fevereiro de 2002 (Memo 12)
Em 07 de fevereiro de 2002, Jay S. Bybee, Assistant Attorney General do
Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça, enviou um memorando
470
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II”, Op. cit., p.50. 471
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President”, Op. cit., p.126. 472
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President”, Op. cit., p.135.
121
para Alberto R. Gonzales, Counsel do Presidente, em que tratou do “status das
forças Talibã de acordo com o artigo 4º da Terceira Convenção de Genebra de
1949”473
. Tomando como verdadeiros os “fatos” informados pelo Departamento
de Defesa, Bybee concluiu que o Presidente tinha fundamentos jurídicos e provas
factuais suficientes para determinar que todos os membros da milícia Talibã não
tinham direito ao status de prisioneiro de guerra nos termos da Convenção de
Genebra III474
.
O memorando foi estruturado em quatro partes principais. Na primeira,
Bybee tratou de fazer uma introdução geral, explicando os termos relevantes do
artigo 4º desta convenção para a análise do caso em tela. Na segunda parte,
destacou que todos os membros da milícia Talibã – como um grupo – não
cumpriam as quatro condições estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2), condições estas
primeiramente estabelecidas pela Convenção de Haia IV de 1907, e, assim, não
tinham direito ao status de prisioneiro de guerra. Na terceira parte, comentou as
outras duas subseções relevantes do artigo 4º, concluindo que estas também
requeriam respeito àquelas quatro condições de Haia para a concessão do status, e
que os membros da milícia Talibã não teriam direito a tal status mesmo que
fossem considerados membros de forças armadas regulares. Na quarta parte,
comentou a autoridade constitucional do Presidente para determinar o status de
combatente ilegal para todos os membros da milícia Talibã475
.
Bybee começou seu memorando explicando que o artigo 4º da Convenção
de Genebra III define as categorias de pessoas que têm direito ao status jurídico
de prisioneiro de guerra quando capturadas pelo inimigo476
. De acordo com ele, as
três referências importantes para aquela discussão eram os artigos 4º(A)(1),
4º(A)(2), e 4º(A)(3). O artigo 4º(A)(1) estabelecia a concessão deste status para os
indivíduos capturados que fossem membros das forças armadas de uma parte do
conflito. O artigo 4º(A)(3) estabelecia a concessão do status para indivíduos que
473
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” concerning
the “Status of Taliban Forces Under Article 4 of the Third Geneva Convention of 1949”, February
7, 2002, (Memo 12) in Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers, Op. cit., p.136-143. 474
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.136. 475
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.136-143. 476
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.136.
122
fizessem parte de forças armadas regulares leais a autoridade ou governo não
reconhecido pelo Estado detentor. E o 4º(A)(2):
Article 4(A)(2) includes as POWs [prisoners of war] members of “other
militias” and “volunteer corps”, including “organized resistance
movements” that belong to a Party to the conflict. In addition, members
of militias and volunteer corps must “fulfill” four conditions: (a) “being
commanded by a person responsible for his subordinates”; (b) “having a
fixed distinctive sign recognizable at a distance”; (c) “carrying arms
openly”; and (d) “conducting their operations in accordance with the laws
and customs of war.” Those four conditions reflect those required in the
1907 Hague Convention IV.477
De acordo com Bybee, para decidir se os membros da milícia Talibã tinham
ou não direito ao status de prisioneiro de guerra, o Presidente deveria, em
primeiro lugar, decidir se eles se encaixavam em uma dessas três categorias. Ele
destacou que o Presidente tinha poderes constitucionais para interpretar e aplicar
tratados internacionais, assim, poderia determinar que os membros da milícia
Talibã não se encaixavam em nenhuma daquelas categorias e que,
consequentemente, não tinham direito ao status de prisioneiro de guerra478
.
O ponto central de Bybee era o de que, como uma milícia e, portanto, à luz
dos termos do artigo 4º(A)(2), o Talibã não podia receber os benefícios da
proteção desse status jurídico porque não satisfazia, pelo menos, três daquelas
quatro condições de Haia:
As the Taliban have described themselves as a militia, rather than the
armed forces of Afghanistan, we begin with GPW‟s [Geneva Convention
III on Prisoners of War‟s] requirements for militia and volunteer corps
under Article 4(A)(2). Based on the facts presented to us by DoD
[Department of Defense], we believe that the President has the factual
basis on which to conclude that the Taliban militia, as a group, fails to
meet three of the four GPW requirements, and hence are not legally
entitled to POW [Prisoner of War] status.479
Em primeiro lugar, a milícia Talibã não tinha uma estrutura de comando
hierárquica, nem um comandante que se responsabilizasse pelas ações de seus
subordinados. De acordo com o Departamento de Defesa, esta milícia funcionava
mais como um conjunto de diferentes grupos armados, desorganizados, que
477
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.136. 478
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.137. 479
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.137.
123
lutavam pelos seus “próprios interesses tribais, locais ou pessoais”480
. Ademais,
quando organizados, tais grupos tinham como referência central a al Qaeda, uma
organização terrorista multinacional que não prestava contas ao e nem dependia
do Estado soberano do Afeganistão481
. Segundo Bybee, a partir dos bombardeios
aéreos dos Estados Unidos, a distinção entre Taliban e al Qaeda teria sido
praticamente extinta, tendo esta última assumido a liderança na organização da
defesa contra as tropas norte-americanas482
.
Em segundo lugar, não havia qualquer indicação de que o Talibã vestia ou
usava qualquer sinal distintivo que fosse reconhecível à distância. Eles se vestiam
como civis. Dessa forma, não era possível distingui-los da população civil, o que
atestava o não cumprimento desta condição imposta pelas Convenções de Haia IV
e de Genebra III483
. Em terceiro lugar, havia o fato de que, apesar de carregarem
suas armas abertamente em público, o que, em tese, estaria de acordo com os
termos do artigo 4º(A)(2), os membros do Talibã não satisfaziam completamente
tal condição, uma vez que, de acordo com Bybee, “muitas pessoas no Afeganistão
carregam armas abertamente”484
; ou seja, os membros da milícia Talibã não se
distinguiam de maneira satisfatória da população civil.
Em quarto e último lugar, não havia indicação alguma de que a milícia
Talibã “entendia, considerava-se vinculada a, ou mesmo tinha conhecimento das
Convenções de Genebra ou de qualquer outro regime de direito”485
. E Bybee
acrescentou:
Taliban militia groups have made little attempt to distinguish between
combatants and non-combatants when engaging in hostilities. They have
killed for racial or religious purposes. Furthermore, DoD [Department of
Defense] informs us of widespread reports of Taliban massacres of
480
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.137. 481
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.137. 482
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138. 483
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138. 484
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138. 485
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138.
124
civilians, raping of women, pillaging of villages, and various other
atrocities that plainly violate the laws of war.486
Nesses termos, e diante dos “fatos” informados pelo Departamento de
Defesa, Bybee concluiu que o Presidente poderia determinar, unilateral e
categoricamente, que a milícia Talibã como um todo, ou seja, como um grupo, era
incapaz de satisfazer as condições de Haia que haviam sido reafirmadas
expressamente no artigo 4º(A)(2) da Convenção de Genebra III487
.
Mas, de acordo com Bybee, mesmo que se tentasse defender a tese de que a
milícia Talibã não era uma milícia, mas, sim, parte das forças armadas regulares
do Afeganistão, mesmo assim, os membros dessa milícia ou exército não teriam
direito ao status de prisioneiro de guerra, pois não se encaixariam nas condições
de Haia e de Genebra488
.
Apesar de não explicitarem essas quatro condições, os artigos 4º(A)(1) e
4º(A)(3) as incorporam nos termos “forças armadas” e “forças armadas regulares”
que utilizam, respectivamente. Citando diferentes fontes acadêmicas e autoridades
sobre o assunto, como o próprio Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Bybee
enfatizou que tais condições de Haia e de Genebra são intrínsecas às definições de
forças armadas e de forças armadas regulares. Dessa forma, mesmo um membro
destas forças regulares não teria direito ao status de prisioneiro de guerra quando
capturado, caso não satisfizesse essas condições489
.
E, assim, concluiu:
We believe that the President, based on the facts supplied by DoD
[Department of Defense], has ample grounds upon which to find that
members of the Taliban have failed to meet three of these four criteria,
regardless of whether they are characterized as members of a “militia” or
of an “armed force”. The President, therefore, may determine that the
Taliban, as a group, are not entitled to POW [Prisoner of War] status
under GPW [Geneva Convention on Prisoners of War].490
486
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138. 487
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.138-139. 488
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.139-142. 489
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.139-142. 490
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.142.
125
Tal determinação afastaria a necessidade de estabelecimento de tribunal
para analisar individualmente, em caso de dúvida, o status de cada prisioneiro, tal
como estabelecido pelo artigo 5º da Convenção. Isso porque, diante de uma
determinação tão ampla – de que “o Talibã, como um grupo”, não teria direito a
tal status ou de que todos os membros do Talibã eram combatentes ilegais491
e,
por isso, não teriam tal direito – aquele problema de “dúvida” seria resolvido
imediatamente492
.
*****
Os memorandos de 07 de fevereiro de 2002, de Jay S. Bybee e de George
W. Bush, de certo modo, concluíram uma “primeira” fase da construção da
arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror; fase esta que tinha como um
de seus pontos mais fundamentais a definição do status dos membros da al Qaeda
e da milícia Talibã493
. De modo geral, esses primeiros (doze) memorandos
trataram de quatro questões fundamentais.
Uma das questões foi a dos poderes constitucionais do Presidente, como
chefe do Poder Executivo e Commander-in-Chief, para conduzir operações
militares contra terroristas, bem como para interpretar tratados internacionais e
determinar o status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã. Esta questão
apareceu, direta ou indiretamente, em praticamente todos os memorandos
comentados aqui. Mais especificamente, ela foi o objeto central daquele
memorando enviado por John C. Yoo em 25 de setembro de 2001 (Memo 1), e
uma parte importante dos comentários de John Yoo e Robert Delabunty, no
491
“The president, in other words, may use his constitutional power to interpret treaties and apply
them to the facts, to make the determination that the Taliban are unlawful combatants. This would
remove any „doubt‟ concerning whether members of the Taliban are entitled to POW status.”
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.143. 492
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”, Op. cit.,
p.142-143. 493
Depois desses primeiros (doze) memorandos, os demais se voltaram quase que exclusivamente
para a questão mais específica (mas não menos importante) das técnicas, estratégias e métodos de
interrogatório dos prisioneiros de Guantanamo Bay e, depois, de Abu Ghraib. Esta “segunda”
parte dos memorandos tem como principal objeto o que foi chamado ali de “técnicas de contra-
resistência”. Como se destacou anteriormente, este “segundo” momento dos memorandos não é
objeto deste estudo de doutorado. Aqui, enfoca-se, exclusivamente, os primeiros (doze)
memorandos, sobretudo aqueles que trataram da definição do status dos membros da al Qaeda e
da milícia Talibã, bem como da aplicação ou não das Convenções de Genebra a estes indivíduos.
De modo geral, ver (todos) os memorandos em: Greenberg and Dratel (Ed.), The Torture Papers,
Op. cit., p.3-380; e especialmente p.144-380 (para os memorandos restantes, Memos 13-28).
126
memorando de 09 de janeiro de 2002 (Memo 4), e de Jay S. Bybee, nos
memorandos de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6) e de 07 de fevereiro de 2002
(Memo 12).
Uma segunda questão fundamental foi a da jurisdição em relação à base
naval norte-americana em Guantanamo Bay, Cuba, local em que os membros da
al Qaeda e da milícia Talibã capturados durante o conflito no Afeganistão seriam
detidos – indefinidamente. Esta questão foi o principal objeto do memorando de
Patrick Philbin e John Yoo de 28 de dezembro de 2001 (Memo 3), em que estes
analisaram se havia possibilidade de que cortes distritais federais norte-
americanas afirmassem e exercessem jurisdição sobre petições de habeas corpus
impetradas em nome de um daqueles prisioneiros. Como Philbin e Yoo
enfatizaram neste memorando, o “espaço-tempo” excepcional de Guantanamo era
fundamental para a arquitetura político-jurídica e, assim, para a consecução da
guerra contra o terror.
A terceira questão foi a da responsabilização criminal de indivíduos por
crimes de guerra. De um lado, os Estados Unidos pretendiam, por meio de
tribunais militares instaurados em Guantanamo Bay, julgar e responsabilizar
criminalmente os prisioneiros da al Qaeda e da milícia Talibã por eventuais
crimes de guerra que tivessem cometido durante o conflito. De outro lado, o
governo norte-americano pretendia imunizar soldados e oficiais norte-americanos
contra possíveis tentativas de responsabilizá-los, doméstica e/ou
internacionalmente, por crimes de guerra que (alegadamente) tivessem sido
cometidos por eles contra tais prisioneiros. Esta foi uma questão comentada em
diferentes memorandos, mas, particularmente, no de Philbin e Yoo de 28 de
dezembro de 2001 (Memo 3), no de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002
(Memo 4) e no de Jay S. Bybee de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6). E foi uma das
questões centrais da Ordem Militar dada por George W. Bush em 13 de novembro
de 2001 (Memo 2).
Finalmente, a quarta questão fundamental foi a da aplicação de tratados
internacionais e leis norte-americanas aos membros da al Qaeda e da milícia
Talibã presos em Guantanamo Bay, tema indissociável da discussão sobre o status
de tais indivíduos à luz do direito internacional e, mais especificamente, das
Convenções de Genebra. Esta era uma questão intrínseca a todos os memorandos
127
comentados anteriormente; pode-se dizer, inclusive, que era a questão central de
todos eles.
Não por acaso, ela ter sido objeto principal dos três memorandos mais
longos e tecnicamente mais importantes enviados pelo Office of the Legal Counsel
do Departamento de justiça, o de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002
(Memo 4) e os de Jay S. Bybee de 22 de janeiro de 2002 (Memo 6) e de 07 de
fevereiro de 2002 (Memo 12). Também foi o objeto central do memorando do
Secretário de Defesa de 19 de janeiro de 2002 (Memo 5), do memorando de
Alberto Gonzales de 25 de janeiro de 2002 (Memo 7), do memorando de Colin
Powell de 26 de janeiro de 2002 (Memo 8), e do de William Taft de 02 de
fevereiro de 2002 (Memo 10). Este assunto foi um dos pontos mais importantes da
carta de John Ashcroft de 01 de fevereiro de 2002 (Memo 9). E, de maneira ainda
mais importante, foi o cerne das principais determinações de George W. Bush de
07 de fevereiro de 2002 (Memo 11).
Ademais, tendo em vista a questão do status dos membros da al Qaeda e da
milícia Talibã, discutiu-se também a condição de falência do Estado soberano
Afeganistão, e, a partir desta condição, o status deste como uma das “altas partes
contratantes” das Convenções de Genebra. Comentou-se também a natureza
particular do conflito: de caráter “internacional”, mas envolvendo, de um lado,
um Estado soberano (os Estados Unidos) e, de outro, uma organização terrorista
“não estatal” – e, assim, “não pública” – (a al Qaeda e, com importantes
qualificações, a milícia Talibã).
Desde o primeiro memorando, a “identidade” dos membros da al Qaeda e
da milícia Talibã capturados pelas Forças Armadas norte-americanas e detidos em
Guantanamo Bay vinha sendo associada a, identificada com, e/ou construída por
meio de diferentes nomes, adjetivos e categorias, como “terrorista”494
,
“estrangeiro”495
, “estrangeiro inimigo”496
, “não cidadão”497
, “não estatal”498
,
“criminoso”499
, “irregular”500
e, é claro, “combatente ilegal”501
.
494
YOO, John C., “Memorandum Opinion for Timothy Flanigan” (Memo 1), Op. cit., p.3. 495
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense” (Memo 3), Op. cit., p.29. 496
PHILBIN, Patrick F. e YOO, John C., “Memorandum for William J. Haynes, II, General
Counsel, Department of Defense” (Memo 3), Op. cit., p.36. 497
BUSH, George W., “Military Order of November 13, 2001” (Memo 2), Op. cit., p.25.
128
De um lado, e sem hesitação, os membros da al Qaeda foram determinados
fora do alcance das Convenções de Genebra porque faziam parte de uma
“organização terrorista”502
, de um “ator não estatal”503
, de uma “força armada
irregular”504
, e porque, desse modo, não eram e nem poderiam ser uma das “altas
partes contratantes” destes tratados internacionais505
. Além disso, eles não tinham
direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra porque haviam adotado
“condutas beligerantes ilegais” (unlawful warfare)506
.
De outro lado, com certa hesitação e mediante importantes qualificações,
determinou-se que os membros da milícia Talibã não tinham direito ao status de
prisioneiro de guerra, entre outros motivos, pois não haviam adotado “condutas
beligerantes legais” (lawful warfare)507
, tinham certas “características de gangues
criminosas”508
e lutavam por “seus próprios interesses tribais, locais, pessoais”509
,
e porque tinham vínculo (quase) umbilical ou até mesmo se confundiam com a al
Qaeda, uma “organização terrorista multinacional” totalmente desvinculada e fora
do controle do Estado soberano afegão510
.
498
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.38; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”
(Memo 6), Op. cit., p.81. 499
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),
Op. cit., p.98. 500
GONZALES, Alberto R., “Memorandum for the President” (Memo 7), Op. cit., p.121. 501
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President” (Memo 9), Op. cit., p.127; BUSH, George
W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135; e BYBEE, Jay S.,
“Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12), Op. cit., p.139. 502
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.38. 503
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.38; BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”
(Memo 6), Op. cit., p.81; e BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11),
Op. cit., p.135. 504
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),
Op. cit., p.81. 505
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.38; BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”
(Memo 6), Op. cit., p.81 506
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.38; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”
(Memo 6), Op. cit., p.81. 507
YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for William J. Haynes II” (Memo 4), Op.
cit., p.50; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II”
(Memo 6), Op. cit., p.110-111. 508
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),
Op. cit., p.98. 509
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12),
Op. cit., p.137. 510
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12),
Op. cit., p.137.
129
Influenciado por tais termos, e baseando-se mais especificamente no
memorando de Jay Bybee de 22 de janeiro de 2002511
e na carta de John Ashcroft
de 01 de fevereiro de 2002512
, o Presidente George W. Bush, em seu memorando
de 07 de fevereiro de 2002, determinou que os membros da milícia Talibã eram
“combatentes ilegais” e que, por isso, não tinham direito ao status jurídico de
prisioneiro de guerra513
.
O Presidente Bush não precisou determinar o mesmo para os membros da al
Qaeda porque estes já estavam fora do alcance das Convenções de Genebra desde
o início; era óbvio que estes indivíduos não eram combatentes legais. Afinal, a
guerra contra o terrorismo deveria ser entendida em oposição à tradicional
concepção de conflito armado internacional, ou seja, em oposição à concepção de
conflito entre forças armadas regulares, exércitos, representando Estados-Nações
soberanos514
; ela requeria um novo paradigma para (re)entender o direito da
guerra515
.
Daí, a simples constatação lógica de que os membros da al Qaeda, os
“terroristas não estatais e multinacionais”, não tinham direito ao status de
prisioneiro de guerra516
. E assim, arquitetonicamente fora da proteção das
Convenções de Genebra, eles eram, arquitetônica e naturalmente, “combatentes
ilegais” e vice-versa.
De acordo com os memorandos, sobretudo com os memorandos dos
advogados do Office of the Legal Counsel do Departamento de Justiça,
especialmente o de Yoo e Delabunty de 09 de janeiro de 2002 e os de Bybee de
22 de janeiro e 07 de fevereiro de 2002, a categoria de “combatente ilegal” estava
fundamentalmente associada às quatro condições de “beligerância legal” (lawful
warfare)517
estabelecidas, originalmente, pela Convenção de Haia IV de 1907, e
511
BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6),
Op. cit. 512
ASHCROFT, John, “Memorandum to the President” (Memo 9), Op. cit., p. 513
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135. 514
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.134. 515
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.134. 516
BUSH, George W., “Memorandum for the Vice President” (Memo 11), Op. cit., p.135. 517
Estas quatro condições são: (i) ser comandada por uma pessoa responsável por seus
subordinados; (ii) usar distintivo fixo reconhecível à distância; (iii) carregar armas abertamente; e
(iv) respeitar as leis e costumes da guerra. BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R.
Gonzales, Counsel to the President” (Memo 12), Op. cit., p.136.
130
reafirmadas expressamente no artigo 4º(A)(2) da Convenção de Genebra III de
1949518
.
Não tendo respeitado tais condições, um indivíduo que tivesse participado
de conflito armado, quando capturado pelas forças inimigas, não teria direito ao
status jurídico de prisioneiro de guerra, mesmo que fizesse parte de uma força
armada regular519
. Estruturalmente, portanto, os membros da al Qaeda não
tinham direito a tal status, uma vez que pertenciam a uma organização terrorista
transnacional que, dadas suas condutas, natureza e propósito, não satisfazia tais
condições mínimas de “beligerância legal” (lawful warfare). Assim, os membros
da al Qaeda eram combatentes ilegais por definição.
Já os membros da milícia Talibã não necessariamente eram combatentes
ilegais. Nos termos do artigo 4º(A)(2), membros de milícias, ou seja, de forças
armadas irregulares, também poderiam ser protegidos pelo status jurídico de
prisioneiro de guerra, mas desde que satisfizessem as quatro condições de
“beligerância legal” (lawful warfare). Daí, a importância (e, quiçá, necessidade)
da determinação do Presidente Bush, de que os membros da milícia Talibã eram
combatentes ilegais, para a consecução da guerra dos Estados Unidos contra o
terror.
Como combatentes ilegais, os membros da al Qaeda e da milícia Talibã não
apenas seriam colocados e mantidos num “lugar” – geográfico e político-
jurisdicional – bastante incomum, Guantanamo Bay, como também ocupariam um
“espaço-tempo” bastante particular na arquitetura político-jurídica, e histórico-
teórica, internacional.
Na próxima parte deste capítulo, e a partir de alguns rastros inscritos nesses
memorandos e em outros textos conexos, seguem-se os rastros de algumas
“alteridades”, de algumas categorias ausentes em tais memorandos, mas que, no
entanto, mesmo que invisivelmente, como espectros ou rastros de rastros, faziam-
se presentes ali como um traço arquitetônico – histórico-teórico – constitutivo,
mas ocultado ou esquecido, daquela alegada “origem” das condições mínimas de
518
Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”
(Memo 12), Op. cit., p.136. Ver também: YOO, J. and DELABUNTY, R. J. “Memorandum for
William J. Haynes II” (Memo 4), Op. cit., p.48-50, 61-62; e BYBEE, Jay S., “Memorandum for
Alberto R. Gonzales and William J. Haynes II” (Memo 6), Op. cit., p.89-90, 107-111. 519
Ver: BYBEE, Jay S., “Memorandum for Alberto R. Gonzales, Counsel to the President”
(Memo 12), Op. cit., p.136-142.
131
“beligerância legal” (lawful warfare). Esses rastros parecem ser fundamentais
para que se possa (re)entender, (re)pensar, e questionar, a “identidade” e o
“espaço-tempo” particulares do “combatente ilegal” naquela arquitetura
internacional.
1.3
O Rastro do Pirata
A determinação do status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã
como “combatentes ilegais” foi fundamental para a arquitetura político-jurídica e
consecução da guerra contra o terror. De um lado, autorizou a não aplicação das
proteções das leis norte-americanas e do direito internacional, mais
especificamente das Convenções de Genebra, a estes prisioneiros; e, de outro,
autorizou a detenção indefinida de tais indivíduos, bem como a jurisdição de
tribunais militares norte-americanos para julgá-los e puni-los por crimes de
guerra.
Como se pôde observar na leitura dos memorandos, a construção dessa
determinação envolveu, entre outras medidas, a mobilização de diferentes
categorias, interpretações, e pares binários como paz/guerra, guerra/crime,
guerra/terrorismo, (guerra) internacional/civil, estatal/não estatal, público/privado,
(força armada) regular/irregular, exército/milícia, soldado/terrorista, (Estado)
soberano/falido, internacional/doméstico, dentro/fora (do alcance das Convenções
de Genebra), cidadão/estrangeiro, (combatente) legal/ilegal, entre outros.
A “identidade” e o “espaço-tempo” (im)próprios do “combatente ilegal” na
arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror foram constituídos nessa
trama de nomes, significantes e significados. Conforme se pôde verificar nos
memorandos, o status dos membros da al Qaeda e da milícia Talibã não eram um
dado soberano, natural, autoidêntico a si e absolutamente independente de outros
termos, status e categorias. Este status foi debatido, comentado, interpretado,
determinado, e, assim, construído.
Ao mesmo tempo, esta construção não se deu no vácuo, num “espaço-
tempo” qualquer ou independente de tudo e de todos. Esta construção, igualmente,
não foi autoidêntica a si mesma e absolutamente independente de outros termos,
categorias, linguagens e construções. Os diferentes nomes, categorias, definições,
132
significantes e significados mobilizados naqueles memorandos não pertenciam
apenas àquela arquitetura ou linguagem específica da guerra norte-americana
contra o terror, mas também a outras arquiteturas e linguagens, como o direito
norte-americano e o direito internacional.
A trama de nomes, categorias e significantes arquitetada nesses
memorandos foi construída por meio, e sempre dentro, da linguagem. Mais
especificamente, ela foi arquitetada por meio, e dentro, da linguagem do direito
norte-americano e, sobretudo, da linguagem mais técnica do direito internacional.
Neste trabalho de doutorado, enfoca-se, exclusivamente, a relação daquela
arquitetura político-jurídica da guerra contra o terror construída por meio daqueles
memorandos e esta linguagem mais específica do direito internacional.
A leitura desta relação, como se comentou na Introdução deste trabalho, é
influenciada pela concepção de linguagem, ou de texto, de Jacques Derrida. Como
ele destacou em a Gramatologia, não há nada fora do texto. E neste texto geral é o
jogo da diferença, ou différance, que estrutura o “significado” e que constrói a
“identidade” de um “significante”. Assim, a “identidade” é o resultado do jogo,
tramado, de suas “alteridades”, que, no entanto, são constitutivas daquela520
.
Nesta trama de diferenças e espaçamentos, ou, para usar os termos de Rafael
Haddock-Lobo, neste “labirinto de inscrições”521
, o que há são significantes e
significantes de significantes. Não há identidade soberana que seja absoluta e
idêntica a si mesma, nem, portanto, significado transcendental. O significado é
constituído no jogo e entre os espaçamentos dos diferentes significantes. No texto
de Derrida, o que há é uma cadeia de remetimentos em que um significante se
remete a outro, que se remete a outro, sem que haja um ponto de referência último
ou primeiro, sem que haja uma fundação última ou um significado original. O que
há são rastros, e rastros de rastros.
O “quase-conceito” de rastro de Derrida (comentado na Introdução desta
tese) serve aqui como fonte de inspiração para questionar a “identidade” e o
“espaço-tempo” (im)próprio do “combatente ilegal”, tal como este foi construído
e determinado naqueles memorandos. Dessa forma, pretende-se seguir o rastro da
relação entre o texto mais específico da arquitetura desenhada por estes
520
Nesse sentido, ver: DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. Baltimore: The Johns Hopkins
University Press, 1997. 521
HADDOCK-LOBO, Rafael. Derrida e o Labirinto de Inscrições. Op. cit.
133
memorandos e o texto mais geral da arquitetura do direito internacional,
enfocando-se, mais precisamente, no ponto “original” evocado e mobilizado pelos
arquitetos político-jurídicos norte-americanos para fundamentar a discriminação
entre “combatentes legais” e “combatentes ilegais”.
Como se comentou anteriormente, a definição do status dos membros da al
Qaeda e da milícia Talibã como “combatentes ilegais” baseou-se no não
cumprimento por parte destes daquelas quatro condições mínimas de
“beligerância legal” (lawful warfare) estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2) da
Convenção de Genebra III de 1949. E como se evocou naqueles memorandos,
para fundamentar aquela discriminação, tais condições haviam sido estabelecidas,
originalmente, pela Convenção de Haia IV de 1907.
Assim, apesar de estruturarem a análise da aplicação de tratados
internacionais àqueles prisioneiros em torno, sobretudo, das Convenções de
Genebra, e mais especificamente da Convenção de Genebra III, os arquitetos
político-jurídicos norte-americanos recorreram, em última instância, a esta
Convenção de Haia para fundamentar esta definição. Esta, portanto, era a origem
do adjetivo “ilegal” que qualificou substancialmente os combatentes da al Qaeda
e da milícia Talibã, e, assim, determinou o “espaço-tempo” (im)próprio destes
indivíduos nas arquiteturas político-jurídicas norte-americanas da guerra contra o
terror e do direito internacional. Evocando esta “origem”, os memorandos
(re)afirmaram a estrutura dicotômica baseada no par binário “combatente
legal”/“combatente ilegal”, autorizando, assim, esta determinação de status, bem
como aquele “espaço-tempo” (im)próprio. Mas será que esta origem é tão original
e absoluta assim?
O propósito de tal questionamento não é o de questionar se, de fato e/ou de
direito, a Convenção de Haia IV foi o primeiro tratado internacional a estabelecer
aquelas condições de “beligerância legal” (lawful warfare) e, com elas, a regra
internacional que autoriza a discriminação entre “combatentes legais” e
“combatentes ilegais”; mas, sim, o de questionar a “identidade”, a “original-
idade”, desta origem. Noutras palavras, o propósito aqui é enfocar a construção
histórico-teórica desta regra internacional, e, portanto, daquela origem, destacando
certas alteridades histórico-teóricas constitutivas daquelas categorias de
combatentes.
134
1.3.1
Uma Regra que veio do Direito Internacional do Mar
Em seu livro sobre o direito de conflitos armados internacionais, Yoram
Dinstein comenta, na primeira parte, sobre “combatentes e civis”, do capítulo
sobre “combate legal” (lawful combatancy), que “um civil pode se converter em
combatente”, mas que “uma pessoa não pode (e não é permitida a) ser os dois, um
combatente e um civil, ao mesmo tempo, e nem pode constantemente passar de
um status ao outro”522
. Ele conclui: “[s]eja na terra, no mar ou no ar, uma pessoa
não pode combater o inimigo e continuar um civil”523
.
Mais importante para os propósitos deste trabalho, o autor comenta que
“[i]nteressantemente, esta norma geral primeiro se cristalizou no direito de guerra
do mar [law of sea warfare]”524
, com a Declaração de Paris de 1856 que, em seu
artigo 1, abole a prática de “privateering”525
. Dinstein leciona:
Privateers were private persons (at times known as corsairs, not to be
confused with pirates) who obtained official letters of marque from a
Government, allowing them to attack enemy merchant vessels. As the
language of the Declaration of Paris indicates, it merely confirms the
abolition of privateering as „an already established situation‟ under
customary international law. The law of land (and air) warfare ultimately
adjusted to proscribe parallel modes of behaviour.526
(ênfases minhas)
Como o autor explica, o “privateer” (ou “corsário”) era uma pessoa privada
que obtinha do governo uma “letter of marque”, ou seja, uma autorização, que lhe
permitia atacar uma embarcação mercante inimiga durante um conflito armado. É
importante notar que há aqui uma relação entre o público (o governo) e o privado
(a pessoa privada) que, uma vez mediada por uma “letter of marque”, autoriza o
agente privado, agora “privateer”, a atacar uma embarcação mercante inimiga.
Com tal autorização pública, a pessoa privada se transforma num “combatente
privado com procuração pública”527
. Assim, a figura do “privateer” representa
522
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities under the Law of International Armed
Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.28. 523
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 524
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 525
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. Nesse sentido, ver: 1856 Paris
Declaration Respecting Maritime Law, in ROBERTS, Adam and GUELFF, Richard (Ed.).
Documents on the Laws of War (3rd
Edition). Oxford: Oxford University Press, 2000, p.47-52. 526
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28. 527
Este é um termo que estou introduzindo para fins didáticos e ilustrativos.
135
precisamente aquela situação de confusão entre a condição de “soldado” e a de
“civil” que é comentada (criticamente) por Yoram Dinstein.
A abolição do “privateering”, portanto, liquida esta figura intermediária528
entre o público e o privado, entre um combatente estritamente público, o soldado,
e um não combatente estritamente privado, o civil. Afinal, o “privateer”, munido
de sua autorização governamental (“letter of marque”), ou seja, constituindo-se
por meio de uma relação fundamental com o poder público, posicionava-se entre
esses extremos.
Note-se, também, a observação de Yoram Dinstein de que a figura do
privateer ou corsário não deve ou não pode ser confundida com a do pirata.
(Como será comentada a seguir, esta diferenciação parece ser importante para
(re)entender e questionar a construção, a “identidade” e o “espaço-tempo”
(im)próprio do “combatente ilegal” naquelas arquiteturas norte-americanas da
guerra contra o terror e do direito internacional).
Nesse contexto, cumpre salientar que aquelas observações iniciais de Yoram
Dinstein apontam para a suposta origem histórico-conceitual da diferenciação
entre combatentes legais (lawful combatants) e combatentes ilegais (unlawful
combatants)529
, diferenciação esta que, como destacado anteriormente, foi
fundamental para a definição do status dos membros da al Qaeda e da milícia
Talibã, e, consequentemente, para a conclusão de que estes indivíduos estavam
fora do alcance de proteção internacional das Convenções de Genebra530
.
Vale reiterar que esta diferenciação está diretamente associada à “origem”
daquelas condições de “combate legal” (lawful combatancy) reafirmadas no artigo
4º(A)(2) da Convenção de Genebra III, ou seja, ela está relacionada,
originalmente, à Convenção de Haia IV.
Este tratado internacional, celebrado em 1907, trata das “Leis e Costumes da
Guerra na Terra”531
, e o artigo 1º de seu Anexo estende a aplicação das “leis,
528
Aqui faço referência, proposital, ao termo (“Intermediate”) que Carl Schmitt utiliza no subtítulo
de seu livro sobre o “partisan”. Ver: SCHMITT, Carl. Theory of the Partisan: Intermediate
Commentary on the Concept of the Political. (Translated by G. L. Ulmen). New York: Telos
Press Publishing, 2007. Voltaremos a este ponto mais adiante. 529
Sobre a diferenciação entre combatentes legais e ilegais, ver: DINSTEIN, Yoram. The
Conduct of Hostilities, Op. cit., p.29-33. 530
Nesse sentido, ver: DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.33-54. 531
“Convention (IV) Respecting the Laws and Customs of War on Land”, in SCOTT, James
Brown. The Reports to the Hague Conferences of 1899 and 1907. Oxford: Clarendon Press,
1917, p.509-532.
136
direitos, e deveres de guerra”, para além dos exércitos, a milícias e corpos
voluntários, sob a condição de que estes satisfaçam aquelas quatro condições532
.
Este ponto também é sugerido por Yoram Dinstein, quando este destaca a
abolição do “privateering” e a relação desta com a emergência da regra do direito
internacional de guerra que proíbe a confusão entre ou concomitância do status de
soldado e do status de civil. Como ele destaca, esta é uma regra internacional
estabelecida no regime do direito de guerra no mar.
Segundo Dinstein, aboliu-se aquela figura intermediária que existia entre o
exclusivamente público (o soldado combatente) e exclusivamente privado (o civil
não combatente) e, assim, se estruturaram – e se normalizaram – os dualismos
soldado/civil e combatente/não combatente; primeiro, no direito internacional de
guerra no mar, com a Declaração de Paris de 1856, e, só então, a “lei de guerra na
terra (e no ar) acabou se ajustando e proscrevendo modos semelhantes de
comportamento”533
. A Convenção de Haia IV pode ter positivado aquelas
condições, mas foi a Declaração de Paris que, antes, constituiu a possibilidade de
diferenciar civis de combatentes, e combatentes legais de combatentes ilegais.
Este é um rastro da relação entre terra e mar, ou, mais precisamente, entre uma
regra internacional que veio do direito de guerra no mar e se consolidou no direito
dos conflitos armados na terra.
Assim, as discussões sobre combatentes legais e combatentes ilegais (bem
como sobre forças regulares e irregulares), que são discussões diretamente
relacionadas às condições estabelecidas no artigo 1º do Anexo à Convenção de
Haia IV de 1907 sobre as leis e costumes de guerra na terra, devem ser ampliadas
de modo a incorporar as diferenciações de status e categorias relacionadas ao
direito internacional do mar, em geral, e dos direitos e costumes de guerra no mar,
em particular. Desse modo, parece importante (e prudente) repensar o dualismo
532
“Article 1. The laws, rights, and duties of war apply not only to armies, but also to militia and
volunteer corps fulfilling the following conditions: 1. That they be commanded by a person
responsible for his subordinates; 2. That they have a fixed distinctive emblem recognizable at a
distance; 3. That they carry arms openly; and 4. That they conduct their operations in accordance
with the laws and customs of war. In countries where militia or volunteer corps constitute the
army, or form part of it, they are included under the denomination „army‟.” Annex to the
Convention, Regulations Respecting the Laws and Customs of War on Land, Section I – On
Belligerents, Chapter I – The Qualifications of Belligerents, in SCOTT, J. B. The Reports to the
Hague Conferences, Op. cit., p.512. 533
DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities, Op. cit., p.28.
137
“combatente legal”/“combatente ilegal” tanto em relação à categoria do
“privateer” como também em relação à categoria do “pirata”.
Nesse sentido, importante ressaltar a preocupação com um possível retorno
da prática de “privateering” durante a Conferência de Haia de 1907, no âmbito,
por exemplo, das negociações da Convenção (VII) sobre a “Conversão de Navios
Mercantes em Navios de Guerra”, que tratavam precisamente da possível
transformação de um agente privado-comercial em um agente público-militar534
.
Comentando o artigo 1º535
desta Convenção (VII), o Relator da Comissão
responsável por tais negociações, Mr. Henri Fromageot, destacou que tal artigo
estabelecia um princípio que deveria ser entendido como um corolário da
Declaração de Paris de 1856, uma vez que seu objetivo era dar toda a garantia
contra um retorno da prática de privateering. O princípio-corolário era o de que
“[t]oda embarcação alegando ser beligerante em caráter deve ser colocada sob a
autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado cuja bandeira ela
carrega”536
.
1.3.2
Aquele que praticava Violência Individual Extraterritorial Privada e
não Estatal
Este princípio-corolário explicitava a centralidade do Estado soberano na
ordem político-jurídica internacional, ou, dito de outro modo, expressava a
concentração da autoridade do Estado no que se referia à exclusividade do uso
legítimo – e legal – da força nas relações internacionais. Combatentes legítimos –
e legais – passaram a ser, necessariamente, aqueles que estão sob “a autoridade,
controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Esta é uma leitura que
parece estar de acordo, por exemplo, com a tese de Janice E. Thomson em seu
livro sobre mercenários, piratas e soberanos537
.
534
SCOTT, J. B.. The Reports to the Hague Conferences, Op. cit., p.590-598. 535
“Article 1. A merchant ship converted into a war-ship cannot have the rights and duties
accruing to such vessels unless it is placed under the direct authority, immediate control, and
responsibility of the State whose flag it flies.” General Report to the Conference upon the work of
the Fourth Commission (Reporter, Mr. Henri Fromageot) in SCOTT, J. B. The Reports to the
Hague Conferences, Op. cit., p.597. 536
General Report to the Conference upon the work of the Fourth Commission (Reporter, Mr.
Henri Fromageot) in SCOTT, J. B. The Reports to the Hague Conferences, Op. cit., p.597. 537
THOMSON, Janice E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns: State-Building and
Extraterritorial Violence in Early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press,
1994.
138
Nesta obra, a autora tem como objetos principais a soberania e a construção
do Estado. Portanto, é preciso fazer a observação de que seu estudo sobre
mercenários, privateers e piratas é condicionado por um interesse anterior nas
relações desses “agentes” com o soberano, o qual, por meio do uso estratégico e
seletivo da violência extraterritorial, exercia, monopolizava e, assim, autoafirmava
e constituía sua própria autoridade e soberania.
Para Thomson, os soberanos construíram os Estados valendo-se, de um
lado, do uso de mercenários e privateers e, de outro lado, da punição seletiva de
alguns piratas, quando seus interesses demandavam. Ademais, houve um esforço
do Estado no sentido de expandir e exercer seu controle sobre os indivíduos
dentro de seu território, na tentativa de obter “a autoridade exclusiva para formar
um exército e usar violência contra outros Estados”538
.
De acordo com a autora, havia uma relação íntima entre o Estado, o
soberano e a exploração da violência individual extraterritorial, que podia ser
verificada, por exemplo, nos casos do uso de privateers e da punição seletiva de
piratas. Dessa forma, a busca por autoridade exclusiva para usar violência
internacionalmente envolveu também a eliminação dessas formas – privadas – de
violência extraterritorial. Isso significou a definição e supressão da pirataria539
e a
eliminação do privateering.
Para Thomson, a consolidação do Estado soberano moderno (tal como o
imaginamos à luz da tradicional concepção weberiana) e, assim, também a do
sistema de Estados soberanos (tal como o imaginamos à luz da tradicional
concepção realista de relações internacionais) envolveram não apenas a
concentração do controle sobre os indivíduos dentro de uma jurisdição territorial e
o monopólio da autoridade para formar um exército e usar a força contra outros
Estados, mas também a eliminação e/ou o controle de diferentes formas de
violência individual extraterritorial (pirataria, privateering, filibustering) por parte
do Estado soberano, e do sistema de Estados540
.
538
THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.142. Nesse contexto, a
autora está se referindo ao caso norte-americano em relação ao filibustering. De acordo com
Thomson, “[t]he defining characteristic of nineteenth-century filibustering was that individuals
from one sovereign state conducted warlike operations against a second sovereign state with which
the first state was at peace.” THOMSON, J. E., Op. cit., p.141. 539
THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140. 540
THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.142.
139
Nesse contexto, portanto, aquele princípio-corolário estabelecido pelo artigo
1º da Convenção de Haia (VII) sobre a “Conversão de Navios Mercantes em
Navios de Guerra” deve ser entendido também como o princípio-corolário ou um
traço fundamental de uma ordem que se consolidou com e sob “a autoridade,
controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Como se comentou,
este é um corolário da Declaração de Paris de 1856, um princípio que busca
garantir que não haja um retorno da prática de privateering.
Aqui, é importante destacar dois aspectos da leitura de Janice Thomson
sobre piratas e privateers. Primeiro, ela parece reconhecer que, tecnicamente, a
categoria de “pirata” é diferente da categoria de “privateer” (lembre-se da
advertência feita por Yoram Dinstein sobre esta diferença conceitual). Segundo, e
talvez por causa dos propósitos e objetos de seu estudo e de sua perspectiva
teórica, ela parece relegar esta “tecnicalidade” a um segundo plano, concentrando-
se no “fato”, “empiria” ou “realidade” histórica de que, na prática, os piratas e os
privateers eram praticamente a mesma coisa, praticamente indistinguíveis. Para
ela, o privateer era uma espécie de pirata, ou, de fato, era um pirata (os privateers
da Rainha Elizabeth corroboravam tal entendimento).
Para a autora, a única diferença entre eles era a de que o privateer tinha
posse de uma “comissão de privateering” (uma “letter of marque”), enquanto o
pirata não a tinha. Mas o ponto fundamental era precisamente o de que esta
“comissão” pública poderia ser concedida pelo soberano a qualquer pirata,
transformando-o, imediata e convenientemente, num privateer. No sentido
contrário, o soberano também poderia julgar que um privateer não era
propriamente comissionado e, assim, condená-lo como um pirata. Daí, a confusão
entre o público e o privado, o Estado e o indivíduo, e o problema político-jurídico
da instrumentalização e exploração do uso da violência individual extraterritorial.
Como a autora comenta, “enquanto os Estados insistissem no direito de
explorar a violência individual, a pirataria não poderia nem mesmo ser definida,
muito menos suprimida”541
. E sem definir a pirataria não seria possível definir e
diferenciar a prática do privateering, e, consequentemente, nem suprimir a
primeira, nem abolir a segunda. Nesse sentido, vale destacar a importante
conclusão de Janice Thomson:
541
THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140.
140
Only with this delegitimation of state-sponsored individual violence on the
high seas was it possible to clearly distinguish piracy from privateering and
criminal acts from acts of war. Only then did it become possible to develop
an international norm against piracy and to suppress it. Only then could
pirates be defined as stateless persons for whose actions no state could be
held responsible but any state could prosecute. Only with the
universalization of the metanorm against individual violence on the high
seas were the areas of the globe not subject to sovereignty converted from a
state of nature into a realm of orderly interstate relations.542
De um ponto de vista mais amplo e estrutural, é importante notar a relação
entre, de um lado, a “deslegitimação da violência individual patrocinada pelo
Estado” e a “universalização da metanorma contra a violência individual” no alto-
mar e, de outro, a conversão “das áreas do globo não sujeitas à soberania” de um
“estado de natureza” para um estado de “relações interestatais ordenadas”. Houve,
portanto, a imposição da ordem internacional territorial, ou a partir da terra, sobre
o alto-mar, ou seja, sobre a área do globo fora da jurisdição territorial do Estado
soberano e, assim, fora da “jurisdição territorial coletiva” do sistema de Estados.
Um dos pontos centrais da tese de Thomson é o de que este processo de
ordenamento envolveu a (ou dependeu da) “deslegitimação da violência
individual patrocinada pelo Estado no alto-mar”. Tal violência era patrocinada
pelo Estado de duas maneiras: positivamente no caso do privateer, na medida em
que a ele era conferida uma “letter of marque”, e negativamente no caso do pirata,
na medida em que esta “letter of marque” era negada ou ausente. Assim, de um
ponto de vista mais específico, “individualista” e conceitual, este processo de
ordenamento envolveu a definição de – e, assim, a diferenciação entre – “pirata” e
“privateer”; e com estas definições e diferenciações, a distinção entre “atos
criminosos” e “atos de guerra”.
Aqui, é importante destacar que esta inter-relação – como condição de
possibilidade para a diferenciação – entre a definição de “pirata” e a definição de
“privateer”. Isso porque para a definição e subsequente abolição do privateering
era necessária a definição da pirataria. Ademais, vale realçar, o problema da
confusão entre o publico e o privado, entre a condição de privado-comerciante e
público-militar, entre o status de soldado e o status de civil, no direito da guerra
no mar, era – histórica e teoricamente – personificada na figura do privateer.
542
THOMSON, J. E. Mercenaries, Pirates, and Sovereigns, Op. cit., p.140.
141
Nos termos de Yoram Dinstein, este era uma “pessoa privada” que portava
uma “letter of marque” concedida por uma autoridade pública, por um Estado
soberano. O pirata, por sua vez, nos termos de Thomson, era uma pessoa (privada)
“sem Estado” (stateless) e sem tal “letter of marque”, cujas ações não poderiam
causar a responsabilização (internacional) de nenhum Estado; mas que, no
entanto, podia ser, capturado, julgado e punido por qualquer Estado.
Esta foi a “norma internacional” que levou à supressão da pirataria (uma das
práticas de violência individual extraterritorial privada no alto-mar), a
“metanorma” que foi universalizada, que ordenou o alto-mar, e que, assim,
domesticou o “Estado de natureza” daquelas “áreas do globo não sujeitas à
soberania”. Esta é a origem da jurisdição universal543
.
1.3.3
Aquele que lutava em nome de nenhuma Nação
Em uma entrevista sobre a “questão da tortura”, concedida à revista
eletrônica Frontline em 2005, John Yoo, um dos principais arquitetos político-
jurídicos daqueles memorandos do Office of the Legal Counsel do Departamento
de Justiça (mais especificamente, dos memorandos de 25 de setembro de 2001, de
28 de dezembro de 2001 e de 09 de janeiro de 2002), revelou, no final de uma de
suas respostas, uma importante fonte conceitual para a fundamentação daquela
categoria de “combatente ilegal” na guerra norte-americana contra o terror, e,
assim, para a não aplicação das Convenções de Genebra àqueles indivíduos que
tivessem tal status:
[Frontline:] I can see from how that could be the basis for things to begin to
flow: Does Geneva [Conventions] apply? Are they enemy combatants? Are
they [Prisoners of War] POWs? Are they wearing uniforms, and are they
doing unlawful acts to women and children? The logic of it could flow from
what you were talking about.
[John Yoo:] I think a lot of the logic flows from the two [questions] I had to
answer right from the beginning: Is it war or not? And then, should they be
543
Nesse sentido, ver: THE PRINCETON Principles on Universal Jurisdiction, in Stephen Macedo
(Ed.). Universal Jurisdiction. Op. cit, p.21-22; MACEDO, Stephen (Ed.). Universal
Jurisdiction. Op. cit; BASSIOUNI, M. Cherif. “The History of Universal Jurisdiction and its
Place in International Law”, in Stephen Macedo (Ed.). Universal Jurisdiction, Op. cit., p.39-63;
CASSESE, Antonio. International Criminal Law. Op. cit.; SIMPSON, Gerry. Law, War and
Crime. Op. cit.; e SIMPSON, Gerry. “Piracy and the Origins of Enmity”. In Craven, Fitzmaurice
and Vogiatzi. (Ed.). Time, History and International Law. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers,
2007.
142
treated the same as a nation or not? Because I think some people think,
well, crime is just one sort of sphere with its own rules, and war is just one
sphere and its own rules, and everybody in war gets treated the same. But
that's not actually the case. War has different rules for a nation and different
rules for people who choose to fight kind of like pirates who are outside the
control of a nation. […]544
(ênfase minha)
Aqui, é interessante destacar os pares binários – guerra/crime e
nação/piratas – que parecem constituir a “(infra)estrutura lógica” de John Yoo, e,
assim, regular a sua construção racional da natureza dos combatentes e das regras
que deveriam ser aplicadas a eles. Em primeiro lugar, tratava-se de um contexto
de “guerra”; e, não, de “crime”. Em segundo lugar, não se tratava de uma guerra
contra uma “nação”, ou seja, de um conflito armado entre dois ou mais Estados
soberanos, mas, sim, de uma guerra contra indivíduos que estavam “fora do
controle de uma nação”, e que lutavam como “piratas”.
Esta oposição nação/pirata – ou seja, entre combatentes sob o controle de
uma nação e combatentes “fora do controle de uma nação” – parece fundamental
para entender aquela definição do status dos membros da al Qaeda e da milícia
Talibã nos memorandos da guerra norte-americana contra o terror. Pois, como se
viu, a não relação com um Estado soberano (pelo menos, que não fosse um
“Estado falido”) foi determinante para a conclusão de que tais indivíduos eram
“combatentes ilegais”. Nestes termos de Yoo, esses indivíduos teriam lutado
“como piratas” (“like pirates”).
Naquele mesmo ano, 2005, um artigo publicado pela revista The New
Yorker também retratou a “questão da tortura” e da fundamentação desenvolvida
por John Yoo para justificar a categoria de “combatente ilegal”, bem como a não
aplicação das Convenções de Genebra aos prisioneiros de Guantanamo Bay.
Numa passagem reveladora, a autora do artigo, Jane Mayer, se refere a uma
entrevista que teria feito, por telefone, com um dos principais autores daqueles
memorandos. Ela comenta, citando John Yoo:
In a recent phone interview, [John] Yoo was soft-spoken and resolute. “Why
is it so hard for people to understand that there is a category of behavior not
covered by the legal system?” he said. “What were pirates? They weren't
fighting on behalf of any nation. What were slave traders? Historically, there
were people so bad that they were not given protection of the laws. There
were no specific provisions for their trial, or imprisonment. If you were an
544
YOO, John. “The Torture Question: Interviews: John Yoo”, Frontline, October 18, 2005.
Available at: <http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/torture/interviews/yoo.html>.
143
illegal combatant, you didn't deserve the protection of the laws of war”. Yoo
cited precedents for his position. “The Lincoln assassins were treated this
way, too”, he said. “They were tried in a military court, and executed”. The
point, he said, was that the Geneva Conventions‟ simple binary
classification of civilian or soldier isn't accurate.545
De modo geral, esta passagem fornece importantes rastros para entender as
categorizações, diferenciações e dicotomias que estruturaram, por exemplo, o
memorando de 09 de janeiro de 2009, arquitetado e construído por Yoo e
Delabunty. Novamente, a figura do pirata aparece como aquela associada a um
tipo de combatente que está e luta fora do controle de qualquer nação. Em
diferentes trechos, Yoo destaca a não aplicação das leis, em geral, e das leis da
guerra, em particular, a determinados casos e categorias de indivíduos e
comportamentos. De acordo com ele, não haveria regras específicas que
regulassem a detenção e o julgamento destes indivíduos.
A caracterização destas pessoas como “tão más” reaproxima a guerra e suas
leis a julgamentos de valor, e, assim, a um juízo moral sobre o “bem” e o “mal”, e
sobre o “justo” e “injusto”. Este movimento, sutil, mas extremamente poderoso,
de moralização parece trazer consigo uma (re)leitura – “político-teológica” – da
ordem político-jurídica internacional.
Nesta (re)leitura, “piratas”, “comerciantes de escravos” e “combatentes
ilegais” parecem exemplificar o tipo de indivíduo que, pela sua natureza “tão má”
(e, poder-se-ia acrescentar, “tão injusta”), não “merece a proteção das leis de
guerra”. Para este tipo de indivíduo a classificação binária, civil/soldado, das
Convenções de Genebra não era adequada. E de acordo com os precedentes, o
julgamento perante corte militar, seguido de execução, parecia ser a forma mais
adequada de lidar com este tipo de indivíduo que não lutava em nome de nenhuma
nação.
Yoo parecia estar corroborando a conclusão do Presidente Bush, em seu
memorando de 07 de fevereiro de 2009, de que, naquele contexto de guerra contra
o terrorismo, era preciso um novo paradigma para (re)entender e (re)pensar o
direito da guerra. No entanto, Yoo lembraria ao Presidente que, para isso, já havia
um paradigma, o antigo paradigma do pirata na arquitetura político-jurídica
internacional.
545
MAYER, Jane. “Outsourcing Torture; The secret history of America‟s „extraordinary rendition‟
program”. The New Yorker. New York, February 14, 2005. p.7-8. Ênfases acrescidas.
144
1.4
Conclusão
A arquitetura político-jurídica da guerra norte americana contra o terror foi
construída, e arquitetada, em grande medida, por meio daqueles memorandos que
buscavam, sobretudo, definir o status dos membros da al Qaeda e da milícia
Talibã capturados durante o conflito no Afeganistão, e presos indefinidamente em
Guantanamo Bay, Cuba. Entre tais memorandos, destacaram-se aqueles do Office
of the Legal Counsel do Departamento de Justiça que, (re)lendo e
(re)interpretando os termos da arquitetura político-jurídica internacional,
definiram o status de tais indivíduos como o de “combatentes ilegais”.
Como “combatentes ilegais”, aqueles prisioneiros também foram
identificados com um “espaço-tempo” (im)próprio fora do alcance das proteções
estabelecidas pelas Convenções de Genebra de 1949. Mais especificamente, dada
a natureza ilegal de suas condutas beligerantes, determinou-se que tais indivíduos
não tinham direito ao status jurídico de prisioneiro de guerra, e que, portanto,
estavam fora do alcance das proteções da Convenção de Genebra III.
A construção de tais determinações foi fundamentada na diferenciação
jurídica entre “combatentes legais” e “combatentes ilegais”, diferenciação esta
que havia sido estruturada a partir da definição das quatro condições mínimas de
“combate legal” (lawful combatancy) estabelecidas pelo artigo 4º(A)(2) da
Convenção de Genebra III. A origem evocada destas condições – e, portanto, da
dicotomia “combatente legal”/“combatente ilegal” – era a Convenção de Haia IV
de 1907, relativa às leis e costumes de guerra na terra.
A partir do questionamento desta suposta origem, e fundação, terrestre,
buscou-se, então, “seguir” alguns rastros deixados nos e constitutivos dos próprios
memorandos. Primeiro, destacou-se que a regra que estabeleceu a fundação para a
dicotomia “combatente legal”/“combatente ilegal” foi uma regra internacional
que, antes de ter sido afirmada pelo direito de guerra na terra, constituiu-se e
normalizou-se por meio do direito de guerra no mar.
Assim, a “origem” da alegada origem daquelas condições reafirmados em
Genebra em 1949 não se encontrava nos termos, terrestres, estabelecidos em Haia,
em 1907, mas nos termos declarados em Paris, em 1856, em relação a uma
145
categoria especifica do direito internacional de guerra no mar, o privateer ou
corsário.
O privateer era uma figura intermediária entre o combatente público (o
“soldado”) e o não combatente privado (o “civil”). Ele era uma pessoa privada
que obtinha do soberano ente público uma “letter of marque”, uma autorização,
que lhe permitia atacar uma embarcação mercante inimiga durante um conflito
armado. O privateer era uma pessoa privada que se convertia ou era convertida
num combatente por meio de um “toque” público. Como um combatente
“híbrido”, privado e público, ele fazia confundir não apenas o “público” e o
“privado”, mas também o “combatente” e o “civil”.
O privateer também era uma figura intermediária por outras razões. Ele era
definido entre a categoria do combatente estritamente estatal e público, o
“soldado”, e a do combatente estritamente não estatal e privado, o “pirata”. Como
este, o privateer era aquele que praticava uma forma de violência individual
extraterritorial. Contudo, diferentemente do pirata, que praticava uma forma de
violência individual extraterritorial estritamente privada e não estatal, ou seja, sem
o “toque” do Estado, o privateer exercia sua forma de violência individual
extraterritorial com a autorização do ente público e soberano. O privateer era
comissionado por este com uma “letter of marque”.
No rastro daquela regra internacional que veio do mar, rastreou-se também a
categoria do privateer, cuja abolição, declarada em Paris, em 1856, foi
fundamental para a estruturação daquelas dicotomias, “combatente”/“não
combatente”, “soldado”/“civil”, e “combatente legal”/“combatente ilegal”, e,
assim, para a consolidação da autoridade exclusiva do Estado soberano para a
formação de um exército, e para praticar violência tanto dentro de seus territórios
quanto extraterritorialmente. Daí, o monopólio do Estado sobre a legitimidade e
legalidade do uso da força nas relações internacionais. Daí também, o “espaço-
tempo” daqueles que são identificados ou construídos como o ponto
diametralmente oposto ao do combatente “estatal”, “público”, “legítimo” e
“legal”.
Nesses termos, regulou-se, internacionalmente, o uso da força e a prática da
violência. A partir da Declaração de Paris de 1856, portanto, combatentes
legítimos – e legais – passaram a ser, necessariamente, aqueles que estavam sob
146
“a autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado [soberano]”. Este
corolário da declaração foi reconhecido e reafirmado em Haia, em 1907.
Mas como se comentou, a categoria do privateer era fundamentalmente
relacionada com a do pirata. O rastro deste, portanto, também podia ser
identificado a partir daqueles rastros constitutivos do “combatente ilegal”, e,
assim, daqueles memorandos do governo norte-americano.
O pirata era o outro ponto conceitual em relação ao qual o ponto do
privateer era definido como intermediário. Consequentemente, a abolição deste
ponto resultou na estruturação dicotômica dos pontos conceituais intermediados
por ele, como, por exemplo, “público”/“privado”, “guerra”/“crime”,
“combatente”/“não combatente”, “soldado”/“civil”, “violência individual
extraterritorial pública”/“violência individual extraterritorial privada”,
“soldado”/“pirata”, e “combatente legal”/“combatente ilegal”.
O rastro do pirata também era constitutivo da categoria de combatente
ilegal. O rastro do pirata foi explicitado, em 2005, por John Yoo, um dos
principais arquitetos político-jurídicos daqueles memorandos norte-americanos.
Naquelas duas oportunidades, Yoo reafirmou a dicotomia nação/pirata e, com ela,
a diferenciação entre combatentes sob o controle de uma nação e combatentes
“fora do controle de uma nação”.
Este era o ponto em comum daquelas duas passagens de John Yoo.
Ademais, este é um ponto diretamente relacionado à aplicação ou não do direito
de guerra, em geral, e das Convenções de Genebra, em particular. Como se
destacou anteriormente na leitura dos memorandos, os elementos que
fundamentaram a definição do status dos membros da al Qaeda como
“combatentes ilegais” foram precisamente a natureza não estatal desta
organização terrorista e o descumprimento das quatro condições mínimas de
“combate legal” (lawful combatancy). Assim como o “membro da al Qaeda”, o
“pirata” parece representar aquele ponto “não estatal”, “privado” ou “sem Estado”
que é o “outro”, o diametralmente oposto ao ponto “estatal”, “público” ou “sob a
autoridade, controle direto, e responsabilidade do Estado”.
Da mesma forma, a definição do status dos membros da milícia Talibã
também envolveu estes dois elementos, na medida em que: (i) construiu-se o
Afeganistão como um “Estado falido”; (ii) distanciou-se esta milícia deste Estado
147
soberano, aproximando-a da organização terrorista, al Qaeda; e (iii) determinou-
se a não satisfação por parte dos membros desta milícia daquelas condições
mínimas.
De certo modo, tendo em vista a categoria do pirata na arquitetura político-
jurídica internacional, a sua relação mutuamente constitutiva com a categoria de
privateer, bem como observando as diferenciações e especificidades daquelas
segunda e terceira partes dos memorandos de 09 de janeiro e 22 de janeiro de
2002, parece ser possível “identificar” ou “aproximar”, de um lado, aquela
definição dos membros da al Qaeda à categoria de pirata e, de outro, a dos
membros da milícia Talibã à de privateer. A partir desta arquitetura político-
jurídica e conceitual, parece possível também (re)entender e (re)pensar os passos e
ângulos construídos para fundamentar aquelas determinações finais.
Esses memorandos construíram a definição do status dos membros da al
Qaeda e da milícia Talibã, sobretudo, a partir da naturalização do ponto
diametralmente oposto ao do soldado, do membro de uma força armada regular,
do “combatente legal”. Assim, delimitou-se o “espaço-tempo” (im)próprio e a
“identidade” daqueles “combatentes ilegais”.
Como Yoo destacou, o “pirata” era um ponto paradigmático na arquitetura
político-jurídica (e histórico-teórica) que poderia servir para fundamentar tal
“identidade” e “espaço-tempo” (im)próprios. Ademais, concebido como um
indivíduo cuja natureza era “tão má”, o pirata (entre outras categorias) poderia
servir para uma releitura, ético-moralista, do direito internacional. Assim, o rastro
do pirata nestes memorandos norte-americanos da guerra contra o terror era
também o rastro de uma releitura – político-teológica – dos limites do direito
internacional.
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