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Desaventurado Homem que sou

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"DESVENTURADO HOMEM QUE SOU!"A. W. Pink

No sétimo capítulo da carta aosRomanos, o apóstolo Paulo se refe-riu a dois assuntos: primeiramente,ele mostrou qual é a relação do cren-te para com a lei de Deus � judi-cialmente, o crente está emancipadoda maldição e da penalidade da lei(vv. 1-6); moralmente, o crente estásob laços de obediência à lei (vv. 22,25). Em segundo, Paulo nos prote-geu da falsa inferência que poderiaser deduzida daquilo que ele haviaensinado no capítulo 6.

No capítulo 6, versículos 1 a 11,Paulo havia apresentado a união docrente com Cristo, retratando o cren-te como alguém �morto para opecado� (vv. 2, 7, etc.). Em segui-da, do versículo 11 em diante, elemostrou o efeito que essa verdadedeve ter sobre o viver do crente. Nocapítulo 7, o apóstolo Paulo seguiua mesma ordem de pensamento. Em

Romanos 7.1-6, ele falou sobre aidentificação do crente com Cristo,apresentado-o como �morto para alei� (vv. 4 a 6). Em seguida, doversículo 7 em diante, Paulo descre-veu as experiências do crente. Assim,nos capítulos 6 e 7 de Romanos, naprimeira metade de ambos, Pauloaborda a posição do crente, enquan-to na segunda metade de ambos oscapítulos ele fala sobre o estado docrente, mas com a seguinte diferen-ça: a segunda metade de Romanos 6revela qual deve ser o nosso estado,enquanto a segunda metade do capí-tulo 7 (vv. 13-25) mostra qual é, narealidade, o nosso estado.

A presente controvérsia suscita-da sobre Romanos 7 é amplamenteum fruto do perfeccionismo de JohnWesley e seus seguidores. O fato deque esses irmãos, dos quais temosmotivo para reverenciar, adotaram

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este erro de forma modificada ape-nas nos mostra quão abrangente emnossos dias é o espírito do laodi-ceísmo. A segunda metade de Ro-manos 7 descreve o conflito das duasnaturezas que o crente possui; sim-plesmente apresenta em detalhes oque está sumariado em Gálatas 5.17.As afirmações de Romanos 7.14,15,18,19 e 21 são verdadeiras arespeito de todosos crentes que vi-vem nesse mun-do. Todo crentefica aquém, mui-to aquém do pa-drão colocado di-ante dele; estamosnos referindo aopadrão de Deus, enão ao padrão dosensinadores dasuposta �vida vi-toriosa�. Se qual-quer leitor crentedisser que Roma-nos 7 não descre-ve a sua vida, afirmamos com toda abondade que ele se encontra terrivel-mente enganado. Não estamosdizendo que todo crente quebra a leidos homens ou que ele é um ousadotransgressor da lei de Deus. Estamosafirmando que a vida de todo crenteestá muito aquém do nível de vidaque nosso Senhor vivenciou, quan-do esteve neste mundo. Estamosdizendo que muito da �carne� aindase evidencia em todo crente, inclusi-ve naqueles que se vangloriam, emvoz alta, de suas conquistas espiritu-ais. Estamos dizendo que todo crentetem necessidade urgente de orar su-plicando perdão por seus pecados

diários (Lc 11.4), pois �todos tro-peçamos em muitas coisas� (Tg 3.2).Nos próximos parágrafos, conside-raremos os dois últimos versículos deRomanos 7, que dizem: �Desventu-rado homem que sou! Quem me li-vrará do corpo desta morte? Graçasa Deus por Jesus Cristo, nosso Se-nhor. De maneira que eu, de mimmesmo, com a mente, sou escravo

da lei de Deus,mas, segundo acarne, da lei dopecado� (vv. 24-25).

Essa é a lin-guagem de umaalma regenerada eresume o conteú-do dos versículosimediatamenteanteriores. O ho-mem incrédulo érealmente des-venturado, masele não conhece a�desventurança�

que evoca a lamentação expressadanessa passagem. Todo o contexto sededica a descrever o conflito entreas duas naturezas do filho de Deus.�Porque, no tocante ao homem inte-rior, tenho prazer na lei de Deus�(v. 22) � isso é verdade apenas so-bre a pessoa nascida de novo.Todavia, aquele que tem prazer nalei de Deus encontra, em seus �mem-bros, outra lei�. Isso não pode estarlimitado aos membros do corpo físi-co, mas tem de ser entendido comoalgo que inclui todas as várias partesde sua personalidade carnal � a me-mória, a imaginação, a vontade, ocoração, etc.

Quanto mais o crentese achega a Cristo,

tanto mais ele descobri-rá as corrupções de

sua velha natureza, etanto mais ardentemen-te desejará ser liberto

de tal natureza.

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Essa �outra lei�, disse o apósto-lo, guerreava contra a lei de sua mente(a nova natureza); e não somenteisso, ela também o fazia �prisionei-ro da lei do pecado� (v. 23). Ele nãodefiniu em que extensão se expres-sava essa servidão. Mas ele estava emservidão à lei do pecado, assim comotodo crente também o está. A va-gueação da mente, na hora de ler aPalavra de Deus, os maus pensamen-tos que brotam do coração (Mc7.21), quando estamos envolvidos naoração, as más figuras que, às ve-zes, aparecem quando estamos emestado de sonolência � citando ape-nas alguns � são exemplos de ha-vermos sido feitos prisioneiros �dalei do pecado�. �Se o princípio maude nossa natureza prevalece, a pontode despertar em nós apenas um pen-samento mau, ele nos tomou comocativos. Visto que ele nos conquis-tou, estamos vencidos e feitosprisioneiros� (Robert Haldane).

O reconhecimento dessa guerraem seu íntimo e o fato de que se tor-nou cativo ao pecado levam o crentea exclamar: �Desventurado homemque sou!� Esse é um clamor produ-zido por uma profunda compreensãoda habitação do pecado. É a confis-são de alguém que reconhece nãohaver bem algum em seu homemnatural. É o lamento melancólico dealguém que descobriu algo a respei-to da horrível profundeza de ini-qüidade que existe em seu própriocoração. É o gemido de uma pessoailuminada por Deus, uma pessoa queodeia a si mesma � ou seja, o ho-mem natural � e anela por libertação.

Esse gemido � �Desventuradohomem que sou!� � expressa a ex-

periência normal do crente; e qual-quer crente que não geme dessa ma-neira está em um estado de anorma-lidade e falta de saúde espiritual. Ohomem que não profere diariamenteesse clamor se encontra tão ausenteda comunhão com Cristo, ou tão ig-norante dos ensinos das Escrituras,ou tão enganado a respeito de suacondição atual, que não conhece ascorrupções de seu coração e a des-prezível imperfeição de sua própriavida.

Aquele que se curva diante dosolene e perscrutador ensino da Pa-lavra de Deus, aquele que nelaaprende a terrível ruína que o peca-do tem realizado na constituição doser humano, aquele que percebe opadrão elevado que Deus nos temproposto não falhará em descobrirque é um ser maligno e vil. Se ele seesforça para perceber o quanto temfalhado em alcançar o padrão deDeus; se, na luz do santuário divi-no, ele descobre quão pouco separece com o Cristo de Deus, então,reconhecerá que essa linguagem deRomanos 7 é muito apropriada paradescrever sua tristeza espiritual. SeDeus lhe revela a frieza de seu amor,o orgulho de seu coração, as va-gueações de sua mente, o mal quecontamina suas atitudes piedosas, ocrente haverá de clamar: �Desven-turado homem que sou!� Se o crenteestiver consciente de sua ingratidãoe de quão pouco ele tem apreciadoas misericórdias diárias de Deus; seo crente percebe a ausência daquelefervor profundo e genuíno que temde caracterizar seus louvores e suaadoração Àquele que é �glorificadoem santidade� (Êx 15.11); se o cren-

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te reconhece o espírito pecaminosode rebeldia que, com freqüência, ofaz murmurar ou irrita-o contra asrealizações dEle em sua vida cotidia-na; se o crente admite que está cien-te não apenas de seus pecados decomissão, mas também daqueles deomissão, dos quais ele é culpado to-dos os dias, ele realmente clamará:�Desventurado homem que sou!�

Esse clamor não será proferidoapenas por aquele crente que se achaafastado do Se-nhor. Aqueleque está em co-munhão ver-dadeira com oSenhor Jesustambém emiti-rá esse gemi-do, todos osdias e todas ashoras. Sim,quanto mais ocrente se ache-ga a Cristo,tanto mais eledescobrirá as corrupções de sua ve-lha natureza, e tanto mais arden-temente desejará ser liberto de talnatureza. É somente quando a luz dosol inunda um cômodo que a poeirae a sujeira são completamente reve-lados. Quando estamos realmente napresença dAquele que é luz, ficamosconscientes da impureza e impieda-de que habita em nós e contaminacada parte de nosso ser. E essa des-coberta nos levará a clamar: �Des-venturado homem que sou!�

�Mas�, talvez alguns perguntem,�a comunhão com Cristo não pro-duz regozijo, ao invés de gemidos?�Respondemos que a comunhão com

Cristo produz ambas as coisas. Issoaconteceu com Paulo. Em Romanos7.22, ele afirmou: �Tenho prazer nalei de Deus�. Logo em seguida, po-rém, ele clamou: �Desventuradohomem que sou!� Outras passagenstambém nos mostram isso. Em 2Coríntios 6, Paulo disse: �Entriste-cidos, mas sempre alegres� (v. 10)� entristecido por causa de suas fa-lhas, por causa de seus pecadosdiários; alegre por causa da graça que

ainda perma-necia com ele epor causa dabendita provi-são que Deusfizera até paraos pecados deseus santos.Também emRomanos 8,depois de ha-ver declarado:�Agora, pois,já nenhumacondenação há

para os que estão em Cristo Jesus�(v. 1); �O próprio Espírito testificacom o nosso espírito que somos fi-lhos de Deus. Ora, se somos filhos,somos também herdeiros, herdeirosde Deus e co-herdeiros com Cristo;se com ele sofremos, também comele seremos glorificados� (vv. 16-17), o apóstolo Paulo acrescentou:�Também nós, que temos as primí-cias do Espírito, igualmente geme-mos em nosso íntimo, aguardando aadoção de filhos, a redenção do nos-so corpo� (v. 23). O ensino doapóstolo Pedro é semelhante ao dePaulo � �Nisso exultais, embora, nopresente, por breve tempo, se neces-

Onde não existe o clamor: �Desventurado homemque sou!�, deve haver

um grande temor de queali não existe, de manei-ra alguma, comunhão

com Cristo.

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sário, sejais contristados por váriasprovações� (1 Pe 1.6). Tristeza e ge-mido não se encontram ausentes nomais elevado nível de espiritualidade.

Nestes dias de complacência eorgulho laodicense, existe conside-rável parola e muita exaltação a res-peito da comunhão com Cristo; po-rém, quão pouca manifestação dessacomunhão nós contemplamos! Ondenão existe qualquer senso de com-pleta indignidade; onde não existequalquer lamentação pela depravaçãototal de nossa natureza; onde nãoexiste qualquer entristecimento pornossa falta de conformidade comCristo; onde não existe qualquer ge-mido por havermos sido feitos �pri-sioneiros� do pecado; em resumo,onde não existe o clamor: �Desven-turado homem que sou!�, deve haverum grande temor de que ali não exis-te, de maneira alguma, comunhãocom Cristo.

Quando estava andando com oSenhor, Abraão exclamou: �Eis queme atrevo a falar ao Senhor, eu quesou pó e cinza� (Gn 18.27). Estan-do face a face com Deus, Jó de-clarou: �Por isso, me abomino� (Jó42.6). Ao entrar na presença deDeus, Isaías clamou: �Ai de mim!Estou perdido! Porque sou homemde lábios impuros� (Is 6.5). Quandoteve aquela maravilhosa visão deCristo, Daniel confessou: �Não res-tou força em mim; o meu rostomudou de cor e se desfigurou, e nãoretive força alguma� (Dn 10.8). Emuma das últimas epístolas do apósto-lo dos gentios, lemos: �Fiel é apalavra e digna de toda aceitação:Cristo Jesus veio ao mundo para sal-var os pecadores, dos quais eu sou o

principal� (1 Tm 1.15). Essas de-clarações não procederam de pessoasnão-regeneradas, e sim dos lábios desantos de Deus. Elas não foram con-fissões de crentes relaxados; pelocontrário, elas foram proferidas pe-los mais eminentes membros do povode Deus. Em nossos dias, onde en-contramos crentes que podem sercolocados lado a lado com Abraão,Jó, Isaías, Daniel e Paulo? Onde,realmente?! Mas eles foram homensque estavam conscientes de sua vile-za e indignidade!

�Desventurado homem que sou!�Essa é a linguagem de uma alma nas-cida de novo; é a confissão de umcrente normal (não-iludido, não-en-ganado). A essência dessa afirmativapode ser encontrada não somente nasdeclarações dos santos do Antigo edo Novo Testamento, mas tambémnos escritos de muitos dos eminentesservos de Cristo que viveram nosúltimos séculos. As afirmações e otestemunho pronunciado pelos emi-nentes santos do passado eram muitodiferentes da ignorância e da arro-gante jactância dos laodicencesmodernos! É um refrigério volver-nos das biografias de nossos diaspara aquelas biografias escritas hámuito tempo. Medite nos trechos debiografias que apresentamos em se-guida.

Bradford, que foi martirizado noreinado de Maria, a sanguinária, emuma carta dirigida a um amigo queestava em outra prisão, subscreveu-se com as seguintes palavras: �Opecaminoso John Bradford, um hi-pócrita notável, o pecador maismiserável, de coração endurecido eingrato � John Bradford� (1555).

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O piedoso Samuel Rutherfordescreveu: �Este corpo de pecado ede corrupção torna amargo e enve-nena nosso regozijo. Oh! Se eu es-tivesse onde nunca mais pecarei!�(1650).

O bispo Berkeley disse: �Nãoposso orar, mas cometo pecados.Não posso pregar, mas cometo pe-cados. Não posso ministrar, nemreceber a Ceia do Senhor, mas co-meto pecados. Preciso arrepen-der-me de meu próprio arrependi-mento; e as lágrimas que derrameinecessitam da lavagem do sangue deCristo� (1670).

Jonathan Edwards, em sua obraA Vida de David Brainerd1 (o pri-meiro missionário entre os índios,cuja devoção a Cristo foi testemu-nhada por todos os que o conhe-ciam), afirmou a respeito de Brai-nerd: �Sua iluminação, suas afeiçõese seu conforto espiritual parecem tersido, em grande medida, acompa-nhadas por humildade evangélica;consistiam em um senso de sua com-pleta insuficiência, de sua vileza ede sua própria abominação; comuma disposição correspondente euma propensão do coração. Quãoprofundamente Brainerd foi afetadoquase continuamente por seus gran-des defeitos na vida cristã; por suaampla distância daquela espiri-tualidade e daquela disposição men-tal que convém a um filho de Deus;por sua ignorância, seu orgulho, suaapatia e sua esterilidade! Ele não foisomente afetado pela recordação dospecados cometidos antes de sua con-versão, mas também pelo sentimentode sua presente vileza e corrupção.Brainerd não se mostrava apenas dis-

posto a considerar os outros crentesmelhores do que ele mesmo e a olharpara si mesmo como o pior e o me-nor de todos os crentes, mas também,com muita freqüência, a ver a si mes-mo como o mais vil e o pior de todosos homens�.

O próprio Jonathan Edwards, queentre muitos foi mais honrado porDeus (quer em suas realizações espi-rituais, quer na extensão em que Deuso usou para abençoar outros), escre-veu nos últimos dias de sua vida:�Quando olho para meu coração evejo a sua impiedade, ele parece umabismo infinitamente mais profundodo que o inferno. E parece-me que,se não fosse a graça de Deus, exalta-da e elevada à infinita sublimidadede toda a plenitude e glória do gran-de Jeová, eu deveria comparecer,mergulhado em meus pecados, nasprofundezas do próprio inferno, mui-to distante da contemplação de todasas coisas, exceto do olhar da graçasoberana, que pode destruir talprofundeza. É comovente pensar oquanto eu ignorava, quando era umcrente novo (infelizmente, muitoscrentes velhos ainda o ignoram � A.W. Pink), a profunda impiedade,orgulho, hipocrisia e engano deixa-dos em meu coração� (1743).

Augustus Toplady, autor do hino�Rocha Eterna�, escreveu as seguin-tes palavras em seu diário no dia 31de dezembro de 1767: �Ao fazer umaretrospectiva deste ano, desejo con-fessar que minha infidelidade tem sidoexcessivamente grande, e meus pe-cados, ainda maiores. Todavia, asmisericórdias de Deus têm sido maio-res do que ambos�. E mais: �Minhasfalhas, meus pecados, minha incre-

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dulidade e minha falta de amor meafundariam no mais profundo do in-ferno, se Jesus não fosse minha jus-tiça e meu Redentor�.

Observem estas palavras de umapiedosa mulher, a esposa do eminen-te missionário Adoniran Judson:�Oh! Como eu me regozijo porqueestou fora do redemoinho! Sou gaia-ta e fútil demais, para ser a esposade um missionário! Talvez a gaiati-ce seja o meu mais leve pecado. Nãosão os atrativos do mundo que metornam um simples bebê na causa deCristo; pelo contrário, é a minha frie-za de coração, a minha insignificân-cia, a minha falta de fé, a minhaineficiência e inércia espiritual, poramor do meu próprio �eu�, e a mi-nha pecaminosidade abundante einerente de minha natureza�.

John Newton, o escritor do ben-dito hino �Graça Admirável� (queafirma: �Graça admirável, quão doceé o som que salvou um ímpio comoeu; estava perdido, mas fui achado;era cego, agora vejo�), quando sereferia às expectativas que ele nutriano final de sua vida cristã, escreveuo seguinte: �Infelizmente, essas mi-nhas preciosas expectativas setornaram como sonhos dos mares doSul. Vivi neste mundo como um pe-cador e creio que assim morrerei. Euganhei alguma coisa? Sim, ganheiaquilo com o que antes eu preferianão viver! Essas provas acumuladasdo engano e da terrível impiedade domeu coração me ensinaram, pela bên-ção do Senhor, a compreender o quesignifica dizer: vejam, eu sou umhomem vil� Eu me envergonhavade mim mesmo, quando comecei aprocurar a bênção do Senhor; ago-

ra, eu me envergonho mais ainda�.James Ingliss (editor de �Mar-

cos no Deserto�), no final de suavida, escreveu: �Visto que fui trazi-do a uma nova opinião sobre o fim,a minha vida parece ser constituídade tantas oportunidades desperdi-çadas e de tanta escassez de resul-tados, que às vezes isso é muito do-loroso. A graça, porém, se apresentapara satisfazer todas essas deficiên-cias; e o Senhor Jesus também seráglorificado em minha humilhação�(1872). J. H. Brookers, o biógrafode James Ingliss, observou sobre es-sas palavras: �Quão semelhante aCristo e quão diferente daqueles queestão se gloriando em suas supostasrealizações!�

Apresentamos mais uma cita-ção, proveniente de um sermão deCharles H. Spurgeon. O Príncipedos Pregadores disse: �Existem al-guns crentes professos que falamsobre si mesmos em termos de ad-miração. Todavia, em meu íntimo,detesto mais e mais esses discursos,a cada dia que eu vivo. Aqueles quefalam dessa maneira arrogante devempossuir uma natureza muito diferen-te da minha. Enquanto eles estãocongratulando a si mesmos, tenho deme prostrar aos pés da cruz de Cris-to e admirar-me de que estou salvo,pois sei que fui salvo. Tenho de ad-mirar-me de não crer mais pro-fundamente em Cristo e de que souprivilegiado por crer nEle. Tenho deadmirar-me de não amá-Lo mais pro-fundamente, mas igualmente devoadmirar-me até de que O amo de al-guma maneira. Devo admirar-me denão possuir mais santidade e admi-rar-me, igualmente, de que eu tenho

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algum desejo de ser santo, levandoem conta quão corrompida, degene-rada e depravada natureza eu aindaencontro em minha alma, apesar detudo o que a graça de Deus tem feitoem mim. Se Deus permitisse que asfontes do grande abismo da depra-vação se rompessem nos melhoreshomens que vivem neste mundo, elesse tornariam demônios tão mauscomo o próprio diabo. Não me im-porto com o que dizem esses van-gloriosos a respeito de suas própriasperfeições. Estou certo de que elesnão conhecem a si mesmos; se co-nhecessem, não falariam comofreqüentemente o fazem. Mesmo nocrente que está mais próximo do céuexiste combustível suficiente paraacender outro inferno, se Deus tão-somente permitisse que uma chamacaísse sobre ele. Alguns crentes pa-recem que nunca descobrem isto. Euquase desejo que eles nunca o descu-bram, pois esta é uma descobertadolorosa para qualquer um fazer; masela tem o efeito benéfico de fazer queparemos de confiar em nós mesmose de nos levar a nos gloriarmos so-mente no Senhor�.

Poderíamos apresentar outrostestemunhos dos lábios e dos escri-tos de homens igualmente piedosose eminentes, porém citamos o sufi-ciente para mostrar que os santos detodas as épocas tinham motivo parafazerem suas essas palavras do após-tolo Paulo: �Desventurado homemque sou!� Faremos mais algumaspoucas observações sobre essas pala-vras finais de Romanos 7.

�Quem me livrará do corpo des-ta morte?� �Quem me livrará?� Estanão é uma linguagem de desespero,

e sim de um desejo ardente de ajudade fora e do alto. Aquilo do que oapóstolo desejava ser livre é chama-do de �o corpo desta morte�. Esta éuma expressão figurada, pois a na-tureza carnal é chamada de �o corpodo pecado� e vista como algo quetem �membros� (Rm 7.23). Portan-to, entendemos que as palavras doapóstolo significam: �Quem me li-vrará desse fardo mortal e pernicioso� meu eu pecaminoso?!�

No versículo seguinte, o apósto-lo responde essa pergunta: �Graçasa Deus por Jesus Cristo, nosso Se-nhor� (Rm 7.25). Deve ser óbviopara qualquer mente imparcial queisso aponta para o futuro. Paulo ha-via perguntado: �Quem me livrará?�A sua resposta foi: Jesus Cristo melivrará. Isso expõe o erro daquelesque ensinam uma libertação presen-te da natureza carnal, por intermédiodo poder do Espírito Santo. Em suaresposta, o apóstolo não falou nadasobre o Espírito Santo; ao invés dis-so, ele mencionou apenas �JesusCristo, nosso Senhor�. Não é pormeio da obra presente do EspíritoSanto em nós que os crentes serãolibertados �do corpo desta morte�, esim por meio da vinda futura do Se-nhor Jesus Cristo para nós. Naqueletempo, esse corpo mortal será reves-tido de imortalidade, e a nossacorrupção, de incorrupção.

Como se estivesse pensando emremover toda dúvida a respeito deque essa libertação ocorrerá no futu-ro, o apóstolo concluiu dizendo: �Demaneira que eu, de mim mesmo,com a mente, sou escravo da lei deDeus, mas, segundo a carne, da leido pecado�. O leitor deve observar

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cuidadosamente que Paulo haviaagradecido a Deus pelo fato de queele seria libertado. A última parte doversículo 25 resume o que ele haviadito na segunda parte de Romanos7; descreve a vida dupla do crente.A nova natureza serve a lei de Deus;a velha natureza, até ao final da His-tória, servirá à �lei do pecado�. Queisso aconteceu com o apóstolo Pauloé evidente das palavras que ele es-creveu no final de sua vida, quandochamou a si mesmo de �o principal�dos pecadores (1 Tm 1.15). Essa afir-mativa não era um exagero de fervorevangelístico, nem mesmo um mo-tejo de modesta hipocrisia. Era umaconvicção segura, uma experiênciavivenciada, uma conscientização fir-me de alguém que viu com amplitudeas profundezas da corrupção que ha-via em seu próprio íntimo e que sabiao quanto fica-va aquém deatingir o pa-drão de santi-dade que Deushavia coloca-do diante de-le. Essa tam-bém é a con-vicção e a con-fissão de todocrente que nãose encontracativo ao pre-conceito. E oresultado dessa convicção fará o cren-te desejar mais intensamente olivramento e agradecer a Deus commais fervor pela promessa do livra-mento, na vinda de nosso Senhor, �oqual transformará o nosso corpo dehumilhação, para ser igual ao corpo

da sua glória, segundo a eficácia dopoder que ele tem de até subordinara si todas as coisas� (Fp 3.20). E,havendo feito isso, o Senhor Jesusnos apresentará, �com exultação,imaculados diante da sua glória� (Jd24). Aleluia! Que grande Salvador!

É admirável que somente maisuma vez a palavra �desventurado� éutilizada no Novo Testamento (notexto grego). Essa outra ocorrênciaestá em Apocalipse 3.17, onde Cris-to disse à igreja de Laodicéia: �Nemsabes que tu és INFELIZ�. A arrogân-cia dos membros dessa igreja era queeles não precisavam �de coisa algu-ma�. Eles estavam tão inchados coma soberba, tão satisfeitos com o quehaviam atingido, que não tinhamconsciência de sua própria miséria.E não é isso mesmo que testemunha-mos em nossos dias? Não é evidente

que estamosvivendo noperíodo lao-diceiano dahistória daIgreja? Mui-tos estavamcônscios da�necess ida-de�, mas a-gora imagi-nam que re-ceberam a�segunda bên-ção�, ou que

obtiveram o �batismo do EspíritoSanto�, ou que entraram na �vitó-ria�. E, imaginando isso, pensamque sua necessidade foi satisfeita. Ea prova disso é que eles vivem emuma atmosfera de tal superioridadeespiritual, que nos dirão haverem saí-

Mesmo no crente que estámais próximo do céu existecombustível suficiente paraacender outro inferno, se

Deus tão-somente permitis-se que uma chama caísse

sobre ele.

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do de Romanos 7 e entrado na expe-riência de Romanos 8. Com des-prezível complacência, eles nos di-rão que Romanos 7 não descrevemais a experiência deles. Com pre-sunçosa satisfação, eles olharão compiedade para o crente que clama:�Desventurado homem que sou!� ecomo o fariseu, no templo, agrade-cerão a Deus porque a situação delesé diferente. Pobres almas cegas! Éexatamente o que o Filho de Deusafirma nessa passagem de Apo-calipse: �Nem sabes que tu ésINFELIZ�. Nós dissemos: �Almas ce-gas�, porque observamos que é paraos crentes laodicenses que Jesus de-clara: �Aconselho-te que de mimcompres... colírio para ungires osolhos, a fim de que vejas� (Ap 3.19).

Devemos observar que na segun-da parte de Romanos 7 o apóstoloPaulo fala no singular. Isso é admi-rável e bastante abençoador. OEspírito Santo desejava transmitir-nosa verdade de que mesmo as mais ele-vadas realizações na graça nãoisentam o crente da dolorosa experi-ência ali descrita. Com o pincel deum artista, o apóstolo retratou � uti-lizando a si mesmo como o objeto

da pintura � a luta espiritual do fi-lho de Deus. Ele ilustrou, por re-ferir-se à sua própria experiência, oconflito incessante que se realiza en-tre duas naturezas antagonistas na-quele que nasceu de novo.

Que, em sua misericórdia, Deusnos liberte do espírito de orgulho queagora corrompe o ambiente doevangelicalismo moderno e nos con-ceda um humilde ponto de vista arespeito de nossa própria impureza;fazendo-o de tal modo que nos una-mos ao apóstolo Paulo em clamarcom um fervor cada vez mais pro-fundo: �Desventurado homem quesou!� Sim, que Deus outorgue tantoao autor dessas linhas quanto ao seuleitor uma tão grande percepção desua própria depravação e indignida-de, que eles realmente se prostremno pó, diante de Deus, e O adorempor sua maravilhosa graça para comesses pecadores que merecem o in-ferno.

______________1 A Vida de David Brainerd,Jonathan Edwards, Editora Fiel,1993, 240 págs.

A mente do homem é como um depósito de idolatria esuperstição; de modo que, se o homem confiar em suaprópria mente, é certo que ele abandonará a Deus e inven-tará um ídolo, segundo sua própria razão.

João Calvino

Uma gota de graça vale mais do que um mar de dons.William Jenkyn

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