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EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA Representantes: 1) INSTITUTO MIGUEL ARRAES IMA, associação de direito privado sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 09.302.972/000144, com sede na cidade do Recife, Estado de Pernambuco, neste ato representado pelo seu presidente e advogado; 2) ANTÔNIO RICARDO ACCIOLY CAMPOS, brasileiro, divorciado, advogado, presidente do Instituto Miguel Arraes – IMA, inscrito na OAB/PE sob o nº. 12.310, portador do título eleitoral nº. 0034.3241.0868, com endereço profissional à Rua do Chacon, nº. 335, Casa Forte, Recife, Pernambuco, CEP: 52061400. Objeto: Abertura de inquéritos e/ou ajuizamento de medidas judiciais em desfavor dos sobreviventes participantes da Operação Condor no Brasil, responsáveis por vitimar diversas lideranças políticas. Feito: REPRESENTAÇÃO PARA ABERTURA DE INQUÉRITO OU INVESTIGAÇÃO. 1

Texto representação comissão da verdade

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Page 1: Texto representação comissão da verdade

EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA

Representantes:

1) INSTITUTO MIGUEL ARRAES – IMA, associação de direito

privado sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ/MF sob o nº.

09.302.972/0001­44, com sede na cidade do Recife, Estado de

Pernambuco, neste ato representado pelo seu presidente e

advogado;

2) ANTÔNIO RICARDO ACCIOLY CAMPOS, brasileiro, divorciado,

advogado, presidente do Instituto Miguel Arraes – IMA, inscrito

na OAB/PE sob o nº. 12.310, portador do título eleitoral nº.

0034.3241.0868, com endereço profissional à Rua do Chacon, nº.

335, Casa Forte, Recife, Pernambuco, CEP: 52061­400.

Objeto:

Abertura de inquéritos e/ou ajuizamento de medidas judiciais em

desfavor dos sobreviventes participantes da Operação Condor no Brasil,

responsáveis por vitimar diversas lideranças políticas.

Feito:

REPRESENTAÇÃO PARA ABERTURA DE INQUÉRITO OU

INVESTIGAÇÃO.

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Page 2: Texto representação comissão da verdade

SUMÁRIO

1. A Comissão da Verdade: Lei 12.528/11...................................07 2. Objetivos da representação e os contornos da Operação Condor 10

2.1. Objetivos da representação ....................................... 10 2.2. Os contornos da Operação Condor .............................. 10

2.2.1. Operação Condor: Necessidade de Investigação ­ Ditaduras Entrelaçadas ............................................11

2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes .... ....13

3. As Misteriosas Mortes de Jango, JK e Lacerda ..........................25

3.1. A morte de Jango ..................................................... 25 3.2. A morte de JK .......................................................... 27 3.3. A morte de Lacerda .................................................. 33 3.4. A morte de Emmanuel Bezerra dos Santos ................... 39

3.5. A morte de David Capristano ....... .............................. 42 3.6. A morte de Joaquim Pires Cerveira .............................. 45 3.7 Caso Edmur Péricles Camargo ......................................51

5. O Sequestro dos Uruguaios: Comprovação da real existência da Operação Condor no Brasil..........................................................53 6. A Matriz Verde­Amarela da Operação Condor ...........................54 7. Justiça Espanhola .................................................................63 8. Justiça Italiana .....................................................................67 9. Decisões Judiciais das Justiças da Argentina e do Chile...............69

9.1. Argentina ................................................................ 69 9.2. Chile ....................................................................... 70

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Page 3: Texto representação comissão da verdade

10 . O Direito Internacional de Direitos Humanos..........................72 11. A Impunidade Fere a Democracia ..........................................77 12. Intolerância à Tortura – Pedagogia ....................................... 81 13. Dos Pedidos........................................................................87 14. Requerimentos de Provas .....................................................88 15. Referências ........................................................................91 16. Anexos ............................................................................. 94

15.1. Lei 12.528/11 ......................................................... 94 15.2. Lei 12.527/11 ........................................................ .99

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Page 4: Texto representação comissão da verdade

“A natureza, como a história,

segrega memória e vida

e cedo ou tarde desova

a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda

que sepulte

– a rasa covardia.

Não há túmulo que oculte

os frutos da rebeldia.

Cai um dia em desgraça a mais torpe ditadura

quando os vivos saem à praça

e os mortos da sepultura”.

Affonso Romano de Sant’Anna, fragmentos de Os

Desaparecidos.

“É uma organização delitiva.”

Baltasar Garzón, juiz espanhol, Audiência Nacional de

Madri.

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Page 5: Texto representação comissão da verdade

“Em 1976, alguns órgãos, contrários à abertura

promovida pelo Presidente Geisel, buscavam

soluções extralegais”.

Armando Falcão, ministro da Justiça do governo

Ernesto Geisel (1973­1979), em entrevista a O Globo.

“A verdade cura. Às vezes ela arde, mas cura”.

Desmond Tutu, Bispo sul­africano, Prêmio Nobel da Paz.

“Só há uma causa maior: a verdade!”

Moacir Danilo Rodrigues (1942­1998), juiz, Brasil.

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Page 6: Texto representação comissão da verdade

1. A COMISSÃO DA VERDADE:

LEI 12.528/11

Após décadas de protestos e intensos colóquios acerca das malsinações

ocorridas no ainda recente período ditatorial brasileiro, foi instituída a

Lei 12.528, em 18 de novembro de 2011. A referida lei deu existência a

Comissão da Verdade, cuja maior finalidade é, nos termos da própria

legislação em comento,

Art. 1º. .[...] examinar e esclarecer as graves

violações de direitos humanos praticadas no

período fixado no art. 8o do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (de 1946 até a data de

promulgação da atual Constituição), a fim de

efetivar o direito à memória e à verdade

histórica e promover a reconciliação

nacional. (Adaptado) (Grifos nossos)

Portanto, no espaço de tempo acima delimitado (de 1946 até a data de

promulgação da atual Constituição), está incluído o regime de ditadura

militar brasileiro (1964­1985), cujas práticas de violações de direitos

humanos hão de ser apuradas.

Consistem em objetivos da Comissão Nacional da Verdade, dentre

outros, definidos no art. 3º da lei 12.528/11 , determinar os órgãos e 1

1 Art. 3o. São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: I ­ esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de

direitos humanos mencionados no caput do art. 1o;

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entidades responsáveis pelas práticas de violação de direitos humanos

e elucidar as mortes e desaparecimentos àquela época, mesmo que

realizados fora do âmbito nacional (a título de exemplo, no caso do

ex­presidente Jango, cuja morte ocorreu no exterior, quando de seu

exílio na Argentina).

Como é sabido, a Comissão em pauta gozou de prazo de 2 (dois) anos

para tecer um relatório minucioso acerca das investigações e

conclusões realizadas. Outrossim, também deveria realizar

recomendações acerca de políticas públicas destinadas a evitar a

violação de direitos humanos, prevenindo tais práticas ao máximo.

Cumpre ressaltar, ainda, que as atividades da Comissão Nacional da

Verdade tiveram o caráter público e qualquer cidadão que desejou

esclarecer alguma circunstância, teve oportunidade de fazê­lo,

solicitando informações à Comissão em pauta.

Findo o período estipulado (2 anos), a Comissão foi extinta em caráter

definitivo , bem como os cargos decorrentes de sua existência, através 2

da exoneração dos participantes.

II ­ promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III ­ identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV ­ encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V ­ colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI ­ recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII ­ promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações. 2 Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo de 2 (dois) anos, contado da data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, ao final, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações. (Grifos nossos)

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Page 8: Texto representação comissão da verdade

Nos dizeres do atual Ministro da Defesa, Celso Amorim, em entrevista

publicada na Revista Istoé de abril/2012:

A Comissão da Verdade é o último capítulo da

transição democrática, um epílogo. Há muito tempo

estão sendo escritas outras coisas novas da fase

democrática, mas ficou essa questão. É uma

necessidade da sociedade em conciliar­se consigo

própria conhecendo a verdade . 3

O referido Ministro destacou ainda que a lei 12.528/11 recebeu a

anuência de grande parte do Congresso Nacional, gerando

incredulidade entre aqueles que não acreditavam na possibilidade de

sua aprovação:

Sei que o (deputado) Jair Bolsonaro não votou, mas

os demais deputados aprovaram a comissão. Aliás,

foi uma das poucas leis aprovadas pelo Congresso

com tanto consenso. Não vejo nenhuma razão para

temer uma judicialização. A própria lei que

estabelece a Comissão reitera a Lei da Anistia.

Em suma, essa Comissão foi a grande oportunidade de colocar em

pratos limpos acontecimentos ainda ocultos que em muito

envergonham a memória do País, mas cujo esclarecimento é de

extrema relevância, inclusive a fim de evitar reincidências futuras e

efetivar a reconciliação nacional, assim como em respeito à memória

das vítimas e de seus respectivos familiares.

3 AMORIM, Celso. "A Comissão da Verdade é o epílogo da transição democrática”. Entrevista publicada na Revista Istoé nº. 2212, Edição de 04 de abril de 2012.

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Page 10: Texto representação comissão da verdade

2. OBJETIVOS DA REPRESENTAÇÃO

E OS CONTORNOS DA OPERAÇÃO CONDOR­ UM ROTEIRO DE

TRABALHO INVESTIGATIVO

2.1. Objetivos da representação

O presente instrumento de representação se destina a incitar este

órgão a propor medida judicial em desfavor dos sobreviventes

precursores e participantes da Operação Condor no Brasil, responsáveis

por vitimar os líderes opositores, de esquerda, para que se faça justiça

àqueles que porventura suportaram os amargos efeitos dela

decorrentes. Tal operação já teve sua existência neste país comprovada

por ocasião dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – CNV,

conforme trabalho em anexo.

2.2. Os contornos da Operação Condor

No livro As Garras do Condor, Nilson Mariano assim define tal

operação:

“As ditaduras militares que subjugaram o Cone Sul, nas

décadas de 1970 e 1980, planejaram uma organização

terrorista, secreta e multinacional para caçar adversários

políticos. Era a Operação Condor, a aliança que interligou os

aparatos repressivos da Argentina, do Chile, do Uruguai, do

Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Agindo além das fronteiras,

os sócios, do condor tinham permissão para prender,

torturar, matar e ocultar cadáveres. Promoveram uma

guerra de extermínio, sob patrocínio dos Estados.”

“Com a Operação Condor as ditaduras derrubaram as

fronteiras geográficas e políticas, aboliram tratados de

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Page 11: Texto representação comissão da verdade

proteção a refugiados e desrespeitaram regras de direito

internacional. O horror passou a circular sem passaporte.

Nas incursões além­fronteiras, não foram apanhados

somente guerrilheiros e militantes marxistas – os alvos

imediatos­, mas também ex­presidentes, ministros,

parlamentares, generais legalistas, sindicalistas,

estudantes, intelectuais. Enfim, todos que ousassem

discordar.”

Segundo o Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo

Duhalde, indagado acerca da expectativa sobre os segredos que a

Comissão Nacional da Verdade, cuja lei foi sancionada em novembro de

2011, traria à tona, “mais do que manter sua caixa­preta fechada,

o Brasil foi o fiador da Condor, porque a Operação não poderia

ter existido sem a vontade política do País hegemônico da

região” . 4

2.2.1. A Operação Condor:

Necessidade de investigação – ditaduras entrelaçadas

No livro O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee há a

seguinte cronologia de fatos:

” 28 de setembro de 1975

Ofício confidencial do general Manuel Contreras, chefe do DINA (serviço

secreto do governo chileno) ao general João Baptista Figueiredo, então

chefe do SNI (serviço secreto do governo brasileiro), dando conta da

mudança da política norte­americana em relação às ditaduras militares

do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Com a chegada de Jimmy Carter

4 AQUINO, WILSON. In: Ditaduras Entrelaçadas: documentos comprovam que a participação de autoridades brasileiras na Operação Condor foi fundamental para a aliança dos governos totalitários da América Latina. Revista Istoé, Edição de 30 de novembro de 2011.

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Page 12: Texto representação comissão da verdade

à Casa Branca, seria retirado o apoio de Washington aos regimes

totalitários do Cone Sul. O general Contreras cita nominalmente

Orlando Letelier, ex­ministro de Salvador Allende, e Juscelino

Kubistchek, ex­presidente do Brasil, como lideranças que poderiam ser

reabilitadas e criar problemas às ditaduras da região.

7 de agosto de 1976

Por volta das 18 horas deste sábado, core a notícias de que Juscelino

Kubitschek teria morrido num acidente de carro na estrada que liga

Luziânia a Brasília. JK iria fazer realmente este deslocamento, mas à

última hora, preferiu ficar em sua fazendinha, em Luzitânia. À noite,

recebe jornalistas e equipes de TV que procuram confirmar a notícia.

22 de agosto de 1976

Às 18h15, morre Juscelino Kubitschek num acidente de carro no km

143 da Rio–São Paulo. Nos dias anteriores, JK escondera de seus

parentes e amigos mais próximos esta viagem ao Rio, quando

almoçaria, no dia seguinte, com o advogado e ex­ministro português

Adriano Moreira, que cuidava de um processo movido pelo governo

oriundo da Revolução dos Cravos, em Portugal, no qual estavam

citados a empresária portuguesa Fernanda Pires de Melo, o

ex­embaixador Hugo Gouthier e o próprio JK. Chegando ao Rio no final

da tarde daquele domingo, ele dormiria com Lúcia Pedroso no

apartamento dela, em Ipanema, sendo absurdo o insinuado encontro

de alguns minutos dos dois num hotel da Rio­São Paulo.

21 de setembro de 1976

Morre, em Washignton, Orlando Letelier, quando uma bomba explodiu

em seu carro. O atentado foi investigado pela polícia norte­americana,

que culpou agentes do DINA e, em especial, o general Contreras, que

atualmente cumpre pena de prisão perpétua no Chile.

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Page 13: Texto representação comissão da verdade

6 de dezembro de 1976

Depois de receber numerosos avisos para que não dormisse duas

noites no mesmo lugar, o ex­presidente João Goulart morre na

Argentina, na cidade de Mercedes, próxima à fronteira com o Rio

Grande do Sul. Ele continuava exilado pelo regime militar brasileiro,

mas disposto a retornar brevemente a São Borja, sua cidade natal.

21 de maio de 1977

Após internar­se na Clínica São Vicente, sem diagnóstico preciso, mas

com suspeita de septicemia, morre Carlos Lacerda, ex­governador da

Guanabara, que juntamente com Kubitschek e Jango havia criado a

Frente Ampla, que seria a alternativa civil para o retorno do Brasil à

democracia. Uma enfermeira portuguesa, que trabalhara para a Pide

(polícia salazarista), comenta que já vira casos assim, de morte

precipitada por medicamentos no soro hospitalar.

21 de agosto de 1982

O juiz Juan Espinoza, do tribunal argentino de Curuzu Cuatiá, pede a

exumação do corpo de João Goulart, devido a suspeitas de que ele teria

sido assassinado ao tomar remédios que foram trocados por pessoas

próximas a ele. Mais tarde, outro pedido de exumação também não foi

atendido.“

2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes

Transcrevemos a seguir trecho do relatório final contendo o depoimento

do Governador Miguel Arraes na Comissão sobre a morte de Jango no 5

Congresso Nacional Brasileiro, juntando também o áudio com o

depoimento:

5 Relatório final (Série Ação Parlamentar; n. 243). Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004, p. 53­59.

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Page 14: Texto representação comissão da verdade

“Além de informações concretas sobre a forma como obteve

conhecimento antecipado a respeito do processo de eliminação de

lideranças políticas em curso na América do Sul, o Governador Miguel

Arraes trouxe a esta Comissão a perspectiva de um agente político

relevante, que acompanhava os acontecimentos de uma posição muito

distinta da maioria de nossos entrevistados, exilado que estava na

Argélia. Mais uma razão para reproduzirmos na íntegra seu

depoimento, de maneira a registrar oficialmente sua visão dos

acontecimentos.

As considerações iniciais do ilustre depoente ilustram amplamente a

realidade política do mundo na época em que faleceu o ex­Presidente,

João Goulart.

Devo dizer que eu estava distante, na Argélia, e que

certos fatos específicos me escapam, porque eu não tive

contato, como o Neiva, Brizola e outros, com as pessoas que

assistiram diretamente ao caso. Entretanto, vou citar alguns

fatos que chegaram ao meu conhecimento naquele período.

Eu estava exilado na Argélia. O asilo político me foi

concedido pelo Governador argelino. Nós éramos alguns

poucos que tínhamos esse asilo. Havia muitos refugiados:

cerca de oito mil refugiados políticos em Argel, de todos os

países, da Europa até a Indonésia. Havia gente de todo o

lado. E os argelinos tinham especial cuidado com toda essa

gente que estava lá refugiada, longe de seus países e,

particularmente, com aqueles a quem tinham dado asilo

político, porque se consideravam responsáveis por essas

pessoas que o Governo tinha levado oficialmente para lá.

E alguns fatos também faziam com que eles exercessem

vigilância ou acompanhassem, não para saber da nossa vida,

mas para dar a segurança que fosse possível às pessoas que

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Page 15: Texto representação comissão da verdade

estavam sob a responsabilidade do Governo argelino. E eles

tinham tido casos concretos de assassinatos políticos, como o

do General Humberto Delgado, assassinado na fronteira de

Portugal com a Espanha, que estava lá na Argélia, saiu de lá

contra a opinião deles, aliás.

Há um assassinato de Ber Baka, líder marroquino muito

conhecido, que também tinha a proteção da Argélia, que foi

seqüestrado e assassinado em Paris. E assim outros casos

desse tipo que faziam com que eles tivessem esse cuidado, o

cuidado não só na Argélia, porque não tinha perigo por lá.

Basta dizer que fiquei na Argélia por 14 anos. Nunca ninguém

me pediu um documento na rua ou em canto nenhum. Só nos

hotéis e no aeroporto, porque é obrigado. Nunca ninguém me

pediu documento. Nós tínhamos toda liberdade lá.

Então, eles nos davam certas indicações para as viagens

que fazíamos, porque haviam acontecido esses casos e eles

nos preveniam que nós não deveríamos sair para outros

lugares sem ter contato com a Embaixada, sem contato com

alguém de confiança. E eles indicavam, quando era o caso, as

pessoas de confiança a quem podíamos recorrer nesses

países.

Então, nós também tínhamos dificuldades. Era preciso

às vezes recorrer à Embaixada. Por exemplo, eu estive

proibido de entrar na França durante muitos anos. Era

proibido oficialmente entrar na França por decreto do Ministro

do Interior francês. Tenho esse documento comigo. Não podia

entrar, não obstante eu tinha que entrar, porque eu tinha

família lá. Eu tinha que entrar. Então, eu sabia como entrar

na França, mas, uma vez lá, era preciso ter condições de

apelar para alguém se houvesse qualquer coisa.

Na Itália, não havia problema, mas havia setores na

polícia italiana – que haviam sido contactados pelo Comissário

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Page 16: Texto representação comissão da verdade

Fleury – que abordavam os brasileiros e tomavam­lhe os

passaportes. Eu mesmo presenciei casos como o do Carlos

Sá. Carlos Sá foi membro do Tribunal do Trabalho de São

Paulo, era exilado. Ele estava lá; quando ia sair do hotel o

abordou, tomou o passaporte e deu 48 horas para deixar o

país. Como ele poderia deixar o país em 48 horas sem

documento, sem coisa nenhuma?

Nós falamos com um senador italiano, e o senador falou

com o primeiro­ministro, e o primeiro­ministro mandou uma

pessoa resolver o caso. Mas havia todos os complicadores que

exigiam essas informações etc.

E nós, portanto, tínhamos pessoas na Argélia a quem

podíamos recorrer para nos informar ou elas próprias nos

chamavam para dar as informações que consideravam

necessárias para a nossa vida no exterior.

A principal pessoa encarregada em buscar essas

informações, porque existiam outras, o chefe desses serviços,

era o Coronel Sulleiman Hoffmann. Era assessor para

assuntos internacionais do Presidente Boumedienne. De vez

em quando, eu o via, falava com ele, dava­me muito com ele.

Certo dia ele me telefona e diz que quer falar comigo. Eu fui

lá. Ele me disse: “Arraes, amanhã e depois de amanhã, se

amanhã não chegarem as pessoas, você espera até depois de

amanhã. Você não sai de casa, espera em casa. Três pessoas

vão lhe procurar”. Eu disse: “Pois não, está certo. Fico em

casa”.

E fiquei efetivamente em casa, e apareceram as

três pessoas. As três pessoas exigiram muito cuidado

na conversa, isto é, eles não queriam em casa ninguém

que não fosse da família, não queriam testemunhas.

Iam falar comigo. E me disseram o seguinte: “Nós

estamos vindo do Cone Sul da América Latina”. Não

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Page 17: Texto representação comissão da verdade

disseram de onde. “Houve uma reunião da extrema

direita para apreciar a questão de uma possível

abertura”. Já se começava a falar, porque isso está

ligado aqueles àqueles anos da Guerra do Vietnã.

A Guerra do Vietnã estava sendo perdida. E todas

as análises indicavam que, na medida em que a guerra

fosse perdida, os Estados Unidos não poderiam ficar

com o mundo militarizado debaixo das botas de

soldado. Teria de ser dada uma solução intermediária

qualquer, fosse de transição ou de qualquer outro tipo.

Então, já se debatia essa questão, e os militares sabiam

disso. Eles viram que essa era uma tendência que não

mais seria revertida, porque, como falei, era impossível

este mundo todo ficar com os militares mandando

eternamente. Teria de haver um paradeiro para isso. Já

era negativo esse fato na opinião pública internacional.

Naquela fase, algumas figuras da Europa haviam

se manifestado contra a Guerra da Vietnã, e havia

protestos cada vez maiores, inclusive nos Estados

Unidos. Uma das pessoas que em primeiro lugar

realizou um ato que teve uma grande repercussão foi

Olof Palme, primeiro­ministro sueco, do Partido

Socialista da Suécia, que reuniu 10 mil pessoas na

praça pública para se opor à Guerra do Vietnã.

Portanto, essa opinião que se formava fazia com

que a direita receasse uma mudança, uma

transformação. Essa reunião examinava isso e estudava

providências e precauções a serem tomadas para evitar

que pessoas importantes que estavam presas e

exiladas, em diferentes países, pudessem chegar e

empalmar a opinião pública no caso de uma eleição, de

uma mudança brusca da situação política. Nessa

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Page 18: Texto representação comissão da verdade

reunião, eles já haviam condenado à morte as pessoas

que estivessem nessa situação e que atendessem a

esse critério.

Assim, eles me pediram que transmitisse essa

informação a pessoas de outros países, pessoas que

estivesses mais ou menos nessa situação. Enfim, que

transmitisse a informação a alguém de confiança para

que cada um fizesse o trabalho dentro das suas áreas

de exilado.

Eu perguntei por que elas, essas pessoas, pediam

isso logo para mim. Eles me disseram: “Primeiro, por

causa da referência que nos foi dada pelo Coronel

Hoffmann; segundo, porque analisando os nomes,

verificamos que o senhor é quem está em melhores

condições de realizar este trabalho, pela sua condição

de exilado aqui na Argélia. O senhor pode se deslocar

para alguns lugares, porque nós não podemos contactar

todo mundo. Não podemos contactar, porque nós não

podemos aparecer em canto algum. Nós estamos aqui

falando com o senhor excepcionalmente, porque é uma

questão decisiva e importante. Assim, o senhor vai ter

esta missão”.

Dessa forma, eu procurei realizar a missão. Fui à

Europa, procurei alguns exilados chilenos e pessoas de

outros países para comunicar essa notícia que me

tinham dado. Não se passou um mês desse

acontecimento, foram assassinados Gutiérrez e

Michelino, dois uruguaios, e uma sucessão de

assassinatos se seguiu nos diferentes países da

América Latina. Todos sabem, e aqui a Comissão pode

até listar, que foi a partir dessa oportunidade que

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Page 19: Texto representação comissão da verdade

mataram o General Prats, mataram o Letelier, mataram

não sei quem... Tudo isso no espaço de algum tempo.

Então, vejam, qualquer pessoa sabe que as três

pessoas mais importantes no caso da abertura no Brasil

era Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos

Lacerda. Eram essas pessoas que podiam aparecer

como condutores de uma frente nacional para refazer o

País. Portanto, se os senhores pegam essas três

pessoas e juntam com o critério que me foi comunicado

naquela oportunidade, só podemos dizer que eles

tinham sido condenados à morte. Como é que eles

morreram? É outro fato. Mas que a condenação havia,

havia.

Um outro fato é uma conversa que tive com o

Carlos Castello Branco. Ele passou pela Europa depois

da morte de Juscelino Kubitschek. Eu estive com ele em

Paris por apenas um dia. Ele me procurou e estivemos

juntos por um dia. Contei a ele essa história, e ele me

disse que tinha procurado indagar as circunstâncias da

morte de Juscelino. Circunstâncias que ninguém até

hoje explicou, ninguém sabe delas efetivamente.

Sabe­se que ele morreu em um desastre na via Dutra.

Juscelino, que foi o homem que mais voou neste

País, morre em um desastre de automóvel, em uma

viagem que ele jamais faria de carro – de São Paulo

para o Rio de Janeiro. Por que Juscelino saiu de carro?

Ele mandou buscar o seu motorista – são detalhes que

me informaram – no Rio de Janeiro, sendo que ele

estava em São Paulo. O Sr. Adolfo Bloch deixava um

carro á disposição de Juscelino, e ele tinha um

motorista de confiança. Então, Juscelino manda buscar

o seu motorista, que também morreu no acidente, para

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Page 20: Texto representação comissão da verdade

fazer essa viagem. E o motorista foi do Rio para São

Paulo para fazer a viagem do ex­presidente.

Pois bem. O Castello dizia que o inquérito tinha

procurado lançar a culpa para o ônibus, mas que as

perícias que fizeram – depois ninguém fez mais perícia,

nem quis saber de nada, nem aprofundaram as

investigações – tinham descartado o ônibus. Não podia

ser o ônibus. A tinta que estava no carro de Juscelino

era preta. O carro que bateu e desequilibrou o carro de

Juscelino teria sido um carro de cor preta, pois a tinta

estava lá. Mas que esse tal carro preto tinha sido visto

por testemunhas. Então, o Castello Branco lançava

muitas questões em cima da morte de Juscelino

Kubitschek.

Vejam, no meu caso, o que eu posso dizer, diante

dessas informações e sobretudo da comunicação que

me foi feita, nas circunstâncias em que recebi tais

informações, é que havia essa condenação e que

morreram sucessivamente no Brasil Juscelino, Jango e

Lacerda, os homens que haviam sido indicados na

condenação prévia nessa reunião no Cone Sul. Então,

na minha cabeça. Eu não diria que nenhum deles

morreu de morte natural. A suspeita e a dúvida existem

evidentemente. Se esta Comissão puder aprofundar

com fatos e testemunhas, penso que será da maior

importância a apuração de tal procedimento.

Era o que eu podia dizer, Sr. Presidente.

Os debates que se seguiram à exposição inicial permitiram ao expositor

precisar alguns fatos e tecer novas considerações.

20

Page 21: Texto representação comissão da verdade

Registre­se, em primeiro lugar, que o depoente evitou falar de lista de

pessoas a serem assassinadas. Deixou claro que seus informantes não

falaram em lista. Eles estabeleceram o critério que havia sido adotado

na reunião. O critério era esse, ou seja, quem tivesse certas condições

ou ameaçasse levantar o País, levantar a população em uma posição

oposta à deles tinha de morrer antes. Ora, nesse processo militar, era

esse um dos objetivos: liquidar não só as grandes lideranças, mas

liquidar as lideranças do País, seja pela prisão, pelo decurso do tempo,

por tudo. Esse era um procedimento traçado por eles.

Em segundo lugar, o depoente pôde precisar a data em que se reuniu

com seus informantes: quinze, vinte dias antes do dia em que foram

assassinados os Srs. Michelini e Gutiérrez.

Em terceiro lugar, o depoente detalhou melhor a situação das pessoas

que lhe transmitiram as informações sobre articulações da extrema

direita para eliminar líderes populares na América do Sul.

... essas pessoas que me procuraram não deram o

nome. Elas estavam credenciadas, quer dizer, eu sabia que

eram pessoas que eu devia escutar, mas eram agentes.

Ninguém pode saber quem são essas pessoas que se

infiltraram para saber dessa reunião do Cone Sul, e

evidentemente eu não tinha nem condições de perguntar. Se

perguntasse, elas podiam até me dar um nome falso, porque

não podiam aparecer. Essas pessoas me procuraram e

explicaram – não sei se fui claro – que me escolhiam, porque

não podiam procurar muita gente e aparecer para exilado

chileno, para exilado daqui...

Eles não podiam, pela função que exerciam, a função

deles era ter a cara escondida, isso é uma coisa lógica. Daí o

fato de terem conseguido essa informação de uma reunião

21

Page 22: Texto representação comissão da verdade

ultrafechada. O coronel, que por sinal faleceu, é o homem do

Governo argelino que disse que essas pessoas iam me

procurar, e efetivamente me procuraram para dizer isso. Era

o Coronel Sulleiman Hoffmann. Esse coronel já é falecido. Era

assessor do Presidente Boumedienne.

Em quarto lugar, o depoente manifestou desconhecimento a respeito

das pessoas que lidavam com o Presidente João Goulart no Uruguai,

com exceção parcial de Cláudio Braga.

Infelizmente, não posso dizer nada a esse respeito.

Conheço o Cláudio Braga, porque ele foi presidente de

sindicatos em Pernambuco. Não tinha muita ligação ou

aproximação com ele, embora me dê com ele. Ele conhecia o

Presidente João Goulart. Eu sei que ele conhecia já de antes,

mas esse relacionamento mais próximo foi coisa do exílio.

Não era um relacionamento que existia antes. Essa é uma

coisa que só o pessoal que morava no Uruguai pode saber.

Em quinto lugar, o depoente voltou a emitir dúvidas sobre a morte de

Juscelino Kubitschek.

A perícia em relação a Juscelino conclui ter sido um

acidente. Acidente foi; porém, foi provocado? A

desestabilização de um carro é uma coisa que, para

pessoas que sabem fazer, não é problema nenhum. É a

coisa mais simples do mundo. Essa dúvida fica. Eu, pelo

menos, duvido disso.

Não estou pondo em dúvida as pessoas que fizeram

os laudos, mas o testemunho que Carlos Castello Branco

me deu foi esse: que testemunhas não foram ouvidas,

gente que não quis depor; há toda essa história. Em meio a

22

Page 23: Texto representação comissão da verdade

uma ditadura, quem iria depor e dizer que ele foi

assassinado? Não é fácil. O que me ficou foi isso. Como

salientou o deputado Miro, sou uma das pessoas, talvez,

que soube antes dos fatos que isso iria acontecer. Ouvi a

sentença que havia sido pronunciada nessa reunião do Cone

Sul e que essa sentença começou a ser executada.

Veja, deputado, não acredito que Deus tivesse sido

escolhido para ser carrasco dos três brasileiros que

morreram em sequência. Se foi de morte natural e se foi

obra de Deus, foi Deus quem executou essa sentença. É

muito estranha a seqüência dessas mortes, quando se liga

a esse fato que relatei.

Em sexto lugar, o depoente distinguiu a repressão no Brasil pela

precisão com que buscou seus alvos.

O que podemos apreciar é o seguinte. As diferenças

de método de um lugar para o outro, a sofisticação da

repressão, a seletividade em cada um dos países. Aqui, no

Brasil, a seletividade foi das mais importantes que já vi.

Aqui existiram os excessos, a tortura, a morte das pessoas,

mas observo que, no geral, aqui as coisas sempre foram

medidas e contadas, tanto quanto podia ser. A estrutura

brasileira não era no estilo Pinochet, que mandava matar no

meio da rua, matava quem era preciso matar. Se formos

estudar isso, será um trabalho muito complicado.

Cabe destacar, ainda, a importante análise política que o depoente

realizou em relação à possível neutralização da investigação pela

impossibilidade de comprovar o assassinato.

23

Page 24: Texto representação comissão da verdade

Na posição que estamos, se negaram a autópsia, não

podemos concluir que alguém matou, que foi assim ou

assado. Mas retirar dúvidas... Só quem quer retirar dúvidas

é a extrema direita. Para nós, ela fica. Ela fica porque nem

prova uma coisa nem outra. Ela fica e tem de ser mantida.

Politicamente é fundamental que seja mantida,

porque as mortes havidas aqui e em outros países mostram

que essa sentença foi efetivamente pronunciada. A morte

de todos esses líderes em outros países é a prova de que a

sentença efetivamente existia.”

O próprio Arraes não revelou, naquela ocasião, ante o seu

temperamento discreto e recatado, que quase foi vítima da Operação

Condor e dos agentes de Fleury, por mais de uma vez, na França,

inclusive iria ao encontro de Ben Barka, quando minutos antes foi

avisado do perigo pelo Serviço Secreto Argelino.

24

Page 25: Texto representação comissão da verdade

3. AS MISTERIOSAS MORTES DE JANGO, JK E LACERDA

3.1. A MORTE DE JANGO

Inconformada com a ausência de esclarecimentos, ao menos,

razoáveis, acerca da morte de João Goulart, a família do ex­presidente

ingressou com uma ação perante a Procuradoria Geral da República,

solicitando a investigação dos responsáveis pelo seu suposto

assassinato por envenenamento. Jango morreu em 1976, na Argentina,

quando se encontrava exilado; cerca de uma década antes, havia sido

deposto do comando da nação brasileira por intermédio do golpe

ditatorial de 1964.

O pedido da família de Jango chegou ao órgão de controle interno

seguido da gravação de uma entrevista com Mario Neira Barreiro

(ex­participante do serviço de inteligência uruguaio que atualmente se

encontra isolado em uma penitenciária brasileira), tendo sido esta

realizada pelo filho de Jango, João Vicente Goulart. Na entrevista em

lume, Barreiro narra minuciosamente a chamada Operação Escorpião

(que, por sua vez, estaria subordinada à Condor), possivelmente

responsável pelo assassinato de Jango por envenenamento. Os

medicamentos habituais do ex­presidente, cardiopata, teriam sido

adulterados. Eis o relato de Mario Neira Barreiro a respeito:

“Não me lembro se colocamos no Isordil, no Adelpan ou no

Nifodin. Conseguimos colocar um comprimido nos remédios

importados da França. Ele não poderia ser examinado por 48

horas, aquela substância poderia ser detectada ”. 6

Segundo informações oficiais, a morte de Jango se deu em razão de um

ataque cardíaco, em sua Fazenda localizada na Argentina (cidade de

6 Família denuncia assassinato de João Goulart por envenenamento. Disponível em: <http://www.apn.org.br/apn/content/view/66/44/>. Acesso em: 06 de dezembro de 2011.

25

Page 26: Texto representação comissão da verdade

Mercedes), na madrugada do dia 6 de dezembro de 1976. À época, o

ex­presidente possuía apenas 57 anos. Seu corpo foi sepultado sem

sequer ter sido submetido a uma autópsia (pasmem!). Impende

destacar que, há não muito tempo, uma comissão externa da Câmara

dos Deputados passou cerca de 6 anos averiguando a morte de Jango.

João Vicente Goulart, filho de Jango, atestou, remetendo à entrevista

com Barreiro, que:

“[...] surgiram depois informações sobre o serviço secreto do

Itamaraty e a colaboração entre esse serviço e os de outros

países, que dão veracidade ao que ele disse. Essa colaboração

já existia antes da Operação Condor .” 7

Ao realizar essa declaração, o filho de Goulart aludiu à publicação de

documentos relativos ao CIEX – Centro de Informações do Exterior.

Este último foi um serviço secreto do Itamaraty incumbido de vigiar os

exilados brasileiros desde os anos 60.

O centro de informações em questão foi divulgado no Correio

Braziliense através de reportagens do jornalista Claudio Dantas

Sequeira datadas de julho de 2007. O supracitado jornalista, a

propósito, ganhou diversos prêmios em decorrência das mesmas.

Toda a documentação utilizada por Sequeira para compor a reportagem

atualmente se encontra guardada no Arquivo Nacional. Não obstante

diversos pesquisadores tenham tentado acessar tais materiais, são

impedidos de fazê­lo quanto a documentos concernentes a vítimas do

regime militar, já que os mesmos têm acesso restrito apenas aos

respectivos familiares.

7 Idem, ibidem.

26

Page 27: Texto representação comissão da verdade

3.2. A MORTE DE JK

Até os dias atuais, subsiste uma série de dúvidas quanto à morte

do ex­presidente Juscelino Kubitschek. Suspeita­se que a mesma

esteja atrelada à Operação Condor.

O consultor Legislativo Lúcio Reiner, participante de uma

Comissão externa da Câmara dos Deputados destinada a esclarecer as

Circunstâncias políticas quando da morte do ex­presidente Juscelino

Kubitschek, chegou às seguintes conclusões a respeito, em meados de

Abril/2001:

A investigação das condições em que se deu a morte do

ex­presidente Juscelino Kubitschek não se esgota com a perícia do

acidente automobilístico em que o estadista faleceu, nem foi essa a

intenção desta Comissão Externa. [...] O principal mérito desta

Comissão é ter desvendado a verdade: a “Operação Condor”

existiu, o Brasil desempenhou parte ativa e o papel do país foi

de importância fulcral. A participação do Brasil nessa onda de

repressão deve ser ressaltada para que as futuras gerações não

desconheçam os perigos que rondam qualquer ruptura de padrões

democráticos na resolução de conflitos políticos. [...]

A morte de Juscelino Kubitschek, em agosto de 1976, quando, o

que pode surpreender, justamente começava vislumbrar­se a distensão

do regime ditatorial, constitui excelente oportunidade para a análise do

padrão que seguiram as ditaduras sul­americanas na década de 70.

Juscelino Kubitschek não era um perigoso extremista nem sequer

participara do governo deposto em 1964. Governador de Minas Gerais

27

Page 28: Texto representação comissão da verdade

e presidente da República, sob a legenda do PSD, partido ligado a

interesses de grandes proprietários rurais e da indústria, seu perfil

sempre foi o de agente político democrata e conciliador. No exercício da

presidência, não apenas conseguiu apoios em todos os partidos

políticos relevantes como anistiou aqueles que tentaram, por meios

ilícitos, apeá­lo do cargo, como os golpistas da pantomima de

Aragarças.

Quando sobreveio o golpe de Estado que derrubou o governo

João Goulart, Juscelino Kubitschek era senador pelo estado de Goiás.

Foi um dos políticos que tentaram acreditar no caráter transitório do

golpe militar, apresentando­se como fortíssimo candidato a retornar à

presidência da República nas eleições previstas para 1965, após o que

seria brevíssima intervenção “saneadora” para purgar os elementos

esquerdistas. No entanto, em 3 de junho de 1964, seus direitos

políticos foram cassados pelo primeiro ato institucional do governo de

exceção. Embora determinado a permanecer no Brasil, o que acabou

por conseguir, teve que sair do país mais de uma vez, sob ameaças de

morte, na década de 60.

No ano de 1966, quando se encontrava no exterior, participou

das negociações para a formação da chamada Frente Ampla,

movimento que congregava políticos das mais variadas tendências ­

adversários até então irreconciliáveis ­ com o intuito de fazer o país

retornar ao caminho da democracia representativa. Os três nomes

mais importantes da Frente eram justamente os líderes mais

destacados dos três maiores partidos políticos extintos pelo

golpe de 64. Eram eles, respectivamente, além de Juscelino,

pelo PSD, João Goulart pelo PTB e Carlos Lacerda pela UDN.

Entre os fatos mais notáveis da história recente do Brasil

está a morte desses três líderes, em curto lapso de tempo,

quando começava a delinear­se a abertura política do regime.

28

Page 29: Texto representação comissão da verdade

Desapareceram, muito convenientemente para o regime de

arbítrio, as três maiores alternativas de poder, posto que, em

caso de eleições diretas, com certeza um dos três teria sido

eleito presidente da república.

Em meados da década de 70, a ditadura estava firmemente

implantada no Brasil e se espalhava por todo o sul do continente

americano. Em 1973 houve o golpe no Chile, em 1976 na Argentina, e

no mesmo período o Uruguai, o Equador e o Peru também estavam sob

a férula de regimes militares. [...]

No Brasil, no entanto, começava a ficar claro que o regime não

conseguira conquistar apoio suficiente para uma permanência mais

longa no poder. Apesar das restrições a uma oposição política mais

atuante e de alguns anos de crescimento econômico acelerado, as

urnas mostraram, em 1974, claro repúdio da população ao governo. Só

restavam duas alternativas ao regime: ou o recrudescimento da

repressão, ou a abertura controlada de cima.

Ao mesmo tempo, a coordenação entre órgãos de repressão do

continente, que já existia e se mostrara claramente no golpe de 64,

começa a ganhar alguma formalização, no que veio a ser chamado de

Operação Condor. Esta Comissão Externa conseguiu realizar extensa

pesquisa sobre essa coordenação repressiva, inclusive com visitas ao

Paraguai, ao Chile e aos Estados Unidos, obtendo farta documentação

oficial que não deixa dúvidas sobre a existência e a dimensão da

operação. [...]

É curioso constatar que, no caso do Brasil, por exemplo, o maior

desafio às forças armadas não se originou nas organizações de

esquerda, mas no próprio ministério do exército, culminando com a

crise institucional que provocou a demissão do general Frota. Esse novo

29

Page 30: Texto representação comissão da verdade

contexto tornou ainda mais clara uma das principais preocupações das

ditaduras sul­americanas: fechar o caminho de retorno de antigos

líderes políticos a postos de destaque após eventual afastamento da

ditadura. Para tanto, não foi descartado o recurso à eliminação física

dos adversários, inclusive de adversários exilados em outros países. Os

casos são numerosíssimos e de conhecimento público, como os do

general Torres, presidente deposto da Bolívia, cujo carro explodiu em

Buenos Aires.

Um dos documentos mais importantes desse período mostra

com toda nitidez a posição do ex­presidente Juscelino

Kubitschek nesse processo. Praticamente não pairam dúvidas

sobre a autenticidade da carta, de 28 de agosto de 1975,

enviada pelo então coronel Manuel Contreras Sepúlveda, diretor

da DINA — Directoría de Inteligencia Nacional, serviço secreto

chileno, ao general João Figueiredo, então chefe do SNI —

Serviço Nacional de Informações, em que o militar chileno

responde a carta do colega brasileiro, de 21 de agosto do mesmo ano.

Essa correspondência traz indicações importantíssimas. Primeiro,

o autor agradece informações recebidas, o que mostra que a

articulação entre os serviços de repressão dos dois países já existia.

Segundo, demonstra receptividade ao plano de coordenação de

esforços, presumivelmente maior que o já existente, para atuar contra

autoridades eclesiásticas e políticas da América Latina e da Europa.

Terceiro, e mais importante para esta pesquisa, afirma compartilhar de

preocupação do general João Figueiredo quanto a possível vitória do

candidato Jimmy Carter nas eleições presidenciais dos Estados Unidos.

A carta cita expressamente dois políticos que seriam beneficiados por

suas boas relações como Partido Democrata estadunidense; o chileno

Orlando Letelier e o brasileiro Juscelino Kubitschek.[...]

30

Page 31: Texto representação comissão da verdade

Os trabalhos desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade ­ CNV,

portanto, não se fundaram em qualquer morbidez, qualquer intenção

de sustentar suspeitas pouco verossímeis, mas em fatos políticos

comprovados em fontes oficiais só agora liberadas no Chile, Paraguai e

EUA e em depoimentos relevantes. Ademais, como já foi referido,

ainda que se aceite a hipótese de morte por acidente, não se

pode deixar de trazer a público a situação a que estava

submetida uma figura pública como Juscelino Kubitschek [...]

Destarte, em função da documentação obtida e dos depoimentos

colhidos, fica patente a existência de uma conspiração, organizada

pelos órgãos repressivos dos regimes militares da época, para eliminar

fisicamente todo opositor potencial. Máxime aqueles com

possibilidades, mesmo que longínquas de retornar ao poder. Mais

ainda, pode­se até afirmar que todo político com simpatia

popular era visto como uma ameaça e, portanto, passível de ser

eliminado, pouco importando sua posição no espectro político.

Ou seja, pode­se concluir que, do ponto de vista político, estava em

andamento uma verdadeira guerra suja contra a democracia. Em

resumo em todo o Sul do continente, existiu uma operação que incluía

entre seus alvos a eliminação física de líderes políticos eminentes no

período anterior à implantação generalizada de ditaduras militares em

nossos países.

O ex­presidente Kubitschek, além de ser, sem sombra de

dúvidas, uma das pessoas mais preparadas para conquistar

forte apoio popular quando da retomada de eleições diretas

para a presidência da República (situação que já se vislumbrava no

horizonte político brasileiro), fora explicitamente citado em

correspondência entre os chefes dos serviços de inteligência do

Chile e do Brasil como alvo de preocupação, sendo que o outro

31

Page 32: Texto representação comissão da verdade

político citado, o exchanceler chileno Orlando Letelier, foi

executado mediante explosão de seu carro em Washington.

Junte­se a isso a circulação, nos meios jornalísticos de Brasília,

de boatos sobre sua possível morte em acidente automobilístico

forjado, dias antes de que o fato viesse realmente a ocorrer,

para que se possa sustentar, com firmeza, que o ex­presidente

Juscelino Kubitschek era uma das vítimas potenciais da

Operação Condor. [...]

O jornalista recifense Urariano Mota, por sua vez, resume os fatos que

nos possibilitariam concluir pelo assassinato do ex­presidente Juscelino

Kubitschek em um artigo intitulado “JK: Acidente ou atentado?”:

1. Em 1975, o jornalista Jack Anderson revelou que o general

chileno Manuel Contreras qualificou Kubitschek como uma ameaça, em

uma carta enviada ao ditador João Figueiredo. Bueno. Contreras era

chefe do Serviço de Inteligência do regime do Augusto Pinochet,

responsável pela morte do ex­chanceler chileno socialista Orlando

Letelier, ocorrida em 1976 em Washington, e atribuída à Operação

Condor.

2. Segundo o cientista político Luiz Roberto da Costa Jr, em

artigo no Observatório da Imprensa, ao mencionar as circunstâncias da

morte de JK: “Não houve choque com o ônibus da Cometa, pois este

estava atrás da Caravan verde. Testemunhas do ônibus que afirmam

ter visto o clarão (‘sol’, como quer a versão oficial) e ouvido a explosão

(‘batida’, como quer a versão oficial) não depuseram. O Opala periciado

em 1996 não corresponde ao Opala do acidente em 1976, o chassi é

diferente”.

3. Na revista Época de 29.3.1999, sob o título de Um tiro na

história: “Depois de 35 anos trabalhando como perito criminal na

32

Page 33: Texto representação comissão da verdade

Polícia Civil de Minas Gerais, o historiador Alberto Carlos Minas está se

aposentando e decidiu fazer uma revelação: ‘Eu vi um buraco de bala

no crânio do motorista Geraldo Ribeiro’. Era Geraldo Ribeiro quem

dirigia o Opala do ex­presidente Juscelino Kubitschek no dia 22 de

agosto de 1976, quando bateu num ônibus na Via Dutra e ambos

morreram... Segundo Minas, quando o corpo de Geraldo Ribeiro foi

exumado, há pouco menos de três anos, o crânio estava inteiro e tinha

um buraco. ‘De bala’, garante. ‘Depois que vi isso não me deixaram

entrar na sala novamente’”.

4. E mais, do mesmo Carlos Alberto, em uma rápida entrevista:

“As fotos das vítimas sumiram. Em 1996 o processo foi reaberto, mas

jamais poderia ter prescrito. A família do motorista nunca viu o corpo

dele. Eu era o perito do caso e não pude acompanhar de perto a

exumação dos corpos. Quando levantaram a ossada do Geraldo Ribeiro,

vi um buraco de bala no crânio dele... Do tamanho da tampa de uma

caneta, de cerca de 7 milímetros. O crânio estava íntegro e intacto. Eu

o vi inteiro na minha frente, ele não estava esfacelado como depois

apareceu. Podem dizer que eu estava enganado quanto ao buraco,

mas, se eu estiver errado, como eles explicam um objeto metálico

dentro do crânio do Geraldo? Por que o crânio estava fragmentado

depois dos exames?”.

5. Em livro que me foi enviado por Maria de Lourdes Ribeiro, filha

do motorista e amigo de JK, há o laudo número 12.31/96, do IML de

Minas Gerais. Nele se escreve: “... fragmento metálico de forma

cilindro­cônica, medindo sete milímetros de comprimento e diâmetro

médio de dois milímetros, revelando­se como fragmento de prego

enferrujado e corroído, recolhido do interior do crânio...”.

6. Note­se a passagem especiosa e esperta de bala para prego. E

mais: uma coisa é um prego dentro de um crânio, ali depositado “em

33

Page 34: Texto representação comissão da verdade

período posterior à destruição das partes moles, provavelmente através

de forames da base craniana”, nos termos e imaginação do laudo exato

do IML Outra coisa é um buraco no crânio, criado pelo acaso desse

prego de Deus.

[...]

3.3. A MORTE DE LACERDA

Em entrevista publicada na revista Istoé de 04 de junho de 2000,

a amante e a filha de Carlos Lacerda asseguram que o ex­jornalista foi

assassinado:

AMANTE AFIRMA QUE EX­GOVERNADOR FOI ASSASSINADO E

FILHA REFORÇA SUSPEITA DE ATENTADO POLÍTICO

O depoimento da jornalista Maria Cecília de Azevedo Sodré, 46 anos,

tem tudo para provocar um furacão nas investigações sobre o

envolvimento das Forças Armadas nas mortes dos três maiores líderes

políticos do País num intervalo de dez meses: os ex­presidentes

Juscelino Kubitschek e João Goulart e o ex­governador Carlos Lacerda.

“Mataram Lacerda”, afirma ela. Vinte e três anos após a morte, Maria

Cecília falou pela primeira vez sobre o tórrido romance que manteve

com o líder da extinta UDN nos dois últimos anos de vida do

ex­governador.

Numa entrevista exclusiva a ISTOÉ, a amante de Lacerda

contesta as versões até agora conhecidas, de que ele andava doente e

abatido. Para ela, nada indicava que o líder udenista pudesse morrer a

qualquer momento. “Ele vivia o auge de sua glória, como homem,

pensador e amante.” Oficialmente, Lacerda morreu em 1977, aos 63

anos, de infecção no coração (endocardite bacteriana) um dia depois de

se internar na Clínica São Vicente, no Rio, com desidratação causada

34

Page 35: Texto representação comissão da verdade

por uma gripe. Os indícios de que uma cooperação entre militares da

Argentina, Chile, Paraguai e Brasil – a Operação Condor – foi montada

em 1975 para combater opositores já levaram a Câmara dos

Deputados a abrir investigações sobre as mortes de Jango e JK, ambas

em 1976. A suspeita de assassinato de Lacerda ainda não é

investigada.

A amante não é a única a discordar da maioria da família

Lacerda, conformada com a versão oficial. A também jornalista Cristina

Lacerda, 48 anos, filha do ex­governador, desconfia que ele tenha sido

vítima da mesma operação que teria eliminado JK e João Goulart. Os

três lideravam os maiores partidos extintos pelo golpe de 64 e

morreram quando ainda articulavam o retorno às eleições diretas, após

a frustrada tentativa de montagem da Frente Ampla, de oposição ao

regime militar. Jango seria o candidato do PTB, JK concorreria pelo PSD

e Lacerda pela UDN. “Imagino que tenham localizado o hospital e se

organizado para se infiltrar lá e matar meu pai. Assim como há

suspeitas de que trocaram o remédio de Jango, há a hipótese de que

tivessem acompanhado meu pai durante a doença. Ele era um homem

saudável”, recorda Cristina.

A amante de Lacerda reforça. “Não existia nada que pudesse

fazê­lo entrar no hospital e sair morto. O País inteiro sabia que Carlos

continuava atento”, diz Maria Cecília, endossando a tese de

assassinato. Quando morreu, Lacerda mantinha o casamento de 40

anos com Letícia, mãe de Cristina, Sebastião e Sérgio. “Minha única

intenção é esclarecer os fatos. Meu pai se sacrificou muito pelo Brasil”,

desabafa Cristina, que descarta, no entanto, apoiar uma possível

exumação do corpo do pai, classificando­a como violência.

Investigação – Um dos aspectos relevantes da fase final da carreira

de Lacerda, segundo Cristina, foi a relação afetuosa com seus

35

Page 36: Texto representação comissão da verdade

arquiinimigos Jango e JK, aos quais procurou para costurar a Frente

Ampla. Lacerda foi cassado em dezembro de 1968 e esperava

recuperar seus direitos políticos em 1978. Os documentos colecionados

por Cristina evidenciam que Lacerda se reaproximava da esquerda.

Golpista radical em 64, ele fora simpatizante do PCB até os 25 anos.

Pouco antes de morrer, segundo Cristina, seu pai passava por uma

crise existencial, com altos e baixos, e tomava remédio para

emagrecer. Os problemas de saúde de Lacerda levam seu filho mais

velho, Sebastião, a acreditar na morte por infecção no coração.

Segundo ele, não há indícios que possam confirmar a hipótese de

atentado. “Meu pai estava com a saúde debilitada”, diz ele.

Ao contrário da morte de Lacerda, que nunca foi objeto de

investigação, o acidente que matou JK foi alvo de dois inquéritos

policiais. Na tarde de 22 de agosto de 1976, um domingo, o

ex­presidente deixou São Paulo e pegou a via Dutra em direção ao Rio

no Opala dirigido por seu motorista particular Geraldo Ribeiro. Por volta

de 18h, na altura do antigo quilômetro 165, em Resende (RJ), o carro

se desgovernou, cruzou a pista e bateu de frente com uma carreta, que

vinha em sentido contrário. Desde então, começaram as controvérsias.

JK teria sido vítima de um atentado ou foi apenas um acidente comum,

como concluiu a polícia em 1976 e 20 anos depois, quando foi reaberto

o inquérito?

Boato – A família nunca acreditou na versão oficial, de que o carro de

JK teria sido abalroado por um ônibus da Viação Cometa, e, por isso,

teria se desgovernado. Das três mortes, a de JK é a mais misteriosa.

Duas semanas antes do acidente, jornais, rádios e tevês haviam

recebido a notícia de que o ex­presidente havia morrido,

coincidentemente num desastre de carro.” O boato foi na verdade um

balão de ensaio lançado pelos militares linha dura que queriam testar a

reação do País à morte de JK”, afirmou Serafim Jardim, amigo do

ex­presidente e autor do livro Juscelino Kubitschek.: onde está a

36

Page 37: Texto representação comissão da verdade

verdade? Ao saber dos boatos, JK comentou com Serafim: “Estão

querendo me

matar, mas ainda não conseguiram.”

São inúmeras as falhas da investigação. Um dos fatos mais

intrigantes é o de que os peritos não incluíram nos dois laudos feitos

sobre o acidente as fotos dos corpos de JK e do motorista “por

recomendação de ordem superior”. “Até hoje essas fotos não

apareceram”, acrescentou Serafim. O amigo do ex­presidente ressalta

ainda que apenas 9 dos 33 passageiros do ônibus foram ouvidos pela

polícia e nenhum disse que o motorista Josias Nunes de Oliveira teria

batido no carro de JK. O juiz Gilson Vitorino, de Resende, também o

inocentou em sentença que consta do processo.

O segundo laudo do acidente foi assinado pelo perito Sérgio de

Souza Leite, que em 1995 foi demitido do Ins­ tituto de Criminalística

Carlos Éboli, do Rio de Janeiro, após ter sido alvo de denúncias contra

seus laudos no Ministério Público. O perito aposentado Alberto Carlos

Minas, que foi contratado pelos responsáveis pela reabertura do

inquérito, em 1996, rechaçou as perícias feitas na época da morte do

ex­presidente. “O ônibus não tocou no carro de JK. Se tivesse batido no

Opala, como a versão oficial sustenta, o ônibus teria atropelado o carro

onde estava Juscelino”, concluiu Minas. Permanece no ar a pergunta: O

que fez o carro de JK se desgovernar?

As investigações passaram longe de um fato importantíssimo,

comprovado por ISTOÉ na semana passada. Pouco antes de morrer, JK

parou por cerca de 40 minutos no Hotel Fazenda Villa Forte, em

Resende. O estabelecimento fica a menos de três quilômetros do local

do acidente e seu dono era o brigadeiro Newton Villa Forte, um dos

criadores do serviço secreto das Forças Armadas, embrião do SNI.

Mesmo tendo ido para a reserva em 1949, o oficial foi ativo no golpe de

37

Page 38: Texto representação comissão da verdade

64, servindo de elo entre generais paulistas e mineiros que marcharam

sobre o Rio a partir da Academia Militar das Agulhas Negras, em

Resende. Seria mera coincidência JK morrer minutos depois de deixar o

hotel de um integrante da comunidade de informações, responsável

pelos frequentes atentados contra os opositores do regime militar?

Perseguições – O brigadeiro Villa Forte morreu em 1981, mas seu

filho Gabriel, 46 anos, um dos atuais donos do hotel, lembra de seus

comentários sobre a passagem de Juscelino. “JK parou aqui para tomar

água ou chá e esticar as pernas nas alamedas”, diz Gabriel. Na versão

de seu pai, o brigadeiro reconheceu o ex­presidente e foi

cumprimentá­lo. Segundo Gabriel, o hotel abrigou várias reuniões de

oficiais de alta patente do serviço de inteligência, mas naquele dia não

teria havido reunião. “Meu pai estudou com Castello Branco e deu aulas

ao general João Figueiredo. Golbery esteve várias vezes aqui”, afirma.

O episódio surpreendeu Maristela Kubitschek, filha do ex­presidente.

“Nunca tinha ouvido esta história do hotel. A comissão é que vai poder

investigar”, disse Maristela, referindo­se à comissão aberta a pedido do

deputado Paulo Octávio (PFL­DF), genro de sua irmã Márcia.

A comissão que investiga a morte de Jango foi pedida pelo

deputado Miro Teixeira (PDT­RJ). A história oficial conta que o

ex­presidente morreu de ataque cardíaco em 6 de dezembro de 1976

em sua fazenda na Argentina. As dúvidas sobre o atestado de óbito –

que fala apenas em enfermidad (doença) – atormentam a viúva Maria

Thereza e os filhos João Vicente e Denise. Maria Thereza, 63 anos,

começou a desconfiar de assassinato em 1982, quando surgiram as

primeiras denúncias.

João Vicente, 43 anos, subsecretário de Agricultura do Estado do

Rio, acredita que o maior indício de que seu pai sofria perseguições foi

a “visita” no início de 1976 de três brasileiros desconhecidos ao

38

Page 39: Texto representação comissão da verdade

escritório de exportação onde Jango trabalhava, na avenida Corrientes,

centro de Buenos Aires. “Um comando como este só não levou Wilson

Ferreira Aldunate (candidato à presidência do Uruguai) porque ele fugiu

de pijamas para a embaixada do México”, relata. João Vicente recebeu

uma carta do pai em maio de 1976, alertando para a tensão em que

vivia: “Há dois dias sequestraram do hotel nossos amigos Michellini e

Gutierrez Ruiz (senador e deputado da Frente Ampla uruguaia,

assassinados). Uma monstruosidade que me leva a pensar em meu

futuro na Argentina.”

A família Goulart, que suspeita ter havido envenenamento ou

troca do remédio para o coração, se recusava a permitir a exumação do

corpo, mas mudou de idéia com as notícias sobre a Operação Condor.

João Vicente alega que antes não existia tecnologia capaz de detectar

com precisão a real causa da morte. “Nossa única condição à exumação

é ter certeza de que serão usadas as técnicas mais eficazes”, exige o

filho de Jango. Maria Thereza conta que nunca tinha lido o atestado de

óbito. “Apenas dobrei o papel e o guardei na gaveta. Só soube pelo

noticiário que o médico argentino escreveu apenas enfermidad. Acho

estranhíssimo não haver um diagnóstico correto.”

3.4. A MORTE DE EMANNUEL BEZERRA DOS SANTOS

Líder da Casa do Estudante e importante dirigente do Partido

Comunista Revolucionário (PCR), Emmanuel Bezerra dos Santos logo

chamou a atenção dos militares em sua luta pela democracia. Por isso,

acabou sendo assassinado pelo Coronel de infantaria Cúrcio Neto

(codinome Doutor Fernando) em meados de 1973.

O ex­preso político e jornalista Rubens Lemos teve a oportunidade de

conhecê­lo antes da tragédia e descreve parte da história desse

corajoso militante político:

39

Page 40: Texto representação comissão da verdade

Do alto da escadaria, no saguão de entrada, lá estava ele: EMMANUEL

BEZERRA. Com sua cara tipicamente interiorana, o líder da Casa do

Estudante falava agitado. As palavras fluíam fáceis e convincentes.

EMMANUEL esgrimia palavras como uma espada de fogo ­ num belo e

comovente discurso contra o regime militar que sufocava as liberdades

do povo. Chamava/conclamava os colegas para ­ ao lado do povo

organizado ­ combater a insanidade repressora patrocinada pelos

"donos do Brasil".

Policiais (pouco disfarçados) faziam plantão, dentro e fora do Atheneu.

Os olhos da Ditadura estavam voltados para aquele jovem nascido em

Caiçara.

Não haveria possibilidade de realização do debate para o qual haviam

me convidado os secundaristas. A música era outra; A voz de

EMMANUEL BEZERRA e, ele próprio, encarnando a resistência contra o

arbítrio.

Muitas vezes, mesmo que rapidamente, mantivemos contato.

EMMANUEL sempre se mantinha íntegro. Coragem e determinação à

flor da pele.

Um dia, a repressão iniciou a caçada sistemática ao jovem líder. Ele,

porém, já estava nos becos da clandestinidade. Transformara­se num

guerrilheiro. EMMANUEL, O COMBATENTE.

Em 1970, eu também procurado pela Ditadura, vi­me obrigado a correr

mundo. Escondido no Rio de Janeiro, pude saber notícias de

EMMANUEL: ele passara a ser um dos principais dirigentes do Partido

Comunista Revolucionário (PCR). Durante esse período, nunca cheguei

a me encontrar com ele.

40

Page 41: Texto representação comissão da verdade

De volta à penitenciária (Colônia Penal "João Chaves") ­ em Natal ­ RN,

ainda completamente massacrado pelas torturas sofridas no DOI ­

CODI, em Recife ­ PE, eu sabia, apesar de tudo, que EMMANUEL

BEZERRA fora assassinado, junto com Manoel Lisboa.

A informação, obtida nos porões do DOI ­ CODI, era estarrecedora:

EMMANUEL BEZERRA havia sido ­ poucos dias antes da minha chegada

àquele organismo de terror ­ submetido às mais torpes formas de

violência contra o ser humano. Todas elas comandadas, segundo a

informação pelo então Coronel Cúrcio Neto, codinome Doutro

Fernando.

Alguns detalhes macabros: EMMANUEL BEZERRA, enfrentando o

sadismo dos seus algozes, assumiu uma postura da mais alta

dignidade: sabendo de tudo (ou quase tudo), não disse nada, fazendo

relembrar a memorável figura de Jean Moulin, herói da Resistência

Francesa, conforme André Malraux, em seu livro ­ documento ‘Anti ­

Memórias".

Ensandecidos, os torturadores (teria sido, segundo me

disseram, o próprio "Doutro Fernando"), cortaram a pele de

EMMANUEL à base de tesoura. Sem qualquer assistência ou

acompanhamento médico, sobreveio a gangrena e,

posteriormente, o "tiro de misericórdia" desfechado pelo

Coronel Cúrcio Neto.

O que faço, agora, é repassar o que me foi contado dentro do "círculo

de ferro" do DOI ­ CODI, por fonte (preso político) que, não me parece,

tenha estado sob qualquer suspeita da esquerda revolucionária.

41

Page 42: Texto representação comissão da verdade

O fato: o que restou de EMMANUEL foi localizado em cemitério

clandestino situado a quase 4 mil kms de Recife ­ PE. Em princípio me

causou, no mínimo, estranheza. "Alguém terá mentido?" A reflexão foi

necessária e responsável para o que, hoje, me parece óbvio, em

termos de conclusão: EMMANUEL era dirigente de uma Organização

com profundas raízes (políticos, sociais e ideológicas) Nordestinas.

O grande aparato repressor não poderia facilitar e atuou de forma

profissional: translada­se o corpo para uma região, literal e

geograficamente distante e distinta (em termos de valores), e ter­se­á

eliminado ou embaralhado pistas. Uma questão de segurança, de

acordo com a ótica da "comunidade de informação e repressão" então

vigente. Infra ­ estrutura eles sempre tiveram para atingir os objetivos

desejados. Até hoje.

De qualquer maneira, o que sabemos (e sentimos) é que EMMANUEL

BEZERRA foi assassinado brutalmente por um SISTEMA cruel e

desumano.

EMMANUEL BEZERRA morreu como um paladino e paradigma da

liberdade do povo brasileiro. Por isso ­ e para revolta embutida pelos

seus assassinos ­ ele permanece vivo.

3.5. A MORTE DE DAVID CAPRISTANO

O Dirigente do Partido Comunista Brasileiro – PCB David Capistrano da

Costa (1913­1974) sempre foi atuante na história política de seu País.

Por ter participado do Levante de 1935, perdeu o posto de sargento da

Aeronáutica. Além da expulsão das Forças Armadas em decorrência do

supracitado episódio, foi condenado pelo Estado Novo a nada menos

que 19 (dezenove) anos de prisão.

42

Page 43: Texto representação comissão da verdade

Mesmo diante de sua injusta condenação, David não esmaeceu.

Participou da Guerra Civil Espanhola durante a ocupação nazista e

acabou sendo detido pelos alemães em um campo de concentração,

mas conseguiu ser libertado e retornou ao solo brasileiro.

De volta ao território nacional, foi contemplado com o benefício da

anistia em 1945, e dois anos depois ganhou a eleição para Deputado

Estadual em Pernambuco.

No dia 31 de março de 1964, David Capistrano teve um encontro com

Miguel Arraes, objetivando conseguir armas para resistir ao golpe

militar. Segundo Miguel Arraes, em depoimento a respeito:

"David, que tinha participado de outras lutas, achava

que uma resistência armada devia se dar. Eu fiz ver

a ele que tínhamos de medir as coisas de maneira

mais geral, e que nenhuma dessas possibilidades

poderia ser descartada, mas não poderíamos agir

sem uma coordenação qualquer fora do Estado. Eu

tinha sido encarregado por Jango de fazer um

balanço rápido da situação dos outros Estados, para

uma contraposição ao que estava ocorrendo no Sul.

Somente três governadores apoiavam o Governo:

eu, Seixas Dória e Bagder Silveira. Também não

tínhamos preparação, numa situação em que forças

federais e estaduais não era solidárias ao Governo.

Algumas medidas haviam sido tomadas, mas havia

condicionamento para um tipo de ação. Tínhamos

pouca gente na polícia. E o Palácio do Governo era

indefensável, pois só era apto para batalhas do

século XVII. Para resistir, tínhamos que sair. E para

sair, tínhamos que declarar, e já sair numa posição

43

Page 44: Texto representação comissão da verdade

de força. Falei com Jango, entre o dia 31 de março e

o 1o de abril, e vi que ele não resistiria. Desde a

crise da legalidade, Jango tinha optado por soluções

negociadas.” 8

À época, David Capristano também atuava na política pernambucana

dirigindo os jornais "A Hora" e "Folha do Povo".

No dia do golpe militar, David escondeu­se em uma mata próxima,

consoante explicou a Miguel Arraes algum tempo depois, quando do

exílio. Conseguiu, pois, livrar­se da prisão. A mesma sorte, contudo,

não tiveram sua esposa, Maria Augusta, e seu filho mais velho, David

Capistrano da Costa Filho, que ficaram presos durante alguns meses,

negando quaisquer acusações.

Em 1971, o PCB ordenou a ida de David Capristano à Tchecoslováquia,

a fim de protegê­lo da repressão ditatorial. Lá, redigia, junto com

outros indivíduos, a chamada Revista Internacional. Um ano depois, em

1972, David se encontraria novamente com Miguel Arraes, que saiu de

seu exílio, na Argélia, para rever o dirigente comunista na

Tchecoslováquia. No tocante a esse encontro, esclareceu

posteriormente Miguel Arraes:

"Notei que David ficava calado, só ouvindo, e pelo

que eu conhecia dele, deduzi que estava contrariado,

discordando. Depois que terminaram as

conversações, saí com David, que foi me mostrar a

cidade de Praga. Ele me disse que discordava das

posições colocadas por Giocondo. Não aceitava o tipo

de contemporização que estava sendo empreendida.

8 MELO, Marcelo Mário de. Ditadura militar. Disponível em: <http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapistrano/05.html> Acesso em: 19 de abril de 2012.

44

Page 45: Texto representação comissão da verdade

Achava que as condições internacionais, a exemplo

da luta no Vietnam, mostravam que não haveria

recuo das forças conservadoras no mundo. Também

não achava que se deveria precipitar a luta de

qualquer jeito, mas discutir para preparar uma

resistência mais decidida do que a que era feita

naquela oportunidade. Ele adotava, em grande

medida, as críticas de Marighela, embora discordasse

das soluções propostas por ele. Considerava

Marighela precipitado." 9

Em 1974, David Capistrano avisou à família que decidira enfim retornar

ao Brasil. E de fato o fez. Da Tchecoslováquia, chegou à cidade

uruguaia de Paso de Los Libres, fronteira com Uruguaiana, no Rio

Grande do Sul, onde havia sido montado um esquema da travessia

junto a outros militantes do PCB.

Houve dificuldades em passar David para o lado brasileiro, devido à sua

volumosa bagagem, com catorze quilos somente de livros. Alguns dias

depois, chegou a Uruguaiana um enviado do PCB, José Roman, que

transportaria David Capistrano a São Paulo. Partiram no dia 15 de

março de 1973 e nunca mais se soube a seu respeito de ambos,

provocando uma onda de desespero nos familiares respectivos.

Após o desaparecimento de David, foram continuamente

desaparecendo também outros dirigentes do PCB. Devido a esses

misteriosos desaparecimentos, formou­se o Grupo de Familiares de

Presos Políticos, que buscava o apoio da sociedade civil, da OAB e de

outros órgãos que pudessem contribuir para o esclarecimento dos

fatos, mas sem muito êxito.

9 MELO, Marcelo Mário de. Exílio e retorno. Disponível em: <http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapistrano/06.html> Acesso em: 19 de abril de 2012.

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Page 46: Texto representação comissão da verdade

A revista Veja, na edição de 18 de novembro de 1992, trouxe o

depoimento de Marival Dias Chaves do Canto, ex­sargento do DOI ­

Departamento de Operações Internas, relatando a chamada “Operação

Radar”, iniciada em 1973, através da qual o Exército objetivava dizimar

o PCB. Marival elucidou o destino de muitos desaparecidos políticos

brasileiros – entre eles, o de David Capistrano e José Roman, que

teriam sido presos em São Paulo e assassinados e esquartejados em

Petrópolis (Rio de Janeiro), em um centro de tortura do DOI existente

na área. Os restos corpóreos de ambos teriam sido ainda ensacados e

jogados em um rio próximo.

O filho de David Capistrano da Costa, David Capristano da Costa Filho,

percorreu trajetória política ideologicamente semelhante à do pai,

havendo sido também militante do PCB. Seguiu a carreira de médico

sanitarista, liderando uma das mais inovadoras e revolucionárias

experiências políticas na área da saúde. Por sua notória atuação,

ocupou cargos de Secretário de Saúde e, posteriormente, de Prefeito

de Santos (São Paulo), em 1992.

3.6. A MORTE DE JOAQUIM PIRES CERVEIRA

Primo de João Goulart, Joaquim Pires Cerveira ingressou no Partido

Comunista Brasileiro – PCB desde muito cedo. Logo chamou a atenção

dos militares por sua inteligência e coragem, que redundaram em um

fim trágico. Em depoimento publicado no jornal A Nova Democracia,

nº. 67 (julho/2010), Neusah Cerveira explica a verdadeira história do

assassinato do pai, perseguido pela Operação Condor:

Era poliglota e formou­se engenheiro em telecomunicações. Não tinha

interesse inicial em seguir a carreira militar, mas o fez com o intento de

sustentar sua família. Era um homem reto, de olhar franco e primava

pela justiça. Foi entusiasta e ativista da campanha O Petróleo é Nosso.

46

Page 47: Texto representação comissão da verdade

Era uma grande liderança entre os sargentos e ferroviários no Paraná.

Sua influência entre os trabalhadores e militares futuramente o

levariam a se candidatar como deputado estadual pelo PTB e depois

eleger­se como vereador pelo mesmo partido.

No final dos anos de 1950 meu pai foi convidado para a reunião da

Organização Latino­Americana de Solidariedade – OLAS. Essa

organização surgiu tendo como centro a revolução cubana e tinha como

objetivo difundir a sua linha, o foquismo, que tinha em Régis Debray

seu principal ideólogo. Ele voltou de lá decidido a aplicar a linha de

revolução de libertação de Cuba.

Nesse período, o major Cerveira já sustentava diversas contradições

com a direção do PCB e decidiu desligar­se de seu Comitê Central. Em

1958 chegaram a lhe designar para a direção do comitê regional de São

Paulo afim de que reconsiderasse suas posições, mas não foi o que

aconteceu. Após realizar diversos contatos e travar intenso debate, ele

e um grupo de militantes organizam a Frente de Libertação Nacional.

O golpe

Morávamos em Curitiba. Meu pai viajava muito e a frequência de

estrangeiros em nossa casa era muito grande. Todos os dias havia

reuniões em casa. Quando veio o golpe, meu pai ficou marcado como

líder da resistência, foi preso e julgado, bem como todos os seus

irmãos. Ele era vereador e teve seus direitos políticos cassados por dez

anos.

Depois de solto, permaneceu apenas seis meses em liberdade. Foi

novamente detido, dessa vez com maior brutalidade. Mas dessa vez

permaneceu apenas três dias preso, fugindo da prisão com o auxílio de

sargentos.

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Page 48: Texto representação comissão da verdade

A clandestinidade

No início de 1968 nossa casa foi novamente invadida. Minha mãe havia

saído com um de meus irmãos para fazer compras e ambos foram

sequestrados em uma ação conjunta da Polícia Federal, Exército e

Cenimar. Os militares invadiram nossa casa e eu fugi com meu irmão

mais novo. Os militares disseram que só libertariam minha mãe quando

meu pai se apresentasse. Meu pai estava em Curitiba reorganizando a

FLN.

Enquanto minha mãe e meu irmão eram torturados pelos militares,

meu pai anunciou que estava com a esposa de um coronel e só a

libertaria se minha mãe e meu irmão fossem libertados, caso contrário,

a mataria. Somente assim libertaram os dois.

Com o apoio de companheiros, a família deslocou­se para São Paulo e

de lá para o Rio de Janeiro. Passamos todos à clandestinidade, vivendo

em aparelhos (1). Minha mãe não aceitou ir para Cuba. Nessa época

meu pai mantinha contatos e fazia ações conjuntas com o Lamarca,

então comandante da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR. A VPR

preparou, em conjunto com a FLN, o sequestro do embaixador alemão

Von Holleben. A FLN tinha como tarefa a logística e a segurança da

operação. Dias antes do sequestro, um membro da VPR caiu e revelou

as informações sobre meu pai.

Uma operação para tirar minha família do Brasil foi montada. Mas

quando tudo estava pronto, o carro que levava minha mãe e meus

irmãos foi cercado.

Era abril de 1970. Todos foram levados para o DOI­CODI e torturados.

Meu pai estava preso em uma cela solitária e minha mãe foi colocada

na sala das "mulheres perigosas". Eu, a única em liberdade, fui deixada

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Page 49: Texto representação comissão da verdade

em uma igreja em Copacabana, onde seria apanhada. Sem saber da

prisão da minha mãe e irmãos, fiquei um dia inteiro esperando. O

padre estranhou minha demora e eu pensei que ele fizesse parte do

apoio. Contei tudo a ele, que foi para a sacristia. Cheguei mais perto e

ouvi que ele dava com a língua nos dentes sobre mim. Saí correndo e

cheguei até o Arpoador, quando senti que alguém me tocava os

ombros. Me assustei, mas eram novos companheiros do meu pai, que

me levaram para um local seguro.

[Somente depois Neusah saberia que o casal de companheiros com

quem estava eram Carlos Lamarca e Iara Iavelberg, dirigentes da VPR.

Dando continuidade aos planos de sequestrar o embaixador alemão e

trocá­lo por presos políticos do regime militar­fascista, Lamarca incluiu

o nome do Major Cerveira entre os prisioneiros a serem libertados e

enviados ao exílio na Europa.

Após esses acontecimentos, a esposa, (Maria de Lourdes Cerveira) do

Major Cerveira foi solta e durante quatro anos teve que ir

periodicamente ao quartel assinar papéis e prestar informações sobre

suas ocupações. Cerveira foi banido e demitido do exército.]

Luta sem fronteiras

[Neusah e seu pai só foram se reencontrar na França. De lá foram para

Cuba, Argélia e finalmente, no final de 1970, para o Chile, logo após a

vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais.]

Ele trabalhava junto ao Ministério das Telecomunicações. Frequentava

a casa de Allende. Meu pai viajava o tempo todo, ampliando seus

contatos, planejando ações. Era o responsável por uma gráfica

clandestina da FLN.

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Page 50: Texto representação comissão da verdade

[Quando do golpe militar de Pinochet em 1973, o Major Cerveira ficou

no palácio e resistiu aos ataques e bombardeios, saindo de lá apenas

quando se feriu. Na sua saída do Chile, ele foi ajudado pelos mapuches

e pelo povo andino, com quem mantinha contatos. Ele e mais 15

companheiros conseguiram se retirar de forma heroica. Após uma curta

passagem por Cuba, Cerveira foi para a Argentina. Reagrupando

companheiros brasileiros e de outros países da América Latina,

construíram a Frente de Esquerda Revolucionária.]

A Frente realizou pelo menos uma ação de maior envergadura na

Argentina e atribuem a ela a morte de meu pai.

A última vez que conversamos foi antes de Allende ser deposto. Um

amigo havia sido morto e perguntei porque não íamos embora. Ele

respondeu: "porque somos internacionalistas". Me recordo que na

última vez que estivemos na casa de Allende, meu pai defendia a

necessidade de armar o povo. Nos separamos na região fronteiriça, já

no Uruguai. Ele me disse que devia lutar por meus ideais.

Nas garras da Condor

[A ação da Frente levada a cabo na Argentina tratou­se do

justiçamento de um general. Cerveira foi entregue aos órgãos de

repressão através de um agente infiltrado. Era um militante próximo do

major, comprado pela Operação Condor].

Cerveira foi sequestrado às 18hs do dia 5 de dezembro de 1973 com

outro companheiro, João Batista de Rita Pereda. Antes de ser preso, ele

foi atropelado por uma equipe que, segundo relatos de testemunhas,

era comandada pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury. Depois de

atropelado o puseram em uma ambulância. Um avião fretado o levou

de Buenos Aires ao Galeão, no Rio de Janeiro.

Cerveira e Rita Pereda passaram um dia no DOI­CODI no Rio. Rita

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Page 51: Texto representação comissão da verdade

Pereda ficou no Rio e o Major Cerveira foi levado para o Paraná. Lá ele

foi brutalmente torturado e teve os olhos vazados. Em São Paulo, foi

novamente torturado sob as ordens do então coronel Brilhante Ustra.

O próprio Brilhante Ustra, agora general reformado, reconheceu que

meu pai foi preso e torturado em uma entrevista concedida a mim. Esta

entrevista foi reconhecida por ele, tem sua assinatura e está anexada à

minha tese de doutorado – detalha Neusah.

[Neusah iniciou um grande movimento de denúncias, acionou a Anistia

Internacional e a ONU. Um preso político testemunhou ter visto o Major

Cerveira nas dependências do quartel.]

Mas não conseguimos legalizar sua prisão. Mesmo ele tendo sido

reconhecido pelo capelão Major Barroso, que confirmou a sua prisão

em São Paulo. Os militares começaram a me seguir e a perseguir meus

familiares. Recebemos um "recado" de que devíamos sair de São Paulo.

Estava tudo perdido.

Uma militante presa na ocasião disse que viu meu pai muito maltratado

em uma acareação, ela disse que na madrugada do dia 13 de janeiro

de 1974 ele chegou em uma ambulância com o Ustra. Durante as

torturas, em um determinado momento o Ustra, que comandava as

seções de sevícias, deu um chute no rosto do meu pai já desacordado e

gritou: "esse não fala nada".

Essa é a marca que fica gravada da retidão, firmeza e dignidade do

meu pai. Assim que ele e o Rita Pereda foram presos, as quedas de

companheiros pararam imediatamente. Ninguém da Frente caiu mais

na Argentina ou em outros países. Eles não entregaram nada nem

ninguém.

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Page 52: Texto representação comissão da verdade

3.7 O CASO EDMUR PÉRICLES CAMARGO

Cumpre ainda destacar, dentre outras atrocidades imputadas aos

integrantes da Operação Condor, o caso Edmur Péricles Camargo.

Em 1970, o jornalista foi preso em Porto Alegre (RS), acusado de

assalto a bancos e do assassinato ao fazendeiro José Gonçalves

Conceição, três anos antes.

Contudo, em Janeiro de 1971, foi libertado e banido do Brasil junto

com outros 69 militantes em troca do embaixador suíço Giovanni

Bucher. Camargo resolveu, então, ir para o Chile, mas alguns meses

depois teria deixado o País para realizar um tratamento oftalmológico

no Uruguai. Seu vôo Chile­Uruguai fez escala em Buenos Aires

(Argentina), local onde foi novamente capturado.

Relatório secreto realizado pela Embaixada do Brasil no Uruguai detalha

o seqüestro em Buenos Aires (17 de maio de 1971, 3h da manhã) e a

transferência ilegal para o Rio de Janeiro através da FAB – Força Aérea

Brasileira (17 de maio de 1971, 6h da manhã) desse militante de

esquerda armada. À época, Edmur contava com 57 anos, sendo afiliado

ao PCB – Partido Comunista Brasileiro e à organização M3G – Marx,

Mao, Marighella e Guevara.

De acordo com Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos

Humanos do Rio Grande do Sul, “o relatório é um raro registro oficial

de uma operação clandestina da ditadura brasileira no exterior”.

Reportagem publicada na Folha de São Paulo (novembro/2011) afirma

ainda que:

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Page 53: Texto representação comissão da verdade

Os brasileiros já vinham monitorando o caso e

pediram um avião da FAB (Força Aérea Brasileira)

que chegou a Buenos Aires às 3h do dia 17 de maio.

Camargo foi embarcado às 6h e levado ao aeroporto

do Galeão, no Rio.

Documento citado no Correio Brasiliense em 2007

diz que Camargo foi preso graças a informações do

Centro de Informações do Exterior.

O relatório obtido pelo “Página 12” confirma que um

agente do Itamaraty que trabalha em Montevidéu foi

antes a Buenos Aires e alertou as autoridades

argentinas sobre a chegada de Camargo.

A descrição dos horários de chegada e saída do avião

da FAB [...] poderia ser usada pela Comissão da

Verdade para determinar as pessoas envolvidas no

seqüestro. 10

10 VALENTE, Rubens. In: Brasileiro foi seqüestrado na Argentina na ditadura. Folha de São Paulo, 19 de novembro de 2011.

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Page 54: Texto representação comissão da verdade

4. O SEQUESTRO DOS URUGUAIOS:

COMPROVAÇÃO DA REAL EXISTÊNCIA DA OPERAÇÃO CONDOR

Comumente, o episódio conhecido como o “Sequestro dos Uruguaios” é

considerado o acontecimento de maior repercussão em nível

internacional relativamente à Operação Condor. Resultou de uma

aliança entre as ditaduras uruguaia e brasileira em meados de

novembro de 1978.

Durante o incidente em comento, alguns oficiais do exército uruguaio

viajaram de modo clandestino para Porto Alegre (RGS), onde

sequestraram Universindo Rodríguez Diaz e Lilian Celiberti (além de

seus dois filhos), por serem militantes da oposição política uruguaia.

Ressalte­se que o referido seqüestro desfrutou da conivência do regime

militar brasileiro.

A operação, contudo, falhou devido a um telefonema anônimo. Um

jornalista e um fotógrafo foram ao local de realização do crime (o

apartamento do casal em Porto Alegre ­ RGS), onde, recebidos por

oficiais armados que acreditaram serem ambos companheiros deles,

mostraram Lílian Celiberti presa. Desafortunadamente, seu marido e

filhos haviam sido transferidos de forma ilegal para o Uruguai pouco

antes. Com a chegada dos repórteres, Lílian também foi

apressadamente transferida para o Uruguai.

Cerca de dois anos após o sucedido, em 1980, descobriu­se quem

tinham sido os delinqüentes responsáveis por manter presos Lílian e os

jornalistas em Porto Alegre: tratava­se nada menos do que dois

inspetores do Departamento de Ordem Política e Social – DOPS, João

Augusto da Rosa e Orandir Portassi Lucas. Ambos foram condenados

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Page 55: Texto representação comissão da verdade

pelo Poder Judiciário nacional. Desta feita, restava comprovada a

participação do governo brasileiro na Operação Condor.

Uma década depois, em 1991, o Governo do Rio Grande do Sul

reconheceu oficialmente o sequestro de Universindo Rodríguez Diaz,

Lilian Celiberti e seus dois filhos através do denominado “Sequestro dos

Uruguaios” e os indenizou, fato que incentivou o Uruguai a fazer o

mesmo logo em seguida.

Portanto, viável afirmar que os únicos sobreviventes e oficialmente

reconhecidos por terem experimentado os efeitos da Operação Condor

são o supramencionado casal, junto com as suas duas crianças.

5. A MATRIZ VERDE­AMARELA DA OPERAÇÃO CONDOR

Nilson Mariano, no livro As Garras do Condor assim pontifica:

“A população brasileira ignorava os focos de guerrilhas, as

torturas, as prisões arbitrárias, os assassinatos, os exílios. Não

sabia dos subterrâneos encharcados de sangue. O governo de

Emílio Médici foi insuperável na propaganda e na dissimulação da

realidade. Isolou e desacreditou os grupos de esquerda,

bombardeando­os, pelo rádio e pela televisão, com alertas de que

eram terroristas interessados em vender o país a comunistas

estrangeiros. Ao mesmo tempo, oferecia o “milagre econômico”.

Os ricos andavam de Dodge Dart e bebiam o uísque escocês

Ballantines’s, enquanto a classe média comprava a casa própria

pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) a prestações mensais.

OS pobres eram levados a acreditar que deveriam esperar o “bolo

crescer”, para então ganhar fatias de prosperidade. O ufanismo

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Page 56: Texto representação comissão da verdade

aumentou quando a seleção de futebol conquistou o

tricampeonato no México, em 1970. Médici recepcionou os heróis

do Tri, ergueu a taça Jules Rimet, arriscou umas embaixadas com

a bola. As rádios tocavam sem parar “pra frente Brasil, do meu

coração...”.

O controle do país foi garantido pela Lei de Imprensa (1967), pelo

Ato Institucional Número 5 (o AI­5, de 1968, que fechou o

Congresso Nacional, decretou intervenção nos estados e

municípios e conferiu poderes absolutos) e pela Lei de Segurança

Nacional (1969). A serviço do governo, as televisões exibiam

lemas do tipo “Brasil, ame­o ou deixe­o”. Quem discordasse

sofria a pena de banimento (proibição de morar no país durante

certo tempo, o que equivalia a um exílio forçado). O banimento

não está previsto na Constituição, mas a ditadura baixou atos

institucionais para expulsar os indesejáveis.

A população desconhecia que o Brasil se associara à Operação

Condor. Eram secretas as viagens ao Paraguai do então chefe do

Serviço Nacional de Informações (SNI), General João Figueiredo,

para dar palestras sobre segurança nacional. Era clandestina a

colaboração brasileira com as polícias secretas do Cone Sul para

espionagens conjuntas, pedidos de captura e troca de

prisioneiros.

A performance da ditadura na Operação Condor teria sido menos

ativa, na comparação com os outros sócios. Documentos

divulgados pelo Departamento de Estado dos EUA, referentes à

CIA, revelaram que o Brasil teria aderido apenas à fase inicial da

aliança terrorista, aquela da formação do banco de dados sobre

“comunistas e subversivos” e do intercâmbio de informações. Os

generais brasileiros, na avaliação dos EUA, não quiseram integrar

56

Page 57: Texto representação comissão da verdade

os esquadrões para caçar inimigos políticos além das fronteiras

da América do Sul. No início de 1976, um agente da CIA baseado

no Brasil relatou a situação para Washington:

­ Apesar de o Brasil ter aderido ao acordo original entre a

Argentina, o Uruguai, o Chile, a Bolívia e o Paraguai para

trocar informações sobre terrorismo e subversão,ele ainda

não havia concordado em participar de ações da Operação

Condorna Europa, e limitaria sua contribuição até então ao

provisionamento de equipamentos de comunicação para o

Condortel, a rede de comunicações estabelecida pelos

países do Condor [...].

Um outro documento do Departamento de Estado dos EUA, de

outubro de 1976, reafirmou que o Brasil continuava reticente em

participar dos comandos condor de extermínio. Na época, os

militares estavam afrouxando a repressão no país. Um trecho do

informe norte­americano: ”Brasil e Bolívia estão começando a

participar, mas têm reservas por uma ou outra razão. O ímpeto

original para cooperação entre os países do Cone Sul

provavelmente veio do Chile [...]”.

O inegável foi que o Brasil atuou fora de fronteiras. Militantes

políticos brasileiros foram mortos no Chile e na Argentina. Na

dança de cadáveres, seis argentinos desapareceram depois de

sequestrados em território brasileiro.

Em 1999, o juiz federal argentino Cláudio Bonádio enviou carta

rogatória à Justiça do Brasil, pedindo informações sobre os

seqüestrados de Lorenzo Ismael Viñas, Horacio Domingo

Campiglia e Monica Susana de Binstock, ocorridos em 1980, no

Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Os outros três

desaparecidos argentinos já haviam sido reconhecidos (ver o

57

Page 58: Texto representação comissão da verdade

capítulo referente à Argentina). Na carta rogatória, o juiz

argentino perguntou:

Se existiu o “Plano Condor”, destinado à perseguição de

opositores políticos ais regimes militares imperantes na América

do Sul, nas décadas de 70 e 80.

Em caso positivo, se eram permitidos atos além das fronteiras

dos países acordados.

Se houve atos concretos na fronteira Brasil­Argentina (sobretudo

em Paso de los Libres­Uruguaiana) e no aeroporto do Rio de

Janeiro.

Sobre as detenções sofridas por Horacio Domingo Campiglia,

Monica Susana de Binstock e Lorenzo Ismael Viñas no território

do Brasil.

O pedido do Juiz Bonadío foi originado pelo depoimento do

presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH),

Jais Krischke, que apresentou a lista dos comandantes da cadeia de

repressão nos Estados onde ocorreram os sequestros dos três

argentinos. No Rio de Janeiro, eram o General Euclydes Figueiredo

Filho (Comandante do I Exército e irmão do ex­presidente João

Figueiredo), o Coronel Agnello de Araújo Britto (Superintendente da

Polícia Federal) e o General Edmundo Murgel (Secretário Estadual de

Segurança Pública). No Rio Grande do Sul, General Antônio Bandeira

(comandante do III Exército), Coronel João Leivas Job (Secretário

de Segurança Pública), Coronel Luiz Macksen de Castro Rodrigues

(Superintendente da Polícia Federal), Delegado de Polícia Marco

Aurélio da Silva Reis (Diretor do Dops), Major Átila Rohrsetzer

(Chefe da Divisão Central de Informações­ DCI) e Coronel Carlos

Alberto Ponzi (Chefe Regional do Serviço Nacional de Informações –

SNI). Coordenando todos, o Chefe do SNI no país, General Octávio

Medeiros.

58

Page 59: Texto representação comissão da verdade

A iniciativa da justiça argentina causou alvoroço e revelações. Numa

entrevista ao repórter José Mitchell, do Jornal do Brasil,o Coronel

Carlos Alberto Ponzi (ex­chefe do SNI no Rio Grande do Sul)

confirmou que as polícias do Cone Sul fizeram “convênios” para

troca de informações e pedidos de captura. O depoimento do

coronel:

­ Foi uma guerra suja e feroz nos dois lados. As esquerdas

se uniram e atuavam de forma internacional nos nossos

países. Cuba mandava dinheiro para financiar a guerrilha,

havia campos de treinamento e ataques da esquerda no

país. Então, não deveríamos nos defender?

Especificamente sobre a Operação Condor, o Coronel Ponzi dise o

seguinte ao repórter do JB:

­ Esta questão da área internacional era mais da agência

central do SNI, não das agências regionais. Era mais de

Brasília. Mas estes convênios, esta troca de informações

era conhecida por todo mundo [...]. Eles queriam

implantar uma outra ideologia em nossos países e

derrubar os governos. Deveríamos, então, permitir a

entrada deles no nosso e nos outros países?

O pedido da Justiça argentina foi encaminhado para atendimento. O

Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o cumprimento da carta

rogatória. O governo federal mandou abrir arquivos. A resposta oficial

foi de que não havia provas e documentos sobre a cooperação entre os

países.

Mas os familiares dos desaparecidos argentinos não desistiram.

Depositaram as esperanças na Justiça da Itália, que abriu

investigações, em 1999, sobre as vítimas com descendência italiana

59

Page 60: Texto representação comissão da verdade

(casos de Horacio Campiglia e Lorenzo Viñas, sumidos no Brasil). O

procurador italiano Giancarlo Capaldo apurava o envolvimento de 50

autoridades do Chile, da Argentina e do Brasil nos crimes. Os acusados

brasileiros eram os mesmos que foram citados pelo juiz argentino

Bonádio, incluindo o ex­Presidente João Figueiredo (morto depois de

iniciado o processo). Não havia previsão sobre o desenrolar da ação na

Itália.

A influência brasileira sobre os vizinhos armados ocorreu a partir do

golpe de1964. A ditadura paraguaia começou 10anos antes, mas foi o

Brasil o grande preceptor na América do Sul, por ter aplicado e melhor

entendido a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) como fórmula de

reger os destinos da nação. Inspirado nos Estados Unidos, que criaram

a DSN depois da II Guerra Mundial, o Brasil adotou o modelo à

perfeição. Em 1949, fundou a Escla Superior de Guerra (ESG), para

imitar o National War College de Washington. Chefes militares

acreditavam que a Guerra Fria também afetava o país.

Internamente, como vigorava a censura aos meios de comunicação, a

ditadura só divulgava o que interessava à contrapropaganda

psicológica. Seguidamente os jornais estampavam anúncios, com

fotografias: “Estes terroristas são procurados”. As conflagrações, como

a guerrilha no Araguaia, eram ocultadas. De 1972 até 1974, as Forças

Armadas mobilizaram milhares de soldados (foram 3,2 mil somente no

primeiro dos três ataques) na região do Araguaia (Estado do Pará),

para desmantelar a guerrilha do Partido Comunista do Brasil (PC do B).

Foram mortos pelo menos 58 guerrilheiros, a quase totalidade dos que

havia se embrenhado na selva a partir de 1966, tentando obter o apoio

de camponeses para sublevar o país com o “exército popular”. Dezenas

de moradores foram presos e torturados, pela simples suspeita de

terem colaborado.

60

Page 61: Texto representação comissão da verdade

A ditadura brasileira montou uma poderosa máquina de repressão para

eliminar cerca de 40 grupos e facções de esquerda. A maioria tinha

origens no Partido Cominista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, sob

inspiração da Revolução Russa de 1917. As organizações que

despontaram:

A Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada pelo ex­PCB

Carlos Marighella, morto em novembro de 1969, em São

Paulo. A ALN e o MR­8 (Movimento Revolucionário 8 de

Outubro) ficaram conhecidos internacionalmente quando

sequestraram o embaixador norte­americano Charles Burke

Elbrick, em setembro de 1969.

A VPR, do Capitão Carlos Lamarca, assumiu a autoria do

sequestro de três diplomatas estrangeiros (Japão, Alemanha e

Suíça) no Brasil, para forçar o governo militar a libertar

prisioneiros políticos.

Também fustigaram a ditadura, na linha de frente, o PC do B,

a VAR­Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária –

Palmares),o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o

Comando de Libertação Nacional (Colina), o Partido Operário

Revolucionário Trotskysta (port), o Molipo de Jane Vanini e

outros.

A partir de 1969, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica reforçaram os

Departamentos de Ordem Política e Social (Dops). Os militares

passaram a atuar pelos DOIs (Departamentos de Operações Internas) e

Codis (Centros de Operações de Defesa Interna). Foi criada a Operação

Bandeirantes (Oban), em São Paulo, para unificar as ações.

Paralelamente, havia intensa propaganda para realçar as realizações do

governo e acobertar a convulsão interna. O próprio Presidente Médici

definiu, numa declaração de março de 1973, o clima de alheamento

reinante no país:

61

Page 62: Texto representação comissão da verdade

­ Sinto­me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão para

assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves,

agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o

Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu

tomasse um tranqüilizante, após um dia de trabalho.

O governo brasileiro decidiu reconhecer e indenizar as vítimas da

chamada guerra suja. Em 1995, foi criada a Comissão Especial de

Mortos e Desaparecidos Políticos, pela Lei 9.140. Cada família atingida

estava recebendo em torno de R$ 100 mil a título de reparação. Os

familiares queriam a investigação dos crimes e a punição dos culpados,

mas o governo negou, alegando que a Lei de Anistia (1979) impedia

eventuais julgamentos.

5.1 A Ajuda do Brasil ao Chile de Pinochet

O Jornal Folha de São Paulo do dia 12 de dezembro de 2011 traz uma

matéria com o seguinte teor:

“O Brasil forneceu um amplo suporte econômico e diplomático aos

primeiros anos da ditadura do general Augusto Pinochet no Chile.

É o que revela uma série de 266 telegramas confidenciais produzidos

por diplomatas brasileiros entre 1973 e 1976.

Os telegramas sigilosos foram enviados e recebidos pela Embaixada do

Brasil em Santiago do Chile e liberados pelo Itamaraty à Folha, que os

divulga no site do projeto “Folha Transparência”.

Os documentos indicam que a ajuda brasileira veio logo após o golpe

liderado por Pinochet (1915­2006) em 11 de setembro de 1973.

62

Page 63: Texto representação comissão da verdade

Em novembro daquele ano, o Brasil, também, governado por um

ditador, Emílio Médici (1905­1985), liberou US$ 50 milhões ao Banco

Central chileno para estimular exportações.

O socorro veio a pedido do Chile, que disse, por meio da chancelaria,

se encontrar em “grave situação”.

O Brasil abriu linhas de financiamento na Cacex, a Carteira de Crédito

para Exportação do Banco do Brasil, para empresários interessados em

vender para o Chile, estimulou a venda de açúcar, ônibus, caminhões e

fragatas e acelerou a aquisição de cobre das jazidas chilenas.

De tal forma que passou, em 1976, ao posto de maior comprador

externo de cobre desbancando a Alemanha. “É momento de

concentrarmos aqui nossas compras de cobre. Isso nos dará aqui uma

influência e uma expressão desvinculadas de quem governe o país”,

orientou o embaixador brasileiro.

No campo diplomático, o Brasil, a pedido da Junta Militar Chilena,

ocupou o status oficial de “protetor dos interesses do Chile” no México,

na Polônia e na Iugoslávia.

Como esses países condenaram o golpe chileno, O Brasil assumiu a

tarefa de representar o regime de Pinochet desde negociar a chegada

de presos políticos a quitar compromissos do serviço diplomático.

5.2 Troca de Favores

Os Telegramas também revelam o socorro que o Brasil deu ao Chile

durante discussões na Organização dos Estados Americanos a propósito

da situação dos direitos humanos no Chile – relatório de agosto contou

3.225 mortos ou desaparecidos políticos. Nos foros internacionais, a

63

Page 64: Texto representação comissão da verdade

diplomacia brasileira se absteve ou votou com o Chile em resoluções

que pudesses constranger Pinochet.

“O projeto inicial bastante forte de moção condenatória do governo

chileno foi ‘aguado’ por iniciativa das delegações brasileira e

argentina”, diz um telegrama de 1975 sobre sessão no Parlamento

Latino­Americano.

Em contrapartida, Chile apoiou inúmeros candidatos brasileiros a

cargos em organismos internacionais.

Os telegramas descrevem ainda como o Brasil operou para financiar

aquisição, pelo Chile, de um sistema completo de comunicações para a

Interpol do Chile, cujo objetivo é capturar foragidos da Justiça de

outros países.

Documentos liberados pelos EUA dizem que uma das principais

ajudas do Brasil à Operação Condor, um plano dos países

latino­americanos para eliminar opositores políticos, foi montar

uma rede de telecomunicações.”

6. JUSTIÇA ESPANHOLA

No livro As Garras do Condor, Nilson Mariano nos relata:

“A Operação Condor despertou a atenção do mundo em 16 de

outubro de 1998, quando o ditador chileno Augusto Pinochet foi

detido em Londres, a pedido da Justiça da Espanha. Pinochet

realizava na Inglaterra tratamento médico de uma hérnia.

Imaginava­se um estadista em visita a um país amigo. Para o juiz

64

Page 65: Texto representação comissão da verdade

espanhol Baltasar Garzón, era um criminoso contra a

humanidade.

Os países do Cone Sul, encerrado o período autoritário, ficaram

amarrados a leis de ponto final e anistia, que mandavam

esquecer o passado e perdoar os comandantes do genocídio

político. Mesmo que o pêndulo do destino voltasse a convergir

para o lado luminoso da História, as democracias continuavam

fragilizadas. Era penoso conciliar o luto dos familiares das

vítimas, enquanto torturadores caminhavam livremente pelas

ruas. O alento por justiça veio do Exterior. Movido pela

constatação de que aproximadamente 700 espanhóis (o número

oscilava de acordo com o avanço das investigações) foram

eliminados no Chile e na Argentina, Baltasar Garzón abriu

processo contra os ditadores. Pinochet, em especial, por ter sido

o mentor da Operação Condor.

O Juizado Número 5 da Audiência Nacional de Madri acusou

Pinochet de organizar a multinacional do terror, em associação a

outros regimes da força da América do Sul. Garzón sustentou que

a Operação Condor foi criada para “viabilizar a repressão violenta

contra as vítimas” além das fronteiras, consolidar os objetivos

“político­econômicos” das ditaduras e “instaurar o terror” entre as

populações. O que disse o magistrado:

[...] é uma organização delitiva, apoiada nas próprias

estruturas institucionais, cuja única finalizade será

conspirar, desenvolver e executar um plano criminoso

sistemático de detenções ilegais, sequestros, torturas

seguidas de morte, expulsões de milhares de pessoas e

desaparições seletivas [...].

65

Page 66: Texto representação comissão da verdade

Augusto Pinochet acabou não sendo extraditado para a Espanha,

escapou de sentar no banco dos réus. Além das injunções diplomáticas,

argumentou­se que não teria condições físicas nem mentais de

suportar o julgamento. A imagem era de um idoso enroscado na

cadeira de rodas, bengala ortopédica à mão, rosto pendente e

demonstrando alheamento.

Ao desembargador no Chile, em 3 de março de 2000, Pinochet

transfigurou­se. Tão logo pisou em solo pátrio, levantou­se da cadeira

de rodas, caminhou por conta própria, abraçou familiares, acenou para

amigos. Emblematicamente, recebeu o primeiro cumprimento do

Comandante­chefe do Exército, Ricardo Izurieta, cercado por “boinas

negras”, a tropa de elite.

Os 503 dias da prisão Pinochet indicaram que o manto da impunidade

encurtara. A Justiça do Chile, encorajada pelo exemplo da Espanha e

pela transição democrática no país, abriu processo contra o ex­ditador,

Ele perdeu a imunidade que havia se autoconcedido como senador

vitalício. O Juiz Juan Guzmpan Tapia chegou a ordenar a prisão

domiciliar de Pinochet. Mas o julgamento não se consumou, a Suprema

Corte decidiu que o réu não tinha condições de saúde.

O mesmo Baltasar Garzón se voltou contra os outros tiranos do Cone

Sul. Indiciou 98militares e policiais da Argentina, inclusive o General

Jorge Rafael Videla, comandante da primeira junta de governo, por

crimes de lesa­humanidade. Se viajassem para o Exterior, poderiam

ser detidos, como ocorreu a Pinochet. Garzón também quis interrogar

95 militares uruguaios, mas esbarrou na falta de autorização do

governo do Uruguai.

O autor deste livro conversou com Baltasar Garzón, em maio de 2001.

Alegando razões éticas de juiz, ele disse que não poderia se manifestar

66

Page 67: Texto representação comissão da verdade

sobre os intentos de julgar ditadores do Cone Sul. No entanto,

respondeu a uma pergunta, sobre a possibilidade de os países

sul­americanos conseguirem punir crimes de tortura, genocídio e

terrorismo:

­ É difícil que um país, qualquer que seja, tenha a possibilidade de

julgar esses tipos de crimes quando ainda está vivo o regime político

que permitiu os mesmos. Agora, quando termina essa situação, abre­se

a possibilidade de fazê­lo. Se o novo sistema jurídico e político

garantem o princípio de independência e imparcialidade dos juízes,

essas possibilidades se tornam mais concretas.”

Recentemente, em 17 de janeiro de 2012, Baltasar Garzón foi a

julgamento na Suprema Corte da Espanha acusado de extrapolar os

limites de sua jurisdição. A ação contestava o modo pelo qual o juiz

conduziu uma investigação de corrupção doméstica, já que emitiu

ordens para o uso de grampos telefônicos a fim de descobrir o teor das

conversas entre três acusados e seus respectivos advogados no interior

de uma prisão.

O juiz espanhol, considerado uma espécie de herói dos direitos

humanos internacionais desde que realizou o indiciamento do

ex­ditador chileno Augusto Pinochet, tentou, através de sua defesa,

realizar uma série de manobras processuais objetivando evitar a

condenação.

Segundo o Jornal de Commercio, em reportagem publicada no dia

posterior ao julgamento de Baltasar Garzón:

O caso de corrupção está centrado em uma rede de

homens de negócios que são acusados de pagar

membros do conservador Partido Popular – agora no

poder no governo central – em troca de lucrativos

67

Page 68: Texto representação comissão da verdade

contratos do governo nas regiões de Madri e

Valência. Garzón argumentou que ordenou os

grampos em 2008 por achar que as pessoas que

estavam visitando os dois principais suspeitos no

caso de corrupção estavam agindo como correios

para receber instruções sobre lavagem de dinheiro.

Se for condenado, ele poderá enfrentar uma

sentença máxima de afastamento da banca por 17

anos. Ele está com 56 anos, e os juízes na Espanha

costumam se aposentar aos 70. 11

7. JUSTIÇA ITALIANA

Existem documentos que comprovam que o procurador Giancarlo

Capaldo, magistrado italiano, investigou a ação de militares argentinos

paraguaios, chilenos e brasileiros que torturaram e assassinaram

cidadãos italianos na época das ditaduras militares da América Latina.

Capaldo conduziu inclusive um processo contra o general do exército

chileno Augusto Pinochet devido ao desaparecimento em Santiago de

vários cidadãos ítalo­chilenos.

No caso de acusados brasileiros de assassinato, sequestros e torturas,

havia uma lista com o nome de onze brasileiros além de muitos

militares de altas patentes dos outros países envolvidos na operação.

Segundo as palavras do Magistrado, em 26 de outubro de 2000, "[...]

Nada posso confirmar nem desmentir porque até dezembro militares

11 Juiz Garzón no banco dos réus. Jornal do Commercio, 18 de janeiro de 2012.

68

Page 69: Texto representação comissão da verdade

argentinos, brasileiros, paraguaios e chilenos serão submetidos a

julgamento penal [...]”

Ainda em dezembro de 2000, a Justiça italiana iniciou o julgamento

dos onze brasileiros, todos militares e policiais. Eram acusados pelo

desaparecimento de três argentinos descendentes de italianos. Os

brasileiros eram atuantes da Operação Condor. Por segredo de justiça,

os resultados dos julgamentos e as punições dos criminosos, se houve,

não foram noticiados. Em dezembro de 2007 foram decretadas por

autoridades italianas, prisões preventivas de diversos envolvidos, entre

eles os já falecidos João Figueiredo (ex­presidente) e Octavio Medeiros

(ex­chefe do SNI).

Recentemente, no início de 2012, o mesmo procurador Giancarlo

Capaldo, argumentando que a Lei de Anistia brasileira não têm vigência

no território italiano,

“[...] abriu processo contra 146 militantes

sul­americanos envolvidos no desaparecimento de

25 cidadãos italianos no âmbito da Operação

Condor. Entre eles, 13 brasileiros envolvidos no

seqüestro de dois ítalo­argentinos.

Seis dos acusados, inclusive o então ditador João

Figueiredo, já faleceram, mas os demais terão de

suportar o constrangimento do julgamento e possível

condenação. Entre eles, o coronel Carlos Alberto

Ponzi, alvo de recente protesto em Porto Alegre, que

chefiava o SNI gaúcho em 16 de junho de 1980,

quando Lorenzo Ismael Viñas foi raptado em

Uruguaiana.” 12

12 Caça aos algozes da Condor. Revista Carta Capital, 18 de abril de 2012.

69

Page 70: Texto representação comissão da verdade

Tais brasileiros podem ser os primeiros a serem condenados em virtude

da Operação Condor. Apesar disso, em havendo a condenação, é

bastante improvável que o Brasil aceite extraditá­lo, tendo em vista

inclusive as disposições constitucionais contrárias a tal pretensão.

Inegável, constatar, n’outra senda, que o julgamento em questão pode

ajudar a esclarecer uma série de fatos até então obscuros, propiciando

uma profícua interação com as investigações a serem realizadas pela

Comissão da Verdade Brasileira.

70

Page 71: Texto representação comissão da verdade

8.DECISÕES JUDICIAIS

DAS JUSTIÇAS DA ARGENTINA E DO CHILE

8.1. ARGENTINA

Em julho de 2001, foi decretada a prisão preventiva do ex­ditador

argentino Jorge Rafael Videla (que governou o País de 1976 a 1981),

acusado de envolvimento na Operação Condor, tendo praticado

supostamente os crimes de formação de quadrilha, privação ilegal de

liberdade e tortura.

O processo havia sido aberto há cerca de dois anos e meio atrás,

sendo resultante da denúncia de parentes de Cristina Carreño Arraya

(chilena) e Simon Riquelo (uruguaios), seqüestrados em julho de 1978

e desaparecidos desde essa época.

Videla foi o primeiro ex­presidente dos países latino­americanos

participantes da Operação em lume cuja prisão foi efetivamente

realizada por causa dela. O magistrado que ordenou a prisão de Videla

mandou embargar ainda US$ 1 milhão em bens seus.

Os crimes cometidos pelo ex­presidente prevêem 5 (cinco) a 20

anos de prisão. Contudo, como o mesmo já conta com mais de 70

anos, possui direito a prisão domiciliar.

O juiz federal que mandou expedir o mandado explicou que “[...]

ficou provado que havia um acordo espúrio entre os governos militares

do Cone Sul para eliminar, por meio da chamada Operação Condor,

asilados estrangeiros opositores dos regimes. Temos elementos de

convicção suficientes para considerar provada a formação de quadrilha

e para provar que Videla foi um de seus componentes".

71

Page 72: Texto representação comissão da verdade

Em suas investigações, Corral considerou o Brasil co­participante

da Operação Condor. Apesar disso, no processo não consta nenhum

brasileiro como acusado.

No mesmo ano da prisão preventiva de Videla (2001), o juiz

federal Rodolfo Canicoba Corral já requisitara a prisão e a imediata

extradição de integrantes da Operação Condor de outras nacionalidades

e situados fora dos limites de seu País: Alfredo Stroessner

(ex­presidente do Paraguai asilado no território brasileiro desde 1989),

bem como de Manuel Contreras (ex­chefe da polícia secreta chilena ­

Dina). Além disso, o Uruguai também negou seu pedido de prisão de

um ex­policial e de três ex­militares envolvidos na Operação em

questão.

Frise­se que o ex­ditador Jorge Rafael Videla, antes de ter sua

prisão preventiva decretada devido ao suposto envolvimento na

Operação Condor, já estava cumprindo prisão domiciliar desde julho de

1998 por ter sido considerado culpado pelo desaparecimento de bebês

durante a ditadura.

8.2. CHILE

Em setembro de 2009, a justiça chilena ordenou a prisão de nada

menos que 129 (cento e vinte e nove) ex­militares e policiais

considerados participantes da Operação Condor (operação de caráter

supranacional que também contou com membros do Brasil, além do

Paraguai, Uruguai, Argentina, Bolívia e Peru). Eles teriam planejado

uma série de ataques políticos esquerdistas à época da ditadura do

general Augusto Pinochet.

72

Page 73: Texto representação comissão da verdade

Todos esses ex­militares e policiais pertenciam à Dina (Dirección

de Inteligencia Nacional), polícia política chilena em 1974­1977, à

época do governo de Pinochet.

A Dina foi um órgão similar a outros órgãos ditatoriais brasileiros,

como os antigos Oban e Dói­Codi. Segundo estimativas oficiais, em

1973, suas ações resultaram na morte de mais de 3 (três) mil pessoas,

logo após a derrocada do governo popular de Salvador Allende.

Os ex­militares e policiais são acusados do crime de seqüestro

qualificado. Embora os corpos das vítimas nunca tenham sido

encontrados, o desaparecimento das mesmas nas circunstâncias em

que ocorreram sujeitam os supostos responsáveis a cumprir a pena por

tal feito.

Além de terem participado da Operação Condor, os agentes do

Dina também estariam envolvidos na chamada Operação Colombo e

em um caso conhecido como “Calle Conferencia”. Este último resultou

no assassinato de integrantes diversos do Partido Comunista.

Impende destacar que tais crimes de grave violação de direitos

humanos, a exemplo do supramencionado seqüestro qualificado, são

considerados imprescritíveis e, portanto, a punição pela realização dos

mesmos pode ocorrer a qualquer tempo.

A despeito da importância do esclarecimento dessas

circunstâncias e da aplicação de punições aos responsáveis, essa foi a

primeira vez que muitos dos criminosos da ditadura chilena foram

convocados para interrogatório e elucidação de alguns acontecimentos

realizados durante o governo Pinochet.

73

Page 74: Texto representação comissão da verdade

9. O DIREITO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos

Humanos proferiu sentença no caso Gomes Lund versus Brasil

objetivando censurar as graves violações de direitos humanos ocorridas

à época da Guerrilha do Araguaia.

Alegou­se, em suma, que o Brasil possui responsabilidade pelo

desaparecimento de nada menos que 60 (sessenta) pessoas, bem

como por infringir os deveres de investigação e persecução criminal dos

responsáveis por alguns delitos. A referida Corte estabeleceu, em

decorrência de tais fatos, diversas obrigações de fazer para o nosso

País e destacou a impossibilidade de concessão de anistia.

A seguir, destacamos alguns trechos da retrocitada decisão:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação

e a sanção por graves violações de direitos humanos carecem de

efeitos jurídicos e não podem ser obstáculo para a investigação dos

fatos referentes ao caso, nem para a identificação e punição dos

responsáveis e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto em

outros casos de grave violação de direitos humanos consagrados na

Convenção Americana ocorridos no Brasil (parágrafo 171 e ponto

resolutivo 3 da sentença).

Cabe ao Brasil investigar e determinar os autores materiais e

intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução

extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos

74

Page 75: Texto representação comissão da verdade

humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado

ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá

aplicar a Lei da Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma

outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa

julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente de responsabilidade

para eximir­se dessa obrigação, nos termos dos Parágrafos 171 a 179

da Sentença (parágrafo 256, alínea b).

Ainda segundo a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

no caso Gomes Lund versus Brasil, cabe às autoridades brasileiras:

a) levar em conta o padrão de violações de direitos

humanos existente na época, a complexidade dos fatos

apurados e o contexto em que os fatos ocorreram;

b) evitar omissões no recolhimento da prova e seguir todas as

linhas lógicas de investigação;

c) identificar os agentes materiais e intelectuais do

desaparecimento forçado e da execução extrajudicial de

pessoas;

d) não aplicar a Lei de Anistia aos agentes de crimes;

e) não aplicar prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa

julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de

responsabilidade criminal para eximir­se do cumprimento

da obrigação determinada pela Corte;

f) garantir que as autoridades competentes realizem, ex

officio, as investigações criminais correspondentes à

obrigação determinada pela Corte e responsabilizem os

75

Page 76: Texto representação comissão da verdade

agentes culpados. Para este feito, devem ter a seu alcance

e utilizar todos os recursos logísticos e científicos

necessários para recolher e processar as provas; devem ter

acesso garantido à documentação e informação necessárias

para elucidar os fatos e concluir, com presteza, as

investigações e ações criminais que esclareçam o que

ocorreu à pessoa morta e às vítimas de desaparecimento

forçado;

g) garantir a segurança das pessoas que participem da

investigação, tais como os familiares das vítimas, as

testemunhas e os operadores de justiça;

h) assegurar a não realização de atos que impliquem

obstrução ao andamento do processo investigativo.

Vejamos as conclusões do parecer de Luiz Flávio Gomes e Valério

Mazzuoli acerca da aplicação do Direito Internacional dos Direitos

Humanos pelos Tribunais Brasileiros:

“Ao cabo desta exposição teórica, cabe sumariamente concluir o

seguinte:

1. Que a internacionalização dos direitos humanos é uma

realidade incontestável que marca a era da

pós­modernidade, caracterizada pela globalização (inclusive

da dignidade humana).

2. Que esse corpus júris específico chamado Direito

Internacional dos Direitos Humanos – goza de absoluta

primazia sobre a legislação doméstica naquilo que é mais

benéfico ao ser humano sujeito de direitos (princípio

internacional pro homine). Ou seja, esse conjunto

normativo internacional de proteção possui caráter sui

76

Page 77: Texto representação comissão da verdade

generis. Suas normas possuem hierarquia diferenciada no

plano doméstico (estão acima de todas as leis) e com este

não podem ser confundidas.

3. Toda a produção legislativa ordinária (de qualquer Estado)

que faça parte do sistema interamericano de direitos

humanos está sujeita, doravante, a dois principais tipos de

controle: (a) o de constitucionalidade e (b) o de

convencionalidade.

4. Constitui obrigação impostergável de todos os juízes e

tribunais locais (nacionais) fazer desses dois tipos de

controle uma realidade. Os juízes e tribunais locais estão,

inclusive, obrigados a exercer ex officio tais controles,

segundo o entendimento da Corte Interamericana de

Direitos Humanos.

5. Para a proteção, no nosso entorno regional, dos direitos

humanos previstos nos tratados internacionais, qualquer

ser humano lesado pode acionar o sistema regional

interamericano de direitos humanos, visto que essa tutela

já não está regida pelo princípio do domestic affair, mas

sim do international concern. A proteção dos direitos

humanos convencionados conta com o amparo

complementar do direito internacional.

6. O Brasil tem a obrigação de cumprir a decisão da Corte

Interamericana de Direitos Humanos de 24 de novembro de

2010, proferida no “Caso Araguaia”. O nosso país foi

declarado responsável pelo desaparecimento de dezenas de

pessoas e, agora, por força da sentença da Corte citada

tem o dever de investigar e, se for o caso, processar

responsáveis pelos referidos delitos contra a humanidade,

não tendo nenhum valor jurídico a Lei de Anistia brasileira

(embora validada pelo STF em abril de 2010).

77

Page 78: Texto representação comissão da verdade

7. No Estado de Direito Internacional (defendido, entre outros,

por Luigi Ferrajoli) é preciso respeitar a pluralidade de

fontes normativas e promover, entre elas, o devido

“diálogo” (Erik Jayme) capaz de fazer prevalecer a norma

mais favorável à tutela dos direitos humanos (princípio pro

homine).

8. A jurisprudência brasileira já deu (exuberante)

demonstração da força normativa do direito internacional

dos direitos humanos ao cuidar do tema da prisão civil do

depositário infiel. A nossa Suprema Corte (No RE

466.343/SP) não só reconheceu a hierarquia superior desse

ramo do Direito como acabou editando a Súmula Vinculante

25, para proibir definitivamente a prisão civil de depositário

infiel no País, qualquer que seja a modalidade do depósito.

9. Na esteira desse precedente pós­moderno do STF

espera­se, agora, que seja cumprida sem resistência e

dentro de prazo razoável a decisão da Corte Interamericana

no ‘Caso Araguaia’.”

78

Page 79: Texto representação comissão da verdade

10. A IMPUNIDADE FERE A DEMOCRACIA

Santiago A. Canton (Secretário Executivo da Comissão Interamericana

de Direitos Humanos) em artigo publicado na Folha de São Paulo, no

dia 11/12/2011, defende que:

“São muitos os fatores necessários para a construção de um

Estado de Direito Sustentável. Mas existe um que é

indispensável: a justiça pelas violações dos direitos humanos e

pela destruição do sistema democrático. A impunidade corrói a

sociedade com um todo e constrói sociedades injustas, desiguais,

discriminatórias, em que o ideal de progresso e igualdade é

superado por estruturas de poder formais e informais que

protegem e beneficiam os setores mais favorecidos e prejudicam

os mais vulneráveis.

Nesse oceano de impunidade, o fator que provoca maior dano é aquele

que impede que sejam punidas as pessoas que reinaram sobre a vida e

a morte dos latino­americanos e destruíram a democracia. A

impunidade que protege os que assassinaram e torturaram milhares de

pessoas e proibiram os povos de decidir seu próprio destino.

Em nossa região, estão sendo dados passos muito positivos para pôr

fim a essa impunidade. Por meio de leis e processos históricos,

nacionais e internacionais, foram abertos processos contra as pessoas

acusadas de graves violações dos direitos humanos. A Argentina anulou

completamente as leis de anistia e se encontra em um processo,

verdadeiro exemplo para o mundo, em que está levando a julgamento

todos os responsáveis pelas violações dos direitos humanos.

Neste novo aniversário do Dia Internacional dos Direitos Humanos,

podemos comemorar o fato de que são cada vez mais os países que

79

Page 80: Texto representação comissão da verdade

aceitam que o combate à impunidade por violações dos direitos

humanos é um pilar fundamental da democracia e do Estado de Direito.

A busca incansável por justiça para as vítimas de direitos humanos

assentou as bases para um Estado de Direito duradouro. Mas não

podemos descansar. Nossa história ensina que o que está em jogo é

importante demais e que o pêndulo não se detém facilmente.”

Uma reportagem da Revista Piauí cujo objetivo é esclarecer “como um 13

acordo entre o governo e a cúpula das Forças Armadas e entre o PT, o

PSDB, e o DEM, impede que a Comissão da Verdade julgue militares e

policiais que torturaram, mataram e desapareceram com corpos

durante a ditadura”, explana que:

No Brasil, as forças políticas dominantes, à

esquerda e à direita, sempre agiram no sentido de

evitar as punições. Isso ficou claro para os juízes na

Costa Rica durante o depoimento das vítimas, que

relataram a dificuldade das famílias em obter informações

sobre os mortos e desaparecidos. Elizabeth Silveira teve

seu irmão, Luiz René, de 21 anos, um estudante de

medicina do Rio de Janeiro, morto na guerrilha. Seu

corpo nunca apareceu. Ela disse à Corte que todas as

informações que as famílias conseguiram até hoje

foram obtidas por meio de relatos de sobreviventes

e de testemunhas civis que se dispuseram a falar.

Nenhuma informação oficial foi disponibilizada.

“Passados mais de trinta anos, os militares se recusaram

a fornecer documentos que ajudem a esclarecer as

mortes não só dos guerrilheiros do Araguaia, mas de

todos os opositores do regime”, disse.

13 Revista Piauí, Edição nº. 64, Ano 6, Janeiro/2012, p. 28.

80

Page 81: Texto representação comissão da verdade

Jurista de renome, Fábio Konder Comparato remete à impunidade e

critica a alegação dos militares de que a Comissão da Verdade apenas

seria imparcial se investigasse tanto o lado dos repressores quanto o

dos reprimidos. Traz, para tanto, à tona as estatísticas oficiais da

Comissão de Mortos e Desaparecidos:

Quais são esses dois lados? Um deles conta com 20 mil

presos políticos, alguns torturados até a morte; 354

pessoas sumariamente executadas e cujos cadáveres

continuam desaparecidos. Mais de 10 mil pessoas que

responderam a inquéritos policiais militares, 707

denunciadas e processadas criminalmente por crimes

contra a segurança nacional, 130 banidos, quase 5 mil

funcionários públicos demitidos. Isso é um lado.

[...]

Agora, o outro lado. Apenas um militar foi submetido a

um inquérito policial militar, que foi arquivado por falta

de provas. 14

O psicólogo paulista Paulo César Endo, que realizou perícia para avaliar

a extensão dos traumas psicológicos causados nos familiares de vítimas

da Guerrilha do Araguaia, acredita que uma das conseqüências da

impunidade é o aumento da violência policial sobre a população

economicamente menos favorecida e, por conseqüência, mais

desprotegida. 15

Ainda segundo Endo, como raramente há punição aos criminosos, as

pessoas continuam torturando sem temer as conseqüências de seus

terríveis feitos e surgem inclusive grupos de extermínio:

“Nunca nenhum agente do Estado foi condenado por

tortura. O máximo que se condena é dona de casa que

14 Revista Piauí, Edição nº. 64, Ano 6, Janeiro/2012, p. 32. 15 Revista Piauí, Edição nº. 64, Ano 6, Janeiro/2012, p. 36.

81

Page 82: Texto representação comissão da verdade

tortura empregada. [...] No Brasil, dos 26 estados,

dezesseis têm grupos de extermínio mapeado e nada se

faz a respeito.” 16

16 Revista Piauí, Edição nº. 64, Ano 6, Janeiro/2012, p. 36.

82

Page 83: Texto representação comissão da verdade

11. INTOLERÂNCIA À TORTURA – PEDAGOGIA

Paulo Sérgio Pinheiro, professor titular de Ciência Política da USP,

diplomata e ex­Secretário de Estado de Direitos Humanos, ministra, no

Terceiro Seminário Internacional ­ Polícia e Sociedade Democrática: O

Estado Democrático de Direito e as Instituições Policiais (2002),

realizado em Porto Alegre (RS), uma verdadeira aula acerca da

necessidade de intolerância à tortura:

Antes de tudo, cumpre lembrar que durante séculos a tortura foi usada

como meio de prova admitido pelo direito. No excelente e clássico

"livro­reportagem" de Pietro Verri, “Observações sobre a Tortura”, um

alerta da ineficácia da tortura como meio de prova, é apresentada a

montagem de um processo judicial, todo ele feito a partir de confissões

obtidas por meio da tortura. [...]

Torturar não é investigar, mas desumaniza não só a vítima

como também o torturador."A tortura subverte a própria lógica

do aparato estatal, que de guardião da lei e assegurador de

direitos transforma­se em violador da lei e aniquilador de

direitos." [...]

A investigação policial, quando feita nos limites impostos pela lei

funciona como um processo de comunicação. [...] Quando a

comunicação torna­se impossível deixamos de considerar o outro como

sujeito, o destituímos de sua inerente dignidade, está preparado o

terreno para a violência. Quando toleramos o outro: dialogamos.

Quando não toleramos o outro: torturamos. A intolerância, que

foi um dos temas principais, está entre as causas primeiras da

tortura. [...]

83

Page 84: Texto representação comissão da verdade

Tolerar é pois suportar a existência do outro e respeitar seu diferente

pensamento, sua outra forma de agir. A tolerância é o primeiro e

imprescindível passo para o reconhecimento do outro como sujeito.

Isso só acontecerá no terreno da hospitalidade. Afirma Edgard Morin:

"Escrevo que o ser­sujeito nasceu num universo físico, que ignora a

subjetividade que fez brotar, que abriga e, ao mesmo tempo, ameaça.

O indivíduo vivo vive e morre neste universo onde só o reconhecem

como sujeito alguns congêneres vizinhos e simpáticos. É, portanto, na

comunicação amável que podemos encontrar o sentido de nossas

vidas."

Mas a tolerância não é a garantia de um mundo justo e fraterno.

Para atingirmos esse fim é preciso muito mais... Todavia ela é o

mínimo que se pode exigir para a existência de uma convivência

relativamente pacífica na sociedade. Ao tolerar somos capazes de

conviver com o diferente, aturamos o diálogo e podemos "agir

conjuntamente" o que para Hannah Arendt é o fator essencial para

geração de poder. Um poder baseado na tolerância, na convivência e

no agir conjunto. Não um poder baseado na subjugação, um poder que

transforma o ser humano em lixo não­reciclável.

O poder baseado no "agir conjunto" é a forma de poder mais

adequada a uma democracia participativa como a brasileira.

Tolerância, convivência, hospitalidade esses valores que

informam a democracia participativa "deveriam estar refletidos

no nosso policiamento e na governabilidade" (PSP; 1998). "A

própria noção da forma de policiamento contribui para formação de

uma cultura democrática." (PSP; 1998) Acredito que nenhuma

instituição é mais central para o sucesso da consolidação do estado de

direito do que a polícia. Se isso é verdade, porque a polícia continua a

torturar? Uma das respostas está na intolerância que brutaliza e

84

Page 85: Texto representação comissão da verdade

desumaniza as classes populares. Quando se perde a tolerância,

perdemos toda e qualquer possibilidade de contato sadio entre seres

humanos. Desconsiderar­se o outro, transforma­o em algo descartável,

ejetável, passível e possível de ser torturado.

Uma perversa lógica da intolerância tem dominado a história de nossa

República. Tortura­s,e já que o poder do Estado brasileiro não é o

poder não­violento de Hannah Arendt, mas é o poder que se baseia na

violência, na destruição intencional do outro. Ao torcer e quebrar o

outro, numa situação de completa falta de igualdade de armas, eu

arranco­lhe a humanidade pois ­de forma prática ­ não reconheço seu

merecimento ao respeito, sua inerente dignidade. [...]

Para nosso espanto, atualmente alguns ousam defender a idéia de que

em casos de extrema urgência (determinado prisioneiro possui uma

informação que pode salvar a vida de dezenas de pessoas) a prática da

tortura física e psicológica é legítima. Usa­se o argumento de que em

algumas circunstâncias, a tortura é um mal menor. Essa toada aparece

este ano [2002] na revista Atlantic Monthly ao refletir que sob

condições extremas e em circunstâncias desesperadoras não seria o

caso de se repensar o recurso à tortura: "Algumas vezes em más

circunstâncias boas pessoas devem fazer coisas más" obviamente,

torturar.

Em outro artigo recente na revista Newsweek um editorialista abre sua

alma lembrando "que não podemos legalizar a tortura; é contra os

valores americanos. Mas ao mesmo tempo em que continuamos

protestando contra os abusos aos direitos humanos no mundo,

precisamos manter uma mentalidade aberta sobre certas medidas de

combate ao terrorismo, como interrogatórios psicológicos sancionados

pela justiça" e propõe a transferência dessa sale besogne, esse

trabalho sujo, para "nossos aliados menos escrupulosos".

85

Page 86: Texto representação comissão da verdade

Mas não é exatamente o que vem acontecendo faz muito tempo na

cena internacional do século XX as grandes potências delegavam a

ditaduras da periferia o papel de contenção do comunismo? Não é o

que acontece em várias novas democracias, como a nossa, em que as

elites brancas instrumentalizam as polícias para sua proteção fechando

aos olhos para a tortura? Essa hipocrisia vem ocorrendo faz décadas.

Essa "mentalidade aberta" para a tortura é mais perigosa ainda que

sua defesa aberta que poucos ousam fazer. Essa legitimação da tortura

como tema de debate muda dramaticamente o pano de fundo dos

pressupostos e opções ideológicas.

O problema aqui, como bem apontou o filósofo esloveno Slavoj Zizek, é

de pressupostos éticos fundamentais: é claro que se pode legitimar a

tortura em relação a benefícios de curto prazo (salvar centenas de

vidas) mas e as conseqüências em longo prazo para nosso universo

simbólico ? Onde devemos parar? Porque não torturar criminosos

graves, um pai que raptou seu filho da ex­mulher? A idéia de que

depois de deixar o gênio sair da garrafa a tortura possa ser mantida em

um nível "razoável" é a pior ilusão liberal.".

Legitimar a prática da tortura e dos tratamentos desumanos,

sob qualquer circunstância, é dar a possibilidade da desrazão e

da irracionalidade dirigir a vida de homens e de mulheres. É

trocar qualquer indício de humanidade pela mais abjeta

barbárie.

A crença na serventia da tortura é uma doença crônica brasileira que

acomete os aparelhos policiais em todo o país. A Constituição de 1988

com sua carta de direitos do artigo 5 e garantias fundamentais

condenam de forma enfática e veemente sua prática. Passados 14 anos

da promulgação da Constituição de 1988, e 17 anos do final do regime

86

Page 87: Texto representação comissão da verdade

militar constatamos que a tortura deixou de ser praticada contra os

prisioneiros políticos strictu sensu pelo simples fato não haver mais

esses. Entretanto, hoje, nos manicômios judiciais, penitenciárias,

delegacias, instituições para adolescentes em conflito com a lei e

demais lugares de encarceramento a tortura e as mais variadas formas

de tratamentos desumanos continuam a ser perpetrados contra a

população pobre e miserável, as "classes torturáveis" como as chamava

o escritor Graham Greene. [...]

Na época da ditadura militar o perverso argumento para justificar a

tortura pelos aparelhos de repressão paralelos, como os DOI­CODI, era

a necessidade de preservar a segurança nacional. Nos seus vinte e três

anos de existência da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e

nos quatorze do Núcleo de Estudos da Violência tem sido

exaustivamente documentada a prática sistemática da tortura no

Brasil, defendido suas vítimas e tentado contribuir para responsabilizar

seus perpetradores. Policiais, juízes, promotores e advogados devem

saber que a tortura é proibida em qualquer circunstância pela lei

internacional; que seu uso faz minar a autoridade e a legitimidade dos

governos;que ela é perpetrada no contexto de outras graves violações

de direito humanos; que ela não é um meio confiável para recolher

informação sobre crimes e criminosos; que as tentativas de justifica­la

não passam de ardis psicológicos para permitir os perpetradores

desconectarem sua consciência moral de atos de extrema violência. E

no entanto ela persiste .A tortura não pode ser justificada em

nenhuma circunstância porque ele faz impugnar o mero sentido

de nossa existência na nave Terra e que impede toda a

pretensão de sermos humanos. [...]

Como disse meu antigo colega o relator especial para tortura da ONU,

Nigel Rodley, a tortura é um "crime de oportunidade", que pressupõe a

certeza da impunidade. O combate a esse crime exige, assim, a adoção

87

Page 88: Texto representação comissão da verdade

pelo Estado de medidas preventivas e repressivas. De um lado, é

necessárias a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a

'oportunidade' de torturar, garantindo a transparência do sistema

prisional­penitenciário. Por outro, a luta contra a tortura impõe o fim da

cultura de impunidade, exigindo do Estado rigor no dever de investigar,

processar e punir seus perpetradores." [...]

88

Page 89: Texto representação comissão da verdade

12. DOS PEDIDOS

Do exposto, requer:

Diante de todo o narrado e, inclusive, do relatório final da Comissão

Nacional da Verdade – CNV, ora anexado, que declara a existência da

Operação Condor no Brasil, sejam abertos inquéritos ou

investigações e ajuizadas medidas judiciais cabíveis em

desfavor dos sobreviventes participantes da referida operação

Condor no Brasil, que foram responsáveis por vitimar os líderes

opositores.

Outrossim, solicita­se que identificados os responsáveis pelas

atrocidades cometidas, especifique em pormenores, tanto quanto

possível, as punições pelos mesmos aplicadas (prisões arbitrárias,

assassinatos, exílios, torturas, desaparecimentos, etc.) e revele as

identidades de suas vítimas.

Afinal, somente através do esclarecimento dos verdadeiros fatos

ocorridos no período ditatorial e dos indivíduos os quais ordenaram sua

execução e/ou propriamente os efetivaram será possível viabilizar a tão

almejada reconciliação nacional.

89

Page 90: Texto representação comissão da verdade

13. REQUERIMENTO DE PROVAS

Requer a produção de todas as provas em Direito admitidas, como

oitiva de testemunhas, depoimentos pessoais, requisição de

documentos, entre outras.

14. REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS

Requisitar:

1. Relatório secreto realizado pela Embaixada do Brasil no Uruguai

em 1971 detalhando o seqüestro e a transferência ilegal através

da FAB (Força Aérea Brasileira) de Edmur Péricles Camargo,

jornalista e militante de esquerda armada até então

desaparecido;

2. Carta de 28 de agosto de 1975 enviada pelo então coronel

Manuel Contreras Sepúlveda, diretor da DINA — Directoría de

Inteligencia Nacional, serviço secreto chileno, ao general João

Figueiredo, então chefe do SNI — Serviço Nacional de

Informações, em que o militar chileno responde a carta do colega

brasileiro, de 21 de agosto do mesmo ano;

3. Que se oficie ao Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia e a

Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos

solicitando documentos em que, porventura, esteja citada a

Operação Condor.

90

Page 91: Texto representação comissão da verdade

4. Que se oficie as Comissões da Verdade do Chile, Argentina e

Uruguai, ou aos respectivos Estados Federais, requisitando cópia

das conclusões das Comissões da Verdade.

15. DA PROCEDIMENTALIZAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

Caso essa Procuradoria ache necessário, a presente representação

pode ser desmembrada, criando­se processos específicos para fatos ora

denunciados e que ainda surgirão no transcorrer dela e que merecem

ser apurados para uma maior eficácia da investigação.

Recentemente, países vizinhos noticiaram, mais uma vez, a punição de

responsáveis por assassinatos na Operação Condor, que aconteceu em

diversos países da América Latina. O Brasil não pode se esquivar desse

tema.

Afinal,

“A verdade cura. Às vezes ela arde, mas cura”.

Desmond Tutu, Bispo sul­africano, Prêmio Nobel da Paz, que presidiu a

Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul.

Nestes termos,

Pede deferimento e Justiça!

Recife, 08 de julho de 2016.

Instituto Miguel Arraes ­ IMA Antônio Ricardo Accioly Campos

Presidente

Antônio Ricardo Accioly Campos OAB/PE 12.310

[email protected]

91

Page 92: Texto representação comissão da verdade

16. REFERÊNCIAS

LIVROS E RELATÓRIOS:

Circunstâncias políticas quando da morte do ex­presidente

Juscelino Kubitschek. Comissão externa da Câmara dos Deputados,

Abril/2001.

CONY, Carlos Heitor; LEE, Anna. O Beijo da Morte. São Paulo: Editora

Objetiva, 2003.

MARIANO, Nilson. As Garras do Condor. São Paulo: Editora Vozes,

2003.

Memorial David da saúde e da vida. Governo de Pernambuco, 2007.

Relatório final (Série Ação Parlamentar; n. 243). Brasília: Câmara

dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004.

REPORTAGENS E ARTIGOS DE JORNAIS E REVISTAS:

AMORIM, Celso. "A Comissão da Verdade é o epílogo da transição

democrática”. Entrevista publicada na Revista Istoé nº. 2212, Edição

de 04 de abril de 2012.

92

Page 93: Texto representação comissão da verdade

AQUINO, WILSON. In: Ditaduras Entrelaçadas: documentos

comprovam que a participação de autoridades brasileiras na Operação

Condor foi fundamental para a aliança dos governos totalitários da

América Latina. Revista Istoé, Edição de 30 de novembro de 2011.

CANTON, Santiago. Artigo publicado na Folha de São Paulo, 11 de

dezembro de 2011.

MOTA, Uraniano. In: JK: Acidente ou atentado?

Jornal A Nova Democracia, nº. 67 (julho/2010).

NASSIF, Luís. In: O guerreiro da saúde. Folha de São Paulo, 14 de

novembro de 2000.

VALENTE, Rubens. In: Brasileiro foi seqüestrado na Argentina na

ditadura. Folha de São Paulo, 19 de novembro de 2011.

A Comissão da Verdade contra as mentiras. Jornal do Commercio,

2012.

Juiz Garzón no banco dos réus. Reportagem publicada no Jornal do

Commercio, 18 de janeiro de 2012.

Caça aos algozes da Condor. Revista Carta Capital, 18 de abril de

2012.

Revista Istoé, Edição de 04 de junho de 2000.

Revista Piauí, Edição nº. 64, Ano 6, Janeiro/2012.

93

Page 94: Texto representação comissão da verdade

Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso

Gomes Lund versus Brasil, 24 de novembro de 2010.

ENDEREÇOS ELETRÔNICOS:

CUNHA, Luiz Cláudio. Comissão da verdade: o torturador da

Presidente vai depor? Disponível em:

<http://www.projetosterapeuticos.com.br/noticia01.php?id=252>

Acesso em: 13 de dezembro de 2011.

MELO, Marcelo Mário de. Ditadura militar. Disponível em:

<http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapi

strano/05.html>. Acesso em: 19 de abril de 2012.

MELO, Marcelo Mário de. Exílio e retorno. Disponível em:

<http://www.alepe.pe.gov.br/sistemas/perfil/parlamentares/DavidCapi

strano/06.html>. Acesso em: 19 de abril de 2012.

Família denuncia assassinato de João Goulart por

envenenamento. Disponível em:

<http://www.apn.org.br/apn/content/view/66/44/>. Acesso em: 06 de

dezembro de 2011.

94

Page 95: Texto representação comissão da verdade

17. ANEXOS

LEI Nº. 12.528, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011.

Cria a Comissão Nacional da Verdade no

âmbito da Casa Civil da Presidência da

República.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso

Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Art. 2o A Comissão Nacional da Verdade, composta de forma pluralista, será integrada por 7 (sete) membros, designados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos.

§ 1o Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que:

I ­ exerçam cargos executivos em agremiação partidária, com exceção daqueles de natureza honorária;

II ­ não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão;

III ­ estejam no exercício de cargo em comissão ou função de confiança em quaisquer esferas do poder público.

§ 2o Os membros serão designados para mandato com duração até o término dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a qual será considerada extinta após a publicação do relatório mencionado no art. 11.

95

Page 96: Texto representação comissão da verdade

§ 3o A participação na Comissão Nacional da Verdade será

considerada serviço público relevante.

Art. 3o São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: I ­ esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves

violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o; II ­ promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de

torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III ­ identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV ­ encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V ­ colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI ­ recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII ­ promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

Art. 4o Para execução dos objetivos previstos no art. 3o, a Comissão Nacional da Verdade poderá:

I ­ receber testemunhos, informações, dados e documentos que lhe forem encaminhados voluntariamente, assegurada a não identificação do detentor ou depoente, quando solicitada;

II ­ requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo;

III ­ convocar, para entrevistas ou testemunho, pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados;

IV ­ determinar a realização de perícias e diligências para coleta ou recuperação de informações, documentos e dados;

V ­ promover audiências públicas;

VI ­ requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situação de ameaça em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade;

96

Page 97: Texto representação comissão da verdade

VII ­ promover parcerias com órgãos e entidades, públicos ou

privados, nacionais ou internacionais, para o intercâmbio de informações, dados e documentos; e

VIII ­ requisitar o auxílio de entidades e órgãos públicos.

§ 1o As requisições previstas nos incisos II, VI e VIII serão realizadas diretamente aos órgãos e entidades do poder público.

§ 2o Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo.

§ 3o É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade.

§ 4o As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório.

§ 5o A Comissão Nacional da Verdade poderá requerer ao Poder Judiciário acesso a informações, dados e documentos públicos ou privados necessários para o desempenho de suas atividades.

§ 6o Qualquer cidadão que demonstre interesse em esclarecer situação de fato revelada ou declarada pela Comissão terá a prerrogativa de solicitar ou prestar informações para fins de estabelecimento da verdade.

Art. 5o As atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção de sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoas.

Art. 6o Observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia, criada pela Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002, e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, criada pela Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995.

Art. 7o Os membros da Comissão Nacional da Verdade perceberão o valor mensal de R$ 11.179,36 (onze mil, cento e setenta e nove reais e trinta e seis centavos) pelos serviços prestados.

§ 1o O servidor ocupante de cargo efetivo, o militar ou o empregado permanente de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal, designados como membros da Comissão, manterão a remuneração que percebem no órgão ou entidade de origem acrescida da diferença entre esta, se de menor valor, e o montante previsto no caput.

97

Page 98: Texto representação comissão da verdade

§ 2o A designação de servidor público federal da administração

direta ou indireta ou de militar das Forças Armadas implicará a dispensa das suas atribuições do cargo.

§ 3o Além da remuneração prevista neste artigo, os membros da Comissão receberão passagens e diárias para atender aos deslocamentos, em razão do serviço, que exijam viagem para fora do local de domicílio.

Art. 8o A Comissão Nacional da Verdade poderá firmar parcerias com instituições de ensino superior ou organismos internacionais para o desenvolvimento de suas atividades.

Art. 9o São criados, a partir de 1o de janeiro de 2011, no âmbito da administração pública federal, para exercício na Comissão Nacional da Verdade, os seguintes cargos em comissão do Grupo­Direção e Assessoramento Superiores:

I ­ 1 (um) DAS­5;

II ­ 10 (dez) DAS­4; e

III ­ 3 (três) DAS­3.

Parágrafo único. Os cargos previstos neste artigo serão automaticamente extintos após o término do prazo dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, e os seus ocupantes, exonerados.

Art. 10. A Casa Civil da Presidência da República dará o suporte técnico, administrativo e financeiro necessário ao desenvolvimento das atividades da Comissão Nacional da Verdade.

Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo de 2 (dois) anos, contado da data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, ao final, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações.

Parágrafo único. Todo o acervo documental e de multimídia resultante da conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade deverá ser encaminhado ao Arquivo Nacional para integrar o Projeto Memórias Reveladas.

Art. 12. O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta Lei.

Art. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 18 de novembro de 2011; 190o da Independência e 123o da República.

DILMA ROUSSEFF Jose Eduardo Cardozo

Celso Luiz Nunes Amorim Miriam Belchior

Maria do Rosário Nunes

98

Page 99: Texto representação comissão da verdade

99

Page 100: Texto representação comissão da verdade

LEI Nº. 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011.

Regula o acesso a informações previsto no

inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o

do art. 37 e no § 2o do art. 216 da

Constituição Federal; altera a Lei no 8.112,

de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei

no 11.111, de 5 de maio de 2005, e

dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro

de 1991; e dá outras providências.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso

Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1o Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem

observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o

fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art.

5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição

Federal.

Parágrafo único. Subordinam­se ao regime desta Lei:

I ­ os órgãos públicos integrantes da administração direta dos

Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e

Judiciário e do Ministério Público;

II ­ as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as

sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta

ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Art. 2o Aplicam­se as disposições desta Lei, no que couber, às

entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de

ações de interesse público, recursos públicos diretamente do

orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo

100

Page 101: Texto representação comissão da verdade

de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos

congêneres.

Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as

entidades citadas no caput refere­se à parcela dos recursos públicos

recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a

que estejam legalmente obrigadas.

Art. 3o Os procedimentos previstos nesta Lei destinam­se a

assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser

executados em conformidade com os princípios básicos da

administração pública e com as seguintes diretrizes:

I ­ observância da publicidade como preceito geral e do sigilo

como exceção;

II ­ divulgação de informações de interesse público,

independentemente de solicitações;

III ­ utilização de meios de comunicação viabilizados pela

tecnologia da informação;

IV ­ fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na

administração pública;

V ­ desenvolvimento do controle social da administração pública.

Art. 4o Para os efeitos desta Lei, considera­se:

I ­ informação: dados, processados ou não, que podem ser

utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em

qualquer meio, suporte ou formato;

II ­ documento: unidade de registro de informações, qualquer que

seja o suporte ou formato;

III ­ informação sigilosa: aquela submetida temporariamente à

restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a

segurança da sociedade e do Estado;

IV ­ informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural

identificada ou identificável;

V ­ tratamento da informação: conjunto de ações referentes à

produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução,

101

Page 102: Texto representação comissão da verdade

transporte, transmissão, distribuição, arquivamento, armazenamento,

eliminação, avaliação, destinação ou controle da informação;

VI ­ disponibilidade: qualidade da informação que pode ser

conhecida e utilizada por indivíduos, equipamentos ou sistemas

autorizados;

VII ­ autenticidade: qualidade da informação que tenha sido

produzida, expedida, recebida ou modificada por determinado

indivíduo, equipamento ou sistema;

VIII ­ integridade: qualidade da informação não modificada,

inclusive quanto à origem, trânsito e destino;

IX ­ primariedade: qualidade da informação coletada na fonte, com

o máximo de detalhamento possível, sem modificações.

Art. 5o É dever do Estado garantir o direito de acesso à

informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e

ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil

compreensão.

CAPÍTULO II

DO ACESSO A INFORMAÇÕES E DA SUA DIVULGAÇÃO

Art. 6o Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas

as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a:

I ­ gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a

ela e sua divulgação;

II ­ proteção da informação, garantindo­se sua disponibilidade,

autenticidade e integridade; e

III ­ proteção da informação sigilosa e da informação pessoal,

observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual

restrição de acesso.

Art. 7o O acesso à informação de que trata esta Lei compreende,

entre outros, os direitos de obter:

I ­ orientação sobre os procedimentos para a consecução de

acesso, bem como sobre o local onde poderá ser encontrada ou obtida

a informação almejada;

102

Page 103: Texto representação comissão da verdade

II ­ informação contida em registros ou documentos, produzidos

ou acumulados por seus órgãos ou entidades, recolhidos ou não a

arquivos públicos;

III ­ informação produzida ou custodiada por pessoa física ou

entidade privada decorrente de qualquer vínculo com seus órgãos ou

entidades, mesmo que esse vínculo já tenha cessado;

IV ­ informação primária, íntegra, autêntica e atualizada;

V ­ informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e

entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços;

VI ­ informação pertinente à administração do patrimônio público,

utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos; e

VII ­ informação relativa:

a) à implementação, acompanhamento e resultados dos

programas, projetos e ações dos órgãos e entidades públicas, bem

como metas e indicadores propostos;

b) ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de

contas realizadas pelos órgãos de controle interno e externo, incluindo

prestações de contas relativas a exercícios anteriores.

§ 1o O acesso à informação previsto no caput não compreende as

informações referentes a projetos de pesquisa e desenvolvimento

científicos ou tecnológicos cujo sigilo seja imprescindível à segurança

da sociedade e do Estado.

§ 2o Quando não for autorizado acesso integral à informação por

ser ela parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não

sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte

sob sigilo.

§ 3o O direito de acesso aos documentos ou às informações neles

contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato

administrativo será assegurado com a edição do ato decisório

respectivo.

§ 4o A negativa de acesso às informações objeto de pedido

formulado aos órgãos e entidades referidas no art. 1o, quando não

103

Page 104: Texto representação comissão da verdade

fundamentada, sujeitará o responsável a medidas disciplinares, nos

termos do art. 32 desta Lei.

§ 5o Informado do extravio da informação solicitada, poderá o

interessado requerer à autoridade competente a imediata abertura de

sindicância para apurar o desaparecimento da respectiva

documentação.

§ 6o Verificada a hipótese prevista no § 5o deste artigo, o

responsável pela guarda da informação extraviada deverá, no prazo de

10 (dez) dias, justificar o fato e indicar testemunhas que comprovem

sua alegação.

Art. 8o É dever dos órgãos e entidades públicas promover,

independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil

acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse

coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.

§ 1o Na divulgação das informações a que se refere o caput,

deverão constar, no mínimo:

I ­ registro das competências e estrutura organizacional,

endereços e telefones das respectivas unidades e horários de

atendimento ao público;

II ­ registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos

financeiros;

III ­ registros das despesas;

IV ­ informações concernentes a procedimentos licitatórios,

inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os

contratos celebrados;

V ­ dados gerais para o acompanhamento de programas, ações,

projetos e obras de órgãos e entidades; e

VI ­ respostas a perguntas mais frequentes da sociedade.

§ 2o Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e

entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos

legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios

oficiais da rede mundial de computadores (internet).

104

Page 105: Texto representação comissão da verdade

§ 3o Os sítios de que trata o § 2o deverão, na forma de

regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos:

I ­ conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o

acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em

linguagem de fácil compreensão;

II ­ possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos

eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e

texto, de modo a facilitar a análise das informações;

III ­ possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em

formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina;

IV ­ divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação

da informação;

V ­ garantir a autenticidade e a integridade das informações

disponíveis para acesso;

VI ­ manter atualizadas as informações disponíveis para acesso;

VII ­ indicar local e instruções que permitam ao interessado

comunicar­se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade

detentora do sítio; e

VIII ­ adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade

de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei

no 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9o da Convenção

sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto

Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008.

§ 4o Os Municípios com população de até 10.000 (dez mil)

habitantes ficam dispensados da divulgação obrigatória na internet a

que se refere o § 2o, mantida a obrigatoriedade de divulgação, em

tempo real, de informações relativas à execução orçamentária e

financeira, nos critérios e prazos previstos no art. 73­B da Lei

Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade

Fiscal).

Art. 9o O acesso a informações públicas será assegurado

mediante:

105

Page 106: Texto representação comissão da verdade

I ­ criação de serviço de informações ao cidadão, nos órgãos e

entidades do poder público, em local com condições apropriadas para:

a) atender e orientar o público quanto ao acesso a informações;

b) informar sobre a tramitação de documentos nas suas

respectivas unidades;

c) protocolizar documentos e requerimentos de acesso a

informações; e

II ­ realização de audiências ou consultas públicas, incentivo à

participação popular ou a outras formas de divulgação.

CAPÍTULO III

DO PROCEDIMENTO DE ACESSO À INFORMAÇÃO

Seção I

Do Pedido de Acesso

Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso

a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1o desta Lei, por

qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do

requerente e a especificação da informação requerida.

§ 1o Para o acesso a informações de interesse público, a

identificação do requerente não pode conter exigências que inviabilizem

a solicitação.

§ 2o Os órgãos e entidades do poder público devem viabilizar

alternativa de encaminhamento de pedidos de acesso por meio de seus

sítios oficiais na internet.

§ 3o São vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos

determinantes da solicitação de informações de interesse público.

Art. 11. O órgão ou entidade pública deverá autorizar ou conceder

o acesso imediato à informação disponível.

§ 1o Não sendo possível conceder o acesso imediato, na forma

disposta no caput, o órgão ou entidade que receber o pedido deverá,

em prazo não superior a 20 (vinte) dias:

I ­ comunicar a data, local e modo para se realizar a consulta,

efetuar a reprodução ou obter a certidão;

106

Page 107: Texto representação comissão da verdade

II ­ indicar as razões de fato ou de direito da recusa, total ou

parcial, do acesso pretendido; ou

III ­ comunicar que não possui a informação, indicar, se for do seu

conhecimento, o órgão ou a entidade que a detém, ou, ainda, remeter

o requerimento a esse órgão ou entidade, cientificando o interessado

da remessa de seu pedido de informação.

§ 2o O prazo referido no § 1o poderá ser prorrogado por mais 10

(dez) dias, mediante justificativa expressa, da qual será cientificado o

requerente.

§ 3o Sem prejuízo da segurança e da proteção das informações e

do cumprimento da legislação aplicável, o órgão ou entidade poderá

oferecer meios para que o próprio requerente possa pesquisar a

informação de que necessitar.

§ 4o Quando não for autorizado o acesso por se tratar de

informação total ou parcialmente sigilosa, o requerente deverá ser

informado sobre a possibilidade de recurso, prazos e condições para

sua interposição, devendo, ainda, ser­lhe indicada a autoridade

competente para sua apreciação.

§ 5o A informação armazenada em formato digital será fornecida

nesse formato, caso haja anuência do requerente.

§ 6o Caso a informação solicitada esteja disponível ao público em

formato impresso, eletrônico ou em qualquer outro meio de acesso

universal, serão informados ao requerente, por escrito, o lugar e a

forma pela qual se poderá consultar, obter ou reproduzir a referida

informação, procedimento esse que desonerará o órgão ou entidade

pública da obrigação de seu fornecimento direto, salvo se o requerente

declarar não dispor de meios para realizar por si mesmo tais

procedimentos.

Art. 12. O serviço de busca e fornecimento da informação é

gratuito, salvo nas hipóteses de reprodução de documentos pelo órgão

ou entidade pública consultada, situação em que poderá ser cobrado

107

Page 108: Texto representação comissão da verdade

exclusivamente o valor necessário ao ressarcimento do custo dos

serviços e dos materiais utilizados.

Parágrafo único. Estará isento de ressarcir os custos previstos no

caput todo aquele cuja situação econômica não lhe permita fazê­lo sem

prejuízo do sustento próprio ou da família, declarada nos termos da Lei

no 7.115, de 29 de agosto de 1983.

Art. 13. Quando se tratar de acesso à informação contida em

documento cuja manipulação possa prejudicar sua integridade, deverá

ser oferecida a consulta de cópia, com certificação de que esta confere

com o original.

Parágrafo único. Na impossibilidade de obtenção de cópias, o

interessado poderá solicitar que, a suas expensas e sob supervisão de

servidor público, a reprodução seja feita por outro meio que não ponha

em risco a conservação do documento original.

Art. 14. É direito do requerente obter o inteiro teor de decisão de

negativa de acesso, por certidão ou cópia.

Seção II

Dos Recursos

Art. 15. No caso de indeferimento de acesso a informações ou às

razões da negativa do acesso, poderá o interessado interpor recurso

contra a decisão no prazo de 10 (dez) dias a contar da sua ciência.

Parágrafo único. O recurso será dirigido à autoridade

hierarquicamente superior à que exarou a decisão impugnada, que

deverá se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias.

Art. 16. Negado o acesso a informação pelos órgãos ou entidades

do Poder Executivo Federal, o requerente poderá recorrer à

Controladoria­Geral da União, que deliberará no prazo de 5 (cinco) dias

se:

I ­ o acesso à informação não classificada como sigilosa for

negado;

II ­ a decisão de negativa de acesso à informação total ou

parcialmente classificada como sigilosa não indicar a autoridade

108

Page 109: Texto representação comissão da verdade

classificadora ou a hierarquicamente superior a quem possa ser dirigido

pedido de acesso ou desclassificação;

III ­ os procedimentos de classificação de informação sigilosa

estabelecidos nesta Lei não tiverem sido observados; e

IV ­ estiverem sendo descumpridos prazos ou outros

procedimentos previstos nesta Lei.

§ 1o O recurso previsto neste artigo somente poderá ser dirigido à

Controladoria­Geral da União depois de submetido à apreciação de pelo

menos uma autoridade hierarquicamente superior àquela que exarou a

decisão impugnada, que deliberará no prazo de 5 (cinco) dias.

§ 2o Verificada a procedência das razões do recurso, a

Controladoria­Geral da União determinará ao órgão ou entidade que

adote as providências necessárias para dar cumprimento ao disposto

nesta Lei.

§ 3o Negado o acesso à informação pela Controladoria­Geral da

União, poderá ser interposto recurso à Comissão Mista de Reavaliação

de Informações, a que se refere o art. 35.

Art. 17. No caso de indeferimento de pedido de desclassificação

de informação protocolado em órgão da administração pública federal,

poderá o requerente recorrer ao Ministro de Estado da área, sem

prejuízo das competências da Comissão Mista de Reavaliação de

Informações, previstas no art. 35, e do disposto no art. 16.

§ 1o O recurso previsto neste artigo somente poderá ser dirigido

às autoridades mencionadas depois de submetido à apreciação de pelo

menos uma autoridade hierarquicamente superior à autoridade que

exarou a decisão impugnada e, no caso das Forças Armadas, ao

respectivo Comando.

§ 2o Indeferido o recurso previsto no caput que tenha como objeto

a desclassificação de informação secreta ou ultrassecreta, caberá

recurso à Comissão Mista de Reavaliação de Informações prevista no

art. 35.

109

Page 110: Texto representação comissão da verdade

Art. 18. Os procedimentos de revisão de decisões denegatórias

proferidas no recurso previsto no art. 15 e de revisão de classificação

de documentos sigilosos serão objeto de regulamentação própria dos

Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, em seus

respectivos âmbitos, assegurado ao solicitante, em qualquer caso, o

direito de ser informado sobre o andamento de seu pedido.

Art. 19. (VETADO).

§ 1o (VETADO).

§ 2o Os órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público

informarão ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do

Ministério Público, respectivamente, as decisões que, em grau de

recurso, negarem acesso a informações de interesse público.

Art. 20. Aplica­se subsidiariamente, no que couber, a Lei no

9.784, de 29 de janeiro de 1999, ao procedimento de que trata este

Capítulo.

CAPÍTULO IV

DAS RESTRIÇÕES DE ACESSO À INFORMAÇÃO

Seção I

Disposições Gerais

Art. 21. Não poderá ser negado acesso à informação necessária à

tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais.

Parágrafo único. As informações ou documentos que versem

sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada

por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão

ser objeto de restrição de acesso.

Art. 22. O disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais

de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial

decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado

ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo

com o poder público.

Seção II

Da Classificação da Informação quanto ao Grau e Prazos de Sigilo

110

Page 111: Texto representação comissão da verdade

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da

sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as

informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I ­ pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade

do território nacional;

II ­ prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as

relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em

caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III ­ pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV ­ oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou

monetária do País;

V ­ prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos

das Forças Armadas;

VI ­ prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e

desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas,

bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII ­ pôr em risco a segurança de instituições ou de altas

autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou

VIII ­ comprometer atividades de inteligência, bem como de

investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a

prevenção ou repressão de infrações.

Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas,

observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à

segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como

ultrassecreta, secreta ou reservada.

§ 1o Os prazos máximos de restrição de acesso à informação,

conforme a classificação prevista no caput, vigoram a partir da data de

sua produção e são os seguintes:

I ­ ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;

II ­ secreta: 15 (quinze) anos; e

III ­ reservada: 5 (cinco) anos.

111

Page 112: Texto representação comissão da verdade

§ 2o As informações que puderem colocar em risco a segurança do

Presidente e Vice­Presidente da República e respectivos cônjuges e

filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o

término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de

reeleição.

§ 3o Alternativamente aos prazos previstos no § 1o, poderá ser

estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de

determinado evento, desde que este ocorra antes do transcurso do

prazo máximo de classificação.

§ 4o Transcorrido o prazo de classificação ou consumado o evento

que defina o seu termo final, a informação tornar­se­á,

automaticamente, de acesso público.

§ 5o Para a classificação da informação em determinado grau de

sigilo, deverá ser observado o interesse público da informação e

utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:

I ­ a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do

Estado; e

II ­ o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina

seu termo final.

Seção III

Da Proteção e do Controle de Informações Sigilosas

Art. 25. É dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de

informações sigilosas produzidas por seus órgãos e entidades,

assegurando a sua proteção.

§ 1o O acesso, a divulgação e o tratamento de informação

classificada como sigilosa ficarão restritos a pessoas que tenham

necessidade de conhecê­la e que sejam devidamente credenciadas na

forma do regulamento, sem prejuízo das atribuições dos agentes

públicos autorizados por lei.

§ 2o O acesso à informação classificada como sigilosa cria a

obrigação para aquele que a obteve de resguardar o sigilo.

112

Page 113: Texto representação comissão da verdade

§ 3o Regulamento disporá sobre procedimentos e medidas a

serem adotados para o tratamento de informação sigilosa, de modo a

protegê­la contra perda, alteração indevida, acesso, transmissão e

divulgação não autorizados.

Art. 26. As autoridades públicas adotarão as providências

necessárias para que o pessoal a elas subordinado hierarquicamente

conheça as normas e observe as medidas e procedimentos de

segurança para tratamento de informações sigilosas.

Parágrafo único. A pessoa física ou entidade privada que, em

razão de qualquer vínculo com o poder público, executar atividades de

tratamento de informações sigilosas adotará as providências

necessárias para que seus empregados, prepostos ou representantes

observem as medidas e procedimentos de segurança das informações

resultantes da aplicação desta Lei.

Seção IV

Dos Procedimentos de Classificação, Reclassificação e Desclassificação

Art. 27. A classificação do sigilo de informações no âmbito da

administração pública federal é de competência:

I ­ no grau de ultrassecreto, das seguintes autoridades:

a) Presidente da República;

b) Vice­Presidente da República;

c) Ministros de Estado e autoridades com as mesmas

prerrogativas;

d) Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; e

e) Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no

exterior;

II ­ no grau de secreto, das autoridades referidas no inciso I, dos

titulares de autarquias, fundações ou empresas públicas e sociedades

de economia mista; e

III ­ no grau de reservado, das autoridades referidas nos incisos I

e II e das que exerçam funções de direção, comando ou chefia, nível

DAS 101.5, ou superior, do Grupo­Direção e Assessoramento

113

Page 114: Texto representação comissão da verdade

Superiores, ou de hierarquia equivalente, de acordo com

regulamentação específica de cada órgão ou entidade, observado o

disposto nesta Lei.

§ 1o A competência prevista nos incisos I e II, no que se refere à

classificação como ultrassecreta e secreta, poderá ser delegada pela

autoridade responsável a agente público, inclusive em missão no

exterior, vedada a subdelegação.

§ 2o A classificação de informação no grau de sigilo ultrassecreto

pelas autoridades previstas nas alíneas “d” e “e” do inciso I deverá ser

ratificada pelos respectivos Ministros de Estado, no prazo previsto em

regulamento.

§ 3o A autoridade ou outro agente público que classificar

informação como ultrassecreta deverá encaminhar a decisão de que

trata o art. 28 à Comissão Mista de Reavaliação de Informações, a que

se refere o art. 35, no prazo previsto em regulamento.

Art. 28. A classificação de informação em qualquer grau de sigilo

deverá ser formalizada em decisão que conterá, no mínimo, os

seguintes elementos:

I ­ assunto sobre o qual versa a informação;

II ­ fundamento da classificação, observados os critérios

estabelecidos no art. 24;

III ­ indicação do prazo de sigilo, contado em anos, meses ou dias,

ou do evento que defina o seu termo final, conforme limites previstos

no art. 24; e

IV ­ identificação da autoridade que a classificou.

Parágrafo único. A decisão referida no caput será mantida no

mesmo grau de sigilo da informação classificada.

Art. 29. A classificação das informações será reavaliada pela

autoridade classificadora ou por autoridade hierarquicamente superior,

mediante provocação ou de ofício, nos termos e prazos previstos em

regulamento, com vistas à sua desclassificação ou à redução do prazo

de sigilo, observado o disposto no art. 24.

114

Page 115: Texto representação comissão da verdade

§ 1o O regulamento a que se refere o caput deverá considerar as

peculiaridades das informações produzidas no exterior por autoridades

ou agentes públicos.

§ 2o Na reavaliação a que se refere o caput, deverão ser

examinadas a permanência dos motivos do sigilo e a possibilidade de

danos decorrentes do acesso ou da divulgação da informação.

§ 3o Na hipótese de redução do prazo de sigilo da informação, o

novo prazo de restrição manterá como termo inicial a data da sua

produção.

Art. 30. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade

publicará, anualmente, em sítio à disposição na internet e destinado à

veiculação de dados e informações administrativas, nos termos de

regulamento:

I ­ rol das informações que tenham sido desclassificadas nos

últimos 12 (doze) meses;

II ­ rol de documentos classificados em cada grau de sigilo, com

identificação para referência futura;

III ­ relatório estatístico contendo a quantidade de pedidos de

informação recebidos, atendidos e indeferidos, bem como informações

genéricas sobre os solicitantes.

§ 1o Os órgãos e entidades deverão manter exemplar da

publicação prevista no caput para consulta pública em suas sedes.

§ 2o Os órgãos e entidades manterão extrato com a lista de

informações classificadas, acompanhadas da data, do grau de sigilo e

dos fundamentos da classificação.

Seção V

Das Informações Pessoais

Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de

forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e

imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1o As informações pessoais, a que se refere este artigo,

relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

115

Page 116: Texto representação comissão da verdade

I ­ terão seu acesso restrito, independentemente de classificação

de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data

de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a

que elas se referirem; e

II ­ poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros

diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que

elas se referirem.

§ 2o Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este

artigo será responsabilizado por seu uso indevido.

§ 3o O consentimento referido no inciso II do § 1o não será exigido

quando as informações forem necessárias:

I ­ à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver

física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente

para o tratamento médico;

II ­ à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente

interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a

identificação da pessoa a que as informações se referirem;

III ­ ao cumprimento de ordem judicial;

IV ­ à defesa de direitos humanos; ou

V ­ à proteção do interesse público e geral preponderante.

§ 4o A restrição de acesso à informação relativa à vida privada,

honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de

prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das

informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a

recuperação de fatos históricos de maior relevância.

§ 5o Regulamento disporá sobre os procedimentos para

tratamento de informação pessoal.

CAPÍTULO V

DAS RESPONSABILIDADES

Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam

responsabilidade do agente público ou militar:

116

Page 117: Texto representação comissão da verdade

I ­ recusar­se a fornecer informação requerida nos termos desta

Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê­la

intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa;

II ­ utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar,

desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se

encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em

razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função

pública;

III ­ agir com dolo ou má­fé na análise das solicitações de acesso

à informação;

IV ­ divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir

acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal;

V ­ impor sigilo à informação para obter proveito pessoal ou de

terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal cometido por si ou por

outrem;

VI ­ ocultar da revisão de autoridade superior competente

informação sigilosa para beneficiar a si ou a outrem, ou em prejuízo de

terceiros; e

VII ­ destruir ou subtrair, por qualquer meio, documentos

concernentes a possíveis violações de direitos humanos por parte de

agentes do Estado.

§ 1o Atendido o princípio do contraditório, da ampla defesa e do

devido processo legal, as condutas descritas no caput serão

consideradas:

I ­ para fins dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas,

transgressões militares médias ou graves, segundo os critérios neles

estabelecidos, desde que não tipificadas em lei como crime ou

contravenção penal; ou

II ­ para fins do disposto na Lei no 8.112, de 11 de dezembro de

1990, e suas alterações, infrações administrativas, que deverão ser

apenadas, no mínimo, com suspensão, segundo os critérios nela

estabelecidos.

117

Page 118: Texto representação comissão da verdade

§ 2o Pelas condutas descritas no caput, poderá o militar ou agente

público responder, também, por improbidade administrativa, conforme

o disposto nas Leis nos 1.079, de 10 de abril de 1950, e 8.429, de 2 de

junho de 1992.

Art. 33. A pessoa física ou entidade privada que detiver

informações em virtude de vínculo de qualquer natureza com o poder

público e deixar de observar o disposto nesta Lei estará sujeita às

seguintes sanções:

I ­ advertência;

II ­ multa;

III ­ rescisão do vínculo com o poder público;

IV ­ suspensão temporária de participar em licitação e

impedimento de contratar com a administração pública por prazo não

superior a 2 (dois) anos; e

V ­ declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a

administração pública, até que seja promovida a reabilitação perante a

própria autoridade que aplicou a penalidade.

§ 1o As sanções previstas nos incisos I, III e IV poderão ser

aplicadas juntamente com a do inciso II, assegurado o direito de defesa

do interessado, no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias.

§ 2o A reabilitação referida no inciso V será autorizada somente

quando o interessado efetivar o ressarcimento ao órgão ou entidade

dos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada

com base no inciso IV.

§ 3o A aplicação da sanção prevista no inciso V é de competência

exclusiva da autoridade máxima do órgão ou entidade pública,

facultada a defesa do interessado, no respectivo processo, no prazo de

10 (dez) dias da abertura de vista.

Art. 34. Os órgãos e entidades públicas respondem diretamente

pelos danos causados em decorrência da divulgação não autorizada ou

utilização indevida de informações sigilosas ou informações pessoais,

118

Page 119: Texto representação comissão da verdade

cabendo a apuração de responsabilidade funcional nos casos de dolo ou

culpa, assegurado o respectivo direito de regresso.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica­se à pessoa física

ou entidade privada que, em virtude de vínculo de qualquer natureza

com órgãos ou entidades, tenha acesso a informação sigilosa ou

pessoal e a submeta a tratamento indevido.

CAPÍTULO VI

DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 35. (VETADO).

§ 1o É instituída a Comissão Mista de Reavaliação de Informações,

que decidirá, no âmbito da administração pública federal, sobre o

tratamento e a classificação de informações sigilosas e terá

competência para:

I ­ requisitar da autoridade que classificar informação como

ultrassecreta e secreta esclarecimento ou conteúdo, parcial ou integral

da informação;

II ­ rever a classificação de informações ultrassecretas ou

secretas, de ofício ou mediante provocação de pessoa interessada,

observado o disposto no art. 7o e demais dispositivos desta Lei; e

III ­ prorrogar o prazo de sigilo de informação classificada como

ultrassecreta, sempre por prazo determinado, enquanto o seu acesso

ou divulgação puder ocasionar ameaça externa à soberania nacional ou

à integridade do território nacional ou grave risco às relações

internacionais do País, observado o prazo previsto no § 1o do art. 24.

§ 2o O prazo referido no inciso III é limitado a uma única

renovação.

§ 3o A revisão de ofício a que se refere o inciso II do § 1o deverá

ocorrer, no máximo, a cada 4 (quatro) anos, após a reavaliação

prevista no art. 39, quando se tratar de documentos ultrassecretos ou

secretos.

119

Page 120: Texto representação comissão da verdade

§ 4o A não deliberação sobre a revisão pela Comissão Mista de

Reavaliação de Informações nos prazos previstos no § 3o implicará a

desclassificação automática das informações.

§ 5o Regulamento disporá sobre a composição, organização e

funcionamento da Comissão Mista de Reavaliação de Informações,

observado o mandato de 2 (dois) anos para seus integrantes e demais

disposições desta Lei.

Art. 36. O tratamento de informação sigilosa resultante de

tratados, acordos ou atos internacionais atenderá às normas e

recomendações constantes desses instrumentos.

Art. 37. É instituído, no âmbito do Gabinete de Segurança

Institucional da Presidência da República, o Núcleo de Segurança e

Credenciamento (NSC), que tem por objetivos:

I ­ promover e propor a regulamentação do credenciamento de

segurança de pessoas físicas, empresas, órgãos e entidades para

tratamento de informações sigilosas; e

II ­ garantir a segurança de informações sigilosas, inclusive

aquelas provenientes de países ou organizações internacionais com os

quais a República Federativa do Brasil tenha firmado tratado, acordo,

contrato ou qualquer outro ato internacional, sem prejuízo das

atribuições do Ministério das Relações Exteriores e dos demais órgãos

competentes.

Parágrafo único. Regulamento disporá sobre a composição,

organização e funcionamento do NSC.

Art. 38. Aplica­se, no que couber, a Lei no 9.507, de 12 de

novembro de 1997, em relação à informação de pessoa, física ou

jurídica, constante de registro ou banco de dados de entidades

governamentais ou de caráter público.

Art. 39. Os órgãos e entidades públicas deverão proceder à

reavaliação das informações classificadas como ultrassecretas e

secretas no prazo máximo de 2 (dois) anos, contado do termo inicial de

vigência desta Lei.

120

Page 121: Texto representação comissão da verdade

§ 1o A restrição de acesso a informações, em razão da reavaliação

prevista no caput, deverá observar os prazos e condições previstos

nesta Lei.

§ 2o No âmbito da administração pública federal, a reavaliação

prevista no caput poderá ser revista, a qualquer tempo, pela Comissão

Mista de Reavaliação de Informações, observados os termos desta Lei.

§ 3o Enquanto não transcorrido o prazo de reavaliação previsto no

caput, será mantida a classificação da informação nos termos da

legislação precedente.

§ 4o As informações classificadas como secretas e ultrassecretas

não reavaliadas no prazo previsto no caput serão consideradas,

automaticamente, de acesso público.

Art. 40. No prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da vigência

desta Lei, o dirigente máximo de cada órgão ou entidade da

administração pública federal direta e indireta designará autoridade que

lhe seja diretamente subordinada para, no âmbito do respectivo órgão

ou entidade, exercer as seguintes atribuições:

I ­ assegurar o cumprimento das normas relativas ao acesso a

informação, de forma eficiente e adequada aos objetivos desta Lei;

II ­ monitorar a implementação do disposto nesta Lei e apresentar

relatórios periódicos sobre o seu cumprimento;

III ­ recomendar as medidas indispensáveis à implementação e ao

aperfeiçoamento das normas e procedimentos necessários ao correto

cumprimento do disposto nesta Lei; e

IV ­ orientar as respectivas unidades no que se refere ao

cumprimento do disposto nesta Lei e seus regulamentos.

Art. 41. O Poder Executivo Federal designará órgão da

administração pública federal responsável:

I ­ pela promoção de campanha de abrangência nacional de

fomento à cultura da transparência na administração pública e

conscientização do direito fundamental de acesso à informação;

121

Page 122: Texto representação comissão da verdade

II ­ pelo treinamento de agentes públicos no que se refere ao

desenvolvimento de práticas relacionadas à transparência na

administração pública;

III ­ pelo monitoramento da aplicação da lei no âmbito da

administração pública federal, concentrando e consolidando a

publicação de informações estatísticas relacionadas no art. 30;

IV ­ pelo encaminhamento ao Congresso Nacional de relatório

anual com informações atinentes à implementação desta Lei.

Art. 42. O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta Lei no

prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data de sua

publicação.

Art. 43. O inciso VI do art. 116 da Lei no 8.112, de 11 de

dezembro de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 116. ...................................................................

............................................................................................

VI ­ levar as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao

conhecimento da autoridade superior ou, quando houver suspeita de

envolvimento desta, ao conhecimento de outra autoridade competente

para apuração;

.................................................................................” (NR)

Art. 44. O Capítulo IV do Título IV da Lei no 8.112, de 1990, passa

a vigorar acrescido do seguinte art. 126­A:

“Art. 126­A. Nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal

ou administrativamente por dar ciência à autoridade superior ou,

quando houver suspeita de envolvimento desta, a outra autoridade

competente para apuração de informação concernente à prática de

crimes ou improbidade de que tenha conhecimento, ainda que em

decorrência do exercício de cargo, emprego ou função pública.”

Art. 45. Cabe aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios,

em legislação própria, obedecidas as normas gerais estabelecidas nesta

Lei, definir regras específicas, especialmente quanto ao disposto no art.

9o e na Seção II do Capítulo III.

122

Page 123: Texto representação comissão da verdade

Art. 46. Revogam­se:

I ­ a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005; e

II ­ os arts. 22 a 24 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991.

Art. 47. Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias após a

data de sua publicação.

Brasília, 18 de novembro de 2011; 190o da Independência e 123o

da República.

DILMA ROUSSEFF

José Eduardo Cardoso

Celso Luiz Nunes Amorim

Antonio de Aguiar Patriota

Miriam Belchior

Paulo Bernardo Silva

Gleisi Hoffmann

José Elito Carvalho Siqueira

Helena Chagas

Luís Inácio Lucena Adams

Jorge Hage Sobrinho

Maria do Rosário Nunes

123