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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/310064726 Miopatias e Anestesia Chapter · October 2015 CITATIONS 0 READS 735 3 authors: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Educação continuada em Anestesia View project Carlos Darcy Bersot Rio de Janeiro State University 14 PUBLICATIONS 7 CITATIONS SEE PROFILE Ana Karla Arraes Universidade de Pernambuco 3 PUBLICATIONS 5 CITATIONS SEE PROFILE Heber Penna Clinica de Anestesia 2 PUBLICATIONS 0 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Carlos Darcy Bersot on 13 November 2016. The user has requested enhancement of the downloaded file.

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Capítulo 05

Miopatias e AnestesiaAna Karla Arraes von Sohsten

Heber de Moraes PennaCarlos Darcy Alves Bersot

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Miopatias e Anestesia

IntroduçãoMiopatias são desordens estruturais e/ou funcionais dos músculos esqueléticos, resul-

tantes de uma variedade de etiologias. Anormalidades na estrutura ou no metabolismo da célula muscular que levam a vários padrões de fraqueza muscular e, consequentemente, de manifestações clínicas.

As miopatias devem ser diferenciadas das doenças do neurônio motor, das neuropa-tias periféricas e das doenças da junção neuromuscular. Apesar de terem baixa preva-lência na população em geral, podem levar a graves complicações durante procedimen-tos anestésicos, como hipertermia maligna, rabdomiólise, crises miotônicas e piora da função respiratória1.

As miopatias podem ser classificadas em duas categorias principais: hereditárias ou adquiridas. O curso temporal, o padrão da fraqueza muscular e a ausência ou presença de história familiar de miopatia ajudam a distinguir entre os dois tipos. O início dos sintomas em idade precoce associado à longa duração da doença sugere o diagnóstico de miopatia hereditária, enquanto um início súbito ou subagudo dos sintomas e em idade mais tardia su-gere miopatia adquirida. As duas categorias apresentam ainda subclassificações, conforme o Quadro 12.

Quadro 1 - Classificação das miopatias

Miopatias hereditárias

Miopatias congênitasDistrofias muscularesCanalopatiasMiopatias metabólicas primáriasMiopatias mitocondriais

Miopatias adquiridasMiopatias inflamatóriasMiopatias tóxicas e induzidas por drogasMiopatias associadas a doenças sistêmicas e infecciosas

Quadro clínico e diagnósticos geraisA maioria das desordens musculares produz fraqueza e atrofia muscular, especialmente

da musculatura proximal, afetando, em menor grau de intensidade, os grupos musculares distais. Algumas miopatias, como as distrofias musculares, desenvolvem-se precocemente; outras, mais tardiamente. Algumas pioram progressivamente sem boa resposta ao trata-mento; outras são tratáveis e permanecem estáveis ao longo dos anos.

O diagnóstico das desordens musculares é baseado em um tripé investigativo: dosagem de enzimas específicas; estudos eletrofisiológicos e biópsia muscular, mas sempre precedido de um exame neurológico completo e cuidadoso. Os dois primeiros exames são vistos como procedimentos screening e o último, como definitivo, fornecendo, na grande maioria, um diagnóstico mais exato e definitivo. Todos têm falhas e limitações e devem ser analisados

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em conjunto com o quadro clínico e outros exames complementares específicos para cada tipo de miopatia3. É frequente a necessidade de aconselhamento genético familiar.

Miopatias Hereditárias

Distrofias Musculares e Miopatias CongênitasAs distrofias musculares envolvem um grupo diverso de doenças, com herança genética,

caracterizadas por fraqueza muscular progressiva e degeneração muscular. Os músculos envolvidos variam de acordo com o tipo de distrofia (Quadro 2)4,5

.

Quadro 2 – Músculos envolvidos nas diversas distrofias

Tipo Músculos Envolvidos

Distrofia muscular de BeckerDistrofia muscular de Duchenne

Inicialmente, tronco e membros inferioresNa fase avançada, toda a musculatura estriada

Distrofia muscular de Emery-Dreifuss Ombros, membros superiores e tornozelos

Distrofia muscular distal Mãos, antebraços e pernas

Distrofia muscular facioescapuloumeral Face, ombros, membros superiores e, ocasionalmente, membros inferiores

Distrofia muscular de cintura e membros Ombros e cintura pélvica

Distrofia muscular miotônica Face, mãos, pés e pescoço

Distrofia muscular oculofaringeana Pálpebras e faringe

A distrofia muscular de Duchenne (DMD) e a distrofia de Becker (DB) figuram entre as mais prevalentes, ocorrendo por anormalidades ligadas ao cromossoma X em caráter re-cessivo. O defeito genético inibe a produção normal de distrofina, proteína estabilizadora muscular, essencial para manter a integridade do sarcolema, que, uma vez rompido, leva ao aparecimento clínico da patologia. A DMD tem incidência de 30 casos para 100.000 nasci-dos vivos e a DB, de 3-6 por 100.000 nascimentos de homens6.

O início dos sintomas na DMD ocorre na primeira infância como fraqueza muscular e retardo do desenvolvimento motor. O atraso na deambulação até por volta dos 15 meses de vida pode ser o primeiro sinal. Seguem fraqueza progressiva dos membros inferiores, pseudo-hipertrofia das panturrilhas e significativo aumento de CPK. Prati-camente todos os pacientes são sintomáticos aos 5 anos. A atrofia muscular progressiva e severa leva à perda da capacidade de deambular em torno dos 14 anos. Na DB, pela perda da distrofina ser parcial, os sintomas se iniciam na adolescência ou na fase adulta e têm evolução mais lenta. Nas duas, nas fases mais evolutivas, ocorrem cardiomiopatia, arritmia cardíaca e falência respiratória com impossibilidade de desmame ventilatório. A avaliação pré-operatória deve incluir provas de função pulmonar e rigorosa investiga-ção do sistema cardiovascular6,7.

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Por serem mais prevalentes, o registro de anestesias em portadores de DMD e DB tam-bém é maior. As complicações anestésicas relatadas nesses pacientes podem ser divididas em quatro grupos de manifestações:

1. Falência cardíaca intraoperatória;2. Rabdomiólise e parada cardíaca por hipercalemia sem administração de succinilcolina;3. Hipecalemia e parada cardíaca após o uso de succinilcolina;4. Síndrome de Hipertermia Maligna (HM).

Os relatos de comprometimento cardiovascular grave foram, em sua maioria, de pacien-tes submetidos à cirurgia de coluna, em que a causa pode ser atribuída a grandes perdas sanguíneas ou à disfunção miocárdica previamente existente.

Em pacientes com DMD, as rabdomiólises na ausência de succinilcolina foram observa-das durante exposição mínima na indução da anestesia e com uso de halotano. Os níveis de potássio chegaram a 8 mEq/l. Dantrolene foi utilizado empiricamente após documentação de acidose metabólica e respiratória, sem a presença de febre ou com discreto aumento de temperatura. Relatos no período de pós-operatório foram confirmados quando do em-prego de halotano, isoflurano e sevoflurano, tendo sido a evolução desfavorável na metade dos casos. Há registros de casos semelhantes em portadores de DB em que o dantrolene foi empregado; porém, sintomas de hipermetabolismo que precedessem a rabdomiólise e a hipercalemia não ocorreram.

Nas evidências de rabdomiólise e parada cardíaca após succinilcolina, a maioria não apresentava diagnóstico de miopatia por ocasião do evento, sendo investigado e firmado secundariamente ao quadro. A mortalidade foi de 30%. Considerando a possibilidade de anestesia em pacientes sem suspeição de miopatias, o uso da succinilcolina deve se limitar a situações extremas, em que outras alternativas não estejam disponíveis para acessar as vias aéreas6.

Casos suspeitos de hipertermia maligna têm sido reportados na DMD e na DB. Pacientes com DMD desenvolveram febre inexplicada e taquicardia com o uso de halotano e outros tiveram rabdomiólise sem hipercalemia. Na maioria dos casos, já havia diagnóstico prévio de miopatia. A dificuldade em se estabelecer a verdadeira correlação entre as distrofias e hipertermia maligna reside no fato de que as rabdomiólises e os quadros associados com-partilham muitos sintomas de uma verdadeira crise de hipertermia maligna, e até mesmo os quadros de hipertermia maligna são bastante variáveis; rabdomiólise e acidose lática podem não existir8.

Parece não haver confirmação genética entre DMD e HM porque a mutação genética da DMD encontra-se ligada ao cromossomo X, enquanto na HM está usualmente locada no cromossomo 19. A existência da demonstração de testes positivos à contratura cafeína/halotano em portadores de distrofia tem sido questionada; uma vez que já existe alteração intrínseca do músculo distrófico, tornando-o mais sensível ao teste9.

A real preocupação da não utilização de agentes voláteis e succinilcolina em portadores de distrofia talvez seja a prevenção da ocorrência de rabdomiólise e/ou hipercalemia, e não a possibilidade de desencadear crise de hipertermia maligna.

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Está bem estabelecido que mutações no gene do receptor de ryanodina (RYR1) estão associadas à suscetibilidade para HM9-11. Dessa forma, algumas miopatias congênitas, em que as mutações genéticas também se localizam nesse mesmo gene, estão predispostas a desenvolver crise de HM quando expostas aos agentes desencadeantes. A doença do núcleo central (central core disease), a multiminicore disease e a miopatia por desproporção do tipo de fibra encontram-se nesse grupo12,13.

A central core disease constitui uma rara miopatia hereditária autossômica dominante que apresenta, histologicamente, núcleos centrais no interior da fibra muscular, preferen-cialmente nas fibras do tipo I. A multiminicore disease é transmitida de forma autossômica recessiva, apresenta grave comprometimento da musculatura axial e não há atividade enzi-mática oxidativa do núcleo da fibra muscular em estudos histoquímicos14.

Ainda sabidamente associada à HM temos a síndrome de King-Denborough e a mio-patia de Evans11. A síndrome de King-Denborough e a síndrome de Noonan comparti-lham as mesmas características, como estatura baixa, pescoço alado, implantação baixa das orelhas, pectus escavatum, criptorquidia; algumas vezes, surdez e/ou discrasia sanguí-nea; exceto a miopatia, que ocorre somente na primeira. A herança genética ainda não foi estabelecida e a maioria dos casos é esporádica, existindo um único registro de mutação no gene do receptor RYR115.

Miopatias MitocondriaisPor meio de processos que incluem o ciclo de Krebs, o transporte de elétrons na cadeia

respiratória e a fosforilação oxidativa; a mitocôndria é capaz de fornecer o principal subs-trato energético molecular para as células16. Os distúrbios desses mecanismos fisiológicos levam ao aparecimento das doenças mitocondriais, ocasionadas por mutações primárias ou herdadas. O primeiro estágio da fosforilação, a conversão de NADH em NAD e o trans-porte de elétrons constituem as etapas mais frequentemente acometidas nas anomalias mitocondriais. As três principais formas de apresentação das doenças mitocondriais congê-nitas são desordem multissistêmica infantil fatal; miopatias e encefalopatias, tendo as duas últimas evoluções e prognósticos variáveis, conforme o uso de suplementos metabólicos, as modificações dietéticas e, às vezes, o transplante de órgãos; esse último pode ser o único tratamento definitivo. A incidência é estimada em 1 para 4.000 nascimentos17.

Atualmente, mais de 200 pontos de mutação no genoma mitocondrial estão reportados e, por causa disso, as manifestações clínicas se mostram extremamente variáveis e podem se apresentar em diferentes idades. Em geral, fraqueza muscular progressiva e intolerância ao exercício são mais frequentes. Entretanto, pode haver debilidade da musculatura extrínseca do olho, das pálpebras, da face e do pescoço. Em estágios mais avançados, dificuldade na fala e na deglutição também tem sido relatada. O grau de intolerância ao exercício tem grande varia-bilidade, indo desde problemas com o simples caminhar até aqueles que manifestam sintomas somente com exercícios físicos extremos. Dor e lesão muscular resultam em rabdomiólise e mioglobinúria, que podem culminar em insuficiência renal temporária ou permanente.

Uma vez que a deficiência na produção de ATP constitui o principal ponto de acome-timento da doença, órgãos com altas demandas metabólicas como cérebro, coração e rins,

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quando atingidos, demonstram quadro clínico com cefaléia, deficiência auditiva, convul-são, dificuldade de aprendizado e até retardo mental. Devem ser levadas em consideração as cardiomiopatias e as anormalidades da condução cardíaca, como bloqueios de ramo e a síndrome de Wolff-Parkinson-White. Podem ocorrer ainda insuficiência respiratória com necessidade de suporte ventilatório, distúrbios gastrointestinais traduzidos por vômitos ou disfagia inexplicada, deficiência pancreática exócrina e diabetes18

. Pacientes com miopatias ainda não esclarecidas merecem cuidados especiais, mesmo tendo o risco estimado de de-senvolver hipertermia maligna ou rabdomiólise em torno de 1,09%19

.Um caso de teste positivo à contratura com cafeína e halotano em paciente portadora de

miopatia mitocondrial foi relatado, mas o emprego de anestésicos capazes de desencadear crises não parece estar relacionado em caso de miopatias mitocondriais20

.

Miopatias adquiridas

Miopatias InflamatóriasAs miopatias inflamatórias são um grupo de doenças raras (incidência anual de

1/100.000 nos EUA) que inclui a polimiosite (PM), a dermatomiosite (DM) e a miopatia necrotizante auti-imune (MN). São doenças da fase adulta e acometem mais mulheres que homens21

. A dermatomiosite se apresenta como fraqueza muscular proximal de início agudo ou insidioso, dolorosa, além de rush cutâneo característico nas superfícies extensoras das mãos e dos dedos, calcificação subcutânea e prurido. Na polimiosite, os sintomas se limitam ao tecido muscular e a disfagia aparece em um terço dos casos, assim como o quadro de fra-queza na musculatura facial. A miopatia necrotizante se apresenta como fraqueza muscular proximal progressiva, de início subagudo e sem rush cutâneo, geralmente mais severa que na polimiosite.

Há aumento de incidência das doenças pulmonares intersticiais, que leva a dispnéia e tosse22; desordens autoimunes, neoplasia e doenças cardiológicas, que geram defeitos na condução e arritmias dos pacientes portadores de PM, DM e MN23.

Em relação ao diagnóstico laboratorial, a creatina kinase sérica (CK) está bastante au-mentada (acima de dez vezes a taxa normal) na maioria dos casos de miopatia inflamatória. Por causa das doenças pulmonares e cardíacas associadas, testes de função pulmonar e es-tudos por imagem do tórax, assim como rigorosa avaliação cardiológica, estão indicados na avaliação pré-operatória.

Miopatias Tóxicas Induzidas por DrogasVárias drogas usadas na prática clínica podem levar à toxicidade do tecido muscular de

forma inesperada, gerando diferentes graus de manifestações clínicas: de sensação de des-conforto e fraqueza muscular a danos permanentes. Pode haver elevação da CK e mioglobi-núria em pacientes sem história prévia de doenças musculares.

A miotoxicidade induzida por drogas é causada por uma variedade de mecanismos: lesão de organelas da fibra muscular, como mitocôndrias e lisossomos; alterações dos antígenos musculares, que geram respostas imunológicas ou causam distúrbios hidro-eletrolíticos e desequilíbrio nutricional na célula muscular. No entanto, a miopatia

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tóxica deve ser um diagnóstico de exclusão, após serem afastadas as causas endócrinas, as miopatias hereditárias e as diversas miopatias adquiridas24. Entre as possíveis subs-tâncias que produzem as miopatias tóxicas, as mais comum são as estatinas (estudos recentes mostram que cerca de 10% dos usuários apresentam mialgia como principal efeito colateral) e os corticosteroides usados cronicamente, que levam à seletiva perda dos filamentos de miosina25,26.

Quadro 3 – Principais substâncias envolvidas nas miopatias tóxicas e induzidas por drogas

Estatinas e fibratos Cloroquina

D-Penicilamina Hidroxicloroquina

Interferon Álcool

Procainamida Germanium

Zidovudina Corticosteroides

Colchicina Amiodarona

Vincristina Quinacrina

Miopatias Associadas a Doenças Sistêmicas e InfecciosasAlgumas doenças sistêmicas podem cursar tanto com disfunção da junção neuro-

muscular como com as miopatias. Diabetes mellitus, alcoolismo, insuficiência renal e doenças neoplásicas, além de infecção pelo HIV, sepse e infecções fúngicas, estão entre as principais entidades que podem causar fraqueza em diversos grupos musculares27. Não se pode esquecer que, com o avanço da medicina intensiva, um grande número de pacientes sobrevive por longos períodos em ventilação mecânica e, muitas vezes, o diagnóstico de fraqueza muscular pode ser negligenciado por causa da maior atenção ao sistema cardiorrespiratório28.

Como principais fatores predisponentes à miopatia associada a doenças sistêmicas en-contram-se o tempo prolongado de ventilação mecânica, o uso de relaxantes musculares, principalmente o pancurônio, e longos períodos de imobilidade. Do ponto de vista histoló-gico, essa miopatia é caracterizada por variações anormais das fibras musculares, presença de vacúolos, degeneração gordurosa e necrose muscular29. Essa necrose pode progredir para rabdomiólise franca em muitos casos.

Conduta anestésicaO manejo anestésico de pacientes com patologias musculares é um desafio. Além das

respostas esporádicas imprevisíveis, como rabdomiólise e intenso catabolismo, podem ocorrer complicações associadas à fraqueza muscular respiratória, miocardiopatia prévia e alterações na anatomia das vias aéreas, entre outras.

Para identificar e minimizar os riscos, uma avaliação pré-anestésica minuciosa é funda-mental. Portadores de miopatia devem ter diagnóstico baseado em aspectos clínicos, mas, se possível, deve-se estabelecer o mecanismo molecular subjacente, identificado através do exame histopatológico.

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Todos os pacientes portadores de miopatia devem ser investigados do ponto de vista car-diológico. Em muitas miopatias, de fato, pode-se observar uma cardiopatia pré-clínica ou uma cardiomiopatia dilatada manifesta, além de distúrbios de condução, encurtamento do intervalo PQ , prolongamento do QT, especialmente em estágios avançados30,31.

A função respiratória e a capacidade do paciente para mobilizar secreções devem ser avaliadas. Em estágios avançados, essas patologias são acompanhadas por insuficiência respiratória; assim, adequado suporte ventilatório pós-operatório pode ser necessário e a disponibilidade de uma unidade de terapia intensiva pós-operatória, prudente. Baseado no grau de fraqueza da musculatura esquelética, a indução com via aérea em sequência rápida pode prevenir a aspiração broncopulmonar.

A dosagem pré-operatória do potássio sérico basal e da creatina quinase em pacientes com doenças musculares é importante para avaliar a integridade da membrana muscular, por causa do risco aumentado de rabdomiólise. Considerar a não utilização de soluções com lactato. Distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, alterações da coagulação e hiper-glicemia devem ser rapidamente corrigidos.

É recomendado jejum mínimo de 6-8 horas para sólidos e de 2 horas para líquidos claros, conforme recomendações habituais. Estudos sugerem que esses pacientes não só estão em maior risco de aspiração do conteúdo gástrico, por causa da fraqueza muscular e dismoti-lidade intestinal, mas também podem desencadear uma crise metabólica pelo inadequado metabolismo da glicose32.

Todas as técnicas anestésicas e drogas apresentam vantagens e desvantagens em pacien-tes portadores de miopatias. Assim, os anestésicos voláteis são contraindicados apenas nas miopatias congênitas com o risco associado de hipertermia maligna32. Esses fármacos tam-bém têm sido implicados em rabdomiólise e reações semelhantes a HM.

O uso de bloqueador neuromuscular despolarizante deve ser evitado em pacientes com doenças neuromusculares. A succinilcolina é um gatilho reconhecido para desencadear HM em pacientes suscetíveis. Além disso, pode levar à despolarização prolongada com liberação de potássio para o meio extracelular e influxo de cálcio muscular, que aumentaria o risco de rabdomiólise. Esses efeitos são mais proeminentes em pacientes com receptores de acetilco-lina extrajuncional, como ocorre no paciente portador de DMD. Como os mesmos efeitos podem ser desencadeados por anticolinesterásicos, estes também não são recomendados. A recente introdução da gamaciclodextrina (sugamadex) oferece alternativa atraente nessas circunstâncias. Se o bloqueio neuromuscular for necessário, um bloqueador neuromuscular adespolarizante deve ser preferido.

A anestesia venosa total tem sido defendida por muitos autores como a técnica anes-tésica mais segura, porém, o uso de propofol tem sido questionado por apresentar com-ponente lipídico, que pode afetar a oxidação de ácidos graxos, e por seus efeitos diretos sobre a função mitocondrial. Ambos podem predispor o paciente à síndrome de infu-são do propofol, sendo essa caracterizada por acidose láctica, bradicardia, rabdomió-lise e insuficiência renal. Embora seja mais frequente com infusões de maior duração (> 48 horas), em pacientes suscetíveis, mesmo infusões de curta duração podem levar ao quadro33-35.

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A ketamina não tem sido implicada como agente prejudicial, e suas propriedades analgé-sicas podem ser um adjuvante nesses pacientes17.

Por fim, autores sugerem que esses pacientes deveriam ter prioridade para realizar o pro-cedimento anestésico e todas as medidas profiláticas e terapêuticas para o adequado preparo cirúrgico disponível. Mesmo em casos de extremo cuidado no intraoperatório, o acompa-nhamento em unidade de terapia intensiva logo após a cirurgia é altamente recomendado.

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