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Departamento de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História

Universidade Federal da ParaíbaCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESCampus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V

Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - BrasilFone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <[email protected]>

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAReitor: Rômulo Soares Polari

Vice-Reitora: Maria Yara Campos Matos

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAPró-Reitor: Marcelo Sobral da Silva

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESDiretor: Lúcio Flávio Vasconcelos

Vice-Diretora: Sandra Regina Moura

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Jaldes Reis de Meneses

Sub-Chefe: Eduardo Henrique de Lima Guimarães

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIACoordenador: Elio Chaves Flores

Vice-Coordenadora: Regina Célia Gonçalves

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO - SÆCULUMCarla Mary S. Oliveira

Cláudia Engler Cury (presidente)Elio Chaves FloresMonique Cittadino

Mozart Vergetti de MenezesRegina Célia Gonçalves

Regina Maria Rodrigues BeharWellington Sampaio da Silva (secretário)

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N° 14 - Jan./ Jun. 2006

ISSN 0104-8929

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Copyright © 2005 - DH/ PPGH/ UFPB

ISSN 0104-8929Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;

Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Saeculum - Revista de História, ano 12, n. 14 (2006). - João Pessoa: Departamento de História/ Programa de Pós-Graduação em História/ UFPB, jan./jun. 2006.

ISSN 0104-8929

Semestral

202 p.

BC/UFPB CDU 93 (05)

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Paulo Resende (UFPE)Carlos Fico (UFRJ)

Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN)Ernesta Zamboni (UNICAMP)Gisafran Mota Jucá (UFCE)

Joana Neves (UFPB)João Antônio de Paula (CEDEPLAR)

João José Reis (UFBA)Jorge Ferreira (UFF)

Leonardo Guimarães Neto (CEPLAN)Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (UFPB)

Maria de Lourdes Janotti (USP)Martha Ma Falcão de C. e M. Santana (UFPB)

Mauro Guilherme P. Koury (UFPB)Pedro Paulo Funari (UNICAMP)

Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)Rosa Maria Godoy Silveira (UFPB)Sandra Jatahy Pesavento (UFRGS)

Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)Teresa Negrão (UnB)

Tereza Baumann (MN-UFRJ)Valdemir Zamparoni (UFBA)

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Sumário

ISSN 0104-8929João Pessoa - PB, n. 14, jan./ jun. 2006

DOSSIÊ: HISTÓRIA & REGIÃO

Jurisdição e poder nas Capitanias do Norte (1654-1755) ........................... 11Mozart Vergetti de Menezes

O sistema de concessão de mercê como prática governativa noalvorecer da sociedade mineira setecentista: o caso da(re)conquista da praça fluminense em 1711 .................................................. 26Carlos Leonardo Kelmer Mathias

Região, relações de poder e circuitos mercantisem São Paulo (1765-1822) .............................................................................. 39Denise A. Soares de Moura

Federação e República na Sociedade Federal de Pernambuco (1831-1834) ............ 57Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca

Café com açúcar: a formação do mercado consumidor de açúcarem São Paulo e o nascimento da grande indústria açucareirapaulista na segunda metade do século XIX .................................................... 74José Evando Vieira de Melo

Vitória no começo do século XX:modernização na construção da capital capixaba ......................................... 94Maria da Conceição Francisca Pires

Música popular brasileira e tradição: as apropriaçõesdo regional (São Paulo/ Rio de Janeiro, 1900-1940) ................................. 107Geni Rosa Duarte

Aspectos da construção histórica da região oeste de Santa Catarina ....... 121Elison Antonio Paim

Estado e questão regional: por uma Economia Política da região............. 139Flávio Lúcio R. Vieira

ARTIGOS

André Vidal de Negreiros: a necessidade de construçãode um herói legitimamente paraibano ............................................................. 159Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva

Arte & História: a concepção de arte no oitocentose sua relação com a cultura histórica ............................................................ 172Isis Pimentel de Castro

Editorial ............................................................................................................ 7

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Os maracatus-nação do Recife e a espetacularizaçãoda cultura popular (1960-1990) ...................................................................... 183Isabel Cristina Martins GuillenIvaldo Marciano de França Lima

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Normas para publicação ................................................................................. 199

Agradecimentos .............................................................................................. 201

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EDITORIAL

O número da Sæculum - Revista de História que ora se apresenta à comunidadeacadêmica traz, pela primeira vez em sua trajetória editorial, a incorporação doformato dossiê à sua estrutura. Neste número, o tema contemplado é “História eRegião” que, não por coincidência, corresponde a uma das linhas de pesquisa doPrograma de Pós-Graduação em História da UFPB, ao qual a revista Sæculumestá vinculada. Nesta perspectiva, a Saeculum busca, através de artigos oriundosde pesquisadores dos mais diversos locais do país e com base na abordagem daquestão regional a partir de diferentes matrizes conceituais e de distintos enfoquestemporais e espaciais, contribuir para o amadurecimento da reflexão teórica e daanálise empírica envolvidas na produção da nossa pós-graduação.

Os três primeiros artigos que compõem este dossiê versam sobre a questãoregional no período colonial. No primeiro deles, Mozart Vergetti de Menezes buscadiscutir o mapeamento e as singularidades das jurisdições política, administrativas,judiciária, militar e eclesiástica na relação da Paraíba com as diversas capitaniasdo Norte do Brasil; em seguida, Carlos Leonardo Kelmer Mathias busca destacar aimportância do sistema de concessão de mercê para a manutenção e reforço dasrelações de mando naquele período; pela análise dos dados sobre o comércio dacidade de São Paulo, Denise A. Soares de Moura no próximo artigo, aponta paraa possibilidade de redefinição do recorte regional e a identificação de outrasdinâmicas do comércio colonial e das relações de poder então vigentes. Os doisartigos que se seguem trazem temáticas relativas ao período imperial: a constituiçãoe o perfil sócio-político da Sociedade Federal de Pernambuco no início do períodoregencial é o que nos apresenta Sílvia Carla Pereira de Brito Fonseca e a discussãode como a manufatura açucareira na Província de São Paulo voltou-se para omercado interno e, acompanhando o desenvolvimento do complexo cafeeiro,originou a grande indústria do açúcar em solo paulista é o tema desenvolvido notrabalho de José Evando Vieira de Melo. Pesquisas centradas no período republicanoemergem com os artigos de Maria da Conceição Francisca Pires, que discute oprocesso de modernização ocorrido na cidade de Vitória (ES) durante o governoJerônimo Monteiro, de Geni Rosa Duarte que, ao analisar o abrasileiramento daprodução musical no país, põe em relevo os embates ocorridos entre as concepçõesde nacional e de regional e de Elison Antonio Paim, que procura demonstrar comose constituiu, historicamente, o Oeste Catarinense, tomando-se por base o sonhode colonização e de progresso. Finalmente, no último artigo que compõe o dossiê“História e Região”, Flávio Lúcio R. Vieira procura analisar a trajetória históricado conceito de região, pondo em relevo a abordagem da questão regional nordestinaa partir dos anos 50.

Além do dossiê “História e Região”, este número da Sæculum - Revista deHistória traz três artigos centrados na discussão do processo de formação deidentidades: no primeiro deles, Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva discute aconstrução, pela historiografia paraibana, da imagem heróica de André Vidal de

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Negreiros e a importância desta construção para a formação da identidade local;no segundo trabalho, Isis Pimentel de Castro aborda o papel crucial desempenhadopela pintura histórica e seus principais representantes na formação da identidadenacional; por fim, Isabel Cristina Martins Guillen e Ivaldo Marciano de FrançaLima discutem a espetacularização dos maracatus-nação em Recife entre asdécadas de 60 e 90 do século passado.

Assim, plena de multiplicidades e enfoques diferenciados, apresentamos ao leitormais esta edição de Sæculum, com o desejo de que os artigos aqui presentesprovoquem o debate e o diálogo entre historiadores, contribuindo para a construçãode uma história possível.

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JURISDIÇÃO E PODER NASCAPITANIAS DO NORTE

(1654-1755)

Mozart Vergetti de Menezes1

O Estado Moderno português, moldado e legitimado em face da guerra, do tributoe do comércio, procurou criar uma uniformização político-administrativa em meioà diversidade espacial - física, cultural, econômica e política - de seu território,sobre a qual buscou exercer o poder: a obra da centralização. Grosso modo, esseEstado recortou e classificou - como fruto da tradição antiga romana e que a Igrejahavia preservado e adaptado a suas necessidades durante a Idade Média2 - toda aextensão do Reino em circunscrições político-administrativas hierarquizadas entresi, organizando-as, as mais importantes, em Províncias, Comarcas, Correições,Provedorias e nos numerosos Concelhos3.

Nessas circunscrições, as competências jurisdicionais - militar, jurídica e fiscal- estavam doutrinadas e regidas por códigos escritos que ordenavam - legislando,disciplinando, executando - as ações dos Agentes da Coroa, ou dos FuncionáriosRégios, ou, simplesmente, como lhes chamavam os coevos e cujo termo usaremosdaqui para frente, dos Oficiais4. Do conjunto de leis consolidadas nas Ordenações- Afonsinas, Manuelinas e Filipinas - outros regulamentos, como os Regimentos5,apareciam diplomando os diversos órgãos oficiais e seus quadros, instruindo-os,ampliando-os e colocando limites à sua área de atuação, quer na perspectivahierárquica no interior do próprio órgão, quer nas dimensões limítrofes espaçojurisdicionais.

Ao transpor para a Colônia esta experiência institucional, as competênciaspolítico-administrativas tiveram que sofrer alguns ajustes, a fim de tornar possívelo projeto colonizador. Nessas adaptações, destacou-se a produção e uso correntedos Regimentos, já que se destinavam, tal e qual serviam no Reino, como diz Graça

1 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento deHistória e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

2 GOMES, Paulo César da Costa. O conceito de região e sua discussão. In: COSTA, Iná Elias da;GOMES, Paulo César da Costa & CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 49-75.

3 HESPANHA, Antonio Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político em Portugal,século XVII. Lisboa: Livraria Almedina, 1994. Primeiro capítulo: “A arqueologia do poder”,particularmente a secção 3: “A estrutura político- geográfica. Espaço e poder”, p. 85-111.

4 “A palavra ‘funcionário’, associada ao serviço público, foi criada no século XVIII. Durante a idademoderna, na Europa como na América colonial, dizia-se em diferentes línguas, ‘o ofício’. O detentordo ofício era um ‘oficial’, o que tanto podia significar ocupações como a de tecelão ou ferreiro,como um cargo público”. Cf. WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. O funcionário colonialentre a sociedade e o rei. In: PRIORE, Mary Del (org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estadoem 500 anos de História. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 141.

5 Diversos regimentos aqui utilizados se encontram em: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízesda formação administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB/ CFC, 1972.

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Salgado6, a “instruir os funcionários em suas respectivas áreas de atuação, bemcomo determinar as atribuições, obrigações e jurisdição dos diversos cargosincumbidos de gerir a administração colonial.” Desta forma,

tais diplomas legais eram baixados a cada um dos funcionários maisimportantes, traçando minuciosamente as suas competências e dosoficiais subalternos. Eram em sua maioria personalizados, emconsonância com os critérios de lealdade e confiança, além dos estritosmecanismos de vigilância e controle que marcavam as regras do poderabsolutista.7

A acentuação dos mecanismos institucionais de vigilância e controle, a que serefere a organizadora de Fiscais & Meirinhos, e que atuavam na Colônia brasileira,foram sentidos já na segunda intervenção político-administrativa, quando dacriação do Governo Geral, em 1548, que tentou coordenar a ação mais presentedos representantes da Coroa junto aos colonos. Neste sentido, Capitanias Reais,Ouvidorias, Provedorias da Fazenda e Almoxarifados foram sendo montados,durante ao processo de expansão territorial que perduraria mais de uma centúriaà frente, transformando o antigo mapeamento inicial das perfeitas linhas horizontaisformatadas nas Capitanias Hereditárias. Interesses econômicos diversos, de reinóise colonos desbravadores, comerciantes, proprietários de terras, de engenhos e deescravos, fracionaram o espaço colonial no afã de vencer os perigos externos einternos, configurando um novo mapa político-jurisdicional que moldou, militar eeconomicamente, em regiões factícias, uma outra geopolítica. Tais regiões, pelasbarreiras institucionais impostas à consecução de um mercado interno, tiveram dese interligar majoritariamente ao mercado externo, por meio da exportação dematérias-primas8. Desta forma, zonas de hinterlândia, como o porto do Recife,por exemplo, hegemonizaram não apenas o fluxo de circulação de mercadoriaspara o mercado externo mas, também, vez por outra, fizeram por onde se valerdesse poder econômico para a escolha e determinação das jurisdições política,administrativas, judiciária, militar e eclesiástica. Portanto, o objetivo desse artigoé trazer algumas luzes sobre o mapeamento destas jurisdições, suas singularidades,limites e abrangências na relação da Paraíba com o restante das Capitanias doNorte.

Os limites jurisdicionais nas Capitanias do Norte

Desde o fim do século XVI que das Capitanias de Itamaracá e, principalmente,de Pernambuco, se irradiaram os planos de conquista na direção do Norte doEstado do Brasil. Segundo Regina Gonçalves, os passos dessa conquista que foramabrindo espaços em expedições permanentes, estavam vinculados diretamente aosinteresses da sociedade colonial instalada em Pernambuco e cuja empresa se

6 SALGADO, Graça (org.) Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. 2 ed. São Paulo:Nova Fronteira, 1985.

7 SALGADO, Fiscais e Meirinhos..., p. 16.8 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O regionalismo nordestino. São Paulo: Moderna, 1984.

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ancorava no negócio do açúcar e no tráfico de escravos indígenas. Nesse sentido,a elite que se instalou nas áreas de expansão dessas atividades, principalmente naParaíba, deve ser compreendida como uma extensão da nobreza da terra dePernambuco que, de certa forma, fazia parte de uma nova geração de filhos deantigos senhores de engenho pernambucanos, mas sem oportunidade deenriquecimento quer na atividade produtiva, quer na ocupação dos cargos naadministração. Assim, a rede de solidariedade e de interesses comuns, que os uniacontra o inimigo comum - os índios hostis - ou na defesa da agromanufatura doaçúcar, só começou a ser rompida quando da ocupação holandesa. A partir daí éque se pôde assistir ao fracionamento interno dessa elite, devido às posiçõesdiferentes assumidas diante dos novos conquistadores9.

O retorno à estabilidade, após o período de beligerância, lançou a elite paraibana,ela mesma restauradora, na reativação econômica da capitania e nas ocupaçõesdos cargos administrativos ali existentes. Entretanto, a perda do contingentepopulacional e a destruição dos engenhos, acrescidos das baixas do açúcar nomercado internacional, deixaram a economia da Paraíba num estado desolador10.Como esses problemas não eram sentidos apenas nessa capitania, as mesmasmazelas, mesmo que numa dimensão mais branda, envolveram também a vizinha,de Pernambuco.

Esse quadro, nada promissor, era agravado pelo fato de Portugal estar em guerracontra a Espanha, levando o desgastado Reino a se limitar apenas a ajudas fiscais,não executando os senhores de engenhos por dívidas, nas suas propriedades efábricas. Assim, o capital para a reconstrução e reativação da economia emPernambuco passaria a sair de uma nova classe de homens de negócios,majoritariamente formada por uma população recém-chegada do Norte de Portugal,e que formaria a elite mascatal do Recife11.

Tornando-se não apenas a sede de capital e comércio, mas também ahinterlândia sobre a vasta região das Capitanias do Norte, Recife beneficiou-se,desde cedo, com os apertos do sistema monopolista, já que era para aquela cidadeportuária que se dirigia a nem sempre regular frota mercante portuguesa. Desse

9 GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da Paraíba(1585-1630). São Paulo: USP, 2004, p. 88-111 (Tese de Doutorado em História Econômica).Sobre a ultima questão, acerca das posições assumidas pela elite pernambucana na relação com osinvasores, durante o conflito e após a restauração, consultar: MELLO, Evaldo Cabral de. Olindarestaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.Particularmente, o capítulo VIII, “A querela dos engenhos”, p. 386-447.

10 FERNANDES, Irene Rodrigues & AMORIM, Laura Helena Baracuí. Atividades produtivas naParaíba. João Pessoa: Universitária/ UFPB, 1999, p. 25.

11 “O financiamento da produção açucareira achava-se agora a cargo desses homens [os mascates]que adiantavam ao senhor de engenho o capital de giro com que operar até a conclusão da safraanual, quando se procedia ao ajuste de contas entre o credor e o devedor. Fora do crédito mercantilhavia poucas fontes de financiamento: a família e os parentes, a Santa Casa de Misericórdia, ouentão alguma ordem religiosa ou terceira mais próspera, que eram, via de regra, as ordens doRecife, não as de Olinda, de modo que, em última análise, tratava-se aqui de uma forma disfarçadade crédito mascatal”. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates- Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.125.

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modo, ainda durante o último quartel do século XVII, a cidade do Recife dePernambuco se fez prevalecer como sede e residência dos agentes que controlavam,internamente, boa parte do financiamento da produção açucareira e o movimentocomercial, manejando a exportação de cargas de mais de uma centena de engenhos,além de boa parte da produção de couro e tabaco do restante das Capitanias doNorte.

Portanto, o exclusivismo colonial português, quando livre do jugo espanhol, erareeditado por uma série de medidas, como se pode constatar na criação daCompanhia Geral de Comércio, em 1649; no decreto determinando a exclusividadeaos navios portugueses de comerciarem com o Brasil, em 1661; na proibição aosnavios partidos das costas brasileiras de se dirigirem para outros portos que nãoos portugueses, em 1684; e no sistema de frotas, em 1690. Todas essas medidasapertavam o cerco contra o contrabando e contra o assédio de outras nações àsparagens atlânticas12 restringindo, ainda mais, os contatos com a Metrópole apenaspelo porto do Recife.

As distensões provocadas na elite paraibana, entre os partidários desse contatocom o comércio recifense - notadamente os grandes proprietários de engenhos - eos contrários a ele - notadamente os pequenos produtores e, principalmente, oscomerciantes locais, além dos administradores reinóis e da Câmara da Paraíba,que viam se esvaírem alguns impostos - desembocaram na intervenção da Coroa,que procurou, mesmo que de forma dúbia, regular os contatos dos produtoresparaibanos com o porto do Recife. Assim, o Conselho Ultramarino, após penderpara um lado e outro da questão, determinou, em 1711, que acaso houvessepossibilidade de chegarem navios na capitania, não consentisse o governador daParaíba liberar as cargas para o Recife. Pelo sim, pelo não, essa medida deixou emaberto os contatos entre as duas praças e engendrou algumas quebras na percepçãode parte das elites coevas paraibanas. Além de reconhecerem nesta medida umfechar de olhos da Coroa sobre a posição hegemônica do Recife, as elitesparaibanas viram, também, o recrudescimento de um antigo sentimento, a saber,de que o sucesso da capitania de Pernambuco era o prenúncio da decadência daParaíba. Ambrósio Fernandes Brandão, morador na Paraíba, ainda em 1617, foium dos portadores desse sentimento:

E tenho por sem dúvida, que, se não estivera [a Paraíba] tão conjuntacom a vizinha de Pernambuco, que já se houvera aumentado no seucrescimento... porque, como tem Pernambuco tão chegado os seusmoradores se costumam se prover dela das coisas de que se temnecessidade, fazendo levar, para esse efeito, muito açúcar que comutampelo que compram, com o que engrandecem de vez mais a capitaniade Pernambuco e diminuem a sua. E é a razão que deixam de vir nausa ela, que viriam, se os seus moradores esperassem por elas para sehaverem de prover do que lhes fosse necessário, e para esse efeitoreservassem seus açucares, tendo-os prestes para com eles se carregarem

12 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 7. ed.São Paulo: HUCITEC, 2002, p. 81-82.

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as ditas naus; mas, como estão já providas de Pernambuco, onde temdependido os seus açucares, as naus que vêm ao seu porto não podemdar saída que quiserem as fazendas que trazem, nem menos carregaremcom a brevidade que lhes era necessária e porque este respeito vêmpoucas, sendo a capitania capaz de carregar em cada um ano vintenaus. 13

Assim sendo, o significado estratégico que a capitania de Pernambucorepresentou, em momentos históricos determinados, tanto militar - como ponto deexpansão e conquista em direção ao Norte - como econômico - ao se projetarcomo sede financeira e de entreposto da hinterlândia das Capitanias do Norte - foio principal fundamento para a explicação da prevalência da hegemonia do capitão-general ali residente14 e da fundação do bispado em Olinda.

A jurisdição político-militar

Formalmente, os capitães-generais, hierarquicamente inferiores ao governador-geral ou vice-rei - estes, residentes na Bahia ou Rio de Janeiro (a partir de 1763) -se esforçavam para fazer valer suas ordens sobre os capitães-mores das capitaniassubalternas, ou sobre governadores nas suas áreas de influência. Isso porque, nessahierarquia, a principal manifestação de poder estava na condição do Capitão-general nomear seus militares subordinados - pelo tempo que a legislaçãopermitisse15 -, ou levantar homenagem aos comandantes nomeados diretamentepor provisão real. Também estava sob sua alçada manter o controle sobre o tribunalmilitar e, por força da capacidade em fazer alianças políticas com as elites locais ecom os responsáveis por postos-chave da administração, como provedores,ouvidores ou eclesiásticos, influenciar em decisões que, preferencialmente, estariamsob prerrogativa dos governadores ou capitães-mores locais. Porém, como todosos vice-reis, governadores-generais, capitães-mores e governadores possuíam umcanal de contato direto com o rei e seus ministros do Conselho Ultramarino edepois com as Secretarias de Estado, por vezes prevalecia menos o rigor formal da

13 BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Recife: Impressa Universitária,1962, p. 44.

14 “O título de capitão-general tinha sido, até então, reservado para os governadores-gerais, ereferia-se ao aspecto militar de sua atividade. O governador do Rio de Janeiro foi o primeiro areceber esse título em 1697; posteriormente foi concedido para outros governadores como os dascapitanias de Pernambuco, São Paulo e Minas de Ouro, Maranhão”. PERIDES, Paulo Pedro. “Aorganização político-administrativa e o processo de regionalização do território brasileiro”. Revistado Departamento de Geografia, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 9, 1995, p. 77-91.

15 Do lado da Colônia, cabe esclarecer que, comumente, os capitães governadores de capitania, nolitoral, teriam prerrogativa para proverem serventuários por três meses; governadores generais(Maranhão, Pernambuco, Salvador, Rio de Janeiro), seis meses, o mesmo caso para governadorescapitães do interior, tempo suficiente, acreditava-se, para regularizarem sua aprovação pelo rei. Cf.AHU_ACL_CU_014, Cx.7, D 625. (Quanto a essa cota leia-se, Arquivo Histórico Ultramarino _Arquivo Central _ Conselho Ultramarino _ 014 - identifica a numeração da Capitania da Paraíba -Caixa nº. _ Documento nº. Cf. MENEZES, Mozart Vergetti de; OLIVEIRA, Elza Regis de, & LIMA,Maria da Vitória Barbosa (orgs.). Catálogo dos documentos manuscritos avulsos pertencentes àCapitania da Paraíba, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa, Portugal. JoãoPessoa: Universitária/ UFPB, 2002.

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graduação da autoridade, constante nos Regimentos, que os meios de persuasão eos interesses pessoais, que ganhavam notoriedade e se consolidavam com o passardo tempo.

Um exemplo acerca dos inconvenientes por que passavam os vice-reis do Brasil,sobre terem de ficar lembrando as jurisdições aos governadores das capitanias, ouda sujeição desses aos governadores-gerais, é encontrado em uma carta do Condede Sabugosa, Vasco Fernandes César de Menezes, ao rei, datada de 1730. Nela,Sua Majestade é alertado de que os governadores de São Paulo, Minas Gerais e,principalmente, da Paraíba, estavam provendo pessoas para a serventia dos ofíciosde justiça e fazenda, quando isto deveria ser prerrogativa dos governadores do Riode Janeiro e Pernambuco e de estrito reconhecimento seu16.

Aos governadores era autorizado apenas nomear por três meses, cabendo-lhesdarem parte do ato ao governador-geral e este, ao vice-rei, fechando o circuitocom a aprovação ou não do rei. Havia, no entanto, uma quebra nessa articulação,lançando os governadores a contatos diretos com Lisboa e colocando sob suspeitaa autoridade do vice- reinado:

Desta [dou] conta a V. Majestade, para me livrar de entrar em contendascom os ditos governadores, e das conseqüências que se podem seguirde mandar suspender todos os oficiais que estiverem servindo porprovimentos seus, sem precederem as circunstâncias dispostas no meue seus regimentos; esperando que a Real Grandeza de V. Majestade dêa este abuso a providência que for mais conveniente para que se nãograve com tanta diminuição a jurisdição deste governo; aos que datolerância daquela introdução e de outros mais descuidos que temhavido se segue o dano de se constituírem os ditos governadores sódependentes das resoluções de V. Majestade, por cuja causa não seidas dependências das capitanias... senão curiosamente por pessoasparticulares.17

O motivo maior da indignação de Vasco de Menezes estava no que lherespondera, dias antes, o governador da Paraíba, Francisco Pedro de MendonçaGurjão, quando o vice-rei o advertiu para agir de acordo com o seu regimento. Nacapitania da Paraíba era uma prática comum do governador prover os ofícios nãoapenas da justiça e da fazenda, mas também dos postos milicianos. Por isso, ogovernador dizia estar bastante cônscio dos seus deveres e direitos, incluindo aquelesde caráter consuetudinário, isto é, pousado nos costumes, que lhe haviam deixadoseus antecessores. Entre esses direitos estava, por exemplo, o de prover os cargosda capitania e dar pronto reconhecimento ao rei e seu Conselho Ultramarino, afinal,“a regalia [de prover os postos vagos na Paraíba] é do lugar e não da pessoa”. Nãoreconhecia, enfim, no governador de Pernambuco, como queria fazer-lhe crer ovice-rei, “nem mais nem menos regalia ... porque as mesmas ordens que a estegoverno se passam se passam também aos mais da América” 18.

16 AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, Doc. 625.17 AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, Doc. 625.18 AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, Doc. 625.

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Nesses conflitos de jurisdição entre as Capitanias do Norte se pode perceberque a relação de subordinação da Paraíba com Pernambuco - diferentemente doCeará que, desde 1656, quando foi separado do Maranhão, ligou-se a Pernambuco,e do Rio Grande, subordinado à mesma capitania, em 1701 - não se firmouformalmente antes de dezembro de 175519. Na verdade, além dos problemas coma administração, envolvendo questões de provimento e nomeações, as tensões edisputas de jurisdição estritamente militar não foram poucas, podendo-se encontrar,já em 1661, o primeiro entrevero nas capitanias do Norte.

Tal fato aconteceu quando Francisco de Brito Freire, governador de Pernambuco,no afã de fazer valer sua patente de general, enviou para as capitanias de Itamaracá,Paraíba e Ceará algumas companhias de infantaria com seus comandantes, paraque nelas dessem voz ao seu comando. Mas, se nas capitanias de Itamaracá e doCeará tivera êxito20, na Paraíba seus planos foram frustrados.

À Paraíba, enviara Brito Freire uma companhia de infantaria com duzentoshomens, sob o comando de João do Rego Barros. O intuito de Brito Freire erarender as companhias da praça da Paraíba - que eram compostas por moradorese parentes próximos do lugar - e afirmar o seu poder com pessoas de sua inteiraconfiança. A resposta de Mathias de Albuquerque Maranhão, governador daParaíba, acalmou a ira dos moradores e soldados que já se amotinavam tomandoarmas. Para tanto, a sua estratégia foi receber a tropa enviada por Brito Freire,como se acatasse a sua ordem e resolver a questão direto com Francisco Barreto,governador-geral, na Bahia, e com o rei, através do Conselho Ultramarino. SegundoMathias Maranhão, sendo ele

mais velho e com larga experiência, não era razão que com um manceboapaixonado [como Brito Freire,] pusesse em risco o serviço de Vossamajestade em poder haver uma guerra civil entre uma e outra capitania,e quis antes que esse mancebo se vangloriasse de lhe parecer que estavavitorioso e que eu cedera de alguma maneira, do que pudesse dizer,que sendo velho lhe não soubera botar água na fervura.21

O resultado disso tudo não passou de um estranhamento muito comedido diantedas ações de Brito Freire, por parte da Coroa22. Em resumo, a Coroa fez crer aomancebo que a ele não se havia dado permissão alguma para consecução de “tal

19 RIBEIRO JR., José. Colonização e monopólio no Nordeste Brasileiro: a Companhia Geral deComércio de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). São Paulo; HUCITEC, 1976, p. 63.

20 Numa carta do capitão-mor do Ceará, Diogo Coelho de Albuquerque, ao rei [D. Afonso VI], em16 de maio de 1661, queixava-se do procedimento do governador de Pernambuco, Francisco deBrito Freire, que, ao enviar um ajudante seu para o socorro da capitania, acabou por tirar-lhe todaa jurisdição. AHU_ACL_CU_017, Cx. 1, Doc. 18 (Avulsos, Capitania do Ceará). Sobre Itamaracá,ver a carta dos oficiais da Câmara da Vila de N. S. da Conceição informando dos atos de BritoFreire. Cf. AHU_ACL_CU_015, Cx. 7, Doc. 704 (Avulsos, Capitania de Pernambuco).

21 AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, Doc. 47.22 Todavia, além desses problemas, confusões aprontadas pelo governador contra a elite localpernambucana resultaram no término antecipado do seu governo, sendo preso e deportado paraLisboa. ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflito: a força política do senhor de engenho.Recife: UFPE / Departamento de História, 1989, p. 96.

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novidade”, pois a Capitania de Itamaracá era de donatário enquanto as outrastrês capitanias eram reais e, como tais, subordinadas apenas à Bahia. Afora isto,não se moveu uma palha do que já estava feito - afinal, as tropas de infantariaacantonadas no Rio Grande e Ceará ficaram compostas com um contingenteoriundo de Pernambuco e a responsabilidade da manutenção das fortificações daParaíba passou para a Provedoria pernambucana, o que perduraria até 170423.Nessa disputa, como em muitas outras, a Coroa sempre se colocava por trás deuma enorme pendenga, fazendo avolumar no tempo uma pilha de recursos, atéque as partes se acomodassem. No caso em destaque, porém, a ação do governadorda Paraíba, ao pôr freios em Brito Freire, não apenas fez arrastar por muito tempoa autonomia administrativa da capitania como fez ver à elite paraibana que, daliem diante, seus interesses diferiam dos seus vizinhos.

Finalmente, política e militarmente, portanto, a Capitania de Pernambucoabrangia, além da área que lhe corresponde, as Capitanias de Itamaracá 24, Cearáe Rio Grande.

A jurisdição eclesiástica

Não foi apenas o problema com a jurisdição militar que perturbou a gestão deMathias de Albuquerque Maranhão. Mal se havia refeito dos entreveros com ogovernador de Pernambuco e já tornava a se comunicar com Lisboa, apelandopara não ser submetido a mais um poder que passava a se irradiar da capitaniavizinha. Em 1662, um ano após o episódio com Brito Freire, o governador escreveuà Coroa, juntamente com os oficiais da câmara da capital paraibana, pedindopara que não ficassem sujeitos à Vigariaria Geral de Pernambuco. Alegavam que,antes da retirada do Vigário da Matriz da cidade da Paraíba, por conta dosconquistadores batavos, o povo paraibano havia se acostumado a ver seu vigárioinvestido com os poderes de Provisor, Vigário Geral e Visitador das capitanias daParaíba e do Rio Grande. Além disso, tinham a lhes perturbar um motivo bastanteprático: a falta de condições para o traslado do Vigário de Pernambuco - afinal, adistância de mais de 25 léguas entre as cidades de Olinda e Paraíba, com muitosrios e riscos, iria trazer à capitania paraibana grandes dispêndios que não se poderiaaturar, principalmente devido ao estado miserável em que a guerra a deixara.Pediam os moradores da Paraíba então, ao rei, a mercê de mandar passar ordempara o Cabido da Bahia fazer a separação na forma antiga, ficando, finalmente,restituída a jurisdição do eclesiástico ao “primeiro Estado”, ou seja, à Bahia25.

23 ACIOLI, Jurisdição..., p. 96. Segundo Kalina Silva, após a reforma feita por Francisco de BritoFreire, em 1663, quando introduziu no Brasil a Milícia Auxiliar - a tropa de linha de Pernambuco-, isto é, a tropa profissional, passou a contar com uma força reserva dividida entre o Ceará e o RioGrande. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial -Pernambuco séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001, p. 90.

24 Em dezembro de 1688, por conta de uma contenda sobre a quem cabia a jurisdição, se ao novoouvidor da Paraíba ou ao governador de Pernambuco, acerca da suspensão aos oficiais da capitaniade Itamaracá que ali estivessem servindo sem pagar os novos direitos, alertava o rei que “ogovernador de Pernambuco não tem jurisdição em Itamaracá, mais que no militar pela cercania...”.IHGP/ PB Códice: 1816 - Ouvidoria, folha 14 v.

25 AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, Doc. 50.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 19

Passados quatro anos, contudo, sem que houvesse um posicionamento da Mesade Consciência e Ordens, para onde tinha corrido a solicitação, chegou à Paraíba,em 1676, o comunicado da fundação do bispado de Pernambuco, por Bula doPapa Inocêncio XI. A notícia, que não deve ter agradado aos paraibanos, pareceucomo mais um ferrete às suas costas, indicando a consolidação do poder clericalem Olinda. E, se antes, com a presença do Vigário Geral em Pernambuco, asdespesas com as visitações já apareciam como algo impeditivo aos cofres daFazenda da Paraíba, agora lhe somava um encargo extra e inesperado, acontribuição para o pagamento do Bispo e Cabido da Sé de Olinda. Uma provisãoreal, datada de 15 de janeiro de 1678, comunicava ao capitão-mor governador daParaíba e a seu provedor que, doravante, caberia à capitania de Itamaracá odispêndio anual de 400$000 réis, e à Fazenda Real da Paraíba, a soma de 300$000réis, cujos valores deveriam ser retirados dos sobejos dos dízimos das respectivascapitanias e passados para a Provedoria de Pernambuco26.

Porém, a falta de recursos na provedoria da Paraíba não demorou a ser sentida,e, ao cabo de dez anos, o provedor da capitania, Salvador Quaresma Dourado, noano de 1688, enviou uma carta ao rei, dizendo ser impossível continuar a atendera essa despesa, que já corria com cinco anos de atraso. Nessa carta, o provedoralegava que o arrendamento dos dízimos reais feitos no ano de 1687 chegara arender perto de 1:800$000 réis, e que tal receita deveria atender aos anos de atrasodo fardamento da Infantaria e, especialmente para aquele ano, financiar as propinaspara as munições. Além disso, também cabia-lhe os gastos das campanhas contraos gentios e com o socorro da própria Infantaria pois, tendo em vista os poucosrendimentos dos subsídios do açúcar administrados pela câmara municipal, tudoacabava mesmo sobrecarregando a consignação do dízimo.

Desta forma, Salvador Dourado lastimava não ter como se virar com o poucodinheiro de contado que chegava às suas mãos. Afinal, os pagamentos dos contratosdos dízimos do açúcar seguiam a mesma fórmula de todos os outros contratos quecorriam na capitania, ou seja, eram divididos em três quartéis: o primeiro emdinheiro, o segundo em fazenda e o terceiro em açúcar. Assim, se o dinheiro nãoera bastante para as despesas com os filhos da folha, a fazenda não chegava paratodas as fardas e o açúcar acumulava-se nos passos reais - ora por faltar gente decabedal para arrematá-lo, ora por não ter ordem do rei ou do governador-geralpara levar o açúcar até Pernambuco -, como, então, desatar o nó e pagar aquelesque só aceitavam seus ordenados em dinheiro? O jeito era partir para o confrontoe vencer pela exaustão, mas com o bispo de Pernambuco foi diferente. As sugestivascaracterísticas provocadas pelo desenrolar dos contatos entre os provedores dasduas capitanias, Pernambuco e Paraíba, para solucionar este fato, trazem àsuperfície um complicado jogo de emulação entre os provedores, como meio desalvaguardarem os compromissos assumidos. Além disso, revelam como as formasde pressão do poder eclesiástico se colocavam acima da jurisdição das capitanias,para fazer valer os ordenados dos seus prelados.

Como referimos acima, em 1688 o atraso somava cinco anos e o numerário jápassava da casa dos cinco mil cruzados, ou seja, pouco mais do total dos dízimos

26 AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, Doc. 105.

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arrematados. Boa parte da renda havia, mas não na espécie que queria o bispo.Estocado em açúcar, o produto estava à espera que o prelado se dignasse a mandarbuscá-lo “por sua conta e risco”. Já fazia meses que Salvador Dourado,repetidamente, colocara o açúcar em pregão, mas os lanços eram bem abaixo dovalor alcançado na última arrematação, $960 réis a arroba.

Acresce esclarecer que, para o bispo, até então, nada faltara. Na verdade, osanos em atraso haviam sido cobertos pelo provedor de Pernambuco, João do RegoBarros, que só agora passava a régua nos valores represados e pressionava obispo a mover-se para cobrar a fatura. O padre, contudo, além de se mostrarbastante intolerante, fazendo uso de censuras, foi mais incisivo, e, de pronto,excomungou o provedor da Paraíba, Salvador Dourado27.

Embora o recurso da censura pelos clérigos fosse algo recorrente no mundoluso ou na América Espanhola, principalmente quanto aos embates sobre a licitudeou não da tributação dos bens ou renda da Igreja28, a excomunhão do provedor daParaíba soou como uma ação anômala, tanto para os conselheiros do Ultramarinocomo para o procurador da Coroa. Ambos entenderam que se deveria estranhar obispo e os cônegos, pois

se não podiam cobrar dos oficiais de Vossa Majestade por censurasporque Vossa Majestade os mandava pagar de suas rendas seculares, eos oficiais que os haviam de pagar não eram obrigados a este pagamento,senão pela obediência que deviam aos preceitos de Vossa Majestade ea seus mandos, mas não se obrigavam ao Bispo, nem aos cônegos, eassim, nestes termos, não residia a jurisdição de os constranger. 29

Portanto, não houve contra Salvador Dourado lesão em matéria de fé, nemdesacato ao representante eclesiástico que justificasse as censuras morais. Ajurisdição para obrigar o oficial da Fazenda a fazer o pagamento só cabia ao rei ea mais ninguém. Tal interferência do poder eclesiástico nas rendas seculares desua majestade, subtende-se, atacava não a pessoa do oficial, mas ao cargo, cujoinvestido devia obediência aos preceitos do monarca e a seus mandos, ou seja, oataque celeste acabava por resvalar na figura do rei.

27 AHU_ACL_CU_014, Cx.2, Doc. 166.28 O clero regular, muito comumente, quando pressionado pelos oficiais da Câmara da Paraíba pararesponderem positivamente à cobrança dos subsídios do açúcar fabricados em seus engenhos,costumavam ameaçar os fiscais com censuras. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, Doc. 168. Quanto àquestão da América Espanhola, dizia o procurador da Coroa, neste caso em destaque, “que, nãohavia muitos anos, que estes procedimentos de censuras se mandaram estranhar nas Índias deCastela”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, Doc. 166. Quanto à licitude ou não da tributação dosbens da Igreja. HESPANHA, Antônio Manuel. “A Fazenda”. In: MATTOSO, José (dir.) & HESPANHA,Antonio Manuel (org.). História de Portugal: o antigo regime (1621-1807). vol. IV. Lisboa: EditorialEstampa, 1998, p. 183-184.

29 AHU_ACL_CU_014, Cx.2, Doc. 166. Luis Filipe Alencastro, nos traz um outro exemplo deexcomunhão ao narrar o processo de embate entre Fernandes Vieira, quando governou Angola, eos jesuítas, nas querelas para controle do tráfico de escravos. Cf. ALENCASTRO, Luiz Filipe. Otrato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000,p. 283.

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O estranhamento não foi direcionado apenas ao padre. Por ter instigado obispo a cobrar por uma dívida que era sua e não do prelado - afinal, a mesma jáhavia sido paga pelo próprio João de Barros -, o provedor de Pernambuco foipenalizado por desvio de conduta, com a perda do dinheiro. A Provedoria daParaíba não lhe devia mais nada. Porém, isto não livrou Salvador Dourado dasobrigações futuras, com o envio anual dos 300$000 réis. Comprova isto umacorrespondência do mesmo provedor paraibano, dez anos após, 1698, maldizendoa terra por faltar gente de cabedal para arrematar, em dinheiro, seiscentas arrobasde açúcar que serviria à côngrua do bispo30. Neste caso, o volume do açúcar comoo valor do arremate, orçado em $960 réis, coincidia, mais ou menos, com cercade dois anos de atraso. E como não aparecia quem desse mais que $840 réis naarroba, “não livrando a Fazenda do dano da diminuição”, veio um mercadorgarantindo que pagaria o valor maior do arremate caso lhe fosse ofertado o prazode um ano, tempo suficiente para a chegada da próxima frota31. Como parece, seassim foi realmente efetivado, este teria sido o último envio para o bispado dePernambuco, já que as reclamações, assim como os registros desse pagamento,somem dessa data em diante.

Independentemente de ter havido ou não o envio dessa contribuição, uma coisaé certa: o Bispado de Pernambuco era uma realidade e sua jurisdição abrangia,desde a sua fundação, uma área que, segundo Jorge Siqueira32, estendia-se, nolitoral, da foz do São Francisco até Fortaleza, no Ceará. Quanto ao interior,curiosamente, delimitava-se no horizonte, ou seja, era indicado pelo imprecisotermo de “pela terra a dentro”. Um relatório datado de 1745, de autoria do bispoolindense D. Fr. Luis de Santa Tereza e transcrito por Siqueira, dá a noção daimensidão espacial que cobria o bispado de Olinda:

Ao oriente é banhado pelo oceano, ao Norte estende-se quase ao imensoe divide-se do bispado do Maranhão pela longa cadeia de montes quesão chamados dos cocos e termina na divisão das águas abundantesnaquelas serras. Do bispado do Pará separa-se pelos lugares chamadosTerra Nova. Do bispado do Rio de Janeiro pelo riacho chamado dasAreias. Assim, estende-se a diocese para o Norte 700 léguas, tendo delargura, ora 80, ora 100 léguas. Ao Sul limita-se com o arcebispado daBahia pelo famoso Rio São Francisco que corre entre as duas terras eas separa e que tem 100 léguas de comprimento. 33

A jurisdição judiciária

Criada em 25 de janeiro de 1688, a jurisdição da Ouvidoria Geral da Paraíbaultrapassava, significativamente, as dimensões geográficas dos limites da noção

30 AHU_ACL_CU_014, Cx.3, Doc. 217.31 AHU_ACL_CU_014, Cx.3, Doc. 217.32 SIQUEIRA, Antônio Jorge de. Ilustração e descolonização: o clero na Revolução Pernambucanade 1817. São Paulo: FFLCH-USP, 1980 (Tese de Doutorado em História).

33 SIQUEIRA, Ilustração e descolonização..., p. 113. Registre- se, entretanto, que tal configuraçãoespacial desta diocese parecia inalterada ainda nos inícios do século XIX. A afirmação é do

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espacial e política da capitania. Assim se expressava o rei quanto à extensão e osmotivos da sua criação:

Hei por bem mandar assinar por território a ouvidor da Paraíba, quemandei criar de novo, o Rio Grande e Itamaracá, para concorreremnestas mesmas razões para se unirem, que me moveram a criar na Paraíbaouvidor letrado, e por entender ser nelas melhor administrada a justiçado que agora foi pelo da Bahia a quem competiam não chegarem nuncaem correição os corregedores pela sua distância. 34

Apesar de não constar nesta provisão real, existe o registro de que a Capitaniado Ceará, pelo menos até o final do primeiro quartel do século XVIII, tambémesteve submetida à jurisdição da Ouvidoria da Paraíba. Uma provisão régia, datadade 7 de janeiro de 1723, extinguiu essa anexação, criando uma ouvidoriaindependente para o território cearense35.

É interessante constatar como tal conformação geográfica inverte a ordem dosfatores até então compreendidos nos jogos da determinação espacial das jurisdiçõespresentes nas Capitanias do Norte. Nomeadamente quanto à questão judiciária, aComarca da Paraíba teve, como suas anexas, as comarcas de Itamaracá, RioGrande e, durante o período acima referido, também a comarca do Ceará. Todavia,quando a capitania de Itamaracá foi comprada por D. João V aos herdeiros dePero Lopes de Souza, em 22 de setembro de 172336 e, finalmente, quando da suaextinção e incorporação em definitivo a Pernambuco, pelos anos de 1752-5437,extinguiu-se a anexação judiciária de Itamaracá à comarca da Paraíba. Isso seinfere a partir de um ofício encaminhado pelo ouvidor geral da Paraíba ao secretáriode Estado e Ultramar, informando a extensão das comarcas, distritos e rios da suajurisdição, em 1757, para o caso de vir a sofrer alguma mudança por conta daanexação da capitania da Paraíba à de Pernambuco, onde já não há mais referência

cônego José Barata, que, no seu “Apontamentos para a história eclesiástica de Pernambuco”,afirmara que, durante a administração do bispo Azeredo Coutinho à frente do Seminário deOlinda, “a diocese de Olinda abrangia ainda todo o antigo território da Ibiapaba ao São Franciscopela costa e estendendo a sua jurisdição a novos núcleos fundados no interior”. Segundo estemesmo autor, “este imenso território estava dividido em 120 paróquias inamovíveis além deinúmeros curatos amovíveis. As paróquias inamovíveis estavam distribuídas do seguinte modo:no Ceará, 24; no Rio Grande do Norte, 11; na Paraíba, 22; na Comarca das Alagoas, 14; na doRio São Francisco, 18; no distrito de Pernambuco, 26 e no de Minas Gerais, 6”. SIQUEIRA,Ilustração e descolonização..., p 115.

34 Provisão passada a Diogo Rangel Castelo Branco, em 25 de janeiro de 1688. IHGP/ PB Códice:1816 - Ouvidoria, folha 4.

35 “D. João por graça de Deus faço saber a vos capitão-mor da capitania da Paraíba que por serconveniente ao meu serviço e a boa administração da justiça dos meus vassalos conviventes naCapitania do Ceará e se atalharem os insultos que eram freqüentes nas terras dela, houve por bemcriar o lugar de Ouvidor Geral para a dita capitania (...), Lisboa Ocidental, a 7 de janeiro de 1723".PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a História da Paraíba. Vol. 1. 2. ed. fac-similar. JoãoPessoa: Editora Universitária, 1977, p. 120.

36 JORDÃO FILHO, Ângelo. Povoamento, hegemonia e declínio de Goiana. Recife: CompanhiaEditorial de Pernambuco, 1977, p. 144.

37 PERIDES, “A organização político-administrativa...”, p. 83.

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à comarca de Itamaracá38. Todavia, ainda fica em aberto a questão de saber oporquê da necessidade das constantes delimitações, frações e extensões dacircunscrição judiciária.

Desta forma, no âmbito das Capitanias do Norte, além da Ouvidoria Geral daParaíba, teríamos a Ouvidoria do Ceará, criada em 1723, e a Ouvidoria Geral dePernambuco, que abrangia a comarca de Alagoas e Itamaracá sendo essa última,somente anexada em meados do século XVIII.

A jurisdição fazendária

Dentre as jurisdições até agora apresentadas, talvez a mais difícil de definiçãoseja a dos provedores. Ligadas às capitanias como órgãos arrecadadores e deprovimento, as provedorias da Fazenda foram sendo recriadas nas capitanias doNorte por volta das primeiras décadas após a consolidação da vitória sobre osholandeses. Diferentemente disso, contudo, a Capitania do Ceará só veio a conheceruma provedoria quando da criação de sua comarca, em 1723, já que a provedoriado Rio Grande a englobava39.

O limite espacial da arrecadação das provedorias da Fazenda, apesar de nãoultrapassar os termos da demarcação territorial das capitanias, poderia revelaralgumas exceções, pois o imposto da dízima da Paraíba foi, durante muito tempo,arrecadado pela alfândega pernambucana. Por outro lado, quando nosaproximamos das despesas, ou seja, das atividades de pagamento, municiamentoe abastecimento a que estavam obrigadas as provedorias, isto tende a se acentuar,elevando em demasia o número de contato entre as capitanias. Desta forma,diferentemente do que supôs Dauril Alden para o Brasil Colônia, a ajuda financeiraentre as capitanias foi um fator tão importante quanto o existente no ImpérioEspanhol. Para este historiador, tal expediente havia sido apenas abundantementeexperimentado na América Espanhola, onde as partes mais ricas, como o vice-reinado da Nova Espanha, davam suporte aos distritos menos prósperos como aFlórida, a Venezuela ou as Filipinas40.

38 AHU_ACL_CU_014, Cx. 20, Doc. 1564.39 No provimento do Ouvidor (Provedor) do Ceará, em 1723, lê-se: ... “houve por bem criar o lugarde Ouvidor Geral para a Capitania do Ceará, mandando unir ao seu lugar o de Provedor dafazenda e separando o da Provedoria do Rio Grande a que andava anexo atendendo a que, poreste meio, não só aumentarão as minhas rendas mas que os emolumentos dados a ocupação...”.PINTO, Datas e notas..., p. 120. É oportuno dizer que a provedoria do Rio Grande estava anexa àOuvidoria Geral da Paraíba, confundindo ainda mais as jurisdições.

40 No Brasil, este autor cita apenas um caso, o do subsídio de Santos: “Quando São Paulo e Minaspassaram a ser governados separadamente, em 1720, a corte transferiu a jurisdição sobre o portodo Rio de Janeiro para São Paulo. Uma grande fortaleza passou a ser construída em Santos, edesde que os recursos de São Paulo tornaram-se insuficientes, a coroa depositou em juízo, em1722, uma parte das remessas da alfândega coletada no Rio de Janeiro a fim de por cabo à obra.A intenção dessa ação era de ser temporária, mas tornou-se permanente. Com pagamentos (contasa pagar) freqüentemente atrasados, o subsídio de Santos continuou sendo uma fonte de disputasentre autoridades nas duas capitanias gerais durante todo o século XVIII”. ALDEN, Dauril. Royalgovernment in Colonial Brazil, with special reference to the administration of the Marquis ofLavradio, viceroy, 1776-1779. Los Angeles: University of California Press, 1968, p. 300.

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No Brasil, além do envolvimento da provedoria paraibana no pagamento dobispo residente em Olinda, maiores ainda, e constantes, foram os dispêndiosfinanceiros empreendidos pela provedoria de Pernambuco com as capitanias doNorte. O epíteto de capitania-geral reconhecido entre as suas anexas e as correlaçõesde forças político-militares anunciavam, também, a relação de dependênciaeconômica do restante das capitanias para com a provedoria de Pernambuco.

Dessa forma, durante todo o período que vai dos fins do século XVII à primeirametade dos setecentos, Ceará, Rio Grande e Itamaracá dependeram, sob diversosaspectos, da provedoria da Capitania de Pernambuco. Fosse para o pagamentodos clérigos e militares ou mesmo para manutenção e construção de fortalezas noslimites compreendidos dessas capitanias, era a provedoria de Pernambuco quedespendia muitos dos recursos necessários para a reprodução da vidaadministrativa41.

Todavia, de acordo com os Regimentos de 1548, a jurisdição dos provedoresnão deveria ir além de suas capitanias, sendo sempre sugestionados pelo ConselhoUltramarino os riscos administrativos que poderiam advir da mistura das receitase despesas entre as capitanias. Por outro lado, boa parte das capitanias do Norte- como o Ceará, Rio Grande e Itamaracá - permaneceram, durante praticamentetoda a primeira metade do século XVIII, sob o regime da dupla jurisdição. ACapitania da Paraíba, contudo, apenas conheceu a dupla jurisdição - provedor/ouvidor - durante a gestão do ouvidor Jorge Salter de Mendonça, pois o mesmoassumiu a provedoria tendo em vista o falecimento do provedor Salvador QuaresmaDourado, em 1732. Por esse regime, ficavam justapostas, nas mãos do ouvidor, asduas áreas de atuação, Justiça e Fazenda - confundindo ainda mais as atribuiçõesdesses oficiais quando as próprias ouvidorias acabavam por se fundir em outrascomarcas.

***

Finalmente, para encerrar, e voltando um pouco a nossa introdução, é bomlembrar que, na tentativa de compreensão do processo de transplante/ adaptaçãoda instituição administrativa, há se de pensar, também, que a dimensão dos espaçosjurisdicionais que cada oficial maior detinha e defendia, respectivamente, nas suasáreas de atuação, não estava apenas circunscrita na correlação de força jurídica,entre tribunais e indivíduos mas, também, se constituía a partir de um raio concretode atuação territorial. Nesse sentido, a título de comparação, por exemplo, entre osobjetivos propostos e a exeqüibilidade da dimensão de uma dada jurisdição - istoé, uma área territorial dentro da qual uma autoridade exerce o poder na Colônia ena Metrópole - vemos, então, que no Reino, segundo Manuel Hespanha, a jurisdiçãoestava doutrinada no antigo padrão romano fixado na dieta, ou seja, “a distância

41 Em 1726, o superior do hospício dos jesuítas no Ceará, padre João Guedes, requereu ao rei queseus ordenados anuais fossem pagos pela Fazenda de Pernambuco. Cf. AHU_ACL_CU_017, Cx.2, Doc. 88 (Avulsos, Capitania do Ceará); Nas mesmas, condições solicitou ajuda de custo ocirurgião da fortaleza do Ceará, Cosme Gomes Pereira. AHU_ACL_CU_017, Cx. 2, Doc. 89 (Avulsos,Capitania do Ceará).

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que podia ser percorrida em um dia, medida que não deveria ultrapassar a 5 léguas,ou seja, a 30 quilômetros” 42.

Ainda que, para o Reino, esta determinação se tornasse demasiadamente grandequando ultrapassava dez léguas, ao ser transportada para as dimensões continentaisdo Brasil, mesmo se supondo o uso de meios de comunicação e transporte maiságeis, como o cavalo ou as embarcações na costa, ela não obedecia à mesmadoutrina da dieta, excedendo, em muito, o raio jurisdicional previsto. Isto aconteciaporque, para além do espaço compreendido de uma dada jurisdição, que poderiaultrapassar a medida das cinco léguas recomendadas, a ela se poderiam somar,como vimos, outras anexas, como no caso da Ouvidoria Geral da Paraíba,agravando ainda mais a situação. Assim, do transplante original das capitaniashereditárias com seus donatários, às capitanias reais com seus capitães-governadores, passando pelas comarcas adstritas aos ouvidores ou à jurisdiçãoda provedoria, que se limitava, de maneira híbrida, nas dimensões das comarcasou nas capitanias da Colônia, a experiência do Reino estaria, literalmente, muitodistante e incapaz de solver esse imbrogglio territorial.

42 HESPANHA, As vésperas do Leviathan..., p. 91.

RESUMOO objetivo desse artigo é trazer algumas luzessobre o mapeamento das jurisdições política,administrativa, judiciária, militar eeclesiástica, com suas singularidades, limitese abrangências, na relação da Paraíba como restante das Capitanias do Norte, no períodocompreendido entre a capitulação holandesa(1654) e a anexação da Paraíba aPernambuco (1755). Para tanto, discute, apartir de uma breve consideração sobre opoder econômico que o porto do Recifesignificou como pólo de hinterlândia de umavasta região, como esse espaço, através deseus representantes, influiu para se valer dessepoder econômico para tentar monopolizarfrente a Coroa, a escolha e a determinaçãodas jurisdições a partir da Capitania dePernambuco.Palavras-Chave: Capitanias do Norte;Jurisdição; Conflito.

ABSTRACTThis paper intends to map the politics,administrative, judiciary, military andecclesiastical jurisdictions in the NorthCaptaincies, with their singularities, limits andinclusions, in the relationship of Paraíba withthe another Captaincies, between the Dutchcapitulation (1654) and the annexation ofParaíba to Pernambuco (1755). In that way,starting from an briefly consideration aboutthe economical power of Recife harbor as apole of a vast countryland, it discusses howthat historical and geographical spaceinfluenced the Portuguese Crown to choiceand determine the jurisdictions starting fromthe Captaincy of Pernambuco, through itsrepresentatives, using that economical powerto monopolize these administrative functions.Keywords: North Captaincies; Jurisdiction;Conflict.

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O SISTEMA DE CONCESSÃO DE MERCÊ COMOPRÁTICA GOVERNATIVA NO ALVORECER DA

SOCIEDADE MINEIRA SETECENTISTA: O CASO DA(RE)CONQUISTA DA PRAÇA FLUMINENSE EM 1711

Carlos Leonardo Kelmer Mathias1

Introdução

Em 17 de agosto de 1710 o corsário Jean-François Duclerc, comandando umafrota composta de seis naus, deu cores vivas ao medo que então pairava sobre apopulação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o temor frente ao perigoexterno, notadamente o inimigo francês. Após o desembarque de 1.200 francesesna praia de Guaratiba e a marcha em direção à cidade, o governador Franciscode Castro Morais pôde, por volta de meados de setembro, finalmente ter um poucode tranqüilidade. A investida malograva no mesmo dia em que os francesesinvadiram a cidade, sendo alguns mortos, outros feitos prisioneiros2.

Um ano após terem sido expulsos da praça do Rio de Janeiro, novamente umaesquadra francesa daria o ar da sua graça nas águas cariocas. Desta feita, sob ocomando do capitão Duguay-Trouin - protagonista da mais espetacular manobranáutica no que diz respeito a um aporto na Baía de Guanabara. A perplexidadecausada por tamanha façanha teve concorrência somente no medo provocadopela mesma. Dois dias após tal feito, em 14 de setembro de 1711, 3.300 almasfrancesas passaram a terra firme sem encontrar a menor resistência. Perplexidadee medo logo se tornaram pânico e, ao que parece sem muito constrangimento,originou a fuga desesperada de moradores, soldados, oficiais, autoridade civis emilitares abandonando, ao temido inimigo francês, uma das mais importantespraças comerciais das conquistas portuguesas, a cidade de São Sebastião do Riode Janeiro3.

Após terem sitiado a cidade durante um período de aproximadamente doismeses, os franceses partiram com um pagamento em torno de 610 mil cruzadospelo regaste da praça e mais o butim da incursão. Entrementes, e em função danova invasão do velho inimigo francês, o então governador da capitania de Minasdo Ouro, D. Antônio de Albuquerque, organizava uma diligência de (re)conquistada praça invadida, composta de mais de seis mil homens - entre brancos, negrose, provavelmente, índios flecheiros. Embora o referido governador tenha atingidomuito tarde a cidade - quando D. Antônio lá chegou encontrou-a saqueada e com

1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista CNPq. E-Mail:<[email protected]>.

2 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2003, p. 268-270.

3 BICALHO, A cidade e o Império..., p. 271-272.

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as capitulações já assinadas 4 - isso não significou que aqueles que o auxiliaramem sua diligência não fossem merecedores de todas as “honras, mercês eprivilégios”, que Sua Majestade fosse servido fazer-lhes quando houvesse ocasião.

A importância dos serviços prestados a el-Rei pode ser medida pela importânciada diligência em questão. Não se tratava somente da luta para expulsar, de umadeterminada conquista, qualquer um inimigo que a houvesse tomado. Estamoslidando com a praça central de uma rede responsável pela ligação entre a Prata dePotosí e os viventes africanos, configurando-se a rede Luanda - Rio de Janeiro -Buenos Aires, no “fator constitutivo da autonomia econômica da Américaportuguesa”5, Não obstante, desde - e devido - à fundação da Colônia doSacramento, o porto do Rio de Janeiro assumiu uma importância fulcral no interiorda região Centro-Sul da América e da parte subequatorial do Atlântico. Com oouro, o Rio de Janeiro foi chamado ao interior, respondendo com o aumento desua importância administrativa e militar. No eco das inúmeras guerras que figuraramna Europa dentre os séculos XVII e XVIII, a perda da cidade de São Sebastião doRio de Janeiro poderia resultar na perda do ouro das Gerais, do controle docomércio Centro-Sul da colônia e de uma considerável fatia da rede comercial queunia, via Atlântico, a costa africana com a americana6. Em resumo, “a perda doRio de Janeiro significava a perda do Brasil e, portanto, da moeda de garantia quePortugal dispunha para se sustentar na intricada rede dos conflitos em torno dahegemonia européia durante o século XVIII”7. De fato, os vassalos de El-Reimereciam, mesmo que minimamente, serem recompensados por seus valorososserviços8.

Originado das guerras de Reconquista da Baixa Idade Média, o sistema demercês residia na recompensa régia à aristocracia por determinados serviçosprestados, contribuindo para uma hierarquização da sociedade fundada emprivilégios. Com a tomada de Ceuta, em 1415, tais valores, em sua essência, foramtransferidos para o além-mar9. Em linhas gerais, a prática de concessão de mercêstinha início com o rei e ia sendo transmitida a pessoas de menor hierarquia de4 BICALHO, A cidade e o Império..., p. 271-279.5 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2000, notadamente p. 109-116.

6 Acerca da importância assumida pela praça do Rio de Janeiro no contexto regional e ultramarinodos domínios portugueses cf. BICALHO, A cidade e o Império...; ALENCASTRO, O trato dosviventes...; e SAMPAIO, Antônio Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais econjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 - c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,2003.

7 BICALHO, A cidade e o Império..., p. 68.8 Evaldo Cabral de Mello ressalta o discurso da idéia de restauração presente na nobreza da capitaniade Pernambuco. Segundo o autor, “o tema da restauração como empresa histórica da ‘nobreza daterra’ passou a constituir, à medida que se aguçava o conflito entre mazombos e mascates, a justiçado direito que ela se arrogava de dominar politicamente a capitania”. A argumentação de taisvassalos passava pela perspectiva de que “à custa de nosso sangue, vida e despesas de nossasfazendas, pugnamos há mais de cinco anos por as [capitanias] libertar da possessão injusta doholandês”. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana.Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 106.

9 FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial doRio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”. Topoí: Revista de História, Rio de Janeiro, v. 1, 2000, p. 69.

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forma a reproduzir o poder e hierarquizar os sujeitos, inserindo-os em relações defavor e dependência, o que não suprimia seus projetos pessoais mas forçava-os acoadunarem-se com os recursos materiais e sociais por esses sujeitos detidos, comos quais buscavam efetivar tais projetos.

Com a expansão e a conquista de novos territórios, a Coroa pôde atribuir ofíciose cargos civis e militares; conceder privilégios a indivíduos e grupos; e dispor denovos rendimentos com base nos quais se distribuíam pensões. Essas concessões“eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que seestendiam desde o reino, propiciando a expansão dos interesses metropolitanos,estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos”10. Não somente na América,mas também em outras partes dos domínios lusos a visão dos indivíduos que forampara o ultramar crendo na hierarquização da sociedade, com base nas “qualidades”naturais e sociais das pessoas, seria reforçada pela idéia de conquista e pelas lutascontra o gentio as quais, por serem realizadas em nome de Sua Majestade, deveriamser recompensadas com mercês e privilégios. Dentre os objetivos de taisconquistadores residia a vontade de aumentarem seu cabedal material, simbólicoe político, resultando em uma possibilidade de serem revestido com o manto danobreza e, por conseqüência, ascenderem na hierarquia estamental, o quesignificava reforçar o exercício de suas prerrogativas de mando11. O presente textovale-se de tais pressupostos ao analisar as mercês e privilégios concedidos aosindivíduos que auxiliaram D. Antônio de Albuquerque pela feita da invasão francesaem 171112.

A mercê como prática governativa, o caso de (re)conquistada praça fluminense em 1711

Analisando - para o período compreendido entre 1710 e 1717 - as mercês e osprivilégios recebidos pelos indivíduos que auxiliaram o governador D. Antônio deAlbuquerque Coelho de Carvalho em sua descida à praça do Rio de Janeiro em1711 percebe-se que, à exceção de Caetano Álvares Rodrigues - cujas mercês eprivilégios lhe foram concedidos, ou antes de 1709, ou depois de 1717 -, todos osdemais receberam uma determinada mercê por “ter havido mister” na diligênciaorganizada por D. Antônio de Albuquerque, demonstrando o caráter devido daretribuição sob o qual el-Rei encontrava-se envolto13.

10 FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Bases da materialidade e daGovernabilidade no Império: uma leitura do Brasil colonial”. Penélope, Lisboa, n. 24, 2000, p. 23.

11 FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terrado Rio de Janeiro, século XVII - algumas notas de pesquisa”. Revista Tempo, Niterói, UFF, v. 15,2003; e FRAGOSO, “A nobreza da República...”. Para a idéia de conquista na Idade Média, verBARTLETT, Robert. The making of Europe. Princeton: Princeton University Press, 1993.

12 Destaco que os indivíduos arrolados no presente texto foram identificados a partir dos 154 nomesque viriam a participar da revolta de Vila Rica de 1720 quer como revoltosos, quer não. Esses 154homens foram por mim trabalhados em minha dissertação de mestrado. Cf. KELMER MATHIAS,Carlos Leonardo. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da revolta mineira de VilaRica, c. 1709 - c. 1736. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2005 (Dissertação de Mestrado em História).

13 FRAGOSO, BICALHO, & GOUVÊA, “Bases da materialidade”...; e XAVIER, Ângela B. &HESPANHA, António M. “As redes clientelares”, In: HESPANHA, Antônio Manuel (org.). Históriade Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 339-349.

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Trazendo à baila as datas das retribuições angariadas por aqueles atuantes em1711, percebe-se certo padrão de atuação dos dois governadores compreendidosentre 1710 e 1717, quais sejam: o próprio D. Antônio de Albuquerque - 1709 a1713 - e D. Brás Baltasar da Silveira - 1713 a 1717. Para tanto, apresento umaexposição de alguns desses indivíduos tendo por parâmetro o caráter emblemáticode tais exemplos.

Pascoal da Silva Guimarães foi um dos homens mais poderosos havidos nasMinas do Ouro até que o Conde de Assumar aterrorizasse Vila Rica em 1720.Manteve, em função de sua posição social, econômica e política, uma relação deinterdependência com os dois governadores precedentes a D. Pedro de Almeida.

Com sua nomeação de sargento-mor, Pascoal da Silva tornou-se o real precursorde Vila Rica, fazendo parte ativa na guerra dos Emboabas, ocasião na qual fundouos laços de reciprocidade por intermédio dos quais haveria de se relacionar comD. Antônio de Albuquerque. Passando o referido governador à capitania emebulição acompanhado apenas de vinte soldados e alguns oficiais, Pascoal daSilva sustentou a ele e a sua tropa por espaço de quinze dias - sempre às suascustas -, tempo que se detiveram com grandes despesas de sua fazenda. Obrou osossego dos ânimos dos principais homens envolvidos nas disputas de 1709,convencendo-os a obedecerem às ordens de Sua Majestade, sendo quase oprincipal instrumento da devida obediência que deram ao dito governador14.

“Às custas de sua vida, fazenda e negros armados” denota uma certa autonomiaque tais homens, como por exemplo, Pascoal da Silva Guimarães, gozavam frenteà administração régia incapaz de obter e manter, sozinha e independentementedesses homens, sua governabilidade na sociedade de então. Revela, emconseqüência, a dependência da monarquia lusa em relação a esses homens oque, por sua vez, evidencia uma das facetas da sociedade lusa de Antigo Regime,qual seja, seu caráter corporativista. No alvorecer da sociedade mineira setecentista,em se tratando de uma sociedade em formação, a importância de tais homens eravital - vale lembrar, o estabelecimento desses régulos em Minas deu-se antes dapresença do Estado luso.

Se a coisa passou ipsis litteris como relatado acima nada posso afirmar. Ficapatente, contudo, o estreitamento dos laços de reciprocidade entre Pascoal da Silvae o governador se tivermos em mente que, em 16 de abril de 1711, D. Antônio deAlbuquerque concedeu carta de sesmaria a Pascoal da Silva de uma légua nasterras de sua moradia em Itapanhoacanga - na época ocupando o posto de sargento-mor das ordenanças do distrito de Vila Rica e, conforme o próprio Pascoal daSilva, possuidor de 300 cativos. Cerca de dois meses após o recebimento da cartade sesmaria, Pascoal da Silva foi agraciado pelo mesmo governador com o postode mestre-de-campo do terço auxiliar de Vila Rica, já tendo recebido de D. Antôniode Albuquerque a superintendência do distrito de Vila Rica15.

14 FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, p. 195-196.

15 APM (Arquivo Público Mineiro) , SC (Seção Colonial) 07, fl. 90, Códice Costa Matoso, 1999, v. 2,p. 41 e APM, SC 07, fls. 122-122v.

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Como nada neste mundo é de graça, dois meses depois de ter recebido a patentede mestre-de-campo, Pascoal da Silva mandou trinta escravos armados à sua custaem companhia de D. Antônio de Albuquerque quando esse marchou para o Riode Janeiro em setembro de 1711, remetendo posteriormente outros tantos16.

Do acima exposto, creio ser possível pensar em termos de estratégias17 enegociações. Auxiliando D. Antônio de Albuquerque em 1709, Pascoal da Silvadava base de sustentação ao governador, ou seja, garantia-lhe condições, mesmoque mínimas, de exercer a governabilidade. Em retribuição, o governador - emparte em função do caráter devido da retribuição, em parte por não poder prescindirde um aliado da envergadura de Pascoal da Silva - lhe concedia mercês e privilégiosas quais, reconhecendo sua melhor “qualidade” frente ao demais, revestia-lhe como manto da nobreza e - juntamente com a posse de escravos armados e índiosflecheiros - conferia-lhe e lhe assegurava prerrogativas de mando18. Uma mão lavaa outra. Em 1711, Pascoal da Silva novamente acudiria o governador, desta feitana sua diligência ao Rio de Janeiro. As estratégias de ambos, revestidas pelaonipresente “situação de negociação”19, revelaram-se acertadas, assim como osrespectivos julgamentos daquilo a ser ganho ou a ser perdido. O mesmo vale parao governador D. Brás Baltasar.

Não demorou muito para o novo governador perceber no estreitamento de laçoscom Pascoal da Silva uma das melhores estratégias para, naquele contexto, buscargarantir sua governabilidade. Em 12 de janeiro de 1714, cinco meses após assumiro governo da capitania das Minas do Ouro, D. Brás Baltasar confirmava a patentede mestre-de-campo dos auxiliares de Vila Rica, e a sua superintendência, a Pascoalda Silva. Na referida carta, o governador foi claro como cristal, dando conta quebuscando

deixar encarregado desta Vila Rica e seu distrito uma pessoa queencerram merecimento, serviços, nobreza e autoridade, e achando-setodas na pessoa de Pascoal da Silva Guimarães, que tem servido aodito nestas Minas, por espaço de quatro anos em postos de sargento-mor de ordenanças desta vila e de mestre-de-campo do terço dosauxiliares, que nela se formou em que está confirmado por SuaMajestade.

16 FRANCO, Dicionário de bandeirantes..., p. 195-196.17 Para a noção de estratégia cf. BARTH, Fredrik. Process and form in social life: selected essays ofFredrik Barth. Vol 1. London: Routledge & Kegan Paul, 1981.

18 FRAGOSO, “A nobreza vive em bandos”...; e, do mesmo autor, “Afogando em nomes: temas eexperiências em história econômica”. Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 5, p. 41-71,2002.

19 Por “situação de negociação” percebo os momentos nos quais dois ou mais indivíduos, inseridosem uma relação na qual estejam aplicando e/ou (re)formulando estratégias de ação, não puderamtomar livremente, cada qual, esta ou aquela deliberação por não poder prescindir um(s) do(s)outro(s). Tratava-se de momentos do dia-a-dia, nos quais fazia-se necessário tomadas de decisõesquer de relevância considerável para os envolvidos em tais relações, quer de assuntos tidos comode menor importância. Nesse sentido, uma “situação de negociação” exigia um refinado grau denegociação por parte dos indivíduos participantes das relações sociais por ela caracterizadas.

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Além de ressaltar que Pascoal da Silva era um “leal vassalo de Sua Majestade”,financiador da estada do governador D. Antônio de Albuquerque quando essepassou às Minas com 20 soldados, tudo às suas custas “por espaço de quinzedias”, e que tinha contribuído para sossegar muitas alterações ocorridas nas Minas,D. Brás Baltasar salientou que

sendo o principal instrumento da devida obediência que tem o ditogovernador que nomeando ao mestre-de-campo Pascoal da SilvaGuimarães no cargo da superintendência deste distrito se houvessecom grande acerto, e prudência de que resultou principiarem os povosa experimentar quietação, e sossego que de antes os não tinham.20

Se dúvidas restaram do que anteriormente fora explicitado, acredito que a cartapatente acima mencionada encarrega-se de solucioná-las. Do mesmo governadorPascoal da Silva ainda haveria de receber duas cartas de sesmaria, a saber:1) em4 de maio de 1716, uma légua de terra em quadra na paragem chamada o Capãodas Cobras; e 2) em 28 de julho do mesmo ano, uma légua de terra em quadra naparagem chamada o Tacarucu para acomodar nelas parte da sua gente faisqueiradaquele Rio das Velhas, onde tinha uma feitoria de roças e gados21.

José Rebelo Perdigão esteve muito bem relacionado tanto com D. Antônio deAlbuquerque quanto com D. Brás Baltasar. Em 27 de abril de 1711, D. Antônio deAlbuquerque passou provisão a José Rebelo nomeando-o para a superintendênciado distrito do Ribeirão do Carmo por ser “pessoa de talento, inteligência eexperiência”, além de um dos principais moradores das Minas. Foi incumbido detirar devassa de um levantamento que intentaram alguns negros de origem Minado Ribeirão Abaixo, que malogrou por outros negros terem denunciado o intento.Posteriormente, recebeu carta patente do posto de mestre-de-campo do terço auxiliardo distrito do Ribeirão do Carmo, onde D. Antônio de Albuquerque deu conta queJosé Rebelo o acompanhou em sua diligência para o Rio de Janeiro em 1711 noposto de auditor do exército, e que comboiou o governador D. Artur de Sá e Menezesem jornadas à capitania de São Paulo e de Minas do Ouro. Quando foi erigida aVila do Carmo com sua respectiva câmara, José Rebelo foi eleito para o cargo dejuiz ordinário, tendo sido o juiz mais moço da câmara da referida vila. Do governadorD. Brás Baltasar, José Rebelo recebeu carta de sesmaria no Ribeirão Abaixo deNossa Senhora do Carmo22.

Em função de ter atuado no socorro à cidade do Rio de Janeiro “com grandedespesa da sua fazenda”, o governador D. Brás Baltasar fez do já “capitão decavalos de uma companhia da ordenança destas Minas”, André Gomes Ferreira,tenente coronel das tropas de cavalaria da ordenança do distrito de Vila Real.Aproximadamente três anos depois, o mesmo governador o proveu no posto demestre-de-campo de um terço de auxiliares mandado por ele formar no distrito de

20 APM, SC 07, fls. 78-78v , APM, SC 09, fl. 201v e RAPM (Revista do Arquivo Público Mineiro), anoIV, 1899, p. 165.

21 APM, SC 09, fl. 203v.-204 e RAPM, ano IV, 1899, p. 166.22 APM, SC 07, fls. 94v.-95, APM, SC 07, fl. 98, APM, SC 08, fl. 27, AHU CU BR/MG (ArquivoHistórico Ultramarino de Lisboa, Conselho Ultramarino, Brasil, Minas Gerais), , cx. 2, doc. 23,APM, SC 08, fl. 10, APM, SC 07, fl. 17v.-18, APM, SC 09, fls. 258v.-259 e RAPM, 1988: v. 2.

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Pitangui. Na carta de patente, D. Brás Baltasar deu conta que André Gomes haviaservido como tenente-coronel do regimento da cavalaria da ordenança do distritode Vila Real como juiz ordinário e ouvidor geral da mesma vila. Teria atuadotambém como provedor da Fazenda Real e ausentes da Vila do Príncipe e se portado“com tal zelo que foi causa de que se aumenta mais duas arrobas de ouro” nocontrato dos dízimos23.

A 28 de janeiro de 1714, Faustino Rebelo Barbosa recebia de D. Brás Baltasarcarta patente para o posto de sargento-mor das ordenanças do distrito do Caeté.Na mesma carta, o governador deu conta que Faustino Rebelo servia no posto dealferes de uma companhia da ordenança do distrito de Vila Real e que haviaparticipado, “às custas de sua fazenda”, no auxílio ao Rio de Janeiro em 1711. Nomesmo ano, foi novamente provido em posto de ordenança, desta feita para tenente-coronel do regimento de cavalaria da Vila Nova da Rainha. No final de seumandado, D. Brás Baltasar ainda proveria Faustino Rebelo no posto de mestre-de-campo de um terço dos auxiliares24.

Do governador D. Antônio de Albuquerque, Pedro da Rocha Gandavo recebeu,em 23 de maio de 1711, sesmaria de uma légua de terra por quadra em um sítioseu no distrito da Itatiaia, onde possuía “bastante fábrica de escravos”. De D. BrásBaltasar, Pedro da Rocha foi servido com o posto de sargento-mor da cavalaria deordenança e, posteriormente, com o posto de coronel de um regimento de cavalariade ordenança do distrito de Vila de Nossa Senhora do Carmo. Nessa última carta,o governador deu conta que Pedro da Rocha auxiliou D. Antônio de Albuquerqueem 1711 com 12 escravos armados às suas custas, ressaltou sua atuação na juntaque se estabeleceu para firmar em trinta arrobas a arrecadação dos quintos régios,destacou sua participação na contenção de uma sublevação ocorrida na Vila doCarmo e, por fim, sublinhou sua participação no cargo de juiz ordinário, vereadore almotacé de Vila Rica25.

Domingos Rodrigues Fonseca Leme - aquele que foi considerado o homemmais opulento da capitania de Minas do Ouro - foi provido no posto de coronel dacapitania de São Paulo meses antes da diligência de 1711. Na carta patente D.Antônio de Albuquerque deu conta do “merecimento e qualidade e zelo com quese há empregado no serviço de Sua Majestade”. Após a diligência de 1711, DomingosRodrigues recebeu uma légua em quadra em sesmaria na Borda do Campo eCaminho Novo de umas terras que possuía havia muitos anos. Contudo, a melhormercê recebida por Domingos Rodrigues foi angariada no governo de D. BrásBaltasar, pela qual tornava-se provedor do registro do Caminho Novo26.

Com a nomeação de provedor do registro do Caminho Novo, DomingosRodrigues possuía prerrogativas27 que lhe permitam auferir lucros pessoais em

23 APM, SC 09, fls. 87v.-88, APM, SC 09, fls. 231-231v. e APM, SC 09, fls. 241v.-242.24 APM, SC 09, fl. 83, APM, SC 09, fl. 146 e APM, SC 09, fl. 264v.25 APM, SC 09, fls. 103-103v, APM, SC 09, fls. 52-52v, RAPM, 1988: v.1, APM, SC 09, fls. 168-168ve APM, SC 09, fls. 266v.-267.

26 FRANCO, Dicionário de Bandeirantes..., p. 214, APM, SC 09, fl. 71v., APM, SC 09, fl. 142 eRAPM, 1988: v. 1 e APM, SC 09, fl. 40v.

27 O provedor de registro de entradas era indicado pelo contratador e nomeado pelo própriogovernador. Entre suas atribuições, era responsável pela emissão, exame e registro de guias e

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detrimento do bem comum dos povos, ou seja, Domingos Rodrigues tinha emmãos um cargo administrativo cujos benefícios possibilitavam uma considerávelacumulação financeira - mesmo que ilícita, pois em detrimento do bem comum.Há de se ressaltar, Domingos Rodrigues era cunhado de Garcia Rodrigues Paes -régulo poderoso que atuou no comércio entre Rio de Janeiro e Minas do Ouro -junto com quem obteve a permissão régia para construir um caminho ligandojustamente as capitanias do Rio de Janeiro e Minas do Ouro, o chamado CaminhoNovo28.

Rafael da Silva Souza esteve, de forma bem acentuada, envolvido com osnegócios da governabilidade e da governança. Em 6 de janeiro de 1711 recebeu,do governador D. Antônio de Albuquerque, patente de sargento-mor do terço dosauxiliares do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo. Em 19 de março de 1712, el-Rei escreveu a carta de confirmação da referida patente, na qual deu conta queRafael da Silva serviu, durante mais de dois anos, no posto de capitão de infantariada ordenança do mesmo distrito. Pela feita da invasão francesa à cidade de SãoSebastião do Rio de Janeiro, em 1711, apresentou-se ao governador com 200escravos armados e pagos às suas custas. De próprio punho, Rafael da Silva deuconta que “ele por seus importantes serviços e capacidade ficou encarregado dogoverno das Minas pelo governador D. Antônio de Albuquerque em que o ditobaixou socorro ao Rio de Janeiro”, servindo com patente de coronel no distrito doRibeirão do Carmo, mas com ocupação de capitão-mor29.

Em 7 de dezembro de 1713, como procurador da Vila Real do Carmo, foi umdos que assinou o termo segundo o qual ficou constando que a comarca de SãoJoão del Rei contribuiria com 5 arrobas e 10 livras de ouro, a comarca de VilaRica com 12 arrobas de ouro e a comarca da Viral Real com 10 arrobas e 22 livrasde ouro com declaração que os moradores de Pitangui deveriam pagar uma arrobade ouro. Também como procurador da mesma Vila, em 1714, fez parte de umacomissão composta pelos procuradores das câmaras e por dois peritos paradeterminar quais os limites que deviam ser estabelecidos entre as três comarcasque o governador D. Brás Baltasar almejava criar nas Minas do Ouro, a saber, ade Vila Rica, a do Rio das Velhas - com sede em Sabará - e a do Rio das Mortes -com sede em São João del Rei30.

Quando o referido governador lhe passou carta patente do posto de coronel dascompanhias da ordenança dos privilegiados, reformados e mais nobreza destasminas, deu conta que Rafael da Silva havia servido nos postos de capitão deordenança da Vila do Carmo, de sargento-mor do terço dos auxiliares da mesmavila; de capitão-mor das ordenanças da referida localidade, que estava servindo

cobranças das taxas incidentes sobre os diversos tipos de mercadorias, sendo auxiliado por umescrivão e alguns soldados. (Códice Costa Matoso, v. 1, 1999, p. 116 e SALGADO, Graça (org.).Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp.300-301).

28 LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia paulistana. Vol. 3. Organização de Maria Amato. SãoPaulo: Macromedia, 2002 (CD-ROM); e FRANCO, Dicionário de Bandeirantes..., p. 214.

29 APM, SC 07, fl. 116v., AHU CU BR/MG, cx. 1, doc. 31. VASCONCELOS, Diogo de. História antigadas Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 296. AHU CU BR/MG, cx. 11, doc. 15.

30 APM, SC 06, fls. 37-37v. e VASCONCELOS, História antiga..., p. 310-311.

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por espaço de 5 anos; que se portou com conhecido valor e limpeza de mãosquando cobrou os Reais Quintos no distrito de Guarapiranga; que auxiliou a D.Antônio de Albuquerque, em 1711, “às custas de sua fazenda”; e que era homemde “conhecida nobreza”. Em 1715, foi eleito para o cargo de juiz ordinárionovamente em Vila do Carmo31.

Recentemente, Maria de Fátima Gouvêa destacou a formação de um conjuntode estratégias governamentais por parte dos altos oficiais régios os quais, poratuarem em diferentes paragens das conquistas portuguesas, constituíam umacúmulo de informações assim como “uma visão mais alargada do Império comoum todo”, que os auxiliavam no exercício de suas funções administrativas32. Talraciocínio, guardado as devidas proporções, pode ser estendido aos súditos demenor vulto - mas não menos importantes - ligados também às questões dagovernabilidade do Imperium Lusitanum. Nesse sentido, um novo ângulo é atribuídoaos indivíduos que atuaram em diferentes localidades antes de passarem às Minasdo Ouro.

Detendo-me àqueles que o fizeram e também compuseram a diligência de D.Antônio de Albuquerque em 1711 torna-se bastante tentadora a idéia de umaexperiência acumulada posta em prática em um momento propício. Atuar na defesae (re)conquista da moeda de garantia portuguesa revelaria, além de uma estratégiade ação - talvez anteriormente empregada com sucesso -, a existência de valores epráticas comuns intrínsecas à governabilidade do Império. Voltando ao pressupostode Maria de Fátima Gouvêa, se um alto oficial era capaz de apreender com suavivência na carreia ultramarina, também o eram os vassalos de menor projeção,sendo que, tanto em um caso quanto em outro, as experiências de ação em algummomento - e de alguma forma - necessariamente se entrecruzavam, pois, salvoidiossincrasias inerentes a todas as sociedades, os valores e práticas queperpassavam as conquistas d’além-mar eram, em última instância, os mesmos.Daí ser possível falar-se em práticas e estratégias de ação comuns a diferentesespaços temporais e geográficos, e até mesmo pensar-se em acúmulo deexperiências e possibilidades de empregá-las nesses mesmos momentos distintos.

Francisco do Amaral Coutinho foi nomeado pelo governador D. Fernando MartinsMascarenhas de Lencastre, em 5 de fevereiro de 1709, para o governo da capitaniade São Vicente - local onde estabeleceu fazenda e enriqueceu, tornado-se um dosprincipais da terra - até a posse de seu sucessor, D. Antônio de Albuquerque.Retornando às Gerais, fixou-se na mesma localidade na qual erigiu engenho deaçúcar, no Rio das Mortes33.

Na carta patente a ele passada - menos de um mês após a diligência de 1711 -do posto de capitão de ordenança, D. Antônio de Albuquerque deu conta Francisco

31 APM, SC 09, fls. 136v.-137, AHU CU BR/MG, cx. 9, doc. 70 e Códice Costa Matoso, 1999, p. 362-363.

32 GOUVÊA, Maria de Fátima. “Poder político e administração na formação do complexo atlânticoportuguês (1645-1808)”. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de F. (orgs.).O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI–XVIII). Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2001, p. 308.

33 FRANCO, Dicionário de bandeirantes..., p. 132-133.

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do Amaral era uma pessoa “de cabedais bastantes para suprir nos grandes gastos edespesas que sucedem fazer-se em qualquer marchar e diligência que se oferece doserviço de Sua Majestade”. Também ressaltou ser o agraciado “da principal nobrezado Rio de Janeiro” e haver “servido a Sua Majestade no posto de capitão-mor dacapitania de São Vicente”. Seus serviços em 1711 não foram esquecidos. De acordocom o governador, Francisco do Amaral, participou da referida diligência - ocasiãona qual o “inimigo francês” invadiu o Rio de Janeiro com “doze naus de guerra equatro de fogo” - “com o partido do Rio das Mortes à sua custa”34.

Em 22 de fevereiro de 1714, o então coronel de cavalaria da ordenança Franciscodo Amaral foi encarregado do governo da comarca de São João del Rei, uma vezque era

necessário encarregar o governo da comarca de São João Del Rei auma pessoa em quem concorram merecimentos, conhecida nobrezacapacidade e prudência, e por todos estes se acharem no coronel decavalaria Francisco do Amaral Coutinho (...) hei por bem de o encarregardo dito governo.35

Em 8 de janeiro de 1711, D. Antônio de Albuquerque criou a chamada Vila deNossa Senhora do Carmo instituindo, como de praxe, uma câmara. Torcato Teixeirade Carvalho foi um de seus primeiros integrantes - ao lado do já citado José RebeloPerdigão -, ocupando o cargo de procurador. Cerca de cinco meses depois, recebeu,do mesmo governador, meia légua de terra em quadra em uma paragem no Ribeirãode Nossa Senhora do Carmo, onde estava fabricando roças havia de dez paraonze anos. Menos de um mês após ter auxiliado o referido governador em 1711,Torcato Teixeira foi servido no posto de capitão de infantaria da ordenança dodistrito do Ribeirão do Carmo. Por ter “consideração aos merecimentos, nobreza, ecapacidade e mais requisitos que concorrem na pessoa do capitão Torcato Teixeirade Carvalho”, o governador D. Brás Baltasar confirmou-o no posto anteriormenterecebido por D. Antônio de Albuquerque. Posteriormente, passou-lhe provisão docargo de tesoureiro do ouro que haveria de se arrecadar na comarca de Vila Ricapor conta da instituição da cota de trinta arrobas36.

Na contramão da maré, Torcato Teixeira atuou em outra praça depois, e nãoantes, de o fazer na capitania de Minas do Ouro. Em 1715 - já residindo na capitaniade São Vicente e riquíssimo - obteve o comando da Fortaleza de Santos, consertadaàs suas custas37.

Em 3 de fevereiro de 1717, após já ter provido Francisco Viegas Barbosa noposto de capitão de uma companhia dos auxiliares do distrito de Itatiaia, D. BrásBaltasar lhe concedeu carta patente de sargento-mor do regimento de cavalaria daordenança do distrito de Vila Rica - onde era coronel o já citado Sebastião CarlosLeitão. Na referida carta, o governador deu conta que o nomeou para o referido

34 APM, SC 08, fl. 5.35 APM, SC 09, fls. 99v.-100.36 VASCONCELOS, História antiga..., p. 292, APM, SC 07, fls 102v.-103, RAPM, 1988, v. 1, APM,SC 07, fls 139-139v., APM, SC 09, fls. 108v.-109 e APM, SC 09, fl. 29.

37 VASCONCELOS, História antiga..., p. 296.

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posto por ter “consideração aos merecimentos, conhecida nobreza e capacidadede Francisco Viegas Barbosa”. Também ressalvou sua atuação na “praça da Colôniade Sacramento”, onde serviu de soldado pago, tendo se portado com grande valorquando a praça foi invadida pelos castelhanos. Nessa praça, foi enviado pelogovernador Sebastião da Veiga Cabral “a várias diligências” procedendo “nelascom mui particular acerto e valor”. Quando a praça capitulou, Francisco Viegaspassou para as Minas, servindo ao governador D. Antônio de Albuquerque comtreze escravos armados às suas custas pela feita da invasão ao Rio de Janeiro, em1711. Em 16 de abril de 1717, D. Brás Baltasar o fez “capitão-mor das ordenançasdos caminhos novos e velhos”, dando conta que servia no ofício de juiz ordináriode Vila Rica38.

Antes de passar às Minas do Ouro, Antônio Francisco da Silva havia servidonas Índias e na Nova Colônia do Sacramento. Uma vez nas terras auríferas, meteu-se nos descobrimentos da região do Rio das Velhas, explorando ouro e conseguindoum avultado cabedal. Passou, então, para a Serra de Ouro Preto, “onde possuiulavras de grande rendimento. Em seguida foi para o Ribeirão do Carmo, e fundouuma grande fazenda de mineração e cultura, no arraial do Brumado, onde foi donodas minas do Piçarrão”. Tudo realizado antes de 1709, ocasião na qual, sendo umdos chefes dos emboabas, foi feito mestre-de-campo por Manuel Nunes Viana,quando este assumiu o governo da capitania. Findada a chamada Guerra dosEmboabas partiu, junto com Manuel Nunes, para o Rio das Velhas. Recebeu, em15 de janeiro de 1711, carta de sesmaria de um sítio por ele comprado no caminhodo Paraopeba - posteriormente aumentou suas terras que “iam até meia léguaaquém do Rio das Mortes”. Também veio a adquirir a fazenda de mineração eculturas de Bom Retiro, no distrito de São José del-Rei - localidade na qual obtevebens - e mais um outro sítio perto desta vila, onde possuiu também casas de vivenda.De seu inventário, além das propriedades acima referidas, constavam 167 escravos,22 no Brumado e 145 no Bom Retiro. No Brumado ainda possuía 64 armas defogo e 19 espadas, sem contar arcos e flechas39.

Dois meses antes de participar do socorro à cidade do Rio de Janeiro, AntônioFrancisco fora servido com a patente de coronel das tropas de cavalos da ordenançade todas a capitania. Na carta patente a ele passada, D. Antônio de Albuquerquedeu conta que o agraciado servia no posto de capitão-mor do distrito das MinasGerais do Ouro Preto havia cerca de dois anos. Ressalvou também seus serviçosprestados nas Índias. Em função de sua atuação em 1711 recebeu a patente debrigadeiro, a ele passada pelo mesmo governador40.

Em 1711, o “horroroso capador de homens” Francisco do Amaral Gurgel auxiliouo governador D. Brás Baltasar com 550 homens armados e sustentados às suascustas. Tendo o governador Francisco de Castro e Morais fugido da praça carioca,ficou o referido capador encarregado de proteger a retirada dos que ainda estivessemno recinto. Em 1714, ofereceu-se para construir a fortaleza da ilha das Cobras,recebendo o ofício de Provedor da Fazenda - posto que permitia uma enorme

38 APM, SC 09, fl. 77, APM, SC 09, fls. 170-171, APM, SC 09, fl. 168 e APM, SC 09, fl. 223v.39 VASCONCELOS, História antiga..., p. 247 e pp. 399-400 e RAPM, ano VII, fsc. 1-2, 1902, p. 47.40 APM, SC 07, fls. 118v.-119, VASCONCELOS, História antiga..., p. 400.

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ingerência nos negócios financeiros da colônia, com todas a conseqüências daíadvindas41 -, “cargo que veio depois a renunciar na pessoa de Bartolomeu deSiqueira Cordovil, com aprovação régia, em 28 de janeiro de 1717”42.

Por cerca de trinta e dois anos, João Lobo de Macedo serviu em praça desoldado, cabo de esquadra, sargento, alferes, ajudante, capitão de infantaria eajudante de tenente com exercício de tenente general no reino e nas capitanias dePernambuco e do Rio de Janeiro - no posto de ajudante de tenente e na ocasiãoda invasão francesa de 1711 -, na praça da Nova Colônia e em Minas Gerais. Pelogovernador D. Brás Baltasar, foi feito “brigadeiro de toda a infantaria assim auxiliarcomo de ordenança de todo este governo”. Em 16 de junho de 1717, recebeu umalégua de terra quadrada43.

Antes de passar às Minas do Ouro, Manuel da Silva Rosa serviu na praça deSetúbal durante um período de oito anos, sendo cinco deles no posto de soldadode cavalos e três no posto de alferes de infantaria no terço da guarnição da referidapraça fazendo, à suas custas, três armadas de guarda ao Reino. Já nas partesocidentais dos domínios portugueses, atuou um ano no Rio de Janeiro em praçade soldado. Passou para as Minas com D. Antônio de Albuquerque, auxiliando em1711 com o envio de mantimentos à tropa do dito governador. Por tais serviços,foi provido por tal governador no posto de sargento-mor das ordenanças da Vilado Carmo. Manuel da Silva recebeu duas cartas de sesmaria antes de seu auxílioem 1711 e uma após seu retorno. Quando ainda era morador na cidade do Rio deJaneiro foi servido com uma sesmaria de légua e meia de terra no Caminho Novo,entre a Paraibuna e Simão Pereira, em cujas terras já vinha cultivando roça elavoura. Um ano depois, em 15 de dezembro de 1710, recebeu nova sesmaria naestrada que vem dos Currais até o Rio da Cachoeira, propriedade na qual Manuelda Silva voltou-se para o cultivo de gado. Sua última sesmaria, já no governo deD. Brás Baltasar, constou de um sítio novamente em Paraibuna - no CaminhoNovo - no qual meteu um engenho e vinha dedicando-se à extração aurífera em 21de junho de 171544.

Conclusão

Do acima exposto, depreende a estratégia adotada por ambos os governadoresno sentido de recompensar os serviços prestados pelos indivíduos que atuaram emprol do bem comum em 1711 - ou melhor, em prol do bem dos interesses régios ede alguns poucos que lucravam no comércio ultramarino -, a manutenção da moedade garantia portuguesa. O discurso com o qual esses homens voltavam-se a El-Rei- ou ao seu representante nas terras americanas, o governador - em busca de taismercês e privilégios, ressaltava seus serviços prestados aos custos de suas fazendase vidas, situação na qual a Coroa via-se em obrigação para com eles. Tal prática

41 FRAGOSO, “A nobreza da República”..., p. 61-62.42 FRANCO, Dicionário de bandeirantes..., p. 169-197.43 APM, SC 12, fls. 59v.-60v., APM, SC 09, fls. 121v.-122, APM, SC 09, fl. 26 e APM, SC 09, fls. 252-252v.

44 APM, SC 12, fl. 75, APM, SC 08, fl. 32v., APM, SC 07, fls. 143-143v., APM, SC 07, fls 41-41v.,APM, SC 12, fl. 75 e RAPM, 1988: v. 2.

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RESUMOTrabalhando com o período dos governos de D. Antônio deAlbuquerque (1709-1713) e de D. Brás Baltasar da Silveira(1713-1717), o texto tem por finalidade perceber a utilizaçãodo chamado sistema de concessão de mercê como umaestratégia governativa empregada por ambos osgovernadores. Além disso, buscar-se-á demonstrar queaqueles homens inseridos em tal sistema também se valiamde diferentes estratégias com o intuito de obterem outrasmercês e privilégios as quais, no final, confluíam para reforçarsuas prerrogativas de mando. Para tanto, o texto abordará aexpedição organizada por D. Antônio de Albuquerque com ointuito de livrar a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiroda ocupação francesa de 1711.Palavras-Chave: Mercê; Mando; Governabilidade.

ABSTRACTWorking with the governments’ of period D.Antonio ofAlbuquerque (1709-1713) and of D. Brás Baltasar of Silveira(1713-1717), the text has for purpose to notice the use ofthe call system of favor concession as a governmental strategyused by both governors. Besides, it will be looked for todemonstrate that those men inserted in such a system theywere also been worth of different strategies with the intentionof they obtain other favors and privileges the ones which, inthe end, they converged to reinforce your commandprerogatives. For so much, the text will approach the organizedexpedition for D. Antonio of Albuquerque with the intentionof liberating the city of São Sebastião of Rio de Janeiro ofthe French occupation of 1711.Keywords: Mercês; Ordering; Govern-mentally.

evidencia outra faceta da sociedade portuguesa de então, qual seja, seu carátercorporativista. Em linhas gerais, garantindo a manutenção da praça fluminenseem 1711 - logo, garantindo a governabilidade da mesma - essa elite não apenastornava-se elegível para o recebimento de mercês e privilégios mas, principalmente,demonstrava sua ânsia por adquirir uma parte do poder, buscava dividi-lo com oRei. Esses potentados, também chamados pequenos régulos, dispondo a serviçorégio seus cabedais e seus negros armados às suas custas - tudo sob risco e despesade suas vidas e fazendas - o faziam com o intuito de compartilhar a autoridadecom o Rei. A assistência prestada ao real serviço em 1711 caminha,verdadeiramente, nesse sentido.

Servidos por indivíduos ávidos ao acesso a cargos da administração local -como bem o demonstrou a eleição de Manuel Nunes Viana ao posto de governadordas Minas em 1709 -, possuidores de vasta escravatura e “aconchegados” - o que,fundamentalmente, lhes conferia prerrogativas de mando - e inseridos em umasociedade minimamente hierarquizada - quer em função da atuação desses homensem diferentes partes do Império (alguns deles membros de uma elite produtora emercantil que concentrava as riquezas provenientes de suas atividades agrícolas ecomerciais), quer em função do próprio sistema de mercês e privilégios - osprimeiros governadores da capitania de Minas do Ouro tiveram, necessariamente,de traçar estratégias de ação cuja implementação lhes permitisse exercer suagovernabilidade.

De certa praxe no alvorecer da sociedade mineira dos setecentos, a concessãode cargos, patentes e sesmarias entrava em perfeito acordo com os interesses desseshomens, ou melhor, fazia parte mesmo de suas estratégias de ação como, porexemplo, o auxílio a D. Antônio de Albuquerque em 1711. Tais realizações oshabilitavam a solicitar honras, mercês e privilégios que, juntamente com seu braçoarmado - negros, índios flecheiros, etc. - garantiam-lhes prerrogativas de mando,reforçavam a hierarquia excludente, reafirmavam sua condição de nobreza e, porfim, davam cores vivas ao caráter corporativista presente nessa sociedade.

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REGIÃO, RELAÇÕES DE PODER E CIRCUITOSMERCANTIS EM SÃO PAULO (1765-1822)

Denise A. Soares de Moura1

Em 1933, muito antes de a historiografia contar com vasta literatura sobre ocomércio colonial, Caio Prado Jr. escreveu um texto que pode ser consideradouma ferramenta para a reflexão sobre o problema da região, o processo de formaçãopolítica e econômica de uma dada sociedade e, principalmente, para a compreensãoda diversificação dos circuitos mercantis que atravessavam coincidentemente osítio ocupado pela cidade de São Paulo2.

Para este autor, a condição de feixe de circuitos mercantis do espaço geográficoda cidade de São Paulo, era tributária, em grande medida, do traço progressivo doprocesso de colonização e povoamento da região, iniciado a partir de um centro,que se tornou a capital e que irradiava linhas de penetração pelo interior e pelolitoral3.

Fatores físicos, defensivos e de poder favoreceram a escolha do sítio em espigão,divisor das águas dos rios Tamanduateí e Anhangabaú4. Deliberadamente ou não,a escolha deste local implicou em ocupar a posição de centro natural do sistemahidrográfico da região, de onde propagavam importantes cursos d’águas, como oTietê, principal tronco deste sistema, acessível pelo Tamanduateí e rota das monções,frotas de comércio que partiam do porto de Araritaguaba (atual Porto Feliz e antigafreguesia de Itu) e abasteciam as longínquas minas do Cuiabá5.

O equivalente deste sistema no plano topográfico foi a confluência de três grandespassagens que condicionaram a expansão colonizadora do planalto paulista: anordeste pelo Vale do Paraíba; por Campinas e Mogi-Mirim, em direção a MinasGerais e Goiás; por Sorocaba e Itapetininga, em direção às zonas meridionais da

1 Professora do Departamento de História da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho -UNESP, Campus de Franca. Este artigo é parte de resultados parciais de projeto de pesquisaintitulado Poderes locais e mercado interno em São Paulo (1765-1822) que vem sendo financiadopelo CNPq e FAPESP; e-mail: <[email protected]>.

2 PRADO Jr., Caio. “O fator geográfico na formação e desenvolvimento da cidade de São Paulo” e“Contribuição para a geografia urbana da cidade de São Paulo”. In: Evolução política do Brasil eoutros estudos. 8. ed., São Paulo: Brasiliense, 1972, p. 93-139. Ecos da perda de poder político deSão Paulo após a crise do estado republicano, desencadeada pela movimentação de 1930, podemser sentidos na historiografia paulista do período e especialmente neste texto, que parte da geografiapara falar da grandeza da então capitania e depois estado. Em termos metodológicos, o texto éuma importante ferramenta, pois a descrição do território da cidade é essencial para a investigaçãoe compreensão das rotas mercantis na capitania.

3 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação...”, p. 113.4 O território era privilegiado em termos climáticos, a condição de colina favorecia a defesa contraameaças e ataques dos gentios, os jesuítas optaram por este sítio após longa contenda com a vilade Santo André. Idem, p. 98.

5 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990; GODOY, Silvana Alves. Itu eAraritaguaba na rota das monções (1718-1838). Campinas: IE-UNICAMP, 2002 (Dissertação deMestrado).

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colônia. A esta condição de encruzilhada do sistema topográfico e fluvial somou-se à de passagem obrigatória para a principal artéria da capitania: o porto deSantos, alcançado através do Caminho do Mar6.

O litoral era o canal para o comércio de cabotagem e marítimo-atlântico, masera do planalto que vinham os gêneros deste comércio. Logo, o eixo São Paulo-Caminho-do-Mar-Santos constituía o organismo econômico da capitania e, comotodo organismo, funcionava de modo sistêmico, a partir de equilíbrios edesequilíbrios7.

A região da capital, portanto, foi o nó onde se articularam todas as vias decomunicação8, fluviais e terrestres, e por onde, obrigatoriamente, confluíram, todosos circuitos mercantis do organismo Metrópole-Colônia: o da economia de trocadose andanças, o vicinal, o inter-regional fluvial ou terrestre, o costeiro-marítimo-atlântico.

Segundo Caio Prado Jr, esta localização privilegiada da cidade lhe permitiuposição proeminente9, sendo uma das poucas que alcançou o cobiçado status deSenado da Câmara. No Brasil-colônia nem todas as câmaras desfrutaram doprestígio do título e autoridade de Senado, como ocorreu com Salvador, Rio deJaneiro, São Luís do Maranhão e São Paulo.

Tal condição garantia aos oficiais privilégios e liberdades compatíveis as doscidadãos portugueses, como condição de fidalguia no caso de prisão, uso livre eindiscriminado de armas, os que vivessem com os camaristas não seriamsubmetidos a recrutamento militar e isenção de todo tipo de confiscos10.

Como sede administrativa da capitania e na condição de Senado desde 1711,São Paulo mantinha sob sua jurisdição as câmaras de inúmeras outras vilas, comoJuquery, Sorocaba, São João de Atibaia, Bragança, regiões cujas economias erammovidas pelas atividades agro-pastoris.

A condição de feixe de caminhos da região de São Paulo favoreceu, portanto, aatividade mercantil e a mobilidade humana11, pois estes caminhos, fluviais eterrestres, antes de tudo eram passagens mercantis de animais e mantimentos. Asudoeste, pela estrada que levava aos campos de Sorocaba, Itapetininga eGuarapuava e dali para a banda meridional, por exemplo, vinha gado paraconsumo e tropas de burros para transporte; o Caminho do Mar era a ponte entreo planalto e o litoral, por onde transitavam gêneros alimentares para importação eexportação12.

Um ofício, escrito e enviado pela vila de Bragança para a Câmara paulistadizia que a “capital de São Paulo [podia] se chamar a mãe de todas as capitaniasdo Brasil” e o recrutamento militar prejudicava os recrutados, muitas vezes

6 PRADO Jr., “ fator geográfico na formação...”, p. 103-107.7 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação...”, p. 107.8 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação...”, 116.9 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação ...”, p. 119.10 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora da UNESP, 2005, p. 141.11 HOLANDA, Monções, p. 432 e p. 450.12 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação ...”, p. 104 e p. 106.

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envolvidos em “complicados negócios” e por isto, perdiam-se “a si e a seuscredores”13. Na medida em que a capital era uma região de trânsito de circuitosmercantis e humanos em direção às principais rotas mercantis do Brasil-colônia,o serviço militar era um grande obstáculo para o funcionamento dos negócios.

Entre 1976 e 1977, quando começaram as primeiras investigações em históriaagrária na Fundação Getúlio Vargas e posteriormente na Universidade FederalFluminense, a região tornou-se, de fato, um problema metodológico, envolvendo anecessidade de conhecimento das fontes disponíveis e a delimitação de um recortegeográfico para a pesquisa. Segundo Maria Yedda Linhares, grande contribuiçãoneste sentido foi o trabalho de Antonio Barros Castro, que propôs uma análiseregionalizada, superando a abordagem dos ciclos econômicos, desenvolvida porRoberto Simonsen e chamando atenção para os comportamentos da região diantede determinadas situações de expansão e retração14. Ao apresentar uma visãomais funcional e dinâmica da região, identificando os mecanismos de constituiçãodo caráter regional de um espaço geográfico15, tal abordagem permitiu a revisãode conceitos, como o de decadência econômica no período pós-mineração,elaborado por Celso Furtado para Minas Gerais e pelo próprio Caio Prado Jr. paraSão Paulo.

Esta concepção de região, ao levar ao esmiuçamento das diferenciações intra-regionais, permite melhor compreensão do comércio colonial, principalmentequando se parte da noção de vários circuitos mercantis compondo o organismoMetrópole-Colônia16. A intensa diferenciação intra-regional e o polimorfismo dosramos de produção e circuitos mercantis foram constatados para Buenos Aires dosetecentos e oitocentos17. Para o caso de Minas Gerais, pesquisas revelaram que,para além do comércio de abastecimento inter-regional, realizado pela Comarcado Rio das Mortes com os mercados de São Paulo e Rio de Janeiro, vigorou tambémo intra-regional, executado na zona das minas auríferas e entre algumas Comarcasmineiras, como as do Rio das Velhas e Serro Frio, auto-suficientes na produção de

alimentos e especializadas na criação de gado vacum18.

13 Papéis Avulsos. Vol. 8, 1809, p. 177.14 SILVA, Francisco Carlos Teixeira e Linhares, Maria Yedda. “Região e história agrária”. EstudosHistóricos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 17 e p. 23.

15 As obras citadas pela autora são: CASTRO, Antonio de Barros. “A herança regional nodesenvolvimento brasileiro”. In: Sete ensaios sobre economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense,1971.

16 LAPA, José Roberto do Amaral. O sistema colonial. São Paulo: Ática, 1991, p. 69. João Fragosopossibilita a reflexão sobre esta problemática, ao tratar do mosaico de formas de produção existentenuma dada região, como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e o sul do Brasil-colônia. Cf.Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, cap. II.

17 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Economic growth and regional differentiations: the river plate regionat the end of the Eighteenth century. Hispanic American Historical Review, v. 65, n. 1, 1985, p. 51-89. GARAVAGLIA, Juan Carlos. Pastores e labradores de Buenos Aires: una historia agraria de lacampana bonaerense 1700-1830. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1999.

18 CHAVES, Cláudia. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Paulo:Annablume, 1999; FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e docomércio nas minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999.

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Embora seja ampla a historiografia sobre o comércio colonial, boa parte delase dedicou à investigação do comércio inter-regional - envolvendo capitaniasdistintas - ou atlântico19. O comércio vicinal - de abastecimento local - e costeiropouco foi estudado, embora este último seja bastante20 mencionado. À medidaque a pesquisa se detém na documentação produzida pela Câmara, contudo, novosrecortes regionais vão surgindo, assim como outros circuitos mercantis, commecanismos próprios e novas relações de poder.

O circuito vicinal de comércio, formado por quatro ramos - aguardente, estancos,secos e molhados, corte do açougue - envolveu um município e suas freguesias.Trata-se do circuito sob controle e domínio das câmaras municipais, estandorelacionado à dinâmica dos poderes locais. Embora ao longo do século XVIII osimpostos arrecadados e os contratos administrados pelas Câmaras tenham passado,progressivamente, para o gerenciamento da Fazenda Real, não é possível considerarque tenha ocorrido um homogêneo enfraquecimento econômico, político eadministrativo destas instituições21.

Especialmente porque entre elas havia diferenças de status e poder. A Câmarade São Paulo, como já foi referido, era uma das poucas que possuía a condição deSenado. A capitania vivia um processo de expansão demográfica desde a segundametade do século XVIII22, o que contribuía para o aumento do mercado consumidor.Geograficamente, a cidade se localizava no entroncamento de importantes circuitosregionais mercantis, terrestres e fluviais.

Conforme já foi dito, “São Paulo ocupava o centro do sistema de comunicaçõesdo planalto... o contato entre as diferentes regiões povoadas e colonizadas [erafeito] necessariamente pela capital. O intercâmbio direto [era] impossível”23.

Câmaras, como as de São Paulo, tinham patrimônio e finanças próprias,independentes do Real Erário. O patrimônio era formado pelas terras concedidasno ato da fundação da vila, constituídas pelo rocio, onde poderiam ser erguidoslogradouros, edificações e pastos públicos. Além disto, possuíam as ruas, praças,caminhos, pontes, chafarizes, etc.24.

19 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política doBrasil - 1808-1842. 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte,1993; GODOY, Itu e Araritaguaba...; OSÓRIO, Helen. “As elites econômicas e a arrematação doscontratos reais: o exemplo do Rio Grande do Sul (séc. XVIII)”. In: FRAGOSO, João et al. O antigoregime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,p. 107-138; FURTADO, Homens de negócio...; FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. Oarcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economiacolonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

20 ALENCASTRO, Luiz Filipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul - séculos XVIe XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

21 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “História do Brasil”. “História Moderna”. “História Moderna,História do Poder e das idéias políticas”. In: ARRUDA, J. J. e FONSECA, Luís Adão (org.). Brasil-Portugal: História - Agenda para o milênio. Bauru: EDUSC/ FAPESP; Lisboa: ICCTI, 2001, p. 154.

22 MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agraria paulista, 1700-1836. SãoPaulo: Hucitec/ Edusp, 2000, p. 71. Entre 1765 e 1822, a população da capitania saltou de 78.855para 244.405.

23 PRADO Jr., “O fator geográfico na formação ...”, p. 104.24 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942, p. 314.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 43

As finanças eram formadas pelos recursos que tinham permissão para arrecadar:foros - cobrados sobre os chãos aforados - tributos autorizados em lei geral ouconcedidos pelo soberano - reses cortadas no açougue, taxa das balanças, taxa domercado público, aferições de pesos e medidas, multas por infração de posturasmunicipais. Destas rendas, dois terços pertenciam à Câmara e o restante revertiapara o Real Erário da capitania25.

Estas condições financeiro-patrimoniais, geradas, em grande medida, atravésdos ramos do circuito vicinal de comércio e da posição de “Cabeça do povo”deram à Câmara a força com que contará mais tarde para agir e intervir, às vezesdecididamente, no processo de independência, constitucionalização e fundaçãodo Império, sendo o “único órgão da administração que na derrocada geral dasinstituições coloniais, [sobreviveu] com todo seu poder, quiçá fortalecido”26.

Em vista disto, não é possível atribuir enfraquecimento político ao Senado daCâmara de São Paulo, entre os anos 1765-1822 ou decadência econômica, tendoem vista que o aumento demográfico da capitania e a condição da cidade dechave das principais vias, fluviais e terrestres, mercantis e de comunicação,tenderam a fortalecer o circuito vicinal de comércio, ou seja, a economia deabastecimento local.

Discordando da tese de que o comércio tenha sido exclusivamente forma daCoroa Portuguesa reproduzir seu poder27, em torno deste circuito econômico ocorreua consolidação de poderes e interesses locais, levando à emergência de tensões edisputas entre autoridades municipais, régias e negociantes.

A documentação camerária, portanto, leva à conceituação da região, àdelimitação de suas diferenças intra-regionais e à identificação de outras dinâmicasdo comércio colonial e das relações locais de poder e interesses. A análise de doisramos do circuito vicinal de comércio, os estancos das freguesias e as casinhas -mercado público da cidade - permitem a compreensão destas questões.

Estancos nas freguesias

Os estancos eram monopólios de venda de secos e molhados nas freguesias dacidade. Foram identificadas na documentação camerária 23 freguesias comcontratos de estanco ao longo do período 1765-1822. Estes contratos de estanconão foram estáveis, surgindo e desaparecendo conforme redefinições de ordemjurídico-municipal, territorial e econômicas. Alguns deles e suas respectivasfreguesias, tenderam a desaparecer, como os das freguesias de Moinho Velho,Franquinho, Lavras Velhas, Embu, Nazareth, São João (supostamente São Joãode Atibaia) e Jagoari.

O desaparecimento do registro do estanco de São João de Atibaia pode estarrelacionado à elevação desta paróquia à condição de vila, em 1769. Como Nazarethera parte de sua jurisdição, a Câmara de São João passou a administrar todos os

25 PRADO Jr., Formação do Brasil...26 PRADO Jr., Formação do Brasil..., p. 317. Para uma análise desta questão cf. SOUZA, Iara Lis C.de. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo: Ed. UNESP,1999.

27 FURTADO, Homens de negócio..., p. 272.

44 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

seus contratos. Neste caso, o Senado da Câmara de São Paulo perdeu o controledos contratos de estancos de duas das mais importantes povoações próximas dacidade. Outras freguesias, contudo, tenderam a surgir, como as de Tremembé eSão Bernardo. Esta última era uma pequena povoação que nasceu na estradaentre São Paulo e Santos, ou seja, numa das principais artérias mercantis dacapitania, constituindo, portanto, num ponto favorável para pouso e venda daalimentos.

Os contratos de estanco foram organizados por rotas, que reuniam as freguesiasdo mesmo trajeto, como será visto mais adiante. A documentação camerária sugereainda que os estancos tenham sido um tipo de comércio fixo - feito em lojas,vendas ou taverna -, diferente do comércio volante - praticado por mascastes,viandantes, comboieiros e negras de tabuleiros28 -. Tal sugestão advém daconstatação de que estes estancos eram contratos de venda arrematados na Câmarae da ação desta em combater as vendagens volantes nas freguesias, tendo em vistaque poderiam desestimular o arremate deste contrato e, conseqüentemente, interferirnuma das fontes geradoras de recursos municipais.

Na freguesia de Pinheiros, que dava caminho para as bandas de Sorocaba,Itapetininga, Curitiba e estradas sulinas, a Câmara determinou a proibição de“todos os fabricantes que costumam vender os seus gêneros de comestíveis e bebidassem licença e avença do Senado”, pois fazia dois anos que “os estancos de SantaFé e dos Pinheiros não eram [arrematados] por causa dos muitos traficantes quenos bairros costumam mandar vender todos os gêneros de comestíveis e bebidas”29.

Nas Lavras de Santa Fé, localidade da cidade que ainda não foi possível situargeograficamente, Antonio Vaz Pinto Ribeiro “vendia por si ou por outra pessoa”,aguardente da terra, fumo às varas e toicinho às libras e outros gêneros comestíveispor pesos e medidas”. Interrogado numa vereança da Câmara, justificou sua açãoalegando que Antonio da Costa vendia aguasardentes, da mesma forma que apreta Rita forra e que “Antonio da Silva Figueiró vendia os anos passados em umavenda publica que tinha ao pé de seu sítio e que ouve dizer a uma voz vaga queManuel Antonio Baruel e Joaquim Gouveia também vendiam”. O traficante,portanto, não era necessariamente um vendedor ambulante, mas alguém queestabelecia uma venda em sua própria moradia, vendendo por encomenda aosvizinhos, pois, conforme justificou o mesmo Antonio Vaz Pinto Ribeiro, “não vendegênero algum salvo quando lhe encomeda algum vizinho feijão ou milho”30.

Outras vezes, o traficante de uma dada freguesia era arrematador do estanquede outra, demonstrando a tênue fronteira entre comércio legal e ilegal na cidade. Oarrematador do estanco da Penha foi notificado para que retirasse a venda instalada“sobre os valos da aldeia de São Miguel”, pois com isto prejudicava o estancodesta freguesia31. Em Minas Gerais, embora não tenha sido identificado o sistemade arrematação de estancos das freguesias nas Câmaras Municipais, mas apenaso pagamento de tributos, o comércio volante também foi bastante combatido, poisas autoridades o concebiam como meio de desvio do ouro e diamantes, os

28 Para estas definições cf. FURTADO, Homens de negócio..., p. 230.29 Atas da Câmara. Vol. 18, 1784, p. 93.30 Atas da Câmara. Vol. 16, 1776, p. 453-54.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 45

moradores o consideravam causa de inflação dos gêneros alimentícios e deprejuízos aos comerciantes estabelecidos com loja e a Igreja se incomodava com omodo de vida libertino e andarilho dos comerciantes volantes, tidos comoprotagonistas de concubinato e geração de filhos bastardos32.

Na cidade de São Paulo estas preocupações também podem ter existido, mas oque mais aparece nas fontes diz respeito aos prejuízos provocados aos rendimentoscamerários. No que diz respeito à preocupação específica com o estanco do bairrodos Pinheiros, deve-se considerar que a condição desta freguesia de uma dasprincipais vias de comunicação do comércio inter-regional, ligado à condução dogado e tropas de burros, a tornava um importante mercado consumidor, não sódevido o volume de moradores, como de trabalhadores do comércio em trânsito.

Um aldeamento situado nesta região deveria fornecer um mercado consumidorque despertava atenção - assim como ocorria em S. Miguel, como sugere odocumento acima citado -, pois a Câmara sempre demonstrava preocupaçãoquando o estanco dos Pinheiros não era arrematado, algo que acontecia quandoalguns vendeiros instalavam no local venda pública, sem arrematação ouconcessão. Em certa ocasião, um alcaide foi enviado à aldeia dos Pinheiros paranotificar “a quem quer que for, que nos consta tem na mesma aldeia huma vendapublica”33. Uma hipótese que pode ser considerada é a dos alimentos vendidosnesta freguesia serem adquiridos pelos cargueiros e tropas de mulas, para seremcomercializados em outros pontos de São Paulo ou mesmo em outras capitanias.

O ramo dos contratos de estanco deveria ser acessível para negociantes menoscapitalizados, pois quase inexiste o registro de fiador nos contratos. Esta ausênciasugere também a possibilidade dos negociantes-arrematadores disporem de certacredibilidade e reconhecimento local. A baixa capitalização, contudo, é sugeridamais consistentemente através do problema da inadimplência enfrentado pelasrendas municipais, cujas autoridades mandavam apreender os bens dos fiadores,quando este existia, como ocorreu com o fiador do estanqueiro da Cotia, quedevia 31$00034. Do total de 311 arrematações distribuídas entre as freguesias dacidade, no período 1765-1822, percebe-se que a partir de 1777, entre 241 contratosrealizados, apenas dois tiveram fiadores.

A tendência de ausência de registro de fiadores pode também dizer respeito auma estratégia da Câmara para enfrentar a concorrência do comércio volante nosbairros ou de outros mercados que ofereciam mais vantagens para os negociantes.Outra estratégia foi criar estancos nos bairros que possivelmente apresentassemperspectivas positivas de mercado consumidor, como fez no bairro de Tremembé.Com isto dizia “evitar as muitas vendas que há naquele bairro sem licença desteSenado não pagando os subsídios devidos a esta Câmara e novo imposto”. A mesmainiciativa foi tomada no bairro de N. S. do Ó. Mas as dificuldades de arremate dosestancos também podem ter sido resultado dos comportamentos dos própriosnegociantes, que adiavam a efetivação das contratações, objetivando alcançar

31 Papéis Avulsos. Vol. 9, 1810, s./ p.32 FURTADO, Homens de negócio..., p. 268-71.33 Atas da Câmara. Vol. 20, 1802, p. 365 e Papéis Avulsos. Vol . 4, 1802, p. 32.34 Atas da Câmara. Vol. 17, 1781, p. 363.

46 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

posição favorável na barganha de seus valores. João da Silva Pontes somentedepois de seis meses, ou seja, em junho, ofereceu-se para avençar um ramo doestanco do bairro de São Bernardo 35.

No início do Oitocentos, mesmo após a transmigração da família real para oBrasil e a fixação da Corte no Rio de Janeiro, contexto marcado pela desagregaçãodos monopólios e pela difusão de formas liberais de negociação, a Câmara de SãoPaulo lutou para manter os contratos de estanque. Embora a documentação enfatizea dificuldade e diminuição das arrematações destes contratos, concretamente asituação era diferente, conforme demonstra o gráfico abaixo. A Câmara insistiana divulgação de editais de contratações e tornou-se cada vez mais rigorosa noenvio de oficiais de justiça para as freguesias - principalmente as mais importantes,como N. S. da Conceição de Guarulhos, Penha e S. Miguel - e na autuação dasvendas abertas, sem licença36.

No gráfico acima os contratos de estanco estão organizados por rotas, cadauma englobando um conjunto de freguesias. A Rota do Ferrão incluía a ponte doFerrão, que atravessava o Anhangabaú e dava direção para os bairros da Capelado Senhor Bom Jesus, Penha, São Miguel, Mooca, outras pontes como Tatuapé eAricanduva, S. Miguel, Itaquera e Mogy das Cruzes.

CONTRATOS DE ESTANCO POR ROTA E DÉCADA

Gráfico 1 - Freqüência das arrematações dos contratos de estanco nas rotas e pordécadas, conforme dados levantados nas Atas da Câmara (1765-1822) e Papéis Avulsos

(1802-1822).

35 Atas da Câmara. Vol. 16, 1771, p. 85; Atas da Câmara. Vol. 18, 1784, p. 93 e Atas da Câmara. Vol.19, p. 302.

36 Atas da Câmara. Vol. 21, 1810, p. 81.

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O Senado da Câmara constantemente solicitava o conserto desta ponte até umdestes bairros ou de um destes bairros a outro. Na ponte do Ferrão era cobrado oimposto de passagem dos que se dirigiam para a cidade. A estrada que seguiapara o Rio de Janeiro começava a partir desta ponte. A rota Conceição deGuarulhos correspondia à região onde foi fundada uma aldeia em 1560, elevada afreguesia em 1685. Esta freguesia fazia divisa com Nazareth, território da vilaAtibaia e com Juquery. Passando a ponte da Tabantiguera saia-se no caminhopara a Penha e daí havia uma bifurcação que seguia para Nossa Senhora daConceição de Guarulhos, Lavras Velhas e Nazareth. Segundo Ernani Silva Bruno,de Juquery e Nazareth vinham “tropilhas de mantimentos e nas casinhasestabeleciam-se homens oriundos das vilas de Juquery, Jundiahy e Atibaia.

A Rota dos Pinheiros começava a partir da ponte do Lorena, no Piques(Anhangabaú). Segundo estes mesmo autor, umas das “variantes do caminho dePinheiros, depois da bifurcação no alto do Pacaembu, dirigia-se para Embuaçava -o reduto primitivo e com o correr do tempo para Jaraguá, Taipas, Jundiahy e outrospovoados na mesma direção. O ramo principal se orientava para Pinheiros, Embue Itapecerica”. Santo Amaro, povoação que começou como aldeamento de índiosGuaianazes, com o nome de Ibirapuera produzia gêneros de roça e na segundametade do século XVII estendia-se em sítios e fazendas37. A paróquia de Senhorados Prazeres de Itapecerica e a aldeia de M’ Boi lhe pertenciam. A rota de SantaAnna estava relacionada à povoação para lá do Tietê, na direção centro-oeste,estrada das monções. As rotas que davam direção para importantes vias mercantis,como Ferrão, N. S da Conceição de Guarulhos e Pinheiros foram aquelas quesempre conservaram índices mais altos de arremates, possivelmente porqueofereciam mercado consumidor fixo e móvel mais vantajoso.

Percebe-se que nas décadas de 1800/ 1810, todas as rotas sofreram sensívelaumento no número de arrematações dos contratos de estanco, o que sugere reaçãodo Senado e interesse dos negociantes. Uma destas reações oficiais foi a de diminuiros valores dos estanques, como fez em 1817. Neste ano, conforme ofício, a Câmaraarrematou o estanque de Santo Amaro e Santa Anna por 150$000 quantia menorque a do ano anterior, conforme dizia. Deve-se levar em consideração também ofato dos negociantes do circuito vicinal de abastecimento, dado o contexto deconcorrência, terem ampliado sua margem de autonomia para negociar valoresdos contratos com a Câmara. Conforme este mesmo ofício denunciava, em relaçãoaos dois estanques acima, a redução dos valores dos contratos havia ocorrido porque “foi o que o arrematante ofereceu e como não havia quem mais quisesse e hámuito andar em praça”. Situação semelhante ocorreu com os estanques da freguesiada Conceição, arrematado em 70$00038.

Outra possibilidade é a destas freguesias estarem apresentando perspectivas deganhos para o negócio do abastecimento, o que gerava o interesse dos negociantesem arrematar os contratos. Ou seja, num contexto de expansão do liberalismo,houve um processo de fortalecimento dos monopólios. A Câmara, na realidade,

37 BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. 4 ed., São Paulo: Hucitec,1991, p. 49, p. 103, p. 213, p. 217-218, p. 237, p. 246, p. 304.

38 Atas da Câmara. Vol. 22, 1817, s./ p.

48 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

reagia contra todos os fatores que ameaçassem suas fontes de renda, ligadas, emgrande medida, ao circuito vicinal de abastecimento e, portanto, aos monopólios.Num ofício, dirigido à Junta da Real Fazenda, os conselheristas expunham “o abusode alguns dizimeiros de terem um estanco em algumas freguesias para venderemnão só os gêneros dizimados, mas outros que compram para revender, cujo abuso”diminuía muito as rendas municipais, “pela falta de concorrente à arrematação doconselho”39. Exigiam, portanto, que a Junta da Real Fazenda, tomasse algumaprovidência.

Os dois primeiros anos da década de 1820 foram de medidas oficiais definitivaspara extinção dos monopólios, tomadas pelo governo provisório e pelo decretodas Cortes de 20 de março de 1821. O gráfico acima indica que estas medidassurtiram efeito. Ainda assim, houve resistências quanto à sua extinção, pois emtorno dos estancos havia interesses radicados tanto da Câmara, como denegociantes. Neste mesmo ano do decreto das Cortes, o negociante JeronymoPinelli enviou ofício ao governo provisório, queixando-se “dos estanqueiros dasfreguesias do termo da cidade o embaraçarem a muitas outras pessoas de venderemcomidas e bebidas nas festas públicas”. Em resposta, o Governo Provisório mandouextinguir todos os “estancos por serem estes compreendidos nos direitos chamados= realengos = extintos pelo decreto das Cortes”40. O curioso, contudo, é que oofício foi assinado apenas por três membros do novo Governo - João Carlos deAugusto d’Oeynhausen, ex governador-geral da capitania e os irmãos JoséBonifácio e Martim Francisco Ribeiro de Andrada - justamente aqueles querepresentavam interesses do circuito inter-regional de comércio em detrimento docircuito vicinal, abrangido pela região da capital e suas freguesias.

Como autoridade régia, cabia ao governo-geral zelar pela administração político-financeira da capitania e, no que diz respeito ao comércio, eram os contratos decobrança de passagens dos rios e registros que geravam recursos para a RealFazenda. A família Andrada, juntamente com outros negociantes da vila de Santos,esforçou-se, em 1768, para conseguir junto à Câmara de S. Paulo, autorizaçãopara instalar uma casa de comércio que controlaria o comércio atacadista dacapitania com a Europa e outros portos da América, sendo, portanto, bastanteinteressada no comércio inter-regional terrestre e marítimo-costeiro.

Aglutinando interesses locais de negociantes e da Câmara, os contratos deestanco eram um ramo do comércio vicinal situado regionalmente, ou seja, nasfreguesias. Nem todas, contudo, tiveram o mesmo grau de importância oususcitaram o mesmo nível de interesse, tanto do Senado como dos negociantes.Aquelas que ofereciam perspectivas de receita, contudo, foram palco de disputasentre atravessadores, negociantes e autoridades camerárias.

O mercado de abastecimento da cidade

As Casinhas eram o mercado público da cidade onde, desde 1773, ocorria avenda a varejo e eram arrematadas anualmente por um interessado que sublocavaseus quartos (total de 15) aos vendedores, geralmente lavradores que traziam

39 Atas da Câmara. Vol. 21, 1811, p. 206.40 Papéis Avulsos. Vol. 16, 1821, p. 226.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 49

mantimentos para serem negociados. Um dos limites da documentação cameráriaé a não indicação do valor do aluguel ou tributos pagos por estes vendedores. Omesmo ocorre com o açougue público da cidade, onde os criadores levavam seusanimais para serem cortados e cujo direito de corte também era arrematado porum negociante. A história dos circuitos de abastecimento urbano no Brasil-colônia,portanto, enfrenta algumas dificuldades para levantar indagações e constataçõesem termos quantitativos, obrigando o investigador a enfatizar a análise qualitativa.

Possivelmente para minimizar os custos de locação de uma Casinha oslavradores-vendedores se reuniam em dois, em um mesmo estabelecimento, paravender mercadorias como panos de toicinho, banhas, cargas de mantimentos,açúcar. Os arrematantes das Casinhas, por sua vez, negociavam várias formas depagamento dos arremates. Dívidas ativas com a Câmara poderiam ser empenhadasnestas arrematações. Um fiador de um arrematador dos contratos das Casinhas edas aguardentes, que possuía uma dívida ativa com a Câmara no valor de 500$000,devido a despesas que fez nas festas reais, solicitou que seu devedor fosse isentadodo pagamento do valor do arremate. A Câmara deferiu o pedido41.

O sargento-mor Jerônimo de Castro Guimarães, responsável pela construçãodas Casinhas recebeu o valor de seus arremates por dois anos e com isto, foiressarcido dos custos desta obra. Em 1775, Luiz de Campos, que reclamava àCâmara o pagamento de juros de uma importância de 300$000 que emprestarapara as festas do Corpo de Deus e “nascimento do sereníssimo príncipe nossosenhor”, passou a receber as rendas das Casinhas, após ter reclamado com ocapitão general Dom Luiz Antonio de Sousa Botelho Mourão42.

A arrematação do mercado público da cidade devia ser um negócio vantajoso,pois percebe-se, pela tabela abaixo, que existiu uma tendência de inflação de seusvalores. Isto sugere que havia concorrência entre os arrematadores, o que permitiaà Câmara uma certa folga no fechamento do negócio. De fato, ao contrário doscontratos de estanco, restritos às freguesias, as autoridades municipais nãoreclamaram de dificuldades em conseguir arrematadores para o mercado públicoda cidade.

Logo, tanto o mercado consumidor fixo da cidade deveria ser vantajoso, comoo volante. Na medida em que a cidade de São Paulo era um feixe de rotas mercantisfluviais e terrestres, os trabalhadores que se movimentavam nestas rotas tambémconstituíam um segmento que necessitava adquirir bens de consumo imediato.

Entre 1773-1792, 1804-1814, 1816 e 1821 houve elevação dos valores pagosnas arrematações, ocorrendo queda em 1822, possivelmente em virtude do fimdos monopólios determinado por decreto da Corte Constituinte.

A perspectiva de ganho apresentada pelo mercado de abastecimento da cidadede São Paulo estimulava a Câmara a manter a livre concorrência na arremataçãodos ramos do circuito vicinal. Aquele que oferecesse melhor preço, portanto, obtinhao direito de monopólio do ramo arrematado, e com isto, as rendas municipaistendiam a ser favorecidas.

41 Papéis Avulsos, vol. 16, 1821, p. 295-318 e Atas da Câmara, vol. XIX, p. 539.42 SANT’ANNA, Nuto. “As Casinhas (o primeiro mercado de São Paulo)”. Revista do ArquivoMunicipal de S. Paulo, XVI, 1935, p. 71.

50 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

Deste modo, quando Joaquim Leite da Silva solicitou “estabelecer-se... umarmazém de sal e azeite de peixe... obrigando-se este a vender a medida de sal a$100 e a do azeite a $200...[oferecendo] para reditos desta Câmara 100$000 porano, arrematando-se-lhe por 3 anos”, foi rechaçado. Os oficiais municipaisdeliberaram “não ser útil, pois isto privara todos os vendeiros que pudessem negociarcom estes dois gêneros e definiu-se sem efeito o requerimento do referido Joaquim”43.Dada a possível demanda de consumo existente no mercado de abastecimento dacidade, centralizar a venda de mantimentos, como sal e azeite, nas mãos de umaúnica pessoa e por tempo mais longo, ou seja, por três anos, poderia não servantajoso para a Câmara, devido à maior margem de ganhos proporcionada peloarremate anual.

Os negociantes-arrematadores do circuito vicinal de abastecimento podem serconsiderados um segmento com interesses próprios, em certa medida divergentesdos da Câmara, a quem interessava os rendimentos que este setor poderia lhe

43 Atas da Câmara, vol. 19, 1789, p. 90.

ONA ROLAV

3771 598$19000$021,000$23

4771 004$021

5771 000$051

6771 000$051

1871 -

4871 000$212

5871 -

2971 000$553

9971 -

2081 -

4081 000$133

5081 005$133

7081 006$053

8081 000$583

9081 005$583

0181 000$004

2181 001$544

3181 000$224

4181 000$115

5181 089$302

6181 000$004

1281 726$037

2281 057$354

TABELA 1: CONTRATO DE ARREMATAÇÃO DAS CASINHAS CONFORMEDADOS LEVANTADOS NAS ATAS DA CÂMARA (1765-1822) E PAPÉIS

AVULSOS (1802-1822)

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 51

proporcionar. Esta divergência pode ser notada com uma medida tomada em 1821pela Câmara, ao colocar um administrador nas Casinhas, remunerado com 12%do valor pago no contrato de arrematação. Esta medida foi tomada porque o Senadoentendida “que os atuais arrematantes e pretendentes” o iludiam, pois “quandodeviam ir a mais as ditas rendas tem ido a menos, sendo que o comércio se temaugmentado”44.

Dos 13 nomes de arrematadores de contratos das Casinhas, nenhum ocupoufunção municipal. Ainda assim e dada a natureza administrativa dos dois conjuntosdocumentais pesquisados até o momento, não é possível conceituar minuciosamenteeste segmento. Pesquisas já haviam chamado atenção para a dificuldade emclassificar os negociantes no século XVIII. Francisco Cruz, um dos principais agentesde Francisco Pinheiro, estabelecido nas Minas e citado na sua correspondênciaoficial, era ao mesmo tempo caixeiro de loja e seu sócio em alguns negócios.Comerciava secos e molhados e escravos, tinha loja em Sabará, corria a capitaniavendendo mercadorias e cobrando dívidas.

O comerciante Manuel Domingos de Azevedo, estabelecido em Pitangui naprimeira metade do século XVIII, diversificava suas atividades, entre a produção eo comércio, era senhor de terras, minerador, criava animais. Investigações realizadasem inventários revelaram que a elite comercial mesclava vários ramos do comércio,como loja, financiamento de comerciantes de pequeno porte e volantes e misturavacapital mercantil e usurário. A própria divisão entre comerciantes varejistas eatacadistas parece ter sido tênue. Muitos proprietários de loja que vendiam a retalhotambém enviavam carregações para o sertão ou financiavam pequenoscomerciantes fixos ou volantes. Situação semelhante pôde ser observada entre osarrematadores das Casinhas, que muitas vezes eram ou negociavam comatravessadores. Estes, por sua vez, também poderiam agir tanto no circuitomercantil inter-regional como vicinal45.

Os arrematadores, na medida em que formavam um segmento à parte da elitede poder local, ligada à Câmara, gerenciavam seus negócios visando auferir ganhos.Deste modo, em certos momentos poderiam atravessar mantimentos para revenderem outras praças, quando estas ofereciam perspectivas de bons negócios, atravessarpara revender nas próprias casinhas ou aplicar preços que não correspondiamaos determinados oficialmente.

Com isto, em certos momentos, a Câmara foi obrigada a interferir no mercado,visando coibir abusos, como fez com o açúcar, em 1781, fixando preços para oaçúcar branco fino, branco redondo e mascavo, recomendando, ainda, ao almotacé,que conhecesse “a qualidade” do mesmo46.

Assim como os estancos nas freguesias, o mercado público da cidade tambémteve de enfrentar e disputar espaço com os atravessadores, que não impediampropriamente as arrematações das Casinhas, mas dificultavam o seu abastecimentode gêneros alimentícios. Embora ainda não seja possível conceituar mais

44 Atas da Câmara, vol. XXII, 1821, p. 434-436.45 FURTADO, Homens de negócio..., p. 232, p. 240 e p. 249.46 Atas da Câmara, vol. 17, 1781, p. 322-323.

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rigorosamente o segmento dos atravessadores, dado o caráter essencialmenteadministrativo da documentação consultada, esta sugere que eram agentes de duasfrentes: do circuito vicinal e do inter-regional. Nos interstícios do circuito vicinal,eram responsáveis por adquirir os mantimentos dos lavradores nas freguesias evilas próximas e revendê-los nas Casinhas.

Com isto, inflacionavam as mercadorias de consumo, prejudicando a populaçãolocal. Entre os próprios negociantes-arrematadores do mercado público haviaatravessadores que atravessavam mantimentos para revendê-los no circuito local.Quando a Câmara colocou um administrador nas Casinhas alegou que pretendia“aliviar os vexames que os arrematantes fazem aos negociantes... ficando responsávelnão consentir atravessadores...e que não introduza alguns nas ditas Casinhas a títulode roceiro e apoiado pelo arrematante e talvez conluiado com ele atravessar osefeitos dos que se querem retirar, e ali mesmo revender”. Antonio Pinto arrematouo corte do açougue da cidade duas vezes, o estanco de Lavras Velhas, as aguardentese três vezes as Casinhas (1775, 1784 e 1785) e foi denunciado como atravessadordos mantimentos que vendia nas mesmas Casinhas. Com isto, tinha amplo controlesobre o mercado vicinal de abastecimento47.

O aumento da demanda por gêneros de consumo, no mercado inter-regional,pode ter levado o atravessador a adquirir mercadorias nas próprias Casinhas.Assim, a Câmara viu-se obrigada a obrigar os arrematantes a “extrair um diárioou relação dos três gêneros de primeira necessidade”, que mais entravam nasCasinhas, como feijão, farinha e toicinho. Os arrematadores também foramadvertidos para não deixarem sair do mercado público os “referidos gêneros emmaior quantidade do que for preciso para a necessária sustentação doscompradores”48. Neste caso, se o arrematador não era o próprio atravessador,poderia manter negociações com este. Tanto o atravessador, como o arrematador,portanto, poderiam atuar em duas esferas mercantis, aparentemente distintas, mastalvez complementares, ou seja, o comércio legal e clandestino. Os atravessadorestambém eram agentes do circuito inter-regional do comércio colonial, desviandocargueiros de alimentos que vinham de vilas próximas da capital para seremnegociados em outras praças. Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia eÁfrica eram as regiões que envolviam os circuitos mercantis terrestres e marítimo-costeiros que prejudicavam o pleno funcionamento do circuito vicinal deabastecimento da cidade e que tanto preocupavam os oficiais municipais.

Conforme denunciava uma vereança “a falta de mantimentos que temexperimentado os povos de Pernambuco, Bahia, Angola e Benguela soou aosouvidos de vários comerciantes, que movidos da ambição de aumentarem os seusinteresses entraram a formar negociações destes gêneros”. Com isto, começaram a“atravessar pelos portos da marinha desta capitania toda a farinha, feijão e arrozque lhes foi possível; e não satisfeitos com este monopólio, passaram a mandarvárias pessoas disfarçadas para esta cidade e seu termo, onde tem atravessado paracima de 850 porcos e considerável número de alqueires de farinha, e feijão, tudopara transportarem para os diversos portos, que lhes dita a sua ambição”. Assim,

47 Atas da Câmara, vol. XXII, 1821, p. 434-36 e Atas da Câmara, vol. 18, 1780, p. 282-285.48 Atas da Câmara, vol. XIX, 1793, p. 372-374.

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“os atravessadores que andam por Nazareth, Atibaya, Jaguary e outras partes tematravessado todos quantos porcos acharam colhido e toda quanta mandioca acharamem termos de colheita”49. Nazareth fazia parte da rota de N. S. da Conceição deGuarulhos e foi território da vila de Atibaia. No gráfico acima exposto nota-se quehouve, de fato, uma sensível diminuição nas arrematações dos estancos desta regiãona década de 1890, o que pressupõe desvio de gêneros para outros mercados.Atibaia era uma das zonas subsidiárias do sul de Minas Gerais, uma das principaisáreas produtoras e criatórias sob jurisdição da Comarca do Rio das Mortes.

Estes desvios de alimentos, ao provocarem prejuízos às Casinhas e indiretamenteàs rendas municipais, contribuíram para tornar mais tensas as relações entre asautoridades administrativas da capital e as câmaras de outras vilas. Principalmenteas câmaras próximas da capital, de regiões produtoras de alimentos, eram as maispressionadas pelo Senado da Câmara de São Paulo. Assim “se mandou passar umedital e dois mandados para a freguesia de São João de Athibaya e N. S. da Conceiçãode Jagoary para se evitarem os atravessadores de farinhas de trigo que pelas ditasfreguesias andam atravessando quantas farinhas de trigo podem acolher para asconduzirem para as Minas Gerais ficando esta cidade e capitania desfalcada destesgêneros”50.

Para os agricultores e negociantes destas localidades, deveria ser mais vantajoso,em certos momentos, vender para os agentes do circuito inter-regional, como osatravessadores, que iam diretamente até estas vilas, livrando-os, portanto, do custodo transporte de suas mercadorias até a capital para vendê-las aos arrematadoresdas Casinhas. A Câmara reagia, denunciando ao ouvidor geral e corregedor daComarca que os “oficiais da vila Nova de São João de Athibaya mandaram publicarum edital para que os lavradores daquela vila não trouxessem mantimentos paraesta cidade e os levasse para o novo descoberto” e ao mesmo tempo intimandoestes mesmos “lavradores trazerem a esta cidade os seus mantimentos de feijão efarinha de milho”51.

Os moradores de Caguassú, São Bernardo e Borda do Campo também foramnotificados para que trouxessem “todas as farinhas de mandioca para esta cidadepara a vender ao povo por falta dela”. Outro problema a ser enfrentado era os dosdonos de moinhos que moíam farinha de trigo, intimados a comparecerem nasvereanças para “assinarem termo de não desencaminharem os ditos trigos por seachar a cidade com falta”. As câmaras destas vilas pressionadas pelo Senadotambém contestavam, muitas vezes socorrendo-se com as autoridades régias, comofizeram as câmaras de Atibaia e Bragança, que enviaram representações à Corte,através do corregedor, solicitando que os almotacéis - autoridades municipaisencarregadas de diversas questões ligadas ao abastecimento - não impedissemmais os lavradores de disporem “seus efeitos da forma que quiserem, sem quesejam mais obrigados a disporem nas casinhas”52.

49 Atas da Câmara, vol. XIX, 1793, p. 368-372.50 Atas da Câmara, vol. 15, 1768, p. 341.51 Atas da Câmara, vol. 15, 1768, p. 341; vol. XVI, 1772, p. 126 e vol. XVI, 1772, p. 110.52 Atas da Câmara, vol. XVII, 1780, p. 282-85; Atas da Câmara, vol. XVI, 1773, p. 214-15 e Atas daCâmara, vol. XXII, 1819, p. 283.

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Requerimentos destas vilas também foram enviados para o juiz de fora,queixando-se “das violências com que os almotacéis... vexavão os lavradores,negociantes e comboeiros daqueles conselhos, obrigando-os... a venderem nascasinhas... os seus frutos quase sempre por miúdo”. Esta relação de forças entre aCâmara da capital e as de outras vilas, que envolviam, inclusive, autoridades régias,pode ter influenciado a provisão real de julho de 1803, que criou o cargo de juízesde fora para as ditas vilas mais notáveis da capitania, sendo que a cidade deveriaser a primeira contemplada com este novo representante. Já em 1802, uma ordemrégia, alegando aumento da população e riqueza de diversas vilas e distritos, o quemultiplicava as relações e complicava os interesses dos habitantes, tornavaindispensável a presença de juízes letrados, “para conservação da... tranqüilidadeinterior e para o mais prompto cômodo e legal decisão de seus pleitos e desavenças”.Estes juízes deveriam ser enviados para vilas e distritos, de acordo com suapopulação, estado de sua cultura e comércio, garantindo-se nelas “comodidadedos povos e boa administração da justiça”. E agiriam como árbitros nos conflitosque surgiam entre as câmaras, principalmente no que diz respeito às interferênciasda Câmara de São Paulo sobre as atividades econômicas de outras vilas53.

A Câmara paulista vinha reforçando a autoridade de almotacéis e oficiais dejustiça “postados nas estradas”. Sob alegação de combater os atravessadores,advertia-os para fazer “conduzir as provisões para o mercado público, e só depoisde ser o povo aprovisionado poderão permitir-se a sahida para fora”54. Em quemedida, contudo, a figura do atravessador não tendeu a se tornar um argumentodas autoridades municipais para restringir a liberdade de negociantes e lavradoresda capital e das vilas circunvizinhas?

Como medida para conter a ação controladora da Câmara de S. Paulo sobre aliberdade dos lavradores das freguesias e vilas próximas disporem seus gêneroscomercializáveis da maneira que mais lhes conviesse, o governador geral decidiunomear, ele próprio, um inspetor das estradas da cidade e seu termo, advertindo àsautoridades municipais que a partir de então se dirigissem ao dito inspetor, o Ten.João de Castro de Canto e Mello. Canto e Mello era português e havia chegado aoBrasil no posto de alferes, passou a tenente para o regimento de voluntários reaise havia militado na capitania do Rio Grande, onde alcançou o posto de brigadeiro.Pode ser considerado um “nobre na colônia, usando expressão empregada porMaria Beatriz Nizza em obra há pouco publicada, pois foi gentil-homem da imperialcâmara, primeiro visconde de Castro e comendador da Ordem de Cristo. Não háregistro de seu nome no corpo de oficiais da Câmara, logo, com sua nomeação aautoridade régia desafiava o poder local.

De fato, um inspetor de estradas poderia fiscalizar e coibir pelo menos duasações que a Câmara vinha praticando com insistência: a negligência na construçãoe manutenção dos caminhos e o excessivo poder atribuído ao almotacéis paraembargarem carregações de mantimentos que não seguissem para as Casinhas.Desde o estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, a tendência foi deesgarçamento dos monopólios e a intensificação dos circuitos mercantis inter-

53 Papéis Avulsos, vol. 14, 1819, p. 258 e Papéis Avulsos, vol. 5, 1802, p. 15.54 Papéis Avulsos, vol. 14, 1819, p. 236.

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regionais. Uma correição de 1812 determinava a “franqueza do comércio, podendoos lavradores, negociantes e comboeiros vender por grosso e por miúdo dar empagamento ou qualquer outra forma contratarem e alhearem os frutos e produçõesde sua lavoura e industria nesta cidade, na vila de Santos ou onde melhor convier”,sob pena de culpa aos almotáceis que a infringissem55.

Às vésperas da independência, um almotacé mostrou-se preocupado com aintransigência da Câmara em relação à liberdade de comércio, obrigando-os a“embaraçarem-se com as carregações que qualquer lavrador ou negociante quisertransportar para fora do país”. Com isto temia infringir determinações recebidas docorregedor da comarca e capitão-general. A Câmara, contudo, tendeu a comportar-se mais rigorosamente e vigilante na defesa de seus interesses ligados ao circuitomercantil local, denunciando e combatendo os atravessadores que alegava estar“atravessando todos o víveres que entram para esta cidade para levarem para a vilade Santos” e enfatizando a inflação ou falta destes gêneros no mercado local56.

O abastecimento da cidade era prejudicado, mas o mesmo ocorria com asrendas municipais. O circuito mercantil vicinal além de sofrer concorrência com ocircuito inter-regional terrestre, também enfrentava o da via costeiro-marítima,representado pelos negociantes da vila de Santos. O organismo São Paulo-Caminhodo Mar-Santos, portanto, foi permeado por uma relação de forças entre duasinstituições de poder local. Quando os negociantes da vila de Santos propuseramà Câmara de São Paulo a instalação de uma Companhia, reunindo capital devários negociantes santistas, visando gerenciar o comércio da capitania com outrosportos da América e Europa, esta última reuniu os “negociantes da capital” e foideliberado que não havia gêneros suficientes para satisfazer a necessidade deconsumo dos moradores da cidade e revender no mercado externo57.

Repelir a proposta de uma Sociedade de negociantes na vila de Santos significavacolocar obstáculos ao circuito mercantil inter-regional, gerador de recursos à RealFazenda e fator de enriquecimento de uma elite mercantil situada fora dos limitesda capital. Tal medida era também uma forma de garantir a permanência deinteresses econômicos de poder na Câmara de S. Paulo. Como forma de imporobstáculos a este circuito e outros, que competiam com as rendas municipais, aCâmara paulista postergava a construção e manutenção de certos caminhos, comoo do Cubatão ou mesmo os que davam vazão aos circuitos inter-regionais terrestres,como o do Mato Grosso, conforme demonstram as pressões do governador geralem relação à morosidade no cumprimento desta obrigação.

Num ofício intimidador, o corregedor da comarca condenava a “frouxidão edesmando” com que as Câmaras procediam em relação aos caminhos,prejudicando, com isto, o “transporte dos efeitos do paiz, cuja comodidade he umadas circumstâncias essenciais para fazer prosperar o comércio interior e exterior dacapitania”. Solicitava que medidas fossem tomadas neste sentido, de modo quedurante o tempo de sua administração não fosse mais necessário falar mais nisso58.

55 Papéis Avulsos, vol. 14, 1819, p. 258.56 Papéis Avulsos, vol. 16, 1821, p. 54 e Atas da Câmara, vol. XXII, 1819, p. 287-288.57 Atas da Câmara. Vol. XV, 1768, pp. 339-40.58 Papéis Avulsos, vol. 5, 1804, p. 4.

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RESUMOAtravés da discussão de dados levantadossobre o comércio colonial, este artigo mostracomo o recorte regional preliminar de umapesquisa é redefinido através do seuandamento. A investigação realizada em doisconjuntos documentais da Câmara da cidadede São Paulo, no período 1765-1822,demonstrou o caráter heterogêneo destaregião, atravessada por diferentes esimultâneos circuitos mercantis. Um destescircuitos, de funcionamento intra-municipal,revelou a existência de quatro ramos - cortedo açougue, Casinhas, aguardente e estanco-, que levaram ao radicamento de interessesde negociantes, atravessadores e do Senadoda Câmara. Neste artigo foram discutidosapenas os ramos das Casinhas e estancos.Os dados levantados para estes dois ramospermitiram uma classificação preliminar dosnegociantes que arrematavam contratos nestecircuito, os interesses e ações da Câmaravisando enfrentar as conjunturas de crise desuas rendas, a importância alcançada porcertas freguesias da cidade e a concorrênciacom o circuito inter-regional de comércio. Acondição centralizadora de caminhos fluviaise terrestres da cidade, destacada por CaioPrado Jr. em texto clássico, forneceu as balizaspara a reflexão sobre a característicadiversificada da região de São Paulo, o quefavoreceu o enfeixamento de circuitosmercantis em seu perímetro e o acirramentodos conflitos de interesses entre poderes locais,autoridades régias e negociantes.Palavras-Chave: Comércio Colonial; PoderLocal; Negociantes.

ABSTRACTThrough the discuss of dates reached aboutthe commerce colonial, the articledemonstrates like the preliminary regional cut-off of the research is definition through itscourse. The investigation done into twodocuments collections of Town Council fromSão Paulo city, a period 1765-1822,demonstrated the heterogeneous trace of thisregion, crossed by differents and simultaneousmercantil circuits. One this circuits, vicinity,of the functioning intra-municipal, revealedthe existence of four lines - cut of meat,Casinhas, brandy and monopolies -, that takeout the root of the interests of thebusinessmen, Crossmen and the Senate ofTown Concil. In the article were discussedonly the lines of the Casinhas and monopolies.The dates reached for the two lines allowed apreliminary classification of the businessmenthat bought contracts into circuits, the interestsand actions of the Town Council having inview to fight against the conjuncture of crisisof its incomes, the importance reached forsome freguesies of city and the competitionwhit the commerce inter-regional circuit. Thecondition of centre of fluvials and landing-place ways of city, emphasize for Caio PradoJr., in classic text, gave the indications forthe reflection about the trace heterogeneousof region from São Paulo, what the helpedthe centralization of the mercantil circuits intoperimeter and the strengthen of the interestsconflicts among locals power, authorities realsand businessmen.Keywords: Colonial Commerce; LocalPower; Businessmen.

Assim, na investigação sobre o comércio colonial, a região recortada pelopesquisador abriga diferentes sistemas econômicos e distintas relações de interessese poder. O caráter de passagem obrigatória e feixe de caminhos da cidade de SãoPaulo podem ter acirrado os conflitos entre interesses aglutinados em torno de doiscircuitos de comércio e abastecimento: o vicinal, de dimensão local, intra-municípioe o inter-regional, entre vilas e capitanias. A abordagem orgânica do sistema colonialpermite o esmiuçamento dos vários circuitos mercantis e uma visão maisdiversificada e dinâmica da região escolhida para pesquisa.

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FEDERAÇÃO E REPÚBLICA NA SOCIEDADEFEDERAL DE PERNAMBUCO (1831-1834)

Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca 1

No dia 15 de outubro de 1831 foi publicado um anúncio no Diario dePernambuco convocando a população para a instalação da Sociedade Federal2, ase realizar no dia seguinte, domingo, pelas 10 horas da manhã no consistório daigreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares em Recife. A nota enfatizavao caráter público da Sociedade, bem como o anúncio prévio de suas sessões pelaimprensa3.

Efetivamente na sessão inaugural parece ter havido “grande concurso deexpectadores”, conforme assinala o mesmo periódico, comparecendo cerca de 43sócios, entre os quais o Juiz de Paz suplente do Bairro de Santo Antonio, JoãoArcenio Barboza e o Comandante das Armas Brigadeiro Francisco de PaulaVasconcelos4, este último, aliás, escolhido como vice-presidente da Sociedade. Nestedia foram também eleitos o Presidente, João Joze de Moura Magalhães, lente docurso Jurídico de Olinda5, o primeiro e o segundo secretários, além do tesoureiro.

1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora PRODOCna Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 De uma maneira geral, o estabelecimento das sociedades políticas no período da Regência aindanão tem recebido a devida atenção da historiografia. Por esse motivo, o tema foi pesquisadoexclusivamente a partir da leitura de jornais. Sobre o assunto ver AZEVEDO, Manuel DuarteMoreira de, “Sociedades Fundadas no Brasyl desde os Tempos Coloniais até o Começo do ActualReinado”. Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Ethnographico do Brasil, Rio deJaneiro, Laemmert, 1885, t. XLVIII - parte 2. Consultar também a conhecida obra de: SOUSA,Octávio Tarquínio de. História dos fundadores do império. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1957. WERNET, Augustin. Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978;GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Em nome da ordem e da moderação: a trajetória da SociedadeDefensora da Liberdade e da Independência Nacional do Rio de Janeiro (1831-1835). Rio deJaneiro: UFRJ, 1990 (Dissertação de Mestrado). BASILE, Marcello Otávio Neri Campos. Anarquistas,rusguentos e demagogos: os liberais exaltados e a formação de uma esfera pública na corte imperial(1829-1834). Rio de Janeiro: UFRJ, 2000 (Dissertação de Mestrado). Especificamente sobre aSociedade Federal de Pernambuco, ver: ANDRADE, Manuel Correia de. Movimentos nativistas emPernambuco: setembrizada e novembrada. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1971, p.103-111.

3 Diario de Pernambuco, n. 220, 15 out. 1831.4 O Brigadeiro Francisco de Paula Vasconcelos, como se sabe, irmão do Major Miguel de Frias eVasconcellos, redator do periódico fluminense exaltado A Voz da Liberdade, nasceu no Rio deJaneiro em 1787. Aos dezesseis anos assentou praça no 1 Regimento de cavalaria e, três anosdepois, foi nomeado tenente de artilharia e de fortificações em Angola. Em 1816, já capitão,assume o cargo de lente da escola militar do Rio de Janeiro, da qual tornou-se posteriormentediretor. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro. Rio deJaneiro: Imprensa Nacional, 1900, v. III, p. 84. Deve-se lembrar que por ocasião da instalação daSociedade Federal em Pernambuco, o Major Miguel de Frias liderava a revolta da Ilha das Cobrasno Rio de Janeiro.

5 Segundo Pereira da Costa, alguns dias depois retirou-se da província o Dr. Moura Magalhães,sendo substituído na presidência pelo padre João Barboza Cordeiro, redator da Bussola daLiberdade. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais pernambucanos, Recife: Arquivo PúblicoEstadual, 1965, v. IX, p. 445.

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O jornal relata que ao final da sessão foi proferida pelo Presidente “uma oração,em que expôs os fins da Sociedade, que são a discussão da necessidade daFederação e dos meios de a conseguir quanto antes sem ilegalidades e perturbações[o que] satisfez completamente a expectativa dos sócios e (...) procedeu-se à leiturados Estatutos (...) levantando-se esta primeira sessão e marcando-se para as quintas-feiras à tarde e Domingos de manhã as sessões ordinárias”6.

Todavia, em que pese a publicidade conferida ao evento e às reiteradasdeclarações de que a Sociedade agiria no âmbito da legalidade, a CâmaraMunicipal de Recife constituiu representação, encaminhada ao Governo, contra aassociação, na qual acusava-a de perturbadora da ordem e criminosa. Assim sendo,pediam “providências eficazes para a sua dissolução e perseguição de seusmembros”, acrescentando que haviam expedido “emissários às demais Câmarasda Província para representarem no mesmo sentido”7. O Diario lembra ainda quemesmo parecendo absurda a pretensão da Câmara, não seria esta a primeira vezque teria ultrapassado os limites de sua jurisdição, posto que recentemente haviadirigido ao Governo outro requerimento solicitando “que se não consentisse odesembarque do Senhor João Baptista de Queiroz, que se dizia vir da Corte paraesta Província”8.

No número seguinte, o jornal transcreve a minuta da Câmara Municipal contraa Sociedade Federal: “A Câmara Municipal de... sendo informada de que na capitaldesta Província se desenvolve um partido anárquico que assoalha dever-se proclamar,quanto antes e a seu modo, a Federação das Províncias deste Império, atacando-seassim abertamente a Constituição Política jurada e forma do Governo atual, (...)apressa-se em fazer subir à respeitável presença de V. Exc o seu protesto político atal respeito”. Em seguida divulga a folha um Edital assinado pelo juiz de paz JoãoArcenio Barboza assegurando que a instalação da Sociedade havia sidopreviamente comunicada, que seus propósitos em nada feriam a legalidade e que,em caso contrário, seria “a primeira Autoridade em proceder contra ela”9.

Até dezembro o Diario de Pernambuco e também a folha Bussola da Liberdadetranscreveriam as atas das sessões da Sociedade. Sobre o primeiro sabe-se quefora fundado por Antonino Jose de Miranda Falcão que, após ser demitido daTipografia Nacional em função de seu comprometimento com a Confederação doEquador, estabeleceu em 1825 uma tipografia em Pernambuco, denominadaMiranda & Companhia e que neste mesmo ano iniciou a publicação do Diario dePernambuco, de cuja redação participa até 183710.

6 Diario de Pernambuco, n. 222, 18 out. 1831.7 Diario de Pernambuco, n. 222, 18 out. 1831.8 Diario de Pernambuco, n. 222, 18 out. 1831. João Baptista de Queiroz era colaborador da folhaexaltada fluminense Nova Luz Brasileira, além de redator do periódico, da mesma linha política, OJurujuba dos Farroupilhas em 1831, que seria sucedido pela A Matraca dos Farroupilhas no anoseguinte.

9 Diario de Pernambuco, n. 223, 19 out.1831. Grifado no original.10 Antonino Jose de Miranda Falcão nasceu em Pernambuco a 10 de maio de 1798. Desde 1823ocupara diversos cargos na província, entre os quais o de professor de primeiras letras, diretor datipografia nacional, secretário do governo de Sergipe, cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos,a despeito dos 18 meses que passara preso na Fortaleza de Brum pela participação no movimento

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Quanto à Bussola, circulara regularmente entre 1831 e 1832, duas vezes porsemana, publicando três números extraordinários em 1835. Impressa na tipografiado Diario, em 1831, e na tipografia Fidedigna no ano seguinte, o periódico foracriado e redigido pelo padre João Barboza Cordeiro, ativo participante domovimento político de 1817 no Rio Grande do Norte, onde obtivera nomeaçãocomo vigário. Após ser preso, quando fugia para a Paraíba, foi remetido aPernambuco e, posteriormente, à Bahia, onde permaneceu até a anistia em 1821.

Entretanto, por ocasião da Confederação do Equador, mais uma vez o padreCordeiro viria a ser encarcerado por servir como emissário entre o governorevolucionário da Paraíba e Manuel Paes de Andrade. Condenado ao degredo por10 anos no Rio Negro, consegue refugiar-se no interior da província, em Pesqueira,sob o nome de João Patrício Leal, dedicando-se ao ensino primário e secundário11.

A Bussola da Liberdade, além de publicar extensos artigos em favor da federação,discorrer a respeito das diferentes experiências históricas de associações entremonarquias e repúblicas, registrava a própria constituição da Sociedade, como odebate acerca dos estatutos, a eleição do Conselho, e a importância que estaalcançara com a ampliação do número de sócios.

Os dois primeiros meses de funcionamento da Sociedade Federal sãopraticamente dedicados aos assuntos que diziam respeito à elaboração doperiódico, como a escolha do redator, a forma de distribuição, além da tiragem.Na sessão de 9 de novembro, a comissão encarregada deste tema propõe que ojornal “se há de publicar por conta da Sociedade, segundo o art. 28 dos seusEstatutos”, deverá ser “impresso em formato grande, sair uma vez por Semana,

de Santo Antão em 1829, relacionado naquele momento à chamada Devassa dos Pasquins. Em1846 segue para o Rio de Janeiro, sendo nomeado pelo Visconde de Albuquerque administradorda Gazeta Oficial. Três anos depois é indicado pelo Conselheiro Eusébio de Queiroz para a direçãoda Casa de Correção na Corte. Viaja então para os Estados Unidos, incumbido de estudar osistema penitenciário daquele país. De volta ao Brasil, obtém a comenda da Ordem da Rosa esegue, em 1865 para Rio Grande do Sul como oficial de gabinete do Conde da Boa Vista, Franciscodo Rego Barros. Ao retornar ao Rio de Janeiro, emprega-se como tradutor de notícias estrangeirasno Diario Oficial. De acordo com Pereira da Costa, Miranda Falcão morreu “na mais extremapenúria” no dia 9 de dezembro de 1878 com 80 anos. COSTA, Francisco Augusto Pereira da.Diccionario biographico de pernambucanos celebres. Recife: Typographia Universal, 1882, p. 34.Ver também BLAKE, Diccionario bibliographico..., v. 1, p. 435.

11 BLAKE, Diccionario bibliographico..., v. 3, p. 357. Após ter presidido a Sociedade Federal, em1833 o Pe. Barboza Cordeiro funda a Sociedade Anti-Restauradora em Goiana, ampliando aatividade de uma associação criada com os mesmos propósitos em Recife. COSTA, Anaispernambucanos, v. IX, p. 446. Além da redação de jornais, o padre João Barboza Cordeiro tambémpublicou e traduziu inúmeras obras, entre as quais o escrito político dirigido a Jose Pereira Figueiroa,Imploração paraybana. Ceará: Typografia Nacional, 1824; Logica popular (trad.), por A. D. Leconte,extraída da Bibliotheca Popular. Ceará: Typografia de J. A. d’Oliveira, 1847; Arte de fallar e escrever,ou tratado de rethorica geral. (Trad) por Augusto Husson. Pernambuco, 1848; Arco Verde ou agloria dos Tabajares: drama histórico-nacional, 1850; Chronica escandalosa do Sr. D. João daPurificação Marques Perdigão, desde a sua cega nomeação para bispo de Pernambuco em 1829até o presente. Recife, 1862. O padre Barboza Cordeiro morreu em Maceió em 1864.

12 O Federalista, n. 1, 30 dez. 1831. Ata da sessão de 22 dez. 1831.13 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 3.14 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 4.15 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 5.

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para ser distribuído gratuitamente por entre a classe mais necessitada de ilustraçãosobre a matéria”. O redator da folha seria designado pela Sociedade, observandopor sua vez que a implementação das reformas federais apenas será dirigida deacordo com os preceitos legais e no âmbito do Legislativo, “única Autoridadelegítima para decretá-la”, de acordo com o art. 2 dos Estatutos.

Contudo, a gratuidade do jornal gera dissenso entre os associados, que se reúnemem sessão extraordinária no mês seguinte para deliberar sobre o tema. Ponderavaa comissão, representada por Miranda Falcão, que o desinteresse dos vendedorespoderia prejudicar a regularidade na distribuição da folha. “Pelo que a Comissãoera de parecer que a metade dos Impressos fosse distribuída por uma Comissãocom certas e determinadas pessoas e a outra metade fosse exposta à venda pelopreço médio dos demais Periódicos: assim como que a Sociedade fixasse o númerode Exemplares que se deveriam imprimir”. Após alguma polêmica, decidiu-se queapenas os sócios receberiam gratuitamente o jornal.

O preço a ser cobrado também foi objeto de discórdia, oscilando as propostasentre 80 rs e 40 rs, sendo finalmente aprovado o valor mais baixo. Quanto aonúmero de exemplares, “foi fixado o de 500 para cada Número, sujeito às alteraçõesque para o diante se oferecerem”12.

Os Estatutos da Sociedade Federal de Pernambuco consignavam em seu TítuloII, “Da organização da Sociedade”, que esta será “composta de Cidadãos Brasileirosconhecidos por amantes da Liberdade”13, sem limitação de número14. Os candidatosdeveriam ser indicados por um sócio, observando-se sua afinidade com ospropósitos da associação15. Todavia, para decidir a respeito do ingresso do pretensosócio, a Sociedade constituiria um Conselho de 12 membros, o qual “na sessãoseguinte a da proposição, apresentará o resultado dos seus trabalhos, aprovandoou desaprovando os Candidatos propostos”16.

Para a admissão do candidato seria necessário obter no mínimo dois terçosdos votos do Conselho, que terá sua duração enquanto durar a mesa17. Aconstituição deste conselho destinado à aprovação dos candidatos estaria a cargoda Sociedade, “ficando considerados membros os que tiverem a maioria absolutae, em falta destes, exercerão suas atribuições os imediatos em votos”. Tambémestava previsto o envio de sócios correspondentes “em toda esta Província e naqueleslugares que julgar conveniente”18.

Já para se desvincular da Sociedade, bastaria uma simples comunicação dosócio ao secretário, “a qual será apresentada à Sociedade para sua inteligência”,mas que em nenhuma hipótese poderá ser revertida, ou seja, aqueles quevoluntariamente se desligarem da Sociedade, “não poderão ser a ela de novoadmitidos”. Contudo, aquele que for “demitido” pela associação política poderáser novamente admitido “se o Conselho assim julgar conveniente”19.

O cadastramento dos sócios parecia ser preocupação primordial da Sociedade,uma vez que o Secretário da associação estaria encarregado de elaborar e atualizar

16 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 6.17 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 7 e 8 .18 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 9 e 10.19 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 11 e 13 e 14.

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um livro de matrículas, “em que serão escritos os nomes de todos os Sócios,empregos e residências, assim como se fará declaração do dia, mês e ano da suaadmissão e demissão, quando houver de desligar-se da Sociedade”20.

No que diz respeito à sua organização, a Sociedade terá um Presidente, umVice-Presidente, “um 1º e um 2º Secretários, dois Secretários substitutos, e umTesoureiro nomeados pela Sociedade em eleições distintas, a pluralidade absolutade votos dos membros presentes”21. O Título III, “Da eleição e duração dosEmpregos”, consigna apenas um artigo que estipula que a escolha dos“Empregados” será feita mensalmente, com possível reeleição, através de “escrutíniosecreto na forma do artigo antecedente”22.

O Título IV, “Da ordem dos trabalhos”, determina as atribuições dos“empregados”. Assim, ao Presidente competiria “abrir e encerrar as sessões, dirigiros trabalhos, manter a ordem nas discussões, nomear comissões (...), assinar asatas, resoluções e correspondências (...), designar a ordem do dia, convocar sessõesextraordinárias, prorrogar, suspender ou levantar as sessões quando julgarconveniente a evitar perturbações e finalmente decidir as questões em caso deempate”23.

Ao vice-presidente caberiam, naturalmente, as funções do presidente em casode ausência deste, sendo substituído, por impedimento, pelo 1º secretário ousucessivamente pelo 2º. Estes últimos por sua vez estariam investidos da redaçãodas atas e correspondências, assim como seriam designados “escrutinadoresjuntamente com o Presidente nas eleições que ocorrerem”, participariam aos“Sócios eleitos a sua nomeação e finalmente ter[iam] a seu cargo toda a escrituraçãoda Sociedade”. Ao tesoureiro tocaria a arrecadação e custódia dos recursos daassociação, “dando-lhes o destino que esta marcar-lhe; fazer escrituraçõesconcernentes à caixa e prestar-se aos exames que nesta devem ter lugar na Sessãoimediata à eleição dos empregados na mesa”24.

As sessões teriam por quorum necessário 21 sócios e ocorreriam ordinariamentetodas as quartas-feiras com duração de três horas25. Os Estatutos registram aindaque nenhum sócio poderá se manifestar “sem que tenha obtido palavra doPresidente”, e que aqueles que contrariarem os “fins e preceitos da Sociedade (...)serão por três vezes chamados (...) e quando não se corrijam poderão ser expelidosda Sociedade (...) pelos dois terços dos Membros presentes”26.

Por fim, de acordo com o Título V, “Dos fundos da Sociedade”, estipulava-seque estes seriam constituídos com base na “quota com que deverá entrar cada umdos Sócios. À quantia de quatro mil réis a ser paga por ocasião do ingresso, seriamsomados mil réis trimestralmente”27.

20 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 12.21 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título II, Art. 15.22 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título III, Art. 16.23 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título IV, Art. 17.24 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título IV, Art. 18, 19 e 20.25 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título IV, Art. 21 e 22.26 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título IV, Art. 23 e 24.27 Bussola da Liberdade, n. 47, 11 dez. 1831. Título V, Art. 25 e 26.

62 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

Apesar da escassez de dados que possam demonstrar com precisão a trajetóriapolítica da Sociedade Federal de Pernambuco, assim como o contingente de sóciosque dela participaram28, posto que não se encontrou os livros de matrículasmencionados nos Estatutos, há indícios de que a associação se notabilizou tantopela organização, ao criar diversas comissões encarregadas de tarefas específicas,quanto pela criatividade, evidenciada na comemoração de datas consideradascomo eventos fundadores.

Na sessão de 7 de março de 1832, a qual compareceram 26 sócios, a Federalaprova apoio ao governo do Ceará, tendo em vista combater a revolta,compreendida como restauradora, liderada pelo Coronel Pinto Madeira29. Informaainda a mesma Ata que a Comissão designada para encontrar uma casa para assessões da Sociedade havia “achado uma muito cômoda e decente pelo preço de200$000 na Praça da Boa-vista”. Na semana seguinte, na sessão de 14 de março,com a presença de 45 sócios, a atenção voltava-se para o parecer da comissãoindicada para sugerir a maneira pela qual a associação festejaria o “glorioso 7 deAbril”.

O “resultado de seus trabalhos” corroborava o fundamento filantrópico dainstituição, pois julgava-se que o melhor meio de “eternizinar [sic] esse dia seria adotação de uma exposta ou órfã, cuja capacidade fosse abonada por quemcompetisse”. No entanto, o padre Venâncio Henrique de Resende ponderou que aescassez de tempo poderia impedir que se efetuasse “uma subscrição conveniente”,sugerindo que “o dinheiro que se tirasse fosse destinado aos presos da cadeia”.Imediatamente foi nomeada uma comissão “em cada bairro encarregada de tirar asubscrição porque se venceu que os cidadãos que não fossem membros daSociedade fossem também rogados para esse fim”.

Tal preocupação também se revelara em relação à família de frei Caneca,desamparada após sua execução. Na sessão de 21 de março de 1832, a qualteriam prestigiado 48 sócios, o padre João Barboza Cordeiro recomenda que aSociedade “tomasse em consideração e mandasse imprimir, por meio de umasubscrição tirada entre os Sócios, o itinerário das tropas desta Província e da Paraíbaem 1824 ao interior dos Sertões do Norte, obra do Patriota Frei Caneca, aplicando-se os lucros da impressão aos seus parentes mais chegados”. A sugestão no entantonão teria sido discutida, ao menos nesta sessão, por observar o padre Venâncioque haveria outros pareceres que, em sua opinião, seriam mais urgentes30.

Meses depois, na sessão de 5 de setembro de 1832, a Sociedade instituipublicamente um concurso, com vigência até o fim do ano seguinte, destinado aescolher a obra “que melhor e com mais exatidão trate da natureza, definição,

28 Alguns nomes, por exemplo, constam das Atas, mas não foram relacionados nas listas de sóciosde 1831 e 1833. Ver Diario de Pernambuco, n. 222, 18 out. 1831; e O Federalista, n. 37, 29 ago.1833.

29 Sobre o assunto, ver ANDRADE, Manuel Correia de. Pernambuco e a revolta de Pinto Madeira.Recife: Nordeste, 1953. Ver ainda na Sessão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, Oficio deAntonio Leandro da Silva, juiz de paz da vila de Flores ao presidente da Província de Pernambucosobre a rebelião chefiada por Joaquim Pinto Madeira. Vila das Flores, 27 fev. 1832, II-33, 6, 41.

30 As Atas das três sessões, dos dias 7, 14 e 21 de março, estão transcritas no jornal O Federalista, n.13, 30 mai. 1832.

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espécies e excelência do Governo Federativo sobre os Governos ConstitucionaisUnitários, dando igualmente um plano justificado de Governo Federativo adaptávelàs circunstâncias do Império do Brasil”.

O prêmio estipulado alcançaria um conto de réis em moeda corrente, além deuma medalha de ouro gravada, em uma face, “a seguinte legenda ao redor - ASociedade Federal de Pernambuco - e no centro o Emblema da Sociedade - e naoutra, também ao redor, A. F. (o nome da pessoa premiada) e no centro o Ano emque se decretar a Federação”.

A escolha recairia naquela obra que levada à Assembléia Geral Legislativa doImpério pudesse “fornecer à mesma maior soma de idéias na composição do novoCódigo Federal, o que seria afinal decidido em um Júri de doze Membros da escolhada mesma Sociedade Federal, depois que a Assembléia tiver ultimado e apresentadoo Novo Código Federal Brasileiro. (...) A Sociedade Federal de Pernambuco convidaa todos os Sábios Patriotas Brasileiros e Estrangeiros a que se dêem ao trabalho doqual lhes resultará, além do prêmio anunciado, as bênçãos de uma Nação generosae livre”31.

Já no dia da sessão inaugural da Sociedade, a Bussola da Liberdade publicariaum longo artigo, intitulado “Como ou de que modo se deve proclamar a Federação”,elaborando verdadeira pauta de assuntos a serem examinados nas SociedadePúblicas, notadamente as Federais. A preocupação do padre Barboza Cordeiroreferia-se ao estabelecimento dos limites da Federação, “isto é das Províncias deque se comporão os Estados, visto que ainda não está assentada se cada umaProvíncia deve fazer por si um Estado Independente da outra; ou si [sic] se devemfundir as mais pequenas com as maiores para estabelecer um equilíbrio de tamanhoe de riqueza entre os novos Estados que delas se composerem [sic]”.

Segundo o parecer do redator, províncias como Mato Grosso, Rio Grande doNorte, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Santa Catarina não teriam “proporções paraser um Estado independente pela sua escassez de conhecimentos, riquezas & C.”.Por essa razão avaliava que ao invés de 18 províncias desiguais, fossem constituídosseis Estados:

aproximadamente equilibrados em forças, formando o Pará, Maranhãoe Piauí um Estado; Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambucoe Alagoas, outro; Sergipe, Bahia, Espírito Santo, outro; Rio de Janeiroe São Paulo, outro; Rio Grande do Sul e Santa Catarina, outro; Minas,Mato Grosso e Goiás, outro; vindo a ser Maranhão, Pernambuco, Bahia,Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas centros de cada um destesEstados e o Rio de Janeiro o centro comum da Federação em geral.32

Além da recomposição política e administrativa, a afirmação veemente dalegalidade da Sociedade Federal ocupava as folhas que representavam a associação,divulgando suas atividades. A reação às acusações formalizadas pela Câmara

31 O Federalista, n. 25, 6 out. 1832. O concurso foi publicado também no jornal O Topinamba, n. 7,22 out. 1832, impresso em Recife por Jose Vitorino de Abreu e redigido pelo estudante do cursoJurídico Antonio Pereira Barroso de Morais.

32 Bussola da Liberdade, n. 32.

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Municipal evidencia no entanto a linhagem política a qual os federalistas sevinculavam.

A Lei só proíbe as sociedades, cujos fins são ilegais, tanto não se podeafirmar da Sociedade Federal (...) Pernambucanos, tudo isto se dirige adesacreditar essa sociedade, lançai a vista sobre seu seio, vós vereis aíhomens que em todas as épocas se mostraram dignos de vossa gratidão,homens que em 1817 não duvidaram em alçar o grito da Liberdadeque em 21 arrostraram [sic] as falanges lusitanas, que em 24assombraram o trono de Bourbon com o grito de Federação, que aindano mês próximo passado não se esconderam, sacrificaram-se parasalvar-nos da Anarquia33 (...) Se os membros da Sociedade Federal sãoAnarquistas também se poderiam chamar os da Sociedade dos Filhosda Liberdade nos Estados Unidos que plantaram o sistema Federal.34

Somada à apologia da legalidade, a estratégia de sobrevivência da Sociedaderecaía na dissociação entre a federação e a república. Para tanto recorria-se aos“exemplos históricos”, fazendo-se alusão às associações antigas e modernas comoa “célebre Federação das cidades gregas, conhecida pelo nome de Liga Anfictiônica”e a Confederação Germânica, esta por sua vez a mais citada como modelo defederação monárquica.

Por outro lado, ao refletir sobre as formas de governo, o jornal da SociedadeFederal asseverava que a Federação é o governo que mais se aproxima daDemocracia “bem entendida”, através da qual é possível livrar-se dos“inconvenientes da Aristocracia e Monarquia”. Detém-se então o redator emconsiderações a respeito dos governos aristocráticos e monárquicos:

A Aristocracia é a forma de Governo em que o Império civil estádepositado nas mãos de um certo número de Cidadãos chamadosnobres. Esta forma de Governo oferece um monstruoso complexo demales: (...) Nesta forma de governo mingua-se a Liberdade, paralisa-sea Indústria (...) detestam-se as virtudes morais e civis dos Cidadãos daordem inferior, que é reputada como um nada e só destinada paraobedecer (...). Ainda aqui não findam os males (...) ainda nos restamos que provêem do Governo da Monarquia (...). Esta forma de Governosempre pende naturalmente para o despotismo (...) Ainda que o Reiseja justo, se ele ouvir unicamente a linguagem da escravidão, osdiscursos dos aduladores que o rodeiam, ele inocentemente causa aruína e o descontentamento.35

Todavia, os argumentos em prol da federação nunca lastreavam-se na tradiçãoou na História, mas sim na construção de uma idéia de natureza indômita queassinalaria a especificidade do continente americano, marcado pelo gigantismoda extensão territorial, por rios caudalosos, pelas serranias “intransitáveis” e desertos

33 Referência ao movimento militar que ocorreu em Recife, denominado Setembrada ou Setembrizada,provavelmente promovido por caramurus ou colunas.

34 Bussola da Liberdade, n. 36.35 O Federalista, n. 4, 28 jan. 1832.

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“intransponíveis”, elementos que seriam agravados pela escassez e diversidadedos habitantes:

Cada uma das províncias, ainda das mais pequenas, tem maior extensãodo que Reinos inteiros da Europa. A natureza as dividiu por montanhas,lagos, rios e serranias, de sorte que algumas subsistem sem relaçãoalguma com as outras, sem saberem, nem se importarem do que passafora do seu país: nos mesmos usos e costumes há uma diferençaespantosa. O Paraense v. g. e o mineiro não parecem pertencer à mesmaNação, senão em falarem a mesma Língua, se bem que até nisto têmum acento de pronúncia muito diverso.36

Não obstante, a relação entre federação e república, estabelecida no jornal daSociedade, por vezes comportava a idéia de que a primeira seria capaz de engendraras virtudes políticas necessárias à implementação da segunda. Por esse motivo,foram impressos artigos pedagógicos que visavam persuadir seus leitores danecessidade de aprovação de reformas, tendo em vista eliminar paulatinamenteos princípios monárquicos na América. O Federalista, em seu terceiro número,retoma os freqüentes argumentos em defesa da federação, afiançando que a“marcha republicana” é irreversível.

O Homem que reflete seriamente sobre o vastíssimo Brasil, queconsidera a sua inteira separação da Europa, sua posição, sua capacidadeterritorial, seus imensos recursos, suas Províncias tão distantes umasdas outras, e sobretudo a natureza dos Estados que o cercam; não podedesconhecer que o Brasil há de vir a ser Republicano. (...) É preciso sercego para não ver que o nosso Brasil não pode conservar uma Monarquiaencravada no meio de Repúblicas, sem que haja no continenteAmericano um só Estado que se interesse por ela, e sim que a desejever quanto antes aniquilada; por isso que enquanto esses Estados virempor cá uma testa coroada, terão sempre justas desconfianças de que osistema Europeu prepondere em o Novo Mundo. Por outra parte éengano pensar que os Brasileiros são tão aterrados à Monarquia comoos velhos Povos da Europa. Nós nunca vimos por cá o trono, comtodas as suas ilusões, senão há poucos anos.37

Conforme as reflexões do redator, bastante incomuns mesmo à época, a presençada escravidão, ao contrário do que se afirmava, seria motivo para gerar entre apopulação não escrava o “amor pela independência, esse entusiasmo de liberdadeque é o princípio vital das Repúblicas: o escravo para nós é um termo de comparaçãosempre presente e que assalta os nossos olhos desde que os abrimos à luz da razão”.

No entanto, afirma ser a Monarquia Constitucional o segundo passo, após aindependência, para o fim pretendido, sublinhando que a “Federação é um degraumui conveniente para o Brasil vir a ser Republicano (...). As Províncias vão sehabituando a dirigir os seus negócios”. Para reforçar seu argumento, estabeleceuma analogia com o alfaiate que “começa por alinhavar e coser mal (...) mas por36 O Federalista, n. 2, 13 jan. 1832.37 O Federalista, n. 3.

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fim vem a fazer-se perito à custa dos próprios erros. (...) É mister que a Assembléiafaça ensaiar a Federação; com o tempo o sistema tomará regularidade e perfeição”38.

Parece significativo que o jornal avalie a impropriedade que julga ter anomenclatura administrativa no Brasil, sugerindo à Assembléia que mude “o nomeodioso de Província, substituindo-lhe o de Cantões ou Estados”. Para o redator, aidéia de província remeteria à conquista e opressão, pois a palavra, derivada doLatim, significaria “vencer ao longe”. Lembrava que “os Romanos serviram-sedesta expressão para designar os Povos conquistados, os que eles com as suasarmas tinham reduzido ao jugo Romano, roubando-lhes a natural representação eindependência. Esse termo, pois, deve ser riscado da nossa nomenclatura porquedesperta-nos a idéia de que já fomos colonos”.

Prossegue o artigo ressaltando a importância das palavras e sua determinaçãohistórica. “Nem se diga que isto é mera questão de nome; pois que este é um sinalcom que se dão a conhecer as coisas (...). Quando termos quase sinônimos (...)subministram idéias odiosas e aviltadoras, cumpre arredá-los do serviço popular.Tão bem [sic] a alguns pareceu fanatismo liberal a substituição da palavra vassalopela de súdito: entretanto desta honram-se os homens livres; aquela só tem lugarentre escravos”39.

Mas, o espectro político que rondava a Sociedade Federal a partir de 1832,relacionava-se à crescente mobilização da facção caramuru, apelidada emPernambuco de coluna em alusão à Sociedade da Coluna e do Trono criada emRecife em 1829, da qual participariam os redatores dos periódicos O Cruzeiro e OAmigo do Povo, os padres Francisco Ferreira Barreto e Jose Marinho Falcão Padilha.Na percepção dos federalistas e republicanos os colunas, caramurus, marotos,corcundas, pés-de-chumbo, papeletas ou marinheiros, conforme o registro local ehistórico40, organizavam-se nos primeiros anos da Regência tendo em vistapromover o retorno de D. Pedro ao trono brasileiro.

Conforme assinala Basile, a despeito da heterogeneidade do grupo, a abdicaçãodo imperador não seria compreendida pelos caramurus como uma revolução, comoocorrera a moderados e exaltados, mas sim como uma “revolta - um ato nulo eilegal contra o representante legítimo da nação (visto que a Constituição qualificavaa pessoa do Imperador como sagrada e inviolável, sem qualquer responsabilidadepolítica)”41. Nessa medida, embora os caramurus negassem o projeto restaurador,julgavam que os regentes não teriam legitimidade para governar, porquanto teriamviolado o pacto social, representado pela Constituição, outorgada pelo imperador.O grupo, embora nomeado como absolutista pelos adversários políticos, constituiriauma vertente conservadora do liberalismo por sustentar um modelo de governo

38 O Federalista, n. 3.39 O Federalista, n. 4, 28 jan. 1832.40 Para uma interessante análise das diferentes alcunhas dos caramurus, ver: MOREL, Marco,“Restaurar, fracionar e regenerar a nação: o Partido Caramuru nos anos 1830". In: JANCSÓ, István(org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p.407-430.

41 BASILE, Marcello, “Absolutistas, retrógrados e restauradores: a facção caramuru no Rio de Janeiro(1832-1834)”. Paper avulso. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001, p. 14-15. Grifadopelo autor.

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autoritário, mas regido por sua vez por uma Constituição “com divisão de poderes,fundamentado no pacto social e que assegurava certos direitos civis e políticos decidadania”42.

Já na perspectiva de Marco Morel, o projeto restaurador no Brasil neste períodoteria por herança a experiência política dos ultra-realistas ibéricos, na medida emque retomaria, de forma necessariamente seletiva e atualizada, a noçãoremanescente do Antigo Regime de pacto entre o rei e os corpos sociais. Razãopela qual, apesar da ênfase na soberania do monarca, seriam incorporadaspalavras e conceitos constitutivos do vocabulário liberal, como representação dospovos, constituição e pacto social43.

No entanto, ainda que nem todos os caramurus partilhassem da idéia deRestauração de d. Pedro ao trono, opunham-se por questão doutrinária às reformasconstitucionais e acima de tudo ao federalismo, servindo-se da atribuídaaproximação ao regime republicano e da assimilação do conceito de civilização àcentralização monárquica.

Por outro lado, Morel faz também referência à conspiração, relatada pelo ministroda França no Brasil, ainda em 1831, segundo a qual pretendia-se separar asprovíncias do “norte” das demais, constituindo-se uma monarquia independente eassentando-se no trono possivelmente a princesa D. Januária, filha de D. Pedro. Oplano, urdido por Antonio Francisco de Paula Holanda Cavalcante de Albuquerque,expressiva liderança política em Pernambuco, solicitava apoio militar e recursosfinanceiros ao governo francês, oferecendo em contrapartida a ampliação dasfronteiras da Guiana Francesa até o rio Amazonas. A proposta, apesar de recusadapor Luís Felipe, revelava, no entanto, um projeto “separatista” caramuru44.

A divulgação da notícia de que Antonio Carlos de Andrada teria pessoalmenteconvidado o ex-imperador, então Duque de Bragança, a reassumir o trono noBrasil gerara igualmente inquietação entre os federalistas. Octavio Tarquínio narrao episódio afirmando que, apesar da disputa pelo trono português, na qual seempenhara em favor de sua filha D. Maria II, D. Pedro impusera algumas condiçõespara aceder ao convite, entre as quais “que as Municipalidades expressem a vontadenacional, e que a Assembléia Geral declare solenemente que convém que eu volteao Brasil para na qualidade de Regente o governar durante a menoridade doImperador meu filho, e que a mesma Assembléia me envie uma deputação a dar-meparte da resolução e a pedir-me, ao mesmo tempo, que eu haja de anuir ao votonacional, legalmente expressado”45.

Deve-se acrescentar a este contexto a eclosão de várias revoltas populares nointerior de Pernambuco, Ceará e Alagoas entre 1832 e 1835 que pleiteavam o

42 BASILE, “Absolutistas, retrógrados e restauradores...”, p. 30.43 “Trata-se, no mínimo, de uma proposição híbrida entre o moderno constitucionalismo e o pactismotradicional: a Constituição liberal, mas outorgada pela soberania monárquica, renovando, à maneiradas antigas monarquias européias, o pacto entre o monarca e o povo, ainda que ajustado àspropaladas idéias do século”. MOREL, “Restaurar...”, p. 417.

44 BASILE, “Absolutistas, retrógrados e restauradores...”, p. 422-423.45 Citado por SOUSA, História dos fundadores..., v. 4, p. 1134. Grifado no original. Marco Morel faztambém alusão ao mesmo assunto (MOREL, “Restaurar...”, p. 427).

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retorno do imperador. Tais movimentos, como a revolta de Pinto Madeira, aCabanada e as Carneiradas46, seriam por vezes fomentados por oficiais caramurusque arregimentavam populações pobres do sertão. No entanto, ao longo do tempo,teriam adquirido dinâmica própria, visto que canalizavam a insatisfação popularem face da miséria e das desigualdades sociais.

Segundo Pereira da Costa, o fracasso das insurreições militares “restauradoras”na cidade em setembro de 1831 e abril do ano seguinte, conhecida esta últimacomo Abrilada, enseja a interiorização dos movimentos que, para o autor,comungavam dos mesmos intuitos, dando início à Cabanada ou guerra dosCabanos47. Contudo, embora não faça parte do tema deste trabalho, aheterogeneidade de seus participantes, além da longa duração destas sediçõessugerem a pluralidade e complexidade de seus intentos, de vez que perdurariamapós a morte do Duque de Bragança.

De qualquer forma, real ou imaginária, a Restauração seria encarada não apenascomo uma possibilidade concreta, mas bastante provável em vista da freqüência eseriedade com que o tema é abordado na imprensa exaltada e moderada. Entre ospoucos exemplares do periódico da Federal que foram encontrados, registra-seuma preocupação crescente com o assunto.

Em 25 de julho de 1833 a Sociedade Federal convocou uma sessãoextraordinária, que contou com a presença de 30 sócios, na qual foi apoiada acriação de uma comissão, proposta pelo segundo secretário Jose Joaquim daFonseca Capibaribe, destinada a elaborar um Parecer “sobre as medidas que aesta Sociedade convém tomar para evitar o progresso do monstro da restauraçãoque se permedita [sic] em favor do tirano Bragantino”48. A comissão seria compostapelo advogado Henrique Felix de Dacia, redator do semanário satírico Palmatoriados Toleirões49, do coronel Jose de Barros Falcão, além do próprio Capibaribe.

Nas duas sessões seguintes, em 28 de julho e 4 de agosto, persiste o debate apropósito da mesma matéria e a 15 de agosto a Sociedade Federal divulga umaproclamação, assinada por 121 sócios além dos 4 administradores, na qualrecomenda quatro medidas “de urgentíssima necessidade”. Em primeiro lugar

46 As Carneiradas foram lideradas pelos ex-sócios da Sociedade Federal, os irmãos Carneiro MachadoRios. Na relação de sócios da Sociedade Federal de 15 de agosto de 1833 ainda constam seusnomes.

47 “Esse partido a que chamavam Regressista tinha efetivamente como fins políticos a instituição deum novo império no norte do Brasil, cujo soberano seria o ex-imperador D. Pedro I (...) impérioque uns queriam que se chamasse Império do Equador outro Império do Amazonas e outrosfinalmente Império do São Francisco, vendo-se assim a delimitação das suas fronteiras territoriais.Esse partido em sua maior parte era composto de portugueses, muitos dos quais dispunham dealentada fortuna (...) A Cabanada (...) estabeleceu o seu centro de ação em Panelas de Miranda ea das Alagoas em Jacuípe. Vicente Ferreira de Paula, o chefe dos insurgentes em Pernambuco, viadia a dia aumentar o seu séquito com o concurso de gente que lhe chegava de várias localidades(...) entre os quais figurava um composto dos escravos dos engenhos (...) ao qual deram a particulardenominação de Papa-mel. A esses escravos fora dada a promessa de sua alforria, finda acampanha”. COSTA, Anais pernambucanos, v. IX, p. 502-503.

48 O Federalista, n. 37. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano.49 Felix de Dacia também teria redigido o jornal A Voz do Povo Pernambucano, que circulou emRecife e Olinda em 1833.

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julgava-se imprescindível, o quanto antes, “decretar-se o banimento do Duque deBragança”50; em segundo lugar, “de se suspenderem (...) as formalidades garantidorasdos direitos individuais do Cidadão a respeito daqueles que por vias de fato e comas armas na mão, proclamarem a Restauração”; em terceiro lugar pretendia-se“investir o Governo dos meios necessários para fortificar o litoral do Brasil”; e emquarto lugar sugeriam aumentar e “engravescer-se [sic] as penas cominadas nosArtigos 68, 85, 87, 88 e 89 do Código Criminal”51.

Augustos e digníssimos Srs. Representantes da NaçãoA Sociedade Federal de Pernambuco vivamente consternada pelaexistência de alguns fatos que a toda luz descortinam o indicioso trama,há muito suspeitado do regresso do Duque de Bragança e sua ascensãoao Trono deste Império (...) esta Sociedade estremece quando contemplano Porvir o lutuoso quadro de desastres que aguardam o Brasil, se Vóscom pujante braço o não escudardes contra os obstinados embatesdessa facção infernal que na nomenclatura dos partidos se apelidaCaramuru ou Restauradora (...) hoje finalmente que a Trombeta daRestauração parece já ressoar nos muros da Pátria, justificá-lo seriaconivência; desconhecê-lo seria traição. (...)Esta Sociedade se desvanece de haver desempenhado os deveres quesão particulares a uma associação de Brasileiros cujo único fim é aprosperidade do Brasil; desta primorosa e interessante porção doContinente Americano, onde a Natureza dignando-se espargir as mãoscheias seus tesouros e maravilhas, parece havê-la destinado para moradada opulência e para trono da liberdade. Ela [a Sociedade] vos conjuraem nome da Pátria, para que, atentando no tropel de desgraças queestão prestes a desabafar-se sobre nós, defendais o Brasil da ferrenhatirania.Sala de sessões da Sociedade Federal de Pernambuco, 15 de agosto de1833. 52

A associação política cortava transversalmente a sociedade recifense,apresentando uma composição relativamente heterogênea. De acordo com a listade signatários, o grupo mais expressivo era o de militares, 32.8%, entre os quais51.2% alegavam pertencer à Guarda Nacional, ao passo que 34,1% eram oficiaisdo Exército, alguns egressos das lutas pela independência na Bahia, como era o

50 Nesse mesmo ano o padre Venâncio Henrique de Rezende apresenta à Câmara dos Deputadosum projeto de banimento do ex-imperador que “por poucos votos caiu”. COSTA, Diccionariobiographico..., p.791.

51 O Federalista, n. 37. Código Criminal do Império do Brasil, Rio de Janeiro: Typographia Nacional,1831, Parte Segunda, capítulo 1º. Crimes previstos nos artigos 68 e 85 “tentar (...) destruir aConstituição Política do Império ou a Forma de Governo estabelecida”; artigo 87 “tentar (...)destronizar o Imperador; privá-lo (...) de sua Autoridade Constitucional: ou alterar a Ordem legítimada Sucessão”; artigo 68 “tentar (...) destruir a Independência ou a Integridade do Império”; artigo88 “tentar (...) uma falsa justificação de impossibilidade física ou moral do Imperador”; artigo 89“tentar (...) contra a Regência ou Regente, para privá-los (...) da sua Autoridade Constitucional”.

52 O Federalista, n. 37.

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caso de Joze Bernardo Fernandes Gama53 e Felix Peixoto de Brito e Melo.Além dos militares, a Sociedade Federal registra um razoável contingente de

comerciantes, 13,6%, abrangendo as designações de “negociante”, “vive denegócio” ou “com loja”, indicando o caráter urbano da associação política54. Adenominação “proprietário” corrobora esse atributo, uma vez que provavelmenterefere-se ao rentista da cidade ou arredores, diferenciando-se assim da qualificação“agricultor”, constituindo esta última apenas 3,2% do total de sócios em 1833.

Os juízes e advogados da mesma forma perfazem um grupo significativo nasociedade política, 10,4%, o que deriva, em grande medida, da proximidade docurso de Direito em Olinda. Optou-se por estabelecer a distinção entre os professoresou lentes do curso de Direito, 4,8%, e aqueles que efetivamente exerciam a profissão,quer como juízes, advogados, promotores ou desembargadores. Também entre osque se declaravam como estudantes do “Curso Jurídico”, 5,6%, o mesmoprocedimento foi adotado. No entanto, ao somar-se os três grupos, todos bacharéispor formação, teríamos um percentual de 20,8%.

Convém salientar que ao se comparar a composição da sociedade por meiodas listas de sócios de 1831 e 1833, é visível a diminuição daqueles que preferiamnão declarar a ocupação profissional, o que sugere a consolidação da Federal aolongo desses dois anos como uma associação determinada a agir na esfera legal,intuito este ratificado por sua mediação nas sublevações militares em 1831.

Outro aspecto a ser considerado refere-se ao elevado índice de permanênciana Sociedade, 54,5%. Por outro lado, entre aqueles cujos nomes não constam narelação de 1833, cumpre destacar o de Francisco de Paula Vasconcelos, destituídodo Comando das Armas após a sedição militar de setembro de 1831. Tal medidaseria alvo de críticas pela imprensa, posto que semelhantes distúrbios no Rio deJaneiro não teriam motivado a remoção do titular do cargo nesta província,ocupado pelo irmão do regente, Jose Joaquim de Lima e Silva.

Na ausência de dados biográficos que permitam estabelecer um perfil maispreciso da Sociedade Federal, torna-se necessário alinhavar brevemente algumastrajetórias que possibilitem avaliar o comprometimento de alguns sócios com osmovimentos políticos armados, republicanos ou federalistas na província na décadade 1820.

Assim sendo, no que concerne à Confederação do Equador, além da presençade Manuel de Carvalho Paes de Andrade e do padre João Barboza Cordeiro, foipossível apurar a participação de Francisco Antonio Pereira dos Santos,53 Joze Bernardo Fernandes Gama, filho de Joze Fernandes Gama, este, conhecido inimigo dosfederalistas e republicanos em Pernambuco na década de 1820 e alvo de impiedosa crítica de freiCaneca. Joze Bernardo nasceu em 1809 e assentou praça por ocasião da independência da Bahia,onde militou e foi condecorado. Era cavaleiro da Ordem de Cristo e sócio do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro. Segundo Inocêncio Silva, Bernardo Gama escreveu Memorias historicas daprovincia de Pernambuco, em cinco volumes, entre 1844 e 1847, obra subsidiada pela Assembléiada província, que compreendia a “narrativa dos fatos e acontecimentos ocorridos desde odescobrimento do Brasil até 1799 e o resumo dos subseqüentes até 1847". SILVA, InnocencioFrancisco da. Diccionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1893, v. IV, p.275. BLAKE, Diccionario bibliographico..., v. IV, p. 343.

54 Nesse momento a Sociedade Federal já havia instituído uma sucursal no interior, na cidade deCabrobró.

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revolucionário em 1817 e 1824, do Coronel José de Barros Falcão de Lacerda, doCapitão Joze Francisco Vaz de Pinho Carapeba, os dois últimos condenados pelaComissão Militar instalada em Pernambuco entre 1824 e 1825, além de Felix JoseTavares Lira e Luis Jose de Albuquerque Cavalcanti Lins, ambos membros dogoverno provisório, e de Francisco Ludgero da Paz55. Seria oportuno acrescentarque também constavam da relação de 20 presos, anexada ao ofício do MajorLamenha Lins e encaminhada ao General Francisco de Lima e Silva, os nomes doCapitão de Artilharia e Comandante da Fortaleza da Brum, Joze Maria IdelfonsoJacome da Veiga Pessoa e Antonio Carneiro Machado Rios56.

Embora trate-se apenas de um indício ou acusação, deve-se assinalar ainda oprovável comprometimento de Joze Joaquim Bizerra (sic) Cavalcanti com base nodepoimento assinado por Ladislau Fernandes de Oliveira, datado de 2 de abril de1825, no qual o autor trata dos indivíduos que participaram dos movimentospolíticos na província, sublinhando a presença de grande número de republicanosnas instituições pernambucanas, tanto no Exército quanto na Fazenda Pública. “Eque diremos de alguns indivíduos enfronhados no Comércio: os mais célebres sãoAmaro de Barros Correia Junior, Manoel Francisco dos Santos Mendonça, JoseFidelis Barrozo e Joze Joaquim Bizerra [sic] Cavalcanti”57.

Ainda a partir da manifestação dos sócios da Sociedade, convém chamar aatenção para o nome de Felix Peixoto de Brito e Mello. Nascido em Pernambucoem 1807, tomou parte na campanha pela independência na Bahia em 1822, naqualidade de cadete, inscrito na coluna expedicionária comandada por José deBarros Falcão de Lacerda. Em virtude de sua destacada atuação, obteve o postode Alferes aos quinze anos. De volta a Pernambuco, participou da Confederaçãodo Equador, refugiando-se após o movimento ter sido debelado. Abandona entãoa carreira das armas, reformando-se como Alferes e ingressa no Curso Jurídico deOlinda. Embora seguisse promissora carreira na Magistratura e ocupasse umacadeira na Câmara dos Deputados por quatro legislaturas consecutivas, Felix Britoretira-se da Corte após a ascensão do Gabinete conservador de 1848, aliando-seaos praieiros58.

Outro movimento político teria reunido alguns futuros sócios da SociedadeFederal de Pernambuco. Trata-se da República dos Afogados ou Revolta de SantoAntão, ocorrida em fevereiro de 1829 e desdobrada em rumoroso processo judicialconhecido como a Devassa dos Pasquins.

Na correspondência mantida entre o Secretário de Estado dos Negócios daJustiça, Lúcio Soares Teixeira de Oliveira e o Presidente da província naquela

55 MELLO, Antonio Joaquim de. Biografias de alguns poetas e homens ilustres da província dePernambuco. Recife: Typographia Universal, 1856, v. 2, p. 229.

56 “Confederação do Equador”. Publicações do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 22, p. 47.57 Cartas anonymas, 2 abr. 1835. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, I-31, 33, 3.58 Felix Brito foi removido de seu cargo de juiz de direito, colocou-se então à frente da revolução,sendo o principal chefe das forças revoltosas. Organizado o exército revolucionário, foi investidodo cargo de comandante geral das tropas liberais. “A morte de Nunes Machado e outros revezesdeu ganho de causa às forças do governo, ante as quais tiveram de recuar as tropas liberais (...)Retirou-se para o interior (...) vendo já presos alguns dos deputados chefes da revolta ecompletamente perdida a sua causa, pode conseguir escapar às diligências da autoridade, passou-

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ocasião, Thomaz Xavier Garcia de Almeida59, são mencionados como liderançasda rebelião na vila de Santo Antão, Antonio Joze Fernandes Nobre e Joze ClaudinoLeite. Já na devassa instaurada contra os “incendiários pasquins” foram indiciadosJoze Gomes da Fonseca, Rodolfo João Barata de Almeida, sobrinho de CiprianoBarata, e Joze Machado Freire Pereira da Silva.

Em ofício de 12 de março de 1829, Lúcio Soares notifica o Presidente daprovíncia que a rebelião já havia sido sufocada e a tropa recolhida a seus quartéis“à exceção de um destacamento de vinte homens que mandei ficar na Povoação doBrejo para o fim de auxiliar a pesquisa e efetiva apreensão dos cabeças da revoltaque se julga estarem ali mesmo agasalhados, bem como alguns dos banidos pelaComissão Militar de 1824, que se diz haverem regressado e estariam naquelesertão”60.

Contudo, não se pretende assegurar que a Sociedade Federal aglutinasse, emsua totalidade, ex-revoltosos egressos de movimentos republicanos, mas a “linhagempolítica” a que se filiavam, para usar a expressão de Marcus Carvalho, pareceevidente. Esta engendrava a construção de certa memória do passado queexpressava por sua vez a afinidade doutrinária de grande parte de seus associadosao ideário republicano, a despeito das diferentes trajetórias políticas que seguiriamapós a dissolução da Sociedade.

Convém realçar que em nenhum jornal ligado à Sociedade Federal, foi encontradoqualquer artigo crítico à República como forma de governo, mas, ao contrário, aformulação de uma escala “evolutiva” segundo a qual o federalismo representaria,por seu efeito político-pedagógico, um passo em direção ao governo republicano.

Todavia, parece razoável considerar o delineamento ideológico da associaçãoem dois momentos distintos: o primeiro, por ocasião de sua criação, em 1831,parecia acenar com a possibilidade de instituição de reformas federalistas, cujocorolário traria necessariamente o auto-governo, o controle local das forças militares,bem como das rendas provinciais. Nessa medida, a idéia de federação relacionava-se, inicialmente, à neutralização das forças políticas que dominavam a provínciaantes do 7 de abril, e secundariamente ao “aprendizado” necessário à instituiçãode um governo republicano.

se para Alagoas e daí embarcou para a Europa”. COSTA, Diccionario biographico..., p. 294. FelixBrito Peixoto e Mello escreveu Considerações gerais sobre a emancipação dos escravos no Impériodo Brasil e indicações dos meios próprios para realizá-la, editado em Lisboa em 1870, vindo afalecer em 1878. Ver: BLAKE, Diccionario bibliographico..., v. II, p. 335; VELHO SOBRINHO, JoãoFrancisco. Dicionário bio-bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937, v. II, p.495.

59 Vale lembrar que Thomaz Xavier, presidente da província entre dezembro de 1828 e fevereiro de1830, fora Juiz Relator da Comissão Militar instaurada em Pernambuco após a Confederação doEquador.

60 Acontecimentos em Pernambuco para inaugurar uma republica, 1829. Seção de Manuscritos daBiblioteca Nacional, I-31,22,4. Como afirma Marcus Carvalho “desde 1826 havia rumores de queali, longe da capital, vários ex-rebeldes de 1824 viviam acoitados por proprietários rurais. (...) Nofinal de 1829, as autoridades ainda procuravam os rebeldes de 1824 no Brejo da Madre de Deus”.CARVALHO, Marcus. “Aí vem o Capitão-Mor”. Tempo, Niterói, Universidade Federal Fluminense,2002, p. 170.

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O segundo momento, perceptível a partir do final do ano seguinte, promoveuma inflexão tanto na prática quanto na orientação política da Sociedade Federal.Alguns elementos concorreram para a mudança radical do contexto: em primeirolugar a ascensão dos caramurus, traduzida em sua capacidade de organização,assim como na associação desta à suposta volta do “monstro bragantino”, comoseria denominado à época o ex-imperador; em segundo lugar a rejeição da reformafederalista pelo Senado. Ambos os fatores levam a Sociedade a uma postura políticadefensiva. Não se encontrou registro preciso de sua dissolução formal, mas pareceplausível que tenha sido simultânea à desmobilização dos federalistas e republicanosno Rio de Janeiro e em Pernambuco, após o compromisso político que orientariaa edição do Ato Adicional em 1834.

RESUMOEste artigo aborda a constituição e o perfilsócio-político da Sociedade Federal dePernambuco no início do período regencial,bem como avalia a correspondência entre aluta pela federação, no contexto das reformasconstitucionais, e o ideário republicano.Palavras-Chave: Sociedades Políticas;Federação; Republicanismo.

ABSTRACTThis article intends to study the federalist as-sociation of Pernambuco in the beginning ofthe Regency period (1831-1834). It first analy-ses the social composition and the politicalcareer of some of the most prominent mem-bers of this faction, and secondly deals withthe affinity between the federalism and therepublican tradition.Keywords: Political Associations; Federation;Republic.

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CAFÉ COM AÇÚCAR:A FORMAÇÃO DO MERCADO CONSUMIDOR DEAÇÚCAR EM SÃO PAULO E O NASCIMENTO DAGRANDE INDÚSTRIA AÇUCAREIRA PAULISTA

NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

José Evando Vieira de Melo1

A implantação da lavoura escravista mercantil nas terras de ‘serra acima’, nasúltimas décadas da colonização portuguesa, conectou a Capitania de São Pauloao mercado mundial, primeiramente pelo porto do Rio de Janeiro, e posteriormentepelo porto de Santos.

A expansão dessa lavoura escravista mercantil, ao longo do período imperial,transformou a província de São Paulo num dos maiores pólos de crescimento daeconomia brasileira. Canalizou para a Província uma grande quantidade deescravos e livres para o trabalho e gerou uma poderosa elite que se tornou o principalgrupo de poder do país.

Se foi com a lavoura e exportação cafeeira que a Província tornou-se conhecida,foi a antiga manufatura açucareira, com sua lavoura de cana e seus engenhos,que se introduziu a plantation no planalto paulista. Antes do porto de Santos setransformar no porto do café, ele foi o porto do açúcar. Durante toda a primeirametade do século XIX, se exportou mais açúcar do que café por este porto, poronde exportava a produção do Oeste paulista, região na qual se concentrava amanufatura açucareira da Província.

A expansão da lavoura cafeeira no Oeste paulista, em meados do século,justamente no momento de cessação do tráfico internacional de escravos, levou auma diminuição e reconfiguração da manufatura açucareira. O café passou aliderar a pauta de exportação da Província, enquanto o açúcar se converteu emartigo de consumo interno.

Este artigo discute essa reconfiguração da manufatura escravista açucareirapaulista, voltada agora para o abastecimento do mercado provincial, ampliadopelo crescimento do complexo cafeeiro exportador, responsável pelo grande aumentoda população da Província, na segunda metade do século XIX. Discute também onascimento da grande indústria açucareira paulista, dentro do quadro da políticaimperial de financiar a implantação dos engenhos centrais no País.

Em seu clássico trabalho sobre a agromanufatura açucareira em São Paulo,Maria Thereza Petrone demonstrou a importância do chamado “ciclo do açúcar”para o rápido crescimento da produção cafeeira nas terras do Antigo oeste paulista,na medida em que cedeu-lhe terras já então desbravadas, forneceu capitais eescravos já concentrados e criou um sistema comercial e de transporte, com seuscaminhos de tropas de mulas, tropeiros e comerciantes, para a exportação dosprodutos da Província. Sem tais condições não teria sido possível o rápidocrescimento da produção e exportação do café pelo porto de Santos.1 Doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo.

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Mas o café não apenas se beneficiou da estrutura criada pela produção doaçúcar, pois o desenvolvimento do complexo cafeeiro e sua expansão, na segundametade do século XIX, garantiu a própria sobrevivência da agromanufaturaaçucareira paulista e possibilitou a criação da grande indústria de açúcar e álcoolem São Paulo, no último quartel do oitocentos. O complexo cafeeiro retribuiu ocomplexo açucareiro com capitais, estradas de ferro, imigrantes e um amplo mercadoconsumidor de açúcar, aguardente e álcool.

É bem conhecido o momento em que a exportação de café ultrapassou a deaçúcar pelo porto de Santos, desbancando o açúcar da liderança da pauta deexportação paulista de toda a área interiorana tributária do porto santista. Foi nasafra de 1850/51, quando passaram pela barreira de Cubatão 470.054 arrobas decafé e 344.904 arrobas de açúcar2. A região do Vale do Paraíba, desde a décadade 1830, já tinha no café sua principal fonte de riqueza, mas a produção cafeeiradessa região era tributária do porto do Rio de Janeiro. Diferentemente dessa região,no Oeste paulista as culturas da cana e do café expandiam-se simultaneamente,da década de 1830 até meados da década de 1850.

O açúcar não apenas perdeu a liderança nas exportações paulistas, em meadosdo século XIX, mas retirou-se do mercado mundial e converteu-se em produto deabastecimento do mercado interno regional, alargado pelo desenvolvimento docomplexo cafeeiro. No ano financeiro de 1860/ 61, apenas 16 arrobas de açúcarpassaram pela barreira de Cubatão3.

A queda da exportação de açúcar e o aumento da de café levou a HistoriadoraMaria Thereza Petrone a demarcar o fim do “ciclo do açúcar” paulista e decretaro declínio de sua produção, em 1850/51. Escreveu a autora:

1846-1847 é, certamente, o ano mais importante, o ano decisivo paraa cultura canavieira. Os agricultores do hinterland de Santos, a partirde então, resolvem abandonar o cultivo da cana-de-açúcar para sededicarem ao café. O ‘quadrilátero do açúcar’ vai transformar-se emzona cafeeira. O café plantado em 1846-1847 produzirá, em 1850-1851, ano em que ultrapassa, em volume, a exportação de açúcar pelabarreira de Cubatão. Estranha coincidência! No ano de maior exportaçãode açúcar também foram formados grandes cafezais, e daí a poucoproduzirão tanto, que o açúcar passará para o segundo lugar nasexportações de Santos.4

E prossegue a autora:

O destino da lavoura canavieira já está decidido, portanto, a partir de1846-1847, mas torna-se mais patente a começar a segunda metade do

2 PETRONE, Maria Thereza Shorer. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765-1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968, p. 162.

3 SILVA, Francisco Alves da. Abastecimento em São Paulo: estudo histórico do aprovisionamentoda Província via barreira de Cubatão (1835-1877). São Paulo: FFLCH-USP, 1985, p. 103(Dissertação de Mestrado).

4 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 162.

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século. O ‘quadrilátero do açúcar’ deixou de sê-lo, para se dedicar comverdadeira obsessão à cultura do café. 5

Fica claro pelas citações que o olhar da autora está completamente voltadopara a exportação, para o mercado externo, o que a levou a demarcar o declínioda agromanufatura açucareira paulista pela quantidade exportada, não pelaproduzida. A queda da quantidade de açúcar exportada, nesse momento, nãoocorreu devido à diminuição da produção desse produto, mas ao redirecionamentodo mesmo para o mercado interno. Nesse ano de 1850, alguns engenhos, em algunsmunicípios, já haviam apagado seu fogo, substituindo a produção de açúcar pelado café, mas no conjunto do “Oeste”, a manufatura açucareira não estavadecadente, como deixa claro o Presidente da Província, Nabuco D’Araujo, em1852:

A cultura do café prospera cada vez mais, e promete a esta provínciaum grande futuro.A mudança da cultura do assucar para a de café e chá, he uma tendenciaque os nossos fazendeiros manifestão, e se vae operandoinsensivelmente: esta tendencia provem, como sabeis, não só de sermais facil e vantajosa esta cultura do que aquella, como porque hemenos sujeita ás avarias inherentes ao pessimo estado das nossas viasde communicações, e impossibilidade da rodagem.Todavia não obstante essa tendencia a cultura do assucar não estádecadente.6

Essa “estranha coincidência” é explicável por dois motivos: primeiro, aimplantação da lavoura cafeeira ocorreu de forma desigual nas vilas do Oestepaulista, até a sexta década do século XIX. Enquanto declinava a produção deaçúcar e o canavial cedia espaço ao cafezal em municípios como Campinas e RioClaro, o número de engenhos e o conseqüente aumento da produção de açúcarampliava-se em municípios como Itú, Piracicaba, Capivari e Mogi-Mirim, comoapresentaremos com dados a seguir. É importante salientar aqui que a maioriadas fazendas produtoras de café, no início da segunda metade do oitocentos, nãoera formada por antigos engenhos de fogo morto, mas por novas propriedadesabertas já com o objetivo de cultivar café. Segundo, a maior parte do açúcarproduzido em São Paulo era consumida internamente, abastecendo toda apopulação engajada nas outras atividades econômicas da Província, em especialnas lides cafeeiras.

Os dados recolhidos pelo Brigadeiro J. J. Machado de Oliveira, responsávelpela organização das estatísticas provinciais, para o ano de 1854, demonstram oestado da lavoura escravista mercantil e fornecem elementos para pensar asafirmações acima. A primeira observação a ser feita é que a produção de açúcarno Oeste paulista está em seu auge, não em declínio, dividindo as terras da regiãocom os cafezais. A produção de 851.275 arrobas de açúcar dos municípios do

5 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 163.6 AESP. Discurso com que o Illm. Sn. Dr. José Thomas Nabuco D’Araujo, Presidente da Provincia deS. Paulo abrio a Assembléa Legislativa provincial no dia 1º de maio de 1852, p. 36.

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Oeste é superior, inclusive, as 776.122 arrobas colhidas de café, na mesma região.Nesta região estava concentrada a manufatura do açúcar, pois possuía 575fazendas de cana, das 667 da Província, produzindo 851.275 arrobas, de um totalde 866.140. Outras 92 propriedades canavieiras espalhavam-se no Vale do Paraíbae no litoral Norte, abastecendo essas áreas cafeeiras de açúcar e aguardente.

SOIPÍCINUM SADNEZAF SODAGERGA SONOLOC SOVARCSE EDSIAMINAOÃÇUDNOC

MEÉFACSABORRA

AICNÂTROPMISIÉRME

MEAERÁ²SAUGÉL

íaidnuJ 75 66 532 054.1 028 000.06 000.000.081 8

sanipmaC 771 82 891 000.6 449 055.533 000.056.600.1 2/144

abacicariP 61 0 083 813 022 000.03 000.000.811 8

miriM.M 66 471 83 289 005.1 000.08 000.000.023 02

ariemiL 56 04 249 747.1 261 008.121 000.004.563 4

oralCoiR 56 313 132 624.1 056 076.99 000.098.932 05

arauqararA 4 0 0 16 03 000.2 000.000.6 4

acnarF - - - - - - - -

abacoroS 91 21 2 577 772 057.21 000.052.83 2/141

utI 06 06 11 957 133 207.61 000.601.05 14

zileF.P 61 4 7 771 69 053.6 000.050.91 2

aropariP 02 4 2 729 06 003.3 000.090.6 -

iravipaC 41 0 0 07 051 000.8 000.000.22 -

LATOT 975 107 640.2 296.41 042.5 221.677 000.634.343.2 691

FAZENDAS DE CAFÉ NO OESTE DE SÃO PAULO EM 1854

Fonte: Quadro Estatístico de Alguns Estabelecimentos Rurais da Província de São Paulo em18547.

SOIPÍCINUM SADNEZAF SODAGERGA SONOLOC SOVARCSE EDSIAMINAOÃÇUDNOC

RACÚÇAME

SABORRA

AICNÂTROPMISIÉRME

MEAERÁ²SAUGÉL

íaidnuJ 91 06 0 027 004 000.22 000.000.05 4

sanipmaC 44 0 0 769.1 449 092.26 000.496.99 61

abacicariP 15 0 0 988.1 045 000.131 000.000.262 92

miriM.M 75 0 9 425.1 690.3 000.722 000.000.254 03

ariemiL 31 22 0 08 004 005.3 001.36 -

oralCoiR 03 801 0 105 012 089.33 00.006.35 72

arauqararA 21 0 0 801 09 000.5 000.000.01 01

acnarF 02 04 0 342 005 008.8 000.000.02 -

abacoroS 01 3 0 904 07 523.21 000.027.91 7

utI 461 04 0 804.3 091.4 070.951 000.215.452 214

zileF.P 83 0 0 249 260.1 013.34 000.059.16 2/14

aropariP 74 01 1 269 543 000.34 000.059.18 -

iravipaC 07 0 0 005.1 004 000.001 000.000.041 -

LATOT 575 382 01 352.41 742.21 572.158 000.625.865.1 935

FAZENDAS DE AÇÚCAR NO OESTE DE SÃO PAULO EM 1854

7 Discurso com que o Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Dr. José Antonio Saraiva, Presidenteda província de S. Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 15 de Fevereiro de 1855.São Paulo: Typographia, 2 dez. 1855. AESP, microfilmes, rolo 20.

78 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

Dos treze municípios do Oeste arrolados em 1854, oito produziam mais açúcardo que café e, diga-se, em muito maior quantidade. A produção de café dosmunicípios de Itú, Capivari, Piracicaba, Porto Feliz e Pirapora é insignificante, emcomparação à produção de açúcar. Mogi-Mirim, maior produtor de açúcar com227.000 arrobas, já colhia 80.000 arrobas de café. A produção de café emCampinas (335.550 arrobas) destoava daquela dos outros municípios, pois colhiaquase metade de todo café da região. Os municípios mais distantes, como Francae Araraquara, tinham pouca participação na lavoura escravista mercantil, o mesmoocorria com Sorocaba, na rota do gado.

Não se pode afirmar, portanto, que em meados da década de 1850, o Oestefosse um espaço eminentemente cafeeiro, muito menos que o “quadrilátero doaçúcar deixou de sê-lo, para se dedicar com verdadeira obsessão à cultura do café”8.A pequena exportação de café de Itú (6.540 @), Capivari (9.034 @), Pirapora(503 @), Piracicaba (37.697 @), e M. Mirim (49.489 @), em comparação às175.187 arrobas exportadas por Limeira e às 640.565 arrobas exportadas porCampinas, na safra de 1859/60, demonstram a permanência de importantemanufatura açucareira no Oeste e a grande concentração da produção cafeeiraem Campinas9.

Do montante de 866.140 arrobas de açúcar produzidas, em 1854, apenas184.049 (21,25%) foram exportadas10. Ou seja, quase 80% da produção de açúcardos engenhos paulistas eram consumidos internamente, o que garantia a existênciade uma importante agromanufatura escravista mercantil produtora de açúcar eaguardente. As tropas de mulas, em sua maioria, não mais tinham que enfrentar adescida da Serra do Mar carregadas de açúcar. Levavam agora um produto menosperecível, o café, e em maior quantidade. Tal fato foi percebido na época, comoescreveu José Antonio Saraiva:

A cultura da canna em breve se redusirá as proporções compativeiscom o consumo da Provincia, e o de alguns Municipios de Minas.11

O quadro da procedência do açúcar e do café, exportados pelo porto de Santos,elaborados por Thereza Petrone, permite observar a transformação ocorrida coma exportação de açúcar.

Os dados mostram como a maior parte do café e do açúcar exportados porSantos procedia de um número reduzido de municípios. Quatro dessas localidades,Itu, Piracicaba, Capivari e Porto Feliz, respondiam por 149.394 arrobas de umtotal de 184.049 exportadas, em 1854-55. Verifica-se que o maior volume naexportação do açúcar ocorreu no ano de 1846-47, declinando acentuadamenteaté 1855. Esse declínio dá-se em todos os municípios marcadamente exportadoresde açúcar, com exceção de Porto Feliz que teve uma exportação muito abaixo do8 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 162.9 Discurso com que o Ill. e Exm. Senhor Conselheiro Antonio José Henriques, Presidente daProvíncia de S. Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no anno de 1861. Anexo: Quadroda exportação de 1859/ 1860.

10 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 163. SILVA, Abastecimento..., p. 103.11 Discurso com que o Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Dr. José Antonio Saraiva..., p. 16.AESP.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 79

seu padrão, e simultaneamente à ascensão da exportação do café.12 É muitoimportante frisar, para nossos objetivos, que o declínio da exportação de açúcar,no início dos anos 1850, nos principais municípios exportadores de açúcar, nãoestá relacionado à substituição da cana pelo café, com exceção de Campinas eJundiaí, pois a produção de café naquelas localidades é bem inferior ao declínioda exportação açucareira.

À mesma conclusão chegaremos se compararmos os dados de produção,fornecidos pelo Brigadeiro Machado de Oliveira, aos dados de exportação. Em1854, os municípios de Itu, Piracicaba, Capivari e Porto Feliz exportam menos

12 É de se estranhar esse baixo volume de exportação de açúcar de Porto Feliz, em 1846-47, quandoo município produzia mais de 40.000 @ anualmente. Ver: PETRONE, A lavoura canavieira..., p.49-50.

OIPÍCINUM

7381-6381 3481-2481 7481-6481 5581-4581

RACÚÇAME

SABORRA

ÉFACME

SABORRA

RACÚÇAME

SABORRA

ÉFACME

SABORRA

RACÚÇAME

SABORRA

ÉFACME

SABORRA

RACÚÇAME

SABORRA

ÉFACME

SABORRA

sanipmaC 229.251 729.4 849.55 068.51 591.302 046.66 580.21 360.313

utI 594.66 680.1 327.64 924 316.141 782.7 990.04 570.5

abacicariP 312.17 785.2 287.72 880.2 336.05 795.2 707.83 312.91

zileF.P 157.66 383 488.42 853 275.3 - 404.73 676.7

iravipaC 210.64 63 763.52 635 974.87 285.2 472.33 687.3

íaidnuJ 641.21 018 593.6 056 275.22 666.1 260.1 157.52

sezurCsad.M 165.7 129.41 343 078.3 419.21 023.72 108 422.73

miriMM 054.5 - 432.5 799 064.8 45 695.4 548.12

oluaPoãS 208.2 385.1 826 498 449.91 156.4 723.2 134.8

açnagarB 23 041.2 - 016 626 995.2 951 074.41

anubiaraP 072 621.1 - - - - - -

arabráB.S 403 - - - 467 110.1 - -

abacoroS 208 411.1 - - 232.1 268 967 356.3

abíanraP 291 - 011 - - - 681 -

íeracaJ 871 937.54 - 754.91 812.01 134.09 096 213.531

saniM 981 - 692 - 420.3 723.4 - 805.1

ésoJoãS - 439.7 - 245.2 818.2 438.8 794.1 694.63

ariemiL - - - 612 807.51 350.8 039.3 633.35

acnarB.S - 144 - 911.2 - 773.1 - 726.7

lebasI.S - 312.1 - 828 141 060.1 - 702.4

odranreB.S - 861.1 - - 845 907 89 044

étabuaT - 032 - 03 - - - 567.7

orapamA - 602 303 931 915.4 - - 006.9

sortuO - 31 594 8 695.61 025.4 363.6 424.75

LATOT 862.334 956.78 905.491 336.15 155.795 737.632 940.481 298.377

Fonte: PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 166.

PROCEDÊNCIA DO AÇÚCAR E O DO CAFÉ POR SANTOS (1836-1855)

80 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

açúcar do que no final da década anterior, mas estão no auge da produçãoescravista mercantil açucareira.

Verifica-se que, com exceção de Porto Feliz que exporta 86,36% do total de suaprodução, mesmo os maiores exportadores de açúcar da Província direcionam amenor parte de sua produção para o mercado externo, exportando cerca de umquarto a um terço do açúcar produzido. Jundiaí exportou apenas 4,83% das 20.000arrobas produzidas.

O município de Mogi-Mirim constitui caso diferente no quadro dodesenvolvimento da manufatura escravista açucareira no Oeste paulista, em relaçãoao mercado consumidor de açúcar. A produção de Mogi Mirim não se desenvolveuvoltada para o mercado externo, como ocorrera com os outros grandes produtoresdo Oeste. Em 1836-37, enquanto Campinas exportava 152.922 @ de açúcar, Mogi-Mirim exportava apenas 5.450, de uma produção de 40.520 arrobas. No auge daexportação paulista, no ano de 1846-47, este município vendia via Santos apenas8.460 arrobas de açúcar. Em 1854, é o maior produtor paulista, com 227.000arrobas, mas exporta apenas 4.596, 2,03%14. Sua exportação de açúcar nunca foisignificativa, pois sempre abasteceu o mercado interno. Neste caso, a distância doporto de Santos jogava papel fundamental na escolha do mercado consumidorpara o açúcar produzido nesta localidade, à medida que os custos dos transporteseram muito elevados.

A partir de 1855, o café foi responsável pela expansão da lavoura escravistamercantil também no Oeste, penetrando nos municípios açucareiros, causando adiminuição da produção de açúcar na Província. O aumento da escala de produção

13 “Quadro Estatístico de Alguns Estabelecimentos Rurais da Província de São Paulo em 1854”. In:Discurso com que o Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Dr. José Antonio Saraiva, Presidenteda província de S. Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 15 de Fevereiro de 1855.AESP, microfilmes, rolo 20.

14 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 50 e p. 166.

SOIPÍCINUM OÃÇUDORP OÃÇATROPXE %

sanipmaC 092.26 580.21 04,91

utI 070.951 990.04 12,52

abacicariP 000.131 707.83 55,92

zileFotroP 013.34 404.73 63,68

iravipaC 000.001 472.33 72,33

íaidnuJ 000.22 260.1 38,4

miriM-igoM 000.722 695.4 30,2

Fontes: “Quadro Estatístico de Alguns Estabelecimentos Rurais da Província de São Pauloem 1854”13; PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 166.

PRODUÇÃO E EXPORTAÇÃO DE AÇÚCAR NO OESTE PAULISTA EM 1854(EM ARROBAS)

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 81

e exportação no Oeste, que rompeu a barreira de um milhão de arrobas já no finalda década de 1850, levou ao aumento do setor de transporte e comercialização,com o respectivo aumento da população, inclusive com o aumento do plantel deescravos a partir da importação de cativos do Nordeste.

A expansão da plantação cafeeira repetiu o desmembramento dos municípiosdo Oeste, como ocorrera com a expansão açucareira, a partir do final do séculoXVIII. Antes o aumento do número de engenhos e da produção de açúcar levavaao surgimento de várias vilas, agora era a ampliação das fazendas de café quelevava à autonomia de Paróquias e Freguesias. Esse crescimento econômico edemográfico criou o mercado de consumo que os senhores de engenhonecessitavam para a comercialização de seus produtos15.

O que apresentamos até aqui foi com o objetivo de demonstrar como aimplantação da lavoura cafeeira de exportação em São Paulo, em especial noOeste paulista, converte a produção açucareira para o mercado interno, a partirda década de 1850. Agora pretendemos demonstrar a permanência daagromanufatura açucareira em alguns municípios, a ampliação do mercadoconsumidor e a implantação dos engenhos centrais.

Após a implantação da lavoura cafeeira no eixo Capinas Mogi-Mirim, o caféruma em direção a Piracicaba, Itu, Capivari e Porto Feliz, transformando engenhosem fazendas de café, fazendo declinar a produção de açúcar. A implantação dasfazendas de café nesses municípios ocorreu de forma bem mais lenta do que emCampinas e nunca atingiu a escala desta. Durante toda a década de 1850, o volumede açúcar produzido naqueles municípios foi superior ao de café.

O levantamento feito em 1857, para a organização do Almanaque da Provínciaaponta essa tendência. Os dados são incompletos, infelizmente não foram arroladasas propriedades dos dois maiores produtores de açúcar, Itu e Mogi-Mirim, o queelevaria o número de engenhos a mais de 400 unidades. A maior parte da produçãode açúcar dá-se nos vales do Tietê e do Piracicaba, mas já há um declínio emrelação a 1854. Esses municípios serão responsáveis pelo abastecimento da região.Em 1859 foi registrada a passagem de 12.234 arrobas de açúcar pela barreira deItapeva, na rota do Sul, em direção ao Paraná, recém desmembrado da Capitaniapaulista17.

A evolução da produção de açúcar em Piracicaba ilustra bem o declínio daprodução açucareira e a preponderância do café, a partir da década de 1860.Após o declínio, a partir do final da década de 1850, a produção açucareirapiracicabana volta a um novo período de expansão, na década de 1880, masagora não baseada nos engenhos e seus escravos, e sim na indústria moderna. Omesmo ocorreu, em menor escala, com os municípios açucareiros vizinhos.15 Sobre o desmembramento dos municípios paulistas e o crescimento demográfico, durante oséculo XIX, veja MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Polis,1984, p. 25-29. MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista(1700-1836). São Paulo: Edusp/ Hucitec, 2000, p. 71 e p. 138-146.

16 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Provincia de S. Paulo para o anno de 1858.Organizado e redigido por Marques & Irmãos. 1º anno. S. Paulo: Typographia Imparcial, de J. R. deAzevedo Marques, 1858.

17 Discurso com que o Illm. Exc. Senhor Conselheireiro Antonio José Henriques, Presidente daProvíncia de S. Paulo, Abrio a Assembléa Legislativa Provincial no anno de 1861. AESP.

82 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

Von Tschudi, em viagem por São Paulo, nos anos de 1860-61, nos relata asituação da manufatura açucareira nessa região. Capivari, Itu e Piracicabaaparecem como os centros produtores mais importante. O viajante não passoupor Porto Feliz e Tietê, municípios nos quais predominava a cultura da cana. SobreCapivari escreveu: “Esta Vila é o centro principal de um rico município agrícola,no qual se encontram nada menos de 63 engenhos de açúcar, 32 fazendas de café e11 de chá”19.

Para Campinas apontou a existência de 22 engenhos, que produziam de 55 a60 mil arrobas. Limeira contava com 9 engenhos e Rio Claro com 6, o que garantiao abastecimento desses municípios, ou parte dele. Em Piracicaba, no distrito dacidade, havia quatro engenhos de açúcar - no município existia um numero bemmaior - e 29 propriedades de café e seis de chá20. Sobre Itu não forneceu númerosde propriedades com engenhos, mas demonstrou a existência de uma importanteprodução açucareira. No distrito da cidade de Itu, escreveu Tschudi: “cultiva-se

18 SAMPAIO, Sílvia Selingardi. Geografia industrial de Piracicaba: um exemplo de interação indústria-agricultura. São Paulo: IG-USP, 1976.

19 TSCHIDI, J. J. Von. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: BibliotecaHistórica Paulista/ Publicações Comemorativas sob o Patrocínio da Comissão do IV Centenário daCidade de São Paulo, 1954, p. 198.

20 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 174-198.

FAZENDAS DE CAFÉ, AÇÚCAR E CRIAÇÃO NO OESTE PAULISTA

SOIPÍCINUM RACÚÇA ÉFAC OÃÇAIRC LATOT

íaidnuJ - 02 9 92

sanipmaC 82 981 - 712

abacicariP 94 92 5 48

miriM-igoM - - - -

ariemiL 41 47 82 611

oralCoiR 6 53 5 64

arauqararA - - - -

acnarF - - - -

abacoroS 2 7 1 01

utI - - - -

zileFotroP 53 23 - 76

aropariP 35 91 - 27

iravipaC 36 23 - 59

LATOT 442 734 74 827

Fonte: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Provincia de S. Paulo para o annode 185816.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 83

em vários fazendas a cana de açúcar, sendo algumas destas fazendas otimamenteinstaladas, não ficando a dever aos melhores engenhos de Pernambuco”21.

Ao apontar o município de Rio Claro como o ponto mais afastado no qual sepodia produzir café para a exportação com preço lucrativo, o viajante aponta aexistência da produção açucareira para o abastecimento do mercado interno, emespecial dos municípios produtores de café. Além de Rio Claro, “nos demaismunicípios somente os engenhos de açúcar conseguiam ser rendosos, trabalhandopara o consumo interno. Uma vez concluída a estrada de ferro até Campinas, é dese supor que estes engenhos possam suprir as necessidades de consumo além domunicípio de Rio Claro” 22. As áreas além de Rio Claro, tiveram que aguardar asferrovias para se conectarem ao mercado externo.

O declínio da produção açucareira paulista e o constante crescimento dapopulação, graças a ampliação da lavoura cafeeira, no final da década de 1850,fez com que a produção paulista não mais tivesse capacidade de abastecer sozinhao mercado provincial, que pelos dados da produção e exportação de 1854 deveriaconsumir cerca de 10.000 toneladas, o que daria cerca de 25 quilos por habitante.Em poucos anos São Paulo passou de exportadora a importadora de açúcar,consumindo parte da produção nordestina.

No início da década de 1860, São Paulo importava de 1.000 a 2.000 toneladasde açúcar, importação que “foi progressivamente crescendo até o anno de 1872,em que foram importadas 18.000 toneladas, decrescendo de então para cá”23. Nessemomento, a maior parte do açúcar consumido em São Paulo já era importado deoutras Províncias. O desenvolvimento da produção algodoeira em vários municípiosdo Oeste paulista, na década de 1860, devido à guerra civil nos Estados Unidos,também contribuiu para a redução da produção açucareira paulista, mas criounovos consumidores de açúcar. Entre os anos de 1867 e 1876, a Província exportavaanualmente de 7 a 8 mil toneladas de algodão, declinando desde então24.

Em ofício de 13 de janeiro de 1869, ao Governo provincial, a Câmara municipalde Capivari descreve o estado da lavoura do município, que produz café, algodão,açúcar, aguardente, milho, “sendo que só o café e o algodão são exportados para omercado de Santos, e os demais são vendidos neste mesmo municipio, a compradoresdaqui mesmo ou de outros municipios que aqui venhão comprar. O valor dosproductos é regurlamente 5.000 rs por arroba de café, 4$000 rs por arroba de assucar,2.500 rs por arroba de algodão, 20$ rs por 32 canadas de aguardente, 1$000 por

21 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 200.22 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 188.23 Relatório da Comissão Central de Estatística. São Paulo: Typographia King, 1888, p. 253.24 PETRONE, A lavoura canavieira..., p. 253.

EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO DE AÇÚCAR E CAFÉ EM PIRACICABA(AÇÚCAR EM ARROBAS)

Fonte: SAMPAIO18, Geografia industrial..., p. 65.

SOTUDORP 8281 6381 4581 7581 6681 8881 6981

racúçA 934.29 906.511 000.081 000.001 004.93 000.05 864.521

éfaC 31 996.4 005.21 000.08 058.211 051.952 000.741

84 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

alqueire de milho, 2$000 por alqueire de arros, 2$500 por alqueire de feijão, e3$000 por alqueire de farinha de milho”25. Dois anos depois, repete a Câmara:“Este municipio é essencialmente dedicado a lavoura. Produz assucar, aguardente,café, algodão e generos alimenticios. Exporta seus productos pela Estrada de ferrode Jundiahy ao porto de Santos: a exportação faz-se do café e do algodão; o assucar,agoardente e generos alimenticios são vendidos nas fazendas, para o consumo domesmo Municipio e dos circunvizinhos”26.

O mesmo ocorria com os municípios vizinhos, café e algodão eram remetidospara Santos, destinados à exportação, enquanto o açúcar, a aguardente e os gênerosalimentícios eram comercializados no mercado provincial. Os municípios comgrande produção cafeeira tornaram-se importadores de açúcar de outros, poisnão conseguiam se auto abastecer. O algodão, no final da década de 1870, teve omesmo destino do açúcar.

A população paulista dobrara no período de meados do século XIX até orecenseamento de 1872, auge da importação de açúcar. O número de 417.149habitantes, em 1854, alcança 837.354, em 1874, o fizera praticamente dobrar oconsumo de açúcar27. A construção das ferrovias ligando o porto de Santos aCampinas empurrou a fronteira agrícola de exportação. A quantidade de caféexportado pelo porto de Santos alcançou 1.936.903 arrobas no ano financeiro de1871-7228. O valor da exportação de café pelo porto de Santos, neste mesmo ano,foi de 13.004.567$000, contra 3.750.590$000 em 1858-5929. O café garantia umainjeção constante de recursos monetários na economia de São Paulo, o quepossibilitava o investimento em outros setores, em especial na construção da redeferroviária paulista, levada a cabo pelos fazendeiros e comerciantes.

O Almanak de São Paulo para o anno de 1873 traz o quadro da agromanufaturacanavieira que sobreviveu em São Paulo, após a expansão cafeeira das duasdécadas anteriores, abastecendo o interior paulista de açúcar e aguardente. Osvales dos rios Tietê e Piracicaba continuam sendo a principal área de produção deaçúcar da Província. Em Tietê contam-se 46 fazendas de cana e mais 8 com canae café, às quais se somam 26 de café e oito de algodão; em Capivari, 39 fazendasde cana, 39 de algodão e 51 de café. Em Porto Feliz predomina o algodão, com 64lavradores, mais 11 de cana e 6 de café. Para Piracicaba e Itu o Almanak nãodistingue as propriedades pelo artigo produzido, listando 63 e 35 propriedades decafé e cana, respectivamente. Itu contava com mais 18 fazendas de algodão e 12de chá. Santa Bárbara, que se desmembrara de Piracicaba, aparece com 5425 Ofício de 13 jan. 1869. Ofícios diversos de Capivari. AESP, Cx. 187, Ordem 0982.26 Ofício de 15 jan. 1871. Ofícios diversos de Capivari. AESP, Cx. 187, Ordem 0982.27 SAES, Flávio Azevedo Marques de. As ferrovias de São Paulo: 1870-1940. São Paulo: Hucitec/INL-MEC, p. 44. MARCÍLIO, Crescimento demográfico..., p. 71. Computando a população doParaná fornece os números seguintes: 1854, 480.608; 1872, 964.076.

28 Relatório apresentado ao Presidente da Provincia de São Paulo, Dr João Theodoro Xavier, peloInspector do Thesouro Provincial. AESP, 1873.

29 MONBEIG, Pioneiros e fazendeiros..., p. 96. SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico eevolução urbana. São Paulo: Editora Nacional, 1977, capítulo 2: São Paulo.

30 Almanak da Província de São Paulo para o anno de 1873. 2. ed. Organizado e publicado porAntonio José Baptista de Luné e Paulo Delfino da Fonseca. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,1985, p. 358-359, p. 367-372, p. 462-467, p. 470-479.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 85

fazendas mistas de cana e algodão30. Quatro anos depois, em 1877, Moraes Barrosapontou a existência de 25 engenhos em Piracicaba, produzindo cerca de 50.000arrobas31.

Os municípios de Casa Branca e São João da Boa Vista, no caminho de Goiás,apresentam importante número de propriedades canavieiras. O primeiro contacom 31 fazendas de cana, uma mista com cana e café e outra com cana, café ealgodão. O segundo, com 17 propriedades de cana e mais 5 nas quais a canadivide as terras com café. Mogi- Mirim, que contava com 57 engenhos em 1854,apresentava 11 fazendas de cana, 5 mistas de cana e café e 2 que plantavamcana, café e algodão, totalizando 18 propriedades32. Em Araraquara contavam-se16 fazendas de açúcar, em Serra Negra 11, em Descalvado também 11, em RioClaro 9, em Limeira 6, São Carlos do Pinhal 10, em Jundiaí 9, em Pirassununga 6.Os principais centros produtores de açúcar e aguardente eram os municípios maisafastados do porto de Santos. Formavam uma espécie de cinturão abastecedor dazona central produtora de café, em especial os municípios de Campinas, Rio Claro,Limeira e Indaiatuba33.

A década de 1870 é representativa, pois marca um momento de mudança nalavoura paulista. A construção das primeiras ferrovias, que rasgaram o Oeste apartir de então, possibilitaram a expansão da lavoura de exportação, diga-se ocafé, para além das encostas da depressão periférica, caminhando para o centro enorte da Província. A produção de algodão declina, cedendo espaço a novasculturas, deixando o mercado externo para abastecer as fábricas de tecidos quesurgirão no último quartel do século. A produção de açúcar e aguardente, como naprimeira metade do século, volta a se expandir. O aumento da produção e circulaçãode mercadorias aumenta o setor urbano e de transporte. Todo esse crescimentoeconômico só foi possível graças ao crescimento da população, que gera ummercado consumidor cada vez maior. Para o açúcar, estimado um consumo anualde 25 quilos por habitante, o mercado paulista necessitaria pouco mais de 20.000toneladas para ser abastecido.

Mais da metade desse açúcar provinha do Rio de Janeiro e de Pernambuco, orestante era produzindo internamente. Não é por acaso que quando o Governoimperial lança a política de modernização através dos engenhos centrais, em 1875,os produtores paulistas lançam mão de concessões e são dos primeiros no País ainstalarem as modernas unidades produtivas, os engenhos centrais. Em São Pauloexistiam, nesse momento, um mercado que alcançava um milhão de almas, umajá secular manufatura açucareira, uma rede ferroviária em expansão e capitaispara serem investidos. Possuía, portanto, as condições necessárias para aimportação da moderna tecnologia inventada pela revolução industrial européia.

Os engenhos centrais representavam a revolução industrial aplicada na produçãodos derivados de cana. Ele veio reinventar e superar a manufatura colonialprodutora de açúcar, mecanizando todo o processo produtivo. Seu desenvolvimentoteve início com a invenção da moenda a vapor, logo depois seguido da invenção31 BARROS, M. Moraes. “Piracicaba: estado presente. Agosto de 1877”. In: Almanach Litterario deSão Paulo para o anno de 1878, p. 159-164.

32 Almanak da Província de São Paulo, 1873.33 Almanak da Província de São Paulo, 1873.

86 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

do cozimento a vácuo nos chamados tríplices efeitos e das turbinas centrifugadoras,que substituíram os tendais de purgar. No Brasil, para se obter os subsídios doEstado para a instalação de engenhos centrais (especialmente a garantia de jurosde 7% e a isenção de taxas de importação) as Companhias não poderiam produzira matéria-prima necessária para seu abastecimento nem utilizar mão-de-obraescrava34.

O primeiro engenho central de São Paulo foi inaugurado em outubro de 1878,às margens do rio Tietê, município de Porto Feliz. A Companhia Açucareira dePorto Feliz, proprietária do engenho central, fora incorporada em 1876 e teve seusestatutos aprovados pelo decreto 6.355, de 11 de outubro do mesmo ano. Por essedecreto, o Governo Imperial concedia garantia de juros de 7% ao ano sobre ocapital de 300 contos de réis.

O município de Porto Feliz foi um dos principais produtores de açúcar daprimeira metade do século XIX, mas a partir da década de 1860 seus lavradores sededicaram com maior afinco à lavoura de algodão, apresentando apenas 11fazendas de cana, em 1873. O preço do algodão, entretanto, despencou na décadade 1870, com a reorganização da produção do Sul dos Estados Unidos, o quelevou ao abandono da lavoura algodoeira por partes de vários produtores.Respondendo ao questionário emitido pelo governo provincial, a respeito daprodução de algodão, escreveram os vereadores:

Quanto ao 1º (pouco desenvolvimento da cultura do algodão) entendeesta Camara que é devido a baixa em que está, e seu producto liquidonão compensa aos agricultores, as despezas que fasem comparandocom outra qualquer cultura.35

Quatro anos depois, no ano da inauguração do engenho central, lemos emoficio da Câmara municipal: “o estado geral da agricultura é péssimo devido aescasses de braços e decadencia da lavoura do algodão, havendo esperanças demelhoras, se tomar a cultura da canna as proporções que se espera com oestabelecimento do Engenho Central”36.

A instalação do engenho central de Porto Feliz aparecia como a salvação dalavoura do município, pois a mesma enfrentava grave crise. A lavoura do algodão,em pouco tempo, deixou de ser promissora e agora os lavadores necessitavamfazer a conversão para outra cultura, no caso, a cana de açúcar. A primeiraexperiência de instalação de uma grande indústria do açúcar, em São Paulo, nãoocorreu, portanto, nos principais municípios açucareiros, nem em um municípioem expansão agrícola.

A instalação de um engenho central requeria um grande investimento de capitalna construção dos edifícios, na importação da moderna maquinaria, na construçãode estradas de ferro agrícolas e importação do material rodante. Esse montante derecursos necessário ao investimento estava fora do alcance dos proprietáriosisoladamente. A solução era a organização de sociedades por ações, o que

34 Decreto 2.687, de 6 nov. 1875. Leis do Império do Brasil.35 Ofício de 27 mai. 1874. Oficios diversos, Porto Feliz. AESP. Cx. 386, Ordem 1181.36 Ofício de 12 jan. 1878. Ofícios diversos de Porto Feliz. AESP. Cx 386, Ordem 1181.

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possibilitaria o levantamento do capital. A elite paulista, formada por fazendeiros,comerciantes e banqueiros, já desenvolvera a experiência na incorporação deempresas por ações para a construção das estradas de ferro.

Assim foi organizada a Companhia Açucareira de Porto Feliz, sob a liderançado Desembargador Bernardo Gavião Peixoto, Barão de Três Rios, Antônio dePaula Leite de Barros (maiores aciocistas com 50 ações cada), Joaquim Antônioda Silva Camargo, Antônio Manoel de Arruda Abreu, Dr. Joaquim Carlos Travassose outros, somando mais de 90 acionistas37. A Companhia, no entanto, nãoconseguiu levantar todo o capital através da emissão de ações, realizando apenas192:400$000. Foi necessário empréstimo bancário de 128:600$000. A instalaçãocompleta do engenho custou cerca de 460 contos, sendo cerca de 198 com omaquinário importado da Brissoneau Frére de Nantes, à qual a Companhia deviacerca de 60 contos38.

Na pequena safra experimental de 1878, “Em 20 dias de moagem, que poremequivalerá a 10 dias de um serviço regular, a fabrica fez cerca de tres mil arrobas deassucar.(...) O produto inferior tem sido vendido a 3.500 por 15 kilos; o superior,que é optimo, a 6.000”39. Os engenhos tradicionais tinham agora a contribuiçãoda primeira grande indústria açucareira paulista no abastecimento do mercadoconsumido do interior de São Paulo.

A vizinha cidade de Itú passa a comercializar açúcar do central de Porto Feliz,como podemos ler no jornal Imprensa Ytuana, durante o ano de 1879:

Assucar - Manoel Martins de Padua Mello, tem para vender assucarcrystalisado do Engenho Central de Porto Feliz, pondo a disposição dopúblico qualquer quantidade deste genero, o melhor que pòde serfabricado, por preços mais que commodos, vende as saccas, uma oumuitas.40

Em casa de Manoel Martins de Padua Mello, rua do Commercio, gradede ferro, continua-se á vender assucar crystalisado do Engenho Centralde Porto Feliz.41

Em outubro, a mesma casa comercial anuncia a venda de “assucar do que háde melhor do Engenho Central de Porto, ao preço de 5.500rs por 15 kilos, poremsó vende de uma sacca para mais”42. Manoel Martins era distribuidor atacadista doaçúcar produzido pelo engenho central de Porto Feliz.

37 ACCIONISTAS da Companhia Assucareira de Porto Feliz. Estatutos da Companhia Assucareira dePorto Feliz. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger & Filhos, 1877.

38 Ofício do Director Gerente da Companhia Assucareira de Porto Feliz, José Manoel de ArrudaAlvim, 13 dez. 1878. Ofícios diversos. Cx.386, Ordem 1181. SOUZA, Jonas Soares de. O EngenhoCentral de Porto Feliz: uma empresa pioneira em São Paulo. São Paulo: USP/ Museu Paulista,1978, p. XXIV-XXV.

39 Ofício do Director Gerente da Companhia Assucareira de Porto Feliz, José Manoel de ArrudaAlvim, 13 dez. 1878. Ofícios diversos. Cx.386, Ordem 1181.

40 Imprensa Ytuana, 05 fev. 1879, p. 3. MRCI.41 Imprensa Ytuana, 24 jun. 1879, p. 4. MRCI.42 Imprensa Ytuana, 12 out. 1879, p. 4. MRCI.

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Após a experiência pioneira de Porto Feliz surgiram mais três engenhos centraisem São Paulo, no início da década de 1880. Dois nos municípios vizinhos deCapivari e Piracicaba e outro em Lorena, no Vale do Paraíba. Todas as concessõesforam obtidas em 1881 e seus concessionários foram: Estevão Ribeiro de SouzaRezende, Antonio Corrêa Pacheco e Joaquim Eugênio do Amaral Pinto, emPiracicaba; Henri Raffard, em Capivari e Antônio Moreira de Castro Lima, JoséJoaquim Moreira Lima, Arlindo Braga e Francisco de Paula Vicente de Azevedo,em Lorena43.

Diferentemente de Porto Feliz, Piracicaba e Capivari, na mesma região, passavampor um momento de prosperidade econômica graças especialmente à expansãoda lavoura cafeeira, mas também à produção de açúcar. Enquanto a CâmaraMunicipal daquela localidade informava ao Governo Provincial que o estado dalavoura era péssimo, as Câmaras de Capivari e Piracicaba afirmavam aprosperidade da lavoura nas mesmas.

Em 1882, lemos em ofício de Câmara Municipal de Capivari:

O municipio é riquissimo de terras de superior qualidade= roxas,massapés, vermelhas, barrentas, que dão abundantemente todos osgeneros de cultura conhecidas na provincia, exportando já 1.800.000kilos de café commum e geralmente conhecidos; 1.125.000 kilos deassucar feitos ainda pelos antigos e custozos processos, das seguintescannas, roxa, roza, branca e caninha criolla.44

Além dessa produção de açúcar, que superava mais de 1.000.000 de quilosanualmente, Capivari fabricava cerca de 8.000 cargueiros de aguardente,demonstrando a grande importância na economia do município. Capivari era umdos principais produtores de açúcar e aguardente da Província. Piracicaba, nestemomento, exportava em média 4.500.000 quilos de café45.

O engenho central de Piracicaba foi inaugurado em 1883, os de Lorena eCapivari, no ano seguinte. A exemplo do central de Porto Feliz, os dois primeirosforam montados com maquinário francês da Brissonneau Frères, enquanto o centralde Capivari foi montado pela J & T Dale de Kiredy e Mirrlees Wats & Cia, deGlasgow. A capacidade instalada dessas fábricas era de 240 toneladas diárias decana e produção mínima de 16.000 sacos de 60 quilos de açúcar por ano46.

A inauguração dessas fábricas trouxe para São Paulo um novo padrão técnico,o da grande indústria totalmente mecanizada, que produzia em grande escala eproporcionava rendimento dobrado, acima de 8% cana/açúcar, em relação aos43 Piracicaba: Decreto 8.089 de 07 mai. 1881. Lorena: Decreto 8.098 de 21 mai. 1881. Capivari:Decreto 8.123 de 28 mai. 1881. Leis do Império do Brasil.

44 Ofício da Câmara Municipal de Capivari. 13 abr. 1882. AESP, Ofícios diversos, Cx. 187, Ordem0982.

45 Ofício da Câmara Municipal de Piracicaba, mar. 1883. AESP, Ofícios diversos, Cx. 378, Ordem1173.

46 SAWYER, Frederic H. Estudo sobre a indústria assucareira no Estado de São Paulo. São Paulo:Secretaria da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, 1905, p. 30-49. SOUZA, O EngenhoCentral..., p. XX. BRAY, Sílvio Carlos. A formação do capital na agroindústria açucareira de SãoPaulo: revisão dos paradigmas tradicionais. Rio Claro: UNESP, 1989 (Tese de Livre Docência), p.72-74.

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engenhos tradicionais. Seu açúcar era de qualidade bem superior, com alto índicede polarização, pronto para o consumo direto. Os município onde estavamlocalizados transformaram-se nos maiores produtores provinciais e suas fábricaseram exemplos nacionais de modernização do setor no Império.

Os três primeiros centrais de São Paulo foram obra do capital nacional,acumulado na lavoura canavieira, cafeeira, algodoeira, no comércio e transporte.A Companhia açucareira de Porto Feliz, incorporada em 1876, tinha como seusmaiores acionistas os seguintes senhores: Bernardo Avelino Gavião Peixoto(capitalista e empresário, residente em São Paulo, 50 ações); Barão de Três Rios(capitalista e fazendeiro, residente em Campinas, 50 ações); Antonio de PaulaLeite de Barros (fazendeiro de cana, residente em São Paulo); José Antonio daSilva Camargo (fazendeiro de Cana de Porto Feliz, 25 ações); Luiz Teixeira daFonseca (fazendeiro de algodão de Porto Feliz, 25 ações); Salvador Corrêa de Moraes(fazendeiro de cana de Porto Feliz, 25 ações); Antonio Manoel de Arruda Abreu(fazendeiro de cana de Porto Feliz, 25 ações); Dr. Joaquim Carlos Travassos (médicoe capitalista, residente no Rio de Janeiro, 25 ações); Frederico Brand (engenheirotopógrafo alemão, 25 ações); Francisco Antonio da Fonseca (fazendeiro de canade Porto Feliz); Baronesa de Limeira (capitalista e fazendeira, residente em SãoPaulo, 20 ações); Barão de Souza Queirós (capitalista, empresário, fazendeiro decafé, algodão e cana, residente em São Paulo, 20 ações); Barão de Porto Feliz(capitalista e fazendiro de café, residente em Rio Claro, 20 ações)47. A lista nosapresenta a diversidade das atividades econômicas das pessoas envolvidas nessaprimeira grande indústria açucareira paulista, indivíduos de negócios que investiamseus capitais em várias atividades econômicas, entre os quais o engenho central.Alguns acionistas tinham capitais aplicados em ferrovias, como são os casos doBarão de Souza Queiróz e Bernardo Gavião Peixoto48.

A Companhia Engenho Central de Piracicaba foi incorporada pelos senhoresEstevão Ribeiro de Souza Rezende, depois Barão de Rezende (fazendeiro de cafée cana em Piracicaba), Antonio Correa Pacheco (também fazendeiro de café ecana no mesmo município) e Joaquim Eugênio do Amaral Pinto49.

Em Lorena, a Companhia proprietária do engenho central era dominada pelafamília Moreira Lima, a mais rica família da cidade, liderada pelos irmãos Viscondede Moreira Lima e Barão de Castro Lima. Os seis maiores acionistas, dentre ototal 42, concentravam, em 1885, 1849 ações, 73,96% das 2.500 existentes50.

O engenho central de Capivari foi construído com capital inglês, que comproua concessão de Henrique Raffard, recebida em 1881, e incorporou a The SãoPaulo Central Sugar Factory of Brazil. Este engenho foi instalado às margens doRio Capivari, em terreno do Conselheiro Gavião Peixoto, acionista do engenho de

47 SOUZA, O Engenho Central..., p. XXIV. BRAY, A formação do capital..., p. 70.48 BRAY, A formação do capital..., p. 49.49 BRAY, A formação do capital..., p. 72. TERCI, Eliana Tadeu. A agroindústria canavieira de Piracicaba:relações de trabalho e controle social (1880-1930). São Paulo: PUC, 1991 (Dissertação de Mestrado),p. 70.

50 Relatório da Companhia Engenho Central de Lorena de 15 de janeiro de 1886, Anexo 8, APL.MELO, José Evando Vieira de. O Engenho Central de Lorena: modernização açucareira e colonização(1881-1901). São Paulo: FFLCH-USP, 2003 (Dissertação de Mestrado), p. 68-88.

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Porto Feliz. A Companhia inglesa pouco durou, pois um déficit de 130 contos alevou a falência. Os credores assumiram a fábrica, constituindo a CompanhiaEngenho Central de Capivari, em 26 de Junho de 1886, presidida pelo Dr. AlbanoPimentel, fazendeiro de cana da região51.

Esses engenhos centrais nasceram para competir com outras Províncias peloabastecimento do mercado paulista e a entrada em operação dessas unidadesprodutivas fez baixar a quantidade de açúcar importada, como mostram os dadosda Comissão Central de Estatística. Os produtores paulistas tinham a vantagemda proximidade do mercado, o que garantia menores gastos com o transporte dasmercadorias.

51 SAWYER, Estudo..., p. 36-37. BRAY, A formação do capital..., p. 73-74.52 Relatório da Comissão Central de Estatística, 1887-1888. São Paulo: Typographia King, 1888, p.326, p. 424-425, p. 443-446, p. 478, p. 574-578.

IMPORTAÇÃO DE AÇÚCAR POR CABOTAGEM EM SÃO PAULO - 1882-1887

Fonte: Relatório da Comissão Central de Estatística, 1887-1888. São Paulo, TypographiaKing, 1888, p. 26.

SONA 38-2881 48-3881 58-4881 68-5881 78-6881

RACÚÇA)sadalenot(

698.41 567.61 963.11 582.5 909.21

A importação caiu de 16.765 toneladas, no ano de 1883-84, para 11.369, em1884-85, e para 5.285, no ano seguinte, justamente nos anos das primeiras safrasdesses três novos engenhos centrais paulistas, voltando novamente para o patamarde 13.000 toneladas, em 1886-87.

A comissão de estatística calculava a produção provincial de açúcar em cercade 6.000 toneladas, sendo seus principais produtores os municípios de Piracicaba,Capivari, Lorena, Porto Feliz, Monte-mór, Itu, Araraquara, Cajuru, Jaboticabal,Santa Bárbara, Tijuco Preto e Santa Cruz do Rio Pardo. A relação exposta confirmaa persistência da produção açucareira realizada no antigo padrão daagromanufatura dos engenhos tradicionais, pois apenas nos quatro primeirosmunicípios existiam os grandes engenhos centrais. Alguns desses engenhos erammovidos a vapor, transformando-se em unidades semimecanizadas.

Dos 18 engenhos de Santa Bárbara, cinco eram movidos pela força do vapor,três pela da água e três pela tração animal. A produção alcançava 225.000 quilosde açúcar e 147.000 litros de aguardente. Monte-mór fabricava 150.000 quilos deaçúcar em seis engenhos, sendo três movidos a vapor, um a água e dois pelosanimais. Itu aparece com uma produção de 700.000 quilos de café e 550.000 deaçúcar e 200.000 de algodão. O município de Cajuru, a 369 km da capital, aparececomo o maior produtor da Província, com 3.000.000 de quilos de açúcar, maiordo que a produção de café, de 2.000.00052.

Com a inauguração dos engenhos centrais, Porto Feliz e Piracicaba voltam aproduzir acima de um milhão de quilos anualmente. São 1.200.000 e 1.050.000quilos, respectivamente. O central de Piracicaba produzia cerca de 450.000 quilos,

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o de Lorena, cerca de 430.000, em 188553. Pelos dados levantados, a produção deaçúcar em São Paulo ultrapassava as 6.000 toneladas, apontadas pela Comissãode estatística.

A partir desse momento de instalação da grande indústria do açúcar, aguardentee álcool em São Paulo, a população do território paulista passará por uma grandeexpansão, com a entrada de milhares de imigrantes, a partir de meados da décadade 1880, ampliando ainda mais o mercador consumidor provincial. Em 1887,entraram em São Paulo mais de 32.000 imigrantes; no ano seguinte, cerca de92.000. Na última década do século entraram cerca de 750.000 imigrantes naProvíncia e em 1900 a população da mesma alcançou a soma de 2.609.415habitantes54. Só a população da capital saltou de 64.934, em 1890, para 239.820,em 1900, crescimento de 268%55.

A produção paulista de açúcar em expansão não consegue abastecer essemercado, importando grande quantidade de açúcar do Nordeste e do Rio de Janeiro.No ano financeiro de 1887-88, a Companhia Santos Jundiaí transportou11.338.600 quilos de açúcar56. Henri Diamanti, em estudo de 1898, calcula que omercado interno brasileiro consome cerca de 350 mil toneladas, ou 5.830.000sacos de 60, avaliando consumo individual de 25 quilos, para uma população de14 milhões de pessoas. Mas escreve o autor: “Considerando-se o imenso consumode café e de doçarias que se faz em todas as classes sociais, este número parecerepresentar uma avaliação pessimista”57.

O mercado do Rio de Janeiro, além de grande consumidor, era grandedistribuidor de açúcar, no final do século XIX, fornecendo açúcar para os Estadosde Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “O fatose explica pela dificuldade das relações comerciais diretas entre os portos do Nortee as cidades de Sul”58. Os dados seguintes mostram a entrada de açúcar no mercadodo Rio de Janeiro.

53 Relatório da Comissão Central de Estatística, 1887-1888, p. 443-446. SAMPAIO, Geografiaindustrial..., p. 72. MELO, O Engenho Central..., p. 103.

54 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 68. MARCÍLIO, Crescimento demográfico..., p. 71.

55 SINGER, Desenvolvimento econômico..., p. 47.56 Relatório do Presidente da Província de São Paulo, Pedro de Azevedo, 1889. AESP.57 DIAMANTINI, Henri. “Nota sobre a indústria açucareira no Brasil”. In: PERRUCI, Gadiel. ARepública das usinas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, Parte IV, p. 235. A estimativa de consumode 25 quilos por habitante é feita por Henri Raffard e pelo Centro d’Indústria e Commercio deAssucar.

58 DIAMANTINI, “Nota sobre a indústria...”, p. 239.

ENTRADAS DE AÇÚCAR NO MERCADO DO RIO DE JANEIRO (1891-1897),EM SACOS DE 60 KG

Fonte: DIAMANTINI, “Nota sobre a indústria...”, p. 239.

SONA 1981 2981 3981 4981 5981 6981 7981

RACÚÇA 017.868 - 386.329 908.443.1 259.291.1 612.902.1 612.910.1

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Ao término do século XIX, mais seis usinas de cana haviam surgido em SãoPaulo, interessadas em atender o sempre crescente mercado interno paulista, todasfora da política de engenhos centrais, iniciada em 1875 e, portanto, sem garantiade juros nem subsídios. A primeira delas foi a pequena usina Monte Alegre, montadana tradicional fazenda que lhe deu o nome, em Piracicaba, em 1887. Depois vieramFreitas, em Araraquara (1889), Indaiá e Cachoeira, em Franca (ambas em 1898),London, em São Simão (1899)59.

Essas usinas foram fundadas por homens que acumularam capitaisprincipalmente na atividade cafeeira, que dinamizava a economia paulista comsua exportação. A maquinaria era comprada frequentemente no Rio de Janeiro,em especial da região campista, como foi o caso da usina Cachoeira, montadapor Manuel Dias do Prado. O Comendador Freitas montou sua usina commaquinaria importada da Cail60.

A London foi montada pelo grande cafeicultor da região de Ribeirão Preto, Dr.Henrique Dumont, que comprou todo o maquinário do engenho central Rio Branco,que fora instalado no município da Barra do Piraí, na antiga Província fluminense,em 188661.

A maioria do açúcar consumido em São Paulo no final do século XIX nãoprovinha destas grandes indústrias, mas dos engenhos bangüês que sedesenvolveram na antiga Província. Levantamento realizado pela Secretaria daAgricultura, em 1900, apontou a existência de 2.494 engenhos e engenhocas, dosquais 123 para a produção de açúcar, 72 de rapadura e 2.299 de aguardente62.Estes e aquelas não davam conta de abastecer o mercado paulista, carecendoimportar uma boa quantidade de açúcar nordestino. Os dados a seguir demonstramessa realidade.

59 DIAMANTINI, “Nota sobre a indústria...”, p. 128-138, p. 155.60 DIAMANTINI, “Nota sobre a indústria...”, p. 130, 136-137.61 DIAMANTINI, “Nota sobre a indústria...”, p. 128. Sílvio Carlos Bray mostrou o processo deacumulação do Sr. Henique Dumont e a fundação dessa usina. BRAY, A formação do capital..., p.129-132.

62 BRAY, A formação do capital..., p. 91.

PRODUÇÃO E CONSUMO DE AÇÚCAR EM SÃO PAULO EM 1901 (SACOSDE 60 QUILOS)

Fonte: BRAY, A formação do capital..., p. 92.

OÃÇUDORP SOHNEGNE SANISU OMUSNOC OÃÇATROPMI

853.490.1 634.349 229.051 310.169.1 556.668

A lavoura canavieira paulista produzia 57% do açúcar que consumia e 86,20%dessa produção era realizada nos engenhos, agora não mais com o trabalho escravo,enquanto as usinas produziam 13,80%. Essa produção era mais de cinco vezessuperior à realizada no auge da exportação paulista de açúcar, em meados doséculo XIX. Não houve, desta maneira, um ciclo da lavoura canavieira paulista,extinto pelo rápido crescimento da cultura do café; mas uma regressãomomentânea, logo superada e expandida por novas técnicas de produção e detransportes.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 93

Os quatro engenhos centrais instalados em São Paulo, entre 1878 e 1884,passaram por várias crises financeiras e foram vendidos para investidores franceses,no alvorecer do oitocentos, que passaram a controlar as maiores unidadesprodutoras de açúcar, aguardente e álcool do Estado. Antes mesmos dareorganização feita pelos franceses, essas unidades evoluíram para a estruturausineira, integrando a produção agrícola e fabril, sem deixar de manter, pelo menosem parte, o fornecimento de cana de terceiros.

A Província/ Estado de São Paulo, com o crescimento econômico e demográficoda segunda metade do século XIX, no qual a implantação das ferrovias e aimigração desempenharam papel fundamental, transformou-se no principalmercado consumidor para os derivados de cana, em um momento crucial no qualo açúcar brasileiro, diga-se a produção nordestina, perdia seus mercados no exterior,necessitando converter sua produção para o mercado nacional. Esses engenhoscentrais fundaram a grande indústria açucareira em São Paulo e foram parteintegrante da formação da moderna agroindústria canavieira no país, que marcariatão fortemente a nossa história do século XIX.

Em São Paulo, na Segunda metade do século XIX, não houve a substituiçãototal da lavoura canavieira pela cafeeira, pois ambas conviveram juntas. Em algunsmomentos, a lavoura canavieira cedeu espaço para a lavoura cafeeira, mas oinverso também é verdadeiro. O desenvolvimento e expansão do complexo cafeeirode exportação criou um mercado consumidor para a indústria nascente, entre asquais a moderna agroindústria canavieira.

RESUMOA manufatura escravista açucareira passou por grandeexpansão no planalto paulista, durante toda a primeirametade do século XIX, conectando a Capitania/Província deSão Paulo ao circuito do comércio mundial. A partir dadécada de 1830, a manufatura do açúcar passou a sofrer aconcorrência da lavoura cafeeira, em franca expansão noVale do Paraíba e na região de Campinas. Na segundametade do oitocentos, a exportação de café ultrapassou ade açúcar pelo porto de Santos. A manufatura açucareirarestringiu-se a alguns municípios, abandonou o mercadoexterno e converteu sua produção para o mercado paulista.Este se ampliava rapidamente, acompanhando a expansãocafeeira no oeste paulista, aumentando a base econômica edemográfica da Província. A existência desse mercadopaulista para o açúcar local e também de outras Províncias,criado pelo desenvolvimento do complexo cafeeiro,possibilitou o surgimento de quatro engenhos centrais, dandoorigem à grande indústria do açúcar em solo paulista.Palavras-Chave: Indústria Açucareira; Província de SãoPaulo; Século XIX.

ABSTRACTThe slavery sugar manufacture had great expansion in SãoPaulo plateau, during the whole first half of 19th century,connecting this Province to the sugar world trade circuit.Starting from the decade of 1830, the manufacture of thesugar started to suffer the competition of the coffee farming,in large expansion in Paraíba River valley and in Campinasarea. In the second half of that century, the coffee exportsurpassed sugar in Santos harbour. The sugar manufacturewas limited to some municipal districts, and abandoned theexternal market converting its production to São Paulo market.This was quickly enlarged, accompanying the coffeeexpansion to the west, increasing the economical anddemographic base of the area. The existence of that marketfor the local sugar and also of other provinces, created bythe development of the coffee sector, made possible theappearance of four central mills, creating the great sugarindustry in São Paulo province.Keywords: Sugar Industry; São Paulo Province; 19th

Century.

94 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

VITÓRIA NO COMEÇO DO SÉCULO XX:MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO NACONSTRUÇÃO DA CAPITAL CAPIXABA

Maria da Conceição Francisca Pires1

Contexto histórico de transformação das cidades brasileiras:um balanço historiográfico

A produção acadêmica relativa à temática “cidades” é extensa e tem comocaracterística central o seu caráter interdisciplinar, uma vez que esta tem sidoabordada por geógrafos, arquitetos e urbanistas, literatos, sociólogos, economistase, apenas recentemente, também por antropólogos e historiadores. O caráter inicialque despertou o interesse desses pesquisadores refere-se ao fato das cidades seremo grande cenário da modernidade. Nesses espaços os homens modernos ergueramseus novos templos, redefiniram suas relações sociais, formularam as suas utopias,apostaram no futuro e se deixaram seduzir pelas invenções modernas. Os cenáriosurbanos onde foram encenadas as práticas modernas e suas variantes tornaram-se também um capítulo vastamente desenvolvido pelos pesquisadores da temáticamodernidade, buscando compreender a atuação dos seus atores sociais diante dainserção dos hábitos modernos em seu cotidiano e como as contradições damodernidade proporcionaram a conflagração das posturas tradicionais.

Grande parte dos estudos desenvolvidos buscou identificar nestas o convívioparadoxal entre o conforto e a liberdade trazidos pelo mundo civilizado e o malestar gerado pelo mesmo ambiente citadino2. Outra parcela significativa destaprodução acadêmica explorou o papel da intelectualidade na construção de tesesexplicativas sobre a necessidade das políticas urbanas e práticas de intervençãopor parte dos poderes públicos, de forma a conter as epidemias que assolaram osgrandes centros urbanos na Europa3.

Os principais referenciais teóricos no trajeto de pesquisas sobre as metrópolesmodernas são Walter Benjamin, Raymond Williams e Françoise Choay. A leiturade Benjamin4 sobre a cidade nos apresenta esta em sua lógica própria, dinâmica,atomista e simultânea, não mais em contraposição ao espaço do campo. O trabalho

1 Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, pesquisadora da Fundação Casa deRui Barbosa.

2 Entre estes se destaca FREUD, S. M. O mal estar na cultura (1929-1930). In: _____. Obras completas.tomo III. São Paulo: Ed. Presença, 1969; SIMMEL, G. Les grandes villes et la vie del’espirit.Philosophie de la modernité, 1989; ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora naInglaterra. São Paulo: Ed. Presença, 1975; MUNFORD, L. A cidade na História. Rio de Janeiro:Itatiaia, 1964.

3 O artigo escrito por François Beguin, tem se destacado como um marco importante nessaproblemática. BEGUIN, François. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço e Debates, n. 34,1992.

4 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas (Vols. I,II e III).São Paulo: Brasiliense. 1985.

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de Raymond Williams5 sobre literatura, sociedade e história volta-se para as idéiasduais produzidas pelos intelectuais sobre a vida no campo e nos centros urbanos,atentando, sobretudo, para o contexto social de produção de tais idéias, bem comoa condição social e política de seus observadores. Por fim, e não com menorimportância, destacam-se os estudos desenvolvidos por Françoise Choay6, quefavorecem elementos para que se torne possível associar o pensamento político, aspolíticas urbanas e a formação de um saber específico, o urbanismo, que buscavase mostrar neutro diante da realidade a ser transformada.

Centrando o referencial teórico nos estudos que abordam a temática das cidadese sua relação com a modernidade no Brasil, vejo como fundamental o trabalhodesenvolvido por Nicolau Sevcenko7 em que este aborda a urbanização da cidadede São Paulo em 1920 a partir da introdução de novas tendências tecnológicas, ede como essas inovações refletiram no cotidiano social da cidade.

Destacando esse trabalho como fundamental, por entender que a formação daconcepção de modernidade no Brasil surge a partir das formulações geradas emcidades como São Paulo e Rio de Janeiro - por sua vez inspiradas em tendênciaseuropéias - principais centros econômico, político e cultural do Brasil no início doséculo passado. Tratou-se de um processo que se propagou pelas grandes capitaise que teve início com o advento da República, em que uma nova política econômicafoi instaurada, tornando necessário adaptar as cidades ao crescimento do comércioe das atividades industriais de exportação.

Daí decorreu a reestruturação do espaço urbano, visando atender aos ideais daeconomia moderna, remodelando as ruas e saneando as cidades no intuito deevitar a propagação das pestes decorrentes da falta de higiene. Para as elites emascensão, em conjunto com o sistema econômico hegemônico, a denominação demoderno era primordial para a expansão das atividades comerciais e industriais.Urgia romper com qualquer elo de ligação com a antiga sociedade agrária e adotaruma postura urbana que adequasse esses espaços aos novos anseios. Devido àausência de uma industrialização efetiva, como demonstradora do nível demodernização alcançado pelas cidades, as mudanças na arquitetura urbana, no“aformoseamento” da cidade, na higienização e nos costumes sociais foramprivilegiadas.

Essas metamorfoses se processaram não só no âmbito nacional, mas tambéminternacional, se ajustando às determinações de cada região e variando natemporalidade. Tais metamorfoses, por sua vez, proporcionaram uma crescenteperda de identidade decorrente da incorporação de novos indivíduos seduzidospelos novos encantamentos produzidos nas cidades gerando em seu interior um“estranhamento individual”. Buscou-se a construção de uma nova identidade paraas cidades com base nas perspectivas ideológicas emergentes. A construção dessanova identidade se deu através da incorporação de valores, até então estranhos, ahábitos antigos, unindo-se na criação de valores comuns, ou seja, “os mitos ajudama organizar os fatos dispersos” e a modernidade, nesse sentido, precisou vir cercadade mitos de forma a reunir, ao redor de si, personagens antes dispersos.5 WILLIAMS, R. O campo e a cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.6 CHOAY, Françoise. Urbanismo: utopias e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1974.7 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Este artigo tem como referência esta reflexão sobre os caminhos e descaminhosque envolveram o processo de modernização das grandes cidades brasileiras. Aproposta central é expor o processo de modernização na cidade de Vitória, nasprimeiras décadas do século XX, e recuperar a constituição dessa nova sensibilidadena cidade ainda impregnada de valores tradicionais, estranha à tradição da rupturaque é própria da modernidade. Foi feita a opção de observar esse processo emduas dimensões possíveis: na sua materialidade, ou seja, como as transformaçõesalcançaram o traçado urbanístico das ruas e praças e as formas arquitetônicas deseus edifícios públicos e particulares, e na subjetividade daqueles que vivenciaramtais experiências, isto é, analisar o discurso construído por aqueles que participaramna consecução desse projeto de conferir-lhe a condição de metrópole moderna.

Vitória no limiar da República: um panorama do período

Os anos iniciais do século XX têm sido apontados pela historiografia comopródigos em acontecimentos que vão desvelar os aspectos contraditórios em queesteve mergulhada a já tão velha e ao mesmo tempo tão nova República. Osconluios políticos, sistematizados pela “política dos Estados” ou “política dosgovernadores” do Presidente Campos Salles, não conseguiam mais se afinar comas exigências dos novos personagens que emergiram no cenário político. A classeoperária, oriunda da crescente e marcante urbanização, atuou significativamentena condução da rede de protestos, expressando interesses diferentes das práticaspolítica e econômica que até então vinham sendo efetuadas.

A rejeição aos embustes eleitorais, que caracterizavam a ilegitimidade do regime,se tornava cada vez mais enfática pelos setores médios que, apoiados nos reclamosdo Exército, também descontente com os direcionamentos políticos que o alijavado poder, buscaram revivificar a República, propondo uma renovação política.Paralelamente, a elite dominante que compunha o cerne do sistema políticoencontrava-se envolta em conflitos internos que neste período passam do âmbitoeconômico se manifestando também no âmbito político e ideológico favorecendoa falência do regime.

A idéia de renovação no âmbito da política se estendeu ao campo social. Tornou-se cada vez mais urgente inserir o Brasil nas diretrizes econômicas que foramtraçadas a partir da Revolução Industrial, em que se instalou uma ampla rede derelações comerciais e tecnológicas intrapaíses desenvolvidos. Neste momento, oBrasil tentava inserir-se nas redes comerciais internacionais, através do setorexportador e da adoção de práticas culturais próprias do mundo “civilizado”. O“afrancesamento” da estrutura urbana mostrava-se fundamental para aconsolidação desta condição de destaque. Urgia romper os elos com a antigasociedade agrária adequando esses espaços aos propósitos modernizadoresemergentes.

É no interior deste processo de transformação de valores políticos, urbanos,sociais e econômicos que se visualiza a formação de um imaginário que defendiaa inevitabilidade da realização de reformas nas principais capitais brasileiras,sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, identificando-as com o propósitomodernizador que emanava da Europa. A capital do Espírito Santo não podia

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ficar alheia às novas diretrizes modernizadoras nacionais. Até então Vitória seencontrava numa condição de expressivo isolamento das demais regiões do EspíritoSanto, em virtude da precariedade dos transportes, bem como desenvolvia umatímida participação na economia local. Esses aspectos se refletiram na sua estruturaurbana, que se mostrava bastante restrita.

Segundo depoimento de um cronista daquele período, colhido por José Teixeirade Oliveira em seu estudo sobre a História do Espírito Santo:

A população - em constante aumento - não demonstra aspiração deprogresso. Seja na capital, seja nos últimos distritos, o povo se deixaarrastar melancolicamente pela rotina. Nenhum empreendimentomarcante: nem no terreno das construções materiais, nem no camposocial. 8

O cronista destacou ainda a ausência de uma elite empreendedora que, aexemplo do ocorrido em São Paulo por intermédio dos cafeicultores, levasse adianteum projeto de expansão da cidade. Deste modo, na ausência desta iniciativa privadaem Vitória, a ação empreendedora foi aplicada pelo próprio Estado.

Foi no começo da República, durante o governo provisório de Afonso Cláudio,que teve início esse processo de desenvolvimento da cidade de Vitória através daconstrução expressiva de prédios inspirados no moderno urbanismo francês eincorporando técnicas inovadoras de construção, bem como de ruas e avenidaspara abrigar casas comerciais, situadas nos locais de maior movimentação comoas ruas Duque de Caxias e da Alfândega, atual Jerônimo Monteiro. Outro problemaa ser atenuado era o referente às constantes epidemias que assolavam a capital,em virtude da ausência de uma rede de infra-estrutura (esgoto, água, energia), foinesse sentido que se buscou ampliar as áreas de ocupação, desafogando o centroque concentrava tanto a área de serviços como de habitação.

O intento de modernizar Vitória se acelerou durante a administração de MunizFreire (1892-1896), através da proposta de loteamento do lado leste da cidade,com fins especificamente empresariais, dando novas formas de organização àcidade. Em seu discurso de posse, Freire assumiu o propósito público de transformaras condições vigentes naquele momento de ausência de esgoto, arquitetura, escassoabastecimento de água, péssimo serviço de iluminação a gás9. A intervenção dogoverno se tornou possível graças ao aumento da receita, gerado pela considerávelexpansão da lavoura cafeeira, aliada ao aumento dos preços do mesmo no mercadoexterno que ocorre neste período, atingindo, conseqüentemente, as atividadescomerciais relacionadas ao café, o que acentuou a função comercial da cidade.

Também ocorreu a diversificação das atividades comerciais, que passaram adispor, sobretudo, do comércio de produtos importados (especialmente alemães eitalianos), concentrando-se na área que atualmente compreende a praça 8 deSetembro, na época praça Santos Dumont, em estilo de armazéns, a maioriaassociada à atividade de exportação do café, e que visava atender às demandas8 OLIVEIRA, José Teixeira. História do Espírito Santo. Vitória: Fundação Cultural do Espírito Santo-IBGE, 1975, p. 346.

9 FREIRE, Muniz. Mensagem do Presidente do Estado do Espírito Santo. Vitória: Tipografia doEstado, 1896, p. 17.

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da população de imigrantes que havia se instalado no Estado. Foi para acolheresse mercado emergente que se desenvolveu o aterramento das partes baixaspróximas à baía, sem citar aqueles destinados a criação de bairros residenciais,bem como se buscou aproximar ruas importantes mas, que até então, não dispunhamde nenhuma forma de ligação, como as ruas Primeiro de Março e da Alfândega,nas imediações do cais do Imperador.

Além disso, um longo trecho do centro foi remodelado para tornar-se“carroçável”, fazendo com que as ruas apertadas e desordenadas fossem refeitaspara ceder espaço para o tráfego urbano, ainda principiante. Isso significou oalargamento de várias ruas que despontaram após as constantes demolições deprédios e sobrados enquadrados na noção corrente de insalubridade e da extinçãode becos considerados “infectos” e, por isso, proliferadores de enfermidades.

É interessante observar que embora o período abordado seja de crescimentourbano e econômico, não se apresentam registros que identifiquem um crescimentopopulacional. Ao contrário, as pesquisas que sobre o tema10 citam um decréscimopopulacional acentuado em virtude da valorização da atividade agrícola ligada aocafé, fazendo com que a maior parte da população do Estado estivesse localizadana zona rural.

O processo de remodelação urbana sofreu uma desaceleração durante as gestõesseguintes, quando o Espírito Santo passou por sucessivas crises econômicasconjunturais, sendo retomada com igual vigor no quatriênio de 1908-1912, sob aadministração de Jerônimo Monteiro, que assumiu a presidência do estado apósuma vitória esmagadora sobre seus concorrentes, o Barão de Monjardim (queconseguiu apenas 13 votos) e o Dr. José de Melo Amorim (com 10 votos),alcançando um total de 7.989 votos. Sob o signo de ser aquele que conseguiu pôrtermo aos dezesseis anos sob o monopólio do poder exercido pelo Partido Construtor,do ex-presidente Muniz Freire, o advogado Jerônimo Monteiro conseguiu eleger-sepromovendo em sua plataforma política a promessa de transformações profundasno Estado. Em suas palavras:”recebendo o mandato, empreenderei as mais vivasforças para prestar à minha terra os melhores serviços, aplicando em favor do seuprogresso todo o esforço de minha atividade”11.

Ao assumir, Monteiro buscou imediatamente compor uma equipe tão hábil earticulada administrativamente quanto o mesmo vinha se mostrando no âmbitopolítico. Frente aos menores números registrados com relação à receita estadualdesde o início da República, recorreu à adoção de uma rigorosa redução dosgastos públicos, que o levou a reduzir os salários do funcionalismo e dele próprio,e à criação de impostos para retomar o equilíbrio orçamentário que lhe possibilitassea retomada dos investimentos nas transformações urbanas. Foi a partir de entãoque se colocou em prática um novo conjunto de reformas urbanas, embora envoltonuma aura progressista similar à produzida por Muniz Freire, mas que possuía um

10 CAMPOS JUNIOR, Carlos T. de. O novo arrabalde. Vitória: PMV, Secretaria Municipal de Culturae Turismo, 1996. DERENZI, Luiz S. Biografia de uma ilha. Rio de Janeiro: Pongetti, 1965; entreoutros.

11 Diário da Manhã, Vitória, 17 jan. 1908.

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caráter mais abrangente no que tange à ampliação da incorporação dos chamadoshábitos modernos à capital.

A gestão Jerônimo Monteiro e o processo modernizador

O argumento central da plataforma política de Monteiro referiu-se à necessidadede incorporar o Espírito Santo ao movimento de progresso em que estavamergulhado o país naquele momento histórico. Como parte desse projeto estava abusca de alternativas estáveis para a manutenção do orçamento estatal, o quesignificou a intervenção objetiva do estado na formação de condições propíciaspara a implantação de fábricas. Em outras palavras, isso representou odirecionamento de expectativas para questões relacionadas à infra-estrutura, comoserviços de luz, água, transportes, escolas técnicas, dentre outros.

Seu empreendimento trazia como meta central a diversificação econômica doEstado, fugindo dos problemas trazidos pela dependência da monocultura cafeeira.Para isso Monteiro contou com um trunfo político significativo: o apoio do GovernoFederal para seus intentos modernizadores. Esse apoio se expressou, inicialmente,na conquista de isenção de impostos em todo seu programa de infra-estruturaurbana, de implantação de fábricas e de diversificação agrícola. Posteriormente,tal aparato político mostrou-se fundamental para dirimir qualquer vestígio deoposição durante e depois do seu mandato, uma vez que mesmo sendo Monteiro oresponsável pela expansão da dívida do estado de rs 2.403:056$401 para rs24.000$000, seu carisma e prestigio com a opinião pública é notório até os diasatuais12.

O parque industrial almejado por Monteiro foi direcionado na parte sul do estado,sobretudo Cachoeiro do Itapemirim, correspondendo a seus interesses familiares.A peculiaridade deste projeto industrial esteve no fato de não ter apresentado umapreocupação especifica com as demandas internas. Isto explica inicialmente aefemeridade do parque industrial capixaba proposto por Monteiro. Além disso,este não contou com a necessária mão de obra especializada ou não para atuarem seu interior, bem como se mostrou carente de matéria-prima que atendesse asua carga produtiva.

Outro setor para onde foi canalizado a pretensão modernizadora de Monteirofoi o planejamento urbano da Capital. Esta transformação teve como alvointrodutório os transportes terrestres. As cadeirinhas de arruar, palanquins eserpentinas do começo do XIX foram, gradualmente, sendo substituídas pelas segesparticulares, pelos bondes de burro e posteriormente, maxambombas, dando outroaspecto ao cotidiano da cidade. Valorizou inicialmente o comércio que passou ater uma freguesia acrescida e freqüente durante todo o dia graças ao transportefácil, tornando fundamental, também, a modificação do aspecto das lojas e ruaspara torná-las convidativas ao novo público.

12 No prefácio do livro de Maria Stella Novaes encontra-se referências excessivamente elogiosas aseu feito modernizador, classificando-o de “pioneiro mundial” na antecipação da “LegislaçãoDelegada” difundida pelas constituições da Alemanha, França e Itália, pós-guerra. NOVAES, MariaStella. Jerônimo Monteiro: sua vida e sua obra. Vitória: Arquivo Público, 1979. Ver tambémBITTENCOURT, G.; CAMPOS, Nádia A. Palácio Anchieta: de colégio à casa da Governadoria.Vitória: Secretaria de Estado da Cultura e Esportes/ Biblioteca Pública Estadual, 2000.

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Os armazéns mistos cederam lugar a um comércio especializado que cresciano centro da cidade tornando as ruas propícias para o desfilar dos almofadinhas,dândis, melindrosas e mariposas que vinham observar as vitrines com artigoseuropeus. As pessoas passaram a prolongar seus passeios até o fim da tarde jáque podiam contar com os bondes de tração animal, assim como poderiam apreciaras ruas e os pomposos jardins do Palácio Anchieta agora com a iluminação elétrica,gerada pelo motor de corrente contínua, que veio substituir os ultrapassadoslampiões a álcool. A oferta de rede de energia elétrica e dos serviços deabastecimento de água para toda a capital foi inaugurada em 29 de setembro de1909, e foi largamente festejada e divulgada pelos jornais da época. A partir deentão, o seu uso passou a ser associado a idéia de conforto, ainda não acessívelpara todos os segmentos sociais.

Aos poucos, as novas tecnologias foram se entranhando no cotidiano da cidade,proporcionando transformações significativas nas esferas econômica, social ecultural. Esses inventos ofereceram à sociedade uma miríade de possibilidades,antes inviabilizadas pelos limites impostos pela natureza. Concomitantemente, taistransformações geraram novas formas de lazer e linguagem, novos hábitos culturaise modismos que se confrontavam com as antigas tradições.

Com a presença marcante de inventos como os bondes e a energia elétrica, porexemplo, houve um redimensionamento na noção de tempo e espaço por partedas pessoas. A primeira experiência registrada com os bondes elétricos, substitutosdos bondes puxados por burros, ligando os trechos da Rua do Comércio à RuaSete foi comentada no jornal Diário da Manhã de 20 de julho de 1911, cujo destaquefoi para a participação do presidente Hermes da Fonseca. Posteriormente, o alcanceda rede das linhas de bonde foi sendo ampliado, vencendo as barreiras da distânciae favorecendo aos indivíduos uma maior autonomia sobre seu percurso, bem comoprovocou o surgimento de novas práticas sociais regidas sob o imperativo desseinvento, inclusive entre a grande maioria que não tinham acesso a este tipo deproduto.

No mesmo jornal consta a seguinte notícia:

A contar de 1o de setembro, bondes diretos para a Praia do Suá, comhorários especiais apropriados aos senhores banhistas. Passagensreduzidas, especialmente para os assinantes mensais. Informações noescritório à rua do Comércio, n. 58, e no ponto principal dos bondes,Praça Santos Dumont, Café Rio Branco.

A energia elétrica, por sua vez, foi incorporada imediatamente pelos prestadoresde serviços (médicos e advogados) que buscavam ressaltar através do seu uso ofato de estarem devidamente “aparelhados” para oferecer uma melhor qualidadedos seus préstimos. Aos poucos seu uso foi ampliado para o universo privadofavorecendo a proximidade entre as pessoas e a divulgação das notícias e“novidades” que invadiam a cidade. Para o imaginário Belle Époque tais objetoseram identificados como instrumentos de modernização, simbolizavam, assim, umpadrão social a ser seguido conforme tome vulto o projeto de modernidade e oprocesso de modernização dos hábitos culturais.

Sob o discurso de embelezamento da cidade, Monteiro promoveu a demolição,

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reforma e construção de grande parte dos edifícios públicos da cidade. A primeira,e quiçá mais dramática em termos de patrimônio histórico, foi a derrubada dacentenária Igreja da Misericórdia, localizada na antiga rua da Assembléia, atualMoniz Freire, para que fosse inaugurado o novo espaço para abrigar o CongressoLegislativo Estadual, bem como a descaracterização do antigo Colégio dos Jesuítaspara que se tornasse digno de acolher o Presidente do Estado e a Secretaria doGoverno. Outros setores reformados foram as repartições que estavam situadasno anexo do Palácio como a Procuradoria Geral, as Diretorias de Finanças e deAgricultura, a Inspetoria Geral do Ensino e o Arquivo Público.

Antenado às tendências “civilizatórias” vindas de Paris, Monteiro delegou taisreformas aos auspícios do engenheiro francês Justin Nobert, sob o custo de rs86:000$000, que não poupou esforços para derrubar todos os vestígios coloniaisque persistiam nos prédios onde se abrigavam as instituições públicas, bem comoestendeu seu caráter monumental ao mobiliário do Palácio. Nas palavras de Derenzi,Monteiro “tornou o Palácio habitável e as repartições destinadas ao exercíciogovernamental ganharam salas, gabinetes e dependências condignas e adequadas”13.

Monteiro empreendeu esforços numa campanha singular na primeira metadedo século XX, no âmbito do Estado do Espírito Santo: a restauração de sua históriaatravés da criação do “Arquivo Público espírito-santense”. Acredito que tal feitomerece destaque por se contrapor ao discurso modernizante que tentava seconsolidar na política local. Mostrava-se urgente extirpar da esfera local tudo quepudesse estar associado ao caráter colonial, portanto dentro dessa lógica, “atrasadoe incivilizado”, e a construção de uma memória histórica veio auxiliar na constituiçãode um espaço especifico para o assentamento de tudo que fizesse parte do passado,colocando em relevo sua ação “revolucionária” de condução a um futuromodernizante.

Desse modo, o soerguimento do Arquivo pode ser concebido não só como aformação de um espaço público para a história passada, mas de garantia de umespaço onde ficariam registrados, dentro dos moldes ovacionistas da historiografiado período, os feitos do presente. Concretizava-se, desse modo, de forma simbólicaa superação do passado pelo presente.

Mas Vitória precisava mais que isso, carecia mudar a aparência, antes agrária,para uma fisionomia verdadeiramente urbana. Foi através da parceriaadministrativa com o engenheiro Augusto Ramos que esse processo demodernização compulsória atingiu o ápice. A “missão civilizadora” de Monteiro eRamos teve como diretrizes básicas a proposta de urbanizar e embelezar a cidadee a aplicação de medidas sanitárias enérgicas. A implementação das medidassanitárias significou o emprego de mudanças de base no interior da cidade e queimplicaria, por conseguinte, na tentativa de realizar um novo planejamento para amesma, reformando-a em toda sua amplitude a partir de pressupostos deracionalização do espaço, disciplinamento social através de dispositivos legais ede organização da cidade conforme funções específicas de cada bairro14.13 DERENZI, Biografia de uma ilha, p. 48.14 PECHMAN, Sérgio; FRITSCH, Lilian. A Reforma Urbana e seu Avesso: algumas considerações apropósito da modernização do Distrito federal na virada do século. Revista Brasileira de História,São Paulo, ANPUH, Editora Marco Zero, v. 5, n. 8/ 9, 1985.

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Com o intenso crescimento demográfico, a cidade começou a sentir os efeitosda ausência de uma estrutura básica hábil à atender as necessidades de tão vastonúmero de habitantes. Crescia o número de pessoas, em 1908 registram-se oitomil habitantes em Vitória, que se amontoavam em casas em condições insalubresque favoreciam o alastramento de doenças e epidemias, sobretudo a “bexiga” e“febre amarela”, maiores responsáveis pelo grande número de mortalidade. Sob oargumento da imperiosidade de “aformosear” a cidade, buscou-se excluir docenário urbano pessoas, espaços e práticas que não conseguiam se incorporar aomodelo burguês em erupção. Grande parte da ação reformadora do governoMonteiro se respaldou no discurso médico higienista que associava estesaglomerados urbanos às enfermidades de massa.

Paralelamente, o governo de Monteiro empenhou-se no trabalho de educaçãosanitária através de cartazes, palestras, concursos, etc. de forma a alcançar osestratos baixos e médios da sociedade. A partir desse processo de expansão daeducação sanitária, teve início a invasão do público na vida privada na medidaem que o Estado passou a definir condutas comportamentais cotidianas tomandopor base os padrões higiênicos determinados pelas autoridades sanitárias. Atravésda imposição de medidas restritivas, de cunhos higiênico e moral, determinadostipos sociais -loucos, bêbados, capoeiras e mendigos, por exemplo- foramconsiderados nocivos à sociedade por serem portadores de atitudes reprováveispara o pleno desenvolvimento da cidade15.

Essa postura disciplinadora da esfera pública sobre a esfera privada suscitouuma intensa resistência popular, com o apoio de seus opositores políticos, e umavariada polêmica entre as mais diversas correntes de opinião que se manifestaramcontra ou a favor do intervencionismo estatal.

As manifestações culturais das camadas populares foram arduamentereprimidas16 e controladas pelas autoridades locais que buscaram não só a extinçãodestas, mas a reclusão destes grupos e seus costumes de forma a não interferir nasdiversões das camadas médias e altas. Neste sentido, buscou-se coibir o lazer e amanifestação cultural das camadas populares como uma forma de preservar olazer e a atuação das elites, a estas últimas foi dada a voz e às massas a mimese,na medida em que lhes foi imposto a recriação de suas formas de lazer a partir domodelo apresentado pelas elites urbanas17. Através da persistência das camadaspopulares em manter os seus festejos (nem sempre produto das diversões das elites),elas demonstraram sua repulsa ao papel secundário em que foram colocadascontinuamente em todos os setores da sociedade, antes restrito ao setor econômicoe político, agora se estendendo ao campo cultural. Criaram formas de seincorporarem aos novos costumes e de ter acesso às informações construindo,desse modo, uma identidade social.

15 PECHMAN & FRITSCH, A Reforma Urbana...16Encontrei referências no Diário da Manhã a algumas ações de repressão por parte do Estado àsmanifestações populares, sem que fique claro quais são tais manifestações. Ainda assim, achoimportante o registro da resistência popular, no sentido de variar o enfoque para que seja possívelvislumbrar algumas formas de manifestação das massas as imposições estaduais.

17 BRESCIANI, Maria E.M. Metrópoles: As faces do monstro urbano - as cidades no século XIX.Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, Editora Marco Zero, v. 5, n. 8/ 9, 1985.

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Como parte fundamental desse processo de “remodelação” da cidadedestacaram-se as ações desenvolvidas no sistema de esgotos visando regularizaros serviços de higiene e saúde pública. A inauguração dos serviços de esgotos estáregistrada em 29 de janeiro de 1912. Foram construídos drenos para escoar aságuas servidas e pluviais, irrigação das ruas centrais, bem como foi criado umserviço de visitadores imbuídos da função de inspecionar as residências paraaveriguar as condições de higiene. Fundamental para o propósito saneador foi acriação do cemitério em Santo Antonio, eliminando os enterros que ocorriam dentroda cidade nas propriedades das irmandades religiosas. Aos poucos, a área docemitério foi sendo incorporada como ponto de lazer da comunidade que seagrupava na pracinha em frente para observar os cortejos fúnebres ao mesmotempo em que colocavam as noticias em dia, desfilavam seus modelos novos,vindos do Rio de Janeiro e flertavam entre si.

Além disso, buscou-se a ampliação dos serviços médicos e hospitalares atravésda construção de novo hospital com amplas, modernas e higiênicas acomodaçõesinternas. A criação do projeto se deu em 1910 e, dois anos depois, a cidadecomemorou largamente a inauguração da moderna Casa de Caridade, naquelemomento com uma área total em torno de 10 mil metros quadrados.

Em seus discursos, Monteiro enfatizou a preocupação em desvincular sua açãona administração pública das influências políticas, valorizando a eficiência de umdiscurso técnico, especializado e supostamente neutro politicamente. Com baseneste discurso, o objetivo central de sua atuação seria a manutenção do bempúblico, apesar da ameaça de desordem propagada pelos seus opositores. Na suaconcepção cabia ao Estado o papel de promotor do progresso, aperfeiçoando osserviços públicos com métodos modernos de organização. Foi a partir do argumentoda necessidade de independência administrativa que Monteiro municipalizou osserviços sanitários. Sua ação contou com apoio de técnicos e médicos que atravésdas inspetorias de educação sanitária atuaram conjuntamente contra doenças dealcance nacional como malária, febre amarela e peste bubônica. Assim, a funçãode sanear e higienizar a cidade significou incorporá-la nos padrões da nova ordemburguesa emergente.

De forma conclusiva é possível afirmar que o centro da cidade foi o alvo centraldas obras de Monteiro. Todas as referências bibliográficas sobre sua gestão fazemmenção à urbanização da área aterrada do Campinho, onde foram construídas 28casas destinadas ao funcionalismo público, silenciando seus arroubos contra oarrocho salarial a que foi imposto anteriormente, que poderia contar com umdesconto de 50% no valor dos lotes e com o pagamento através de prestaçõesmensais, e um parque voltado para impulsionar o lazer citadino. Para CamposJunior18 sua atuação no investimento em um projeto urbanístico na Capital esteveassociada, conforme tal perspectiva, ao atendimento das demandas do setorcomercial sediado na Capital. Fazia parte da consolidação do jogo político dealianças antimunistas.

Não se trata de perceber em suas ações uma motivação unicamente política oueconômica, mas de colocar em relevo o fato do projeto modernizador, sob o qual

18 CAMPOS JUNIOR, O novo arrabalde.

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se ancorou por toda sua gestão, estava imbuído numa rede complexa que lheconferiu um caráter ambíguo, na medida em que determinadas práticas políticasconsideradas retrógradas foram mantidas naquele momento de afirmação demudanças. Além disso, é importante destacar o fato de que foi durante a gestão deMonteiro que se percebeu a expressiva ocupação da Capital por famílias defazendeiros também suscetíveis aos transtornos da falta de uma infra-estruturaurbana, o que tornou imperativo a concretização de tais reformas. Neste sentido,passou-se de um projeto público originalmente desenvolvido sob o argumento deque estaria voltado para o atendimento das necessidades gerais da Capital, para oatendimento de um conjunto de demandas políticas fundamentais para a garantiada governabilidade.

Conclusões

Minha análise parte da premissa de que a modernidade é um estado detransitoriedade, como muito bem expressou Baudelaire, ou seja, é a celebraçãodo novo, a negação da tradição, a ruptura, a criação e a recriação de vínculos econtinuidades, e esta consecutiva negação da tradição tornou-se por sua vez natradição da modernidade. Formada a partir da concepção em que o “progresso” ea “ruptura” são as categorias chaves, a modernidade se caracterizou essencialmentepor uma contínua descontinuidade. Novamente movida por noções contraditórias,a regularidade da irregularidade tornou-se o principal elemento de suavulnerabilidade, já que ao mesmo tempo em que rompia com as expectativaspassadas não dispôs de combustível suficiente para alimentar os anseiosemergentes, formando um modo de vida fragmentário em que se justapõe elementosantigos e novos.

Nas cidades, locais viáveis para encenação das práticas e variantes modernas,o conflito entre estes dois estados de espíritos, o tradicional e o moderno, significouo alijamento de muitos da cena principal e na manutenção de poucos sob as luzesdos refletores, atendendo aos preceitos tradicionais que mantêm na história apenasos detentores do poder.

Em Vitória, como na maioria das metrópoles modernas, o projeto damodernidade promovido pelas instituições públicas foi alicerçado no discursoproferido por intelectuais, através da imprensa, e acatado pela elite local, emboraconfrontado cotidianamente pela memória viva da sociedade. Neste estudo, busqueiapresentar algumas circunstâncias em que foi formado este discurso, num contextosocial e político de cisões profundas, suas várias faces e o que representou para osagentes discursivos.

Com base na constatação deste evento “modernizatório”, imposto em Vitóriano começo do século XX torna-se possível argüir que tais reformas, apesar do tomautoritário e do cunho essencialmente burguês, eram imprescindíveis para aconsolidação do caráter de pólo comercial da Capital, bem como foi um momentode suma importância para a renovação dos hábitos higiênicos e sanitários dasociedade capixaba. Em todo este conjunto de remodelações, cujo objetivoprincipal foi “urbanizar e civilizar”, ficou explícito a necessidade de converter Vitórianuma metrópole moderna, conforme os moldes estéticos, urbanístico e econômicoeuropeus, atraindo os investimentos externos.

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Por seu caráter impositivo, este foi um processo que se desenrolou em meio aum intenso confronto com os setores populares que, através da insubordinação àsdeterminações legais, contando muitas vezes com o apoio da imprensa, forçou opoder constituído à negociação, sob o risco de terem suas medidas oficiaissimplesmente descumpridas, levando abaixo os planos de instalar a modernizaçãoque atendesse às ordens do progresso.

Esta insubordinação foi comentada por cronistas dos jornais e revistas quetratavam em seus artigos e crônicas da permanência do jogo do bicho nas ruas dacidade, sugerindo por várias vezes a regulamentação do jogo, do culto do candombléem variados pontos da cidade e outras mostras do descumprimento dasdeterminações estatais. Isto significa que as ordens imperativas de um progressomassificante esbarraram com a característica fluida, informal e improvisada dascamadas populares que soube se apropriar dos signos e sentidos próprios damodernidade, ajustando-os às suas demandas próprias. Neste contexto detransformações e de construções de mitos e opiniões se insere o papel do intelectualque, através da literatura moderna (a imprensa) definiu suas opções ideológicas,baseadas nas idéias importadas da produção cultural européia, instituindo formasde pensamento, interferindo tanto no âmbito político como no social.

Dessa forma, os intelectuais tiveram o poder de trazer para o real as simbologiascriadas pela elite local e propagar esse imaginário para o conjunto da sociedadeatravés da produção cultural do período. Nos jornais, especificamente nas crônicaspolíticas, é possível identificar a presença marcante de vários intelectuais envolvidoscom as questões políticas, manifestando uma postura crítica sobre os conluiospolíticos e as ações das oligarquias locais.

Estes intelectuais partilhavam da idéia corrente no meio de que a eles cabiam acondução do processo de transformação das estruturas básicas do país cujo êxitoestaria atrelado ao crescimento do nível cultural e que, conseqüentemente,conduziria ao crescimento material. Muito próximo a esta noção de crescimentomaterial estava a noção de progresso, urbanização e modernização, pressupostosfundamentais para o futuro próspero do país.

Entretanto, o que se percebe é que o modelo “iluminado” de universo racional,no qual eles almejavam o papel principal de elemento pensante e condutor dasmassas, foi inviabilizado por um projeto tecnicista, utilitário e autoritário, emborapautado em preceitos democráticos e individualistas. O sentimento anterior deeuforia e otimismo passou a conviver com um ceticismo crítico que se expressa deforma contundente, na emblemática frase “essa não é a república dos meus sonhos”.A estes intelectuais coube, inicialmente, a função de propagar os ideais demodernidade, mas, posteriormente, tomados pelo desencanto, buscaram seposicionar como sobreviventes e críticos dessa noção excludente de progresso,sem, no entanto, significar que estavam desconectados das novas práticas culturaispulsantes19.

É possível perceber que o projeto tecnicista e utilitário, aplicado pelo Estado,inviabilizou o modelo “iluminado” de universo racional almejado anteriormente.

19 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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RESUMOEste artigo representa parte da pesquisa dereconstituição, sob uma perspectivainterdisciplinar, do processo de modernizaçãoda cidade de Vitória/ES durante o governoJerônimo Monteiro (1908-1912), períodohistórico que se caracterizou pela difusão noâmbito nacional do ideal “modernizador” quemovimentou a Europa entre o final do séculoXIX e começo do XX. Discute-se o conjuntode remodelações empregadas objetivando“civilizar” e urbanizar a cidade, no intuito deconverter Vitória num centro urbano moderno,conforme os moldes estéticos, urbanísticos eeconômicos estrangeiros.Palavras-Chave: modernidade,modernização, urbanização.

ABSTRACTThis article represents part of thereconstitution, under a interdisciplinarperspective, of the modernization process inthe city of Vitória - ES during JerônimoMonteiro’s government (1908-1912), ahistorical period characterized by the nationaldiffusion of “the modernizador” ideal thatconquered Europe during the end of centuryXIX and beggining of the XXs. The employedremodellings are debated here with the aim“to civilize” and to urbanize the city, inintention to turn Vitória into a modern urbancenter, according to esthetics, urbanistics andeconomics foreigner partterns.”Keywords: modernity, modernization,urbanization.

Ao contrário do idealizado, as massas viram-se na condição de séqüitos de umprojeto autoritário, embora pautado em preceitos democráticos e individualistas.Subjugados e submetidos a uma massificação cultural em que nem tudo que recebiao título de novidade continha originalidade, sendo esta última suprimida pelo lugarcomum dos modismos.

A minha intenção, nessas linhas conclusivas, é apresentar as contradições,armadilhas e superficialidades em que esteve impregnado o caráter superficial eartificial da modernização da cidade, culminado na formação de uma cidade-cenário, superposta a realidade de miséria de subdesenvolvimento. Através daincursão na produção literária do período, bem como das pesquisascontemporâneas existentes sobre o tema o historiador se aproxima desta realidadecontraditória que significou a instauração da modernidade em paísessubdesenvolvidos em que se mesclam misérias e o mito do progresso tecno-industrial. Em Vitória a modernidade foi constituída de espelhos e luzes que lhesdavam a feição de encantamento.

Quais fantasias, desejos e necessidades foram excluídas pelo discursomodernizador do Estado? Qual a recepção do público diante das transformaçõesimpostas na capital? Essas são algumas dúvidas que permanecem, pois apenasperpassei de forma superficial estes aspectos. São questões a serem aprofundadasem estudos posteriores, onde poderia tomar como referencial novamente o caráterambivalente do discurso modernizador.

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MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E TRADIÇÃO:AS APROPRIAÇÕES DO REGIONAL

(SÃO PAULO/ RIO DE JANEIRO, 1900-1940)1

Geni Rosa Duarte2

Ao escrever uma obra sobre a produção musical desenvolvida no Rio de Janeironas décadas iniciais do século XX3, o radialista/ cantor/ compositor/ pesquisadorAlmirante - pseudônimo de Henrique Foréis Domingues - tentou demarcar ainfluência dos músicos da região hoje chamada nordeste, os quais migraram paraa então capital federal nesses anos, acentuando a transmigração de alguns aspectosculturais regionais. Esses músicos, afirma, tinham feito seu aprendizado musicalnas feiras e nos locais populares da sua região de origem. Salientando asimultaneidade da atuação deles com a publicação de obras de folcloristasabordando a complexidade das criações regionais de forma panorâmica - músicas,festas, tradições, contos, - procurou compor um quadro de referências dentro doqual pudesse situar a produção carioca desse tempo, inserindo nela a produção deNoel Rosa, tema da obra em questão. Ou seja, ao focalizar o panorama musicalda época, o autor estava à procura de um ponto focal, uma origem, a partir daqual a autenticidade das obras produzidas em outros espaços e tempos pudesseser determinada. Essa origem ele a localizava no mais distante, no rural, procurandoaí um elemento passível de ser isolado, hierarquizado, dissecado e preservado paraos mais diferentes fins.

Tais preocupações, direcionadas para identificar o que era a música popularnacional, ou o que ela deveria ser, estavam presentes em muitos autores e músicosque se debruçaram com diferentes objetivos sobre a produção popular, tomando-a como objeto - ou, na expressão de Michel de Certeau, na atitude dos que aretiraram das mãos do povo e a constituíram em “reserva de letrados e amadores”com os mais diferentes objetivos4.

Essas preocupações não ficaram limitadas à música popular. Dentro domodernismo, Mário de Andrade e os músicos e intelectuais reunidos à sua volta,por exemplo, buscavam a formulação de um projeto de identidade nacional, noqual a música nacional teria um papel determinante. Na sua vertente erudita eladeveria ser a expressão da cultura do povo brasileiro e, para tanto, deveria partirdo aproveitamento do folclore e das contribuições regionais. Embora a suapreocupação mais patente fosse com a música erudita, a crítica de Mário às

1 Este trabalho aborda algumas das questões discutidas em minha tese de doutorado, Múltiplasvozes no ar: o rádio em São Paulo nos anos 1930 e 1940, orientada pela Profa. Dra. Maria OdilaLeite da Silva Dias, e defendida em 2000 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

2 Professora do Colegiado de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UniversidadeEstadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Campus de Marechal Cândido Rondon (PR). E-mail:<[email protected]>.

3 ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1977.4 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995, p. 56.

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gravações de música popular, na sua atividade jornalística, evidenciava esse critério.Em crônica publicada em agosto de 1930 no Diário Nacional, por exemplo, eleexplicitava isso ao se referir a gravações como Babão Miloquê, de Josué Barros:não deveriam ser simplesmente uma documentação rigidamente etnográfica, masalgo trabalhado a partir da documentação folclórica propriamente dita. No casoem análise, ele acentua: “Uma orquestração interessantíssima que, excluindo osinstrumentos de sopro, é exatamente, e com menos brutalidade no ruído, asonoridade de percussão dos Maracatus do Nordeste”5.

O aproveitamento do folclore como matéria-prima não significava dar espaçoà produção regionalista, simplesmente, mas utilizar essa fonte e beber nela a própriaessência da nacionalidade. Esta, aliás, identificada por alguns autores na síntesetrazida pelas contribuições das três raças formadoras, não mais num viés racial,mas assumindo tons mais culturalistas. Nesse sentido, expressava-se aquilo queRicardo Ortiz denominou uma ideologia do Brasil-cadinho 6, no interior da qual omito das três raças aparecia como ponto de partida, na construção (enquantomito, antecedendo a própria realidade) de uma identidade nacional.

Essa não era, aliás, uma preocupação nova. Desde o século XIX, várioscompositores eruditos já haviam procurado conscientemente nacionalizar suaprodução musical através da incorporação de temas e motivos folclóricos nacionais.Mesmo tendo como referencial uma estruturação e uma harmonia ainda muitodependentes dos cânones europeus, fossem eles italianos, franceses ou alemães,músicos como Itiberê da Cunha (1870-1953), Alexandre Levy (1864-1892), AlbertoNepomuceno (1864-1920), Barroso Neto (1881-1941), Francisco Braga (1868-1945) e outros, incorporaram temáticas, sons e ritmos a suas produções, procurandorefletir qualidades buscadas muitas vezes nos já referidos elementos formadoresda nossa nacionalidade (índios, negros, brancos e também mestiços - maisespecificamente, os sertanejos). O pesquisador Renato Almeida, referindo-se aessas tendências, assim se expressou : “A arte não tem pátria - é comum afirmar-see possivelmente com razão, mas o artista tem pátria e nela é que terá que haurir asforças vivificadoras da sua obra”7. Na obra dos músicos acima citados, o símboloda nacionalidade trazia como referência a figura do índio - não como produtormusical, mas como personagem. Era o índio idealizado dos românticos e dospintores acadêmicos, o tupi distanciado no espaço e no tempo, segundo avaliaçãode Renato Almeida, em função até mesmo do desconhecimento que esses músicostinham dos índios reais, e da distância destes últimos em relação aos chamadoscentros civilizados. O sertanejo e/ ou o caipira, mais próximos, podiam tambémservir de inspiração, uma vez que se destacavam como portadores de um modopeculiar de cantar e tocar. Alguns compositores eruditos dessa fase buscaram nesseselementos algo mais do que simplesmente temas para serem apresentados comovariações com roupagens eruditas. Francisco Vale (1869-1906), por exemplo,incorporou à sua obra não só temas populares, como ainda efeitos e modos de

5 ANDRADE, Mário de. Taxi e Crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria daCultura Ciência e Tecnologia, 1976, p. 236.

6 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 36-44.7 ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp.

Editores, 1942, p. 421.

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tocar viola e de cantar dos nossos sertanejos, da mesma forma como FranciscoBraga (1868- 1945), que utilizou o recurso do abaixamento da sétima, diminuindo-a de meio tom, conseguindo com isso incorporar à sua obra “a nostalgia melódicae expressiva daquela cantilena do sertão”8.

Contudo, a redefinição da relação popular / erudito expressou-se, com muitomais vigor, nos cânones propostos pelo modernismo musical. Era preocupação deMário de Andrade, assim como de compositores como Vila-Lobos (1887-1959),Lorenzo Fernandez (1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986), CamargoGuarnieri (1907-1993) e outros, abrasileirar a música erudita nacional, não maispela incorporação dos elementos exóticos que pudessem agradar as platéiaseuropéias, mas procurando embeber-se nas chamadas raízes da nacionalidade -dadas pela pesquisa folclórica, que possibilitaria a esses músicos inspirar-se nopopular, no “autêntico”, no “não maculado”. Somado a isso a influência decompositores como Schönberg e Strawinsky, por exemplo, que abriam caminhopara a incorporação de harmonias de forma mais ampla, buscava-se a construçãode uma música ao mesmo tempo moderna e nacional9. Para isso, o folclore deviaser encarado como uma disciplina científica, que requeria atitudes bem específicasna sua coleta10. O regional e o específico entravam apenas como elementos naelaboração de uma totalidade representativa da nação, ou seja, naoperacionalização de uma síntese. Visava-se, conforme a expressão usada porMário de Andrade, “a estilização culta e não a fotografia do popular”. A música,nesse processo, deveria ser ao mesmo tempo nacional, e se expressar numalinguagem que a colocasse no contexto da civilização de que fazia parte. Deveriaser reconhecida como brasileira, expressando o regional, mas sem ser regional. Obatuque negro, nesse sentido, deixaria de ser a música de um determinado grupo -negro, rural, regional - para ser tomado como componente de uma musicalidaderepresentativa de um povo.

A diversidade regional passava a ser explicitada, em diferentes situações,levando-se em conta o peso desigual das diferentes influências étnicas ou, conformeoutros autores, das diferentes possibilidades de relações do homem com a natureza.As qualidades da produção musical passavam a ser equacionadas tendo em vistaas contribuições das três raças formadoras da nacionalidade - negra, branca eíndia - no seu processo de afirmação sobre o território ou a natureza bruta.Conseqüentemente, a contribuição de cada uma delas vinha hierarquizadaconforme a sua força mostrada na preservação das suas características essenciais- isso, aliás, explicava a pouca influência musical o índio, e a prevalência dascaracterísticas harmônicas da música ibérica, dominantes inclusive sobre os ritmosnegros.

O olhar que era dirigido para o popular procurava ainda identificar e apreenderos elementos constitutivos das três raças do ponto de vista material e espiritual: o8 ALMEIDA, História da música..., p. 441.9 ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Vila Rica

Editoras Reunidas, 1991, p. 26.10 Foi o que Mário de Andrade procurou fazer, quando exerceu o cargo de Diretor do Departamentode Cultura da cidade de São Paulo, em 1937, constituindo um acervo hoje disponível no CentroCultural daquela cidade.

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instrumental indígena, algumas formas rítmicas e harmônicas, mas também arebeldia latente desses povos, não desvirtuada pela catequese; o ritmo sincopadodos batuques negros africanos, mas também a alegria e a sensibilidade preservadasmesmo na situação de escravidão; a estrutura melódica herdada de Portugal, bemcomo os principais instrumentos musicais, acrescentando-se a isso “a religião, alíngua, a instrução, os costumes, sem contar a maior dosagem de sangue”, comoacentuava Renato Almeida11. Valorizavam-se, dessa forma, os produtos híbridos,ou seja, os sincretismos diluidores dos defeitos intrínsecos de cada um dos gruposétnicos.

Embora essas questões fossem colocadas especificamente em relação à músicaerudita, elas não deixaram de ter reflexos na produção popular veiculada no espaçourbano. Num certo sentido, na música popular urbana produzida no eixo Rio deJaneiro/ São Paulo, podemos afirmar que o sertanejo acabou tomando o lugar doíndio, e o mulato substituiu o negro. Na vertente popular, o samba, posteriormenteelevado à categoria de música nacional, tornou-se representativa não mais daspopulações negras/ ex-escravas/ libertas, mas das populações negras inseridas noespaço urbano (mesmo marginal) - tornadas mulatas. Da mesma forma, o ruralestilizou-se nas canções sertanejas, referidas a um rural bucólico que em nadalembrava a rudeza dos sertões.

Na obra No tempo de Noel Rosa, já citada, Almirante referiu-se à migração docompositor pernambucano João Pernambuco (João Teixeira Guimarães - 1883-1947) em direção ao Rio de Janeiro. Esse músico, exímio violonista, que haviasido discípulo dos artistas populares que percorriam as feiras na sua região deorigem, fez-se amigo, no Rio de Janeiro, de Quincas Laranjeira, Zé Rebelo, MárioCavaquinho, Sátiro Bilhar, Veloso e outros, participantes das rodas de choro quese realizavam com muita freqüência, às quais se incorporavam também músicosportadores de uma linguagem mais erudita, como Heitor Vila-Lobos. A partir dessesencontros, conforme Almirante, e da participação do grupo em festas populares,como o carnaval, processou-se na então capital federal a popularização de umritmo regional - a embolada - que passou a fazer parte constantemente deapresentações individuais ou coletivas desses músicos. Almirante destacou quemesmo Noel Rosa chegou a escrever algumas emboladas no início de sua carreiracomo compositor, salientando esse fato quase como um ponto de partida da obraposterior desse sambista.

Naturalmente, essa popularização da embolada não pode ser pensada apenasem termos de mera imitação por parte dos compositores, executantes e cantoresde São Paulo e Rio de Janeiro. Quando analisamos as vivências musicais dessesmúsicos populares, desses chorões que se reuniam nas casas e nos terreiros parafazer música, percebemos aproximações não puramente musicais. Ou seja, osque migravam moravam nesses bairros populares, conviviam cotidianamente,compartilhavam das mesmas influências, e compartilhavam identidades no fazermusical. Os próprios lugares de execução musical, as formas de canto coletivo, oaproveitamento de temas populares (presentes também em Pelo Telefone,considerado a primeira produção musical registrada como samba), bem como aprópria profissionalização desses músicos impede-nos de pensar esse território11 ALMEIDA, História da música..., p. 7.

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popular como algo fechado em si mesmo, simplesmente refletido em outros espaços- ou seja, pensar na popularização da embolada, que passa a fazer parte tanto dosfestejos populares carnavalescos como do cinema e do teatro de revista,simplesmente como uma moda.

Almirante referiu-se às influências dos grupos e músicos nordestinos sobre oscariocas, o que os levou à constituição de um grupo carnavalesco fantasiado decangaceiros. Por um lado, deu uma ênfase significativa à influência da culturanordestina sobre a produção musical na capital federal, sobrepondo a embolada aoutros ritmos presentes tanto nas gravações pioneiras quanto na veiculação emcafés, circos e revistas musicais, como o lundu, o maxixe, a chula e outras. Alémdisso privilegiou, na sua interpretação, a interposição de uma cultura popular comuma vertente literária, erudita. Narrou, nesse sentido, o encontro de JoãoPernambuco com Catulo da Paixão Cearense; do conhecimento que o primeirotinha das coisas do sertão, com a intermediação “literária” do segundo, terianascido a primeira canção sertaneja de cunho folclórico: Caboca de Caxangá. Apartir daí, outras se seguiram, como a conhecidíssima Luar do Sertão.

E foi exatamente sob a égide do folclore, tomado na concepção de antiguidadespopulares que Almirante analisou o sucesso dessas composições; estabelecendoligações entre elas e a publicação simultânea de obras sobre tradições popularesnordestinas. Citou obras de Sylvio Romero, Melo Morais Filho, Pereira da Costa,Alexina de Magalhães Pinto e outras, construindo uma cisão, situando, de umlado, músicos e compositores populares urbanos, e de outro, aqueles provindos deum meio rural, que traziam “um vocabulário ainda não pervertido pela língua culta”.Estes últimos, portadores de uma cultura popular dita folclórica, tinham condiçõesde influenciar a cultura popular urbana, ou seja, de fornecer a matéria prima sobrea qual os compositores urbanos trabalhariam.

É significativa a produção desse distanciamento culto/ popular: pensadaenquanto fonte, a obra popular deveria conservar a sua pureza, o que levou muitoscompositores (populares e eruditos) a se voltarem para o interior do país,objetivando a recolha de músicas e temas não contaminados pelo urbanismo.Todavia, a difusão dessas composições, devidamente trabalhadas, se dava numoutro espaço, que não o da produção - ou seja, no espaço urbano.

Os produtos decorrentes do encontro João Pernambuco/ Catulo (do músicopopular com o poeta letrado), contagiaram tanto as festas populares como asproduções teatrais do período, mas não ficaram restritos ao Rio de Janeiro. Fizeram-se sentir também na cidade de São Paulo, tornando-se componentes de um processode abrasileiramento - ou de paulistanização - da produção musical, contrapondo-se ao peso da influência da população imigrante, que se acrescentava à cidadedia a dia.

Um dos pontos a assinalar, com relação a São Paulo, diz respeito ao fato delaser apontada principalmente como cidade italiana, ou seja, onde grupos não-nacionais dominavam a produção cultural urbana. Referindo-se ao panoramamusical paulista nas primeiras décadas do século, J. L. Ferrete assinalouespecificidades decorrentes da intensa imigração estrangeira: predominava,segundo ele, a música cantada, particularmente o tango, a modinha, a canção de

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serenata, a toada, além da existência de “inúmeros grupos de chorões atuandonum gênero de criação melodicamente mais próximo das cançonetas italianas oudas cantigas portuguesas, diferençando-se, assim, do choro de raízes negrascariocas”12.

Urgia, pois, abrasileirar, ou até mesmo paulistanizar essa produção musical.Um dos caminhos seria, exatamente, revolver as raízes rurais, na qual esseselementos musicais pudessem se apresentar de forma mais “pura”. O rádio, mesmono seu início, se apresentava enquanto campo fértil para isso - não pela suaabrangência em termos de ouvintes, muito reduzida na década inicial de suaimplantação, mas porque se constituía dentro de uma concepção educativa,apresentando, na sua programação, tanto a chamada música clássica, quanto algunsnúmeros regionais e folclóricos.

Um dos nomes mais significativos nesse processo foi o cantor, compositor eradialista Roque Ricciardi (1894-1976), que rejeitou com muita força o apelidoque recebera, “italianinho do Brás”, referido às suas origens (o Brás, na época,era bairro italiano), procurando um pseudônimo que demarcasse claramente asua identificação com um projeto de abrasileiramento. Passou então a adotar opseudônimo de Paraguassu (com dois esses, como salientava), demarcando umaidentificação indígena, um dos ramos formadores da nacionalidade. Esse propósito,aliás, ficou bem explicitado no seu repertório, calcado significativamente nos temastradicionais do cancioneiro regional e na incorporação dos ritmos nordestinos emevidência, como a embolada, mas cantado com um sotaque caipira. Suas gravaçõesfaziam referência, muitas vezes, a um mundo rural, ao violeiro, ao caboclo, aocaipira, utilizando um modo de falar que construía um referencial do morador defora das cidades:

Às veiz di noite/ adisfarçando as minhas mágoa/ vô beirando o corgod’água/ qui travessa o meu pomá/ e fico ouvindo/ o choro triste docorguinho/qui é o cantô que embala os ninho/ qui é o violêro do luá.

O violero do lua, música de Paraguassu e letra de A. Fleury, gravação de 1933

A utilização de um modo de falar acaipirado procurava dar sentido a umavisão idílica do mundo rural, com seus prazeres simples, referidos a uma atitudecontemplativa da natureza - distanciado portanto do duro trabalho cotidiano dosseus habitantes. A oposição campo/cidade também se situaria no terreno dosvalores, opondo a pureza rural ao artificialismo urbano, como no cateretê Racha-pé, de Fernando Magalhães, gravado por Paraguassu em 1933 13 :

Gosto do samba/ Também do cateretê/ É a dança brasileira/ de fazêamanhecê/ Eu da cidade/ Vou vivê lá no sertão/ Lá não tem tanta vaidade/Tudo é justo, tudo é bão/ Vou no samba do sertão/ Que alegra meucoração.

12 FERRETE, J. L. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja? Rio de Janeiro, FUNARTE; InstitutoNacional de Música, 1985, p. 45.

13 As datas das gravações não se relacionam, como na atualidade, ao lançamento da música nomercado. Muitas vezes elas de davam quando a música já era conhecida por ter sido já muitodivulgada através de outros meios - do teatro, cinema, circo, cafés, etc.

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Nas letras dessas canções não se buscava a positivação do caipira enquantotrabalhador, mas a idealização de uma vivência campestre definida em oposiçãoà vida na cidade. O falar caipira servia de veículo para a associação do mundorural com “uma forma natural de vida - de paz, inocência e virtudes simples”,conforme assinala Raymond Williams, quando analisa a literatura ruralista inglesa14.Nesse sentido, o valor recai no estar no meio rural, não no fazer parte desse ambiente.O bucolismo, a ligação com um modo não-urbano de vida, sem preocupações esem a necessidade de competir, caracterizaram a produção das canções sertanejasdesse período. A identificação, no caso, se processava não com o trabalhadorpropriamente dito, empregado ou sitiante, que muitas vezes aparecia comopersonagem de narrativas, em histórias envolvendo acontecimentos que escapamda rotina e dos afazeres cotidianos - mas com o não-trabalho, com um modo devida de papo pro ar, conforme assinalavam os versos do conhecido cateretê deJoubert de Carvalho e Olegário Mariano:

Não quero outra vida/ pescando no rio/ de Jereré/ tem peixe bom/ temsiri-patola/ de dá c’o pé/ Quando no terreiro/ faz noite de luar/ e vem asaudade/ me atormentá/ eu me vingo dela/ tocando viola de papo proar/ Se compro na feira/ feijão, rapadura/ prá que trabalhar... etc.

O processo de abrasileirar (ou paulistanizar) a música popular, num sentido,caminhava na direção da constituição de uma síntese, na qual a influêncianordestina tinha um peso considerável. Raul Torres (1906-1970), músico e radialistacom uma longa carreira, iniciou gravando emboladas, primeiro com o pseudônimoBico Doce e sua Gente do Norte, na série de discos gravadas por Cornélio Pires, eformando o conjunto Turunas Paulistas, inspirando-se no grupo nordestino Turunasda Mauricéia, que excursionou, na década de 1920, com grande sucesso pelopaís. Das gravações de Raul Torres, a partir da década de 1930, constavam modasde viola, emboladas, cocos, sambas, cateretês, toadas, jongos etc. Essa síntese secontrapunha à influência da música estrangeira, constituindo aquilo que poderiase chamar “coisas nossas” (aliás, “Cousas Nossas” foi o título de um filme musical,dirigido por Wallece Douwney em 1931, congregando um conjunto expressivo deartistas com trânsito no rádionesse período).

O rádio paulistano, por essa época, expressava ainda uma outra síntese na suaprogramação. Dirigida a um público de elite que tinha acesso aos aparelhos e àsrádio-sociedade, às quais se aderia mediante uma taxa, dela constavaprincipalmente a chamada música erudita, com grande peso da música lírica,entremeada com programas dirigidos às várias “colônias” estrangeiras, assim comouma programação de música popular nacional. Dessa última podiam constarnúmeros musicais classificados como “folclóricos”, normalmente cantados ouapresentados por conjuntos ou cantores com experiência radiofônica (ou seja,não eram músicas “recolhidas”, embora algumas pudessem, eventualmente, serassim apresentadas). O rádio direcionava seu crescimento às camadas que játinham acesso ao aparelhamento para sintonia, procurando montar umaprogramação que desse conta dessa diversidade, sem esquecer as chamadas

14 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. São Paulo: Companhia dasLetras, 1990, p. 11.

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“raízes” da brasilidade.Não em oposição, mas coerentemente com essa síntese, expressava-se um

direcionamento no sentido de conhecer o ponto de origem da produção culturalbrasileira, ou mais especificamente da paulista, ou seja, como eram, o que faziam,o que produziam, em termos de arte, os habitantes do interior do Estado de SãoPaulo. Respondendo a essa fome de exotismo, o jornalista, pesquisador e escritorCornélio Pires (1884-1958) começou a organizar conferências caipiras. Nelas,discorria sobre os modos de vida e de comportamento dos chamados caipiras,passando a apresentar alguns cantadores recolhidos nas cidades do interior.

Em 1910, ano da publicação de sua obra Musa Caipira, realizou a primeiradessa série de palestras, com a apresentação de cururueiros, catireiros, cantando,dançando e representando o que seria um autêntico velório caipira. Essaapresentação se deu num dos espaços mais refinados de São Paulo – o ColégioMackenzie. Muitas outras se seguiram nos anos seguintes, sempre em espaços deelite, e isso levou Cornélio Pires a constituir uma verdadeira troupe de artistaspopulares, recrutados em suas andanças pelo interior do Estado.

Sem ter chegado a constituir uma obra literária de peso, segundo os cânonesintelectuais da época, Cornélio Pires era presença constante nos pequenos jornaise revistas paulistas da primeira metade do século, como O Pirralho, chegandomesmo a fundar uma revista, O Sacy. Publicou poesias e contos (ou causos), atravésdos quais procurava apresentar aos seus leitores e ouvintes a chamada culturacaipira, distinguindo suas especificidades em relação aos demais habitantes domundo rural brasileiro. Para isso, escrevia de forma quase coloquial, descrevendoos habitantes do interior e narrando seus costumes, suas festas, suas músicas, deuma forma ora lírica, ora cômica. Foi apresentado muitas vezes como folclorista,apesar das restrições como, por exemplo, as feitas por Rossini Tavares de Lima, oqual, embora destaque a sua importância no recolhimento do que ele denomina“cultura espontânea do caipira paulista, destaca suas deficiências “não utilizaçãodo método científico na colheita do material” folclórico15.

Nicolau Sevcenko referiu-se a atitudes semelhantes à de Cornélio Pires tomadasem outros espaços da sociedade paulistana, como um esforço para trazer o exóticoda cultura caipira em suas dimensões naturais, isto é, através dos seus própriosrepresentantes. Cita, entre outros acontecimentos, o baile promovido por AfonsoArinos em seu palacete, apresentando aos convivas uma autêntica congada,dançada por caboclos de verdade, bem como a apresentação, em sua peça teatralO Contratador de Diamantes, levada à cena no Teatro Municipal em 1919, de“pretos de verdade e dançadores e violeiros autênticos da roça”, segundo descriçãode um jornalista da época16.

Mais do que uma aproximação entre rural e urbano, portanto, assistia-se a umaaproximação entre o rural provindo do interior paulista e a capital do estado.Procurava-se firmar a posição de São Paulo, com seu modo de vida, suas tradições,

15 LIMA, Rossini Tavares de. O folclore na obra de escritores paulistas. São Paulo, Conselho Estadualde Cultura / Comissão de Literatura, 1962, p. 11.

16 Apud SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na Metrópole: São Paulo sociedade e cultura nosfrementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 242.

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seu dialeto e sua música como fonte de brasilidade, distanciando-se das influênciasestrangeiras e do cosmopolitismo representado pela capital da república. Nessesentido, o rural agia como “purificador” do artificialismo e dos defeitos decorrentesdo urbano.

A especificidade desse personagem, o caipira, todavia, parecia ser atribuídapor Cornélio Pires, mais ao fato de ele ser paulista do que ao de ser habitante domundo rural brasileiro: no prefácio de um de seus livros, destaca que suaespecificidade se deve “à difusão do ensino por todo o Estado e por haverem osantigos dirigentes de S. Paulo compreendido que a nossa grandeza só poderia vircom a imigração, transportes e instrução”17. A síntese por ele proposta, portanto,incorporava aqueles elementos que podem ser identificados como genuinamentepaulistas, inclusive a influência italiana sobre sua população. Distinguia ele, então,diferentes tipos caipiras, baseando-se nas suas características físicas e na suaascendência: a) o caipira branco, descendente dos primeiros povoadores, “demelhor estirpe”, segundo ele; b) o caipira caboclo, descendente dos índios; este omodelo do Jeca Tatu de Lobato, tendendo ao desaparecimento; c) o caipira preto,descendente de escravos, “batuqueiro, sambador”; d) o caipira mulato, mestiçodos antigos povoadores com africanos ou seus descendentes; e) e ainda, como“tipo novo”, o caipira mulato produto de cruzamento de italianos com negros oumulatos.

Da mesma maneira que outros autores se valeram das categorias das raçasformadoras da nacionalidade - o índio, o branco e o negro - Cornélio Pires distinguiana produção caipira paulista os elementos culturais originários dessas três raças,valorizando o processo de mestiçagem e reforçando a posição de São Paulo comofoco e gerador de brasilidade. Portanto, colocava as contribuições dessas três raçasnão na projeção de uma síntese do que seria a cultura nacional, mas de um regionalalçado à condição de nacional. Com isso, procurava responder a posicionamentoscomo os expressos por Lobato em Urupês, que se referiam à pobreza da culturacaipira paulista do ponto de vista material, bem como da sua produção musical.Procurava mostrar o quanto ela era rica e variada; além disso, a riqueza que eledestacava não se referia a todo o habitante do mundo rural brasileiro, masespecificamente ao paulista. Trazia, portanto, o regional como modelo de brasilidade.Demarcando, portanto, a posição singular de São Paulo nesse processo deconstrução da nacionalidade, no qual seu papel de civilizador aparece sedimentadoatravés dos três elementos citados acima, até mesmo a suposta (ou alegada) pobrezada produção literária popular paulista frente às demais regiões poderia serminimizada.

Mas os resultados desse processo, de certa forma, escaparam dos limitesinicialmente traçados. Em decorrência do sucesso de suas conferências, CornélioPires tentou interessar a gravadora Colúmbia na gravação de uma série de discosseus e dos componentes da sua “troupe”, ou seja, dos cantores e artistas que oacompanhavam e das duplas e conjuntos que ele havia “recolhido” no interior.Ante o desinteresse da gravadora, resolveu patrocinar, por sua própria conta erisco, a prensagem de uma série, com etiqueta cor de vinho, denominada“humorística e folclórica”. Estava certo de que obteria colocação dos mesmos por17 PIRES, Cornélio. Sambas e cateretês. São Paulo: Grafico-Editora Unitas, 1932, p. 6.

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ocasião de suas conferências e apresentações. Os primeiros cinco ou seis discos,distribuídos pelo próprio Cornélio Pires no interior, alcançaram muito sucesso, eabriram caminho para os lançamentos que se seguiram.

Essas gravações, em torno de cinqüenta discos (no formato 78 rpm) formavamum conjunto bastante heterogêneo, e dela faziam parte tanto recitativos, históriasde caipiras, anedotas ou casos de conteúdo político, como modas de viola, músicastradicionais do interior paulista e do nordeste, valsas, canções, sambas e suasvariações, marchas, até peças tradicionais recolhidas, como as toadas de mutirãoe outras. A novidade que a série trazia, entretanto, era a gravação das modas deviola e outras peças do cancioneiro rural paulista, interpretadas por cantores eduplas não profissionalizados, embora em muitos casos conhecidos nos seus locaisde origem. Faziam parte desse grupo alguns que trabalhavam na lavoura, como osirmãos Mariano e Caçula, Ferrinho, que fazia dupla com o motorista Zico Dias,além de Arlindo Santana, artesão que fabricava “pios” de pássaros, etc. Ao ladodesses amadores, apresentavam-se artistas mais consagrados, como Paraguassu,que se apresentava com o pseudônimo de Maracajá, Raul Torres como Bico Doce,além da participação em diversos números de humorismo e recitativos de SebastiãoArruda, conhecido ator de cinema e teatro.

Cornélio Pires não se preocupou, nessa série, em realizar sínteses intelectualistasou eruditas; gravou tanto modas de viola, com cantadores do interior, comoemboladas e composições de autores conhecidos com cantores já com sucesso norádio, no teatro e no cinema paulistas. Sua preocupação maior era vender osdiscos, não apenas “preservar” essa música, e nisso foi muito bem sucedido. Apartir dessa iniciativa, descortinavam-se novas possibilidades das própriasgravadoras passarem a investir nesse novo filão.

Em depoimento registrado no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, umdos integrantes dessa troupe, Sorocabinha (Olegário José de Godói - 1895-1995),relatou como passou a se apresentar com Cornélio Pires e, consequentemente,como ingressou na vida artística da capital. Violeiro, cantor e participante ativodas festas de sua região, Piracicaba, Sorocabinha (aliás, filho de outro violeirocélebre na região, de apelido Sorocabão) foi convidado para fazer figuração nasconferências para fazer uma demonstração do folclore paulista, porque, segundoele, a capital estava “invadida pela música argentina”. Formando uma dupla comum professor de escola rural que conhecera em sua cidade, Manuel RodriguesLourenço (1901-1987), passou a se apresentar no grupo de Cornélio Pires porcachês simbólicos.

Todavia, a dupla conseguiu interessar nesse filão outra gravadora, a Victor, queenviou a Piracicaba a aparelhagem para a produção de alguns discos. Gravaramcom seus próprios nomes, Olegário e Lourenço, e a partir daí a gravadora constituiuseu próprio cast de violeiros e duplas caipiras: a Turma Caipira Victor. Apesar deuma alegada rivalidade entre as duas turmas, o número de gravações e o mercadode trabalho para esse tipo de música cresceu. A dupla foi contratada depois pelaParlophon, subsidiária da Odeon, e até 1940 gravaram cerca de 55 discos 78 rpm,com suas próprias composições18. Sorocabinha chegou a ter um programa de18 MUGNAINI JR, Ayrton. Enciclopédia das músicas sertanejas. São Paulo: Letras & Letras, 2001, p.

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rádio, onde se apresentava ao lado de suas filhas, e a dupla se apresentou emvários espaços, até mesmo no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, a convite deAlvarenga e Ranchinho. Mas não teve carreira muito longa, trabalhando depoiscomo operário e depois como porteiro de uma grande loja em São Paulo. Mandiretirou-se da vida artística, dedicando-se ao ensino e, posteriormente, à política.Mas outros componentes da turma caipira de Cornélio Pires ingressaram na vidaartística e radiofônica, como veremos mais adiante.

Não há a menor dúvida, portanto, de que a iniciativa de Cornélio Pires abriu omercado para gravações regionais. Em junho de 1930, nas páginas do jornal OEstado de S. Paulo, a Parlophon anunciava com destaque, entre outras gravações,duas de Mandi e Sorocabinha: A crise e Caninha verde (modas de viola). No mêsseguinte, a Victor publicava uma relação dos seus primeiros discos brasileirosgravados em São Paulo. A Colúmbia anunciava o lançamento de Scena de feiranortista (humorístico), Que moça bonita, com letra de Cornélio Pires, interpretadaspor Juvenal Fontes, o Jeca Tatu (disco 22132 B) e Afinado e Notícias da Roça, coma dupla Calazans e Rangel, respectivamente, Jararaca e Ratinho, utilizando agoraseus sobrenomes (disco 22131 B).

Pode-se afirmar que essas iniciativas com relação à gravação de discos com asduplas caipiras abriu caminho para o consumo dessa produção nos próprios locaisde origem (ou seja, no interior paulista). No depoimento acima citado, Sorocabinhanarrou como passou a ser assediado nas cidades do interior onde se apresentavapara cantar as músicas que tinha gravado - acrescentando que ficava às vezesirritado, pela impossibilidade de mudar ou improvisar, característica da músicacaipira. Mas confessou que passou a compor dentro das especificidades dagravação - ou seja, composições que pudessem caber num disco de 78 rpm.

A carreira de Mariano e Caçula (os irmãos Mariano e Rubens da Silva), daTurma de Cornélio Pires, antes lavradores no interior do Estado, desenvolveu-seno disco e no rádio ao lado de artistas já conhecidos que passaram a investirnesse filão, como Raul Torres, Juvenal Fontes, os nordestinos Jararaca e Ratinho,entre outros. O desenvolvimento da atividade radiofônica gerou outras duplas,como Tonico e Tinoco (João Salvador Pérez e José Pérez), certamente a que tevemaior duração (até a morte de Tonico, em 1994).

Os primeiros programas caipiras propriamente ditos no rádio foram seestruturando em torno de alguns nomes que agregavam em torno de si outros artistas:Cornélio Pires, Raul Torres, Capitão Furtado (Ariovaldo Pires, 1907-1979) e outros,misturando música e humorismo. Alguns eram verdadeiros programas devariedades, apresentados como oportunidades para conhecer coisas nossas,entremeando músicas, fatos pitorescos, etc.

Um dos primeiros a apresentar programas chamados “sertanejos” foi Raul Torres,o qual, como já afirmamos, destacou-se primeiramente como cantor de emboladase ritmos nordestinos. A partir de diversas parcerias, como compositor e intérprete,diversificou seu repertório, gravando modas de viola, toadas, marchas de carnaval,valsas, etc., mas construindo uma carreira radiofônica principalmente como umartista caipira. Em 1937, formou dupla com seu sobrinho Serrinha (Antenor Serra- 1917-1978); fez parceria com João Pacífico(1909-1998), e depois passou a se

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apresentar com Florêncio (João Batista Pinto), com quem já havia gravado antes.Com esse parceiro e o acordeonista Rielli (1885-1947), formou o trio Três batutasdo sertão, passando a se dedicar principalmente aos programas radiofônicos.

Na segunda metade da década de 1930, o rádio paulistano teve um crescimentosignificativo, em número de ouvintes mas principalmente a partir da instalação deum número crescente de emissoras. Crescia, também, a variedade de programas,muitos dos quais dentro do filão caipira. Um dos radialistas mais importantes,nesse período, foi o Capitão Furtado, apresentador do Arraial da Curva Torta, naRádio Difusora de São Paulo, que revelou uma série de duplas e figuras importantesda música caipira, como Mário Zan, Biá (Sebastião Alves da Cunha), Belmonte(Paschoal Todarelli), Hebe Camargo (que formava, com sua irmã Estela Camargo,a dupla Rosalinda e Florisbela, que não chegou a gravar discos), Tonico e Tinoco,entre muitos outros. O radialista também apresentou programas semelhantes noRio de Janeiro.

Outras figuras importantes foram surgindo e consolidando o filão caipira. Ofilho do acordeonista Rielli, Riellinho (Osvaldo Rielli), destacou-se comoapresentador ao lado do Capitão Barduíno (Pedro Astenori Marigliani, 1904-1967),do programa Brasil Caboclo, pela Rádio Bandeirantes, a partir de 1939, e participoudo quarteto sertanejo das Emissoras Associadas (Tupi e Difusora), juntamente comNhô Pai (João Alves dos Santos , 1912-1988), Laureano e Mariano. Formou depoiso Trio Sertanejo, com Serrinha e Mariano, que posteriormente passou a ter outroscomponentes. A partir de 1947, substituiu o pai na apresentação de Três Batutasno Sertão, pela Record, com Florêncio e Raul Torres.

Assistia-se, portanto, à constituição de um novo tipo de mercado de trabalhonas emissoras de rádio, do qual participavam tanto radialistas já com experiênciae traquejo no microfone, quanto novos artistas, muitos provindos recentemente dointerior. Muitas duplas paulistas transferiram-se para o Rio, e foram formadastambém outras com artistas que trabalhavam em outros espaços além do rádio -circos, teatros, etc. É importante lembrar, ainda, que as emissoras cariocas, se nãopodiam ser sintonizadas facilmente na capital paulista, podiam ser ouvidas nointerior do estado, em especial as mais potentes - Mayrink Veiga, Tupi, Nacional.

As duplas não ficavam restritas a um só tipo de programa: Xerém e Tapuia,depois Xerém e Bentinho, foram presença constante nas emissoras caricas, ondelançaram vários sucessos (de modas de viola a valsas, fox, marchas, etc.). Xerém(Pedro de Alcântara Filho, 1911-1982) era cearense, e cantava também ritmosnordestinos. Formou dupla com Tapuia (sua irmã Nadir), depois com Bentinho(José Antonio Vono Filho). Foi presença constante nos programas Festa na Roça,do Capitão Furtado, e Alma do Sertão, de Renato Murce. Esses programas aindaera apresentandos como veiculadores das coisas nossas: não apresentavam apenasmúsica caipira, mas música popular de uma forma geral.

E aqui apontamos uma outra questão: a extrema diversidade dessa produçãomusical, classificada, grosso modo, como caipira - que hoje se expressa comomúsica de raiz. Impossível determinar-lhe um ponto de origem, ou pensá-la fora damaterialidade das condições de sua constituição, ou seja, dos processos demudança vivenciados pela sociedade nessas décadas. Impossível desligá-la das

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múltiplas condições de sua produção e consumo - não igualitárias, mas fruto daspróprias contradições presentes na sociedade que as fez ou deixou aflorar.

Com o sucesso de determinadas duplas, algumas delas passaram a apresentarseus próprios programas. O direcionamento mudava: o objetivo era atingir ascamadas populares que, agora sim, passavam a poder ter acesso ao aparelho derádio. Não se tratava mais de uma síntese do regional visando um projeto deabrasileiramento, mas de uma ampliação do círculo de ouvintes, ou seja, de umapopularização da atividade radiofônica. Daí a apresentação desses programasprincipalmente nas primeiras horas da manhã.

Isso não aconteceu sem problemas. Para o radialista Arnaldo Câmara Leitão,havia se constituído um abismo entre a música caipira e o caipira em si. Para ele,sua música podia ser ouvida, como o era eventualmente, enquanto parte do folclore,mas a linguagem que vinha com essas duplas caipira “autênticas”, ou formadaspor migrantes, não podia ser absorvida pelo universo “culto” do rádio. Referindo-se ao tipo de humor feito nesses programas, em depoimento registrado no Acervode Multimeios do Centro Cultural São Paulo, criticou as situações em que o caipiraera autorizado a falar:

Bom, a música caipira em si mesma é muito agradável, né? Tem umfundo folclórico, dizem bem as raízes nacionais e dizem bem qualquersituação brasileira. Então logicamente a dupla caipira deveria interessarao ouvinte e inclusive à crônica, aos jornalistas e intelectuais, seveiculassem exclusivamente a música caipira, a música sertaneja, a nossamúsica de raiz. Mas não, essas duplas, trios sertanejos, eles eramautorizados a falar, e falando eles pronunciavam muita tolice, muitaobscenidade, contavam “piadas de sal grosso”, porque o público delesera um público assim de C e D, né? E que só compreendiam o “salgrosso”. Então não era justo que todo mundo ficasse sujeito a esse “salgrosso” inadvertidamente, não é? (...) Mas alguns artistas sertanejoseram muito bons. O Raul Torres, por exemplo, é um clássico no gênero.É um dos melhores. Ele tinha um trio e o Raul Torres não falava muitomas outros falavam e diziam tolices e todo mundo se zangava na ocasiãopor isso, e também um pouco de preconceito, né? Era vontade de malharporque eles eram pobres e de certa maneira indefesos. Mas na malhaçãoexistia uma justificativa. Era... pornofonia, como se poderia dizer,pornofonia da parte deles. 19

A popularização do rádio era vista por esse radialista – e por muitos outros,aliás - como perda da essência educativa do rádio, no dizer de muitos intelectuaisque discutiram o assunto. Podemos pensar esse processo como de mudança nopróprio meio de comunicação, que viu crescer sua importância nas décadasseguintes à sua implantação bem como sua difusão abarcando camadas dapopulação cada vez maiores. Ou seja, o crescimento regional da música caipira,no caso, não pode ser pensado a não ser a partir da popularização do rádio e dodisco, não podendo essa avaliação ficar na dependência de critérios como qualidade

19 Fita n. 1581 / 1582 (lado b) - Depoimento de Arnaldo Câmara Leitão - 14 jun. 1984.

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musical, avaliada a partir de padrões urbanos. A importância da constituição deum mercado - radiofônico, discográfico - deve ser pensada como fenômeno demassa, no sentido quantitativo, mas dimensionando sua importância, da mesmaforma como Walter Benjamin dimensionou a importância da reprodutibilidade daobra de arte na contemporaneidade20. A produção popular regional, portanto, torna-se algo mais do que matéria prima de um projeto de nacionalização; ela colocavaem cena, exatamente, os protagonistas que nem sempre se acomodavam nos limitestraçados para sua atuação.

20 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodubilidade técnica. In: Magia e Técnica, Artee Política. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 165-196.

RESUMOEste artigo visa discutir momentos e projetosque se voltaram o abrasileiramento daprodução musical no país, referindo-se aalguns deles, nos quais se percebem embatesentre concepções de nacional e de regional.Volta-se especialmente para a produçãomusical de São Paulo e Rio de Janeiro, nummomento em que se processava aapropriação do regional visando a constituiçãode um processo identitário veiculado comonacional, o qual se dava lado a lado compopularização do rádio e do disco.Palavras-Chave: Música Popular;Identidade; Regionalismo; Música Caipira.

ABSTRACTThis article aims to argue moments andprojects trying to become Brazilian the musicalproduction in this country, mentioning someof them in which we can perceive encountersbetween differents conceptions of nationaland regional. It refers specially to São Pauloand Rio de Janeiro case, when there were theappropriation of the regional one aiming toconstruct an identitary process concomitantof the popularization of the broadcasting andrecord activity.Keywords: Popular Music; Identity;Regionalism; “Caipira” Music.

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ASPECTOS DA CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DAREGIÃO OESTE DE SANTA CATARINA

Elison Antonio Paim1

Considerações iniciais

Este artigo desenvolve-se a partir de pesquisas realizadas para a elaboração dadissertação de mestrado Fala Professor(a): O Ensino de História em Chapecó 1970-1990 e aprofundei-as para a elaboração da tese de doutorado Memórias eExperiências do Fazer-se Professor(a) de História. Nessas duas pesquisei aconstituição da região oeste de Santa Catarina e, especialmente, a cidade deChapecó em sua constituição como cidade pólo regional. Aqui abordarei algunsaspectos dessas pesquisas, com base em fontes orais e escritas diversas.

A construção dessa pesquisa deu-se pautada em alguns pressupostos teórico-metodológicos. É fundante desta pesquisa a concepção de História presente emWalter Benjamin2, quando nos diz que:

A História não é uma busca de um tempo homogêneo e vazio,preenchido pelo historiador com sua visão dos acontecimentos, mas émuito mais uma busca de respostas para os agoras. A História é umimenso campo de possibilidades onde inúmeros agoras irão questionarmomentos, trabalhar perspectivas, investigar pressupostos.

Também foram importantes para essa pesquisa os estudos de Eduard PalmerThompson e Raymond Willians. Especialmente os conceitos de Experiência eCultura3.

A todo o momento ouvimos alguém fazer referência a alguma região, ao regional,ao local, às diferenças regionais entre os estados, dentro dos estados entre o litorale interior. O estado de Santa Catarina está dividido em regiões. O Brasil estádividido em regiões. Mas o que é mesmo região? O que define que moro numa e

1 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em História pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo; Professor do Curso de História e Coordenador do Centro deMemória do Oeste de Santa Catarina - CEOM, ambos vinculados à Universidade ComunitáriaRegional de Chapecó - UNOCHAPECÓ. E-mail: <[email protected]>.

2 Para aprofundar a concepção de História do autor, dentre outras obras, é fundamental o estudo dasteses sobre história. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da História”. In: ________. Magia eTécnica, Arte e Política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.

3 Os autores problematizam e apresentam uma concepção de história que vai além dos determinismosdo Marxismo e também da História dos Analles. Ver as obras editadas no Brasil: THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (3 volumes). ________.Os românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.________. Senhores & Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ________. A miséria da Teoria- ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. ________. Costumes em comum: estudossobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. WILLIANS, Raymond.Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ________. Cultura e sociedade: 1780-1950.São Paulo: Editora Nacional, 1969. ________. O campo e a cidade: na História e na Literatura. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1989. ________. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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não em outra região? Como foram divididas as regiões? Quais os critérios paradivisão? Quando, quem e porque fez a divisão?

Definindo termos

Conforme Amado4, são as diferenças que explicam a divisão em regiões; o serhumano procurou “enquadrar”, classificar os locais, conforme as semelhanças,negando assim aquilo que fugia do convencionado como daquela região. Nessaconcepção, não há lugar para especificidades. No Brasil, em vários momentos,houve o combate às especificidades das diferentes regiões, “em nome da unidadeterritorial, todos os movimentos de caráter regional eram sufocados, mesmo os quenão tinham reivindicações separatistas”5.

Nas primeiras décadas do século 20, início da República, a primeira divisãoregional do Brasil tomou por base as diferenças naturais, na qual, “os olhos dosbrasileiros responsáveis pelo ‘desenho’ do território nacional só são capazes deperceber as diferenças das paisagens desenhadas pela natureza”6.

A idéia de região como algo natural, intocável e indiscutível permaneceu durantebom tempo como predominante em várias áreas do conhecimento, principalmentena História e na Geografia. Historicamente, foram ocorrendo mudanças -especialmente nos anos 1980 - essas idéias foram sendo questionadas e outrasperspectivas foram sendo apontadas, procurando

(...) superar as apresentações positivistas da região como produto isoladoda relação entre os homens e um determinado meio, e as neopositivistas,que apresentam a região como sistema, a partir de modelos matemáticossobre a categoria espaço, deixando de lado a participação das relaçõeshumanas na construção do espaço pensado socialmente. Essastendências ligadas à tradição marxista discutem preferencialmente opapel do espaço na reprodução das relações sociais de produção, ouos processos sociais que se manifestam no espaço. Enfim, trata-se deverificar que, bem como a História e a periodização, a região é umaconstrução antes de tudo humana, e, portanto submetida a umadeterminada historicidade.7

Assim, as perspectivas deterministas e naturalistas do pensamento sobre regiãovêm perdendo terreno, em detrimento de perspectivas que levam em conta muitomais os homens; nessas, considera-se insustentável a idéia de divisão meramentenatural, pois segundo Flores e Serpa:

Na delimitação de fronteiras, a língua, o habitat, a realidade social,tanto quanto as classificações mais naturais, apóiam-se em traços quenão tem nada de natural, sendo em ampla medida, o produto de uma

4 AMADO, Janaína. “História e região: reconhecendo e construindo espaços”. In: SILVA, MarcosAntonio da. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 10.

5 CASTRO, Iná Elias de. “Visibilidade da região e do regionalismo”. In: LAVINAS, Lena et alli (org).Integração, região e regionalismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p 163.

6 CASTRO, Visibilidade da região..., p.164.7 CÉRRI, Luis Fernando. “Regionalismo e ensino de História”. In: BITENCOURT, Circe Maria (org).Anais do 2º encontro perspectivas do ensino de história. São Paulo: FEUSP, 1996, p 713.

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imposição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior de relação deforças no campo de lutas pela delimitação legítima.(...) O discursoregionalista é, portanto, um discurso performático, que visa impor comolegítima uma nova definição de fronteiras, e fazer conhecer e reconhecera região assim delimitada. 8

A definição de região se dá por vários outros elementos, especialmente pelasrelações entre os seres humanos; aliás, são essas relações que criam, delimitam,definem o que pertence a essa ou aquela região, ou seja, são os próprios homensque especificam o que é uma região ou outra. Neste sentido, ainda, evidencia-seque “a região não está ausente das preocupações do Estado, ao contrário: ele corta,subdivide, delimita, quadricula, encerra...”. Desta forma, defender a região é, talvez,uma simples busca de sentido, passa a ser, então, “questão referente à relação dasociedade para com os indivíduos, ao consentimento dos indivíduos em pertencera tal sociedade”. Em resumo, trata-se de redescobrir para as coletividades, malhasconcretas que se oponham às malhas abstratas, propostas pelo Estado9.

Para garantir a permanência e unificação dos habitantes de uma região emtorno de alguns princípios supostamente comuns a todos, para obter o progresso,o desenvolvimento, historicamente têm sido construídos discursos dehomogeneização e de igualdade de tudo e todos. Nesses discursos, os diferentes,as diversidades da região, são sufocadas ou minimizadas.

A questão regional vem ganhando novos elementos, desde que, e recentemente,adquiriu o status de História Regional. Vários são os argumentos em defesa dopensamento histórico a partir da região que, segundo os historiadores consultados,permite a exposição das diferenças, que viria numa contracorrente dahomogeneização causada pelas grandes sínteses globais e nacionais. A grandebase para pensarmos uma história regional nos é dada por Eduard Thompson10,pela clareza das especificidades de suas análises, especialmente na perspectivadas relações. Para ele as especificidades das experiências e das histórias vividas,que embora localizadas no lugar do qual falamos, imbricam-se as histórias maisamplas. O diálogo é possível quando o específico

(...) nos ajuda a conhecer quem somos porque estamos aqui, quepossibilidades humanas se manifestam, e tudo quanto podemos sabersobre a lógica e o processo de formação social (...) a história é um bomlaboratório, porque o processo, o ato de acontecer, está presente emcada momento da evidência, testando cada hipótese através de umaconseqüência, proporcionando resultados para cada experiência humanajá realizada.

Há alguns argumentos importantes na defesa de que se façamos histórias

8 FLORES, Maria Bernadete Ramos & SERPA, Élio Cantalício. “A Hermenêutica do vazio: fronteiraregião e brasilianidade na viagem do governador ao Oeste de Santa Catarina”. Projeto História,Dossiê “Espaço e Cultura”, São Paulo, Educ, n. 18, 1999, p 217.

9 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 182-196.10 THOMPSON, A miséria da Teoria..., p. 57.

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regionais. Marcon11 defende que: a) as histórias regionais, delimitando seu campode investigação, fazem emergir os conflitos e tensões concretas vividascotidianamente, assim as relações de poder e dominação aparecem maisconcretamente; b) a história regional traz à tona às experiências dos gruposdominados e dos projetos que foram destruídos pelos dominantes; e c) os conflitose as diferentes formas de dominação aparecem quando um entrevistado, porexemplo, tem confiança no pesquisador e nomina personagens concretos comoagentes da dominação, do poder e da exploração.

Já Castro, afirma que para pensarmos uma história regional é preciso: “(a)superar postulados deterministas e simplificadores; b) considerar a escala comoproblemática fenomenológica e não matemática”. Mais adiante, afirma que: “Narealidade, a identidade sócio-espacial, o espaço da administração pública e outrosmais definem novas questões para investigação e estabelecem o desafiometodológico da escala dos fenômenos que dão sentido ao território regional”12.Por sua vez, o historiador José Mattoso, afirma que:

A história local e regional deve partir de um estudo da relação entre ohomem e o espaço habitado que o rodeia. Necessitando subsistir numdeterminado território, juntamente com outros habitantes que ali buscamtambém a subsistência, integra-se num grupo, e este, por sua vez,associa-se a outros grupos, que constituem um conjunto vasto. Oscírculos em que o homem se situa vão-se assim alargando até atingiremas fronteiras daqueles que se consideram inimigos ou totalmentedesconhecidos. A descrição e o estudo do quadro territorial na históriaregional e local não são, portanto, como que a enunciação das premissasdas quais, depois as conseqüências de uma causa: são a apresentaçãode um quadro dos materiais ainda informes que, ao mesmo tempo,envolvem e limitam o homem, lhe fornecem os elementos que depoisnão só consome, mas também transforma, compõe e recria.13

Sintetizando o exposto, Amado nos lembra que região é uma: “Categoria espacial,que expressa uma especificidade, uma singularidade dentro de uma totalidade: assimregião configura um espaço particular, dentro de uma determinada organizaçãosocial mais ampla, com a qual se articula”14. E ainda que ao trabalharmos com oregional fazemos emergir “novas óticas de análise do nacional (...) o específico, opróprio, o particular”. O regional apresenta “o concreto, o cotidiano, o ser humanodeterminado a fazer a ponte entre o individual e o social”15.

11 MARCON, Telmo. “História Regional: uma experiência em construção”. In: ZARTH, Paulo Afonso(coord.). Anais do IV encontro de cientistas sociais: a problemática regional - aportes para o futuro.V. 1. Ijuí: Unijuí, 1996, p.60-64.

12 CASTRO, “Visibilidade da Região...”, p. 161.13 MATTOSO, José. “A história regional e local”. In: A escrita da história. Lisboa: Editorial Estampa,1988, p. 169-175.

14 AMADO, “História e região...”, p. 8.15 AMADO, “História e região...”, p. 13.

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O oeste de Santa Catarina

A região em estudo - Oeste Catarinense - segundo Renk, constrói-se “a posteriorida nação, embora esta seja sempre uma narrativa inacabada, em especial no casobrasileiro”. Para a autora a “construção de uma região, a do Oeste Catarinense, (...)passou por diversas disputas de fronteiras e configurações espaciais”16.

A região oeste de Santa Catarina foi, de fato, uma área de muitas disputas.Inicialmente, entre Portugal e Espanha; num segundo momento, entre Brasil eArgentina e, num terceiro momento, entre Paraná e Santa Catarina, originando,inclusive, a Guerra do Contestado (1912-1916), quando só então se definiu que oterritório pertencia ao estado de Santa Catarina. Para manter o território conquistadodo Paraná era preciso “povoá-lo”, para tanto, investiu-se num intenso processo decolonização. Mas não bastou definir que as terras pertenciam a Santa Catarinapara que elas, realmente, fossem assumidas como tal, pois:

A região em estudo passou a ser denominada Oeste Catarinense a partirdo Estado Novo. Anteriormente nos mapas constava zona desconhecida,zona despovoada. Ora era o sertão nacional, contrapondo-se aosCampos de Palmas, ora era sinônimo de área inóspita e limítrofe (comfronteira internacional em disputa).17

A região oeste de Santa Catarina era habitada pelos índios Kaingang - segundovestígios arqueológicos, encontrados na bacia do Rio Uruguai o grupo teria chegadona região, por volta de 5.500 a. C. Eles habitavam o território limitando-se com asfronteiras da Argentina e dos estados do Paraná e Rio Grande do Sul18. Eram14.071 quilômetros quadrados19. Atualmente, este território está subdividido em118 municípios.

Mesmo após a emancipação político-administrativa de Chapecó e Cruzeiro(atualmente, município de Joaçaba) ocorrida em 1917, a Região Oeste de SantaCatarina era considerada praticamente “despovoada”, pois os indígenas ecaboclos20, por possuírem modos de vida diferente, não produzir excedentes paracomercialização, e não possuir títulos de propriedade, eram desconsiderados pelasautoridades21. Para “povoar” o Oeste e garantir a posse das terras, o governo16 RENK, Arlene. Identidade comunitária. Separata. Chapecó: Argos, 2004, p. 2.17 RENK, Identidade comunitária, p. 2.18 Sobre os povos indígenas no Oeste de Santa Catarina verificar: D’ANGELIS, Wilmar da Rocha.“Para uma História dos índios do oeste catarinense”. In: Para uma História do oeste catarinense: 10anos de CEOM. Chapecó: UNOESC, 1995, p. 141-219; ORTIZ, Hilda B. D. “Ocupação pré-histórica do oeste catarinense”. In: Para uma História do oeste catarinense..., p. 17-70; VEIGA,Juracilda. “Revisão bibliográfica crítica sobre a organização social Kaingang”. In: Para Uma Históriado oeste catarinense..., p. 259-331.

19 Diário Catarinense, 25 ago. 1993, p. 6.20 “Caboclos” é a forma como são denominados os habitantes do oeste catarinense, sudoeste doParaná e norte do Rio Grande do Sul. São povos oriundos da miscigenação entre índios ebandeirantes paulistas que passavam pela região indo a direção aos Sete Povos das Missões paraaprisionar índios durante o século XVII, bem como aqueles bandeirantes que foram se fixando ese apossando das terras.

21 Sobre os caboclos no oeste catarinense ver: RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico nooeste catarinense. Chapecó: Grifos, 1997; POLI, Jaci. “Caboclo: pioneirismo e marginalização”.Cadernos do CEOM, Chapecó, FUNDESTE, n. 7, 1991.

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estadual de Santa Catarina distribuiu glebas de terras “aos que dominavam políticae economicamente a região, e que tinham prestígio suficiente para influenciar essasconcessões”22. Os beneficiados com as concessões montaram empresascolonizadoras para comercializar as terras.

As empresas colonizadoras criaram mecanismos para divulgação ecomercialização das terras. Foram enviados vendedores para as regiões agrícolasde colonização italiana e alemã do Rio Grande do Sul e

(...) então, vinha mudança. Quinze, vinte, mudanças por dia de pessoasvindas do Rio Grande do Sul. Geralmente eram pessoas filhas deimigrantes italianos e alemães que, quando vieram para o Sulcompraram pouca terra porque tinham pouco dinheiro, as famíliasgrandes cresciam, constituíam novas famílias. Ai tinha aberto aqui apartir de 1917 a venda de terras por colonizadoras nacionais eestrangeiras e as terras eram vendidas realmente por um preço módico,com prestações módicas e fixas. Então era fácil adquirir terras (...) elesforam se colocando e foram... Vinham pra cá com a esperança deenriquecer, acho que por isso que, a cultura ficou em segundo plano.Que aqui nós somos muito trabalhadores... Mas, nós não valorizamosa cultura. O que é uma pena.23

Os colonos que compravam as terras no Oeste Catarinense queriam que elasestivessem limpas, ou seja, sem moradores. Para a limpeza da terra os caboclos eos poucos indígenas que ainda viviam foram expulsos de suas terras, pois eramconsiderados improdutivos. Esses povos, ou foram sendo empurrados para áreasdistantes nas matas, ou foram para as cidades, quando não foram literalmenteeliminados.

Com a vinda dos colonos, estabeleceu-se um sistema produtivo calcado napequena propriedade, com predomínio da mão-de-obra familiar e de cultivosdiversos para comercialização. Os colonizadores dedicaram-se principalmente aocultivo de milho, cuja comercialização era difícil, uma vez que a fertilidade do soloe conseqüentemente a produção eram grandes. Para absorver o excedente, oscolonizadores iniciaram a criação de suínos que, aos poucos, passaram a seremcomercializados em Curitiba e São Paulo, constituindo-se a base para a agroindústriade carnes. Nos anos de 1940 foi instalado em Chapecó o primeiro frigorífico parao abate e industrialização de suínos, com produção modesta e pequeno númerode trabalhadores.

Porém, administrativamente, a região oeste de Santa Catarina continuavadistante, em todos os sentidos da capital - Florianópolis - e do governo do estado;as ligações comerciais, médicas e os referenciais políticos, continuavam sendocom o Rio Grande do Sul. Procurando integrar-se ao estado, o governador AdolfoKonder, em 1929, realizou uma viagem de vários dias pela região - em muitosmomentos a cavalo, outros de carroça, de barcos, pois não existiam estradas -com objetivo oficial de “inteirar-se das necessidades da região, para integrá-ladefinitivamente ‘à comunidade catarinense, demonstrando aos vizinhos do Rio22 POLI, “Caboclo: pioneirismo...”, p. 69.23 LUVISA, Armia. Entrevista concedida ao autor em 30 nov. 1995.

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Grande do Sul, do Paraná e da Argentina a intenção do governo do estado deSanta Catarina de exercer a soberania sobre as terras do Oeste’. A “BandeiraKonder” tinha três razões para ser realizada: “a questão da fronteira com a Argentinae da construção da brasilidade; a premência da ocupação do Oeste Catarinensecomo expansão do processo civilizador para o interior (...); um empenho em debelaras causas da guerra do Contestado, vencendo poderes locais, em torno dos quaisgravitavam grupos conflitantes”24.

A partir da passagem do governador uma série de medidas foi sendo tomadaspara integrar o Oeste ao estado de Santa Catarina; entre essas medidas está aconstrução de estradas e escolas. Até então, as escolas eram ligadas às comunidadesreligiosas - luteranas e católicas - e em boa parte dos casos eram pessoas quehaviam estudado um pouco e se propunham ensinar as crianças cujos paispudessem pagar pelo ensino. Em muitas comunidades - inclusive nas escolas - alíngua falada era a italiana ou alemã. Com a Segunda Guerra Mundial, o governobrasileiro proibiu que as pessoas falassem suas línguas de origem, os colonos forampresos por esse motivo e as escolas fechadas. Os órgãos governamentais realizaramuma cruzada nacionalizadora em toda a região oeste de Santa Catarina.

Mesmo com todos os esforços governamentais para a integração da região aoestado, culturalmente isso não aconteceu, pois as pessoas continuaram ligadas aoRio Grande do Sul. Até hoje existem disputas culturais entre os moradores dolitoral de Santa Catarina e os da Região Oeste. Os primeiros costumavampejorativamente, denominar os moradores do Oeste como “colonos”, “índios”,“bugres” e muitos outros adjetivos desqualificadores. Por sua vez, a recíprocatambém é verdadeira, quando os oestinos referem-se aos habitantes do litoral como“comedores de siris”, “manezinhos”, “povo que só gosta de praia e não trabalha”.

As divergências também se expressam, quando, por exemplo, o governo federal,ao criar a única Universidade Federal de Santa Catarina - e instalá-la na Ilha deFlorianópolis. Também a Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, atédois anos atrás, possuía campus somente em Florianópolis e uma extensão emLages, no centro do estado - distante 500 km de sua região oeste.

Na década de 1960, o Brasil passou por mudanças no campo, principalmenteem decorrência da mecanização, gerando um excedente de mão-de-obra. Inicia-se aí um processo de inversão populacional, ou seja, a população brasileira passoua residir em maior número na área urbana. A busca por esse espaço se davaprincipalmente por aquelas que possuíssem indústrias e, conseqüentemente,empregos. Na região oeste de Santa Catarina, mais precisamente em Chapecó,além da mecanização do campo, também a capacidade de sustento de todos osmembros da família na terra tornou-se difícil. Com a constituição de novas famíliaspelos filhos dos imigrantes, as pequenas propriedades passaram a não comportartodos, obrigando-os a procurar outra forma de sobrevivência, migrandoprincipalmente para o Norte do Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, eRondônia. Mas boa parte da população decidiu ficar na região oeste e trabalharcomo assalariada nas cidades.

24 FLORES & SERPA, A Hermenêutica do vazio..., p. 216.

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A região oeste é a maior em superfície, representando um quarto do territóriodo Estado, e em número de municípios (118). É a segunda mesoregião empopulação, com 1.114.699 habitantes com uma densidade demográfica de 41 hab/km abaixo da média estadual que é de 56 hab/km. Por sua vez, a Região Oeste deSanta Catarina está dividida em microrregiões. A microrregião de Chapecó écomposta por 38 municípios. É uma região agroindustrial, onde se localizam 7,29%das empresas do estado e que se apresenta como destaque nos setores alimentício,de origem animal, setor metal-mecânico, moveleiro e plásticos25.

A concentração urbana é baixa, apenas uma cidade, Chapecó, ultrapassa os100.000 habitantes e outra, Caçador, está um pouco acima de 50 mil habitantes.Os municípios que mais cresceram, especialmente na área urbana, vêm absorvendoparte do êxodo populacional dos municípios menores da própria região que, viade regra, vem sofrendo um processo de redução demográfica, não só rural, mastambém nas cidades. Os dados relativos à renda das pessoas indicam índicesmuito baixos:

Quase 60% das pessoas que tinham qualquer tipo de ocupação, duranteos levantamentos realizados pelo censo de 2000, tinham rendimentosque alcançavam no máximo dois salários mínimos (a proporção estadualnessa condição era 49%. Apenas 15% das pessoas ocupadas tinhamrendimentos acima dos cinco salários mínimos e, a parcela dos queestavam acima dos 10 mínimos, era de apenas 5,5% (no estado, 19% e7%, respectivamente).26

Outro indicador importante do empobrecimento da população dessa região équando se buscam os dados educacionais:

Apesar de na última década ter representado uma melhoria naescolaridade da população regional, como o aumento de um ano namédia de estudo da população, a expansão do ensino médio (crescimentode 50% das matrículas nos últimos 6 anos) e do acesso à educaçãosuperior (aumento de 40% nas matrículas de graduação entre 2001 e2004), 50% das pessoas acima de 10anos de idade (parâmetro etárioadotado pelo censo) tinham escolaridade que não ultrapassava a 4ªsérie do ensino fundamental, no ano 2000 (a proporção estadual erade 43%). No geral, os que não tinham concluído o nível fundamental(8 anos de estudo) somavam 68% da população acima dos 10 anos.Com nível superior completo, eram 2,7% (diante de uma média estadualque chegava aos 4,2%). No outro extremo, o número de analfabetosteve uma sensível redução na última década, mas ainda está acima damédia estadual (7% diante dos 5,3% estaduais).27

Aproximando um pouco mais do local de estudos, a seguir trarei aspectos daconstituição história do município de Chapecó, o qual deu origem a boa parte dosdemais municípios da região oeste.

25 Plano de Desenvolvimento Institucional da UNOCHAPECÓ, 2005, p. 47.26 DE MARCO, Ben Hur. O oeste catarinense: comentários sobre alguns indicadores socioeconômicos.Separata. Chapecó: Argos, 2004.

27 DE MARCO, O oeste catarinense...

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Chapecó constitui-se cidade pólo regional

Chapecó, palavra originária dos indígenas Kaingang, que significa “de onde seavista o caminho da roça”. Os Kaingang28 habitavam o território do “VelhoChapecó”, denominação para uma extensa área de terras, a qual, “limitando-secom as fronteiras da Argentina e dos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul perfazia14.071 quilômetros quadrados”29.

Mesmo após sua emancipação político-administrativa, em 1917, Chapecó eraconsiderada praticamente “despovoada”, pois os indígenas e caboclos30, eramdesconsiderados pelas autoridades.

Com a vinda dos colonos, estabeleceu-se um sistema produtivo calcado napequena propriedade, com predomínio da mão-de-obra familiar e de cultivosdiversos para comercialização. As atividades urbanas eram poucas, tanto queChapecó até os anos 1950 era um pequeno vilarejo, vivendo basicamente daexploração e da comercialização de madeira (araucária)31, da agricultura e de umpequeno comércio. As atividades industriais eram praticamente inexistentes.

Os anos seguintes foram considerados por alguns como “anos de ouro” paraChapecó: foram instalados novos frigoríficos, que passaram a industrializar aves,além de ampliar a industrialização de suínos. A onda desenvolvimentista que seespalhava pelo país chegou até Chapecó. Com essa expansão, a estrutura domunicípio não suportou o aumento muito grande de pessoas que chegaram.

Com o crescimento populacional, em decorrência do incremento industrial,aumentaram consideravelmente as demandas por moradia, saúde, alimentação,educação, saneamento básico, etc. Boa parte dessas demandas não foi alvo depreocupação dos governantes municipais. Esses estavam preocupados em atrair omaior número possível de pessoas para mostrar, inclusive em nível nacional, queChapecó crescia mais que qualquer cidade do país.

As novas políticas desenvolvimentistas dos tempos do “milagre econômico”deveriam ser implementadas também no oeste catarinense, mais especificamenteem Chapecó, convocando a todos para que “não fique ai parado! Não seja umexpectador! Junte-se aos demais concidadãos e ajude com sua parcela promover oprogresso de sua terra e de sua pátria. Participe também dessa corrida para odesenvolvimento de sua cidade e amanhã poderá dizer com orgulho: ‘Eu tambémajudei a construir a grande Chapecó’”32.

O “Lema do Desenvolvimento” foi sendo construído de várias formas, sejaatravés da imprensa, seja via atos político-administrativos. Primeiramente, atravésda imprensa - jornais e revistas locais - foram sendo disseminados artigos, que

28 Kaingangue, grupo indígena que chegou à região por volta de 5.500 a.C., segundo vestígiosarqueológicos encontrados na bacia do Rio Uruguai. Nesse sentido verificar: ORTIZ, “Ocupaçãopré-histórica...”; D’ANGELIS, “Para uma História dos índios...””; VEIGA, Revisão bibliográficacrítica...”.

29 Diário Catarinense, 25 ago. 1993, p. 6.30 Ver nota 20.31 Ver: BELANI, Eli Maria. Madeiras, balsas e balseiros no Rio Uruguai: o processo de colonizaçãono velho município de Chapecó (1917-1950). Chapecó: Cometa, 1996.

32 Celeiro Catarinense, n. 7, 1971.

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criaram expectativas e certo mistério em torno da instalação de indústrias. Umdesses artigos intitulava-se Eu Transformarei Chapecó, com o seguinte teor:

Chapecó não sabe bem o que pensar de mim. Por um lado ele merespeita como elemento importante na comunidade, por outro ele temcerta perplexidade diante daquilo que eu faço e daquilo que eu pretendofazer. Eu sempre fui respeitada em todos os lugares em que me fizpresente e ninguém se arrependeu de ter me recebido bem. Aonde euchego, revoluciono os homens de negócios e todos me querem. A minhapresença proporcionará tranqüilidade. Enamorei-me pelos homens deChapecó e para cá vim para ficar. Sou menor de idade ainda, masmesmo assim não me faltam cortejos em Chapecó. Atualmente namoro1.100 pessoas das mais variadas idades e pretendo conquistar maisumas novecentas até 1972. Ficaram curiosos para saber meu nome,não é? Pois eu sou a INDÚSTRIA.33

Na euforia construída em torno da instalação e ampliação do parque industrialatravés da imprensa, uma série de atos político-administrativos foram sendotomados pelos governantes estaduais e municipais, como: “Os incentivos dogoverno do Estado, propiciados pela Lei 4.226, contribuem para a formação docapital de até o limite de 70% do investimento total. A Lei municipal número 22/70dá totalmente de graça o terreno, a terraplanagem, rede de energia e isenção deimpostos”34.

Após a criação dessa série de leis, houve a instalação de várias empresas, entreas quais a Sadia Avícola S.A. Além da instalação de novas empresas, ocorreu aexpansão dos frigoríficos existentes, o Aurora e o Chapecó35. A euforia, o entusiasmocom a instalação das indústrias deu-se, principalmente, entre alguns chapecoensesurbanos, os quais foram os maiores beneficiados com a onda desenvolvimentista.Esse processo foi tão intenso que a boa parte das pessoas experenciaram essaeuforia, como é descrito pela depoente abaixo:

Sei que foi tão repentino, a gente chegou aqui (1973), a Sadia estavacolocando. A SAIC, já estava estruturada, mas também bem menorque é hoje, a Aurora (...) todo mundo naquela época corria, dava umjeito de colocar um aviário, mais ainda que os chiqueirões. O pessoalde fora, ai quem tinha loja, quem tinha comércio, todos eles procuravamao mesmo tempo comprar uma chácara lá fora para ter um aviário, umchiqueirão, porque se passava que, quem tivesse isso iria ficar rico empouco tempo, (...) sei que em pouco tempo aumentaram assim na área

33 Celeiro Catarinense, n. 7, 1971.34 Além da revista Celeiro Catarinense, citar as respectivas leis também trás algumas empresasbeneficiadas onde, a prefeitura doou 150.000 m2 de terreno para a Sadia Avícola no valor de Cr $85.000,00 e mais 10.000 m2 à firma Paludo S. A. Indústria de Câmaras Frias, num valor de Cr$10.000,00.

35 A Sociedade Anônima Indústria e Comércio Chapecó - SAIC, que em 1967 empregava 255pessoas e, em 1993, 4770. Assim em 1970, os operários em Chapecó eram algumas centenas eatualmente são mais de 10.000 pessoas envolvidas diretamente na produção. ROSSARI, Azulmir& MACHADO, Líbero. Representações sobre a organização da classe operária nas indústrias daalimentação de Chapecó. Chapecó: UNOESC, 1993.

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de construção, na oferta de emprego procuraram... Então, assim, crescercada vez mais, a Sadia ser melhor do que a Aurora, do que o SAIC.36

Simultaneamente à instalação e ampliação das indústrias, ocorreu amodernização do campo e das relações de produção nele desenvolvidas; nessaregião as mudanças ocorreram especialmente na pecuária. Na criação de aves esuínos foi sendo implantado um novo sistema de produção, a integração. Essaforma de produzir está baseada num sistema de “parceria”, na qual o produtordeve participar com a propriedade, as instalações e a mão-de-obra, enquantoque, a agroindústria controla de maneira bastante rígida toda a produção. Estão aseu encargo as produções de pintos ou perus, que após o nascimento serãodistribuídos aos criadores, todas as assistências, a produção de alimentos, efornecimento de medicamentos. Tudo é determinado pela empresa, inclusive omomento em que os animais serão retirados dos aviários e levados para o abate.Estrutura semelhante também é empregada na criação de suínos.

Essa nova forma de produzir foi mudando completamente as relações entreprodutores e indústria: esta passou a determinar o que, como, e quando os produtoresdevem criar. As mudanças começaram com a introdução de uma nova raça desuínos. Foi o grupo Sadia, que trouxe reprodutores e matrizes da raça Duroc Jersy,importados dos EUA. Já na década de 1960, o mesmo grupo, Sadia, introduz asraças européias denominadas Large White e Landrassen37.

Muitos agricultores resistiram em trocar seu antigo modo de produzir. Paraenquadrar todos os produtores dentro dos padrões estabelecidos, foi inventadauma doença chamada peste suína africana. Assim criou-se o pretexto para matartodos os porcos da raça comum e impor a nova raça. Os novos porcos precisaramser produzidos dentro de determinados padrões de higiene e alimentação. Quemnão procedeu como a agroindústria determinou foi sendo eliminado, seus animaisnão foram mais aceitos.

A modernização da agricultura foi sendo implantada em vários setores, entre osquais as pesquisas genéticas, tendo-se desenvolvido variedades de animais maisprodutivos, acompanhado da venda de insumos e produtos industriais quepropiciaram um aumento na produtividade, acompanhado pelos sistemas deextensão rural - encarregado de fiscalizar no campo a aplicação destas novas basestecnológicas.

Dentro dos serviços de extensão rural, foi implantada a Associação de Créditose Assistência Rural do Estado de SC - ACARESC, levando ao campo as modernastecnologias e a organização do trabalho rural de maneira racionalizada.

A estruturação agrícola com a implantação das agroindústrias também forçououtras indústrias a fornecerem produtos industrializados básicos, como rações.De 1966 a 1986, diversas firmas multinacionais instalaram-se no país e ingressaramno mercado, entre elas, estão presentes a Purina e a Cargil, ambas de capital norte-americano.

36 MARCHIORI, Marilene Grando. Entrevista concedida ao autor em 28 nov. 1995.37 CAMPOS, Índio. Os colonos do Rio Uruguai: relações entre a pequena produção e a agroindústriano oeste catarinense. Campina Grande: UFPB, 1987 (Dissertação de Mestrado em Economia).

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Além dessas mudanças que ocorreram no campo, não podemos esquecer ofascínio que a cidade exerce sobre o camponês; para ele alguns elementos docotidiano assalariado são considerados vantajosos, quando, inevitavelmente, fazema comparação com as oportunidades e as “vantagens” que a cidade e o trabalhourbano oferecem, como horário de trabalho fixo, feriados, férias, folgas semanais,o salário no final de cada mês trabalhado. Todos esses elementos fizeram com queocorresse em nossa região um processo intenso de migração para a cidade38.

Essas mudanças que se efetivaram na agropecuária do Oeste de Santa Catarinano final da década de 1960 e início da década de 1970 expandiram-se com rapidezalém daquela esperada pelos planejadores. Paralelamente às mudanças ocorridasno campo a cidade de Chapecó sofreu profundas transformações: crescimentopopulacional, crescimento físico, educacional, aumento das atividades comerciaise de prestação de serviços. Segundo os jornais da época, a “cidade estava emrevolução”.

Mesmo com todo o crescimento, aumentaram dia após dia os contrastes da“cidade das rosas”. Aqueles que desfrutavam apenas os espinhos eram encaradoscomo “um grande mal, um câncer mesmo, uma Biafra em pleno oeste catarinense,capaz de causar vergonha a qualquer ser humano válido”. Essas expressões foramusadas pelo jornal Folha D’Oeste quando, em 7 de fevereiro de 1970, referia-seaos moradores do Bairro São Pedro - bairro pobre da cidade.

Para evitar que as “vergonhas” de Chapecó aparecessem e se multiplicassem,os governantes, clubes de serviço - Lions e Rotary - entre outras instituições religiosase assistenciais conclamava-se a todos que se envolvessem numa cruzada salvadora,que evitasse a multiplicação de pessoas nessas condições e, conseqüentementedesses problemas que, antes de qualquer coisa, serviam para “envergonhar umpovo que progride e se enriquece pelo trabalho”39.

Além da repressão aberta aos “delinqüentes”, outras formas mais sutis dedisciplinarização foram sendo instituídas, principalmente sobre crianças e mulheres.Para as mulheres foi sugerido, em artigo jornalístico, que elas fossem “orientadaspara terem uma tarefa a mais em seu próprio lar”, para que a comunidadechapecoense não presenciasse o que cotidianamente era observado, ou seja,mulheres, a qualquer momento, “em sua roda de amigos, saboreando um bommate e bate papo”40.

Essa situação remete aos escritos de Richard Senett, em O declínio do homempúblico41. Ocorre aqui uma tentativa de privatizar as relações sociais objetivando,inclusive, com tal procedimento, garantir a moralização do “anjo do lar”, imagemde longa duração relativa à figura feminina, tecida na relação direta com o avançoda modernidade capitalista, no final dos oitocentos. O que antes era prática habitualpara as mulheres da região (sentar-se publicamente e saborear seu chimarrão em38 RENK, Arlene. A. Questões sobre a migração urbana e o êxodo rural em Chapecó. Grifos, Chapecó,v. 1, n. 1, jul. 1994, p. 25-38.

39 Folha D’oeste, 07 fev. 1970.40 Correio do Sul, 22 out. 1977.41 SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhiadas Letras, 1998.

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uma roda de amigas, geralmente, em alguma sombra de árvores em frente às casas)passa a ser objeto de disciplinarização na relação direta com a maior privatizaçãoda vida feminina. Ou seja, foi proposto que cada uma se fechasse no espaço deseu lar, evidenciando-se, assim, o declínio das relações em espaços públicos, frutoda modernização capitalista que foi se implementando em Chapecó e região.

Quanto às crianças desocupadas, a disciplinarização deu-se de maneira maisintensa, aberta e organizada, através da implantação da Coordenadoria Regionalda Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor (FUCABEM), em 27 de junhode 1977.

Simultaneamente às medidas disciplinares - relativas àqueles que estavam sendoexcluídos das “maravilhas” geradas pelo crescimento da “cidade das rosas” eameaçavam a paz, a ordem e o sossego - foram sendo criadas formas para atenderàs necessidades daqueles que estavam sendo eleitos para os benefícios do progresso.Mas para poder ser incluído era preciso estar preparado. Para isso foram tomadasvárias medidas, especialmente para a formação de jovens, tais como escolas deensino técnico, ampliação da rede de ensino e criação de uma universidade.

Objetivando suprir as enormes deficiências em mão-de-obra qualificada paraa indústria e o comércio dos tempos de implementação e desenvolvimento industrial,foram instaladas em Chapecó unidades do SENAI, SENAC, SESC e SESI. Taisinstituições foram amplamente incentivadas pelos poderes públicos municipais,em conjunto com os industriais e os comerciantes, obviamente interessados nalucratividade maior que viria, em decorrência da melhor qualificação de seusempregados.

Em 1970, Chapecó e a Região Oeste de Santa Catarina apresentavam umdéficit educacional muito grande, quer em termos de rede física, quer de profissionaishabilitados. Nas poucas escolas existentes, era grande o número de professoresnão-habilitados, principalmente nas escolas rurais. Na cidade, os professores,quando habilitados haviam cursado o Normal:

Nas 120 escolas existentes em Chapecó a nível primário - municipais eestaduais - lecionam 303 professores dos quais 103 são normalistas decurso superior e os restantes dos demais níveis. O ensino médio denosso município apresenta as seguintes características: temos emChapecó nove cursos que funcionam em quatro estabelecimentos, comum total de 1706 alunos matriculados, dos quais 1399 freqüentam oprimeiro ciclo e cursos ginasiais; 307 alunos freqüentam o segundociclo (comercial e cientifico 195 e normal 2o ciclo 112). Em todos oscursos lecionam 100 professores, dos quais 2 com curso técnico, 11diplomados pelas faculdades de Filosofia Ciências e Letras e os restantescom outras graduações.42

A expansão física da rede escolar foi sendo aos poucos e em partes resolvida,como se pode observar no depoimento a seguir:

Eu acho que aqui sempre se tentou, sempre com pressão é claro.Quando uma escola inchava demais, ai começava haver uma pressão,

42 Folha D’oeste, nov. 1970.

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primeiro em nível de escola, e acabava saindo outra escola, às vezes,com um pouco de atraso. Mas eu acho que a questão do espaço físiconão... Não é a pior... Não é o pior problema... Não tem sido o piorproblema. (...) E é claro que aproveitando as escolas a noite o que nãoé o certo, não é o normal pedagogicamente, sempre se fez isso, semprese aproveitou todos os espaços em todos os períodos.43

Muitas vezes, os diretores acabavam camuflando o problema da falta de vagas,oferecendo vagas à noite, ou abrindo turnos intermediários. Alunos que deveriamestar estudando durante o dia eram matriculados no noturno, principalmente nosbairros mais pobres.

Durante esses quase quarenta anos, ocorreu um crescimento muito grande donúmero de estabelecimentos de ensino e do número de alunos matriculados noEnsino Fundamental e especialmente, no Ensino Médio, o que nos anos 1970 erapraticamente inexpressivo. Assim, foram sendo atendidas as exigências empresariaisde ter mão-de-obra melhor qualificada. Mas não se pode deixar de frisar, que nemtodos foram sendo incluídos nesse processo de escolarização. Embora tenhaacontecido um grande movimento de alfabetização de jovens e adultos promovidopela Secretaria Municipal de Educação, durante as duas administrações do Partidodos Trabalhadores entre 1997 e 2004, ainda hoje temos, no município de Chapecó,número significativo de analfabetos.

Se aparentemente as novas relações capitalistas de produção instalaram-se semresistência, não é o que percebemos a partir do final dos anos 1970. Evidentementeque as resistências ocorrem no embalo das mudanças políticas, vividas a nívelnacional. A região Oeste de Santa Catarina e, especialmente, Chapecó, viverammuitas lutas contra as diferentes formas de opressão. A região transformou-se emum “Celeiro de Movimentos Sociais” - expressão comumente usada por diferenteslideranças populares regionais e nacionais. Nessas lutas envolveram-se diferentessetores sociais: religiosos, agricultores, operários, índios, intelectuais.

As resistências foram se construindo e se consolidando com a vinda do BispoDom José Gomes em 1968, quando então a Diocese de Chapecó começou aconstruir “novas” práticas de ação enquanto Igreja. Trabalho inspirado pelo ConcílioVaticano II e dos encontros episcopais de Medellín e Puebla. A Diocese de Chapecóinaugurou uma nova orientação para a linha pastoral de atuação. É a opçãopreferencial pelos pobres.

A partir do final dos anos 1970, muitos agricultores, liderados pelos agentesreligiosos, decidiram que não era mais possível ficar calados com a exploração eopressão que viviam e, coletivamente, começaram a protestar, através de váriosmovimentos sociais que nasciam desses descontentamentos. Entre os muitosmovimentos surgidos nesse contexto, do Oeste Catarinense, pode-se citar oMovimento dos Trabalhadores Sem Terra, o movimento pela tomada dos sindicatosrurais e a constituição de um sindicalismo combativo no campo, o Movimento dasMulheres Agricultoras, O Movimento de Retomada das Terras pelos índios, oMovimento dos Atingidos pelas Barragens.

43 BERTA, Beatriz Malmann. Entrevista concedida ao autor em 28 nov. 1995.

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É importante salientar que até início dos anos 80 os movimentos sociais noBrasil ditatorial estavam sufocados pela repressão. Retornando um pouco no tempo,percebem-se outros fatores, que suscitaram os diversos movimentos sociais noOeste Catarinense. Pode-se dizer que um elemento detonador de todos osmovimentos foi a “Peste Suína Africana”, em 1978:

Na verdade os agricultores não enxergavam nenhum suíno doente e derepente vinha uma determinação e, da noite para o dia, aparecia umatropa militarmente aparelhada para fazer a matança. Vinham inclusivecom retro-escavadeira, abriam uma vala enorme, carregavam os suínosdos chiqueirões, derrubavam nas valas e os soldados, com fuzis iammatando. No interior de Saudades, por exemplo, foram disparados maisde mil tiros de fuzil naquele dia, onde foram fuzilados em torno de milsuínos.44

As evidências da não-existência da doença foram tantas que a população,auxiliada pela Igreja, veterinários e técnicos agrícolas, “descobriu” que a pestesuína nada mais foi do que uma farsa, uma estratégia do governo e dasagroindústrias, para eliminar definitivamente a produção autônoma de suínos naregião; o que causou indignação geral. Em protesto, ocorreu uma grandemanifestação pública, que reuniu mais de 25 mil pessoas no estádio Índio Condá.Os manifestantes seguiram pelas ruas da cidade de Chapecó. Foi a primeira grandemanifestação no fim da década de 1970, ainda na vigência do regime militar. Esteprotesto foi um marco na memória do Oeste Catarinense, o que reforçou edesencadeou o surgimento de quatro importantes movimentos sociais na região.

A partir daí vários movimentos foram se organizando. Em 1984, índios do ToldoChimbangue, em Sede Trentim, distrito do município de Chapecó, organizaram-see expulsaram colonos de suas terras. Foram a Brasília e pressionaram o governopara demarcação de suas terras. Em 1985, começaram a lutar em conjunto comos colonos, exigindo seus direitos. Foram a Florianópolis, fizeram até greve defome. Com Esses movimentos, iniciaram a reconquista da terra, recuperaram asterras desgastadas e reorganizaram as comunidades.

A partir do movimento para retomada das terras do Toldo Chimbangue45, outrosmovimentos pela retomada das terras foram desencadeados. As várias conquistasforam conseguidas na base da pressão, dos acampamentos, ocupações, seqüestrode dirigentes do INCRA. As mais variadas formas foram e estão sendo usadaspelos grupos indígenas para chegar à tão sonhada terra. O que se conquistou atéo momento, não basta. Outros grupos continuam lutando, como estão fazendo osGuaranis, que estão em processo de retomada de suas terras em Araçaí, nosmunicípios de Saudades e Cunha Porã, ambos no Oeste Catarinense.

No distrito de Itaberaba, hoje emancipado, teve início na década de 1980 oMovimento das Mulheres Agricultoras - MMA. Nesse momento inicial, a luta sedava em torno da sindicalização, um espaço até então “reservado” aos homens.Em 1981, reuniram-se em Itaberaba - na época distrito de Chapecó, hoje município

44 Padre, agente de pastoral. POLI, Odilon. Leituras em movimentos sociais. Chapecó: Grifos, 1999,p. 68.

45 Comunidade indígena, localizada no interior de Chapecó.

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- lideranças rurais, padres e políticos ligados ao Partido dos Trabalhadores, com oobjetivo de traçarem planos para conquistar o Sindicato dos Trabalhadores Ruraisde Chapecó, que estava nas mãos dos “pelegos”. Naquela oportunidade poucasmulheres participaram das discussões, pois mal entendiam o que estavaacontecendo. Iniciou assim a “gestação” do MMA, atual Movimento das MulheresCamponesas - MMC.

Era o começo de um novo tempo no campo, onde a mulher poderia assumir opapel principal, deixando de ser sempre a “sombra do marido, a dona de casa”.Com as eleições sindicais de 1986, as lideranças que mais se destacaram nomovimento das mulheres, reunidas em assembléia, discutiram a proposta departicipação no campo sindical, mesmo enfrentando as resistências de algunshomens. Segundo eles, não havia necessidade das mulheres sindicalizarem-se,uma vez que eles já eram sindicalizados - elas buscaram seu espaço, no interior dosindicato46.

Outro movimento que se constituiu na região oeste de Santa Catarina foi oMovimento dos Atingidos por Barragens - MAB. Organizado por agricultores cujasterras seriam atingidas pela construção de barragens, para a produção de energiaelétrica. Em nossa região constitui-se o Movimento dos Atingidos pelas Barragensdo Alto Uruguai - MAB. O projeto Uruguai previa a construção de 25 barragensna Bacia do Rio Uruguai, as quais inundariam, aproximadamente, 25 mil hectaresde terras, atingindo em torno de 40 mil famílias da Região Oeste de Santa Catarinae Alto Uruguai Gaúcho - RS. Quando souberam do projeto, os agricultorescomeçaram a organizar-se e reivindicar. As reivindicações foram modificando-see aprofundando, à medida que o movimento organizava-se e crescia. Inicialmentelutavam pelo pagamento do valor justo pelas suas terras que seriam desapropriadas,num segundo momento, pela troca de terra por terra em locais próximos e,posteriormente, pela não construção das barragens47.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST, também se organizouno Oeste Catarinense. Este, porém, não é próprio da região; ele tem vínculos comoutras regiões, especialmente nos estados do Sul do Brasil. Para sua constituiçãona região foi fundamental o apoio da Igreja Luterana, e Católica - através daconstituição da Comissão Pastoral da Terra -CPT - a partir do final dos anos 1970e início dos anos 1980.

Em 1980, aconteceu a primeira ocupação na região, a da Fazenda Burro Branco,no município de Campo Erê - SC. Essa ocupação teve grande importância naorganização e condução do movimento, que em maio de 1985 desembocounas”Operações Integradas de Ocupações Simultâneas”. Nesse momento, mais deduas mil famílias de sem terras ocuparam, na mesma noite, 13 áreas diferentes48.46 Neste sentido, verificar: BIANCHI, Jaime; ZANINI, Rogério Luiz; PAIM, Elison Antonio. O Movimentodas Mulheres Agricultoras (MMA) no oeste de Santa Catarina. Estudos: Movimentos Sociais,Goiânia, UCG, v. 30, n. 12, 2003, p. 2731-2761.

47 Sobre o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, consultar: UCZAI, Pedro. Movimentodos Atingidos por Barragens: o caso de Itá e Machadinho na Bacia do rio Uruguai. São Paulo: PUC,1992 (Dissertação). POLI, Leituras...

48 Sobre o MST no Oeste Catarinense, consultar: STRAPAZZON, João Paulo Lajus. E o Verbo se fezTerra: movimento dos trabalhadores rurais sem terra (SC) 1980-1990. Chapecó: Grifos, 1998.POLI, Leituras...

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No contexto desses movimentos e lutas sociais, que foram se desenvolvendo noOeste de Santa Catarina, tendo como pólo articulador o município de Chapecó,em 11 de junho de 1981 foi fundado o Partido dos Trabalhadores. Foram ostrabalhadores rurais que impulsionaram o partido; depois vieram os intelectuais emais tarde apareceram timidamente os operários, os quais, com medo daperseguição das empresas foram cautelosos na abertura de seus posicionamentospolíticos. Em 1982, o PT estava na disputa das eleições municipais. O partido foicrescendo e, em 1996, no debate e na disputa das eleições, venceu os preconceitose os mitos atribuídos ao partido e ganhou as eleições municipais tendo, comocandidato a prefeito José Fristch, reeleito em 200049.

Considerações Finais

Ao situar a constituição Histórica da Região Oeste de Santa Catarina e aformação do município de Chapecó, especialmente a partir dos anos 1970, quandofoi se industrializando e exigindo novas demandas por Escolas, Universidade,Escolas de formação de mão-de-obra como o SENAI, o SESI, SENAC e SESC, fuireforçando algumas convicções quanto aos chamados “estudos regionais”, tãodesvalorizado dentro da historiografia brasileira. Convicções estas que reforçam aimportância desses estudos, pois possibilitam a aproximação da História daquelesque a vivem.

Assim, o que se quer é, justamente, destacar as diferenças locais e regionais,mostrando e valorizando não o que é genérico e sim o que é próprio, peculiar decada local, possibilitando virem à tona sujeitos com suas experiências, seus valores,crenças, modo de vida, enfim, com sua cultura.

Outro aspecto que merece destaque, ao estudar-se o regional, é a dimensãotemporal, a qual teria papel decisivo na construção de uma

(...) pedagogia da memória que faça frente aos problemas dedesenraizamento, falta de identidade e pluralidade cultural e rácica quecaracterizam as nossas escolas, a história local pode ter um papeldecisivo na construção de memórias que se poderão inscrever no tempolongo, médio ou curto, favorecendo uma melhor relação dos alunoscom a multiciplidade de duração. Por outro lado, é mais fácil aidentificação, que ajuda a construir uma identidade num espaço ougrupos mais limitados do que em situações especiais ou sociais maislatas que adquirem um caráter cada vez mais abstrato.50

Porém, é preciso ter alguns cuidados para não construir uma visão fragmentadados acontecimentos, impedindo assim “uma visão crítica da existência social,tornando os grupos sociais impotentes diante das desigualdades regionais, pois

49 SORDI, Luiz Carlos. História em movimento: o processo de transformação da educação tradicionalpara a educação popular na proposta político pedagógica da administração de Chapecó. Chapecó:UNOESC, 2000 (Monografia de Especialização em História Regional).

50 MANIQUE, Antonio Pedro & PROENÇA, Maria Cândida. Didactica da história: patrimônio ehistória local. Lisboa: Texto Editora. 1994, p. 21.

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esconde a dominação e os conflitos oriundos das estratégias capitalistas deorganização espacial - espaços homogêneos”51.

51 MACHADO, Ironita. A. P. O currículo de história. In: DIEHL, Astor Antonio (org.). O livro didáticoe o currículo de história em transição.

Passo Fundo: EDIUPF, 1999, p. 13.

RESUMOAs reflexões expressas nesse artigo sãointegrantes de um texto maior “Tempos,espaços, sujeitos” correspondente ao terceirocapítulo da tese “Memórias e experiências dofazer-se professora (a) de História” defendidajunto a Faculdade de Educação da Unicamp.Inicialmente apontam-se alguns referenciaisprocurando definir o que se entende porRegião. Num segundo momento apresenta-se como se constituiu, historicamente, oOeste Catarinense, tomando-se por base osonho da colonização e progresso, bem comoas lutas dos diferentes sujeitos que viveram evivem na região em diferentes momentos.Num terceiro momento pontua-se algumasquestões referentes à cidade de Chapecó, aqual historicamente assumiu-se como cidadepólo econômico, político e cultural para aRegião Oeste de Santa Catarina.Palavras-Chave: Região; Memória; OesteCatarinense.

ABSTRACTThe reflections expressed in this article are apart of a bigger text “Times, spaces, subjects”that correspond to the third chapter of thethesis “Memories and Experiences to Makingof the History Teacher” defended with theUNICAMP Education Faculty. First I pointsome references trying to define what isunderstandable by Region. In a second timeI present how the Catarinense West washistoric constitute, having as a base the dreamof colonization and progress, as the fights ofthe different subjects that lived and live in theregion in different moments. In a third momentI point some questions about the Chapecótown, which assume itself historic as theeconomic, politic and cultural pole for theSanta Catarina West Region.Keywords: Region; Memory; SantaCatarina’s West.

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ESTADO E QUESTÃO REGIONAL:POR UMA ECONOMIA POLÍTICA DA REGIÃO

Flávio Lúcio R. Vieira1

Introdução

Um dos temas que tem se mostrado bastante controverso no âmbito das ciênciashumanas e sociais é a questão regional. Não apenas pela permanente dificuldadeem definir o que seja região - conceito polissêmico que remete, necessariamente, arecortes espaciais e territoriais - mas, especialmente, pelos seus usos políticos cujautilização, por razões óbvias, é privilégio do Estado no domínio do planejamento eda organização econômica do território. Talvez seja exatamente por esse últimoaspecto que a questão regional tem tido nos últimos anos tão pouco espaço nas“agendas” acadêmicas das nossas graduações e pós-graduações, especialmentenordestinas e, por extensão, nas revistas e nos encontros científicos, de História,disciplina que, pelo menos até os anos 1980, teve na questão regional um dos seustemas-chave. Isso se deve, em grande medida, ao amplo afastamento das ciênciashumanas e sociais, e da história, em particular, não só dos grandes temas daEconomia Política, mas de todo e qualquer objeto que possa ser identificado comuma noção global de história. Isso, mais do que qualquer outro aspecto, é expressãoda avassaladora hegemonia acadêmica pós-modernista e do desdém dessa corrente- seja por puro preconceito seja por ignorância mesmo - a temas que, no caso daHistória, vem se tornando inexplicavelmente, domínio exclusivo da históriaeconômica. Esta parece que se torna cada vez mais um campo à parte sem lugarna “História”.

A nova geração de historiadores, hoje, parece só demonstrar interesse pelafluidez das temporalidades singulares e pelos micro-espaços. Os recortes que ostranscendem se conformam arbitrários porque não existiriam no mundo real semas articulações criadas pela mente, sendo, portanto, mera criação intelectual. Alémdisso, reconhecer como verdadeiro um conceito seria aceitar que existem essênciaspara além do amontoado discursivo que parece demonstrar a irracionalidade eincognoscibilidade do mundo histórico e social. É no rastro desse tipo de apreciaçãoteórico-metodológica que o conceito de região perde suas fundações ontológicas ese esfuma como categoria analítica. Em suma, como definiu Durval Muniz no seuA invenção do Nordeste, a região se tornou mero “produto de uma operação dehomogeneização”, sendo exclusivamente apropriação intelectual e instrumento deluta dos grupos dominantes de em um determinado espaço regional com grupos de“outras” regiões (“A região é produto de uma batalha, é uma segmentação surgidano espaço dos litigantes”)2. Negando historicidade às regiões, a não ser no domíniorestrito à produção e reprodução dos discursos, Muniz procura deixar órfãos todosaqueles que escolheram a região como objeto de estudo. Mas, a história (com “h”minúsculo) é o juiz que julga toda e qualquer querela acadêmica.1 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Departamento edo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

2 ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: FJN/Massangana; São Paulo: Cortez, 1999.

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Entretanto, mesmo com esse golpe que se pretendia mortal, a região continua acobrar de nós, historiadores, análises, definições, estudos, pesquisas. E o motivo éque, especialmente em espaços como o Brasil e o Nordeste, a desigualdade nãovai ser abolida porque a afirmaram como invenção. Porque, mesmo que a maioriadessa nova geração de historiadores não aprecie economia, mesmo que continuea preferir a turbulenta historiografia empiricista do cotidiano e das histórias culturais- onde o mundo aparece tão fulgurante e cheio de vida -, às insossas leituras queprocuram construir o amplo quadro do desenvolvimento econômico e social dahumanidade, a questão levantada pelo historiador liberal inglês David Landes(“porque algumas nações são tão ricas e outras tão pobres”) continua teimosamentea nos cobrar respostas. Façamos aqui um esforço para adaptar a questão de Landesà nossa discussão: porque, no Brasil, algumas regiões são tão ricas e outras são tãopobres? Ou ainda: porque, no interior dessas regiões, existem tantos pobres e tãopoucos ricos? Eis que a região deixa de ser apenas conceito e se torna realidadepalpável.

As questões que nos movem nesse artigo são: qual a historicidade do conceitode região e da emergência da questão regional? Quais são seus vínculos com oEstado e com desenvolvimento econômico? No Brasil, analisando o caso doNordeste, quais as determinações históricas e sociais que presidiram o nascimentoda questão regional? Neste artigo, vamos procurar responde a essas questões. Antes,porém, discutiremos os dois problemas apontados acima para o estudo da HistóriaRegional: o conceito de região e as relações entre região e história.

Região e questão regional

A palavra região, do latim regione, era utilizada no Império Romano para designarespaços que, mesmo dotados de administração de local, estavam subordinadosao poder central estabelecido em Roma. Como chama atenção Paulo César daCosta Gomes3, o advento da idéia de região está associada ao processo decentralização política e do poder de um espaço dominante sobre outros, claramentediversos social, cultural e espacialmente. As conquistas, a anexação e a conversãoem províncias de amplos territórios ao Império Romano permitiram oestabelecimento de uma divisão de trabalho que assegurou a Roma não só alimentospara abastecê-la, mas riqueza que continuou a financiar sua expansão. Segundo ahistoriadora Anne Bernet4, principalmente tendo vista suas necessidades deestabilidade política interna - era estratégico alimentar a população romana e aslegiões de combatentes, - Roma forçou as províncias a produzir alimentos in natura(trigo, principalmente), alimentos manufaturados (azeite, vinho, salsichas, salames),matérias-primas (madeira, alcatrão, metais, mármore), carnes (cabritos, galinhasd’Angola, pavões, peixes, escargots), frutas e legumes (romãs, melões, ameixas,damascos) e uma grande quantidade de produtos. O acesso a essas iguarias,principalmente para os mais abastados, transformou radicalmente os hábitosalimentares dos romanos, o que ajudou a consolidar e mesmo ampliar as relações

3 GOMES, Paulo C. da C. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO, Iná E.; GOMES, PauloC.; CORRÊA, Roberto L. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 49-76.

4 BERNET, Anne. Roma: uma superpotência em ação. História Viva, São Paulo, Vera Cruz Editora,ano I, n. 2, dez. 2002, p. 58-70.

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comerciais de Roma com suas regiões. Mesmo com a relativa autonomia dada àssuas províncias, que dispunham de administrações locais, Roma não apenasexerceu rigoroso controle da cobrança e arrecadação de impostos, que poderiamser pagos com produtos, como forçou suas províncias a um “dirigismo agrícola”,o que gerava um tipo de organização espacial cujo objetivo era garantir a expansãoda hegemonia romana.

A noção de região na antiguidade remetia, portanto, à diferenciações sócio-espaciais estabelecidas entre um centro hegemônico e um conjunto de espaçosque podem ser considerados, aos olhos de hoje, a sua periferia. Seria o queImmanuel Wallerstein5 chama de world-empire, cuja existência estaria associadaà uma divisão de trabalho determinada por um único império político. ParaWallerstein, o sistema-mundo moderno distingue-se do sistema-mundo romanoexatamente porque a relação básica se dá entre estruturas estatais distintas esoberanas, e não sob o domínio de um único Estado que determinava uma únicae abrangente divisão de trabalho.

Não entraremos nesse debate sobre a conformação de sistemas históricos pré-modernos ou modernos6. Interessa-nos aqui indicar os aspectos diferenciadores e,portanto, históricos, do aparecimento das regiões e suas particularidades sob ocapitalismo. Ao iniciarmos a discussão pela origem da palavra região, vislumbramosapontar o sentido particular que a região assume no capitalismo, chamando atençãopara o fato de que é a objetividade de determinada condição histórica e sua cadeiade relações que fornecem sentido específico aos conceitos. Não haveria comoentender o conceito de região sem compreendermos, por exemplo, suas relaçõescom o Estado e a nação, e seus desdobramentos, só para ficarmos nos exemplosque aqui nos interessam, na organização territorial e na articulação dos espaços edos seus mercados.

Contemporaneamente, o conceito de região só é inteligível se visto no interior ena relação com outra categoria essencial, que é nação. Associada à instituiçãopolítica que lhe dá sentido e forma, isto é, territorialidade, que é o Estado. Estasduas instituições compuseram, do século XIX em diante, uma quase indissolúvelassociação, ao ponto de se fusionarem em uma única categoria histórica: o Estado-nação, sujeito principal das relações internacionais no século XX, cuja importânciae centralidade está sendo posta em dúvida pelos apologéticos da globalização7.

Um significativo exemplo dessas diferenças entre a idéia de região da antiguidaderomana e moderna pode ser buscado no caso da Itália. Após as invasões bárbarasque puseram fim à Antiguidade, a própria península italiana perdeu a unidadepolítica de antes da dominação romana. Durante os séculos seguintes, a Penínsulaitaliana viu-se diante de uma fragmentação cuja forma mais visível será a da cidade-Estado, que se erguerão contra o domínio dos senhores de terra. No entanto e

5 WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system: capitalist agriculture and the origins of theEuropean world-economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1976.

6 Para uma discussão do conceito de sistema-mundo ver Wallerstein e artigo de Christopher Chase-Dun e Thomas D. Hall. CHASE-Dun, Christopher & HALL, Thomas D. Comparng worls-systems:concepts and working hypotheses. Social Forces, v. 72, n. 1, set. 1993.

7 OHMAE, Kenish. O fim do Estado-Nacão: a ascensão das economias regionais. São Paulo: Campus,1996.

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apesar da pujança financeira e mercantil dessas cidades (Gênova, Florença eVeneza, principalmente), que alcançará o auge durante o século XV, elas nãoimpedirão as invasões e o controle de nações estrangeiras sobre o atual territórioitaliano. Fragilizada pela ausência de centralização política e rivalidade entre suascidades-Estados, a península italiana ficará a mercê da dominação estrangeira,cuja presença marcou a história italiana até a unificação e que compõe uma dasprincipais preocupações, por exemplo, de Maquiavel na sua obra mais famosasobre a necessidade de unificar o poder político em torno de um único príncipe,especialmente no seu último capítulo que tem como título “Exortação para procurartomar a Itália e libertá-la das mãos dos bárbaros”8.

Esses acontecimentos determinarão a constituição de profundas diferenças entreo norte e o sul da Itália. Assim as descreve Gramsci:

A nova Itália encontrara em condições absolutamente antitéticas osdois troncos da península, meridional e setentrional, que se reuniamdepois de mais de mil anos. A invasão longobarda romperadefinitivamente a unidade criada por Roma; no Norte, as Comunashaviam dado um impulso especial à história, enquanto no Sul o reinodos Svevo, dos Angiò, da Espanha e dos Bourbons lhe deram um outroimpulso. Em uma parte, a tradição de uma certa autonomia criara umaburguesia audaz e cheia de iniciativas; e existia uma organizaçãoeconômica similar a dos outros Estados da Europa, propícia ao ulteriordesenvolvimento do capitalismo e da indústria. Na outra, asadministrações paternalistas da Espanha e dos Bourbons nada criara: aburguesia não existia, a agricultura era primitiva e não era sequersuficiente para abastecer o mercado local; não havia estradas, nemportos, nem utilização das poucas águas que a região, pela sua especialconformação geológica, possuía.9

Para Gramsci, as diferenças regionais italianas exprimem uma forma de comoo capital articula os diferentes modos de produção no interior do território edetermina as alianças entre as respectivas classes hegemônicas, tanto no espaçonacional (a burguesia industrial do norte) quanto no regional (os grandesproprietários de terra do sul). Essa aliança que se deu forma ao Risorgimento epromove a unificação italiana em torno no Reino do Piemonte, onde se localizavaa cidade industrial de Turim. O Risorgimento dá origem e conduz à unificaçãoitaliana, que se realiza não pela via de uma revolução popular, especialmente doscamponeses do Sul, mas por uma “revolução sem revolução” ou uma “revoluçãopassiva”, em que a aristocracia sulista aceita a hegemonia da burguesia nortistapara manter inalterada a estrutura fundiária e o domínio político sobre a região.Com Gramsci, a questão regional ganha um sentido que transcende o econômicoe o espacial - eles estão ali contidos -, e se fixa nas relações políticas entre asclasses e nas formas que assume o processo de modernização burguesa. Questãoessencial para o entendimento de que os recortes espaciais e regionais dentro doterritório e sua apropriação, no capitalismo maduro, são feitos pelas classes que

8 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2001.9 GRAMSCI, A. A questão meridional. Rio. Paz e Terra, 1987, p. 62.

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disputam a hegemonia do desenvolvimento capitalista no âmbito nacional.As diferenças regionais que passam a só ser reconhecidas como um problema

no capitalismo não são obras do acaso. A sua produção e reprodução por séculostornou-se insustentável com o advento do capitalismo industrial, que necessita damaior homogeneidade (social e econômica) possível para reproduzir-se. Após aunificação de 1870, que se completou quando, finalmente, a Igreja Católica aceitoua autoridade do Estado italiano, circunscrevendo a sua ao “território” do Vaticano,o desafio da homogeneidade converteu-se em um dos principais desafios do Estadoitaliano. Assim, a existência de regiões na Itália, mais do que diferenças espaciais,expressava a oposição entre formações sociais historicamente distintas. Podemosresumir essas diferenças regionais sintetizando-as numa oposição entre um norteindustrial e sul agrário (il Mezzogiorno10) e são determinadas pelos vínculos queesses espaços tinham com o mercado mundial na segunda metade do século XIX:o sul da Itália exportava principalmente força de trabalho, o que demonstrava oalto grau de desagregação social produzida pelos vínculos internos e externos daregião com o mercado capitalista nacional e mundial, enquanto o Norte seindustrializava assentando as bases de sua acumulação no mercado interno. Porisso, a idéia não é separar e sim integrar a região às formas de reprodução docapital ditadas pela burguesia nortista. A via para isso, como sempre, foi o Estado.

Fica explícito que o conflito se dá no campo aberto da luta entre as antigasclasses dominantes - rurais - e a classes modernas - urbanas, burguesas e industriais.É uma luta pela hegemonia política e, portanto, pelo controle do Estado e pelasformas que o desenvolvimento capitalista assumirá. E o resultado foi, como sempre,a subordinação da economia agrária (e suas classes proprietárias) à economiaindustrial (e às suas classes proprietárias), o que possibilita a superação dos entravespara a unificação do mercado nacional e da homogeneização das relações deprodução capitalistas. Com o fim do fascismo, surge um novo bloco histórico e aquestão meridional ganha uma nova dimensão, especialmente com a liquidaçãodo latifúndio e o processo de modernização11.

Em função do foi exposto até aqui, podemos afirmar que a região é, portanto,anterior à questão regional. A questão regional aparece como problema no séculoXX, pois ela é filha do reconhecimento de que as desigualdades regionaisrepresentam entraves para o desenvolvimento capitalista, especialmente nos paísesde capitalismo tardio. Os empecilhos causados pelo aumento incessante dessasdesigualdades no interior desses espaços nacionais, gera contradições internas

10 Na descrição de David Landes: “A unificação italiana (1870) trouxe poucas mudanças à anteriordivisão do trabalho e da riqueza. O norte, especialmente a Lombardia e o Piemonte, combinavamatividades agrícolas e industriais, terras aluviais e planícies. O sul (il mezzogiorno, a terra do meiodia) continuava sendo uma terra selvática e de difícil cultivo, que se estende por estéreis altiplanose vastos latifúndios. Camponeses analfabetos, em sua maioria ‘boias-frias’ e agricultores sem terrasubmetiam-se à vontade e a acatavam as ordens dos notáveis locais - velhos e novos ricos, quecultivavam o orgulho (‘respeito’) e um estilo de vida que lembrava o Ancien Régime. A maiorexportação do Mezzogiono era gente: emigrantes para o Novo Mundo, especialmente para osEstados Unidos e a Argentina, e depois da Segunda Guerra Mundial para a metade setentrional dopaís”. LANDES, David. A riqueza e a pobreza das nações. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

11 GRAMSCI, A questão meridional. Ver introdução de Franco de Felice e Valentino Parlato,especialmente p. 55 e seguintes.

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insolúveis para uma reprodução mais homogênea do capital nesses espaços. Essascontradições se apresentam na forma do confronto de classes, representativas desetores que se opõem no e em relação às formas do desenvolvimento capitalista.As classes herdeiras de uma antiga estrutura econômica baseada no controle daterra e no predomínio da economia agrária, e as novas classes urbanas,hegemonizadas pelos capitalistas industriais, interessadas no desenvolvimento derelações sociais modernas, baseadas no assalariamento e no crescimento domercado interno12. Assim, a homogeneização espacial nos países industrializadostorna-se um passo essencial sem o qual o desenvolvimento capitalista configura-seum processo incompleto e incapacita o país para atuar como sujeito nas disputaspelo mercado mundial. E, nesse sentido, é correto afirmar que uma das diferençasmais importantes entre países ricos e pobres é o seu o grau de homogeneidadeinterna. Se, nos países ricos, não há grandes diferenças sociais e regionais, nospaíses pobres essa é uma das principais características que marcam essassociedades. E se os países ricos lograram superar tais abismos internos, esse seconverteu em um dos principais desafios dos países pobres que buscaram seindustrializar no século XX e romper com a condição de economias agrário-exportadora, como foi o caso do Brasil.

Região e nação e desenvolvimento econômico

Nos colocamos diante de uma outra questão relevante e que está intimamenteassociada à questão regional: desenvolvimento econômico. Tema basilar no âmbitodos debates acadêmicos desde a fundação da ciência econômica, ainda no séculoXVIII, preocupação política de várias gerações de economistas e políticos e, noséculo XX, de especialistas em planejamento econômico, o desenvolvimentoeconômico é outra noção que não pode ser separada do Estado, por mais que osliberais continuem a afirmar a autonomia do mercado frente a este. Neste sentido,como se esforça por demonstrar Karl Polanyi em seu clássico estudo sobre o colapsoda sociedade liberal de antes da Segunda Guerra Mundial, o Estado liberal “foiuma criação do mercado auto-regulável”13, isto é, daqueles que defendiam essaideologia, o que, em outras palavras, significa dizer que o Estado liberal foi e éuma criação social, mais precisamente civilizacional, do que Pollanyi chama decivilização liberal. Tal ordem social não poderia ter sido construída sem umainstituição que lhe desse legitimidade e a pusesse em funcionamento. Um mundo12 Nos EUA, o conflito assumiu a forma da guerra civil entre o sul agrícola, aristocrático, escravista eo norte industrial, burguês e de trabalho livre, o mais aberto confronto em que a natureza dasdesigualdades regionais foi o motivo principal do conflito. Na Alemanha e no Japão, o “consenso”se deu na forma do acordo entre as classes em conflito. Na Alemanha, em 1848 - quando as antigasclasses trocaram o “direito” de governar pelo de ganhar dinheiro - na unificação do Estado prussianoe na adesão dos junkers à proteção ao mercado interno, quando ameaçados pela concorrênciaexterna devido à depressão dos preços dos grãos no mercado externo, e na liberação da mão-de-obra camponesa, reduzida anteriormente à condição servil, para ampliação do exército de reservaurbano. As condições institucionais da hegemonia burguesa prepararam o salto industrial nacionalda Alemanha no século XIX e transformaram este país no espaço nacional mais homogêneo entreos países desenvolvidos. No Japão, a Revolução Meiji, em 1868, representou o fim do domíniodas classes ainda fortemente vinculada a uma tradição feudal e possibilitou a ascensão ao poderdas classes modenizantes burguesas.

13 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro:Campus,2000, p. 17.

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fundado no conflito, ou em ações para maximizar os interesses individuais se umainstituição que organizasse esse mundão, não se auto-regularia, se auto-destruiria.Ou seja, não haveria capitalismo sem Estado.

José Luiz Fiori também acentua esse aspecto:

Essa presença constante, porém descontínua, do Estado deve ser revistaà luz dos cursos históricos da reprodução e acumulação, de modo aconferir-lhe algum significado teórico ou permitir-lhe lastrear uma análisecomparativa. Tal visada exigiria uma correta reconstrução dosmovimentos e conflitos que tornaram a presença estatal umanecessidade e a ‘naturalizaram’ sob a categoria ‘funções’ do Estado (...)O Estado foi e é, em cada momento e contexto, co-produtor danecessidade, e portanto da função que ele acaba ocupando, tal comose fosse um ‘agente reativo’ bem-comportado.14

Pois bem, mesmo que o objetivo dos liberais, a começar por Adam Smith, tenhasido desde o início viabilizar o desenvolvimento econômico, através do aumentoincessante da produtividade, do incremento tecnológico e do crescimento da rendanacional (do trabalho e do capital), ele não se viabilizou sem que fossem satisfeitasalgumas mudanças institucionais realizadas pelo Estado, inclusive no domínioespacial, na relação campo-cidade, por exemplo. Não é preciso dizer que estamostratando aqui dos pressupostos do desenvolvimento em uma economia industriale, portanto, da subordinação do setor agrícola ao industrial, que implicafornecimento de força de trabalho e transferência de renda do primeiro para osegundo, fatores essenciais para a criação e ampliação do mercado interno. Isso ésignificativo porque, nas suas origens, como procuramos deixar claro logo acima,a questão regional se expressa numa oposição entre um setor agrário pré-capitalistae um setor urbano-industrial. Ou, como diz Lênin: “o capitalismo seria inimaginávelsem o crescimento da população industrial e comercial às expensas da populaçãoagrícola”15.

Na sua análise sobre O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, Lênin discutea formação do mercado interno para a indústria através do processo dedesintegração do campesinato com a sua “liberação” - isto é, sua conversão emtrabalhador livre -, e a separação entre a agricultura e a indústria, dando origem auma economia mercantil. Esse fenômeno é comum a todas as formações sociaisque transitam para o capitalismo. A especificidade do desenvolvimento docapitalismo na Rússia, e isso se reproduziu em todas as economias periféricas noséculo XX, é que ele se dá de maneira a concentrar a atividade industrial - e portantoa maior parte da produção da riqueza -, especialmente nas grandes cidades, nocaso da Rússia, em Moscou e São Petersburgo, bem como por unidade fabril,criando grandes desigualdades entre empresas e regiões16. Segundo Fernandes, o

14 FIORI, Jose Luis. Estados, moedas e desenvolvimento. In: ________. Estados e moedas nodesenvolvimento das nações. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 46-86.

15 LÊNIN, V. I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 15.16 FERNANDES, Luis. Rússia: do capitalismo tardio ao socialismo real. In: FIORI, Jose Luis. Estadose moedas no desenvolvimento das nações, p. 251-283.

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nível de concentração industrial na Rússia era tal que, em 1914, “as empresas commais de mil operários ocupavam 17,8% do efetivo total de operários na indústriados Estados Unidos, ao passo que na Rússia essa cifra chegava a 41% (nas principaisregiões industriais ela era ainda mais elevada: 44,4% em São Petersburgo e 57,3%em Moscou)”. Em síntese, tem-se aqui um esboço do que ficou conhecido comodesenvolvimento desigual, teoria fundamental com a qual os marxistas, mas nãosó eles, abordarão a questão do desenvolvimento, tanto na escala nacional quantomundial. Nos termos marxistas, essa questão remete, desde logo, a uma divisãointernacional do trabalho comandada pelos Estados e economias desenvolvidas e,no âmbito nacional, a uma divisão inter-regional do trabalho.

Se em Lênin, a análise recai sobre as particularidades do desenvolvimento domercado interno na Rússia, deixando de lado, como ele mesmo reconhece, a análisedo mercado externo e do comércio exterior17, com Trotsky, que desenvolve a teoriado desenvolvimento desigual e combinado18, o desenvolvimento do capitalismo naRússia e a forma que ele adquiriu foi ditada pelos influxos e mesmo pressõesexternas. Os impulsos do desenvolvimento do capitalismo russo tinham comoobstáculo uma estrutura econômica e social “atrasada”, mas, por si só não, nãoimpediram que o desenvolvimento industrial acontecesse, exatamente porque esseatraso limitava a capacidade do Czarismo de resistir às pressões das grandespotências. Assim, a Rússia segue o modelo de modernização das nações que, nasegunda metade do século XIX transitaram para o capitalismo industrial “peloalto”19, isto é, pela via do Estado. Trotsky ressalta ainda o papel decisivo que exerceuo Estado no desenvolvimento do capitalismo na Rússia:

Assim foi impulsionado o Estado russo, construído sobre a base daeconomia russa, pela pressão amistosa e, mais ainda, pela pressão rivaldas organizações estatais vizinhas que se haviam formado sobre uma

17 LÊNIN, O desenvolvimento do capitalismo..., p. 5.18 Segundo Trotsky, “O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, nãose nos revela, em parte alguma, com a evidência e a complexidade com que a demonstra o destinodos países atrasados. Castigados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasadosvêm-se obrigados a avançar a saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura sederiva outra que, a falta de nome mais adequado, qualificaremos de lei de desenvolvimentocombinado, aludindo a aproximação das distintas etapas do caminho e a confusão de distintasfases, amalgamadas de formas arcaicas e modernas. Sem se valer desta lei, enfocada, naturalmente,na integridade de seu conteúdo material, seria impossível compreender a historia da Rússia nema de nenhum outro país de avance cultural atrasado, qualquer que seja o seu grau”. TROTSKY,Leon. Historia de la revolución rusa. Edição eletrônica. Disponível em: <http://www.librodot.com>.Acesso em: 01 mai. 2006.

19 O termo via prussiana foi cunhado por Lênin para designar o que Gramsci, anos depois, chamoude “revolução passiva” e alguns sociólogos mais recentemente, a exemplo de Barrington Moore,chamam de modernização conservadora, processo de implantação do capitalismo industrial e dereformas no Estado e na sociedade sem as convulsões sociais do modelo revolucionário francês,e jacobino em particular. Tal processo teve base uma aliança da burguesia industrial com a aristocraciarural, por dentro do Estado e, no caso da Rússia, foi conduzida pela monarquia absolutista czarista.LÊNIN, V. I. O programa agrário da social democracia na primeira Revolução Russa de 1905-1907.São Paulo: Ciências Humanas, 1980; MOORE, Barrington. As origens sociais da ditadura e dademocracia. senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes,1996.

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base econômica mais desenvolvida. A partir de um momentodeterminado - em especial desde finais do século XVII - o Estado aspirouacelerar artificialmente com um imenso esforço, o desenvolvimentoeconômico natural. Novos ramos de ofícios, máquinas e indústrias,produção em grande escala e capital parecem, por assim dizer, servircomo enxertos no tronco econômico natural. O capitalismo aparececomo um filho do Estado”.20

Nesse sentido, foi o ingresso de capitais europeus, franceses e inglesesprincipalmente21, que viabilizou o “salto” de desenvolvimento do russo, queimandoas etapas que, em alguns países europeus, a exemplo da Alemanha, se tornaramrigorosamente necessárias. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado deLênin e Trotsky pretende, portanto, contribuir para o entendimento das contradiçõesinternas de cada nação que transita tardiamente para a modernização capitalista,contradições estas engendradas pela forma acelerada que ela adquire quandoimpulsionada por suas relações externas (dependentes) com as nações onde ogrande capital tem capacidade expansionista. Diferentemente da Rússia e de outrospaíses (a exemplo do Brasil, como veremos), na Alemanha e no Japão22, paísesque também alcançaram o desenvolvimento capitalista na segunda metade doséculo XIX, o processo foi endógeno, ou seja, os impulsos para o desenvolvimentose originaram exclusivamente no interior da nação através de um acordo paragerar uma base industrial nacional. O resultado final foi o de promover oaburguesamento das antigas aristocracias agrárias e o controle rigoroso do Estadosobre o desenvolvimento do mercado interno. Em síntese, as relações econômicasexternas ficaram subordinadas ao objetivo de tornar essas nações protagonistas, enão subordinadas, nas disputas do mercado mundial capitalista. Nesses casos,Japão e Alemanha saltaram “etapas”, num esforço que as fez ingressar diretamentena fase imperialista do capitalismo mundial.

A teoria do desenvolvimento desigual e combinado, assim, se constitui de umadequado instrumental teórico para entendermos as diferenciações produzidas pelodesenvolvimento do mercado mundial capitalista e, especialmente, como é o nossocaso, no interior de cada nação. Ela explica como o desenvolvimento capitalistanão é um processo homogêneo: ao mesmo tempo em que promove a industrializaçãoe tudo que lhe é decorrente, gera desigualdades no interior da economia nacional,entre as classes e mesmo entre os setores e intra-setores. E uma das formas deexpressão mais visível dessas desigualdades é a regional.

No caso dos países industrializados, essas desigualdades regionais foramenfrentadas pela intervenção direta do Estado, pela “ação regional”. Como jáafirmamos acima, uma das características das economias e das sociedades dos

20 TROTSKY, Leon. Balance y perspectivas. Edição eletrônica. Disponível em: <http://www.marxists.org/espanol/trotsky/balance/byp1.htm#uno>. Acesso em: 01 mai. 2006.

21 Não custa lembrar que a Rússia foi derrotada na Guerra da Criméia (1854-1855) por umacoalizão que envolvia Inglaterra e França em apoio à Turquia.

22 Para um estudo dessas experiências, ver BRAGA, José Carlos de S. Alemanha: império, barbáriee capitalismo avançado. In: FIORI, Estados e moedas..., p. 191-222; e TORRES FILHO, ErnaniTeixeira. Japão: da industrialização tardia à globalização financeira. In: FIORI, Estados e moedas...,p. 223-251.

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países desenvolvidos é um maior nível de homogeneidade social e espacial, o que,obviamente, não anula as desigualdades neles existentes, que são próprias docapitalismo. A busca de uma maior homogeneidade social e espacial exprime umanecessidade do próprio capital de reproduzir-se em escala nacional. No entanto,essa abrangência nacional não é uma característica em si do capital. Como suatendência é a da concentração, isso também se verifica em temos espaciais. Porisso, o processo de homogeneização não pode ser feito sem o Estado através daorganização do território e da “ação regional”, cuja função é “zelar para que nãoapareçam distorções muito graves no seu território”23.

Os casos do Mezzogiorno, na Itália, e do Vale do Tennessee, nos EUA,converteram-se em modelos de ação regional em países desenvolvidos e exemplosde políticas de desenvolvimento regional para países subdesenvolvidos. Em 1933,o governo dos EUA criou a TVA (Authority Tennessee Valley), a primeira experiênciade planejamento regional no mundo capitalista cujo objetivo exclusivo era induziro desenvolvimento de umas das regiões economicamente menos desenvolvidasdos Estados Unidos. A TVA foi criada para ampliar as condições de navegação eestimular o transporte fluvial no Rio Tennessee, além de controlar suas inundaçõesatravés da construção de represas, evitando com isso os imensos prejuízos causadosquando de suas ocorrências, e, principalmente, gerar e distribuir eletricidade paraser vendida a baixo custo à população regional, principalmente a de origem rural.A jurisdição da TVA, além de incluir todo o estado do Tennessee, atua sobre partesdo Kentucky, Virgínia, Carolina do Norte, Geórgia, Alabama e Mississipi, estadosbanhados pelo Rio Tennessee e seus afluentes24.

Incluída entre as ações do New Deal, a criação TVA tinha como objetivo maisimediato combater o desemprego e melhorar as condições de vida de umapopulação ainda majoritariamente de origem rural pesadamente atingida pelaGrande Depressão pós-1929. A criação da TVA demonstra, antes de tudo - e issoé particularmente relevante para compreendermos a criação da Sudene, no Brasil,56 anos depois -, a crescente consciência que enxerga no “planejamento regionale nacional o fato de que muitos dos problemas do Vale de Tennessee não poderiamser resolvidos pelos Estados individualmente”25. O fato é que, pouco mais de umadécada após a criação e o início das ações da TVA, a região do Vale do Tennesseejá era a maior produtora de energia elétrica dos Estados Unidos. Mais ainda. Aregião já experimentava uma visível transformação, que pode ser resumida naspalavras que Le Corbusier proferiu quando da sua visita aos EUA, em 1946: “Oresultado final [da ação da TVA]: um território tão grande quanto a França foi tiradodo domínio da erosão que, com uma velocidade aterradora, estava tornandoimprestáveis grandes extensões de terra cultivável. Agora, a vida vencia e recuperavaa força da terra, executando nisto uma das maiores sínteses de organização

23 LIPIETZ, A. O capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1988, p. 15824 TVA. From the New Deal to a new century. Disponível em: <http://www.tva.gov/abouttva/history.htm>. Acesso em: 13 mai. 2006.

25 TVA. Tennessee: a guide to the state. Disponível em: <http://newdeal.feri.org/search_details.cfm?link=http://newdeal.feri.org/guides/tnguide/ch09.htm>. Acesso em: 13 mai.2006.

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moderna”26.No caso do Mezzogiono italiano, as ações mais efetivas objetivando diminuir

as desigualdades regionais aconteceram depois da Segunda Guerra Mundial apósa criação do Fundo de Desenvolvimento do Sul (Cassa per il Mezzogiorno), cujopapel foi financiar a ação regional do Estado na Itália nas suas várias instâncias.Assim, por exemplo, foi criada a Associação para o Desenvolvimento da Indústriano Mezzogiorno, um instituto de pesquisa regional para orientar as ações da Cassa,além de recursos para financiar as ações de desenvolvimento regional, centradasno esforço de modernizar a agricultura do Sul italiano27.

Como nota Crocco, nos primeiros anos de atuação do Estado no Sul na Itália,a atividade industrial não compôs o centro da estratégia de desenvolvimentoregional. Buscava-se que, por si só, o estímulo à modernização da agricultura, àoferta de crédito e à criação de infra-estrutura fosse gerado um estímulo aoinvestimento industrial espontâneo endógeno, com origem no próprio mercado daregião. No entanto, esse objetivo não foi alcançado e, a partir de 1957, a Cassaamplia seu poder de intervenção e ocorre uma reorientação estratégica voltadapara estimular a industrialização, através da ampliação do investimento dasempresas estatais, isenção fiscal - “desde que os lucros fossem reinvestidos naprópria região” -, subsídios para investimentos em capital fixo, diminuição dastaxas de juros para investimentos na região28. Essa estratégia resulta, 20 anosdepois, numa mudança significativa da participação da indústria na economia doMezzogiorno: a agricultura, que tinha uma participação relativa nos gastos daCassa de 63% até 1955, cai para 14,1% 25 anos depois. No sentido oposto, osgastos com as atividades industriais por parte do Estado, que em 1955 eram zero,em 1975 chegam a 40%. As conseqüências dessa política resultam na diminuiçãodas desigualdades entre o Norte e Sul da Itália. No entanto, a riqueza ainda semantém fortemente concentrada no Norte, se constituindo a Itália, o mais desigualentre os países desenvolvidos29.

Essas duas experiências de planejamento e desenvolvimento regional relatadasacima são relevantes para o entendimento da questão regional nordestina, no Brasil,já que tanto a Tennessee Vale Authority e a Cassa per il Mezzogiorno exerceramgrande influência sobre Celso Furtado e suas elaborações para a ação regional doEstado brasileiro no processo de criação da Sudene e, especialmente no casoitaliano, demonstrará que, no processo de acumulação de capitais na região, oEstado deve cumprir papel determinante, bem como os capitais de fora da região.

26 TVA. A reign of harmony. Disponível em: <http://www.tva.gov/heritage/corbusier/index.htm>.Acesso em: 14 mai. 2006.

27 CROCCO, Marco. Desenvolvimento regional na Itália no século XX. Belo Horizonte: FACE/CEDEPLAR-UFMG, 2004. Disponível em: <www.integracao.gov.br/.../publicacao/Cedeplar/Experi%EAncias%20Mundiais-sintese2%20ALTERADO.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2006, p. 2-6.Esse mesmo autor lista a distribuição dos recursos destinados ao Fundo de Desenvolvimento doSul, no total de 1 bilhão de liras que foram aplicadas em 10 anos: 38 % foram destinados para aconversão de áreas de montanha em áreas de cultivo agrícola, 28 % para reforma da agricultura, 11% para melhorias na oferta de água, esgoto e drenagem, 9 % para estradas e 11 % para incentivosdestinados a investimentos privados na agricultura.

28 CROCCO, Desenvolvimento regional..., p. 9.29 CHARLIER, Jacques. Atlas du 21éme siècle. Paris: Nathan, 2002, p. 75.

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A questão regional nordestina

A questão regional nordestina - repito aqui mais uma vez o que disse Franciscode Oliveira, a nossa questão regional por excelência30- nasceu como um problemaefetivamente nos anos 1950, não por acaso quando se redefine o projeto deindustrialização brasileiro durante o governo JK, cujos esforços se orientarão paraa criação de um setor produtor de bens de consumo duráveis, formado no Brasilcom investimentos do grande capital externo. A SUDENE constituirá um dos marcose é, sem dúvida, parte essencial dessa estratégia.

Como chama a atenção José Luiz Fiori, as decisões do grande capital externode investir no Brasil resolve parcialmente o que se já colocava como um problemapara o salto industrial que se pretendia para o Brasil, qual seja, de onde viriam oscapitais para realizar esse objetivo31. Assim, a solução externa impulsiona nãoapenas o salto industrial, mas funda uma nova aliança, um novo bloco histórico,que assumirá, com muitos conflitos, é claro - o Golpe de 1964 é o corolário deles,- a direção das políticas de Estado no Brasil32. Esse novo bloco histórico representaráuma aliança estrutural entre a burguesia industrial do Sudeste, o grande capitalexterno, o Estado, que já vinha cumprindo funções econômicas essenciais, e incluirátambém os grandes proprietários de terra, inclusive os nordestinos. Expressão dissoserá o silêncio constrangido de Celso Furtado no documento por ele redigido quecria as bases teóricas para a SUDENE33, principalmente tendo em vista aselaborações furtadianas publicadas na mesma época34, sobre a necessidade deuma reforma agrária no Nordeste.

No relatório do GTDN, Grupo de Trabalho Para o Desenvolvimento do Nordeste- não custa lembrar, um documento oficial cuja autoria ninguém questiona ser deCelso Furtado, e que por essa razão não traduz com fidedignidade as opiniões deCelso Furtado -, os dois grandes gargalhos do desenvolvimento econômiconordestino eram “escassez relativa do fator terra e menor acumulação de capital”35.A segunda assertiva remete a uma discussão acerca de como se deu a integraçãodo Nordeste ao mercado nacional do início do século XX àquela data, umaintegração comandada pelos cartéis comerciais, situação que conduziu Celso

30 OLIVEIRA, Francisco de. A metamorfose da arribaçã: fundo público e regulação autoritária naexpansão econômica do Nordeste. In: ________. Os direitos do anti-valor. Petrópolis: Paz e Terra,1997.

31 FIORI, José Luís. Em busca do dissenso perdido. Rio de Janeiro: Insight, 1995, p. 95.32 Como afirmamos em outro lugar: “Essa nova configuração assumida pelo Estado resultará numnovo pacto político, fundado na aliança entre o grande empresariado brasileiro rebento desse ciclode acumulação anterior, o grande capital monopolista internacional e o Estado, que se redefiniupara passar a jogar um papel ativo na acumulação privada, isto é, assumindo-se como empresárioe atuando fundamentalmente no DI. Portanto, essa aliança corresponde a uma divisão de trabalhono novo modelo de acumulação capitalista: o Estado controla os setores estratégicos do DI(fornecendo os bens básicos da produção industrial para o setor privado), o empresariado nacionalo DII (produtos para assalariados), beneficiado aqui pelo crescimento da massa salarial, e o capitalexterno o DIII (automóveis, construção naval). E por que foi necessária a presença do Estado numsetor estratégico da economia?”. VIEIRA, Flávio Lúcio R. Considerações sobre a natureza doEstado e do desenvolvimento econômico no Brasil. Conceitos, João Pessoa, ADUFPB, n. 4, jan./jun. 2001, p. 23-30.

33 GTDN. Uma política de desenvolvimento para o Nordeste. In: BARCELAR, Tânia et al (orgs).GTDN: da proposta à realidade. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1994.

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Furtado a aplicar a teoria cepalina da relação centro-periferia, que explicava asdiferenças entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, às diferenças regionaisno Brasil: o Nordeste exportava açúcar e algodão, principalmente, enquantoimportava produtos industrializados do Centro-Sul, reproduzindo na relaçãoNordeste-Centro Sul o mesmo “esquema de divisão do trabalho que viciaria todo odesenvolvimento da economia mundial, com suas metrópoles industrializadas ecolônias produtoras de matérias-primas”36. A primeira é um eufemismo para referir-se à concentração fundiária no Nordeste, que desloca um problema de nítidasfeições políticas, econômicas e sociais, para uma questão exclusivamente fechadano domínio demográfico. A escassez de terras passa a ser resultado do grandecontingente populacional “excedente” e não da grande concentração fundiária daregião. No entanto, elas são mais relevantes pelo que não expõem. Chamemos aatenção para o fato que a apreciação da economia nordestina esboçada por CelsoFurtado no documento do GTDN é política, como ele próprio fez questão dedemonstrar em suas memórias sobre o período37. A intenção era não criar dissensõesno bloco de apoio a JK nem resistências por parte do grupo rural-oligárquiconordestino à proposta de criação da SUDENE, mesmo que o projeto deindustrialização do Nordeste representasse um golpe mortal para ele.

A resistência por parte da oligarquia rural nordestina tinha a ver com anecessidade de manter o Estado no Nordeste “capturado” por esse bloco regional,que, como demonstrou Francisco de Oliveira38, se constituía no principal meio dereprodução do seu domínio político e econômico sobre a região. Nesse sentido, acriação da SUDENE representou um duplo golpe nesse bloco regional: no campoda política, representava a perda do controle das ações do Estado na região, comoindicava que seria, e foi mesmo, a SUDENE, que se ligou originalmente ao Gabinetedo Presidente da República, portanto, longe das negociações políticas de caráterregional - a própria indicação de Celso Furtado, um opositor declarado dessasclasses, para ser o seu primeiro Superintendente indica isso; no campo econômico,expressa o deslocamento do eixo das políticas de Estado para o estímulo à indústria,o que representa, no médio prazo, uma subordinação econômica dessas oligarquiasagrárias aos interesses da indústria. Nesse sentido, Celso Furtado foi claro quandoinscreveu entre os objetivos da industrialização o de “criar uma classe dirigentenova, imbuída do espírito de desenvolvimento”39 que daria, quando criada,sustentação interna e continuidade ao projeto de industrialização.

Nos estertores do bloco histórico fundado por Getúlio Vargas na década de1930, que, como sempre, incluía o grande latifúndio, os conflitos ganhavam cada

34 FURTADO, Celso. A Operação Nordeste. In: _______. Celso Furtado. São Paulo: Ática, 1983 (Col.“Grandes Cientistas Sociais”).

35 GTDN, Uma política de desenvolvimento..., p. 16336 FURTADO, A Operação Nordeste, p.118.37 FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. São Paulo: Paz e Terra, 1989. Acrescentamos ainda que umadas teses mais importantes de Celso Furtado em Formação econômica do Brasil era de que se aeconomia de subsistência e as formas sociais adquiridas no Nordeste agrário viabilizavam asobrevivência daquela estrutura, também constituíam grave empecilho à modernização regional.FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

38 OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.39 GTDN, Uma política de desenvolvimento..., p. 158.

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vez mais ares de convulsão social. No entanto, nas circunstâncias internas e externas,e considerando a trajetória das relações de classe no Brasil, especialmente emsituações históricas que reclamam mudanças profundas, a década de 1950 e aprimeira metade da década de 1960 exigirão o maior grau de unidade do blocohistórico recentemente formado. Por isso, a antiga oligarquia nordestina teria umasobrevida apenas temporária, isto é, política, não havendo mais lugar para prolongarsua agonia secular. Teriam de modernizar-se ou deixariam de existir. Celso Furtadonão previu esse fato inelutável da nossa história que, para nós no início do séculoXXI, é um fato inquestionável: a capacidade de metamorfosear-se das nossas classesproprietárias. Não previu porque Celso Furtado não enxergou a necessidade deintegração do grande latifúndio a um projeto de industrialização do Nordeste, oque antecipava involuntariamente uma compreensão que ele só viria a tornar clarano início dos anos 1970: o caráter histórico anti-social dessas classes proprietárias,o sentido conservador que, dirigidos por essas elites, necessariamente qualquerprojeto de modernização assume40. 1964 veio e com ele se foram todas as ilusõesde um desenvolvimento econômico centrado no crescimento e na distribuição derenda e, portanto, na expansão do mercado interno.

Após os conflitos de 1964, o compromisso foi manter intocada a estruturafundiária nordestina, como de resto de todo o Brasil, deslocando as pressões peloacesso a terra e crescimento da produção de alimentos para as fronteiras agrícolasda Amazônia e do Centro-Oeste. Foram as políticas agrícolas dos militares quepromoveram um salto que modernizou a agricultura brasileira, atingindo tambéma nordestina, sem a necessidade econômica de uma reforma agrária, como osdebates dos anos 1950 e 1960 apontavam41. É verdade que, no Nordeste, apenasum setor tradicional logrou se modernizar, como foi o caso do açucareiro, outrossurgiram rebentos desse vigoroso processo de crescimento econômico. O Nordestese modernizou, preservando - em alguns casos, até ampliando -, no entanto, aquiloque compõe a face mais tradicional de sua economia e de sua sociedade: apobreza, que sempre assolou a região, especialmente no semi-árido, agora tambémtornada um fenômeno de feições urbanas. Décadas depois da criação da SUDENE,não existe lugar numa estrutura econômica, agora é regida pelas leis do capitalismointegrado produtivamente, para as antigas oligarquias rurais, que foram obrigadasa ceder o seu lugar. Um novo mandonismo, mais moderno, mais impessoal, éagora exercido por lustrosos empresários cujas origens são variadas: construçãocivil, serviços de saúde, educação e transportes, hotelaria e turismo, pecuáriaintensiva e agricultura irrigada, entre outras. Uma nova classe média rebentou naregião, fruto da ampliação dos serviços do Estado, especialmente do GovernoFederal, mas também pela complexificação da base econômica. Trabalhadoresassalariados povoam cidade e campo.

Há uma vasta literatura a indicar como se deu a industrialização e modernizaçãodo Nordeste e o papel central que o Estado desempenhou nesse processo42, o que40 FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.41 GONÇALVES NETO, W. Estado e agricultura no Brasil: política agrícola e modernização econômicabrasileira 1960-1980. São Paulo: Hucitec, 1997.

42 Ver, entre outros: OLIVEIRA, Elegia...; COHN, Amélia. Crise regional e planejamento. São Paulo:Perspectiva, 1976; CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil:1930-1970. São Paulo: Global; Campinas: Editora da UNICAMP, 1985.

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nos desobriga de adentrar nesse debate, o que nos permite ganhar preciosos espaços.Para os nossos objetivos, basta indicar que, dos anos 1960 em diante, o Nordestenão apenas se industrializou (não apenas devido ao aumento da participação daindústria no PIB regional, que em 1960 era de 22,1%, passando para 29,3% em1980, e caindo para 26% em 1999, mas com uma mudança estrutural na suacomposição, teve o aumento significativo de setores como o de transformação,eletricidade, abastecimento d’água e construção civil, antes inexistentes). NoNordeste, diminuiu expressivamente o peso da agropecuária na economia regional(em 1960 era de 30,5 caindo para a 9,7, em 1999), enquanto aumentou aparticipação do setor de serviços (saiu de 47,4 para 67,3 no mesmo período)43.Mais de dois terços da população do Nordeste vivem hoje em cidades.

No entanto, e apesar do Nordeste ter crescido a taxas superiores à economiaBrasileira, a participação do PIB nordestino na composição do PIB nacionalaumentou apenas de 12,6%, em 1970, para 15,8% em 1987. Para efeitoscomparativos, apenas no estado de São Paulo concentram-se quase 35% do PIBbrasileiro. Essa desigualdade fica mais clara quando observamos que, no Nordeste,vivem 29% da população brasileira44. Mais ainda, e olhando agora para o interiorda região, se o PIB nordestino quase quadruplicou nesse período (ele foi de 12bilhões de dólares para 58 bilhões de dólares), a distribuição do produto porhabitante na região, que era de 740 dólares, em 1970, passou, em 1993, para U$1.486 dólares, tendo apenas duplicado45. Pelos dados do Projeto Áridas, 22 milhõesde nordestinos têm rendimento médio anual de até 214 dólares. Entre esses, 12milhões vivem no campo, o que representa 63% dos pobres do país no meio rurale 32% dos pobres em todo o país, excluindo, é claro, os pobres que emigram e que,portanto, não compõem esses números, mas foram aqui produzidos. Nas cidadesnordestinas, a situação não é diferente. Nelas vive 38% dos pobres da região e23% dos pobres de todo o país. Os pobres que vivem em cidades nordestinasrepresentam 48% da pobreza urbana brasileira46. Existem também grandesdesigualdades entre os estados nordestinos: apenas a Bahia, Pernambuco e Cearárespondem por cerca de 70% do PIB regional47.

Em suma, mesmo o reconhecimento por parte do Estado das desigualdadesregionais e da implementação de políticas que visavam, se não eliminá-las, masdiminuí-las, o caso do Nordeste indica a persistência dessas desigualdades. Noentanto, essas desigualdades mudaram de caráter, não sendo as mesmas de antede 1960. Assumiram novas configurações. São exatamente a sua permanênciaque mantém visível e atual a problemática regional, observada agora sob a óticada plena integração do mercado brasileiro e do pleno desenvolvimento docapitalismobrasileiro, com todas as nuances que essa afirmação representa.43 LIMA, João Policarpo R. Traços gerais do desenvolvimento recente do Nordeste. Análise deConjuntura, mar./abr. 2002. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/obed001d.html> Acesso em: 11 set. 2005.

44 ARAÚJO, Tânia Bacelar. Nordeste, Nordestes: que Nordeste? In: _______. Desigualdades regionaise desenvolvimento. São Paulo: FUNDAP/Editora UNESP, 1995.

45 ARAÚJO, Nordeste, Nordestes ..., p. 147.46 BRASIL. Ministério do Planejamento. Projeto Áridas. Nordeste: uma estratégia de desenvolvimentosustentável. Brasília: MP, 1994, p. 42-49.

47 ARAÚJO, Nordeste, Nordestes ..., p. 299.

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Considerações finais

Neste artigo, postulamos que só é possível entender a questão regional, e anordestina em particular, considerando as transformações sociais e econômicasque viveram o Brasil e o Nordeste após 1956. Foi só quando a necessidade deexpansão do mercado interno brasileiro passou a exigir uma integração produtiva48,ou seja, a superação da fase em que predominaram as trocas comerciais no processode articulação inter-regional que marcou a primeira metade do século XX, queficou exposta a necessidade de modernizar, via industrialização, a sociedade e aeconomia regionais, o que passou também a requerer uma maior homogeneidadeeconômica e social do espaço nacional e de suas regiões. É só aí que o Nordesteaparece definitivamente como um problema para o desenvolvimento capitalistabrasileiro e, portanto, para o Estado brasileiro49. Não é por acaso que daí emdiante verifica-se um vivo interesse pela problemática regional, nascendo estudosque, após 1970, darão início a um debate de grande envergadura e originalidadenos vários campos do conhecimento acadêmico, no Nordeste e fora dele.

Essa afirmação tem algumas implicações no debate atual sobre a questãoregional. Uma primeira questão remete à diferenciação entre questão regional eregionalismo. Por mais relevante que seja o regionalismo nesse debate, não é elequem funda nem a região nem muito menos a questão regional. Ao contrário, háuma materialidade econômica, social e cultural, portanto, histórica, no espaçoregional que é o que torna possível o regionalismo. No caso do Nordeste, oregionalismo ajudou a amalgamar uma representação da região cujo objetivo foielaborar um discurso político que tinha suas bases sociais fincadas no espaço. Odiscurso regionalista nordestino deu uma visibilidade cultural que a região nãotinha, reafirmando diferenças que eram reais, para usar um termo em desuso, masque são redefinidas e ganham novos sentidos (políticos, ideológicos e intelectuais).

Deste modo, não foi Gilberto Freyre, por exemplo, quem inventou as bases sociais,econômicas e culturais que ele descreve em suas obras. Elas não são fruto de merarepresentação mental. Hoje, é cada vez mais necessário dizer, elas eram construçõeshistóricas, fundadas no tempo e no espaço. Não fosse Gilberto Freyre, que deu osprimeiros passos num território ainda por desbravar, nos desvendando como povoe como nação, teria sido outro intelectual, mais cedo ou mais tarde e, talvez, semo mesmo brilhantismo, que faria essas descobertas sobre o Nordeste e o Brasil. Oque Freyre fez, não há dúvida, foi um inquestionável e competente uso político desuas elaborações fundando um movimento regionalista que se arraigou socialmentecomo representação da e sobre a região, dentro e fora do Nordeste.

Entretanto, mais uma vez ali, a percepção era endógena, intra-regional, umamaneira própria, particular de ver o país nos anos 1920 e 1930, que era um

48 GUIMARÃES NETO, Leonardo. Introdução à formação econômica do Nordeste. Recife:Massangana, 1993.

49 Não custa lembrar que a ação do Estado nacional no Nordeste não era nenhuma novidade. Bemantes da criação da SUDENE, a região fora receptora de ações do Estado de recorte nitidamenteregionalizado, através, só para ficar nos exemplos mais conhecido, do IFOCS (depois DNOCS), daCODEVASF e do BNB, criados respectivamente em 1909, 1946 e 1952. No entanto, tratavam-sede ações orientadas por uma visão intra-regional, ou seja, desprovida de um projeto de integraçãoestrutural da região ao mercado nacional.

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amontoado desigual de formações sociais distintas, convivendo sem a necessidadede uma integração mais orgânica. Quando Freyre descreve o Nordeste, narealidade ele está descrevendo o Brasil. Em Casa Grande e Senzala a visão deGilberto Freyre é mais nacional do que regional. Ele está descrevendo as origensdo povo brasileiro, mais do que do nordestino. Como registrou Aldo Rebelo numbelo artigo sobre o centenário de Gilberto Freyre:

“O embaixador inglês chegou a registrar por esse tempo [anos 1930]que tínhamos mais orgulho em ser reconhecidos como pernambucanos,mineiros ou gaúchos do que propriamente por brasileiros. Quem sabeesse regionalismo desprovido de nacionalidade apenas refletisse adificuldade no reconhecimento da segunda identidade, a de povo, oude povos, de que são compostas as nações.”50

Assim, a obra de Freyre nesse período é fundada numa aparente contradição:ao mesmo tempo em que tenta revelar o Brasil, enfatiza a necessidade de valorizara região.

Então, porque uma articulação regional mais orgânica do território e docapitalismo brasileiro não aconteceu antes dos anos 1960? Antes de 1930 e pelomenos duas décadas depois disso, faltava um sujeito político que concretizasseum projeto de integração nacional do mercado interno brasileiro. Faltava um Estadocapaz de, com as condições criadas desde os anos 1930, pensar e realizar essaintegração. A SUDENE se constitui como o principal instrumento dessa estratégiae o seu controle determinou a lógica e a direção das políticas de desenvolvimentoaplicadas no Nordeste. E isso se fez de acordo com o entendimento da aliança declasses que dirigia o Estado, aspecto essencial para o entendimento do modo comoa região se desenvolveu e se integrou ao espaço nacional.

Por fim, restam alguns comentários a respeito dos critérios para delimitar aregião. A primeira coisa a ser dita é que essa questão não pode ser pensadaexclusivamente como uma elaboração intelectual. É ela, sem dúvida, um recorte enesses termos tem algo de arbitrário. Mais ainda, é um recorte espacial, o quedificulta ainda mais uma compreensão precisa do que seja região quando vistacomo um conceito que pretende ter a maior homogeneidade lógica possível.Francisco de Oliveira, na sua obra clássica sobre a questão regional nordestina, adefiniu por suas formas específicas de reprodução e acumulação do capital,moldada também por formas especiais de luta de classes. Essa elaboração deOliveira, no nosso entender, é útil para nos ajudar a compreender a conformaçãode regiões em países que ainda não experimentaram uma homogeneização dasrelações sociais capitalistas, como era o caso do Brasil e do Nordeste antes dadécada de 1960. Tanto que, em tese, para Oliveira, esse processo de integração emodernização faria desaparecer as regiões51, o que não aconteceu, especialmenteno caso do Brasil. Aqui, como já deixamos claro, a integração do Nordeste aomercado nacional potencializou diferenças, além de criar e recriar outras.

50 REBELO, Aldo. Cem nos de Gilberto Freyre: um homem que entendeu o Brasil. Princípios, SãoPaulo, Ed. Anita Garibaldi, n. 57, jul. 2000.

51 OLIVEIRA, Elegia..., p. 26.

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Como recorte espacial, a região sob o capitalismo avançado continua a serresultado da divisão espacial do trabalho no interior do espaço nacional. É, portanto,uma produção histórica. No entanto, esse processo é organizado pelo Estado, semo qual não haveria organização espacial nem territorial possível e, portanto, nãohaveria base espacial para a reprodução do capital. O que nos permite afirmarque a existência e a permanência de regiões no Brasil são realidades palpáveisdas diferenciações sociais e econômicas existentes dentro do território. Por maishomogeneizador que seja o desenvolvimento capitalista, especialmente em paísescomo o Brasil e em regiões como o Nordeste, ele não se reproduzirá eliminando asdiferenças intra e inter-regionais. Intra-regionalmente, se ramos tecnologicamentemais avançados se instalam na região outros desaparecem, se é moderna aagricultura, as antigas formas entram em crise, se emerge o assalariamento, aeconomia de subsistência declina. E isso acontece sem que as novas estruturasprodutivas substituam as antigas de forma homogênea em todo o espaço regional.Pelo contrário, a modernização só se dá de forma espacialmente localizada. Ela édirigida às regiões metropolitanas e a alguns pólos de desenvolvimento rural eurbano e, mesmo assim, não deixam de existir imensas desigualdades entre essesespaços. Mais ainda, como vimos, ela se dá produzindo profundas desigualdadesentre os setores e inter-setores: num curto período, a industrialização promoveuuma profunda desagregação da economia rural, a população rural converteu-semassivamente em população urbana. Inter-regionalmente, a manutenção dasdiferenças entre os PIBs das regiões por si só é reveladora dessas desigualdadesregionais. E a gravidade desses dados só é mais visível quando observamos comoessa riqueza é mal distribuída: nesse ponto, o Nordeste não apenas reproduz acaracterística mais perversa do desenvolvimento brasileiro como a potencializa.

Se realidades tão palpáveis não são mais relevantes para os historiadores paradesignar seus objetos e suas categorias de análise, temo que estejamos renunciandoaos vínculos sociais do nosso trabalho intelectual para nos entregar às representaçõesidílicas de um mundo que se foi e não volta mais, mesmo que pensemos criticá-loou desmistificá-lo. Chega de conservadorismo na História.

RESUMONeste artigo, analisamos o conceito de região partindo desuas origens na Antigüidade romana e estabelecendo suasnovas bases com o advento do capitalismo industrial.Pretende-se, portanto, enfatizar as relações que a regiãoassume com o Estado-nação e com o desenvolvimentoeconômico, procurando dar ênfase ao caráter histórico quecada região assume no âmbito de cada nação. Partindodesses pressupostos, abordamos a questão regionalnordestina a partir de sua emergência no final dos anos de1950 e as determinações históricas e sociais que presidirama sua origem e a sua persistência como uma questão essencialpara compreendermos a lógica desigual que assume dodesenvolvimento econômico e social no interior das naçõesperiféricas.Palavras-Chave: Região; Estado; Economia Política.

ABSTRACTThis article analyzes the “region” concept, since its origins inRoma, establishing new bases with the coming of the industrialcapitalism. The intention is, therefore, to emphasize therelationships that the area assumes with the State-nationand with the economical development, trying to giveemphasis to the historical character that each area assumesin the ambit of each nation. Starting from thosepresuppositions, the discussions approaches the BrazilianNortheastern regional subject, with focus on its emergencyin the end of 50’s, and the historical and social determinationsthat presided this origin and its persistence as an essentialsubject to understand the unequal logic that assumeseconomical and social development inside the outlying nations.Keywords: Region; State; Economic Politics.

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ANDRÉ VIDAL DE NEGREIROS:A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UMHERÓI LEGITIMAMENTE PARAIBANO

Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva 1

Em sua obra intitulada Intrepida ab origine, Margarida M. S. Dias constata apredominância de um determinado segmento de história presente na historiografiaparaibana, nos cursos de graduação em história da UFPB, nas escolas de ensinofundamental e médio, entre outros meios - a história factual, descritiva, desprovidade análises, que se limita a narrar o fato por si mesmo e, principalmente, que sededica a exaltar indivíduos considerados importantes, tidos por vezes como heróis,e que seriam os condutores únicos da história. Deste modo, percebe-se quase queum predomínio da história oficial e suas versões nos mais variados âmbitos dasociedade. Segundo a autora, faz-se necessária uma análise mais aprofundadaacerca da elaboração da história local, cujo poder de influência e alcance aindanão foram dimensionados.

Essa historiografia, que parte da concepção oficial dos processos históricos,factual, de heróis, mitificada, dedicada aos “grandes nomes, feitos e monumentos”,escrita para contemplação e não para o engajamento, foi produzida inicialmentepelo Instituto Histórico e Geográfico Paraibano ou grupos ligados a ele. O IHGPfoi fundado em 1905 com o objetivo maior de escrever a história da Paraíba -escrita pelos próprios paraibanos - visando demonstrar, através desta, a grandezado estado e de seu povo. Com um claro sentimento de vanguarda, iniciou-se aelaboração da história da Paraíba de forma mais abrangente e sistemática do quevinha sendo feito, além da localização e catalogação de fontes, cadastramento dearquivos etc. que servissem para glorificar o passado paraibano.

Nesse sentido, segundo a autora, um elemento perpassa por toda a historiografiaproduzida pelo IHGP a partir de então: “a identidade paraibana, criada pelo IHGPpara conceituar uma personalidade específica, circunscrita pelo espaço tido comoparaibano e formado por algumas características e valores (...) proporcionados peloprocesso histórico particular”2. A esta identidade paraibana a autora chama de“paraibanidade”, formada, segundo o IHGP, ao longo de todo o processo históricopelo qual o estado passou. Posto isso, destacam-se três características do “serparaibano”. A primeira seria o caráter pacífico do seu povo, que foi expresso desdeo momento de fundação da capitania da Paraíba, a 5 de agosto de 1585, afinal,esta se deu por um acordo de paz firmado entre Piragybe, chefe dos índios Tabajaras,e João Tavares, líder dos portugueses. Outro componente do “ser paraibano” seriaa bravura, que se mostrara de forma inequívoca nos episódios de resistência e lutacontra a dominação holandesa; Por fim, outra característica do paraibano seria oseu pendor para o republicanismo, consideravelmente anterior à proclamação darepública e ao surgimento de idéias republicanas em alhures.1 Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba.2 DIAS, Margarida M. S. Intrepida ab origine: o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e aprodução da história local. João Pessoa: Almeida, 1996, p. 50-51.

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No entanto, tendo em vista o nosso objeto de análise, um desses componentesda identidade paraibana nos interessa mais de perto: o da resistência dos“paraibanos” às invasões holandesas. Após o acordo de paz entre portugueses eTabajaras, este seria o segundo grande momento da história paraibana, no qualoutra característica da personalidade paraibana viria à tona: a bravura. SegundoDias:

O período do domínio holandês, retratado pelo IHGP, serve tambémpara acentuar a contraposição a Pernambuco, visto que é consideradocomo um momento de desenvolvimento econômico-social e culturalnaquela Capitania, sobretudo em Olinda e Recife, onde até as obras deinfra-estrutura na cidade servem para justificar como benesses do estadoholandês. À Paraíba ficou a resistência.3

Neste sentido, já estaria muito claro, desde o período holandês, um componenteessencial da paraibanidade: o sentimento de nacionalidade. Para o IHGP, o que ainvasão holandesa feriu foi o próprio sentimento de nação, que já seria existentedesde esse período, e não as riquezas materiais. E é também com o movimentocontra a dominação holandesa que surgem os primeiros heróis paraibanos após oacordo de 05 de agosto de 1585, com destaque especial para André Vidal deNegreiros. Segundo palavras de Irinêo Joffily, Vidal, à frente do exército restaurador,foi “o principal heróe brazileiro nos tempos coloniaes”4. Hélio Zenaide destaca queVidal foi um homem”íntegro” e o nomeia como o “herói da guerra contra osholandeses em Pernambuco”5.

Esta concepção da existência de um sentimento de brasilidade e amor à terraparaibana, demonstrado durante a guerra contra o domínio colonial holandês noBrasil, e presente nas versões de história produzidas pelo IHGP, fica clara na obra“Vidal de Negreiros: afirmação e grandeza de uma raça”, de Luiz Pinto, que sepropõe a realizar uma biografia de Vidal. Devemos ressaltar que, apesar de Vidalmerecer honrosas menções em várias produções do IHGP, sendo recorrente o seutítulo de “maior herói paraibano”, a obra de Luiz Pinto foi a única que localizamosque se dedica a apresentar uma biografia mais detalhada de Vidal, além derepresentar com bastante fidelidade os objetivos e escolhas do IHGP.Conseqüentemente, no presente artigo analisaremos esta obra mais de perto comvistas a melhor compreender o processo que levou à escolha de André Vidal deNegreiros como herói paraibano.

Para Luiz Pinto, o domínio holandês no Brasil não teve outra significação senãoa econômica, tendo em vista o “espírito mercenário e judaico da Companhia derapina”6. O mesmo, para Pinto, não se passava com os brasileiros e portuguesesque defendiam a colonização lusa: a bandeira que empunhavam contra a Holanda

3 DIAS, Intrepida ab origine..., p. 56.4 JOFFILY, Irinêo. A conquista do sertão. In: ________. Notas sobre a Paraíba. 2. ed. facsimilar.Brasília: Thesaurus, 1977, p. 113.

5 ZENAIDE, Hélio Nóbrega. Vidal de Negreiros, o Padre Antonio Vieira e o cativeiro indígena noMaranhão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, João Pessoa, IHGP, ano LXXXI,1995, p. 139-142.

6 PINTO, Luiz. Vidal de Negreiros: afirmação e grandeza de uma raça. Rio de Janeiro: Alba, 1960, p.11.

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seria a da religião católica contra os hereges calvinistas, o que teria dado à guerrauma característica religiosa.

Segundo o autor, foram as três raças de nossa etnia - a branca, a negra e aindígena, representadas respectivamente por Vidal, Henrique Dias e Camarão,todos nascidos no Nordeste - que deram corpo e sentido à guerra de expulsão. Econtinua: “(...) Vidal foi a alma da restauração, o homem que nunca se curvou aomêdo, nem a conveniências, nem se sobressaltou frente ao poderio inimigo, demuitas vêses quase esmagado.”7.

Entre as tropas arregimentadas na Paraíba para a libertação da Bahia do domínioholandês, em 1624, já se encontrava, como “voluntário da sua terra”, André Vidalde Negreiros, rapaz paraibano, então com 18 anos de idade e filho de FranciscoVidal e d. Catarina Ferreira. Seu pai seria senhor do engenho S. João. Nas passagensa seguir, podemos perceber a visão de um herói destemido, um predestinado,devotado à sua terra e à sua religião, que Luiz Pinto visa construir:

Quando Matias de Albuquerque acudiu aos chamamentos e reclamosda Bahia, arregimentando tropas para combater o invasor batavo, umjovem paraibano vibrou de entusiasmo. Queria lutar também, seguircom os resultados de qualquer maneira, acudir em defesa da sua pátriae da sua religião. (...) O rapaz André, filho do velho Vidal, era dos maisardorosos. Alistara-se às suas custas. E logo se transformou numpropagandista e animador dos mais decididos e corajosos. Moço,desenvolvido, ágil, ouvindo as narrativas dos vencedores, sentiaestremecimentos, desejando partir quanto antes em socorro daquelepovo.8

Percebe-se a onipresente questão da defesa da religião católica como o motivoprincipal de luta contra os flamengos. Além disso, o autor cria uma imagem porvezes emotiva da figura de Vidal, que seria a de um jovem extremamente interessadoe entusiasmado com a causa da restauração. No entanto, Vidal não só se destacoupela sua empolgação e devoção pela causa da expulsão dos holandeses - tambémse destacou nas batalhas, se tornando um dos soldados mais capazes e distinguidospelos seus superiores:

Sem muita demora, André Vidal enquadrou-se à arte da guerra. Osseus superiores hierárquicos começaram logo a distingui-lo, não sópela sua bravura indômita, mas ainda pela sua conduta serena, peloseu instinto de soldado, pela segurança dos seus planos e rapidez porque procurava executá-los. (...) O principio do amor à terra nativa e àreligião era a bandeira que se não ofuscava. Isto determinava as maiscruéis represálias, os mais atrozes combates. Na alma de André Vidalera sacrossanto esse princípio (...). Não se fez demorar o renome deAndré Vidal de Negreiros no seio da tropa. Distinguido e disputadopelos superiores, viu-se durante a guerra na Bahia nos lugares maisarriscados, marchando à frente como um predestinado. E não se fez

7 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 13.8 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 31-32.

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silêncio sobre os seus brios de soldado e bravura de patriota, emboracontra isso conspirasse a sua grande simplicidade e modéstia.9

André Vidal, que logo se fez destro e valente soldado, não só lutoudurante toda a fase da expulsão dos flamengos da Bahia como perseguiua esquadra holandesa fugitiva até deixá-la fora do seu Estado natal 10

Diante de tantas qualidades, o rei de Castela se fez informado das virtudes deVidal, que foi promovido ao posto de alferes, então com 19 anos de idade. SegundoPinto, “André Vidal de Negreiros era uma vocação de soldado, tanto pela firmezamoral quanto pela robustez física. Dir-se-ia que a terra de massapê da várzea do rioParaíba, o seu rio, lhe dera essa seiva, como ainda muita bravura e fidalguia”11.

Após a derrota de brasileiros e portugueses no Arraial do Bom Jesus, optou-sepelo sistema de guerrilhas e emboscadas, a guerra irregular de extermínio; táticaesta que não foi bem aceita pelos “prepotentes espanhóis”. No entanto, AndréVidal, após oito anos de estudo na Europa, estaria convencido de que aquele seriao melhor sistema para destruir o poderio flamengo. Para Luiz Pinto, o plano deVidal seria realmente o mais indicado. Além disso, também teria sido concertadopor Vidal o plano da chegada da esquadra de D. Fernando de Mascarenhas (condeda Torre), que não logrou em sucesso.

Mais tarde, com a vitória da restauração no Maranhão, André Vidal foi nomeadogovernador da capitania. É interessante perceber a forma que Luiz Pinto apresentaessa nomeação que, a seu ver, seria o pagamento de uma dívida do rei de Portugal.Além disso, faz-se uma clara comparação entre Vidal, que estaria no auge do seuprestígio, e o Conde Maurício de Nassau, que estava voltando para a Europa diantede uma conjuntura desfavorável para a continuação do domínio holandês:“Cumpria-se assim um antigo compromisso do rei de Portugal para com o heróiparaibano. De modo que, quando Nassau retornava à pátria européia, André Vidalde Negreiros se fortificava para total execução dos seus planos, traçados ealimentados desde 1632”12. Após assumir o governo do Maranhão, em 1645, Vidalnão permaneceu lá por muito tempo, pois “cabia-lhe tecer a teia sinistra da guerra”.Enquanto Teles da Silva despistava os holandeses com falsas promessas dearmistício, Vidal organizava os batalhões:

O que os flamengos não sabiam exatamente, e isso é claro, era queAndré Vidal tinha um plano concertado e que poria em prática dequalquer maneira, dentro do seu alto patriotismo e fidelidade religiosa.(...) Vidal era firme e queria a guerra de expulsão, ágil e violenta. MasNassau não desconfiou das manobras do paraibano. E tanto é que deixoutransitar livremente por duas vezes, tanto no Recife quanto na Paraíba.E só através da sua primeira viagem a Recife, quando retornou deLisboa, é que Vidal conseguiu firmar posição na capital da novaHolanda, arregimentando para as suas hostes o capitalista João

9 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 33.10 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 29.11 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 34.12 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 65.

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Fernandes Vieira, senhor de Engenho da Várzea, no Recife, homemreligioso e rico, vaidoso e prepotente, que se tornou um elemento nuclearna guerra.13

Nesta passagem, Vidal é mais uma vez colocado como peça central da guerrade restauração, seu principal articulador, que conseguiu de certo modo “enganar”Nassau, que lhe concedeu livre trânsito pelas capitanias. Vidal fez do Maranhãoapenas um ponto de apoio para as suas incursões à Paraíba e Recife, com oobjetivo de “colher adeptos, planejar a guerra, animar os fracos, encorajar osmedrosos”14. E a figura de Vidal vai ficando cada vez mais relevante no tocante àguerra de restauração, como fica evidente na seguinte passagem:

A libertação do Brasil do domínio colonial holandês cabe, como jámostraram Varnhagen, João Ribeiro, Hermann Watjen, Pandiá Calógerese outros intérpretes da luta de restauração, tal como a organização darevolta geral, a epopéia pernambucana, uma das maiores da história dapátria - criação de guerrilhas, emboscadas relâmpagos implantadorasde morte - sem dúvida, ao engenho extraordinário de André Vidal.15

Neste sentido, enquanto os dirigentes das duas partes se limitavam ao campodiplomático, Vidal, Henrique Dias, Camarão entre outros, preparavam o cerco doRecife, encurralando a Nova Holanda. D. João IV queria a paz com a Holanda e,ao mesmo tempo, a luta de libertação. Já a única paz que os nativos aceitavam eraa conquistada pelas armas, com a capitulação total do agressor. Segundo LuizPinto, o rei e o vice-rei tentavam uma trégua. “É nesse passo da crônica que severifica haver a restauração nascido da coragem, da decisão e as firmeza de AndréVidal”16. Na tentativa de suspender a luta com os batavos, o vice-rei endereçouuma enérgica recomendação a Vidal, que respondeu de forma altiva e patriótica.Na carta, os chefes rebeldes, Vidal e Martins Soares Moreno, demonstram que, seo rei de Portugal continuasse com o propósito de dar trégua aos holandeses, elesiriam à procura de qualquer príncipe católico a fim de auxiliá-los, relatandoinclusive a perturbação e inquietação de muitos nativos ao saber que o reiconsideraria “ruins vassalos” os que continuassem na luta contra os flamengos,muitos chegando a pensar em matar suas filhas e esposas para não vê-las empoder do inimigo. Esta carta seria um “grito de rebeldia e de coragem, contra acovardia lusa, a frouxidão de D. João IV, preferindo perder 8 províncias da suagrande colônia a ter de lutar um pouco mais para desenraizar os flamengosinvasores”17.

A esta altura, Recife já estava sitiada. Com a junção das tropas de Dias, Camarãoe Vieira, Vidal assume a “direção geral de chefe supremo das operações militares”.Na primeira batalha dos Guararapes, Vidal ficou na reserva, mas Pinto tem umaboa justificativa para isso: “Era o homem das horas difíceis, o que traçava, o queexecutava”. É interessante perceber que até em momentos em que Vidal ficou em

13 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 66.14 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 67.15 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 69.16 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 69.

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segundo plano, o autor encontra uma solução para vangloriar ainda mais o seuherói. Com o desenrolar do combate, Vidal assumiu o comando. Os flamengosforam derrotados na 1ª batalha dos Guararapes, “onde a bravura da raça brasileira,em plena formação, se marcava proficientemente”. E sobre a ação de Vidal, afirma-se: “A influência do mestre de campo André Vidal de Negreiros foi tão evidente,não só no traçar planos certos e tática perfeita como no comandar e avançar àvanguarda, com o destemor de um guerreiro romano”18.

Na 2ª batalha dos Guararapes, Vidal foi o comandante dos terços. SegundoLuiz Pinto, antes da batalha, discutia-se o método de acometer o inimigo. Váriasopiniões surgiram, mas foi vitorioso o ponto de vista de Vidal: atacar o inimigo,violentamente, partindo do engenho velho dos Guararapes. Na sua narrativa dabatalha, percebe-se claramente o entusiasmo do autor:

(...) Os luso-brasileiros não perderam um momento: atacam ferozmente.Vidal avança alucinadamente pela encosta, flanqueado por AntônioSilva e Cardoso. Figueirôa, intrépido, na retaguarda. Vieira, audaz evalente, firma-se a raso, sobre o Boqueirão, com 800 homens,flanqueado por Henrique Dias e Diogo Camarão [sobrinho de FelipeCamarão, que havia falecido]. (...) Derrotados, aniquilados mesmo, osholandeses foram perseguidos até o fim sem nenhuma ação militar. Avitória rolou dos montes Guararapes envolta nos farrapos dos pavilhõesinimigos, às pontas de lanças de Vidal, Vieira, Camarão e HenriqueDias.19

Percebe-se neste trecho a necessidade de dizer que o inimigo foi “aniquilado”pelos “patriotas”, utilizando uma evocação da famosa tetrarquia da restauração:Vieira, Vidal, Camarão e Dias. No entanto, é interessante perceber que, em geral,Vieira é o primeiro nome a ser citado na maioria das fontes e obras sobre o domínioholandês. No entanto, Luiz Pinto, no seu intuito de vangloriar o herói paraibano,não só neste trecho como ao longo de seu livro, coloca Vidal sempre em primeirolugar, invertendo a ordem da tão consolidada tetrarquia.

Após a 2ª batalha dos Guararapes, a situação do Recife era muito difícil paraser sustentada pelos holandeses. A Holanda ainda tentava um entendimento comPortugal, mas já haviam passado quase três anos da última batalha. “Vidal estavainquieto. Queria completar a obra de limpeza”20. O auxílio do rei de Portugal estavatardando, até que em fins de 1653, surgiu na costa a grande esquadra tão prometidae esperada. Vidal insistia em terminar o que haviam iniciado, expulsandodefinitivamente os holandeses de “sua nação”. “Vendo Barreto que a razão estavacom Vidal, resolveu, com ele e outros companheiros ilustres, traçar o plano deataque. Traçado e cumprido”21 Poucos dias depois, os holandeses capitularam. Érelevante perceber a mensagem incutida nestes últimos acontecimentos: Ninguémestava disposto a continuar a luta pela restauração; apenas Vidal (sempre ele),

17 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 71.18 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 80.19 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 83-85.20 PINTO, Vidal de Negreiros..., p.87.21 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 88.

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que queria continuar sua “obra de limpeza”. Insistiu tanto nesta meta que foiatendido: e, mais uma vez, estava certo, pois a vitória dos luso-brasileiros, patriotase católicos foi definitivamente garantida.

Após longas negociações e forte pressão por parte dos holandeses, finalmenteum acordo de paz foi assinado em 1661, “com vergonhosa situação para Portugale prejuízo para o Brasil”, segundo Pinto. Por intervenção da Inglaterra, foram fixadasas seguintes condições: indenização de 400.000 cruzados por ano, em dinheiro ouem açúcar, sal e tabaco; restituição às Províncias Unidas de toda a artilharia quese encontrasse no Brasil; liberdade de comércio para os holandeses. Ao Brasil,coube uma indenização de 120.000 cruzados, além de 20.000 para dote da infantaque se casou com Carlos II. Essa condescendência de Portugal diante das pressõesholandesas e inglesas, segundo Pinto, desvirtuou o sentido da vitória, conquistadapela valentia dos brasileiros, e que lhes custou vidas e imensas fortunas, pois,naquele momento, preferiam a colonização lusa, principalmente por motivos dereligião. Como não poderia deixar de ser, Vidal não concordou com as injustascondições do acordo de paz:

Essa frouxa transigência, que não foi dos nossos heróis, desvirtuou avitória das batalhas dos Guararapes. Contra ela Vidal de Negreiros quisse opor, mas era uma condição aceita pelos superiores lusos, sob cujacúpula vivia o Brasil, e seria assim baldada qualquer indisciplina oureação.Se por esse miserável preço, que os judeus holandeses exigiam comfaca nos peitos, conseguimos uma paz definitiva, (paz para eles, naEuropa, pois a nossa se argamassou com sangue), e ninguém seriacapaz de alterá-la dentro das nossas fronteiras. Valha-nos ao menosesta certeza.22

Neste último trecho percebemos a presença de duas idéias que permeiam todaa obra de Luiz Pinto: a dos “judeus holandeses”, “os judeus da CompanhiaPrivilegiada das Índias Ocidentais” ou mesmo em referências de que os holandesesestariam “mancomunados com os judeus” para tirar proveito econômico dasriquezas do Brasil. Outra idéia é a de que todo o processo de resistência erestauração, que culminou na capitulação dos holandeses, foi “argamassada comsangue”, custando aos “brasileiros” muitas vidas e riquezas. Abordaremos estesaspectos com maior profundidade mais adiante.

No início de 1655, Vidal viajou a Lisboa. Encontrou a Corte em festa, não sópela vitória brasileira, mas também pelo aniversário do rei.

D. João fez questão de abraçar o mestre de campo da vitória, estreitarnos braços o guerreiro impávido, que derramou o sangue por váriasvezes, que, à maturidade, via-se aleijado de uma perna, mas altivo evaronil. Pois dos 45 anos de idade, quando se achava na Europa, Vidaljá contava 27 anos de guerra.23

Após dias em Lisboa, Vidal retornou ao governo do Maranhão. Acerca dogoverno no Maranhão, Sérgio Buarque de Holanda atribui a seguinte citação ao22 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 90.23 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 92.

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padre Antonio Vieira: “Vidal é talvez o único, antes de Gomes Freire, que nãoprocura explorar o braço indígena, e que castiga os motins não por motivos pessoais(como os outros) mas por espírito público. Vai logo embora. ‘Teria salvo a Índia’ -diz o Padre”24.

Em face da ida de Barreto de Menezes para o governo da Bahia, Vidal foiescolhido governador de Pernambuco. Porém, não tardou para que Vidal e Menezesentrassem em choque, pois o paraibano não aceitava as imposições da Bahia.Neste momento, Portugal lutava contra a perspectiva de uma luta em Angola, ondese encontrava Fernandes Vieira. Assim, foram trocados os governadores, indo AndréVidal para Angola, onde rapidamente consolidou boa política de paz para Portugal.Após mais uma vitória, Vidal queria recolher-se à vida privada.

Vidal tinha sido um homem de guerra, um homem sem amor, sem umaafeição feminina. A guerra absorveu-o totalmente na melhor fase daexistência. Perdera os pais, de cujo contacto se afastara aos 18 anos; asafeições que conquistara foram afeições de guerra. Homem desprendido,sem se preocupar com a sua vida particular, achava ser tempo de afastar-se da luta à tranqüilidade da velhice.25

Todavia, isto não lhe foi possível: Pernambuco passava por uma luta políticaentre diversas classes de agricultores, comerciantes e soldados. Em 1666, Vidalassume, pela segunda vez, o governo de Pernambuco. No interregno desses conflitos,finalmente pôde Vidal “despertar para a vida”, vivendo em paz os anos que lherestavam. Na sua velhice, realizou uma verdadeira obra social, deixando grandeparte dos seus bens para o “amparo à velhice, à orfandade e aos desvalidos”. Vidalseria “um herói sem empáfia”, que teria recusado todos os oferecimentos que lheforam feitos, posto à margem comendas, prestígio, glória, tudo, para ajudar aosmais necessitados, o que ressaltaria ainda mais “a sua compreensão de homempúblico e patriota”26.

Como forma de terminar a apresentação da obra de Luiz Pinto, gostaria dedestacar dois trechos dos mais significativos desta, que demonstram a grandeza,heroísmo, patriotismo e amor à religião católica que o autor busca conferir a Vidal:

O seu amor concentrou-se à pátria. Foi um peregrino do civismo, ummago da fé. Fez-se guia do seu povo, sem nunca haver esmorecido,nem recusado, nem temido. Enquanto sentia a pegada do inimigo nochão do Brasil, aí esteve a cobri-la, a apagá-la. Ou morreria na luta outangeria os invasores insolentes que menosprezavam a sua religião.27

O destaque da personalidade de André Vidal avulta em todos osdocumentos históricos. Fora um soldado brioso, um homem feliz. Suavida é uma equação cívico-militar, um panorama de lealdade,

24 HOLANDA. Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. Volume I: a épocacolonial. 3. ed. São Paulo: DIFEL, s.d.

25 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 96.26 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 97-99.27 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 98.

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patriotismo e amor à fé. É o que se sente ao traçar o roteiro da guerraholandesa no Brasil, desde a invasão da Bahia até à de Pernambuco.28

Para compreendermos melhor a concepção heróica que a historiografiaparaibana buscou construir acerca da luta contra a invasão holandesa, ao concebereste momento como um marco da nossa nacionalidade e, conseqüentemente, daparaibanidade, faz-ze premente o estudo de alguns elementos-chave. Para tanto,discutiremos a seguir a importância do imaginário na formação de identidades e adiscussão do processo de construção da tetrarquia de heróis da restauração, comespecial interesse na figura de André Vidal.

Na obra intitulada Rubro veio, Evaldo Cabral de Mello explora as deformaçõesque o nativismo impôs à visão local da experiência holandesa. Trabalhando coma idéia de “imaginário social”, pode-se englobar “uma ampla faixa de conteúdosideológicos que inclui desde a invenção absoluta, com a falsificação histórica, atéos simples deslocamentos de significado, mediante os quais o simbólico, linguagemdo imaginário, vai criando uma sucessão interminável de conotações”29. Nestesentido, são construídas variadas versões acerca dos acontecimentos históricos,que nada mais refletem do que o desejo de um povo, o que ele gostaria de ser ou deter sido, atribuindo, à sua própria história, fatos fantásticos, grandes heróis, entreoutros elementos, como forma de engrandecimento e formação de sua identidade.

Assim como o nativismo pernambucano, estudado por Mello, considerou-seherdeiro da restauração, momento no qual teria germinado o sentimento deliberdade entre os pernambucanos, a restauração também foi um dos elementosfundadores para o “ser paraibano”. Neste sentido, uma visão recorrente nasconstruções posteriores à restauração é a de que esta havia sido alcançada, comobem coloca Evaldo Cabral de Mello, “à custa de nosso sangue, vidas e fazendas”,isto é, mediante a mobilização exclusiva ou predominante dos recursos escassosda sociedade açucareira e escravocrata do Nordeste. Tal idéia está presente tambémna obra de Luiz Pinto, que, como já abordamos, defende que a restauração fora“argamassada com sangue”, à custa de “nossas vidas e riquezas”. Segundo EvaldoCabral, a noção segundo a qual a restauração fora empreendida e sustentada pelagente da terra representou o tópico fundamental, a matriz ideológica a partir daqual se construiu toda a visão nativista do “tempo dos flamengos”.

Na narrativa de Luiz Pinto, como vimos, a questão religiosa parece ter sido umdos elementos fundamentais que levaram à reação dos luso-brasileiros. Contudo,como bem demonstra José Antônio Gonsalves de Mello, em seu Tempo dosFlamengos, os aspectos econômicos e a progressiva perda de apoio político porparte dos senhores de engenho parecem ter sido causas mais relevantes. Alémdisso, Luiz Pinto coloca a invasão holandesa como sendo resultado de uma“mancomunação entre holandeses e judeus”. Em nenhum momento ele coloca quea maioria dos holandeses era calvinista, e, muito menos, de que muitos empregadosda WIC eram católicos e recusaram-se a lutar contra seus irmãos de fé. Como nosapresenta Gonsalves de Mello, apesar de Nassau ter concedido liberdade de

28 PINTO, Vidal de Negreiros..., p. 91.29 MELLO, Evaldo Cabral. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. Rio deJaneiro: Topbooks, 1997, p.18.

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consciências para todos os habitantes da colônia holandesa, as hostilidades eintolerância entre as várias religiões - protestantes, católicos e judeus - marcaramo período. Logo, não houve apenas perseguições aos católicos, como também aoscalvinistas e judeus. No entanto, este tipo de perseguição não foi um privilégio doBrasil, pois era uma tônica também na Europa, haja vista as inquisições católicase protestantes. Luiz Pinto demonstra uma visão extremamente preconceituosa noque se refere aos judeus no período de dominação holandesa. Como mostraGonsalves de Mello, após estudos variados, sabe-se hoje do enorme valor da naçãojudaica do Recife holandês, onde nasceu a cultura serfardínica na América. Vultosda maior importância no mundo dos judeus ibéricos estiveram em Pernambuco,fundando inclusive uma sinagoga. É fato também que, com a ocupação holandesa,muitos judeus residentes encobertos em Pernambuco se declararam como tais,mudaram os nomes cristãos para outros mais caracteristicamente judeus ecircuncidaram-se. Foi tomando forma, então, o centro religioso israelita maisimportante das Américas30.

Destarte, de acordo com a visão nativista, a restauração não se alcançara apenassem o Rei, mas também contra o rei. A justificativa para o ato de rebeldia de nãoacatar às ordens da metrópole seria a de que “se resistiu ao Rei para melhor servirao Rei”. Logo, a expulsão dos holandeses só foi possível devido à ação dos grandesheróis da restauração, a exemplo de João Fernandes Vieira e André Vidal deNegreiros, que foram ajudados pela nobreza dos “nacionais” da terra, o que implicano fato de que a restauração seria uma conquista dos “brasileiros”, que não haviammedido esforços, e, “à custa de seu sangue, vidas e fazendas”, haviam livrado suaterra dos “hereges” holandeses. Após todo esse esforço “patriótico”, segundo asversões luso-brasileiras produzidas logo após a restauração, seus participantes nãoobjetivariam lucro ou qualquer outro tipo de interesse além do bem de sua terra, oque não se verificou na prática.

Além de ter sido alcançada à custa do sangue, vidas e fazendas da gente daterra, a restauração forjara-se sobre a aliança dos grupos étnicos que compunhama população local, não evidentemente em pé de igualdade, mas sob a direção da“nobreza da terra” e dos reinóis radicados em Pernambuco. Esta visão, segundoEvaldo Cabral, já estava consagrada pelo imaginário nativista nos começos doséculo XVIII, mediante o simbolismo de uma tetrarquia de heróis que se devia oculto cívico tributado aos verdadeiros “pais da pátria”. Há um claro sentidohierárquico nesta representação dos chefes militares da restauração: o reinol Vieira(oficialmente branco, mas que tudo indica tenha sido mulato), o mazombo Vidal(branco), o índio Camarão e o negro Henrique Dias. A própria escolha destesindivíduos para compor a tetrarquia demonstra a exclusão da mestiçagem, não seencontrando nela (oficialmente) a figura de um mestiço. A invocação desses heróis,desde o século XVIII, obedeceu a uma ordem consagrada, iniciando-se com Vieira,a que se sucedia o de Vidal, e o posteriormente Camarão e Dias. No entanto, naParaíba, devido ao sentimento localista, o nome de Vidal vem em primeiro lugar, o

30 A análise da questão religiosa permeia muitas partes da obra, mas o aspecto da intolerânciareligiosa se concentra no capítulo 5. Para tanto, vide MELLO, José Antonio Gonsalves. Tempo dosflamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. 4.ed. Rio dejaneiro: Topbooks, Univer Cidade, 2001.

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que, como já observamos, se observa no texto de Luiz Pinto. A invocaçãotetrárquica, como coloca Cabral de Mello, comportou uma dupla eliminação: doschefes da guerra de resistência, tida como a guerra perdida; e da dos que nãofossem nascidos ou residissem na terra. No entanto, como o autor relata, aconcepção dessa tetrarquia foi resultado de um longo processo de decantação eseleção dos que a deveriam compor.

André Vidal, por exemplo, foi escolhido no lugar de Antonio Cavalcanti porque,além de ser mazombo, tinha a vantagem de ter militado na resistência; e isto, quandoapenas saía da infância, aos doze anos (segundo Luiz Pinto ele teria dezoito anosna época). Como coloca Evaldo Cabral:

Ao contrário de Cavalcanti, [Vidal] participara de todos os grandesmomentos de ambas fases da guerra: as lutas em torno do Recife, aretirada para o sul, as incursões campanhistas contra o Brasil holandês,a expedição de Luis Barbalho através do interior do Nordeste, da baíade Touros a Salvador (1640), as articulações e intrigas urdidas na Bahiae em Pernambuco com vistas ao levante de 1645, a invasão da capitaniaem apoio aos insurretos à frente do seu próprio terço de veteranos, agovernação, partilhada com Vieira, da Guerra da Liberdade Divina, arecusa a acatar a ordem régia de retirar-se com suas tropas para a Bahia,Casa Forte e as duas batalhas dos Guararapes, a capitulação holandesano Recife, a missão que lhe confiara Barreto de comunicar oficialmentea D. João IV a restauração de Pernambuco - em resumo, a mais longa,densa e brilhante folha de serviços de que se poderia gabar um oficialluso-brasileiro que militasse nas guerras holandesas.31

Comparado a Cavalcanti, não pertencera pelo nascimento à nobreza da terra.Seu pai fora um artilheiro de bombarda que, na Paraíba, transitara para lavradorde canas. No entanto, criou-se uma tradição oral que apresentava o velho FranciscoVidal como um senhor de engenho da várzea do Paraíba. O próprio Luiz Pintodefende esta idéia, dizendo que o pai de Vidal seria dono do engenho São João.Tal idéia pode ser justificada pelo próprio processo de construção do mito de umherói, que, afinal, não poderia ter uma origem que não fosse nobre. Contudo,como um soldado de fortuna, Vidal foi nobilitado pela Coroa e ingressou naaçucocracia, ao adquirir diversos engenhos na Várzea e na Paraíba. Sem dúvida,a restauração fez a fortuna de Vidal.

Outro fator que favoreceu Vidal a se tornar um dos membros da tetrarquiaforam as crônicas produzidas sob encomenda por Vieira, que colocavam oparaibano como um companheiro de armas de Vieira, entre outras mençõeselogiosas. Em comparação à figura de Vieira, Vidal tinha um trunfo de que a desteprimeiro carecia: havia sido governador de Pernambuco por duas vezes após arestauração, fazendo frente, inclusive, ao poder central na Bahia, governada porBarreto de Menezes. No tocante a este último, cairá praticamente no esquecimentodo nativismo; sem dúvida, suas disputas com Vidal foram um componente relevante.Na análise do nativismo, percebe-se inicialmente, um acoplamento das figuras deVidal e Vieira, (que haviam se completado, como “o sol e a lua”, durante as batalhas)

31 MELLO, Rubro veio..., p. 202-203.

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fornecendo a imagem de uma restauração bicéfala. Camarão e Dias só foramadicionados posteriormente à tetrarquia32.

Para a visão nativista, ao passo que a ocupação holandesa seria uma puniçãodivina devido aos pecados dos habitantes de Pernambuco e a resistência fora umaempresa destinada ao fracasso, o movimento restaurador estava destinado aotriunfo, cujo plano haveria sido colocado sob o patrocínio do Altíssimo, em oposiçãoà heresia calvinista. A intervenção divina teria sido uma tônica desde os seuspreparativos e, como não poderia deixar de ser, foram registrados nas narrativasacontecimentos sobrenaturais e milagres os mais diversos, tais como aparições desantidades em pleno campo de batalha, o que só confirmaria que Deus estaria aolado dos luso-brasileiros. Neste sentido, buscava-se comprovar, de qualquer modo,que a vitória dos restauradores teria contado com uma ajuda sobrenatural. E essaajuda, logicamente, se manifestou, por exemplo, na impotência das balas flamengascontra os chefes militares ou mesmo soldados luso-brasileiros. Com relação a AndréVidal, são comuns, na narrativa dos cronistas, afirmações de que as balas não oatingiam e que, quando o atingiam, apenas feriam superficialmente. Sem dúvida,esse componente religioso buscava comprovar a inevitabilidade do sucesso daempresa, alimentando, conseqüentemente, o culto aos heróis dos campos debatalha33.

Como vimos, para a historiografia paraibana, a campanha contra a dominaçãoholandesa foi um dos marcos fundadores do nosso patriotismo, e, por que nãodizer, da nossa paraibanidade. Foi com a campanha de resistência e restauraçãoque se firmou uma das principais características, elaboradas pelo IHGP, do queviria a ser o “ser paraibano”: a bravura.

No entanto, essa característica, bem como a vitória da restauração, pode serpersonificada em um dos heróis da tetrarquia da restauração: o “paraibano” AndréVidal de Negreiros. Luiz Pinto, como vimos, demonstra claramente a versão maisdifundida de quem seria André Vidal: um herói destemido, patriota, extremamentecatólico e defensor de sua terra. Um exemplo bem acabado do que seria um“paraibano”. Com sua coragem, seu “nacionalismo”, seu amor pela fé católica,entre outros atributos, se tornou, para a história oficial, o principal herói paraibano(e por que não brasileiro?) do período colonial. Ele teria sido a “alma darestauração”, um “homem da guerra”, que dedicou toda a sua vida aos objetivoscívico-militares. Concebia-se, então, um verdadeiro herói, com todas assignificações que este termo acarreta. Só que Vidal não foi um herói qualquer: elefoi um herói paraibano.

32 Toda esta análise acerca da elaboração de uma tetrarquia de restauradores encontra-se no capítulo5 de Rubro veio. MELLO, Rubro veio..., p. 195-239.

33 MELLO, Rubro veio..., p. 283-293.

[14]; João Pessoa, jan./jun. 2006. 171

RESUMONo presente artigo, analisaremos a figura deAndré Vidal de Negreiros, um dos líderes dacampanha pela restauração das capitaniasque ficaram sob o domínio holandês, com oobjetivo de examinar o processo deconstrução da figura heróica de Vidal,especialmente pela historiografia, tendo emvista a necessidade desta de realizar umresgate de um passado histórico paraibanocomo forma de demonstrar e construir aidentidade paraibana como de um povobravio e lutador. Esse tipo de construção foium dos pressupostos da formação do quechamamos de “paraibanidade” intentada,sobretudo, pelo Instituto Histórico eGeográfico Paraibano (IHGP), que, desde asua fundação, se viu na obrigação de “contar”a História paraibana. Nesse sentido, fixar-nos-emos na figura de André Vidal, suaparticipação na resistência e na restauração,examinando a imagem heróica que se buscouconstruir deste e sua importância para aformação da identidade paraibana.Palavras-Chave: Identidade Paraibana;Historiografia; Paraíba Colonial.

ABSTRACTIn the present paper, we analyse the imageoh André Vidal de Negreiros, one of theleaders of the campaign for the restoration ofthe Captaincies those of which were underthe Dutch domain, aimed to examine theprocess of the construction of the heroicimage of André Vidal, especially by thehistoriography, having in mind the necessitythat it has of retaking a historical past in theState of Paraíba, as a way of showing andconstructing the identity of the State ofParaíba, allegedly being of a brave and fightingpeople. This kind of construction was one ofthe assumptions in the formation of what wecall “paraibanidade”, intended, amongothers, by the Geographic and HistoricInstitute of Paraíba (IHGP) that, since itsfoundation, was obliged to “tell” the historyof Paraíba. Therefore, we will focus ourattention on the image of André Vidal, hisparticipation in the resistance and in therestoration, examining the heroic image thatwas tried to be constructed and its importanceto the formation of the identity of the Stateof Paraíba.Keywords: Paraíba Identity; Historiography,Colonial Paraíba.

172 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

ARTE & HISTÓRIA:A CONCEPÇÃO DE ARTE NO OITOCENTOS E SUA

RELAÇÃO COM A CULTURA HISTÓRICA

Isis Pimentel de Castro1

Os campos artístico e historiográfico alcançaram tal grau de autonomizaçãoque são raros os profissionais que conseguem circular com desenvoltura nessesdois espaços. O processo de especialização, intensificado no último século, dividiuem disciplinas saberes que até então, não se reconheciam como distintos entre si.A autoridade conferida ao especialista naturalizou um isolamento entre áreas deconhecimento que nem sempre foram autônomas, como por exemplo, a arte e ahistória. Nesse sentido, a própria concepção de “arte brasileira” no século XIX, érica para se pensar a relação entre essas duas esferas.

O próprio termo “arte brasileira” somente pôde ser pensado no oitocentos,concomitante ao processo de construção de uma identidade nacional. O primeiroautor a se dedicar ao estabelecimento de uma história da arte brasileira foi Manuelde Araújo Porto-Alegre. Com uma vida intelectual intensa, assumiu posições dedestaque nas duas instituições mais importantes do Império: o Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), lugaresde produção de símbolos nacionais, que mantinham um diálogo intenso entre suasproduções.

Porto-Alegre foi um dos primeiros membros do Instituto Histórico, assumiu afunção de orador da instituição por quase quatorze anos, até tornar-se secretárioe vice-presidente da casa. Ao passo que, na AIBA, além de ter obtido a formaçãode pintor histórico, ocupou o cargo de professor de pintura histórica entre os anosde 1837 e 1848. Somente em 1854 assumiu a direção da academia, sendo oprimeiro brasileiro a alcançar esta posição. Durante sua administração, iniciouuma ampla mudança estrutural no ensino artístico da instituição, conhecida comoReforma Pedreira.

Porto-Alegre pode ser tomado como um exemplo da inexistência de campos deconhecimento totalmente autônomos durante o XIX, pois além de pintor históricoe professor, foi arquiteto, caricaturista e escritor. É considerado o fundador dahistória e da crítica de arte brasileira, responsável pela edificação da idéia de “artebrasileira” no oitocentos. Criou e dirigiu alguns dos principais periódicos da época,como a revistas Niterói (1836), Minerva Brasiliense (1843), Lanterna Mágica (1844)e Guanabara (1849). Em todas as suas atividades buscou imprimir na produçãocultural oitocentista uma “marca nacional” e investiu na criação de uma “culturabrasileira”. Em suas palavras: “A arte não progride, não forma escola, não adquireum caráter de superioridade e de permanência enquanto se não nacionaliza: apressareste passo é conquistar o futuro, é encurtar o tempo”2. Essa marca nacionalista naobra de Porto-Alegre também pode ser observada no poema “Colombo”, escrito

1 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-Mail:<[email protected]>.

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no ano de 1866. Aqui, assim como nos demais artigos que escreveria ao longo desua vida, enfatiza que só foi possível pensar numa nacionalidade brasileira, graçasà ação civilizatória dos colonizadores europeus, responsáveis por trazer o progressoe as luzes aos trópicos. Somente à medida em que o país se igualasse às naçõescivilizadas seria possível pensar em arte brasileira.

Desde sua atuação como crítico de arte, Porto-Alegre procurou unir história earte. Essa união pode ser pensada por dois caminhos: o primeiro, centra-se naprópria concepção de “obra de arte”, que deveria ser antes de tudo uma “obrahistórica”, não somente por pertencer ao seu tempo, mas principalmente porquecaberia à história o papel de civilizar os homens por meio dos exemplos do passado.A arte, a serviço da história, tornava-se um instrumento fecundo ao esclarecimentoe ao progresso da humanidade. O segundo, entende que a história possibilita oestabelecimento de uma linha evolutiva no tempo por meio da criação de marcoshistóricos. A construção de um passado artístico glorioso tornava possível oestabelecimento de uma evolução artística, necessária à edificação de uma “artebrasileira”, uma vez que somente quando fosse criado um marco fundador para aprodução artística do país, poderia ser instituída uma linha progressiva no tempo,que tornaria o presente “habilitado” para o desenvolvimento das belas artes. Essalinha evolutiva começava com as primeiras peças confeccionadas no períodocolonial e culminava, obviamente, com a produção dos artistas do Império.

Empenhado na tarefa de estabelecer as origens da produção artística brasileira,Porto-Alegre criou o que, até hoje, chama-se de Escola Fluminense de Pintura,termo empregado pela primeira vez no ano de 18413. Esse ensaio foi o primeiroesforço de sistematizar o passado artístico brasileiro, reconhecido como o artigofundador de uma história da arte brasileira. Em sua narrativa, o autor ocultoutudo aquilo que pudesse colocar em xeque o emprego do termo “escola fluminense”.A existência de poucas referências cronológicas serve, justamente, para evitar oquestionamento do estilo, já que os artistas que o compunham, nem ao menostiveram uma formação artística comum.

Ao elevar os artífices setecentistas ao status de “artistas”, Porto-Alegre acaboupor fundar uma arte brasileira antes mesmo da chegada da Missão ArtísticaFrancesa, sublinhou, dessa forma, a genuína vocação artística nacional. Não eramraros os momentos em que igualava os artistas da Escola Fluminense aos grandesnomes da arte européia, como é possível ver no texto abaixo:

Valentim elevou a arte borromínica a um ponto tal, que rivaliza com asmaravilhas de Versailles e a Capela Real de Dresda. (...)José de Oliveira é o Pozzo brasileiro (...)José Maurício foi o homem que nasceu como Dante em uma épocabárbara para a música.4

2 PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Algumas idéias sobre as Belas Artes e a Indústria no Impériodo Brasil. Revista Guanabara, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, fev. 1850, p. 141.

3 PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Sobre a antiga escola de pintura fluminense. Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro,Rio de Janeiro, tomo III, 1841.

4 PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Santa Cruz dos militares. Ostensor Brasileiro: jornal literáriopictorial, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, tomo 1, 1845, p. 241-248.

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Os artífices setecentistas eram em suas maioria negros ou mulatos. Igualarnegros escravos, mulatos e forros aos “gênios” da arte européia, não aproxima oautor de uma postura abolicionista. Pois se no passado, circunstancialmente, osartistas nacionais eram escravos ou forros, no presente eles deveriam ser formadospela Academia de Belas Artes, única instituição capaz de dar-lhes a educaçãoadequada. Ao fazer tal comparação, tinha como objetivo inserir a arte brasileiraem uma tradição já consolidada5. A Europa servia de parâmetro no momento decriação de uma história da arte brasileira. O que não significa pensar essa“aproximação” como uma “imitação”, pois seu intuito ao construir um passadoartístico glorioso era colocar o jovem Império em consonância com as naçõescivilizadas.

O termo “arte brasileira” caberia às obras que preferencialmente representassemtemáticas da história nacional, o que pressupunha a apropriação de elementos dopassado para a construção de uma identidade que habilitasse os trópicos acomungar dos mesmos valores dos países europeus. Dessa forma, o estilo artísticodeveria ser de inspiração européia, para marcar esse pertencimento junto às naçõescivilizadas, mas os motivos deveriam valorizar a paisagem e os feitos históricos doImpério. Somente com a crise do sistema monárquico e o advento da Repúblicaessa concepção de arte foi modificada e fundada em novos termos, a criação detécnicas e a utilização de materiais genuinamente brasileiros foram valorizadas6.

Uma concepção de arte tão distinta daquela naturalizada nos dias de hoje,causa um certo estranhamento, mas para compreender a emergência desse conceitofaz-se necessário sublinhar o lugar da cultura histórica no século XIX. O Brasiloitocentista foi fundamentalmente marcado pelo que Carl Schorske7 chamou deum “pensar com a história”, que possibilitou não só o surgimento da Históriaenquanto disciplina, mas também a emergência de uma gama expressiva deproduções relacionadas à história8. Pode-se citar como exemplos: a arquitetura,que através do neoclássico buscava resgatar a grandeza e serenidade dasconstruções da Antigüidade; a significativa demanda por romances históricos; e,sobretudo, a visibilidade que as pinturas voltadas para a história nacional tiveramnesse século.

A pintura histórica era considerada o gênero artístico mais nobre e completo,não só por incluir em sua constituição todos os demais gêneros da pintura9, mas5 SQUEFF, Letícia Coelho. Quando a história reinventa a arte: A escola de pintura fluminense.Rotunda, Campinas, ano 1, n. 1, p. 19-31, abr. 2003. Disponível em <http://www.iar.unicamp.br/rotunda/rotunda01.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2004, p. 23.

6 ZÍLIO, Carlos. A modernidade efêmera: anos 80 na Academia. In. 180 anos da Escola de BelasArtes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997, p. 237-242, p. 238-239.

7 SCHORSKE, Carl. E. Pensando com a História. indagações na passagem para o modernismo.Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

8 Cf. BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. New York: Twaine Publishers, 1995;GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memóriadisciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). História Cultural: experiências de pesquisa.Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003.

9 Em ordem decrescente a hierarquia dos gêneros de pintura estava desta forma estabelecida:pintura histórica; pintura de paisagem, de retrato e de gênero; Temas oriundos da imaginação,ligados a temáticas populares. Com o advento de movimentos como o Realismo, por exemplo,essa hierarquia é invertida, e temas do cotidiano são valorizados.

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também por abordar em suas telas as cenas mais virtuosas da ação humana. Oensino artístico da academia seguiu os moldes do neoclassicismo, que tinhainspiração sobretudo nos estudos de Winckelmann, considerado o principal teóricodo estilo. O neoclássico caracterizou-se pelo desejo de elevar o terreno ao divinoatravés das artes, aperfeiçoar o mundo por meio da razão e da moral e constituir-se como um importante instrumento de civilização. A missão do artista era instruirmoralmente por meio da arte aqueles que a observam, tal como frisa Winckelmann:“o pincel que o artista manejar, deverá ser mergulhado na inteligência”10.

O discurso visual possuía uma função pedagógica, primordial na inspiração devirtudes e ideais civilizatórios. De acordo com a Regra de Horácio, utilizada comfreqüência durante o século XIX, as noções transmitidas através visão seriamsedimentadas de maneira mais rápida e eficaz na memória, enquanto aquelasadquiridas por meio da audição seriam facilmente esquecidas. A visão eraapreciada enquanto instrumento de conhecimento mais confiável e legítimo. Dessaforma, a arte torna-se fundamental na consolidação de valores como ordem,patriotismo e civilidade, tão caros a uma nação em construção.

Inspirada na filosofia clássica, a compreensão de que a arte é uma imitaçãodas coisas e ações humanas, impregna-a de valores morais, na medida em que asartes superiores seriam aquelas que se propusessem a representar ações humanasvirtuosas, capazes de sublimar o espírito na busca da “bela alma”, ideal sóalcançado por meio da imitação das obras de arte da Grécia Antiga. O aprendizadodo artista deveria ser feito a partir da observação da arte grega, pois ela teria em sia soma de todos os ângulos perfeitos da natureza e superaria, dessa forma, arealidade em beleza e perfeição. A imitação aqui se aproxima mais da idéia deinspiração, no sentido de alcançar o pensamento grego: “O importante, quando sefaz arte não consiste em simplesmente copiar os antigos, e sim em pensar como osgregos, em comportar-se como eles, exigindo da arte uma missão semelhante à dosgregos”11. A pintura histórica, por estar diretamente envolvida com a exaltaçãodos momentos gloriosos da nação e dos atos heróicos de grandes homens, torna-se o espaço privilegiado para gravar na alma de seus observadores os nobressentimentos de amor à pátria. De acordo com Winckelmann,

todas as artes têm dupla finalidade: devem ao mesmo tempo agradar einstruir. Por essa razão, acharam muitos dentre os maiores paisagistasque se desincumbiriam apenas de metade das suas obrigações paracom a arte, se deixassem as suas paisagens sem nenhuma figurahumana.12

Justamente por tratar diretamente dos grandes momentos da história dahumanidade, a pintura histórica se configura como peça-chave da relação entre aAcademia Imperial de Belas Artes e o Império. Sua narrativa era balizada porparâmetros estabelecidos pelo Instituto Histórico. Tudo aquilo que ferisse os ideaisde ordem e patriotismo, como por exemplo, as revoltas regenciais, deveriam ser

10 WINCKELMANN, J. J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto-Alegre: Movimento, 1975, p.69.11 WINCKELMANN, apud BORNHEIM, Gerd. Páginas de Filosofia da Arte. Rio de Janeiro: UAPÊ,1998, p. 93.

12 WINCKELMANN, Reflexões sobre..., p. 69.

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apagadas da narrativa oficial. Somente seriam exaltados os grandes momentoshistóricos que despertassem o patriotismo.

As principais referências de pintura histórica são as telas de Victor Meirelles ePedro Américo, artistas que produziram num período em que a pintura de históriaera uma das principais ferramentas na construção de uma identidade nacional.Porém, para que esse gênero artístico alcançasse tal expressividade com as obras“A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles, ou, “Batalha do Avahy”, dePedro Américo, foi necessária uma iniciativa que colocasse em harmonia arte ehistória. Esse movimento das artes em direção a Clio foi posto em andamento porAraújo Porto-Alegre, tanto nos seus trabalhos como crítico de arte, como na ocasiãoem que foi diretor da Academia Imperial de Belas Artes.

Sua compreensão de arte enquanto relação com a história fez com que noperíodo em que foi diretor da AIBA, de 1854 a 1857, procurasse estimular aprodução de pintura histórica no Brasil. Somente quando arte e históriacaminhassem juntas, seria possível criar um passado glorioso que conferisse aoBrasil seu lugar junto às nações civilizadas e construir uma identidade nacional. AReforma Pedreira foi um momento de esforço da Academia no sentido de revestira arte de uma identidade nacional, cabia à pintura de história um lugar privilegiadonesse projeto, pois configurava-se como a forma mais eficaz de incutir na populaçãosentimentos patrióticos. Segundo Carlos Zílio:

A proposta de Porto-Alegre visava dotar a arte brasileira de umaidentidade própria capaz de fornecer uma imagem a um país recémindependente, baseado ao mesmo tempo no estilo acadêmico com umatemática histórica. Este projeto terá seu coroamento nas pinturas dePedro Américo e Victor Meirelles e seu apogeu na consagração públicae no debate crítico que teve como objeto as batalhas do Avaí e dosGuararapes.13

Reforma Pedreira: o estímulo à produção artística nacional

A Reforma Pedreira, decretada em 14 de maio de 1855, orientou as atividadesda Academia de Belas Artes até a emergência da República, buscando harmonizara instituição com o projeto civilizatório do Império por meio do estímulo àindustrialização e à construção de uma iconografia nacional. De acordo com osestatutos da reforma, cabia à AIBA: “promover o progresso das Artes no Brasil,combater os erros introduzidos em matéria de gosto, dar a todos os artefatos daindústria nacional a conveniente perfeição, e enfim auxiliar o Governo em tãoimportante objeto”14.

A reestruturação do ensino artístico se integrava a uma ação mais ampla, quevisava a reformulação das instituições de ensino do país, chamada de ReformaCouto Ferraz15, que tinha como objetivo difundir a instrução e criar mecanismosde fiscalização das instituições de ensino existentes, além de unificar e centralizara instrução nas mãos do governo central, de modo a adequar a nação brasileira

13 ZÍLIO, A modernidade efêmera..., p. 237.14 ESTATUTOS DA ACADEMIA DAS BELAS ARTES. Decreto nº 1603, de 14 de maio de 1855. Dánovos estatutos à Academia das Belas Artes. Título IV, artigo 10.

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ao modelo de civilização européia por meio da instrução pública. A difusãohomogênea de valores e padrões de comportamento a partir de uma única matriz,ditada pelo Estado, poria fim aos “localismos” e serviria à consolidação de umsentimento de identidade.

Porto-Alegre procurou adaptar a instituição aos progressos técnicos dooitocentos, aumentar a ascendência de professores brasileiros e criar uma novaforma de expressão artística que correspondesse à realidade nacional. Redefiniu opapel das atividades manuais, dividiu o ensino da instituição entre as atividadestécnicas e as artísticas e, por conseguinte, delimitou o espaço de artistas e artíficesaté então indefinido. Criou cadeiras voltadas ao ensino técnico: dessa forma osartífices receberam uma formação acadêmica, importante no desenvolvimentoindustrial e, conseqüentemente, no advento do “progresso”. Além de ampliar osconhecimentos e o campo de atividades dos artistas. Os estatutos de 1855estabeleciam que nas cadeiras destinadas ao ensino industrial:

Haverá sempre nestas três últimas aulas duas espécies de alunos: osArtistas e os Artífices, os que se dedicaram as Belas Artes e os queprofessam as Artes mecânicas. Os alunos desta segunda espécie terãoum livro próprio de matrícula, na qual se declarará a profissão queseguem, para que os professores o sAIBAm e o possam dirigir os seusestudos convenientemente.16

Embora os artífices freqüentassem algumas das aulas ministradas aos artistas,ficavam restritos às cadeiras técnicas, não podiam freqüentar, em nenhumahipótese, as cadeiras destinadas ao ensino artístico17. O curso teórico de Históriadas Belas Artes, Estética e Arqueologia, seria destinado somente aos alunos-artistas.Os artífices possuíam um livro de chamada separado, em que deveria constar aprofissão que seguiam, para que os professores lhes ensinassem o que fosse útil asua atividade.

Talvez, a maior contribuição de Porto-Alegre para a história da arte brasileiratenha sido a definição do espaço social do artista, visto de maneira pejorativa porestar vinculado ao trabalho manual. A própria ênfase dada pelo diretor ao gênerode pintura histórica serviu para valorizar o status do artista, já que caberia aospintores históricos difundir as virtudes e os ideais civilizatórios.

A Reforma estabeleceu a divisão do curso em cinco sessões: Arquitetura,Escultura, Pintura, Ciências Acessórias e Música. Introduziu as cadeiras de DesenhoGeométrico, Desenho Industrial, Teoria das Sombras e Perspectiva, MatemáticasAplicadas, Escultura de Ornatos e História das Artes, Estética e Arqueologia.Incorporou também, o Conservatório de Música à academia, buscou fazer dainstituição não apenas uma escola de artes, mas também um centro cultural.

15 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e aconstituição do espaço social do artista. Caderno CEDES, v. 20, n. 51, nov. 2000. Disponível em:< h t t p : / / w w w . s c i e l o . b r . / s c i e l o . p h d ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i d = S 0 1 0 1 -2622000000200008&Ing=nrm=isso&tlng=pt>. Acesso em: 19 jul. 2004.

16 ESTATUTOS..., Título VIII, artigo 79.17 DENIS, Rafael Cardoso. A Academia de Belas Artes e o ensino técnico. In: 180 Anos da Escola deBelas Artes. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 1997, p. 188.

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Reforçou a política de intercâmbio da AIBA com os centros artísticos europeuspor meio de relações diplomáticas e acadêmicas.

Porto-Alegre criou uma biblioteca e uma pinacoteca, instituiu o cargo derestaurador de quadros e de conservador da pinacoteca. Pôs em vigor um grandenúmero de normas de conduta, com o intuito de moralizar a instituição. Aproximouo ensino artístico de uma formação industrial, e também ampliou o prazo dasbolsas concedidas aos artistas que conquistassem o prêmio de viagem, pois segundoele, o período de dois anos era muito curto e insuficiente para o aprendizado deuma língua estrangeira e para a formação do artista.

A reforma estabeleceu uma série de medidas, que privilegiaram a constituiçãode artistas “nacionais” como, por exemplo, estímulo à entrada de brasileiros noseio da instituição, seja como alunos ou como professores. A partir dessasmudanças, houve uma significativa ascendência de professores brasileiros. Osestatutos da reforma que regulamentam a participação nos concursos da AIBA,favoreciam os artistas nacionais, já que não era permitido o ingresso nascompetições dos “que tiverem feito seus estudos fora do Império; Os estrangeirosque não forem filhos da Academia”18.

Porto-Alegre reformulou o ensino artístico oferecido na AIBA, ampliou aformação do artista. Sua reforma teve um papel fundamental no processo dedefinição da atividade artística, pois ao dividir o curso da AIBA entre técnico eartístico, definiu e separou artistas de artífices: elevou a atividade do artista,concedeu-lhe status; Promoveu a arte a uma posição de superioridade e concedeuao pintor histórico o mais alto lugar nessa hierarquia dos gêneros artísticos.

Fisiologia das paixões e modelo vivo

A Reforma Pedreira impulsionou de maneira significativa a produção de pinturade história, na medida em que investiu na formação de pintores desse gênero, pormeio da ênfase dada às aulas de Anatomia e Fisiologia das Paixões e, de ModeloVivo. Essas disciplinas visavam aprimorar o desenho do corpo humano, inclusivea representação das emoções por meio das feições do rosto. Segundo os estatutosda reforma, “os alunos (...) desenharão e esculpirão ossos e músculos, exercitar-se-ão em desenhar o modelo vivo e descrevê-lo anatomicamente a fim de conheceremperfeitamente o arcabouço humano e, seu revestimento”19.

A perfeita representação do corpo era a base da produção de pintura histórica.Preocupado com o descaso em que se encontravam as aulas de anatomia e demodelo vivo, logo que assumiu o cargo de diretor da instituição, Porto-Alegreestabeleceu em um dos estatutos de sua reforma, que todas as cadeiras deveriamter um programa que estivesse em harmonia com a proposta de ensino da casa.Uma de suas maiores preocupações era romper com o modelo de ensino baseadona cópia, com o objetivo de incitar nos alunos a criatividade: entendia que somentedessa forma poderia conduzir a produção da casa ao progresso artístico, poisformaria “criadores em vez de copistas”.

Porto-Alegre chamava também a atenção para a urgência de dotar a instituiçãode gravuras da fauna e flora nacionais, com intuito de valorizar a natureza brasileira.18 ESTATUTOS..., Título IV, art. 56, §2; §3.19 ESTATUTOS..., Título V, seção XII, art. 45.

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A pintura de paisagem desempenharia duas funções primordiais à construção deuma identidade nacional: 1) o conhecimento dos espécimes da natureza nacional;2) a afirmação do caráter nacional da arte. São conhecidos os incentivos doImperador à pesquisas sobre a fauna e a flora brasileira.

A Reforma de 1855 também agiu na direção de estabelecer pré-requisitos maisexigentes para aqueles alunos que desejassem ocupar a cadeira de pintura histórica:investiu, dessa forma, em uma formação mais demorada, porém mais completa.Porto-Alegre estabeleceu que para cursar a cadeira de pintura histórica, o alunodeveria obter boas notas nas seguintes matérias: Matemáticas Aplicadas, DesenhoGeométrico e Desenho Figurado. Depois de admitido no curso teria que assistiraulas de Modelo Vivo e de Anatomia e Fisiologia das Paixões, matérias obrigatóriasa quem pretendesse seguir nesse gênero.

O exaustivo estudo do corpo humano é fundamental para a pintura histórica.Como foi observado, este gênero artístico foi marcado pela preocupação emrepresentar eventos gloriosos e marcantes, que inspirassem nobres sentimentos.Sendo assim, as aulas de Modelo Vivo e de Anatomia e Fisiologia das Paixõesconstituíam-se como esteios na execução dessas telas. Os movimentos do corpoteriam que ser perfeitamente delineados, as expressões faciais comoveriam, opanejamento das roupas pareceria mover-se com a silhueta do corpo, bem como apaisagem, que seria cuidadosamente “reconstituída” para abrigar os atores dacena, tal como num palco. O observador deveria ter a impressão de ser testemunhaocular do evento. Nenhum detalhe poderia ser mal representado, a identificaçãodo espectador com a cena dependia disso. Um trecho da carta escrita por Porto-Alegre a Victor Meirelles, em 1855, mostra o destaque dado à representação docorpo e da emoção:

A figura do algoz tem uma boa cabeça; o pescoço, o tórax e o abdômenestão sofrivelmente modelados e melhor coloridos (...) parece-me quehá uma falhazinha miológica na região intercostal. O braço direito, noque toca ao antebraço, punho e mão, esses não foram estudados comtanto amor como o abdômen. O panejamento está bem lançado, bemdobrado, e de um bonito tom, porém, o esbatiamento, ou a sombra quelhe projeta o braço não está muito exato: deveria seguir as curvas daspregas e não apresentar uma linha reta, como a figura em suageneralidade. (...) Antes de compor, veja a ação em geral, veja, depois,cada uma de suas personagens; estude-as moral e fisiologicamente paraque elas possam, cada uma per si, compor um todo harmônico everdadeiro.20

Os estudos sobre anatomia eram a base da produção de pintura histórica. Poresse motivo, quando Porto-Alegre dedica especial atenção a este gênero artístico,cria e incentiva as cadeiras de Anatomia e Fisiologia das Paixões e de Modelo Vivo.É necessário chamar novamente a atenção para o fato de que a importância dessasmatérias reside em promover a ligação entre o observador e a pintura, ou melhor, a

20 GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influência na Academia Imperial de BelasArtes e no meio artístico do Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Riode Janeiro, SPHAN, n. 14, 1959, p. 72-73.

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identificação do cidadão com os eventos da história nacional, representados natela.

Pintores de História: entre o historiador e o artista

A ligação entre pintura histórica e a disciplina História vai além das evidentespistas que o próprio nome leva a pensar. Não se trata apenas da temática dastelas, mas também de uma ligação estreita entre o trabalho do artista e dohistoriador, ambos engajados na construção de uma memória nacional e noestabelecimento de uma identidade como forma de legitimar a autoridade sobre opassado, o historiador e o pintor de história procuraram marcá-la por meio dainvestigação científica.

A disciplina História nasceu no século XIX e procurou consolidar seu lugarenquanto ciência por meio das fontes, único elo de ligação entre o historiador e o“fato histórico”. A fonte nesse sentido não era entendida como representação, mascomo a própria materialidade do passado. A pintura histórica, por lidar com os“fatos históricos”, também deveria utilizar-se de fontes e buscar a “verdade”. Tantoa Academia de Belas Artes quanto o IHGB são herdeiros dessa tradição, poisambos são responsáveis pela narrativa do passado nacional. Mais do que isso,essas duas instituições lidam com o elo entre o passado e o presente. QuandoVictor Meirelles reinterpretou um episódio como o da Invasão Holandesa, na telaBatalha dos Guararapes, ele os fez “reviver”, construiu uma memória que se apoiavana (re) constituição desses momentos a partir de uma narrativa oficial.

As produções da AIBA e do IHGB estavam carregadas de uma dimensãodidática, a escrita e a imagem serviam ao esclarecimento dos seus cidadãos, poisgravavam em seus espíritos as virtudes de uma boa sociedade, ditadas, é claro,pela elite do Império. Dessa forma, tanto o Instituto Histórico quanto a AcademiaImperial tornaram-se instâncias de controle social, exatamente por se constituíremcomo lugares de construção do passado. Nesse sentido, as duas instituiçõesdetinham o domínio sobre a escrita desse passado: enquanto a AIBA a escreviana tela a óleo, o IHGB o fazia no papel. Qualquer outra visão, que não a oficial,não encontrava espaço para florescer.

A pintura histórica procurou marcar sua legitimidade por meio da investigaçãocientífica. Essa tradição buscou distanciar-se de categorias como “imaginação”,carregada, nesse momento, de uma conotação negativa. Os pintores de históriaempenhavam-se representar “o que realmente aconteceu” e deveriam, portanto,afastar-se de tudo que pudesse “falsear” ou “camuflar” esse passado. O pintordeveria permear todo seu trabalho por uma minuciosa pesquisa histórica e atentaobservação, pois seriam elas que “resgatariam” e “provariam” a existência do fatoque desejava retratar. De nada adiantariam todos os seus estudos de anatomia ede claro-escuro, se na representação de um grande momento da história nacional,não vestisse seus atores com a roupa da época ou não reconstituísse o ambiente omais fidedignamente possível. As fontes tornavam-se seu refúgio: quando a críticao atingia, sua defesa era toda pautada no arrolamento dos documentos nos quaisse baseou, quão mais “original”, mais legítimo seu trabalho.

No ano de 1868, Victor Meirelles permaneceu cerca de seis meses em Humaitá,Paraguai, onde realizou estudos sobre o território para compor a tela Passagem de

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Humaitá. Ao voltar, embarcou num navio a vapor que percorreu o Rio Paraná.Colheu novamente informações, porém desta vez para o quadro Combate Navalde Riachuelo. O mesmo tipo de apreço pela precisão histórica pode ser percebidoem Pedro Américo, que trocou correspondências com o mordomo do príncipeGaston d’Orleans, Sr. José Maria Jacintho Rabello21, e pediu-lhe informações sobreo traje que o Conde d’Eu vestia, os nomes e postos das pessoas próximas a eledurante o episódio da batalha na região do Campo Grande, entre outros dadosque julgava necessário para confeccionar a Batalha de Campo Grande.

A tela não poderia ser puro exercício da “imaginação” do artista, mas sim frutode pesquisas documentais, de leitura de textos sobre a época e de observação dospersonagens e do local onde o evento ocorreu. Nesse sentido, a crítica do jornalitaliano Corriere Italiano (26 abr. 1888) sobre o quadro Proclamação daIndependência, de Pedro Américo, exposto em Florença no ano de 1888, fazia aseguinte afirmação:

A ação foi estudada no próprio cenário e habilmente representada comtodo rigor histórico. (...) Em resumo, a nova tela de Pedro Américo éuma obra colossal... e que traz o cunho de uma imaginação criadora ede um robusto engenho; qualidades que se manifestam na concepção,no desenho, na verdadeira reprodução dos tipos e dos costumes locaisassim como do cenário onde se passou o fato histórico e que o autorfaz representar com tanta robustez de idéia e de execução.22

O rigor no estudo da anatomia e a busca pela veracidade são dois lados de ummesmo objetivo, que é promover a ligação entre o observador e a pintura, oumelhor, a identificação do cidadão com os eventos da história nacionalrepresentados na tela, são esses dois elementos que fundamentaram a pinturahistórica, enquanto produtora de uma imagem oficial da nação a partir de 1870.

Pintura Histórica: a construção de uma memória nacional

Embora as mudanças introduzidas com Reforma Pedreira não tenham tidoresultados imediatos, estabeleceram as bases sobre as quais o ensino das belasartes atingiu o auge de sua vocação nacionalista a partir da década de 70, doséculo XIX. Foi nesse período que a pintura histórica ganhou expressão com seusartistas oficiais - Victor Meirelles e Pedro Américo - e quando as Exposições Geraistornaram-se os grandes eventos do Império. Segundo Debret, foi graças à direçãode Porto-Alegre que a pintura histórica conseguiu popularidade e prestígio.

(...) os pintores, que não eram até então apreciados, foram admitidosnas sociedades mais brilhantes, gozam agora de estima e da consideraçãogeral. O Imperador manda parar sua carruagem na rua para conversarcom pintores; deixando um deles cair o pincel num momento deinspiração, o Imperador se abaixou, ergueu-o e o devolveu.23

21 Carta de 8 nov. 1869. Arquivo Histórico do Museu Imperial.22 Apud ROSEMBERG, Lilia Ruth Bergstein. Pedro Américo e o olhar oitocentista. Rio de Janeiro:Barroso Edições, 2002, p. 72-73, grifo nosso.

23 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:Edusp, 1989, p. 104.

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A Reforma Pedreira forneceu as bases sobre as quais as pinturas históricas seconsolidariam de tal forma na memória nacional, que se desvinculariam de suadimensão histórica original. Ou seja, ao invés de serem encaradas como frutos deuma determinada concepção artística e histórica oitocentista passam a ser tomadascomo reflexo daquilo que representavam.

Essas imagens acompanham a trajetória de grande parte da população brasileira,seja por meio de livros didáticos, de revistas, de cenas da televisão ou mesmoatravés do cinema, como é o caso do filme Descobrimento do Brasil (1937), dodiretor Humberto Mauro. Imagens que, de certa forma, se eternizaram no imagináriocom tal força que é quase impossível pensar na missa realizada por ocasião do“Descobrimento”, sem nos remetermos automaticamente à tela de Victor Meirelles,A Primeira Missa no Brasil. É importante refazer o percurso que as levou a possuirtamanha força e importância, desnaturalizar seu lugar de “imagens canônicas”24,devolver-lhes sua historicidade.

O movimento no sentido de historicizar não só o que é entendido como “artebrasileira”, mas, conseqüentemente, as telas de pintura de história, é uma formade compreender esses símbolos enquanto construções históricas. Tomar essamemória como questão é ao mesmo tempo problematizá-la enquanto fruto de umaexperiência histórica e como constituidora de nossa própria identidade.

24 SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o ensino de História. Sinopse - Revista de Cinema,São Paulo, n. 7, 2002.

RESUMOA pintura histórica alcançou no século XIXum importante lugar no projeto político doSegundo Reinado devido ao trabalhorealizado por Araújo Porto-Alegre, durante aReforma Pedreira. Este gênero artístico foiresponsável pela formação de uma memórianacional e mantinha um intenso diálogo coma produção do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro (IHGB). A pintura histórica foiessencial na construção de uma identidadenacional, porque através dela foi forjado umpassado épico e monumental onde toda apopulação pudesse se sentir representada noseventos gloriosos da história nacional. Otrabalho de Porto-Alegre como crítico de artee diretor Academia Imperial de Belas Artes(AIBA) possibilitou a visibilidade da pinturahistórica com seus pintores oficiais, PedroAmérico e Victor Meirelles.Palavras-Chave: Pintura Histórica; AraújoPorto-Alegre; Arte Brasileira.

ABSTRACTThe historical painting has reached in the 19th

century an important place in Second Reign’spolitical project due to the work made byAraújo Porto-Alegre, during the PereiraReform. This artistic genre was responsiblefor the formation of a national memory andhas maintained an intense dialogue with theproduction of the Historical and GeographicalBrazilian Institute (IHGB). The historicalpainting was essential in the building of abrasilian identity, because through it an epicand monumental past was forged where allthe population could feel represented in theglorious events of national history. The Porto-Alegre’s work as critic of art and director ofthe Imperial Academy of Fine Arts (AIBA)enabled the visibility of the historical paintingwith its official painters, Pedro Américo andVictor Meirelles.Keywords: Historical Painting; Araújo Porto-Alegre; Brazilian Art.

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OS MARACATUS-NAÇÃO DO RECIFE E AESPETACULARIZAÇÃO DA CULTURA POPULAR

(1960-1990)Isabel Cristina Martins Guillen1

Ivaldo Marciano de França Lima2

Os maracatus-nação fazem um enorme sucesso no cenário cultural da cidadedo Recife na atualidade. Quem quer que passeie pelas centenárias ruas do bairrodo Recife num domingo ao entardecer fatalmente encontrará grupos de jovenspelas esquinas tocando “afaias” (bombos), e muitos grupos culturais incorporaramàs suas apresentações a batida do maracatu ou seu jeito de dançar. No carnaval,desde 2002, aos grupos de maracatu sob a regência do músico Nana deVasconcelos incumbiu-se de promover o espetáculo de abertura oficial do carnavalda cidade, e durante o reinado de momo qualquer brincante pode encontrar pelasruas diversos grupos de maracatu fazendo apresentações junto aos blocos e troças.Guy Debord atentou que o espetáculo apresenta-se como instrumento de unificação,ao mesmo tempo em que está em toda parte. As críticas tecidas à organização doespetáculo regido por Nana Vasconcelos para a abertura do carnaval, observando-se que a reunião de diversas nações de maracatu sob uma única batuta e sonoridaderetirava-lhes a autonomia e tendia a homogeneizar a batida do maracatu sem seatentar para a diversidade e singularidade musical de cada grupo, caminham nomesmo sentido das críticas de Debord3. Esse movimento de banalização quetransformou os maracatus em “moda” homogeneíza os diversos sentidos de seufazer. Uma nação tem fortes vínculos com uma comunidade de afro-descendentes,relações identitárias com suas religiões e vincula-se fortemente a um sentido detradição.

Quando se pensa a cultura popular na atualidade, algumas perguntas sãoinevitáveis. Trata-se de um conceito ainda válido para os estudos históricos? Sesim, como operacionalizá-lo, tomando-se como objeto um mundo em constante erápida transformação, em que a indústria cultural de tudo se apropria? Existe emCasa Forte, um bairro de classe média alta da cidade do Recife, um maracatu feitopor jovens brancos, denominado por Batuque Estrelado. Não discutiremos aqui asrazões que levaram o grupo a formar um maracatu em 1999, ápice do MovimentoMangue Beat4. Mas pode-se perfeitamente interrogar sobre o que distingue estegrupo - que possui fantasias, cortejo real, instrumentos de percussão e excelentes

1 Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco, Doutora emHistória pela Universidade Estadual de Campinas. E-Mail: <[email protected]>.

2 Mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-Mail: <[email protected]>.

3 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.4 Maracatus formados por grupos de elite aparecem já no século XIX, como uma pantomima aoscostumes afro-descendentes. Também existiram grupos de classe média nas décadas de 1930, e1940, em que se destacara o grupo Timbu Coroado (formado por membros da equipe do ClubeNáutico). Atualmente há um avultado número de maracatus de classe média, a maioria constituídaapenas pelo batuque, e existem em maior número do que os “populares” ou maracatus-nação.

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músicos -, de um maracatu-nação feito em Chão de Estrelas, comunidade carenteda zona norte do Recife, possuidora de um dos mais baixos IDH da cidade. Umasérie de pequenas diferenças pode ser apontada desde a forma como se confeccionaas fantasias, o material utilizado, bem como os sentidos que possuem para aquelesque as vestem. Todos estes detalhes podem ser estendidos ao cortejo real, em quereis e rainhas, damas do paço e calunga têm papéis sociais marcadamente distintosnos dois maracatus. Há que se acrescentar também as diferenças no batuque, naforma de cantar e no ritmo (tempo) em que o conjunto musical executa os baques.Sobressaem em todos estes aspectos, a relação que se estabelece, cotidianamente,em todo e qualquer momento com o sagrado. Pode-se afirmar que um é maismaracatu que o outro? Há aqueles que afirmam categoricamente que sim, que oBatuque Estrelado pode ser definido como um grupo “estilizado” ou para-folclórico.Portanto, o “verdadeiro” maracatu seria aquele feito pelos mais pobres, afro-descendentes em sua maioria. Porém, podemos afirmar que ambos são diferentes,uma vez que o Batuque Estrelado faz maracatu num momento cultural em que estamanifestação está em cena, mas isto não implica em superioridade de um para ooutro, mas uma relação de alteridade, em que a diferença está na inserção socialde cada um deles. Só ao segundo maracatu considera-se “legítimo” denominar decultura popular.

A visão um tanto quanto estanque dos processos de trocas culturais foi criticadaao se afirmar a impossibilidade de se proceder a tais separações, entre o populare o erudito5. Não obstante as observações feitas por Chartier e Michel de Certeau,dentre outros, a utilização do conceito de cultura popular ainda é válida na medidaem que marca o lugar social onde é produzida, permitindo a fluência das diferençasnum mundo onde tudo se imiscui e se transmuta, bem como os diferentessignificados que as práticas culturais adquirem no seu fazer. Esta é uma posiçãoque se aproxima da abordagem de Thompson ao discutir as práticas culturais dosoperários ingleses, suas imbricações com a experiência e consciência de classe6.Estas posições, contudo, não anulam as discussões feitas por Carlo Ginzburg noprefácio da obra O queijo e os vermes, onde discute a utilização do conceito decircularidade utilizado por Bakthin7. Esta é uma discussão que se espraiou emdiversos campos e tem utilizado vários conceitos, mas cujo debate se centra nastrocas culturais. Devemos aqui mencionar os estudos de Canclini sobre o hibridismocultural, e Gruzinski sobre a mestiçagem8. Encontramos tal debate nos estudos

Ver: SILVA, Leonardo Dantas. “Maracatus no Carnaval do Recife: quem diria que o primeiromaracatu era formado por brancos”. Jornal do Commercio, Recife, 26 jan. 1991.

5 CHARTIER, Roger. “Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, FGV, v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192; CERTEAU, Michel de et al. A beleza do morto.In: _______. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995, p. 55-85.

6 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3 vol. 1987;THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; THOMPSON,E. P. “Folclore, antropologia e história social”. In: ________. As peculiaridades dos ingleses e outrosartigos. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.

7 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.8 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 1998; GRUZINSKI, Serge. Opensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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afro-descendentes, em que a crioulização é contraposta a uma permanência daafricanidade9. A África, o lugar que ocupa no imaginário e na construção deidentidades, tem sido largamente discutido. Essa questão, também central paraeste artigo, foi sintetizada por Stuart Hall ao afirmar que a África é como útero demãe para onde sempre se quer voltar. Não se pode pensar a cultura afro-descendentena contemporaneidade sem se pensar o lugar ocupado por essa África mitificada.É inútil querer mascarar a perda resultante da diáspora africana, pois “o passadocontinua a nos falar. Mas já não é como um simples passado factual que se dirige anós, pois nossa relação com ele, como a relação de uma criança com a mãe, ésempre já ‘depois da separação’. É construído por intermédio de memória, fantasia,narrativa e mito”10.

Mas será correto afirmar que esse movimento de espetacularização ocorre apenasna contemporaneidade em função do processo de globalização que transformouradicalmente as manifestações culturais em mercadoria? Este artigo objetivamostrar que o processo de espetacularização da cultura popular e em especial dosmaracatus-nação vem ocorrendo há mais tempo, e que é preciso atentar para ahistória desse movimento em seu fazer-se, evidenciando as disputas internas, asredes às quais se vinculou antes de se tornar esse aparente todo homogêneo.

Os maracatus e sua história

Nem sempre os maracatus fizeram o sucesso que fazem na contemporaneidade.Nem sempre os maracatus atraíram a atenção de muitos estudiosos, tal comoocorre hoje. Os poucos autores que escreveram sobre o assunto, dedicaram-se emespecial a pensar suas “origens”, ora representando-os como uma sobrevivênciatotêmica e fadada ao desaparecimento, ora como uma reminiscência africana, etambém destinada a deixar de existir à medida que os tempos modernos avançavam,destruindo tudo o que estivesse ligado ao passado. Dessa forma, dentre os muitosintelectuais que se debruçaram nos estudos sobre os maracatus, destaca-se Pereirada Costa, principalmente por ter sido este quem os descreveu pela primeira vez eao mesmo tempo prognosticou o seu desaparecimento, isto já no início do séculoXX11.

Desde o final do século XIX até os anos de 1940, os maracatus foram objeto deintensa perseguição policial, ora devido às “arruaças” que provocavam (segundoos jornais que registravam as brigas entre maracatuzeiros), ora por que estavamidentificados com a “selvageria e incivilidade africanas”. Vale ressaltar que nosanos 1930, os maracatus foram utilizados pelos praticantes das religiões afro-descendentes para acobertar suas práticas religiosas, uma vez que, apesar dos

9 PRICE, Richard. “O milagre da crioulização: retrospectiva”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro,IUPERJ, ano 25, n. 03, 2003, p. 383-419.

10 HALL, Stuart. “Identidade cultural e diáspora”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,Rio de Janeiro, IPHAN, n. 24, 1996, p. 70.

11 COSTA, F. A Pereira. Folk-lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular emPernambuco. Prefácio de Mauro Mota. Primeira Edição Autônoma. Recife: Arquivo Público Estadual,1974 [1906]. Sobre Pereira da Costa e os maracatus, ver: LIMA, Ivaldo Marciano de França.“Práticas e representações em choque: o lugar social dos maracatus na cidade do Recife, nos anosde 1890-1930”. Clio, Série História do Nordeste, Recife, UFPE, v. 1, n. 21, 2003, p. 85-106.

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preconceitos, os maracatus possuíam legitimidade para circular nas ruas duranteo carnaval. Em Gonçalves Fernandes encontramos a notícia de que:

Sob pretexto de que se tratava de casas de maracatu os macumbeirosvinham ali exercendo grande atividade, reunindo grande número deadeptos. O primeiro núcleo de catimbó visado pela polícia foi o ‘maracatuEstrela Baiana’, situados à rua da S. Mangueira, em Afogados. 12

Como é possível verificar, o flagrante da polícia foi justamente o“desmascaramento” de um terreiro disfarçado em maracatu. Tal questão forneceum importante indício de que esta prática acontecia, sobretudo devido ao fato deque os maracatus possuíam permissão dada pela polícia para ensaiarem em suassedes, sendo, portanto, tolerados. O contrário ocorria com os terreiros durante osgovernos de Carlos de Lima Cavalcanti (1930-1937), em que sofreram intensavigilância, e Agamenon Magalhães (1937-1945), em que foram perseguidos ereprimidos com grande violência. A título de exemplo, pode-se citar o caso de PaiAdão, um dos mais famosos pais de santo do Recife que, diante dessa repressão,requereu à polícia autorização para manter um maracatu, ou seja, o direito defazer ensaios. O maracatu de Pai Adão, que na requisição ganhou a designaçãode Maracatu Africano Obaoumim, possivelmente nunca desfilou pelas ruas dacidade do Recife. Seu nome sequer consta nas páginas dos jornais que semprelistavam os grupos que desfilavam no carnaval. Outros conhecidos pais de santo,como Anselmo e Arthur Rosendo recorreram ao mesmo expediente13.

Até o início dos anos 1940 encontram-se poucas notícias sobre os maracatusnos jornais. Pequenas passagens em alguns poucos contos ou romances14. Há, noentanto, uma freqüência mais constante nas páginas policiais dos jornais quenoticiavam o envolvimento de maracatuzeiros em brigas, por exemplo15. Foram osmodernistas, no seu afã de descobrir o povo e a essência de nossa nacionalidadeque focalizaram os maracatus no final dos anos de 1930 e 1940, e num processode mediação cultural retiraram essa manifestação das páginas policiais para aspáginas centrais que discutiam a cultura popular e a identidade regional16.

12 FERNANDES, Gonçalves. Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negros fetichistasdo Recife. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

13 Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, Repartição Central de Polícia (RCP), volume1578 - Secção de Teatros e Diversões Públicas, Censura Teatral - Portarias - jan./ jun. 1933,portaria n. 67, de 19 de janeiro de 1933.

14 REGO, José Lins do. Moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. SETTE, Mário.Maxambombas e maracatus. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981. VAREJÃO,Lucilo. “Reis de Maracatu”. In: MAIOR, Mário Souto; SILVA, Leonardo Dantas. Antologia doCarnaval do Recife. Recife: Massangana, 1991.

15 Veja-se, por exemplo, o Jornal Pequeno, de 12 fev. 1902, em que o Maracatu Centro Pequeno “foidispersado (sic) a espada” por ordem do Delegado, no momento em que se recolhia a sede, ouseja, sem motivo aparente. A rainha, inclusive, saiu ferida. Veja-se ainda notícias semelhantes em:Diário de Pernambuco, Recife, 26 fev. 1889; Jornal do Recife, 08 fev. 1888; Diário de Pernambuco,Recife, 18 mai. 1880.

16 GUILLEN, Isabel Cristina Martins. “Maracatus-nação entre os modernistas e a tradição: discutindomediações culturais no Recife dos anos 1930-1940”. Clio, Série História do Nordeste, Recife,UFPE, v. 1, n. 21, 2003, p. 107-135.

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Ainda preocupado com a identidade nacional e as relações desta com a culturapopular, o maestro Guerra-Peixe publicou na década de 1950 a obra Maracatus doRecife17. Este livro pode ser considerado (ainda!) como o estudo mais completosobre os maracatus, e tem como mérito uma vasta pesquisa de campo, da qualresultou a categorização dos dois tipos de maracatus existentes na cidade(maracatus-nação ou de baque-virado e de orquestra ou baque-solto). Até a décadade 1940, encontramos notícias de um único tipo de maracatu, hoje denominadode nação ou baque virado, descrito por Pereira da Costa no início do século XX.Este maracatu é constituído de uma corte real da qual fazem parte rei, rainha,príncipes e princesas, além de damas da corte, embaixadores, etc. Fazem parteainda do cortejo real algumas figuras emblemáticas, tais como a dama do paço,que carrega a boneca (ou calunga), o pálio, que protege rei e rainha e o estandarte.Este cortejo é acompanhado por um conjunto musical constituído de instrumentosde percussão, e que é denominado de batuque. Fazem parte desse conjunto asafayas, caixas de guerra e tarol, gonguê e mineiro. Nas décadas de 1930-1940,podemos perceber pela cidade do Recife que um outro tipo de maracatu ganhavisibilidade, e que Guerra Peixe denomina de “orquestra ou baque-solto”18. Estetipo de maracatu se diferencia do nação principalmente pela composição do seuconjunto musical, constituído de um terno (gonguê de duas campânulas, porca -espécie de cuíca -, ganzá e bombo) e de instrumentos de sopro. Além disso, éemblemática do maracatu de orquestra a presença do caboclo de lança, muitoconhecido na atualidade e eleito como símbolo da cultura popular pernambucana19.

Destaca-se na análise de Guerra-Peixe a discussão em torno da extremacomplexidade musical existente nos maracatus, contribuindo para a quebra dosconceitos construídos por estudiosos anteriores, que o caracterizavam como umamúsica primitiva. Além disso, Guerra Peixe promoveu uma grande revisãobibliográfica, explicitando incoerências e deslizes nas obras dos autores que lheantecederam no estudo dos maracatus, a exemplo de Mario de Andrade, AscensoFerreira e Renato Almeida20. Guerra-Peixe também foi importante no que diz respeitoao processo de mediação entre os maracatus e a sociedade recifense, contribuindopara que os mesmos fossem vistos de maneira mais positiva. A sua obra foi marcanteo suficiente para que ainda hoje seja tomada como referência que orienta tantointelectuais interessados no estudo da cultura popular, como os maracatuzeiros

17 PEIXE, Guerra. Maracatus do Recife. 2. ed. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/ Irmãos Vitale,1980 [ 1955]. Sobre Guerra-Peixe ver: GUILLEN, Isabel Cristina Martins. “Música, identidade etradição: Guerra Peixe e os maracatus”. Anais Eletrônicos do II Encontro Nacional da ABET:Etnomusicologia- lugares e caminhos, fronteiras e diálogos. Salvador: ABET, 2004.

18 Katarina Real nos anos 1960 vai denominar esse tipo de maracatu rural, nome que hoje tem certaprevalência.

19 Essa não diferenciação nos anos 1930-1940 denota que o significado de maracatu é polissêmico,não se referindo exclusivamente a um tipo de manifestação. Ver GUILLEN, “Música, identidade etradição...”.

20 ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp, 1942;ANDRADE, Mário. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL/ FundaçãoNacional Pró-Memória, 1982; FERREIRA, Ascenso. O maracatu; presépios e pastoris; o bumbameu boi: ensaios folclóricos. Recife: Departamento de Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife,1986.

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que nele se apóiam buscando um referendo para a legitimidade e autenticidadenos maracatus-nação.

Katarina Real, antropóloga norte-americana, esteve no Recife entre os anos de1961 a 1965 em pesquisa sobre as manifestações populares locais. Seu livro, Ofolclore no carnaval do Recife21, cumpriu um importante papel ao cartografar osgrupos de maracatus existentes nesse período, e ao constatar seu possíveldesaparecimento, atuou como membro da Comissão Pernambucana de Folclore,no sentido de fundar novos grupos, a exemplo do Maracatu Porto Rico do Oriente.Sobre esta questão, Katarina Real escreveu Eudes, o rei negro do maracatu, emque descreve sua atuação junto com o folclorista João Santiago no processo defundação do maracatu acima referido22.

Periodizando

Para um melhor entendimento dos maracatus-nação e das estratégias que osmaracatuzeiros utilizaram para circular nessa sociedade hostil aos costumes epráticas afro-descendentes, estabelecer uma periodização da sua história mostrou-se importante, pois ajudou a explicar alguns aspectos centrais, a exemplo da longadecadência por que passaram, sobretudo a partir dos anos 1960, e osressurgimentos de alguns grupos ocorridos nos anos 1980. Não estamos tomandopor decadência, o sentido empregado por alguns folcloristas que, com receio dastransformações pelos quais passaram as manifestações populares e os maracatus,apontam todo o tempo para a perda da autenticidade, mas a brutal diminuição naquantidade destes grupos, e que foi registrada por Katarina Real nos carnavais de1961 a 1965, quando desfilaram não mais do que cinco maracatus e destes, doisdeixaram de existir durante a sua pesquisa23. Nesse período assistimos aodesaparecimento de alguns grupos, a criação de novos e o ressurgimento de outrosque tinham deixado de desfilar24.

Nessa periodização, é importante destacar dois grandes acontecimentos, centraistanto na história dos maracatus-nação, como no carnaval do Recife. O primeirorefere-se à morte, em outubro de 1962, de dona Santa, rainha do Maracatu Elefante,que deixou de desfilar por um suposto pedido da falecida, e teve seu espóliorecolhido no Museu do Homem do Nordeste anos depois. O segundo diz respeitoà invenção de uma tradição no início dos anos 1960, qual seja, a Noite dosTambores Silenciosos, pelo jornalista Paulo Viana, e que ao longo dos anos foiressignificada pelos maracatuzeiros, transformada em um evento de forte conotaçãoreligiosa, e voltada para a celebração dos eguns (os espíritos dos mortos eancestrais). Em se tratando de cultura afro-descendente, a Noite dos TamboresSilenciosos tornou-se uma referência obrigatória, e qualquer maracatu-nação quepreze “as tradições africanas” tem o dever de nela participar.

21 REAL, Katarina. O folclore no carnaval do Recife. Recife. Fundação Joaquim Nabuco - Ed.Massangana, 1990.

22 REAL, Katarina. Eudes: o rei negro do maracatu. Recife, FUNDAJ/ Ed. Massangana, 2001.23 REAL, O folclore no carnaval...24 LIMA, Ivaldo Marciano de França. “Periodizando a história dos maracatus”. Folclore, Recife,Fundação Joaquim Nabuco, n. 297, 2003, p. 1-8.

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Esta periodização se completa com o surgimento do Movimento Mangue Beat,nos fins dos anos 1980 e início dos 199025. Graças à atuação de Chico Science esua banda, Nação Zumbi, com as “antenas parabólicas fincadas na lama”, as batidasdo maracatu, alçaram vôo e chegaram a lugares nunca dantes imaginados, aexemplo de muitos países europeus - como Rússia, Finlândia, Dinamarca,Alemanha e Lichtenstein - Japão e EUA, que hoje possuem grupos de maracatu,sem falar dos outros Estados brasileiros. No Recife, assistiu-se a igual revivificaçãodos maracatus, sendo possível perceber a existência de mais de duas dezenas degrupos. Deve-se ressaltar que tais aspectos refletiram entre os maracatuzeiros,criando condições para que estes não só fossem alçados a uma situação de grandevisibilidade na atualidade, a ponto de o carnaval da cidade do Recife ter a suaabertura oficial realizada por um grande espetáculo envolvendo a participação deNaná Vasconcelos e mais onze grupos de maracatus-nação, conforme já nosreferimos26.

A africanidade dos maracatus e a espetacularização da cultura popular

Entre a proclamada decadência dos anos 1960, e a sua emergência como atorcentral na espetacularização da cultura popular nos anos 1990, o que teria ocorrido?O que possibilitou aos maracatus serem objetos de disputa tanto pelos queproclamam o discurso da pernambucanidade, que impõe o branqueamento e adistância dos seus integrantes das religiões afro, bem como pelo movimento negroe alguns maracatus, que tentam positivar a negritude e a africanidade destamanifestação popular? O maracatu-nação encontra-se hoje no centro de umadisputa simbólica entre a pernambucanidade e a africanidade. Ao analisar a históriados maracatus nesse período, percebemos que esta questão é o resultado de umlongo processo de disputa entre diferentes atores sociais, não podendo ser imputadaapenas ao recente processo de globalização e mercantilização da cultura27. É precisoconsiderar a dinâmica da disputa local para se entender minimamente estesproblemas. Em torno desta questão pretende-se discutir as estratégias de algunsimportantes maracatuzeiros diante da ação de instituições públicas queregulamentam o carnaval, da Comissão Pernambucana de Folclore, do processode massificação da cultura popular e de sua espetacularização.

É fundamental que nesta discussão sobre a história dos maracatus nacontemporaneidade esteja-se atento à inserção dos grupos no processo deglobalização e seu desenvolvimento em Pernambuco, ou seja, entendido em suas25 Sobre o Movimento Mangue Beat ver: TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora34, 2000.

26 Uma discussão sobre os maracatus da contemporaneidade e os processos de mediação e diálogoscom a indústria cultural podem ser vistos em: LIMA, Ivaldo Marciano de França. “Os maracatus doRecife, as disputas e influências entre o fazer e o refazer dos toques: os casos do Cambinda Estrela,Porto Rico e Estrela Brilhante”. Anais eletrônicos do II encontro nacional da ABET - AssociaçãoBrasileira de Etno-musicologia.

Salvador: ABET, 2004.27 Essa discussão em torno da apropriação dos maracatus pelo discurso que proclama apernambucanidade, encontra-se em LIMA, Ivaldo Marciano de França. “Maracatus em moda: decoisas de negros xangozeiros para símbolo da identidade pernambucana”. Anais eletrônicos doXXIII Simpósio Nacional de História da ANPUH. Londrina: ANPUH, 2005.

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particularidades. Neste caso, perpassando todo o debate contemporâneo sobremúsica, cultura popular e espetacularização em Pernambuco, está a discussão defundo (e não hegemônica) acerca da identidade cultural no Nordeste, ou do que amídia tem designado como pernambucanidade28.

Por outro lado, pode-se pensar a cultura afro-descendente no Brasil sem enfrentaruma discussão sobre os modos como o racismo aqui se reproduz? É possívelcompreender as práticas culturais de grupos de afro-descendentes sem entendercomo o mito da democracia racial é construído e desconstruído cotidianamente?Partimos do pressuposto que não, uma vez que pensar a cultura afro-descendenteno Brasil em sua historicidade é ter que enfrentar de cara os meandros com que oracismo se reproduz. Trata-se de um amálgama de tal modo intrincado, que só osmais ingênuos poderiam pensar em separá-los. A periodização estabelecida porLilia Schwarcz acerca do debate sobre a questão racial contempla dois grandesperíodos29. O primeiro abrange as décadas de 1930 a 1950, em que se assiste àestetização da democracia racial, a partir da valorização da mestiçagem,consubstanciada no mulato e na valorização do exotismo da cultura afro-descendente: a feijoada, o samba, a capoeira e os orixás. O segundo períodocontempla as décadas de 1950 até praticamente a atualidade, em que seapresentam como questões centrais a denúncia do racismo e do mito da democraciaracial a partir do impacto que as obras de Florestan Fernandes causaram. Aapropriação dessas denúncias por parte dos movimentos negros organizados criouas condições para que a cultura brasileira, e a afro-descendente em particular,fosse repensada no sentido de serem valorizadas e, em alguns casos, recriadas30.Práticas culturais (simbólicas) estão no centro dessa luta política. A cultura afro-descendente tem sido muitas vezes reificada, apresentada como um repertório inertede tradições, como se não estivesse enraizada em processos culturais dinâmicos eem ambientes sociais desiguais, e nesse sentido pode-se defini-la como culturalismo.Por outro lado, essa mesma cultura tem sido apresentada pelos movimentos negroscomo espaço de luta política em que significados dominantes são solapados,perdendo seu sentido e valor, em que novos significados emergem, a partir dessaluta, com outros valores. Pensar a cultura afro-descendente é estar acima de tudoatento a essas questões, a esse fluxo e refluxo da luta política, muitas vezes invisível,não perceptível tanto para aqueles que a produzem como para aqueles que aconsomem. E não é assim que se faz a história, como campo aberto depossibilidades? É nesse sentido que este artigo se propôs a pensar a história dos

28 Sobre identidade cultural no nordeste da contemporaneidade há um sem número de referênciasem jornais e sites da internet. Uma visão crítica desse debate pode ser encontrada em ANJOS,Moacir. “Vinte notas sobre a identidade cultural do nordeste do Brasil”. Disponível em: <http://acd.ufrj.br/pacc/artelatina/moacir.html>.

29 SCHWARCZ, Lília Moritz. “Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade”.In: História da Vida Privada no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 173-244.

30 SILVA, Jonatas C. “História de lutas negras: memórias do surgimento do movimento negro naBahia”. In: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro noBrasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo(1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. MOURA, Clóvis. “Organizações negras”. In: SINGER, Paul &BRANT, Vinícius Caldeira. São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEBRAP,1980, p. 154-157.

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maracatus-nação na cidade do Recife, durante as décadas de 1960 a 1990, imersosnuma complexa luta política para estabelecer o poder de significar as práticasculturais afro-descendentes, em que o poder simbólico é central31. Vejamos umpouco esse campo.

Final dos anos 1950, início da década de 1960, Mãe Menininha do Gantois,Joãozinho da Goméia, sucesso absoluto das escolas de samba, Vinicius de Moraiscompondo músicas em que os orixás são personagens centrais, Jorge Amado eGabriela cor de cravo e canela, as suas famosas representações dos orixás e dosterreiros de candomblé baianos. A cultura afro-descendente encontra-se em francoprocesso de valorização. Como explicar esse fenômeno? É preciso remeter adiscussão para o papel central que a cultura popular exercia nas discussões políticas,no centro do debate do nacional-desenvolvimentismo. Quem era o povo brasileiro?Como conscientizá-lo? Como promover a revolução ou as transformaçõesnecessárias para colocar o Brasil num cenário internacional em que a guerra friadeterminava a tônica política? Do movimento armorial ao movimento de culturapopular (MCP), o nacional-popular estava no centro das discussões políticas eculturais. A ditadura militar implantada a partir de 1964 representou um durogolpe nas organizações políticas, e os movimentos culturais foram alçados a umestatuto político até então pouco perceptível na história brasileira. A música deprotesto, os festivais, o teatro e o cinema podem ser entendidos como porta-vozesdos muitos silêncios e silenciados. Até a década de 1970, quando emergem osnovos movimentos sociais, é nesses movimentos culturais que se podem expressardesejos de transformação ou mesmo insatisfação política32.

Este quadro torna-se ainda mais complexo se lembrarmos que se vivia umprocesso de consolidação da indústria cultural no Brasil, em que o “popular”gradativamente se tornava cultura de massa. Além da consolidação do rádio, háuma expansão da indústria fonográfica e a implantação das redes de televisão33.Como pensar a cultura popular nesse contexto? Para muitos intelectuais,principalmente os folcloristas, essa indústria cultural e a modernização do paíssinalizavam para o desaparecimento das manifestações consideradas maistradicionais e, portanto, populares. Trata-se de um momento histórico em que oerudito, o popular e o massivo ganham novas feições dado o intenso processo deinterpenetração de um em outro, haja vista a complexidade existente no fazer-seque envolve elementos de cada um dos campos acima mencionados. Não é possívelanalisar a cultura popular no período em questão (e o maracatu em particular)sem perceber as influências da cultura dita erudita e da indústria cultural.

Nesse sentido, pensar a história dos maracatus-nação imersos nesse processo éestar atento à complexidade das relações que estas manifestações estabelecem

31 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.32 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPA à era da TV. Rio deJaneiro: Record, 2000; HOLLANDA, Heloísa Buarque de & GONÇALVES, Marcos A. Cultura eparticipação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982. Sobre os novos movimentos sociais, ver:SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. São Paulo: Cortez, 1995. Sobre onacional popular ver: CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1989.

33 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:Brasiliense, 1999.

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com os poderes públicos que normatizam o carnaval e o transforma em objeto deturismo, os folcloristas e intelectuais que promovem a “defesa” da cultura popularcontra suas descaracterizações, e a indústria cultural que promove suaespetacularização. Nesse ínterim, é necessário também estar atento ao surgimentoda indústria do turismo, interessada em promover novos atrativos em que a culturapopular particularmente no Nordeste exerce um papel central. No entanto, esseprocesso não pode ser pensado sem se considerar a própria história dos maracatus,seus integrantes, e suas relações com as comunidades de afro-descendentes, bemcomo com o poder público. Vejamos um caso específico: a Noite dos TamboresSilenciosos.

A Noite dos Tambores Silenciosos e o ressurgir dos maracatus

Paulo Viana, jornalista negro que atuou durante muitos anos no Diário da Noite,no início dos anos 1960, foi o grande responsável pela organização da Noite dosTambores Silenciosos, evento hoje de considerável importância para osmaracatuzeiros. Na atualidade, o evento congrega os maracatus da cidade numacerimônia religiosa em que se homenageiam os antepassados, em frente à igrejade Nossa Senhora do Terço. No Pátio do Terço localizava-se a casa das tias Sinháe Yayá, famosas ialorixás e conhecidas carnavalescas, ícones da cultura afro-descendente no Recife. No início dos anos 1960 Paulo Viana promoveu uma sériede eventos no Pátio do Terço, e que dariam origem à Noite dos TamboresSilenciosos, iniciando esses eventos com o encontro entre as yalorixás com DonaSanta, rainha do maracatu Elefante, “únicas descendentes diretas de africanosainda existentes no Recife”34.

O jornalista, nos anos 1950, já tinha publicado uma série de matérias sobre osmaracatus em que lhes atribui uma série de características que afirma seremafricanas, mas que não se preocupa em comprovar35. Paulo Viana fazia questãode afirmar que confiava mais na tradição oral das comunidades de afro-descendentes do Recife do que em estudos de intelectuais. Foi nesse sentido queorganizou a Noite dos Tambores Silenciosos. Para lembrar dos ancestraisescravizados, promoveu espetáculo teatral e convidou maracatus e caboclinhosque existiam na cidade para participar do evento36. Ao longo dos anos, a Noitedos Tambores Silenciosos se confirmou como um acontecimento central da culturaafro-descendente, como se fosse da tradição cultural dos maracatus ir ao Pátio doTerço e prestar homenagens aos eguns, lembrar o tempo da escravidão, como nosreferimos acima.

Paulo Viana, ainda nos anos de 1966 e 1967, organizou no interior daEMPETUR, um Festival de Xangô, em que reuniu pais e mães de santo no estádiodo SESC para homenagear o 13 de maio. Para este festival acorreram EudesChagas e Maria Madalena, rei e rainha de maracatu, Joãozinho da Goméia dentreoutros pais e mães de terreiros, bem como contou com o apoio de Katarina Real,

34 Diário da Noite, Recife, 26 fev. 1960.35 VIANA, Paulo. “O maracatu Elefante desaparecerá com sua rainha”. Diário da Noite, Recife, 7 jan.1958, p. 11; VIANA, Paulo. “Os grandes e legítimos maracatus cedem lugar a grupos sofisticados”.Diário da Noite, Recife, 13 jan. 1958, p. 11.

36 Correio do Povo, Recife, 11 fev. 1961.

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renomada folclorista37. Este breve panorama do início dos anos 1960 nos mostraque apesar do diagnóstico feito por Katarina Real acerca da decadência por quepassavam os maracatus, havia um esforço por parte de alguns mediadores culturais,para positivar a cultura afro-descendente, no sentido de salvá-la da morteanunciada.

Nesse sentido, Katarina Real se esforça para ajudar Eudes Chagas a criar o seumaracatu, conforme já nos referimos, e de coroá-lo em uma cerimônia pública,tendo inclusive buscado a intervenção do arcebispo Dom Helder Câmara paraque o evento fosse realizado em uma igreja católica e com um padre, conformeacontecia nas antigas coroações dos reis e rainhas do Congo. Katarina Real nãoconseguiu o seu intento por completo, uma vez que houve a recusa de participaçãoda igreja católica romana, mas o evento ocorreu, com a presença de um padre daigreja católica brasileira. O Porto Rico do Oriente deixou de desfilar após a mortede Eudes em 1978, para ser reativado em 1981, também com a participação deum importante folclorista, Roberto Benjamin, dentre outros. Este acontecimento,porém, é marcado por disputas, uma vez que os seguidores e familiares do falecidoEudes se recusaram a apoiar a iniciativa, ameaçando inclusive ir à justiça, o quefaz com que os organizadores da reativação excluam o termo “Oriente” domaracatu, passando o mesmo a ser denominado de Porto Rico. Os “partidários”de Eudes fundaram um outro maracatu, o Encanto do Pina38. É importante destacara intima colaboração dos folcloristas citados que participavam da ComissãoPernambucana de Folclore39.

Em 1977 comemorou-se o centenário de nascimento de Dona Santa, e a Noitedos Tambores Silenciosos foi organizada nesse ano para lhe prestar as devidashomenagens. Mais uma vez os atores do Teatro Equipe encenaram e cantaram oLamento Negro, poema de Paulo Viana composto nos anos sessenta para acerimônia e musicada posteriormente por João Santiago. Além das homenagens aDona Santa, ressalte-se na organização da cerimônia toda uma logística que apreparava como espetáculo a ser capturado pelas lentes das câmaras de televisão,de modo que pudesse ser transmitida nos jornais televisivos a todo o sul do país40.O espetáculo-cerimônia, naturalmente, contou com a presença dos maracatus-nação, em especial o Porto Rico do Oriente, uma vez que Eudes tinha sido duranteanos o rei de Dona Santa.

37 Diário da Noite, Recife, 12 mai. 1967: “Festival tem show de abertura com Mãe Lídia e o babáFeliz”. Diário da Noite, Recife, 13 mai. 1967: “Ginásio do SESC vira terreiro: começa hoje festivalde xangô”. Diário da Noite, Recife, 15 mai. 1967: “Festival de xangô faz ginásio tremer de medo:espetáculo diferente que divertiu os turistas”.

38 BENJAMIN, Roberto. “A nação Porto Rico foi embora”. Jornal do Comércio, Recife, 25 fev. 1979.Ver também Katarina Real, que narra sua participação no processo em Eudes, o rei negro domaracatu. Maria de Sônia, última rainha de Eudes no Porto Rico, fundou junto com os partidáriosde Eudes o Maracatu Encanto do Pina. Maria de Sônia faleceu em 1995, após o desfile de seumaracatu.

39 Tais atitudes coadunavam-se com as orientações da Campanha de defesa do folclore brasileiro.Sobre a questão ver: VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro(1947 - 1964). Rio de Janeiro: Funarte/ FGV, 1997.

40 Diário de Pernambuco, Recife, 19 fev. 1977.

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Em 1986, a reativação do Maracatu Nação Elefante, posto no museu quandoda morte de Dona Santa41, contou com a colaboração e apoio de uma série depessoas dos meios intelectuais da cidade, a exemplo de Gilberto Freyre, DivaPacheco, Evandro Rabelo e outros importantes intelectuais e mediadores culturaisda cidade do Recife. Ao noticiar o fato, diversos jornais traçaram o perfil históricodo maracatu, lembrando Dona Santa, e o jornalista do Diário de Pernambuco,Fernando Barreto afirmou: “o Recife reconquista sua tradição”42. No entanto, apesardos esforços, os maracatus seguiam “ameaçados”. Luiz de França, presidente emestre do Maracatu Leão Coroado, aparece com bastante freqüência nesses anosnas páginas dos jornais relatando dificuldades financeiras para colocar seu grupona rua43. Ora, pode-se perceber um intenso esforço por parte desses mediadoresculturais bem como das instituições públicas em propiciar condições para apreservação dos maracatus. Se no início dos anos 1960 existiam poucos maracatusna cidade do Recife, durante o período assistimos a um paulatino crescimentodessas manifestações, ou mesmo afirmação dos maracatus considerados mais“tradicionais”, a exemplo do Leão Coroado, que apesar das dificuldades continuavadesfilando. Nos anos 1970 dois maracatuzeiros se destacam: Madalena, coroadarainha em 1972 pelo maracatu Leão Coroado, e Luiz de França, principalarticulador e dirigente deste grupo44. Luiz de França foi um dos personagens maissignificativos na história dos maracatus-nação da cidade do Recife, sobretudo nasegunda metade do século XX. Sua vida é bastante associada com a de seumaracatu. Sobre ele foram escritos alguns artigos, notadamente um bastanteapologético e que o coloca como um líder bem resolvido e professor dos ofíciosexistentes no maracatu45.

No entanto, se os maracatus definhavam, para onde se dirigiam os populares?Ao que tudo indica, não só para os “pernambucanos” clubes e blocos de frevo. Noinício da década de 1960 existia na cidade do Recife, mais de uma vintena deescolas de samba que desfilavam e disputavam concursos no carnaval. A presençadas escolas de samba suscitou intenso debate em torno da perda das tradições eda “carioquização” do carnaval:

Enquanto as escolas de samba arrastavam milhares de participantes,cada maracatu se apresentava com pouco mais de quarenta pessoas.

41 No vocabulário dos maracatuzeiros, quando um maracatu deixa de desfilar, vai para o museu. Nocaso do Elefante, quando Dona Santa morreu, em 1962, seu maracatu foi desativado e anosdepois seu acervo recolhido ao Museu do Homem do Nordeste. Quando o Elefante foi reativado,dizia que tinha saído do museu.

42 “Nação Maracatu Elefante volta às ruas para brilhar no carnaval 86 do Recife”. Diário dePernambuco, Recife, 07 fev. 1986, Caderno Viver, p. 1.

43 Veja-se, por exemplo: “Luiz de França e o maracatu Leão Coroado”. Jornal do Recife, Recife, ago.1995, p. 3. “Um Leão sem coroa”. Diário de Pernambuco, Recife, 14 jan. 1996.

44 Sobre Dona Madalena e sua coroação, Ver: “Maria Madalena, uma rainha negra do nosso carnaval”.Diário de Pernambuco, Recife, 18 fev. 1979. Sobre coroações das rainhas de maracatu, ver:GUILLEN, Isabel. “Rainhas coroadas: história e ritual nos maracatus-nação do Recife”. Cadernode Estudos Sociais, Recife, Fundação Joaquim Nabuco, v. 20, n. 1, jan./jun. 2004, p. 39-52.

45 BENJAMIN, Roberto. “Dona Santa e Luiz de França: gente dos maracatus”. In: SILVA, VagnerGonçalves da. Memória afro-brasileira: artes do corpo. São Paulo: s.r., p. 54-76.

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(...) Seduzidos pelos efeitos especiais e todo o brilho que as escolasexibiam, os desfilantes esqueciam, então, a magia que sempre envolveuos centenários maracatus. 46

As escolas de samba representavam, para o porta-voz da pernambucanidade,e pai da democracia racial brasileira, Gilberto Freyre:

A traição ostensiva às tradições mais características de Pernambuco,no que se refere a expressões carnavalescas. Um carnaval do Recife emque comecem a predominar escolas de samba ou qualquer outroexotismo dirigido, já não é um carnaval recifense ou pernambucano: éum inexpressível, postiço e até caricaturesco carnaval subcarioca ousub isso ou sub aquilo. De modo que a inesperada predominância, nocarnaval deste ano, do samba subcarioca, deve alarmar, inquietar edespertar o brio de todo bom pernambucano: é preciso que a invasãoseja detida; e que o carnaval de 67 volte a ser espontaneamente recifensee caracteristicamente pernambucano. 47

Assim, em meio a complexas transformações culturais, o maracatu era postoem cena para representar a mais autêntica e tradicional cultura popularpernambucana. Assistimos, no entanto, um momento de intensa disputa entre osmaracatuzeiros em torno da “tradição dos maracatus”. Enquanto Luiz de Françaafirmava que com sua morte o Leão Coroado deveria ir para o museu, D. Elda,Rainha do Porto Rico, trazia para a cena cultural da cidade, um novo “estilo” defazer maracatu, suscitando muitas críticas e ao mesmo tempo em que conquistavaespaço na mídia48. No ano de 1989, Elda e seu maracatu foram à Europa,confirmando que gradativamente conquistava espaços frente à tradição,representada por Dona Madalena, então rainha do Elefante. Assim, em meio à tãopropalada decadência dos maracatus, percebemos não só disputas entre osmaracatuzeiros, como também destes com as instituições públicas e os intelectuais“interessados” em ajudar a “salvar” os maracatus. Luiz de França sintetizou estaquestão, quando declarou para a jornalista Adriana Dória Matos, do Caderno Cdo Jornal do Commercio em 1995: “Hoje está tudo diferente, muita morte eviolência. Hoje, também, todos podem entrar no maracatu, antes só entrava negro.As tradições se perderam”49.

No início dos anos 1990, no entanto, a participação dos movimentos negrosnos maracatus indica que a questão era mais complexa, porque as disputas eramdiversas e polifônicas. Telma Chasse, participante do Conselho de Entidades Negras,indicada para ocupar a presidência do Leão Coroado, declarava:

46 Declaração de Raul Lody em reportagem de Leda Rivas. Pasta Recortes de jornal, existente naCasa do Carnaval, sem identificação.

47 FREYRE, Gilberto. “Recifense, sim, subcarioca, não!”. Diário de Pernambuco, Recife, 27 fev.1966.

48 O Porto Rico alcança visibilidade dando ao maracatu um estilo mais parecido com as escolas desamba, com muito mais brilho e riqueza. Foi campeão dos carnavais de 1983 a 1986, e 1988 a1989. “Encontro tenta reerguer os maracatus do Recife”. Diário de Pernambuco, Recife, 19 jan.1990.

49 “Hora de reavaliar a pernambucanidade”. Jornal do Commercio, Recife, 12 ago. 1995.

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Entendemos que é necessário criar alternativa a curto prazo, quepossibilite aos descendentes de africanos criar e produzir suasobrevivência cultural. São alternativas que minimizem o grau demarginalização e desrespeito determinado pelos mecanismos deexclusão social, e que leve toda a sociedade a fazer uma tomada deconsciência a respeito da valorização da cultura negra no Brasil. 50

A atuação dos movimentos negros nas manifestações da cultura afro-descendente principalmente sua participação no Leão Coroado e Elefante, bemcomo as estratégias que redundaram no apoio à criação de afoxés no Recife, e noabandono da atuação junto aos maracatus, é central para entendermos esseprocesso. Ao mesmo tempo, é importante destacar que foram nesses anos que oscandomblés sofreram um processo de reafricanização51. É fundamental que seanalisem no bojo dessa discussão os resultados da política implementada pelosmovimentos negros que trazem consigo uma valorização da cultura afro-descendente, buscando nesse processo a criação de uma negritude52.

Desse modo, pensar os maracatus na atualidade como um campo de disputaentre a pernambucanidade e a africanidade remete necessariamente a esse processohistórico que delineamos. É impossível entender a história dos maracatus no períodosem discutir essa trama miúda que envolve os próprios maracatuzeiros e suasdisputas internas, as instituições públicas mantenedoras do carnaval e a ComissãoPernambucana de Folclore, os movimentos negros organizados, tudo isso em meioa um crescente mercado cultural que avança sobre a cultura popular, que amercantiliza, tornando-a mais um produto a ser consumido pela classe média embusca de novidades e exotismo, pelos turistas ávidos em visitar regiões com apelosdiferenciados, principalmente no âmbito cultural. Se por um lado há que sereconhecer que o sucesso dos maracatus na classe média é devido à combinaçãoresultante entre a ação da indústria cultural com o recrudescimento da identidadepernambucana, consubstanciada no slogan da pernambucanidade, por outro épreciso considerar que durante todo esse período (1960-1990), sob diferentesformas, os movimentos negros organizados, notadamente o MNU, agiram no sentidode valorizar os maracatus e a cultura afro-descendente, positivando-os. Nessesentido, os maracatus constituem uma manifestação polissêmica, cumprindo naatualidade diferentes papéis e sentidos. Essas disputas, que se refletem nasidentidades do maracatu, podem ser mais bem entendidas quando se observam astransformações que ocorreram na organização da Noite dos Tambores Silenciosos,que passa por um processo de reafricanização com a sua transformação em umritual religioso conduzido por reputados pais de santos. Esse evento além deemblemático para o entendimento da cultura afro-descendente no carnaval, tambémconstitui um aspecto de ressignificação, uma vez que para os maracatuzeiros osentido do evento em muito difere dos objetivos almejados pelos seus criadores epoder público.

50 “Encontro tenta reerguer os maracatus do Recife”. Diário de Pernambuco, Recife, 19 jan. 1990.51 SANSONE. Artigo. Usos e abusos: negritude sem etnicidade. Salvador: Edufba/ Pallas, 2004.52 BACELAR, Jéferson. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas,2001.

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A década de 1960 pode ser definida como ambígua uma vez que, ao mesmotempo em que ocorria a decadência dos maracatus, acentuada com odesaparecimento dos grupos Estrela Brilhante e Elefante, também existiamelementos que apontavam para a afirmação da identidade cultural afro-descendentee a ocupação estratégica de espaços sociais, a exemplo da criação da Noite dosTambores Silenciosos. O carnaval pode ser aqui entendido como um campo dedisputa e subversão simbólica do poder. Desse modo, o período começa com oauge da decadência dos maracatus no Recife, e seu prognosticado desaparecimento,para se encaminhar em direção a uma afirmação da africanidade e dos maracatuscomo símbolos da identidade regional (a tão propalada pernambucanidade).Apontamos na discussão aqui desenvolvida que ao longo dos anos 1980 osmaracatus passaram por uma fase de ressurgimentos, em que alguns gruposvoltaram a desfilar no carnaval da cidade, ao mesmo tempo em que nos anos1990 outros grupos foram criados.Conclusões

Torna-se relevante pensar nas razões que explicam os anos 1960 e 1970 comoimportantes para que os maracatus saíssem do período de decadência que enfrentaram,e passassem a desfrutar de um relativo sucesso e reconhecimento que se inicia no finaldos anos 1980 e tem como auge os anos 1990. O que explica esses acontecimentos?Podemos atribuir esse sucesso exclusivamente a atuação de Chico Science e domovimento Mangue, assim como à indústria cultural? Nossa discussão aponta para anecessidade de incorporar à história dos maracatus-nação as ações dos maracatuzeirose suas táticas diante desses processos mais amplos, entendendo o processo históricocomo o resultado de uma série de disputas e dissensões em que os sujeitos sociaiscriam margens de manobra em meio às circunstâncias sobre as quais não possuemcompleto controle. Nesse sentido, estudar a história dos maracatus-nação como umcampo de disputa em que diversas perspectivas estão em atuação, remete para osmodos de construção das identidades.

Um estudo em tal direção é de suma importância, do ponto de vista acadêmico,devido à exigüidade de estudos sobre a cultura afro-descendente (e os maracatusem particular) no Recife, notadamente no período em questão. O pouco que seescreveu sobre os maracatus e a cultura afro-descendente, salvo algumas exceções,está balizado por um saber consagrado (em que prevalece uma perspectivafolclorizante, em que a manutenção da tradição é constantemente reafirmada comonecessidade vital), perpassado por questões ideológicas, em que o processo históricoé naturalizado. Uma revisão historiográfica, embasada em pesquisa documental,impõe-se com urgência. Este artigo se insere numa perspectiva em que se apontapara a necessidade de incorporar ao debate historiográfico a cultura afro-descendente, e seus sujeitos. Não se trata de acentuar a participação cultural, massim de discutir essas práticas culturais em seu sentido político, como criação depossibilidades para a vivência de uma cidadania53.

53 Rachel Soihet apontou para a perspectiva de pensarmos as práticas culturais como práticas decidadania em seus trabalhos. Ver: SOIHET, Rachel. “O povo na rua: manifestações culturais comoexpressão de cidadania”. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasilrepublicano: o tempo do nacional estatismo do início da década de 1930 ao apogeu do EstadoNovo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 287-322.

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Ao mesmo tempo, não é demais reafirmar a importância de se discutir a históriados negros e negras do Recife, o debate sobre a democracia racial, suadesconstrução e reconstrução cotidianas, e as estratégias dos movimentos negrosorganizados em atuar junto aos grupos culturais, afirmando a africanidade dosmaracatus num sentido positivado, e incentivando a criação de outros grupos, taiscomo os afoxés.

Estas questões não se dissociam de uma discussão sobre os elementosconstitutivos da identidade local, sobre a necessidade de promover um debate quea desnaturalize. As identidades que se encontram monumentalizadas precisam sermais bem entendidas e historicizadas, mostrando como a pernambucanidade seconstrói a partir da apropriação do que até então era rejeitado ou tolerado (osmaracatus e a cultura afro-descendente) pela indústria cultural e a indústria doturismo.

RESUMOEste artigo objetiva discutir as razões e linhasde força que alçaram nos anos de 1990 osmaracatus-nação da cidade do Recife a umdos símbolos da identidade culturalpernambucana. Este processo não pode serimputado exclusivamente ao movimento deglobalização cultural que incrementa aespetacularização da cultura popular, maspretende-se analisar a presença dos própriosmaracatuzeiros nesse processo, bem como,concomitantemente, a atuação dosmovimentos negros que investem o maracatucomo símbolo de africanidade.Palavras-Chave: Maracatus-Nação; CulturaPopular; Espetacularização.

ABSTRACTThis article intend to argue the reasons andlines of force that elect in the 1990th yearsthe maracatus-nation of the city of Recife asone of the symbols of the cultural identity inPernambuco state. This process cannot beimputed exclusively to the movement ofcultural globalization that develops inspectacle the popular culture, but is intendedto analyze the presence of the propermaracatuzeiros in this process, as well as,concomitantly, the performance of the blackmovements that invest maracatu as Africansymbol.Keywords: Maracatus; Popular Culture;Spectacle.

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Ricardo Pinto de Medeiros (PPGA-UFPE/ PPGH-UFPB)

202 [14]; João Pessoa, jan./ jun. 2006.

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