Cognição social no transtorno esquizotípico de personalidade e vulnerabilidade à
psicose
Introdução
O Transtorno Esquizotípico de Personalidade (TEP) caracteriza-se clinicamente pela
presença de sintomas cognitivos, perceptuais, interpessoais e desorganização do discurso e do
comportamento. Por ser considerado uma forma atenuada ou um estágio prodrômico da
esquizofrenia, estudar o TEP é uma estratégia promissora na compreensão dos mecanismos
etiológicos e no desenvolvimento de recursos preventivos e terapêuticos deste grave
transtorno mental.
Pesquisas em neurodesenvolvimento, genética, neuroimagem e neurocognição têm
elucidado acerca de possíveis processos patológicos associados ao surgimento do TEP. A
neurociência cognitiva social, que estuda os circuitos cerebrais relacionados ao
processamento da informação sobre a presença e a convivência com outros seres humanos,
tem proporcionado importantes insights a respeito da formação de sintomas em portadores de
TEP e de outros transtornos do espectro da esquizofrenia. Este capítulo abordará os achados
de uma das principais linhas de investigação em cognição social, especificamente relacionada
à capacidade de representar mentalmente e inferir estados mentais de outras pessoas –
chamada de processamento “Teoria da Mente” (ToM) ou mentalização – em indivíduos
portadores de esquizotipia e vulnerabilidade à psicose.
TEP: aspectos clínicos e vulnerabilidade à esquizofrenia
O Transtorno Esquizotípico de Personalidade (TEP) é definido categorialmente no
DSM-IV TR (APA, 2002), como um padrão invasivo de dificuldades nos relacionamentos
sociais e interpessoais, causando desconforto agudo e redução da capacidade para
relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e comportamento
excêntrico, presente em uma variedade de contextos, associando-se a pelo menos cinco dos
nove traços esquizotípicos: idéias de referência; crenças bizarras ou pensamento mágico, que
influenciam o comportamento e são inconsistentes com as normas culturais do indivíduo (por
ex., superstições, crença em clarividência; telepatia ou “sexto sentido”; em crianças e
adolescentes, fantasias e preocupações bizarras); experiências perceptivas incomuns,
incluindo ilusões somáticas; pensamento e discurso bizarros (por ex., vago, circunstancial,
metafórico, super elaborado ou estereotipado); desconfiança ou ideação paranóide; afeto
inadequado ou constrito; aparência ou comportamento esquisito, peculiar ou excêntrico;
ausência de amigos íntimos ou confidentes, exceto parentes em primeiro grau; ansiedade
social excessiva que não diminui com a familiaridade e tende a estar associada a temores
paranóides, mais do que a julgamentos negativos acerca de si próprio.
A abordagem categorial do TEP do DSM-IV é complementada por descrições
dimensionais, cujos argumentos incluem que o TEP seria uma forma atenuada de
esquizofrenia, na medida em que ambos os transtornos compartilham riscos neurobiológicos
e genéticos, além de responderem a abordagens terapêuticas semelhantes; e que a
esquizotipia seria o extremo de um continuum de dimensões de personalidade, no qual nem
todos os indivíduos desenvolverão psicose franca (Raine, 2006). Uma proposta alternativa é a
da existência de duas formas de TEP, uma categorial e outra dimensional. A primeira alinhar-
se-ia mais à definição de transtornos de personalidade do DSM-IV sendo, portanto, mais
estável sintomatologicamente ao longo do tempo, de longa duração e com início geralmente
na infância. A segunda forma estaria mais relacionada conceitualmente aos transtornos do
Eixo I, particularmente à esquizofrenia; teria início mais tardio e maior flutuação diagnóstica
ao longo de sua evolução (Raine, 2006).
De fato, o diagnóstico de TEP é considerado um importante fator de vulnerabilidade
para o desenvolvimento de esquizofrenia (Yung, Killackey, Hetrick, Parker, Schultze-Lutter,
& Kloterkoetter, 2007), refletindo a expressão fenotípica de uma predisposição genética para
este transtorno. Assim sendo, esperam-se altas taxas de descompensação psicótica em
indivíduos esquizotípicos. De maneira geral, as taxas de viragem para esquizofrenia em
follow-ups de populações de portadores de TEP variam entre sete e 40%, dependendo das
populações estudadas, dos instrumentos utilizados para identificação da esquizotipia e do
tempo de acompanhamento das coortes (Raine, 2006). Portanto, a compreensão dos
mecanismos desencadeantes e de proteção contra a psicose nestes indivíduos será valiosa
tanto na explicação dos processos etiológicos quanto na elaboração de estratégias de
tratamento da esquizofrenia. Dentre várias importantes frentes de investigação, a pesquisa
neurocognitiva em TEP já produziu centenas de trabalhos, muitos dos quais demonstrando
comprometimento cognitivo geral nestes indivíduos. Mais recentemente, pesquisadores têm
questionado se prejuízos cognitivos mais específicos, do processamento cognitivo social, não
estariam por trás de muitos sintomas apresentados tanto por pacientes esquizofrênicos quanto
por portadores de TEP ou outros tipos de vulnerabilidade à psicose. Tal questionamento pode
ser desdobrado em perguntas acessórias: se, assim como pacientes esquizofrênicos,
portadores de TEP apresentarem problemas no processamento da informação cognitiva
social, estes problemas poderiam ser considerados traço-dependentes, isto é, fariam parte da
essência da síndrome esquizotípica, sendo possível, ainda questionar se a emergência da
psicose não decorreria deste “defeito essencial”? Se este for o caso, seriam tais problemas
responsivos a tratamento farmacológico ou psicoterapêutico? Por outro lado, é também
razoável pensar que alterações sócio-cognitivas sejam estado-dependentes, aparecendo
apenas durante os estados, ou “surtos”, psicóticos. Neste caso, seriam decorrentes de fatores
especificamente ligados a estes estados – por exemplo, alterações neuroquímicas típicas da
psicose.
Cognição social e inferência de estados mentais (habilidades “Teoria da Mente”)
O termo “cognição social” refere-se a um tipo específico de cognição, cuja tarefa
principal é a de processar a informação social. Humanos e primatas antropóides vivem em
grupos socialmente complexos, nos quais se impõem necessidades cognitivas vitais como
identificar hierarquia, potenciais sabotadores e oportunidades de acasalamento, dentre muitas
outras.
Estudos sobre o desenvolvimento cognitivo em primatas e humanos durante as três
últimas décadas têm dado suporte à chamada “Hipótese da Encefalização”, que se refere ao
aumento progressivo no tamanho relativo do cérebro, particularmente do córtex, ao longo da
evolução dos mamíferos, particularmente em primatas (Donald, 1993). Várias formas de
compreender o desenvolvimento da mente humana e de suas características à luz da Hipótese
da Encefalização parecem coexistir. Correntes mais radicais sustentam que o aumento do
poder de processamento cognitivo dos humanos decorre essencialmente do aumento do
volume cortical. Outras atribuem a encefalização a pressões evolutivas, tais como a
necessidade de mapear geograficamente o ambiente e de produzir ferramentas que auxiliem a
caça, o abrigo e a autodefesa.
Interessado nas razões por detrás do peculiar comportamento social de primatas
antropóides, Dunbar (2002) propôs que exista uma relação entre o que chamou de “razão de
neocórtex” e o tamanho médio de grupos destes animais. Por “razão de neocórtex” deve-se
entender a relação entre o volume do neocórtex e o volume do restante do cérebro. Tal
equação de dimensão encefálica descarta a possibilidade de que diferenças dos volumes
neocorticais devam-se a diferenças exclusivas do tamanho corporal. Portanto, indivíduos
vivendo em grupos sociais maiores apresentariam maiores razões neocorticais. A tese de
Dunbar é a de que o tamanho dos grupos sociais exerceu pressão evolutiva para crescimento
do neocórtex nos primatas antropóides, em virtude do aumento da complexidade das relações
sociais e das exigências em termos de processamento cerebral de informações relativas a
estas relações, o que teria propiciado, em última análise, o desenvolvimento das avançadas
aptidões cognitivas sociais. Dentre estas aptidões, destaca-se a habilidade de inferência de
estados mentais de outros indivíduos. Embora haja alguma controvérsia acerca da capacidade
de primatas inferirem estados mentais de co-específicos, esta habilidade foi bem estudada em
humanos.
O termo mais comumente utilizado pelos pesquisadores para se referirem à habilidade
de inferência de estados mentais é processamento “Teoria da Mente” ou ToM. Esta expressão
deriva de um importante artigo publicado nos anos setenta, cujo título questionava se, a
exemplo dos seres humanos, os chimpanzés também teriam uma “Teoria da Mente” (uma
teoria a respeito do estado mental de seus co-específicos) (Premack & Woodruff, 1978). O
conceito de processamento ToM não se refere, de fato, a uma “teoria”, mas a uma habilidade
mental automática de se atribuir estados mentais a si mesmo e a outros indivíduos, com a
finalidade principal de compreensão e predição de seus comportamentos. É importante
destacar o papel da “automaticidade” desta habilidade, de maneira semelhante ao que ocorre,
por exemplo, com os processos de decodificação de estímulos sensoriais ambientais, nos
quais também não ocorrem elaborações teóricas acerca do mundo, mas a disponibilização
imediata, automática e espontânea de uma “versão” do mesmo que permita uma resposta
comportamental adaptativa. Assim, ao abrirmos nossos olhos não elaboramos uma “Teoria
Visual do Mundo”, mas, simplesmente enxergamos o que há em nossa volta, automática e
espontaneamente. Pelo fato da expressão “Teoria da Mente” induzir a uma falsa interpretação
do conceito, isto é, a de que essencialmente deveria ocorrer uma elaboração teórica
subjacente ao processo de atribuição de estados mentais, alguns autores preferem o uso dos
termos “mentalização” (que, neste capítulo, será usado como sinônimo de habilidades ToM)
ou “adoção de uma postura intencional” (Dennett, 1987).
Problemas no processamento ToM foram inicialmente descritos em autistas (Baron-
Cohen, Leslie, & Frith, 1986) e recentemente o interesse pelo estudo destes problemas se
estendeu para outros transtornos mentais, como a esquizofrenia, o transtorno esquizotípico de
personalidade e o transtorno bipolar (Tonelli & Alvarez, 2009; Tonelli, Alvarez & da Silva,
2009; Tonelli, 2009).
Como é avaliada a habilidade de inferir estados mentais?
A aferição da integridade do processamento ToM em crianças e adultos, saudáveis ou
portadores de transtornos mentais ou do desenvolvimento, pode ser feita empregando-se
tarefas verbais ou não verbais (ou compostas) as quais recrutam circuitos cerebrais
envolvidos no processo de mentalização. Idealmente estas tarefas devem ser administradas
conjuntamente com tarefas-controle (que não exigem mentalização), a fim de se eliminar a
possibilidade de que baixas pontuações nas tarefas ToM-específicas decorram da não
compreensão geral dos testes aplicados.
As tarefas ToM constituem-se, de maneira geral, de pequenas vinhetas versando sobre
a localização enganosa de determinados objetos ou do conteúdo de recipientes, bem como de
cenários que, para serem adequadamente compreendidos, exigem habilidade de
reconhecimento de emoções e de compreensão de linguagem pragmática e de falsas crenças.
Wimmer e Perner (1983) propuseram o Sally - Anne Task (SAT), que se popularizou
inicialmente entre os pesquisadores por sua simplicidade em avaliar a capacidade de detecção
de uma falsa crença. O cenário descrito pelo SAT consiste de uma pequena vinheta
envolvendo duas personagens, Sally e Anne: “Sally possui uma bola e uma cesta e Anne
possui uma caixa. Sally coloca sua bola dentro de sua cesta e sai de cena. Enquanto está fora,
Anne pega a bola dentro da cesta de Sally e a coloca em sua caixa. Sally volta”. É, então,
perguntado ao examinado onde ele acha que Sally irá procurar por sua bola: em seu cesto ou
na caixa de Anne? A situação ilustra de maneira simples a falsa crença sustentada por Sally,
ou seja, a de que a sua bola se encontra ainda dentro de sua cesta, pois ela não viu Anne
trocar o brinquedo de lugar. A maior parte das crianças com mais de quatro anos de idade e
indivíduos sem problemas no processamento ToM responderão que Sally deverá procurar por
sua bola no cesto. Crianças menores de quatro anos e indivíduos com problemas no
processamento ToM não conseguirão representar mentalmente de forma adequada o estado
mental de Sally, que não sabe que a bola foi trocada de lugar enquanto esteve ausente e
tenderão a responder que ela deverá procurar por ela na caixa de Anne. Ao SAT seguiram-se
outros testes para aferição da capacidade ToM, como o Smarties Test (ST) (Hogrefe,
Wimmer, & Perner, 1986), o John and Mary Test (JMT) (Perner & Wimmer, 1985), além de
vinhetas compostas por cartoons ou desenhos de cenários ToM mais complexos, envolvendo
cooperação, sabotagem e traição entre os protagonistas (Brüne, 2003; Brüne & Bodenstein,
2005; Corcoran, Cahil, & Frith, 1997), associando-as ou não a tarefas ToM verbais, como o
Hinting Task (HT) (Corcoran, Mercer, & Frith., 1995), o Eyes Test (ET) (Baron-Cohen,
Wheelwright, Hill, Raste, & Plumb, 2001) e o Faux Pas Test (FPT) (Stone, Baron-Cohen, &
Knight., 1998).
De maneira geral, todas as tarefas até o momento empregadas na avaliação da
capacidade de inferência de estados mentais em diversas populações, podem ser criticadas,
seja por terem sido desenvolvidas tendo em vista o estudo de um determinado transtorno em
particular, seja por serem puramente verbais ou puramente não verbais; ou, ainda, por não
avaliarem precisamente o processo de inferência de estados mentais de forma semelhante ao
que ocorre na realidade. Isto é, por permitirem, de certa forma, algum tipo de reflexão, estas
tarefas não simulariam o processamento ToM on line – automático e espontâneo – que é
esperado que aconteça nos indivíduos saudáveis. Ao contrário, elas possibilitariam o
recrutamento de circuitos envolvidos no processamento da informação acerca de estados
mentais com base em aprendizado de regras sociais, que não é automático, nem espontâneo.
Para contornar este problema, têm sido desenvolvidas tarefas compostas por filmes gravados
contendo interações entre pessoas (Mc Donald, Flanagan, Rollins, & Kinch, 2003). Estas
tarefas visam mimetizar melhor as condições naturais em que o processamento ToM ocorre.
Muitas das críticas dirigidas aos trabalhos envolvendo a investigação do
processamento ToM através do emprego das tarefas supradescritas dizem respeito à não
utilização de tarefas cognitivas gerais – como medidas de atenção, controle inibitório,
flexibilidade cognitiva e velocidade de processamento – e QI. Tais críticas se devem ao fato
de que tarefas ToM também recrutam circuitos não relacionados especificamente ao
processamento ToM para serem adequadamente realizadas. Muitos estudos bem conduzidos
têm, contudo, demonstrado situações em que ocorrem prejuízos na performance em tarefas
ToM, a despeito de escores normais em tarefas cognitivas gerais ou QI.
TEP, vulnerabilidade à psicose e prejuízos na inferência de estados mentais
A possibilidade de que indivíduos portadores de TEP, assim como parentes em
primeiro grau de portadores de esquizofrenia, apresentem maior vulnerabilidade ao
desenvolvimento de esquizofrenia do que a população geral tem estimulado a procura por
déficits cognitivos subjacentes a este estado. A demonstração de que tais indivíduos tenham
pior desempenho em tarefas ToM seria sugestiva da existência de um marcador cognitivo de
propensão à psicose. Confirmada esta hipótese, o desenvolvimento de estratégias terapêuticas
cognitivas tendo como alvo o suposto déficit de mentalização auxiliaria na prevenção ou no
retardo do surgimento de sintomas psicóticos nestes indivíduos de alto risco.
De fato, a relação entre esquizotipia, vulnerabilidade à psicose e mentalização tem
estimulado a curiosidade dos pesquisadores da área há mais de dez anos. Existem muitos
estudos a respeito de possíveis déficits na capacidade de inferência de estados mentais de
outros humanos em diversas formas de vulnerabilidade à psicose, incluindo populações de
portadores de esquizotipia. O maior interesse destes pesquisadores parece ser o de demonstrar
o caráter de traço-dependência destes déficits, na medida em que estes seriam fortes
candidatos a fatores etiológicos da psicose.
Recentemente, uma revisão a respeito do assunto (Tonelli et al., 2009) selecionou
vários artigos, com desenhos experimentais distintos, mas cujo interesse essencial era a
investigação acerca de possíveis defeitos na inferência de estados mentais de terceiros em
indivíduos com algum tipo de vulnerabilidade à psicose. Estes trabalhos incluíram a
observação de populações com risco psicométrico – ou seja, indivíduos selecionados de
populações não clínicas, que foram investigados em relação à vulnerabilidade à psicose
através do uso de um instrumento específico, como o Schizotypal Personality Questionnaire
(Raine, 1991), a Schizotypal Personality Scale (Stefanis, Hanssen, Smirkis, Avramopoulos,
Evdokmikis, Stefanis, Verdoux, & van Os, 2002), a Magical Ideation Scale (Eckblad &
Chapman, 1983) ou o Peters et al. Delusions Inventory (Peters, Joseph, Day, & Garety, 2004)
– e suas possíveis alterações no processamento ToM. Alguns estudos também compararam as
diferenças de pontuações em tarefas ToM realizadas por esquizofrênicos e por seus
familiares em primeiro grau ou as diferenças de pontuações nestes instrumentos entre
indivíduos portadores de risco ultra-alto para esquizofrenia e controles saudáveis. Indivíduos
com risco ultra-alto para esquizofrenia incluem sujeitos portadores de uma síndrome
psicótica atenuada (isto é, caracterizada predominantemente por sintomas psicóticos
subclínicos), ou por síndromes psicóticas intermitentes breves, ou por risco genético (ser
portador de esquizotipia ou ter um parente em primeiro grau com esquizofrenia) associado ou
não a deterioração recente no funcionamento mental (Thompson, Mc Gorry, Phillips, &
Young, 2001). Neste capítulo serão abordados apenas os resultados dos trabalhos envolvendo
indivíduos portadores de esquizotipia.
Langdon e Coltheart (1999) questionaram se os problemas no processamento da
mentalização em portadores de esquizofrenia seriam primários e, portanto, predisporiam estes
indivíduos ao desenvolvimento de psicose, ou secundários, isto é, seriam consequências da
associabilidade própria das doenças mentais severas. Estes autores avaliaram uma população
de universitários com diferentes graus de esquizotipia, em relação ao desempenho tanto em
tarefas ToM quanto em tarefas cognitivas gerais. Neste estudo, indivíduos com alto grau de
esquizotipia apresentaram pior performance apenas nas tarefas ToM, sugerindo, então, que os
déficits de mentalização possam estar por trás da propensão a sintomas psicose-like. Este
estudo, portanto, sugere um caráter traço-dependente dos defeitos do processamento ToM.
Outros autores, por outro lado, obtiveram resultados distintos em experimentos semelhantes.
Fernyhough, Jones, Whittle e Waterhouse (2008) examinaram uma amostra de 800
universitários, os quais tiveram sua avaliação de risco para psicose investigada com mais de
um instrumento. Neste estudo, os escores nas tarefas ToM não se correlacionaram nem com
os escores globais de esquizotipia, nem com fenômenos esquizotípicos positivos ou
negativos, quando estes foram examinados separadamente, bem como não houve correlações
com os níveis de persecutoriedade medidos por um instrumento especialmente desenhado
para medir ideação persecutória, o Persecutory Ideation Questionnaire (PIQ) (McKay,
Langdon, & Coltheart, 2006). Pickup (2006) também examinou indivíduos recrutados de
uma universidade, os quais preencheram, dentre outros instrumentos para avaliação do risco
de psicose, o Schizotypal Personality Scale. A estrutura fatorial desta ferramenta compreende
quatro subescalas: pensamento mágico, experiências perceptuais incomuns, suspeição
paranóide e isolamento e ansiedade social. O trabalho de Pickup concluiu que os traços
esquizotípicos da população examinada associaram-se ao comprometimento na execução das
tarefas ToM utilizadas, mas apenas em indivíduos com maior pontuação na subescala
experiências perceptuais incomuns.
Um dos questionamentos mais frequentemente levantados quando se discute a relação
entre déficits de mentalização e psicose é que ainda não se conseguiu demonstrar a existência
de módulos cerebrais especificamente encarregados do processamento da informação social.
Alguns autores importantes, como Alan Leslie e Simon Baron-Cohen, propõem que tais
módulos de fato existam, sugerindo que o ser humano possua um cérebro social, isto é, um
órgão com sistemas de processamento altamente especializados para o processamento da
informação relativa a outros seres humanos, que teria se desenvolvido graças a uma pressão
evolutiva exercida por sociedades complexas. Nestas sociedades fez-se necessário identificar
rapidamente potenciais colabores ou sabotadores, a fim de obter o máximo em termos de
auto-proteção, nutrição e reprodução. Evidentemente que, nas sociedades humanas modernas,
tais habilidades não serviriam apenas à sobrevivência e à reprodução, mas também a outros
propósitos, como a compreensão pragmática da linguagem, em que recursos como a metáfora
e a ironia enriquecem a capacidade humana de expressar sentimentos, emoções e intenções.
O maior problema em se demonstrar a existência de módulos cerebrais sociais é que o
processamento da mentalização recruta outras funções cognitivas não especificamente
relacionadas ao processamento da informação social, como as funções executivas. Por isso,
muitos autores argumentam que a relação entre déficits ToM e o surgimento de sintomas
psicóticos não seria mais do que um reflexo do comprometimento executivo de base dos
indivíduos vulneráveis. Essa discussão estimulou iniciativas em pesquisa cujo objetivo é o de
estabelecer qual a relação entre cognição social e funções executivas. Nesta área, os
resultados também são conflitantes. Jahshan e Sergi (2007) examinaram as relações entre
processamento ToM, funcionamento executivo e memória verbal em indivíduos com alto e
baixo grau de esquizotipia, não encontrando diferenças significativas nas performances dos
grupos avaliados. Por outro lado, Langdon e Coltheart (2001), ao avaliarem universitários
com diferentes níveis de esquizotipia, descreveram que os indivíduos com maiores
pontuações no SPQ apresentavam pior desempenho em testes de perspectiva visual. Estes
testes caracterizavam-se essencialmente por uma tarefa em que se exigia a rotação mental de
figuras geométricas. Langdon e Coltheart propuseram um interessante desenho experimental
baseado em que o mecanismo de inferência de estados mentais de outros seres humanos, de
forma semelhante à tomada de perspectiva visual, seria um processo de tomada de
perspectiva acerca de outras mentes, de colocar-se no lugar do outro, imaginando como será o
mundo aos olhos deste.
Mais tarde, estes mesmos autores (Langdon e Coltheart, 2004) examinaram a
capacidade de compreensão da metáfora e da ironia em sujeitos com diferentes níveis de
esquizotipia. Para estes pesquisadores, metáfora e ironia mobilizam diferentes domínios
cognitivos a fim de serem adequadamente compreendidos: a metáfora recrutaria
essencialmente funções executivas para ser precisamente interpretada e a ironia, o
rastreamento intencional e emocional do interlocutor, isto é, sua decodificação exigiria
integridade de circuitos ToM. Os indivíduos com alto grau de esquizotipia estudados por
Langdon e Coltheart apresentaram prejuízo significativo na compreensão da ironia – mas não
da metáfora – em relação aos indivíduos com baixo de grau de esquizotipia, um resultado
favorável à hipótese de que funções executivas e processamento ToM sejam domínios
cognitivos independentes.
Fyfe, Williams, Miason e Pickup (2008) estudaram habilidades ToM e a tendência a
interpretar eventos aleatórios como intencionais ou providos de sentido, também chamada de
apofenia, e sua relação com esquizotipia e propensão ao desenvolvimento de delírios. Em seu
estudo, os sujeitos esquizotípicos hiperestimaram a intencionalidade de eventos aleatórios, o
que pode ser sugestivo de que estes indivíduos possam apresentar hipermentalização ou
hiper-ToM, favorecendo, portanto, algum prejuízo na capacidade de formar associações
lógicas de causa e efeito adequadas. De fato, a apofenia pode sugerir indiretamente a
existência de um módulo cognitivo “detector de intencionalidade” malfuncionante. Para
Rosset (2008), um “viés intencional”, normal no ser humano, decorreria de uma regulação
fisiológica deste módulo em um modo default para, em princípio, interpretar tudo o que
outras pessoas fazem como intencional. Para demonstrar esta hipótese, a autora elaborou três
experimentos que visavam avaliar as maneiras através das quais elas atribuíam
intencionalidade ou “acidentalidade” a diferentes ações. No primeiro deles, que envolvia
pedir aos sujeitos experimentais para decidirem se uma série de ações a eles apresentadas na
forma de sentenças, eram ou não intencionais, foram mostradas ações que podiam ser
agrupadas em três categorias distintas: ações indiscutivelmente acidentais, ações
indiscutivelmente intencionais e ações ambíguas (que poderiam ser interpretadas tanto como
ações acidentais como intencionais).
Exemplos de ações indiscutivelmente acidentais incluíam sentenças tais como: ela
perdeu as chaves, ela ruborizou de vergonha, a garota teve uma crise convulsiva e exemplos
de sentenças com ações indiscutivelmente intencionais incluíam as frases ele abotoou sua
jaqueta, ele ouviu atentamente, ele digitou o email, ela trocou o pneu furado, ela procurou as
chaves. Finalmente, sentenças como ele deletou o email, ele pôs fogo na casa, ele quebrou a
janela e ele se atrasou cinco minutos para a aula representavam ações ambíguas. Estas
sentenças foram mostradas a dois grupos de indivíduos: um primeiro, que foi pressionado a
fornecer muito rapidamente um palpite a respeito da natureza de tal ação, e um segundo, ao
qual foi dado um tempo adicional para refletir acerca do problema proposto. Os indivíduos
pressionados a responder rapidamente interpretaram mais ações acidentais como intencionais
do que os que tiveram tempo para alguma reflexão, um resultado sugestivo da existência de
um viés intencional (ou, uma regulação default do “módulo detector de intencionalidade”
para atribuir intencionalidade a todas os comportamentos humanos percebidos).
Em um segundo experimento foram apresentadas a dois grupos de indivíduos
sentenças descrevendo ações acidentais e intencionais e pediu-se que eles fizessem uma breve
descrição da imagem que lhes vinha à mente após a leitura da frase. Por exemplo, ao ser
mostrada a frase ela tropeçou na calçada, algo como vejo uma moça falando ao telefone
celular e tropeçando na calçada ao tentar atravessar a rua seria um exemplo de uma
descrição fornecida por um sujeito experimental. Evidentemente, frases ambíguas poderiam
ser escritas, não permitindo ao pesquisador definir se houve uma interpretação intencional ou
acidental da ação apresentada. Para contornar este problema, foi solicitado a cada indivíduo
que categorizasse a frase escrita como “proposital” ou “acidental”, através de uma anotação
feita juntamente à frase. A chave para a compreensão deste experimento encontra-se no fato
de que o primeiro grupo de sujeitos experimentais fez suas descrições e, após tê-las
concluído, foram solicitados a categorizá-las como acidentais ou propositais. O segundo
grupo recebeu esta orientação explicitamente antes de fazer suas descrições; estes sujeitos
foram, portanto, lembrados de que sua descrição seria categorizada como intencional ou
acidental. Ao contrário do primeiro grupo, ao segundo foi dada a oportunidade de reflexão,
através de uma instrução inicial a respeito do que seria esperado deles. Quarenta e cinco por
cento das ações apresentadas foram interpretadas como intencionais pelo primeiro grupo,
versus trinta e seis por cento no segundo, um resultado estatisticamente significativo e que
reforça a hipótese da existência de um viés intencional em nossas mentes.
No terceiro experimento, Rosset avaliou a carga adicional de processamento cerebral
necessária para concluir que uma determinada ação é, de fato, acidental. A própria autora
argumenta que é contra-intuitivo pensar que precisamos fazer um esforço cognitivo para
chegar à conclusão de que algo foi acidental, e não intencional, mas, de acordo com a tese do
viés intencional, nossa mente está preparada para – automática e espontaneamente – perceber
intencionalidade e não “acidentalidade”. Portanto, a percepção do caráter acidental de ações é
que exigiria gasto de energia. O desenho experimental utilizado por Rosset para testar esta
hipótese baseou-se na constatação prévia de que uma carga maior de processamento cerebral
está positivamente relacionada à maior chance de memorização, o que equivale a dizer que
uma atividade mental mais intensa nos predispõe a melhores possibilidades de recuperarmos
material mnêmico correlato do que uma atividade mental de menor intensidade.
Conseqüentemente, caso julgar uma ação como acidental exija maior processamento cerebral
do que considerá-la intencional, então deverá ocorrer maior memorização dos eventos
considerados acidentais do que dos considerados intencionais. Rosset reconhece que outras
variáveis permitem aumento da chance de nos lembrarmos de um evento, além do seu caráter
intencional ou acidental. Por exemplo, um evento pode ser mais facilmente recordado se for
particularmente prazeroso ou incomum. Pensando nisso, dividiu os sujeitos experimentais do
terceiro experimento em dois grupos, os quais tinham de ler sentenças descrevendo ações
subdivididas em quatro categorias: ações prazerosas intencionais (ele tomou um sorvete),
ações prazerosas não intencionais (ela achou uma nota de um dólar), ações não-prazerosas
intencionais (ela trocou o pneu furado) e ações não-prazerosas não intencionais (ele
derramou seu copo de leite). Evitou-se utilizar a palavra “acidental” pelo simples fato de
serem raras situações prazerosas e acidentais. Ao primeiro grupo foi solicitada uma
categorização das ações descritas nas sentenças como intencionais ou não-intencionais e ao
segundo, o grupo controle, uma categorização delas como prazerosas e não-prazerosas.
Houve maior recordação de ações não-intencionais apenas no primeiro grupo, sugerindo que
há maior processamento cerebral quando está em jogo a decisão pelo caráter intencional ou
acidental de um evento testemunhado, mas não quando as variáveis examinadas são prazer e
desprazer associados aos eventos. Assim sendo, a quantidade adicional de trabalho cognitivo
necessária no julgamento de ações acidentais equivaleu à energia empregada pela mente para
sobrepujar o viés intencional presente fisiologicamente em nossas mentes.
Com estes experimentos, Rosset procurou, portanto, demonstrar que a percepção de
intencionalidade seria algo espontâneo e natural (a intencionalidade sendo o modo default de
operação cerebral), não necessitando, portanto, ser aprendido; ao contrário, em determinadas
situações o que objetivamente é preciso fazer seria desativá-lo. Segundo Rosset, o que deve,
de fato, ser aprendido, são maneiras de se inibir a percepção de intencionalidade (a
desativação do modo default de operação), o que envolveria maior trabalho cerebral. Assim
sendo, a propensão ao desenvolvimento de determinados sintomas psicóticos em indivíduos
vulneráveis poderia ser compreendida como um processo de hiperinferência de estados
mentais derivada de um defeito na capacidade de inibição da percepção de intencionalidade e
conseguinte prejuízo na habilidade de avaliar eventos ambientais como aleatórios (ou
acidentais).
Finalmente, Meyer e Shean (2006) correlacionaram os escores de universitários na
Magical Ideation Scale (Eckblad & Chapman, 1983) – um instrumento que avalia a
intensidade da presença de crenças ilógicas sobre causalidade – e em dois instrumentos para
avaliação de habilidades ToM (o Character Intension Task, [Sarfarti, Hardy Baylé, Besche,
& Widloecher, 2005] e o ET [Baron-Cohen et al. 2001]). Na amostra avaliada, os indivíduos
com altas pontuações na Magical Ideation Scale também apresentaram piores pontuações nas
tarefas ToM, o que poderia ser sugestivo de uma relação entre prejuízos no processamento
ToM e problemas na interpretação da realidade.
Contudo, apesar de a maioria dos trabalhos acima arrolados sugerir a existência de
uma relação significativa entre defeitos no processamento ToM e vulnerabilidade ao
aparecimento de sintomas psicóticos em populações, os resultados dos mesmos devem ser
avaliados com cautela. Em primeiro lugar, os instrumentos disponíveis para a testagem ToM
são potencialmente problemáticos, pois muitos foram desenvolvidos para populações
específicas (por exemplo, o ET [Baron-Cohen et al., 2001] foi desenvolvido para autistas),
ou exigem um léxico apropriado para descrição de emoções, bem como a compreensão
semântica de cada termo, o que determina que todos os indivíduos testados tenham
capacidades intelectuais semelhantes. Em segundo, a maioria dos estudos citados avaliou a
esquizotipia através da aplicação de instrumentos específicos em populações de estudantes
universitários, que não representariam a população geral, o que também dificulta a
generalização das conclusões.
No entanto, os diversos resultados positivos sobre a possível existência de problemas
na inferência de estados mentais em portadores de esquizotipia clínica ou psicométrica
servem como estímulo para a busca de respostas em pesquisas envolvendo diversos desenhos
experimentais que abranjam desde a busca por módulos cerebrais encarregados do
processamento de tipos específicos de informação acerca do ambiente social (por exemplo,
intencionalidade e pressuposição de racionalidade [Dennett, 1987]), bem como de estratégias
de prevenção e tratamento dos transtornos em que existam defeitos nestes módulos.
Portanto, por sua peculiar relação com a esquizofrenia, o transtorno esquizotípico de
personalidade pode ser visto como uma condição nosográfica especialmente útil em estudos
sobre a compreensão dos mecanismos cognitivos subjacentes às psicoses.
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