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Caça ao dragão jackie pullinger e andrew quicke

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Digitalização e Revisão: Levita Digital11/09/2009

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Aviso:Os e-books disponiveis em nossa página, são

distribuidos gratuitamente, não havendo custo algum.

Caso você tenha condições financeiras para comprar, pedimos que abençoe o autor

adquirindo a versão impressa.

Título do original em inglês:Chasing the Dragon Copyright © 1980, Jackie Pullinger. Publicado na Inglaterra por Hodderand Stoughton, Londres.

Tradução de Myrian Talitha Lins

Primeira edição, 1982

Todos os direitos reservados pelaEditora Betânia S/C Caixa Postal 5010 30.000 Venda Nova, MG

Composto e impresso nas oficinas da Editora Betânia S/C Rua Padre Pedro Pinto, 2435 Belo Horizonte (Venda NovaX MG

Printed in Brazil

Índice

PrefácioGlossário1. Rastros de Sangue2. Para a China de "Canoa"3. Uma Cidade Chamada Trevas4. O Clubinho5. Luz nas Trevas6. As Quadrilhas7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você8. Perseguindo o Dragão9. "Doenças" da Infância10. É Jesus Mesmo11. As Casas de Estêvão12. Acolhendo Anjos13. Testemunhos14. E Por em Liberdade os Cativos15. Andar no Espírito

Para minha família, especialmente meu Pai.

"E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo

e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos... Agora veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo,

pois foi expulso o acusador de nossos irmãos..."

Ap 12.9,10.

Prefácio

Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em 1968, quando fui a Hong Kong para fazer uma filmagem. Um amigo nos apresentou, e ela me falou de seu trabalho na Cidade Murada. Fiquei fascinado pelo que me narrou, e fui visitar o lugar em sua companhia. Era exatamente como ela o descrevera.

Nos anos que se seguiram continuei a manter contato com ela, vendo seu trabalho desenvolver-se mais. O jornal Sunday Times publicou um relato de sua obra em 1974. Em 1978, ela foi à Inglaterra para falar sobre seu trabalho e, nessa ocasião, consultei-a sobre a possibilidade de, juntos, escrevermos um livro, dando um relato mais completo de tudo quanto lhe acontecera. Concordou, mas não sem certa relutância, e em 1979 voltei a Hong Kong.

Alguns nomes e lugares citados no livro tiveram que ser modificados, para que as pessoas implicadas não sofressem nenhum tipo de prejuízo, a maioria das quais ainda vive naquela cidade. Excetuando-se esse detalhe, tudo o mais foi narrado da forma como ocorreu. Muitos dos eventos aqui narrados podem ser comprovados em outras fontes.

Tenho que agradecer a muitas pessoas que nos ajudaram na feitura deste livro. Entre elas gostaria de mencionar Marjorie Witcombe e Mary Stack, de Hong Kong, que nos emprestaram sua casa, a Susan Soloman, da Califórnia, a meu irmão Edward e a seus colegas do Banco Mundial, em Washington,

onde o manuscrito foi terminado, e sobretudo à minha esposa Juliet, que fez uma excelente revisão e deu sua contribuição durante toda a produção do livro. Estamos narrando aqui incidentes ocorridos até 1976 apenas. O que aconteceu de lá para cá terá de aguardar um novo livro.

Andrew QuickeLondres

Abril de 1980

Glossário

Amah: empregado (a).Congee: um mingau de arroz que se

come no café da manhã. Daih lo: Irmão Maior.Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha

de um chinês.Daih pai dong: barraca de rua. For-gei: garçom ou operário. Fui-goih: arrepender-se.Gong-sou: conversações entre quadrilhas

inimigas, como tentativa de solucionar diferenças.

"Hai bin do ah?": De onde você é?Hak Nam: Trevas (Nome que muitas

vezes é empregado para identificar a Cidade Murada de Hong Kong.)

Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.Kai na: madrinha        Kai neui: afilhada    (Estes dois termos são

empregados para designar o relacionamento de uma mulher com uma criança que ela toma para criar.)   

Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.Lap-sap: lixo.Mama-san: mulher que tem a seu

encargo váriasprostitutas jovens ou bar-girls. "M'gong?": Não quer falar? Mintoi: edredom. "Moe yeh": Nada.Pahng-jue: chefe de um salão onde se

vende ou toma drogas."Pa mafan": medo de complicações.

Pin-mun: comércio ilegal. Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês. Sai lo: Irmão Menor.Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou

concubina de um chinês. Seui Fong14 K                       Nome das diversas quadrilhas tríades que                                      são ilegais em Hong Kong.Ging YuWo Shing Wo

            Siu yeh: lanche, merenda.Tin-man-toi: literalmente meteorologista;

significa pessoa que vigia ou guarda. Wunton: espécie de pastel de camarão ou

carne de porco."Yau moe gau chor." Você deve estar

louco!"Yaunk": Estou aqui."Yeh sou ngoi nei." Jesus te ama!

1

Rastros de Sangue

O guarda da porta soltou uma cusparada no chão do beco, mas fez um aceno de cabeça dando-me permissão para passar. Deixei-o ali agachado, e me espremi no pequeno vão entre duas construções escuras, para entrar nessa estranha "cidade" chinesa, tão temida pelo povo de Hong Kong.

Por um instante, a escuridão do interior dela me deixou meio cega, e embora a essa altura já conhecesse o caminho muito bem, segui em frente, pisando cautelosamente na estreita ruela. Mantinha os olhos voltados para o chão por duas razões: para não pisar nas porcarias que escorriam para o rego aberto e para não receber em pleno rosto o lixo que era atirado das janelas à rua embaixo. Bati palmas a fim de espantar os ratos; foi preciso bater várias vezes, com força, para afastá-los.

Foi então que avistei uma pequena mancha vermelha, e logo depois várias gotas. Não havia dúvida de que era sangue. Senti a tensão no estômago, pois cria que sabia de quem era aquele sangue. O juiz me confiara a guarda de Ah Sor, pelo período de um ano. Mas uma quadrilha estava atrás dele para castigá-lo, devido a casos não solucionados. Ao que parecia, haviam-no encontrado. Avistei outras daquelas manchas lustrosas, e passei por mais

dois tin-man-toi, os vigilantes das quadrilhas que controlavam a Cidade Murada.

Virei uma esquina e entrei na rua onde estavam situados os principais salões de jogatina, administrados pelos "irmãos" da quadrilha 14K. Passei pelos terríveis antros de ópio, onde se achavam outros vigias.

Na rua seguinte, as manchas de sangue já se apresentavam mais numerosas. Estava impaciente para descobrir de quem era aquele sangue. Mas, ao mesmo tempo, a idéia me apavorava.

Cheguei à rua principal, uma das poucas que possuía iluminação na Cidade Murada. Tive que andar com mais cuidado ainda, ao passar por outro salão de jogo. As prostitutas me reconheceram e gritaram de lá de seus compartimentos, junto ao cinema de filmes pornográficos:

— Sr.ta Poon! Poon Siu Jeh, quer nos dar um auxílio?

E estendiam as mãos cujos dorsos estavam marcados de pontas de agulha. Em seguida, entrei em minha ruela, onde ficava o salão que alugara e que abria todas as noites para os rapazes das quadrilhas.

A porta avistei uma poça de sangue maior. As pessoas que por ali se encontravam pareciam totalmente indiferentes.

— O que aconteceu? indaguei temerosa.Um velho cantonês abanou a cabeça e

resmungou:— Nada, nada!

Num lugar controlado pelas quadrilhas tem que se viver com as mãos sobre os olhos, se quiser sobreviver. É mais seguro não ver nada, não se envolver com nada.

Ali perto, brincavam várias crianças, com bebezinhos amarrados às costas, despreocupadas, como se nada tivesse acontecido.

Temendo por Ah Sor, destranquei o portão de ferro, e entrei em nosso "clubinho". Estava escuro, úmido e malcheiroso. Era muito difícil conservá-lo limpo, pois não havia água encanada. Toda sorte de insetos e bichinhos saíam dos esgotos e andavam pelas paredes do salão. Eu tinha mais medo das aranhas que vinham das fossas, do que dos quadrilheiros. Naquela noite, porém, toda a minha atenção estava concentrada em Ah Sor.

Sua mãe o tinha vendido, quando ainda era bebê, para um homem viciado em ópio, que não tinha filhos e temia morrer e ir para o inferno sem um filho para adorar seu espírito. Por isso, Ah Sor crescera com grande carência afetiva, mas, ao mesmo tempo, não sabia reconhecer um afeto sincero, quando lhe era oferecido. A fim de equilibrar essa forte sensação de rejeição, ele se agregou a uma quadrilha. Cresceu brigando nas ruas e recebeu sua primeira sentença de detenção na prisão juvenil aos treze anos. Durante os últimos anos, eu tinha tido conhecimento da história de sua vida e dos seus problemas e procurara ajudá-lo, mas ele continuava na mesma, sendo preso várias e várias vezes.

Além disso, era viciado em drogas, como seu pai adotivo. Sentei-me num de nossos toscos bancos do clubinho e fiz a única coisa que po-dia — orei. Cinco minutos depois uma menina entrou ali correndo, arfando pelo esforço.

— Sr.ta Poon, a senhora deve ir imediatamente ao Hospital Elizabeth. Estão chamando a senhora.

— Quem está lá? É Ah Sor?— Só tenho que dizer-lhe para ir

depressa. É alguém que está morrendo, concluiu e logo desapareceu.

Tranquei tudo e saí. No caminho fui arrebanhando alguns rapazes que conhecia. Fora da Cidade Murada; pegamos um táxi.

— Para o Hospital Elizabeth, depressa! Nosso amigo pode morrer.

Os motoristas de táxi de Hong Kong não precisam de muito incentivo para correr, e o nosso ia zigue-zagueando entre uma pista e outra, com apenas uma das mãos no volante. Eu ia orando pelo caminho, as mãos apertadas uma contra a outra.

"Talvez meu amigo morra", pensei em cantonês.

Ele tinha tido uma vida tão miserável, que nem era vida, e cu desejava proporcionar-lhe coisa melhor.

"Salva-o, Senhor!", orei baixinho. "Faz com que ele se salve."

Então, o carro parou abruptamente com um guincho agudo dos pneus, e nós saltamos do veículo desejando ver Ah Sor antes que morresse.

Mas não era Ah Sor. Fora Ah Tong quem deixara aquele sinistro rastro pelas ruas da cidade. Eu o conhecia apenas pela sua fama de ser um dos mais depravados chefes de quadrilha. Até mesmo seus colegas o desprezavam, pois ele costumava ir a festas, seduzia mocinhas e depois as vendia, com a vida assim arruinada, para o comércio do meretrício.

Ao que parecia, a quadrilha Seui Fong havia-se emboscado num beco escuro, próximo ao nosso salão, armada de facões e canos. Isso era parte de uma guerra de quadrilhas por causa de um dos "irmãos" que fora prejudicado havia alguns anos. O alvo deles era Ah Sor. Quando este ia subindo a rua em companhia de Ah Tong e de outro "irmão", não se aperce-beu da emboscada. Então a quadrilha os atacou, procurando atingir sua vítima. Mas Ah Tong viu-os logo e atirou-se à frente do outro, para protegê-lo. Alguém atingiu seu braço, que foi quase seccionado, e os agressores o deixaram ali caído numa poça de sangue. Ah Sor e o outro rapaz o ampararam e saíram com ele aos trambolhões até chegarem a uma das saídas da cidade, onde pegaram um táxi. Deixando o colega no hospital, fugiram imediatamente. (Há sempre policiais postados nos hospitais, que os interrogam sobre as brigas das quadrilhas.)

A única informação que consegui extrair da enfermeira foi que o paciente provavelmente perderia o braço, se não a vida.

Sentada ali no hospital, pensei no que ouvira e fiquei impressionada com o gesto do rapaz. Ele era mau, e levava uma vida terrível, mas revelara um amor muito raro. Jesus já havia dito: "Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos."

Telefonei para alguns amigos e pedi-lhes que fossem ao hospital. Passamos a noite toda ali, orando. Quando a família apareceu, ficaram grandemente espantados com nossa atitude, para eles, incompreensível. O que fazíamos nós, pessoas direitas, cristãs, orando pelo seu filho? Ele era mau e só merecia mesmo morrer.

Afinal, a irmã nos deu permissão para entrar na enfermaria onde ele se encontrava. Postei-me ao lado do leito e olhei para Ah Tong. Estava terrivelmente pálido, devido à perda de sangue, e inconsciente. Com muito cuidado, impusemos as mãos sobre ele e oramos em nome de Jesus. E enquanto estivemos lá, ele não recobrou os sentidos. Os boletins médicos do hospital, porém, eram cada dia mais animadores. Parecia que ele estava melhorando incrivelmente. Afinal, cinco dias depois de ter sido atacado, ele recebeu alta. Fora milagrosamente curado, e não apenas sobrevivera, mas também conservara o braço em perfeitas condições.

Alguém poderia pensar que, depois de haver experimentado um milagre como esse, Ah Tong teria muito prazer em falar com um dos intercessores, mas, nos meses que se seguiram, mal ele me avistava, saía correndo.

Estava com medo de mim. Contudo, recebi algumas palavras de agradecimento;

— Ele sabe que foram suas orações que o salvaram, disse um dos muitos mensageiros com recados de agradecimento.

Se ele pensava assim, então por que me evitava? Meses depois vim a saber a razão. Era viciado em heroína, e precisava de várias doses diárias. Todo o tempo em que estivera no hospital, sua namorada lhe levara drogas. Sabia que eu era crente e que os crentes eram pessoas direitas, ao passo que os viciados eram depravados. Por isso, não lhe parecia correto vir ele mesmo expressar sua gratidão. Sentia-se por demais impuro, para se aproximar de um cristão.

Alguns anos depois, Ah Tong entrou pela nossa porta no meio da noite. Fitou-me com uma expressão angustiada e disse abruptamente:

— Poon Siu Jeh, estou desesperado. Já tentei largar o vício muitas vezes, mas não consegui. Será que pode me ajudar?

— Eu, não, respondi, mas Jesus pode. E creio que há um fato a respeito de Jesus que você poderá entender perfeitamente. Faz alguns anos, você se dispôs a morrer por seu irmão, Ah Sor. Foi um gesto maravilhoso.

Ah Tong tinha o cenho franzido, ouvindo com atenção.

— Mas o que você diria de morrer por um rapaz de outra quadrilha?

— Aaahhh! fez ele e soltou uma cusparada. Morrer por um "irmão" é uma coisa, mas ninguém morre por um inimigo.

— No entanto, foi exatamente isso que Jesus fez. Ele morreu não somente para os de sua quadrilha, mas por todas as pessoas de todas as outras quadrilhas. Ele era o Filho de Deus e nunca fez nada errado. Pelo contrário, ele curava os doentes. Se crermos nele, ele nos dará sua vida.

Não creio que a mente cheia de drogas de Ah Tong pudesse absorver todos os detalhes da doutrina da redenção, mas pude perceber claramente que alguma coisa havia acontecido. Ele se mostrou completamente atônito pela idéia de que Jesus pudesse amar uma pessoa como ele, e sentiu-se bastante tocado.

Saí depressa com ele, e levei-o para o pequeno apartamento que tínhamos na ilha de Hong Kong. Era um apartamento bem pequeno, segundo os padrões ocidentais. Ah Tong se viu na sala, que também era sala de jantar. Tudo era muito limpo e bem arranjado. Era mais um lar, e não uma igreja. Mas o mais extraordinário ali eram as pessoas presentes, todas sorrindo. Havia vários ocidentais e muitos rapazes chineses, muitos dos quais ele reconheceu. Havia ali homens que ele tinha conhecido na cadeia, e outros que tinham sido seus companheiros de drogas. Porém, estavam todos belos e felizes, mais fortes e saudáveis.

Eles se puseram a falar-lhe sobre o poder de Jesus que lhes havia transformado a vida.

— Você nos conhece, disseram eles. Sabe que nunca empregaríamos essa linguagem santa, se de fato não crêssemos nisso. Quero dizer, a Sr.ta Poon e esses pastores aqui nunca tiveram de largar as drogas, e não sabem como é. Eu senti muitas dores, mas orei a Jesus, como me disseram, e deu certo. A dor desapareceu e me senti outro. Recebi novas energias: chama-se Espírito Santo. Falei em língua estranha, e não senti mais dor nenhuma.

Logicamente, Ah Tong deve ter pensado:"Se eles podem, também posso. Se Jesus

fez isso por eles, pode fazer por mim também."Então nos disse que queria crer que Jesus

era Deus e pedir-lhe que modificasse sua vida. Em seguida, orou e logo seu rosto magro e sulcado de rugas se relaxou, e ele sorriu.

Os outros ex-marginais ali presentes se entreolharam felizes, participando daquele milagre. Ah Tong recebeu o dom de línguas. Quando se deitou naquela noite, seus olhos tinham uma expressão de grande alegria, e ele foi-se aquietando mais e mais, até cair num profundo sono.

O rapaz permaneceu na casa. Não houve necessidade de passar por uma desintoxicação dolorosa, que constitui uma tortura tão grande para o viciado, que pode causar-lhe a morte. Não lhe demos nenhum remédio, nem mesmo uma simples aspirina. Todas as vezes que sentia a primeira pontada de dor, começava a orar na sua nova língua. Sua desintoxicação processou-se sem nenhum sofrimento. Não

houve vômitos, nem cãibra, nem diarréia, nem calafrios. Ah Tong começou uma nova vida.

2

Para a China de "Canoa"

Os agentes da imigração subiram a bordo do navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa que estava para desembarcar. Cedo, de manhã, eu me aprontara e subira para o convés. A vista que se tinha dali era de cair o queixo. Lá estavam as montanhas de cumes brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à bruma, como num quadro oriental. Percebi que meu coração estava inundado de grande paz, e ao reconhecer que aquele era o lugar que Deus havia escolhido para mim, agradeci-lhe.

Eu me achava ali, esperando e contemplando o mar da China, na "Pérola do Oriente", Hong Kong. Cercava-nos a enseada, que separava a Ilha Victoria da Península de Kowloon. Ela estava pontilhada de barquinhos. Balsas se moviam entre as diversas ilhas adjacentes, levando operários, e nos ancoradouros viam-se muitos dos antiquíssimos juncos, que traziam toda sorte de alimentos da China territorial para a Colônia. Pareciam estranhamente antiquados em comparação com os modernos arranha-céus que se erguiam logo atrás, nas encostas dos morros, na Ilha de Hong Kong.

Um pouco mais perto, após as docas, entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão singulares, encantadoras, com o exotismo próprio do Oriente. Erguendo os olhos, vi à distância ás colinas dos Nove Dragões, nos Novos Territórios, que se estendiam até a fronteira da

China de Mao. Vista do mar, numa manhã ensolarada, Hong Kong era belíssima.

O agente da imigração não demonstrava o mesmo entusiasmo que eu. Pegou os formulários preenchidos, nos quais eu declarava que tinha vindo à Colônia para trabalhar.

— Onde mora? indagou.— Na verdade, ainda não tenho onde

morar.— Endereço de amigos?— Ainda não tenho conhecidos aqui.— Onde trabalha?

— Bem, não... ainda não tenho emprego.Ele me fitou com uma expressão de

desalento. Até esse ponto conseguira levar bem a entrevista, mas minhas respostas não se achavam muito de acordo com o "figurino". Tentou fazer mais algumas indagações suplementares.

— Onde está sua mãe?— Na Inglaterra.— E sua passagem de volta?— Ainda não tenho.Não estava nem um pouco preocupada

por não ter passagem de volta, e não compreendia por que ele tinha que estar. Afinal, seu rosto se iluminou oomo se encontrando a solução.

— Quanto tem em dinheiro?Também fiquei satisfeita, pois pensava

estar muito bem financeiramente. Chegara ali quase que com a mesma quantia que tinha ao embarcar.

— Mais ou menos HKS100 dólares, respondi orgulhosa.

— É pouco, replicou ele rispidamente. Hong Kong é um lugar de vida muito cara. Não dá nem para três dias, concluiu, e saiu apressado, à procura de seu chefe.

Os dois confabularam por alguns instantes, depois voltaram para onde me encontrava.

— Embora a senhora seja britânica, falou o chefe, vamos negar-lhe permissão para desembarcar. Espere aqui.

Fiquei ali parada, me perguntando o que iriam fazer comigo. Na imaginação, já os via trancando-me num camarote, obrigando-me a voltar para a Inglaterra. Meus amigos iriam dizer:

— Não falei? Onde já se viu, sair pelo mundo fora, seguindo a orientação de Deus! Que atitude mais irresponsável!

O que eu faria? E como viera parar aqui?Quando minha mãe ficou grávida de mim,

pensou que estava esperando uma criança só, mas deu à luz gêmeas, o que deve ter sido uma grande decepção para meu pai, que tinha esperanças de fundar um time de rugby* e acabou com quatro filhas. Então procurei compensar o fato comportando-me como um garoto. Subia em árvores e corria muito, gostava de brinquedos masculinos e bicicletas.

Uma das recordações mais antigas que tenho, foi de quando estava com quatro anos. Lembro-me de que estava encostada ao aquecedor, em nossa casa, e pensava:

"Será que vale a pena ser bom neste mundo?"

Acabei-me decidindo que, fosse lá o que eu escolhesse fazer na vida, um dia seria conhecida e famosa. Mais ou menos um ano depois, eu e minha irmã gêmea estávamos na escola dominical, e uma missionária fez uma palestra. Estendendo o dedo para cada uma de nós, ela disse:

— Será que Deus quer vocês no campo missionário?

Recordo-me de que logo pensei que a resposta dessa pergunta nunca poderia ser "não", pois, logicamente, Deus quer que todos vão para os campos. Mas não tinha a mínima idéia do que fosse um campo missionário. Eu me via a mim mesma sentada à porta de uma choupana, num lugar qualquer da Africa, sentindo-me muito nobre e digna.

Contei a uma amiga da escola que desejava ser missionária. Foi um grande erro. Logo percebi que todos esperavam que eu fosse melhor do que os outros.

__________________* Esporte semelhante ao futebol

americano e ao nosso futebol militar.

— Mas você vai ser missionária! diziam em tom acusador, quando eu me comportava mal.

Então inventei uma porção de outras carreiras para desviar a atenção dos outros: regente de orquestra; a primeira mulher a escalar o pico do Everest; artista de circo.

Contudo, interiormente, algumas coisas ainda me incomodavam. Certo dia, estava passeando na ponte do trem de ferro com Gilly, minha irmã gêmea. Como sempre, havíamos conseguido que nossa boa amiga Nellie nos desse pirulitos sabor limão, e pouco depois de começar a saboreá-los ocorreu-me um pensamento terrível: "Afinal, o que estamos fazendo aqui na terra? Para que serve a vida?" Parecia que me encontrava presa numa armadilha. Não podia viver da maneira que me

agradasse, pois caso Deus existisse mesmo, um dia teria que dar satisfações a ele.

E havia também o problema do pecado. Deitada no gramado, pus-me a olhar para o céu e a imaginar que Deus estava lá, com um livro bem grande, no qual estava o nome de todas as pessoas. Toda vez que alguém praticava um ato errado, ele colocava uma marquinha ao lado dele. Dei uma espiada na linha correspondente ao meu nome e a fila de marcas estava bastante comprida. Pois bem, não havia nada que eu pudesse fazer para sanar o mal. Afinal, encontrei a solução. Os anos estavam a meu favor, e então resolvi:

— Se eu nunca mais fizer nada errado, nunca, nunca, talvez algum dia eu ainda pegue *Winston Churchill e fique igual a ele. Ele é a melhor pessoa que existe na terra, mas já é muito velho. Então, se eu parar de pecar agora, talvez eu termine mais ou menos igual a ele.

No primeiro ano do curso ginasial cometi outro erro.

_____________________*O grande líder da Inglaterra na II

Guerra Mundial, muito querido e respeitado por todo o povo.

Eu e minha irmã estávamos sentadas à mesa do internato tomando chá com o inevitável pão preto. A cabeceira encontrava-se uma garota maior de nome Mirissa. Pensei em iniciar educadamente uma conversa, mas, infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo

ouvido a primeira transmissão radiofônica de um programa de Billy Graham, mencionei como ficara impressionada com o evangelista.

— Puro emocionalismo de massa! exclamou a moça desdenhosa.

Eu tinha tanto respeito pela opinião das pessoas mais velhas, que depois, todas as vezes que se conversava sobre isso na escola, eu dizia com ironia:

— Puro emocionalismo de massa!Chegou a época de nossa "confirmação"

na igreja. Eu estava levando tudo muito a sério, mas sentia que os outros só estavam interessados nas roupas novas e no "chá de confirmação", que teríamos depois da cerimônia. Meu medo era que o ministro nos perguntasse, individualmente, em que críamos. Mas ele não o fez. Contudo, resolvi fazer-lhe uma pergunta.

— Em que devo pensar, no momento em que o Bispo impuser as mãos sobre mim?

— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.Eu e Gilly fomos até a frente e nos

ajoelhamos, e o Bispo impôs as mãos sobre nós. Só me recordo de que, ao voltar para meu lugar, estava sentindo uma grande alegria. Minha vontade era rir de felicidade. Que atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de confirmação espiritual, e aquele era o momento mais solene. O riso seria depois, na hora do chá. Eu tinha pensado antes que gostaria de me comportar de maneira bastante reverente e elegante nesse culto, e não parecia haver nenhuma associação entre ele e aquela

alegria tão despropositada. Eu estava entre-gando minha vida a Deus, e não esperava receber nada em troca.

A primeira coisa que fiz depois disso foi pegar a lista telefônica e procurar endereços de missões.

— Desejo ser missionária, escrevi para elas, e creio que deveria começar a preparar-me desde já. Quais os cursos que devo fazer?

Em resposta, eles me mandaram dizer que haviam colocado meu nome no seu rol de associados jovens.

Nas férias, geralmente, eu trabalhava na fábrica de papai, ou então dava aulas particulares, ou funcionava como "carteiro" para o Correio, na época do Natal. Já me considerava uma pessoa integrada à sociedade.

Depois, fui para o Real Conservatório de Música, onde descobri que os músicos achavam que o amor era o grande inspirador da música, e tive muito trabalho para me livrar de um pistonista.

Vez por outra, eu passava pela sala da União Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia um aperto na consciência. Mas aqueles jovens ali me pareciam tão desinteressantes e sem graça, e, além disso, na sua maioria, eram organistas. Na cantina da escola, assentavam-se sempre juntos, parecendo muito santos; não me atraíam em nada. Não sabia sobre o que conversavam e nem me interessava saber. Davam a impressão de serem muito solenes e tristes, e embora me garantissem que minha

vida mudaria depois que eu viesse a "conhecer Jesus", eu não queria mudar para ficar igual a eles.

Nesse tempo, eu gostava de freqüentar festinhas, mas a principal forma de divertimento ali ou era imoral ou desinteressante. Contudo, eu sempre ia esperando encontrar ali o homem dos meus sonhos. Foi só depois de muito tempo que compreendi que ele nunca poderia estar presente numa daquelas festas.

Certo dia, eu estava no trem, voltando da escola para casa, quando encontrei duas ex-colegas de escola. Elas me convidaram para ir a uma reunião em uma casa, onde um pregador maravilhoso faria palestras sobre a Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso. Mas todas as outras pessoas também o eram. E o que mais me impressionou foi que eram todos gente normal, como eu. As moças usavam maquilagem. Os rapazes conversavam sobre corrida de automóvel — no entanto estavam ali porque desejavam estudar a Bíblia. Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre Deus.

Contudo, eu ainda ficava incomodada quando ouvia falar em céu e inferno. Mas o que mais me transtornava era a idéia de que ninguém podia chegar a Deus, a não ser por intermédio de Jesus. Compreendi que ou eu tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a respeito de si próprio, ou abandonar de vez a fé cristã. E não foi sem relutância que orei a ele dizendo que acreditava em tudo que ele dissera. E assim me converti.

Passei a ter uma vida ainda mais cheia do que antes. Pouco depois disso, um homem me perguntou se eu acreditava em Deus.

— Não, respondi. Eu o conheço. É diferente. Tenho paz e sei para onde estou indo.

Mas essa nova vida também me trouxe alguns problemas. Certo dia, após o estudo bíblico, as moças tiveram um momento de oração. Abri os olhos para dar uma espiada. Sorriam parecendo muito felizes. Fiquei abismada, pois se críamos que iríamos para o céu por causa de Jesus, a recíproca também era verdadeira — quem não cresse nele não iria. "Como essas pessoas podem ficar sentadas aí sabendo disso?" pensei. "E as pessoas que ainda não ouviram as boas-novas?"

Em conseqüência disso, passei a tomar parte numa cena que teria abominado, antes de minha conversão. Estava tocando piano numa reunião de jovens evangélicos em Waddon, cantando hinos sobre a salvação. Foi aí que tive certeza de que minha vida havia-se modificado mesmo.

Depois que me formei, comecei a dar aulas de música. Mas eu queria dedicar toda a minha vida a uma obra qualquer, em algum lugar. E não havia nada que me impedisse de fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser missionária. '

Então escrevi para missões, escolas e companhias radiofónicas da Africa. E todos responderam da mesma forma — não queriam meus préstimos.

— Ainda não podemos dar-nos o luxo de ter músicos por aqui, diziam.

Não me deixei abater, e tratei de pedir conselhos às pessoas que melhor pudessem me orientar.

— O que você acha que devo fazer de minha vida? indagava.

— Já orou pedindo a orientação de Deus? replicavam.

Já havia orado, mas Deus ainda não tinha me dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava que eu deveria crer e ele me orientaria. Uma noite, sonhei que nossa família estava reunida à mesa da sala de jantar, olhando um mapa colorido da Africa. Entre os diversos países daquele continente havia um que estava colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".

Quando acordei, escrevi para o governo de Hong Kong explicando que era professora de música, formada, e gostaria de lecionar nesse país. Responderam dizendo que não havia vagas para músicos. Recorri então à minha sociedade missionária. Impossível, responderam. Não aceitavam candidatos a missionário com menos de vinte e cinco anos. Eu teria que aguardar um pouco mais.

Ao que parecia, havia interpretado erradamente o meu sonho.

Certa vez fui orar em uma pequena igreja de um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive uma visão de uma mulher de braços estendidos, como se estivesse implorando ajuda. Fiquei a me indagar o que ela queria.

Parecia desejar alguma coisa desesperada-mente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois, foram surgindo umas palavras que iam passando à minha frente, como se fossem a ficha técnica de um programa de televisão: "O que você pode nos dar?" O que, em verdade, eu poderia dar a ela? Se fosse missionária, o que iria dar às pessoas? Daria o que aprendera em meus estudos? Deveria talvez atuar como intermediária para conseguir-lhes alimentos, dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas essas coisas, quando saísse de lá, voltariam a ter fome. Mas a mulher da visão estava com fome de um alimento que ela não conhecia.

Ocorreu-me, então, que o de que ela precisava era o amor de Jesus. Se ela o recebesse, quando eu saísse de lá, ela ainda estaria satisfeita, e poderia até transmiti-lo a outros. Finalmente sabia o que tinha a fazer — só não sabia onde.

Pouco depois disso, encontrei um amigo que morava em West Croydon, que sabia que eu estava orando sobre meu futuro.

— Já recebeu a resposta? indagou.— Não, respondi.— Gostaria de assistir às nossas

reuniões? indagou. Lá estamos sempre recebendo respostas.

Será que aquela gente de West Croydon pensava que tinha uma espécie de monopólio de Deus? Fiquei curiosa para saber o que acontecia nas reuniões.

— Logo que cheguei, alguém me disse que não ficasse espantada se acontecesse algo

de extraordinário. Sentei-me perto da porta. Ao que parecia, iriam exercitar os dons espirituais, e eu queria ter facilidade de escapulir, caso fosse necessário.

Não estava muito certa sobre o que iria haver ali. Pensava que talvez alguém fosse profetizar em voz alta. Mas a reunião foi muito ordeira e calma, com orações normais e os hinos de sempre. Um ou dois dos presentes realmente falaram numa língua que eu não compreendia, mas até certo momento não houve nenhuma profecia estrondosa, nem voz estridente de Deus falando comigo.

Mas depois ela veio.Uma pessoa começou a falar em voz

tranqüila, e logo tive plena certeza de que aquilo era para mim.

"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a instruirei sobre o caminho em que deve andar. Eu a guiarei com meus olhos."

Tive certeza de que Deus estava com minha vida em suas mãos, e que muito breve iria conduzir-me a algum lugar.

Não havia dúvida de que o povo de West Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para casa, e pus-me a aguardar maiores orientações. Ainda não sabia para onde deveria ir. Dei aviso prévio em todos os empregos, de modo que estivesse livre para partir logo após o encerramento das aulas.

Durante os feriados da Páscoa, trabalhei durante uma semana na igreja de Richard Thompson. Ele me conhecia havia bastante tempo, e eu sentia que poderia ajudar-me.

Disse-lhe que eu e Deus nos achávamos numa encruzilhada. Ele me ordenara claramente que fosse, mas não me dissera para onde.

— Se Deus está ordenando que và, é melhor você ir, replicou ele.

— Mas como, se não sei para onde ir. Todos os meus pedidos de trabalho estão sendo rejeitados.

— Bem, se você já tentou todas as formas convencionais de trabalho missionário e Deus continua dizendo para você ir, é melhor você começar a mexer-se. Se já tivesse um emprego, a passagem, o lugar para ficar, a aposentadoria e pensão, não precisaria confiar nele, continuou Richard. Desse modo, qualquer um pode ser missionário. Se eu fosse você, compraria passagem num navio com destino ao ponto mais distante possível, embarcaria nele, e depois iria orando todo o tempo, perguntando a Deus onde deveria descer.

Depois de vários meses, era a primeira vez que eu recebia uma resposta definida.

— É uma idéia maravilhosa, respondi. Mas me parece errada, pois eu adoraria fazer isso.

Eu ainda pensava que tudo que o crente fizesse tinha que implicar em sofrimento, e que não podia ter nenhuma satisfação em sua fé.

Mas Richard afirmou que esse plano era bíblico. Abrão, por exemplo, deixara sua terra e, obedecendo a uma ordem de Deus, seguira para a terra prometida sem saber para onde ia, pois confiava em Deus.

— Não há o que temer, se você se colocar inteiramente nas mãos de Deus, disse Richard com muita seriedade. Se ele não quiser que você tome esse navio, ele a deterá, ou poderá levar a embarcação para qualquer lugar do mundo.

A idéia me pareceu fascinante.O conselho de Richard era um pouco

incomum, mas muito sábio. Em nenhum momento, ele me deu a impressão de que eu entraria no navio como uma pessoa comum, e sairia dele transformada em missionária, pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me mandasse. Assim compreendi que não tinha nada a temer nessa aventura.

Então fiz o que ele dissera. Procurei o navio mais barato, com o percurso mais longo possível, que passava por muitos países. Ia da França ao Japão. Comprei a passagem, e tudo estava resolvido.

Naturalmente, eu teria que enfrentar meus pais e amigos. Alguns se mostraram descrentes. Meu pai, com muito bom-senso, insistia em que eu pensasse muito, em minha "viagem de canoa para a China". Meus pais estavam satisfeitos com a minha ida, mas um se preocupava com o outro. Orei pelo problema, e uma noite escutei os dois discutindo, cada um tentando convencer o outro de que estava tudo certo.

O pessoal da minha sociedade missionária já não se mostrou tão entusiasmado.

— Que conselho mais irresponsável para um pastor dar a uma jovem, disseram. E suponhamos que não tenha sido o Espírito Santo quem ditou as palavras para Richard Thompson?

O dia em que parti foi um desses dias em que tudo dá errado. O táxi que havíamos contratado para nos levar a Londres apareceu com uma hora de atraso. Mas afinal vi-me acomodada no vagão do trem com minha bagagem. Richard Thompson surgiu correndo pela plataforma, gritando:

— Glória a Deus!E daí a pouco o trem arrancou.O agente da imigração voltou-se para

mim muito transtornado. Por um instante pensei que eu tinha vindo de tão longe até a Ásia, apenas para ser repatriada. Mas de repente lembrei-me do texto que lera pela manhã: "Eis que nas palmas das minhas mãos te gravei." Se meu nome estava gravado ali, então Deus sabia tudo que me dizia respeito.

— Espere um pouco, disse eu, lembrando-me repentinamente de um afilhado de minha mãe. Eu conheço uma pessoa aqui. Ele é da polícia.

O resultado foi dramático. Naquela época, 1966, a polícia era tida em alta conta, e qualquer um que tivesse um conhecido na força policial, obviamente era uma pessoa direita.

Devolveram-me o passaporte resmungando que eu poderia desembarcar, sob a condição de que deveria procurar

emprego imediatamente. Na opinião deles, meu dinheiro não daria nem para três dias de estada em Hong Kong.

3

Uma Cidade Chamada Trevas

A Cidade Murada é guardada dia e noite, continuamente, por um exército de vigias. Assim que um estranho qualquer se aproxima, os vigias vão passando a notícia de boca em boca. Aqueles rapazes saem correndo por entre barracas de lanche, entrando e saindo por portas, e atravessando ruelas estreitas. As verdadeiras atividades da cidade ficam completamente camufladas para um forasteiro.

Portas se fecham, janelas são cerradas e a queima de incenso disfarça o acre odor do ópio.

Um dos nomes chineses dados à Cidade Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E realmente trata-se de um lugar de trevas horríveis, tanto físicas quanto espirituais. Mas quando se conhecem os homens e mulheres que vivem e sofrem em tal lugar, podemos ficar condoídos, cheios de compaixão.

A Sr.a Donnithorne me convidara para visitar o jardim da infância e a igrejinha que organizara ali, mas não me havia preparado devidamente para o que iria ver. Pegamos um carro até a rua Tung Tau Chuen, situada nos arredores da cidade. É a rua dos dentistas clandestinos, que exercem seu trabalho ile-galmente, pois dentistas práticos não podem operar em Hong Kong.

Logo atrás desses bizarros cômodos erguiam-se os precários arranha-céus da Cidade Murada. Passamos apertadamente por um vão entre duas das lojas de dentistas e pusemo-nos a caminhar por um beco escorregadio. Nunca me esquecerei do mau cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro fétido de comida azeda e de excremento, misturado ao de lixo e de vísceras de animais. Fomos andando por entre as casas, e a parte superior delas se projetava sobre a rua, formando uma espécie de arco sobre o beco. Parecia-me estar caminhando por um túnel subterrâneo.

A medida que avançávamos, minha amiga ia comentando algumas coisas: à nossa direita uma indústria de flores de plástico; à esquerda, uma velha prostituta, que era velha e feia demais para conseguir fregueses. Então ela contratava meninas prostitutas para trabalharem para ela. E essas tinham muitos clientes. Nesse lugar depravado, a posse de uma criança prostituta era considerada apenas como uma excelente fonte de renda. "Tia Donnie" avisou-me que mantivesse o rosto voltado para o chão, caso alguém resolvesse esvaziar na rua seu urinol, no momento em que passávamos embaixo. Depois vinha o cinema de filmes pornográficos, uma espécie de pavilhão, inteiramente lotado.

Mas havia um comércio normal também. Vimos homens carregando na cabeça latas de concreto re-cém-misturado. Mulheres, tendo nas mãos imensas sacolas cheias de flores artificiais, iam saindo das pequeninas saletas onde eram fabricadas. Ali não se observava o "Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano eram mais que suficientes. Para um chinês, é de suprema importância que os filhos trabalhem para os pais, muitas horas por dia.

Como pode existir um lugar destes bem no meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa Britânica? Há cerca de oitenta anos, quando a Inglaterra se apossou da ilha chinesa de Hong Kong, da Península de Kowloon e dos territórios contíguos a ela, foi feita uma exceção. A velha cidade murada de Kowloon deveria permanecer sob a jurisdição da China, com seu

mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde o mandarim morreu, e seu cargo nunca foi ocupado, nem por outro chinês nem por um inglês, e assim a desordem passou a reinar na Cidade Murada, onde prevalece até hoje. Ela se tornou um paraíso para o contrabando do ouro, antros de jogatina ilegal e todo o tipo de vícios. O desentendimento com relação à sua posse significava que a polícia não podia impor a lei e a ordem dentro dela. Quando querem procurar criminosos ali, entram em grupos grandes.

A cidade tem uma população muito grande, mas é pequena. Em apenas seis acres de terra, vivem trinta mil pessoas, ou o dobro. As condições habitacionais são apavorantes. Não existem leis regulamentando a construção das casas; por isso as ruas se acham "entulhadas" de prédios de apartamento, situados em ângulos os mais loucos, sem água, luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas ruas, que exalam constante mau cheiro. No andar térreo, existem apenas dois banheiros para as trinta mil pessoas. E esses dois não passam de buracos feitos no chão sobre fossas já transbordantes. Um é para as mulheres e o outro para os homens.

Seria muito improvável que num lugar como a Cidade Murada houvesse escolas e igrejas. Mas a Sr.a Donnithorne tinha conseguido abrir uma escolinha primária. Os professores não eram formados, mas haviam feito o curso secundário. Era uma escola pequena, com várias centenas de alunos. No primeiro dia em que fui visitar o local, Tia

Donnie pediu-me que lecionasse nela. Antes de pensar duas vezes repliquei:

— Pois não!E sem que soubesse claramente em que

estava me metendo, concordei em dirigir a bandinha de percussão, ensinar canto e conversação em inglês, três vezes por semana.

Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de cor. E todos os meses se fazem provas, bem como ao fim do semestre e do ano. A criança reprovada nos exames finais tinha que repetir todo o ano escolar.

As aulas da bandinha e de canto não apresentavam muita dificuldade para mim, mesmo levando-se em conta que não conversava muito com os alunos, mas, quanto às aulas de conversação, meu fracasso foi total.

Tentei vitalizar mais as aulas dramatizando as histórias, mas eles não corresponderam. Todas as vezes que tentava fazer isso aconteciam verdadeiras guerras na sala de aula. A liberdade que eu tentava aplicar, em poucos minutos transformava-se em anarquia.

Uma vez por semana, à noite, havia um culto numa das salas de aula. E a Sr.*a Poon — nome que, orgulhosamente, me deram em chinês — tocava o harmónio.

A maioria das pessoas que vinham era constituída de mulheres mais velhas, algumas carregando crianças presas às costas. Vim a descobrir depois que muitas delas, sendo analfabetas, vinham à igreja para ter aula de

leitura. Começavam cantando entusiasti-camente, em voz bem alta. Em seguida, a instrutora bíblica expunha os ensinamentos em cantonês. Nessa época, eu não entendia uma palavra do que era dito, mas sentia que participava do culto.

Na primeira noite em que lá estive, uma mulher me captou a atenção, naquele grupo de chineses. Era uma velha verdureira: tinha o rosto muito sulcado de rugas, e apenas dois dentes, que estavam sempre em evidência, pois a mulher sorria constantemente. Ela se aproximou de mim e puxou-me pela manga, com veemência. Ficou falando e falando, sorrindo e puxando a manga. Pedi a alguém que interpretasse para mim o que ela estava dizendo.

— Até a semana que vem! Até a semana que vem!

Tive vontade de dizer a ela que não poderia ir todas as semanas, pois morava muito longe, e quando voltava para casa já era muito tarde, e eu tinha que me levantar cedo para dar aula. Mas senti que não conseguiria explicar-lhe tudo isso. Ela só compreenderia que eu estaria ali ou não estaria. Então resolvi ir ao culto todos os dias, só por causa dela.

Aquela altura, eu já tinha um emprego fixo: dava aulas numa escola primária, pela manhã. Lecionei ali durante seis meses. Além disso, auxiliava Tia Donnie na escolinha dela, três vezes por semana, à tarde, tocava nos cultos de domingo, e preparava programas

musicais em prol de várias instituições de caridade. Isso tomava todo o meu tempo.

Na segunda vez que fui à Cidade Murada, tive uma sensação maravilhosa: aquela vibração interior que se tem no dia do aniversário. E comecei a me indagar por que me sentia tão feliz. E na outra vez que fui ali, experimentei exatamente a mesma coisa. Isso me parecia um pouco descabido, num lugar tão revoltante como aquele. E, no entanto, quase todas as vezes em que me encontrava nesse reduto de marginalidade, nos doze anos que se seguiram, sentia o mesmo gozo. Eu já tivera um vislumbre dessa alegria no dia da minha "confirmação", e depois quando recebera a Jesus em minha vida — mas experimentar o contentamento espiritual nesse lugar profano?

— Aquele ali é viciado, disse-me Tia Donnie certa manhã, quando nos dirigíamos para a escola.

Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito o que significava ser viciado. Ele iria nos agredir, roubar-nos o relógio ou ter um acesso? Era um homem de aspecto patético, que, com movimentos lentos, catava coisas num monte de lixo. Estava examinando os detritos ali deixados, um por um, para ver se havia algum objeto que pudesse ser de valor para ele. Dava a impressão de estar muito doente, o rosto muito pálido, e parecia ter setenta anos e não trinta e cinco. Usava uma camiseta de algodão bastante suja e sandálias de plástico, já bem gastas. A maioria dos chineses anda sempre

muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo. Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo cortado rente indicava que acabara de sair da prisão. Mas, para ele, a cadeia era apenas um lugar para dormir e comer com mais regularidade.

Mas, na verdade, cama e comida não era o que importava para ele. Fung vivia para "perseguir o dragão". Essa maneira chinesa de tomar droga tem seu ritual próprio. O viciado chega a um local de comércio de drogas, pega um pedaço de folha de alumínio e coloca nela alguns grãozinhos de heroína. Acende um paviozinho feito de papel enrolado e coloca sob o alumínio, a fim de aquecer a droga. A heroína vai-se derretendo lentamente, transformando-se numa espécie de melaço escuro e fumegante. Ele coloca na boca a parte externa de uma caixa de fósforo para servir de funil, pelo qual ele irá inalando a fumaça. Em seguida, põe-se a mover a folha de alumínio, fazendo o filete de líquido grosso escorrer de um lado para outro, acompanhando o movimento da fumaça com a boca. Chamam a isso "perseguir o dragão".

Pouco depois, fiquei sabendo que nem todos os viciados tinham uma aparência como a do Sr. Fung. Alguns deles estão sempre bem vestidos. Para estes, o fato de se apresentarem bem é uma evidência de que não se acham escravizados ao dragão. Como passara a ir à cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas vezes. Comecei a me indagar se não deveria

fazer alguma coisa por ele e por outros iguais a ele.

A prostituição raramente era camuflada. A primeira prostituta que vi ali chamou minha atenção por estar usando batom e esmalte num tom vermelho berrante. Ficava o dia inteiro agachada na rua, uma rua tão estreita que o rego do esgoto passava perto de seus pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até uma cadeira. Na sua maioria também eram viciadas em drogas. As marcas escuras no dorso da mão revelavam que injetavam heroína diretamente na veia. Eu passava ali todos os dias e nunca saberia dizer quando estavam acordadas ou dormindo. Estavam sempre pendendo a cabeça, o branco dos olhos amarelado pelo torpor da heroína.

Um dia tentei tocar na menorzinha. Aprendera a "Jesus te ama", em chinês.

— Yeh sou ngoi nei, falei.Mas ela se encolheu toda, fugindo ao

meu contato. Vendo a expressão de seu rosto, compreendi subitamente que cometera um erro. Ela colocara uma barreira entre nós, e eu não sabia o que fazer para derrubá-la. A moça estava fortemente constrangida, porque eu, uma jovem "limpa", cometera um engano e tocara nela, uma suja.

Fui percebendo aos poucos que as mulheres mais velhas se engajavam na obtenção de clientes. Quando os homens saíam do cinema pornográfico, as mama-sans quase os agarravam e puxavam para ali. As

vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os escada acima:

— Venha, ela é bem jovem, e é barato. Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o

dinheiro. A maioria das prostitutas era controlada por quadrilhas, e os bordéis só podiam funcionar com permissão da quadrilha, que controlava a área em que se encontravam.

Havia duas mocinhas que eu via ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a outra retardada. Ambas eram prisioneiras. Nunca saíam a não ser acompanhadas por uma mama-san. Eram visitadas por três clientes a hora. Nessa época uma tinha treze e a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a saber, através de um membro da quadrilha, como essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.

Os rapazes organizavam uma festinha e convidavam mocinhas. Durante a festa, as jovens eram seduzidas. Se resistissem, eram estrupadas. Via de regra, cada membro da quadrilha pegava sua menina e ficava com ela durante alguns dias. Depois que percebia que ela já estava afeiçoada a ele e acostumada com o sexo, ele a entregava a um bordel.

Outras mocinhas se prostituíam, porque seus pais não tinham condições de sustentá-las, e as vendiam para o comércio da prostituição, onde permaneciam até se tornarem mais adultas. Depois disso, muitas dessas antigas meninas-prostituas fugiam de seus donos e se lançavam na carreira, fazendo a única coisa que sabiam. Algumas dessas

crianças iniciavam este tipo de vida com nove anos de idade.

Comecei a planejar um modo de alcançar essas moças, que estavam sempre tão bem vigiadas. Afinal tive que desistir disso e "arquivei" mentalmente o problema, mas tinha esperanças de que um dia pudesse encontrar um homem que se interessasse por esse trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária para uma hora com elas, mas que, nesse tempo, pregasse o evangelho para a jovem. Talvez juntos, eu e ele, pudéssemos conceber um plano de fuga para elas, se alguma quisesse abandonar esse tipo de vida.

4

O Clubinho

Às vezes penso que a verdadeira razão por que criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era um rapazinho feioso, de quinze anos, e com tantos problemas, quantos pode ter qualquer outra pessoa. Conheci-o quando dava aulas de inglês e canto na Escola Primária Oiwah, três tardes por semana. Estava ensinando uma musiquinha muito simples, sem arroubo nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai parecendo realmente empolgado com uma cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava os dedos. Depois levantou-se e pôs-se a dançar pela sala, vindo em minha direção, remexendo os quadris com um jeito bem sensual. Mandei que voltasse para o lugar, e passei a ensinar outra música. Após a aula, procurei descobrir as origens dele.

Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na Cidade Murada. A mãe era prostituta e o pai,

um bêbedo. Viviam num pardieiro, numa casa que havia desabado. Toda a família ocupava um quartinho minúsculo. Na casa ao lado, moravam algumas prostitutas. Desde que se entendeu por gente, o garoto passou a conviver com esses fatos; eram parte de seu quotidiano. Seus horizontes eram limitados pelo bordel ao lado, os antros de jogo um pouco abaixo e os salões de ópio depois desses. Na Cidade Murada não havia nada que oferecesse a alguém uma atividade mais construtiva.

Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a melhorar de vida.

Isso seria um pouco difícil, já que eu não falava uma só palavra de cantonês. E para dificultar ainda mais as coisas, ele tinha uma deficiência de fala que embaraçava ainda mais nossa conversa. Nosso único ponto em comum era uma espécie de tambor que eu havia dado a ele. Consistia numa membrana de borracha presa numa armação de madeira, na qual se batia com baquetas; uma bateria surda. Ele tinha que treinar naquilo, mas não tinha o menor senso de ritmo. Mas ele se mostrava muito satisfeito, pois era a primeira vez na vida que alguém demonstrava algum interesse por ele.

A medida que os dias iam passando, percebi que estava constantemente pensando nele, e isso me deixou um pouco alarmada. Minha mentalidade inglesa me levava a crer que qualquer amor por um rapaz tinha que ser de natureza romântica, e, sendo eu crente, isso

teria que terminar em casamento. Mas, naquele caso, obviamente, isso era impossível, e até mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia que ele era um rapaz feioso, com uma formação das piores possíveis. Mas eu realmente o amava e orava por ele constantemente. Cheguei a um ponto em que estaria disposta a dar minha vida por ele.

Algum tempo depois, vim a compreender o que se passava comigo, e fiquei bastante surpresa. Era como se Deus tivesse me concedido um amor especial por ele, que eu deveria demonstrar, embora não se tratasse de um sentimento que devesse ou pudesse ser retribuído. Era um amor que tinha por objetivo o bem dele, e diferia bastante do amor que eu sentira por outras pessoas, para o qual sempre tinha desejado alguma forma de retribuição.

Dentre os vários grupos humanos necessitados que pululavam a Cidade Murada, o mais desatendido era o dos adolescentes. As crianças menores, pelo menos, tinham a chance de freqüentar uma escola primária. Mas os adolescentes não tinham nada. Era pratica-mente impossível estudar num ginásio. E eles tinham de trabalhar nas indústrias de plástico, onde ganhavam pouquíssimo.

Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam de casa e iam viver com outros jovens em cômodos miseráveis. Pouco depois, não tendo nenhuma atividade, caíam na senda do crime. Muitas vezes, as quadrilhas é que lhes ofereciam a única forma de ocupação possível.

Durante o verão de 1967, toda a China fora convulsionada pelas atividades da Guarda Vermelha. Aquela "epidemia" chegou também a Hong Kong. Houve tumultos por toda a colônia. Vim a descobrir, porém, que alguns rapazes da Cidade Murada estavam sendo pagos para participarem do tumulto. Percebi então que poderia convencê-los a fazer um piquenique. Então, num dia úmido de junho, disse a Tia Donnie em tom bastante pomposo:

— Acho que Deus está querendo que eu organize um clubinho para jovens.

Eu imaginava o trabalho sendo realizado com o auxílio de uma equipe de obreiros cristãos da ilha de Hong Kong, todos escolhidos a dedo, que iriam avançar sobre a cidade com um programa de ação mu.'to bem planejado, enquanto eu ficava sentada, assistindo e aplaudindo.

Meu plano era termos um salão que abrisse todas as noites, e aos sábados e domingos. Seria um lugar onde os rapazes pudessem jogar tênis de mesa e engajar-se em outras atividades saudáveis, mas igualmente um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia Donnie tinha uma atitude mais prática.

— Ótimo! Há anos estou orando por isso. Quando pretende começar? A semana que vem?

Começamos uma semana depois. Ainda dava para contar nos dedos as palavras de cantonês que eu sabia. Não contava com minha equipe escolhida a dedo e não tínhamos um local para nos reunirmos. Mas passamos a

usar uma sala da escola nos sábados à tarde. E Gordon Siu; um jovem chinês que eu conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu auxílio como intérprete, tornando-se um esteio para mim. Ele me ajudava a alugar ônibus, acompanhava-nos nos piqueniques, ou ia patinar conosco. Pouco depois, começaram as férias, e, ao pensar que os rapazinhos poderiam envolver-se mais nos tumultos de rua, resolvi ampliar ainda mais nossas atividades.

De reuniões apenas aos sábados, passamos a ter um completo programa de verão, com piqueniques, caminhadas a pé e visitas às plantações do refloresta-mento. E nos anos que se seguiram realizamos o mesmo programa em julho e agosto.

Os primeiros a aparecer foram os adolescentes de treze e quatorze anos, que traziam também seus amigos de fora. Todos sabiam que eu estava ali basicamente porque era cristã, e que em toda a programação sempre haveria uma pequena palestra no início. Eles não gostavam muito de ouvir falar de Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem ele era. Alguns jovens me disseram que não poderiam ir ao clubinho.

— Nós bebemos e fumamos, vamos ao cinema e jogamos, e sabemos que os crentes não fazem essas coisas.

Pouco depois, Chan Wo Sai largou a escola. Estando com quinze anos, era um dos mais velhos alunos do quarto ano. Achava-se com quatro anos de atraso, pelo menos, em

seus estudos. Ele resolvera não concluir o ano. Fora aberto um novo cinema, e ele conseguira um emprego de vender ingressos.

Para a inexperiente professora inglesa, largar a escola primária era uma coisa terrível. Durante todo o período das férias, tentei persuadir o garoto a voltar. Por fim, ele resolveu ir conversar com os professores, mas eles se recusaram a recebê-lo.

— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos muito satisfeitos quando ele decidiu sair, porque não conseguíamos controlá-lo mais. Pois que vá!

E era uma escola missionária! Os professores eram crentes, e eu imagina que, quando se reuniam para orar, intercediam por alunos difíceis e problemáticos como Chan Wo Sai.

Mas a verdade era que a maioria deles mal havia completado o segundo grau. Diziam-se cristãos apenas para conseguirem o emprego, e eram incapazes de controlar quaisquer alunos, a não ser que fossem bastante dóceis.

A única alternativa que restava a Sai era fazer um curso profissionalizante, onde pudesse aprender algum ofício. Viemos a descobrir, porém, que ele não se qualificava para nenhum deles, ou porque já passara da idade, ou porque não tinha terminado o primário, ou porque não falava inglês. Todas as portas se fechavam para Chan Wo Sai, embora ele tivesse apenas quinze anos.

O que iria suceder-lhe? Parara de estudar e, ao que parecia, a única perspectiva de vida para ele era vender ingressos no cinema. Não havia nada mais que eu pudesse fazer por ele, a não ser manter o clubinho em atividade. Vários dos seus amigos que paravam de estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que ali tinham uma função na vida. Tinham sua posição certa e eram tratados como uma pessoa importante. Encontravam ali até um pouco de carinho e afeto, consideração e amizade, o que não achavam em nenhuma outra parte. Tanto na igreja como na escola, o sucesso nas provas era sinônimo de valor e integridade. Mas nem nas quadrilhas nem em meu clubinho, eles escutavam palavras de condenação ou rejeição pelo fracasso.

O nosso Clubinho Jovem era realmente bem diverso de tudo o mais que havia na Cidade Murada. Ninguém obtinha lucros com ele; não era controlado por chefes de quadrilhas. Tivemos de mudar várias vezes, mas era sempre o mesmo. Um salão com alguns joguinhos tais como mesa de pingue-pongue e alvo para dardos, alguns bancos toscos e uma estante com alguns livros evangélicos".

Outro rapaz que vim a conhecer bem naquela época foi Nicholas. Tanto o pai como a mãe já tinham sido processados por venda de drogas, e a família toda vivia numa das piores casas que já vi. As duas filhas mais velhas eram prostitutas. E todos moravam em apenas um cômodo pequeno e malcheiroso.

Os membros da igreja não gostavam de Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan Wo Sai, exercia uma influência negativa sobre os outros alunos da escola. Naturalmente eles sabiam que suas irmãs eram meretrizes e o pai viciado em ópio. Na opinião deles, o fato de eu receber Nicholas em nosso clubinho implicava em descrédito para o bom nome da igreja cristã. Eu não devia nem ser vista em companhia dele.

Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e estava sempre dando trabalho. Mas eu o amava, embora isso fosse absurdo. Jesus viera ao mundo por causa de pessoas iguais a ele, o que também não fazia muito sentido.

Resolvi então fazer-me amiga dele e visitá-lo seguidamente. Interessava-me bastante por ele. Encontrava-o nos antros de droga, e, quando era preso, acompanhava-o à delegacia, e ali orava por ele. Mas nada disso o tocava para que se modificasse.

Vim a compreender depois que naquele lugar de tamanhas trevas não havia a noção do conceito de retidão. O crime, a mentira e a corrupção eram coisas certas, desde que dessem lucro. Mas as pessoas que assim pensavam assumiam uma atitude de moralida-de em minha presença. E achavam que tal atitude era correta, já que eu era representante da Igreja, do Sistema.

— Nicholas é um menino terrível, dizia a mãe, repreendendo-o bem na minha frente, e depois se lamentava: não sei por que meus filhos são todos uns perdidos.

E ela era uma pessoa que preparava os saquinhos de heroína para vender aos viciados.

Tempos depois, uma das meninas mais novas, Annie, também se tornou prostituta. Mas, afinal, acabou fazendo um bom casamento. O noivo era for-gei, mas também trabalhava para a polícia, fazendo a arrecadação do dinheiro do suborno. Annie ficou muito feliz de se casar com ele, pois o rapaz tinha seu próprio carro. E sua mãe também ficou encantada.

Certo dia, quando eu caminhava pela rua, um velho correu ao meu encontro. Tinha o rosto esquelético dos viciados em ópio, e estava furioso.

— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar na polícia. Era proprietário de um salão de consumo de ópio, um homem muito importante na Cidade Murada.

— E por que eu deveria reclamar? indaguei.

— Por que fecharam todas as salas de ópio, disse ele muito encolerizado.

— Mas estou muito satisfeita de saber que fecharam as salas de ópio, respondi. Por que deseja que eu reclame?

— Porque deixaram as de heroína funcionando, e pagamos a eles a mesma quantia que os outros. Isso não é justo.

Não se tratava do que era certo e errado, mas justo e injusto.

Joseph foi um dos primeiros presidentes do clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara com o crime organizado, como Nicholas e Chan

Wo Sai. Quando ele estava com seis anos, seu pai casou-se de novo; e como a madrasta não gostasse dos enteados, não lhes dava o que comer. Então Joseph e sua irmã Jenny tiveram que sair mendigando. Mas um pastor de Novos Territórios os apanhou e enviou para a escola da Tia Donnie. Depois de terminar o curso primário, Joseph arranjou um quarto para morar e pôs-se a trabalhar em serviços pesados, sempre que conseguia algum. Pouco depois, sua irmã foi morar com ele.

Depois, tipos como Nicholas começaram a freqüentar seu cômodo, passando a noite ali, e seu quartinho se tornou uma "incubadeira" de quadrilheiros. Passei a visitá-los com regularidade. A irmã também estava correndo perigo moral. Aos quinze anos era muito bonita, e estava-se deliciando com a liberdade que tinha. Podia conversar à vontade com os amigos do irmão. Senti que, se continuasse morando com ele, ela iria fatalmente acabar tomando o caminho inevitável. Não poderia abrigar a ambos em minha casa, já que havia outra moça da Cidade Murada, Rachel, morando comigo. Mas achei que Jenny poderia vir. Convenci-a a sair de lá para ficar conosco. Arranjei uma escola secundária para ela, mas o desejo da moça era voltar para a Cidade Murada, e durante o período em que esteve conosco, causou-nos muitos problemas.

Outro rapaz que freqüentava assiduamente o clubinho era Christopher, que morava num casebre. Para se chegar lá, descia-se por uma ruela escura, onde não

penetrava a luz solar. Em determinado ponto, havia alguns galinheiros feitos de engradado de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma escadinha de madeira, e estava-se na casa dele. A porta era aberta de baixo para cima, como um alçapão. Era apenas um cômodo. Uma cortina servia de tapume para o canto onde a família dormia. Nele havia apenas dois beliches e todos dormiam naquelas duas camas, os pais e seis filhos.

O resto do aposento estava ocupado por imensas pilhas de artefatos de plástico, com os quais a mãe dele trabalhava, ganhando mais ou menos um dólar por dia. Todos os filhos tinham que ajudá-la. A filha mais nova nem chegara a terminar a escola. Aos treze anos fora trabalhar numa fábrica de artigos de plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha que ser entregue à mãe. E depois que chegava do serviço, tinha que trabalhar mais, pregando lantejoulas em roupas. Quando fazia uma blusa de frio, por exemplo, ganhava mais três dólares, que, naturalmente, seriam de sua mãe.

Assim Christopher começou a trabalhar, e seu dinheiro também era entregue à mãe. Era uma tradição dos chineses, uma lei não escrita: os filhos tinham que pagar aos pais pelo sustento deles recebido. A ambição dos pais era aposentarem-se e serem sustentados pelos filhos. Os jovens chineses não tinham nenhuma satisfação ao receberem seu pagamento, pois nunca ficavam com ele. Os pais retinham tudo. A mãe de Christopher foi assim ajuntando

dinheiro e, mais tarde, comprou um apartamento para si, fora da Cidade Murada.

Muitos casais chineses têm família numerosa por razões econômicas: para que fiquem ricos ao envelhecer. Tive a impressão de que a afeição familiar não se baseava em um amor mútuo, mas, sim, em interesses econômicos.

Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher, afinal se rebelou contra aquela exploração. Conheceu em sua fábrica um rapaz que gostava dela, mas a mãe proibiu o namoro. Também não permitia que ela freqüentasse o clubinho, pois as atividades dele eram, em sua maior parte, recreativas. O divertimento, pura e simplesmente, não deveria existir para ela. A menina tinha que ficar em casa, e olhar os irmãozinhos, ou então montar as peças dos objetos de plástico, ou buscar água. Finalmente, a garota, com quatorze anos, fugiu de casa e foi morar com o rapaz. A mãe conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em casa. O que ela fizera significava não apenas vergonha para a família, mas também um rombo nas finanças dela. Sendo as meninas tratadas assim, como se fossem bens parti-culares, não é de se estranhar que caíssem na prostituição para se libertarem.

Minha tarefa era fazer o povo da Cidade Murada entender quem fora Cristo. Se não conseguiam compreender as palavras que pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes, tínhamos que demonstrar na prática quem ele era, pelos nossos atos e conduta. Então iniciei

o que eu chamava de "andar a segunda milha". Parecia que havia muitos cristãos que não se importavam de andar a primeira milha; muitos que não se dariam ao trabalho de andar duas e nenhum que quisesse andar três. Aquele povo ali precisava que se andasse com eles uma maratona.

Fui-me envolvendo cada vez mais com os rapazes, seus familiares e seus problemas. Implicava em viver diante deles de maneira prática, para que vissem quem Jesus era, e o conhecessem. Um exemplo desse tipo de conduta foi o que se deu, quando um dos rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a conseguir matrícula numa escola secundária. O processo normal era ficar na fila um dia inteiro, apenas para pegar um formulário para fazer o exame de admissão.

Aquela família esperava que eu simplesmente fosse à diretora e lhe dissesse:

— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o Dr. Sicrano. Será que poderiam admitir aqui essa menina?

Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo mundo, e eles ficaram muito espantados, pois quando haviam pedido meu auxílio, não era isso que tinham em mente.

Eu só podia dar esse tipo de ajuda durante as férias, pois estava dando aulas de música em tempo integral no Colégio Anglo-Chinês para meninas. Mas durante muito tempo, muitas pessoas se agregaram a mim simplesmente pensando que, se ficassem em meu grupo, talvez conseguissem um

certificado de batismo ou um documento qualquer que lhes possibilitasse emigrar para os Estados Unidos. Eram os "crentes da sopa". Tratavam-me como haviam tratado outros missionários, crendo que eu fosse uma presa fácil. Estavam constantemente pedindo dinheiro emprestado. E não acreditavam, quando eu lhes dizia que não o tinha. Os diálogos eram quase sempre mais ou menos assim:

— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e meu dinheiro acabou.

— Mas eu não tenho dinheiro.— Ah, mas você deve ter sim. Você é

muito rica.— Não; não tenho dinheiro nenhum.— Tem, sim. Você tem uma igreja na

América que a sustenta.— Não, não tenho igreja. E eu vim da

Inglaterra. Mas não sou sustentada por igreja nenhuma.

— Ah, qualquer dia desses você pega um jato e volta para sua terra.

— Não; não existe a menor probabilidade de isso acontecer, pois não tenho dinheiro para a passagem, respondia eu com toda a sinceridade.

— Então seus pais lhe mandam dinheiro.— Meus pais também não têm muito

dinheiro, replicava.Aquela altura, Ah Ping entrava na

conversa. Ele pensava um pouco mais que os outros, e seus comentários eram sempre mais precisos.

— É, talvez você não tenha dinheiro mesmo, mas sempre pode ir embora, se quiser. Nós não podemos. Não temos para onde ir. Mas vocês, os ocidentais, podem pegar o avião e ir embora, e depois se esquecem completamente de nós.

— Não, Ah Ping. Não estou pensando em ir embora e esquecer vocês.

Mas Ah Ping sabia falar, quando se entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa que todos eles pensavam.

— Vocês, os ocidentais, continuou ele, vêm aqui e falam de Jesus para nós. Ficam aqui um ou dois anos, para aplacarem a consciência, e depois vão embora. Esse Jesus chama vocês de volta para fazer outro trabalho, na sua pátria. É verdade que lá muitos conseguem angariar bastante dinheiro para nós, povos mais carentes. Mas continuam bem, morando em belas casas, com geladeiras e empregados, enquanto nós continuamos vivendo aqui. Mais cedo ou mais tarde, você também irá embora.

Era um forte libelo contra aqueles evangelistas que chegavam a Hong Kong, cantavam lindos hinos sobre Jesus e depois pegavam o avião e iam embora.

— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e para nós também. Teríamos muito prazer em crer em Jesus, se também pudéssemos pegar um avião e viajar pelo mundo todo, como eles. É muito fácil para eles cantar hinos que falam de amor, mas o que sabem a nosso respeito?

Nada; não sabem nada. E não nos conquistam tampouco.

Houve ocasiões em que tentei conversar com os guardas das salas de jogo, mas quando mencionava que Jesus os amava, eles acenavam a cabeça afirmativamente.

— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso não significa nada para nós.

E não significava mesmo, pois a maioria nem tinha idéia de quem era Jesus, e do que fosse amor. E eu continuei a pregar, dizendo que Jesus poderia dar-lhes uma nova vida, mas não pareciam entender nada.

5

Luz nas Trevas

Jesus não apenas afirmou que era Deus, ele demonstrou isso. Fez os cegos recobrarem a visão, os surdos, a audição, e os mortos voltarem à vida. Alguns cristãos diziam que estas coisas ainda aconteciam em nossos dias, mas eu não as estava vendo.

Meus amigos missionários não podiam auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles tinham vivido sempre na China e se sentiam meio desarvorados. Alguns ainda tinham certos ranços culturais, e começaram a influenciar-me a tal ponto, que passei a me preocupar com detalhes tais como se devia usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma missão, e, na verda-de, estava bem livre de imposições. Contudo, estava me sentindo tolhida, infrutífera.

Certo dia fui tocar harmónio na Capela. Lá conheci um casal chinês que iria dirigir o

culto, e percebi neles uma vitalidade e um poder que eu desconhecia. Imediatamente, tive vontade de saber por que eram tão diferentes. Não falavam inglês muito bem, e eu mal falava chinês.

— Você não possui o Espírito Santo, disseram.

Ligeiramente indignada repliquei que o tinha sim.

"É lógico que possuo o Espírito", pensei comigo mesma. "Se não o tivesse não poderia crer em Jesus."

Mas estava claro que aquele casal tinha algo que eu não tinha, e eu o reconhecera, apesar de não ter entendido bem a mensagem. Eles denominavam-no possuir o Espírito Santo, ao passo que eu preferia outra expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção para mim, gostaria de recebê-la, e deixaria para depois a nomenclatura teológica. Então combinei visita-los em seu apartamento no dia seguinte.

O apartamento deles, como milhares de outros da cidade, tinha apenas um cômodo. Havia ali uma mesa sobre a qual se viam um prato com laranjas e outro com pedaços de flanela molhada. As laranjas eram usadas tradicionalmente pelos chineses para qualquer comemoração, e os pedaços de flanela eram para quando eu chorasse.

Senti meu coração pulsar com força, pois não sabia exatamente o que iria acontecer ali. Então me sentei, e eles impuseram as mãos sobre minha cabeça e começaram a falar repetidamente:

— Agora comece a falar, agora comece a falar, agora comece a falar...

Mas não aconteceu nada. No grupo de West Croydon havia algumas pessoas que falavam línguas estranhas, mas ninguém gostava de conversar muito sobre esse dom. Parecia-me maravilhoso ter uma nova língua na qual pudesse expressar a Deus todos os pensamentos, mas fechei a boca firmemente. Se Deus quisesse dar-me o dom, ele teria que fazê-lo, e não eu.

Contudo, estava-me sentindo cada vez mais envergonhada, além de um grande desconforto e muito calor. Eles iriam ficar muito desapontados, se nada acontecesse. Afinal, não consegui me conter mais, e abri a boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí que começou. Logo que fiz aquele esforço consciente para abrir a boca, percebi que estava falando fluentemente uma língua que nunca aprendera. Era uma língua muito bela, bem articulada, suave e coerente. Não tive a menor dúvida de que tinha recebido o sinal. Mas não me sobreveio nenhuma alegria esfuziante. Foi totalmente desprovido de emoção.

O casal chinês ficou encantado ao ver que eu falara em línguas, embora um pouco surpreso de não me ver chorar. Mas eles choraram um pouquinho. Ainda me sentia um pouco constrangida, e saí assim que pude. Quando estava à porta, disseram-me:

— Agora você pode esperar que os outros dons do Espírito vão aparecer também.

Mas não entendi bem o que quiseram dizer. Na semana seguinte, todos os dias, ficava esperando que o dom de cura ou o de profecia surgissem de repente. Eram os dois únicos dons do Espírito de que eu ouvira falar. Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da valida-de e do uso deles, mas não sabia quando uma pessoa reconhecia que os possuía.

Outra coisa que me intrigava um pouco era o fato de não estar dominada pela emoção. Lera livros que haviam-me deixado com a impressão de que aquela experiência iria fazer-me andar nas nuvens. Procurei, então, alguém em Hong Kong que pudesse dar-me umas explicações sobre isso, mas não encontrei nin-guém. Alguns amigos missionários me disseram, em tom sombrio:

— Na China, aconteceu uma coisa muito perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.

Os missionários pentecostais informaram-me que haviam feito um acordo com os demais evangélicos de não conversarem com outros sobre os assuntos em que divergissem, falando só sobre Jesus. Mas o ensino sobre os dons estava na Bíblia, tinha vindo de Deus, como isso poderia ser perigoso?

Com o passar dos meses, comecei a pôr de lado a questão toda. A experiência não havia mudado em nada a minha vida espiritual. Ainda continuava rondando a Cidade Murada, todas as noites ia a um culto qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas parecia que não estava conseguindo nada. Senti como se tivesse sido enganada.

"Quem eles pensam que são?" indaguei comigo mesma, na primeira vez que ouvi falar do casal Willans. Era um casal americano, a filha Suzanne e uma amiga, Gail Castle, que acabara de chegar a

Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de oração. "Hong Kong não precisa de mais reuniões de oração. Eu mesma tenho reuniões todos os dias. Eles deveriam, primeiramente, conhecer a situação da igreja aqui."

Já haviam-se passado dois anos desde que eu chegara da Inglaterra, e um ano que eu supunha haver recebido "o dom do Espírito". Sentia-me uma autoridade na questão de reuniões de oração da Colônia. Mas uma amiga minha, Clare Harding, insistiu em que eu fosse, dizendo que seria uma reunião carismática.

— Está bem, vou freqüentar durante algum tempo, respondi.

E foi então que fiquei conhecendo Rick e Jean Stone Willans.

— Você tem o dom de línguas, Jackie? indagou Jean. Ora em línguas?

— Para dizer a verdade não o faço. Não vejo nele muita utilidade. Não me ajudava em nada; então parei de orar.

— Mas isso é um grande erro, disse ela. Não se trata de um dom de emoção, para satisfação própria, é um dom do Espírito. A Bíblia ensina que aquele que ora em línguas é edificado espiritualmente. Portanto, não se importe muito com o que sente, exercite-o.

E assim ela e Rick me fizeram prometer que iria orar em minha língua celestial todos os

dias. E em seguida, para meu espanto, sugeriram que orássemos juntos em línguas. Eu não estava muito certa se isso era correto, pois a Bíblia ensina que as pessoas não podem falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo tempo. Explicaram que Paulo se referia a um culto público, onde um estranho poderia entrar e pensar que estavam todos loucos. Mas nós três ali não iríamos escandalizar ninguém. Iríamos simplesmente orar a Deus numa língua que ele nos concedera.

Não houve jeito de escapar, e então nos pusemos a orar. Senti-me meio ridícula, dizendo coisas que não entendia. Mas, em dado momento, eles pararam de orar e eu fui impelida a continuar. Faria qualquer coisa para não estar ali, orando em voz alta, em língua estranha, diante daqueles americanos. Mas quando pensei que estava para morrer de vergonha, Deus me falou:

— Você não quer ser ridícula por amor a mim? Entreguei os pontos.

— Está bem, Senhor, isso não faz muito sentido para mim, mas como foste tu quem inventaste esse dom, ele deve ser bom.

Quando acabamos de orar, Jean falou que Deus lhe havia dado a interpretação do que eu dissera. Meu coração estivera clamando pelo Senhor, como se estivesse nas profundezas de um vale, e ele no pico das montanhas. Eu lhe dirigira palavras de adoração e suplicara que ele me usasse.

Tomei a decisão de nunca mais desprezar o dom, se Deus me ajudasse a orar daquela

maneira todas as vezes em que o exercitasse. Aceitei o fato de que ele estava-me ajudando a aperfeiçoar minha comunhão e súplica.

E, dali por diante, passei a orar todos os dias na linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo, porém, eu dizia:

— Senhor, não sei orar e nem por quem devo interceder. Peço-te que ores por meu intermédio, e me conduzas às pessoas que te desejam.

Mais ou menos um mês e meio depois, comecei a notar que acontecia um fato maravilhoso. As pessoas com quem eu falava de Cristo, criam nele. A princípio, não entendi direito, e pensei que tinha descoberto, por acaso, uma nova e excelente técnica de evan-gelização. Mas, na verdade, eu dizia as mesmas coisas que antes. Depois compreendi o que havia acontecido. Eu estava falando de Jesus a pessoas que realmente desejavam ouvir. Deixara que Deus participasse de minhas orações e isso tivera um resultado direto em meu trabalho. Eu estava pedindo a Deus que realizasse sua vontade por meu intermédio, quando orava na língua que ele me dera.

E não poderia orgulhar-me de nada. Só poderia maravilhar-me de ver como Deus permitia que eu tivesse uma pequena participação em sua obra. E aí veio a emoção. Ela veio, quando vi os resultados dessas orações.

Passei a conhecer melhor os Willans, e eles se me tornaram ótimos amigos e conselheiros. Experimentei mais uma vez a

gloriosa liberdade de viver, que possuímos em Cristo Jesus. Ao me converter, eu aceitara o fato de que Jesus havia morrido por mim, mas a partir de então eu começava a ver os milagres que ele estava operando no mundo hoje.

6

As Quadrilhas

— Hai bin do ah? De onde você é?Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro

membros da famigerada quadrilha 14K que avançavam para ele ameaçadoramente. Em gíria da quadrilha, estavam indagando a qual daqueles grupos ele pertencia. Mas o rapaz não conseguia responder, tremia demais.

— M'gong? Não quer falar, hein?

Ah Ping, o porta-voz da turma, aproximou-se mais até ficar a um passo dele. Não havia meio de escape. O rapaz estava encurralado num dos becos da Cidade Murada. Eles o atormentavam, ironizando seu medo, avançando lentamente, como que deliciando-se sadicamente com o pavor que lhe inspiravam.

O primeiro soco veio com grande rapidez, e atingiu-o nas costelas — o treinamento que os chineses têm no kung-fu produz grande flexibilidade e economia de movimentos, que torna o soco preciso e mortal. O menino caiu, e logo recebeu mais pancadas no estômago, peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia, mas não disse nada. Então os outros foram empurrando-o rua abaixo, chutando-o, enquanto ele seguia aos tropeções, e depois se afastou manquejando. Ficou então sabendo o que acontecia, quando alguém entrava em território inimigo, sem a devida proteção.

Aquilo dava enorme satisfação aos membros das quadrilhas. Eles estavam no controle de tudo que se passava ali em seu território. Foi aí que fiquei sabendo que o salão que eu alugara situava-se bem no meio da área controlada pela 14K, pois acabava de presenciar aquela cena repulsiva.

— Por que fizeram isso? indaguei. O que aquele rapazinho fez a vocês?

Ah Ping deu de ombros.— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas

ele não se identificou, então tínhamos que dar-lhe uma lição. Provavelmente é dos nossos

inimigos, o Ging Yu, e temos que mostrar a eles quem é que manda aqui.

Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade era uma agremiação secreta chinesa, cujos membros faziam o juramento de derrubar o governo dos opressores estrangeiros, e restaurar ao poder a casa governante da China, a Dinastia Ming.

Nos dias atuais, a antiga Sociedade Tríade encontra-se degenerada, tendo-se subdividido em centenas de pequenos grupos, todos alegando ser um prolongamento da tradicional Sociedade Tríade. Na verdade, não passam de quadrilhas de marginais, que utilizam esse nome e os rituais da antiga sociedade apenas para camuflar suas atividades criminosas. No passado, o indivíduo que quisesse filiar-se a uma das sociedades tríades tinha que submeter-se a uma série de rituais. Entre eles contavam-se decorar poesias, aprender certas formas de aperto de mão e assinaturas, e beber sangue, bem como derramar sangue. Quando um homem entrava para uma delas, tinha que jurar que iria seguir seu "irmão" para sempre. Este era conhecido como daih lo, irmão maior; e o iniciante era o sai lo, irmão menor. E esse laço era indissolúvel. Um candidato a membro da Sociedade Tríade poderia pedir a um membro efetivo dela que o deixasse "segui-lo", e assim este se tornava seu irmão maior. Cada quadrilha possuía uma complicada hierarquia de deveres e posições de liderança. Alguns dos chefes eram identificados por nomes estranhos, e outras

vezes apenas por números, tais como 489, 438, 26 e 415. Os membros comuns eram chamados penas de 49.

As quadrilhas espalhavam terror por toda a Hong íong, o que facilitava a extorsão de pagamento por proteção. A Cidade Murada era sede perfeita para as quadrilhas. Ali operavam dois grupos principais, geograficamente separados por determinada rua. O Jing Yu tinha o controle de todas as salas de venda consumo de heroína. Também recebia o pagamento por proteção, e explorava a prostituição no setor a este da Rua Principal. Mas os quadrilheiros mais temidos eram os da 14K. Esse nome deriva do fato de ela haver sido organizada na Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o objetivo de ajudar a causa da China Nacionalista. Dizia-se que ela contava com cem mil membros em todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong Kong, e que controlava o comércio do ópio, os antros de jogatina, filmes pornográficos, bordéis de crianças e outros negócios, no setor oeste da cidade.

Seu comando era descentralizado, e a quadrilha dele cada área tinha seu próprio dirigente, que cuidava los interesses dela no local. Mas todos conheciam os chefes principais, e os membros das quadrilhas-irmãs eram chamadas de "primos". Assim, em questão de minutos, um grupo tríade poderia chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso necessário, podia organizar ama briga em poucas horas, envolvendo centenas de quadrilheiros.

Enquanto as pessoas não ligadas às tríades andaram pela cidade "rezando" para não serem detidas, até mesmo os que pertenciam a Ging Yu ou 14K, quando saíam dela, só caminhavam em seu próprio território. Eu, porém, andava por todas as ruas indis-tintamente, chegando a conhecer o lugar melhor que os próprios marginais, que se achavam restritos a apenas um lado da cidade.

Os quadrilheiros que conheci observavam aquela velha máxima de que existe honra até mesmo entre ladrões. Em troca de uma obediência irrestrita por parte do seu sai lo, o daih lo lhe prometia proteção. Se um irmão menor fosse preso, o seu irmão maior tinha que tomar providências, para que na prisão ele recebesse comida, drogas e proteção, embora fizessem restrições ao uso de drogas, já que sua ausência diminuía sua utilidade para a quadrilha. E foi minha preocupação pelos viciados que mais tarde me aproximou de alguns líderes tríades, levando-me a tomar chá com eles.

Não fiquei espantada ao saber que Christopher iria ser iniciado numa 14K. Como poderia andar por ali, se não pertencesse a uma quadrilha?

Ele freqüentara o clubinho com certa assiduidade, mas, depois de certo tempo passou a me evitar. Todas as vezes que tentava aproximar-me dele, desaparecia. Começou a jogar e estava sempre em companhia de marginais. Contudo, não queria que eu visse o que estava fazendo. Chegou o dia em que o

apanhei. Encontramo-nos frente a frente, num beco muito estreito, e ele não poderia dar para trás. Estava encurralado. Eu carregava meu pesado acordeon e pedi-lhe que carregasse o instrumento para mim, à oficina de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia conversando com ele.

— Christopher, em sua opinião, por que Jesus veio ao mundo?

Ele não respondeu.— Foi por causa dos ricos ou por causa

dos pobres? continuei.— Por causa dos pobres, disse.— Mas ele ama os bons ou os maus?

indaguei.— Jesus ama os bons, Sr.ta Poon.— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus

vivesse no mundo hoje, estaria aqui na Cidade Murada, sentado naqueles engradados de laranjas, conversando com as prostitutas e cáftens, bem lá na lama.

Não é correto dizer a um chinês que ele está errado, mas eu estava ansiosa para que ele compreendesse o que eu queria comunicar-lhe. Não era hora de me importar com convenções.

— Era nas ruas que ele passava grande parte do tempo, conversando com criminosos conhecidos, e ia numa igreja arrumadinha e limpa, esperando que os bonzinhos fossem lá.

— E por que ele fez isto? perguntou incrédulo.

— Porque foi para isso que veio, respondi lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos, mas para salvar os maus, os perdidos.

De repente Christopher parou. Estava pasmado com o que ouvira. Aquela altura, tínhamos saído da idade Murada e passávamos pela rua do mercado, ele disse que queria ouvir mais, e então deixamos o acordeon na oficina ali perto e nos sentamos num banco público. Narrei-lhe a história de Naamã, o general que fora atacado de lepra, e concluí:

— É muito simples. A única coisa a fazer é buscar Jesus e ser purificado.

Os veículos passavam por nós aos roncos; o povo conversava em altos brados, como se faz em Hong Kong. Um avião desceu para aterrissar. Mas hristopher não estava escutando nada. Tinha os olhos fechados e falava baixinho. Estava confessando a Jesus que falhara em sua vida, e lhe pedia que o purificasse. E sentado ali à beira da rua poeirenta e barulhenta, ele se tornou crente.

No sábado seguinte, ele apareceu no clubinho e stemunhou diante dos outros, dizendo que na semana anterior não cria em Jesus, mas agora o conhecia, na palavra foi acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo começaram as chacotas e risos. Rapazes de família ruim simplesmente não se tornavam crentes, isso era para moços bons, educados, classe média. Ele devia estar brincando.

Mas não estava. E recusou-se a continuar com sua iniciação na quadrilha. Já estava com o livro de regulamentos que deveria

memorizar, mas devolveu-. Uma coisa dessas nunca acontecera antes, no meio aquela gente. E sua decisão foi uma revelação para mim também. Jesus estava em Hong Kong também, tanto quanto estava na Inglaterra; e aqueles que o buscassem poderiam encontrá-lo.

A transformação que se operou em Christopher foi notável. Passou a trabalhar tão bem na fábrica, que foi promovido. Passava todo o tempo livre no clubinho, e aos domingos ia aos cultos na igreja.

Continuei a orar em Espírito em minha devoção particular, e outros rapazes como Christopher também fizeram a decisão de converter-se a Cristo. Reuníamos para estudar a Bíblia e orar, muitas vezes, e um dia, quando estávamos orando, um deles recebeu uma mensagem em línguas.

Esperamos uns instantes, e daí a pouco Christopher começou a dar a interpretação, em cântico.

"O Deus, que me salvas das trevas, Dá-me força e poder Para que eu viva no

Espírito Santo, Lute contra o diabo com a Bíblia, Fale aos pecadores desse mundo E os leve a pertencer a Cristo."

Bobby, um outro rapaz, também recebeu a mesma interpretação.

Embora nosso grupinho estivesse crescendo, nem todos os rapazes que

freqüentavam o clube sabiam ao certo por que eu estava ali. Muitos vinham apenas por causa das vantagens que obteriam. Fazíamos piqueniques aos sábados ou acampávamos, e eles não tinham que pagar nada. Contudo, não eram gratos. Consideravam-se pessoas necessitadas, e supunham que eu era sustentada por uma instituição muito rica. Eram exigentes e agressivos. Um desses era Ah Ping.

Naqueles meses e anos de contato, eu chegara a conhecer Ah Ping muito bem. Ele ia ao clubinho muitas vezes. Fora iniciado numa quadrilha tríade com apenas doze anos, e já tinha fama de bom lutador. Certa noite, quando cheguei ao clubinho, ele estava vagando pela rua. Eu me sentia meio deprimida, e ele percebeu isso.

— É melhor você ir embora, disse. Largue este lugar, Poon Siu Jeh. Não adianta trabalhar por nós. Procure estudantes bem comportados e pregue para eles. Eles serão ótimos crentes. Nós não prestamos, (ão sei por que você não desiste. Você arranja estudo ara nós, e não vamos às aulas. Arranja empregos, e nós os perdemos. Nunca mudaremos. Então, por que inda fica aqui?

— Fico porque foi isso que Jesus fez por mim. Eu também não o queria, mas ele não esperou que eu o quisesse, para depois morrer por mim. Ele morreu, morreu por mim, quando eu ainda o odiava. Apenas disse que me amava e que me perdoava. Foi esse Jesus que veio ao mundo e ressuscitou os mortos, que

fez milagres e só praticou o bem. E ama você também, do lesmo jeito.

A princípio, Ah Ping não disse nada, depois falou.

— Não pode ser; ninguém ama a gente desse jeito. Quer dizer, nós... e sua voz ficou embargada.

Mas logo em seguida ele prosseguiu:— Quero dizer, nós vivemos estrupando,

roubando, brigando, esfaqueando. Ninguém pode nos amar assim.

— Pois Jesus os amou. Ele não gosta das coisas que vocês fazem, mas ama vocês. Isso pode parecer stranho, mas ele disse que todas as coisas erradas que vocês praticaram eram dele, e quando ele morreu ia cruz, declarou-se culpado de todos os nossos rimes. Isso é muito injusto, não é? Mas se você lhe entregar todas as coisas ruins que já praticou, ele lhe dará sua nova vida. É como se você lhe entregasse sua roupa suja e recebesse as dele, completamente limpas.

Ah Ping estava esmagado. Era difícil acreditar que existisse um Deus assim. E ele se sentou ali e pediu a Jesus que o perdoasse e transformasse sua vida.

Ele foi o primeiro quadrilheiro a ligar-se aos Tentes. Quando estava com apenas quatorze anos, ima jovem prostituta ofereceu-se para "sustentá-lo" ;m troca de proteção. Mas a partir de então todo o seu nodo de vida se modificou de forma radical. Todas as noites ele levava seus "irmãos" para o clubinho e me pedia que lhes falasse de Jesus. Os poucos

freqüentadores do clube que tinham a vida certinha — os alunos da escola — pararam de ir, pois sentiam que estavam sofrendo discriminação. Eu achava, porém, que havia dezenas de lugares em Hong Kong onde aqueles rapazes podiam receber cuidados e assistência, e então não impedi que se fossem. E foi somente muitos anos depois que conseguimos reunir esses dois tipos de pessoas tão diferentes: os maus e os "bonzi-nhos".

Alguns amigos de Hong Kong vieram a conhecer Ah Ping e o convidaram para dar seu testemunho na igreja, num sábado.

— Tome muito cuidado, disse-lhe eu. Satanás não gosta quando uma pessoa fala de Jesus. Provavelmente ele tentará atacá-lo de alguma forma daqui até sábado. Vá direto para casa e não pare em lugar nenhum.

— Está certo, está certo, Sr.ta Poon, respondeu acenando afirmativamente, com docilidade.

Mas logo que se afastou, rebelou-se.— Diabo? Bobagem. Conheço estas ruas

como a palma da minha mão. Cuidado com quê?

E foi dar umas voltas, antes de ir para casa. De repente, sete homens saíram de um beco escuro e o atacaram. Eram quadrilheiros Chiu Chow. Mais tarde, quando Ah Ping me relatou o fato, disse:

— Quando eles se aproximaram, ocorreram-me dois pensamentos. O primeiro

foi: "Ah, isso é culpa da Sr.ta Poon". E logo em seguida: "Você deve orar."

Então ele ficou orando, enquanto os homens o agrediam a pauladas, deixando-o no chão inconsciente.

— Logo que comecei a orar, meu pai veio descendo a rua e quando eles o viram, fugiram correndo. Se não fosse isso, teriam me matado.

Mas, mesmo assim, ele ficou com um ferimento grave nas costas e um corte na garganta. O pai foi buscar socorro com seus irmãos da quadrilha 14K. Levaram-no ao médico, e este afirmou que ele não poderia andar nem falar pelo menos durante duas semanas.

Os irmãos de Ah Ping decidiram vingar a agressão que ele sofrera. Fizeram uma reunião na sede da quadrilha para combinarem um plano de ação. Depois pegaram faccões e disseram a Ah Ping:

— Vamos esfaqueá-los, está bem?Falando com muita dificuldade por causa

da garganta ferida, o moço replicou:— Não; agora sou cristão e não quero que

revidem.Depois ele chamou um ou dois membros

de nosso clubinho que eram crentes, foram para lá e puseram-se a orar. Oraram a noite toda pelo grupo que o tacara. Além de orar pelos inimigos, pediu aos outros rapazes que impusessem as mãos sobre ele e orassem ara que fosse curado.

No dia seguinte, estava completamente bom, dando com toda clareza. Aliás, dois dias

depois ele falou na igreja. Testificou da mudança que se operara m seu coração e disse também que nunca mais iria menosprezar o diabo. Sabia que ele estava sempre por certo.

Mas as brigas de quadrilhas eram um problema que os convertidos teriam de enfrentar com freqüência.

Lembro-me de um culto num domingo à noite na Igreja Oiwah. O simples fato de poder ir à igreja era ator de orgulho para aqueles chineses um pouco mais prósperos que os outros. Ergui os olhos do teclado e pude ver alguns professores da escola com os vendedores do mercado e verdureiros. Todos com aparência de gente direita, séria e respeitável. O fato de eu me preocupar com os jovens marginais deixava-os bastante espantados. Não gostavam muito de ver aqueles rapazes na igreja, ao passo que eu ficava lá, sentada, irando para que eles fossem.

De repente, a porta se abriu de ímpeto, e os garotos entraram. A aparência deles provocou repulsa na congregação. Mas até eu me espantei, pois eles estavam num estado terrível: sujos de lama e sangue e as roupas rasgadas. Vários tinham arranhões no rosto. Todavia, sentaram-se e permaneceram quietos durante todo o tempo. Logo que terminou o culto, fui apressadamente até onde se achavam, para saber o que havia acontecido.

Ao que parecia, haviam caído numa armadilha. Entraram num banheiro público

para se arrumarem um pouco antes de irem à igreja; um grupo de quadrilheiros saltou por sobre os compartimentos e os atacou violentamente com bastões. Vários deles fica-ram bastante feridos. Levei-os a um hospital. Estava muito feliz de eles terem me procurado na igreja, após uma luta tão terrível. Ingenuamente, achei aquilo maravilhoso.

"Graças a Deus", pensei, "eles não foram procurar seus chefes de quadrilha, mas vieram procurar os cristãos."

Pouco depois eu fiquei sabendo que o resto da congregação encarou o incidente todo de uma perspectiva diferente. Estavam enfurecidos pelo fato de os rapazes terem tido a ousadia de entrar na igreja naquele estado, e tão mal cheirosos. Não aceitavam a idéia de que aqueles garotos pudessem tornar-se crentes. Pensavam que uma mudança interior tinha que ser seguida de uma mudança exterior, e que eles logo deviam passar a usar gravata e sapatos de cadarço. E mostravam-se bastante transtornados por eu haver permitido que entrassem na igreja pouco depois de terem participado de uma cena de violência. Pelo que sabiam, nunca nenhum deles se tornara cristão. E quando pedi para que fossem batizados os que haviam-se convertido, a resposta foi um "não" direto. Os rapazes precisavam antes passar por um período de provação.

No princípio eu aconselhava os rapazes a freqüentarem a igreja, embora estivesse bem claro que eram indesejados ali. Mas um dia

veio à Cidade Murada um velho missionário bastante sábio, George Williamson. Ele analisou bem o que estava acontecendo e entendeu a toda situação.

— Jackie, por que você força esses garotos a virem a Igreja?

— Bom, respondi meio hesitante, por duas razões, uma delas é bem negativa. Não quero que pensem, que pelo fato de eu sair com eles, que estou criando meu próprio grupo.

George deu um sorriso compreensivo. Ele sabia no a geração mais antiga desaprovava a idéia de missionárias, mulheres, terem a direção de um trabalho.

— E, em segundo lugar, continuei, acho que esses rapazes precisam de irmãos e irmãs mais velhos, precisam da "família" da igreja. Não seria muito salutar formarmos um grupo de jovens, separado.

Achei que ele iria concordar comigo, mas não concordou.

— Não, Jackie, disse. Esses rapazes ainda não estão preparados para isso. São plantinhas muito tenras, ainda na sementeira, e se você os transplantar logo, poderão morrer. Ainda não conseguirão suportar as sacudidelas da igreja estabelecida. É muito do para querer que façam concessões a certas atitudes do pessoal da igreja.

Fiquei muito admirada. Ele estava-me dizendo para criar meu próprio trabalho.

— Pense neles como mudinhas numa sementeira, continuou. Afaste-os daqui e cuide

deles até crescem mais um pouco. Aí, quando já estiverem bem fortes para suportar os trancos, pode replantá-los ai. Mas a Igreja de Hong Kong ainda não tem estrutura para recebê-los.

Assim, em vez de continuar insistindo para que os jovens se filiassem à igreja, comecei a ampliar nosso tudo bíblico no clubinho. Realizávamos estudos rias vezes na semana, e também aos domingos pela manhã. Tínhamos sempre um período de louvor, bastante barulhento, e jogávamos pingue-pongue. Se eu falasse em orar, eles iriam para a rua até terminarmos; depois voltavam.

Mas eu nunca poderia ter superado as dificuldades sem o auxílio de Dora Lee. Juntamente com outras estudantes, ela me ajudava a fazer as traduções mais difíceis, como a Bíblia. Ela me ensinou muita coisa sobre os chineses, seus pensamentos e reações. Quanto mais eu aprendia, mais percebia que nossos métodos de anunciar a mensagem de Jesus Cristo não se aplicavam a todas as partes do mundo. A maioria dos rapazes vivia em casas pequenas com mais dez pessoas. Nunca havia silêncio e quietude. Nenhum deles tinha uma cama para si mesmo, quanto mais um quarto. A idéia de ir para um lugar sossegado para estudar a Bíblia e orar, por exemplo, seria uma ironia. No entanto, orar em língua estranha era uma solução prática, pois podiam fazê-lo até caminhando por uma rua barulhenta de Hong Kong.

Muitos deles não sabiam ler, então eu tinha que fazer sugestões práticas. Essa lição eu aprendi através de uma dura experiência. Um dos rapazes dissera em oração que desejava seguir a Jesus. Então dei-lhe um exemplar do Evangelho de João e outros livretes. Mas ele se afastou e não o vi durante dois anos. Quando o encontrei novamente e perguntei por que tinha estado me evitando há tanto tempo, ficou meio envergonhado.

— Eu queria conhecer a Jesus, mas você me deu uma biblioteca.

Tive que reexaminar alguns de meus conceitos sobre o estudo da Palavra de Deus. Aqueles que sabiam ler, sugeri que, vez por outra, saíssem um pouco de suas bancas de trabalho na fábrica e fossem ao banheiro para ler alguns versículos. Procurei estar em contato com os rapazes sempre que pudesse, encorajando-os a seguir os ensinos de Cristo. E eles cresceram espiritualmente. Mas o tempo não era suficiente para ver todos eles. Meu trabalho na escola limitava muito o tempo de que dispunha. Precisava de mais horas para estudar chinês. Comecei a orar pelo problema.

"Senhor, estou muito cheia de ocupações. Preciso de mais tempo para ficar em companhia desses rapazes. Mas isso é impossível, se tenho que selecionar na boa parte do dia. Tu prometeste dar-me o pão de cada dia. Por favor, diz-me se tu o darás, sem que eu tenha de trabalhar para isso."

Três dias depois o telefone tocou. Era Clare Harding, a amiga que me apresentara ao casal Willans.

— Jackie, queria lhe dizer que, se você resolver deixar de dar aula, desejamos oferecer-lhe dinheiro para seu sustento.

Fiquei pasmada. Ninguém sabia que eu estava pensando naquela hipótese.

— Quem lhe disse que eu ia sair do colégio? No momento, ainda estou lá.

— É, eu sei. Mas eu e Neil temos orado a esse respeito. E se você estiver pensando em largar, queremos oferecer-lhe duzentos dólares por mês.

— Bom, de qualquer jeito, só sairei em julho.

— E nós só teremos o dinheiro disponível em lho, replicou ela. Mas senti vontade de telefonar e dizer-lhe isso desde agora.

Estávamos em meados de novembro.O telefonema dela foi um grande

incentivo para mim. Compreendi que, se Deus podia dizer a uma pessoa para oferecer-me um cheque mensal equivalente a cerca de quinze libras esterlinas, então não seria difícil para ele fornecer-me o restante do que precisava para viver. Hoje, passados dez anos, percebo e foi naquele momento que resolvi "viver pela fé". Tive certeza de que, se Deus queria que me dedicasse a esse trabalho, ele me daria o sustento, e nunca me preocupei nem um pouquinho a respeito do modo mo ele o faria.

7

O "Irmão Maior"

Está Olhando por Você

Em meu sonho, o telefone estava tocando sem parar. Fiz um esforço imenso para despertar. Eram cinco horas da manhã. No fone, Ah Ping, com voz sussurrada, falava rapidamente:

— Poon Siu Jeh, você tem que vir aqui bem depressa. Alguém arrombou o clubinho e fez uma bagunça terrível.

Estremeci apesar do calor sufocante, e vesti-me. Quando saí, a rua ainda estava vazia, silenciosa. Afinal consegui um táxi para me levar à Cidade Murada. Lá chegando, subi correndo as ruelas tortuosas em direção ao clubinho. A cena com que me deparei era muito pior do que eu imaginara. Os bancos, livros, raquetes de pingue-pongue, esqueites, tudo tinha sido atirado no chão, espalhado e quebrado. E pior, a pessoa havia deliberadamente passado sujeira dos esgotos nas paredes e assoalho.

Minha vontade foi sentar-me e chorar. Pensava que aqueles rapazes já me consideravam como uma pessoa do meio deles e confiavam»em mim como amiga. Porém atiravam fezes nas paredes do meu clubinho e assim mostravam o que realmente pensavam de mim e do meu trabalho.

— Está bem, Senhor. Para mim chega. Não me importaria de trabalhar aqui para

sempre, se eles conhecessem o que faço. Mas, se não me querem aqui, nem a mim nem a ti, então não preciso ficar tais nesse lugar. Afinal, não desejo ficar aqui pelo resto da vida jogando pingue-pongue. Quero dizer, Senhor, estou fazendo isso por eles, mas, se não o querem, não serão obrigados a receber isso. Vamos schar esse clubinho. Estava profundamente ressentida.

— Muito breve eles irão perceber que só prejudicaram a si mesmos.

Mas lembrei-me também do que Jesus dissera: quando alguém nos bate uma vez, devemos deixar que os bata novamente. E outra passagem que me vinha insistentemente era a que falava sobre dar graças a Deus em todas as circunstâncias. Mas eu não estava com vontade de fazê-lo; minha vontade era chorar e de entregar totalmente à auto-piedade.

Mas passei o resto do dia varrendo e limpando o alão, e murmurando entre lágrimas:

— Glória a Deus! Glória a Deus!E tinha crises de choro, pois parecia que

os alicerces de meu mundo haviam ruído.No dia seguinte, abri o clubinho como de

costume, das, pela primeira vez, senti medo, não de que me agredissem, pois Deus sempre me protegera. Tinha medo de ser rejeitada pelos rapazes que eu amava e a quem trazia a mensagem de Cristo. Não sabia quem izera aquilo, nem por quê, e fiquei ali tremendo toda. Num dado momento, surgiu um

rapazinho que eu nunca vira antes, e encostou-se à porta.

— Algum problema? indagou.— Não, não, respondi. Está tudo bem,

obrigada, das por que pergunta?— Se tiver algum problema, é só falar

comigo, disse virando a ponta do polegar para o próprio peito.

— Ah, que bom saber disso, falei. Mas quem é você? Quem o mandou aqui?

— Foi o Goko, respondeu bruscamente.Fiquei abalada. Sabia quem era Goko, o

dirigente geral de toda a organização tríade da Cidade Murada.

Era o chefe de uma das ramificações da 14K, e dizia-se que tinha alguns milhares de irmãos menores por ali. Tinha o controle de todas as salas de ópio, jogo e prostituição da área. Ele era o irmão maior de todos os irmãos maiores. Um dos irmãos menores que freqüentava o clubinho havia mencionado seu nome para mim com o maior respeito. Mas, embora eu conhecesse seu nome, ainda não o conhecia pessoalmente. Naqueles anos todos, eu lhe enviara vários recados, mas ele sempre se recusava a falar comigo. As mensagens que eu mandara eram sempre bem simples como "Jesus te ama". Não podia entender por que enviara um guarda para vigiar o clube.

— Goko disse que se alguém a incomodar ou encostar a mão neste lugar, nós vamos "cuidar" dele, continuou meu protetor, e fez uma demonstração mímica do que dizia, pegando um facão imaginário e enterrando-o

profundamente na barriga de uma vítima também imaginária.

— Muito obrigada, repliquei. É muita bondade de vocês. Quer fazer o favor de dizer a Goko que agradeço muito, e não quero ofendê-lo, mas não posso aceitar. Jesus já está cuidando de nós.

O olhar de desprezo que o rapaz me dirigiu foi de quem pensava estar diante de uma louca. Qualquer um que achasse que Jesus podia proteger alguém na Cidade Murada devia estar maluco.

Mas ele continuou a se apresentar todas as noites, como um bom vigia noturno. Seu nome era Winson; recebera ordens explícitas de vigiar o clube. Comecei a falar-lhe de Jesus. Não queria de maneira alguma ouvir-me, mas, como era obrigado a ficar ali, não tinha como escapar. Depois de alguns dias, começou a ceder, e pôs-se a falar de um "amigo" seu que era viciado em ópio. Logo percebi que o amigo era ele mesmo. Então disse-lhe que o ópio não é problema. Era só trancar o viciado num aposento e deixá-lo lá por uma semana. Naturalmente ele iria sofrer as agonias do processo de desintoxicação, mas ficaria livre da dependência da droga. Entretanto, logo que a porta fosse aberta iria direto tomar a droga, pois sua mente e coração continuavam a desejá-la. Somente Jesus, o Senhor da vida, podia remover da pessoa o desejo pela droga.

Disse-lhe isso várias vezes. Ele sempre ficava encostado de fora da porta do clubinho. Nunca entrava, e ficava olhando e escutando

os rapazes cantarem nos. Então, uma noite, quando o salão estava quase vazio, eu lhe disse:

— Por que você também não entra e vem louvar a Jesus?

— Está bem, disse ele prontamente.Fiquei espantada com sua aquiescência,

pois, àquela altura, já sabia que seu posto na quadrilha 14K a correspondente ao número 426, o que significava que pertencia a uma categoria especial de tratador das lutas. Sua tarefa era tratar as brigas, ajustar a colha das armas, o local e a estratégia a ser usada. No entanto, ali estava ele, dentro do meu clubinho, louvando a Deus a plenos pulmões. Estava cantando n corinho, em voz bem alta. Depois, pôs-se a orar em chinês. Eu nunca tinha ouvido uma oração tão cheia de alegria, e pensei: "Onde será que ele aprendeu isso?"

E foi um momento extraordinário, pois em seguida ele começou a louvar a Deus em língua estranha, isso me pareceu ainda mais espantoso, pois, ao que sabia, ele nunca ouvira ninguém falando em línguas, ma meia hora depois ele parou. O milagre tinha acontecido. Tanto ele como eu sabíamos que estava completamente curado da dependência da droga, ora liberto enquanto orava.

Quando afinal ele foi-se calando, eu lhe disse:

— Glória a Deus! Foi maravilhoso! Agora o que você tem a fazer é levar seus companheiros da quadrilha a experimentarem o mesmo. E não pode mais seguir ao seu irmão

maior, Goko. Ninguém pode ter dois irmãos maiores. Você terá que seguir ou a Jesus ou a Goko. Não poderá seguir os dois.

E foi assim que Winson partiu para dizer ao seu chefe de quadrilha que cria em Jesus.

Foi Ah Sor quem me revelou depois o que acontecera no arrombamento do clubinho. Um dos rapazes passara por alguns problemas, que julgava terem acontecido por culpa minha. Passara pelo clubinho e começara a berrar e a jogar pedras nas vidraças. Isso despertou nos seus amigos o desejo de fazer o mesmo, e pouco depois estavam todos dominados por um espírito de violência. Muitos deles nem sabiam por que estavam com raiva. Era simplesmente uma questão de violência coletiva.

Poucas horas depois, Goko recebeu a notícia daquela agressão a uma casa do seu setor de controle, e chamou à sua presença os implicados. Ordenou-lhes que nos devolvessem o que porventura houvessem tirado, e que na noite seguinte fossem ao clubinho e se comportassem muito bem.

— Mas nós quebramos tudo por lá, disse um deles. Ela não vai nos querer no clube.

— Ah, vai sim, replicou Goko. Vai, porque a Sr.ta Poon é crente, ela os perdoará. Ela abrirá as portas para vocês e os receberá.

Então eles voltaram. Senti-me muito humilhada quando ele contou o que Goko dissera. Era óbvio que ele estava sabendo como os crentes "deviam" agir, embora minha

tendência tivesse sido fazer exatamente o contrário.

Reconheci assim que o "Irmão Maior" estava olhando por mim, e senti-me mais reanimada pelos rumos que o clubinho estava tomando. Aqueles moços tinham aprendido algumas coisas sobre Jesus. Muitos dos aproveitadores, àquela altura, já tinham desaparecido dali. Haviam descoberto que não havia vantagens sociais em pertencer a ele. Alguns assistentes sociais e conselheiros de jovens me perguntaram qual era meu programa de ação. Tive muita dificuldade em respondê-los.

— Bom, abrimos as portas todas as noites e às vezes aparecem cinqüenta pessoas, outras vezes apenas uma. Procuro travar amizade com eles e conversar. As vezes oramos e louvamos a Deus, e outras imos a passeios. Há ocasiões em que fico a noite da aqui com uma pessoa que não tem onde dormir, há outras em que dou uma tigela de arroz para guém que está com fome.

Por fim descobri uma frase que descrevia meu ibalho e que impressionava bem.

— É um trabalho de jovens, sem estrutura fixa, plicava.

Eu havia tentado operar em termos de projetos guiares, mas raramente funcionava. Em certa oca-lo, contávamos com um técnico de futebol que dava n treino por semana. Todos os rapazes gostavam íensamente de jogar futebol e mais de quarenta sram seus nomes. No primeiro treino apareceram rca de vinte; na

outra semana, vieram dez, e na rceira, nenhum.

O treinador ficou desanimado e teve vontade de rgar tudo. Procurei fâzê-lo entender o que aconte-a. Os garotos da Cidade Murada levavam uma vida o desregrada, que nem sabiam qual era o dia da mana. Dormiam de dia e levantavam à noite. Havia :asiões em que ficavam de pé setenta e duas horas e ;pois dormiam dois dias seguidos. Passavam muito mpo no território da quadrilha, nos salões de ópio. idéia de treinar futebol era bastante interessante, ias ir ao treino era outra questão. Eles queriam ir, e retendiam ir, mas não tinham autodisciplina.

Se o treinador tivesse ido na semana seguinte, ilvez tivesse encontrado uns dois ou três rapazes, e na itra, uns quatro, e na outra ainda uns dez ou doze, ilvez. Logo que percebessem que o técnico estava :almente interessado neles e iria ao campo mesmo ue houvesse um tufão e mesmo que fosse apenas ara treinar com um só, lhe devotariam toda a sua infiança e simpatia.

Muitas pessoas me procuravam pedindo para au-iliarem no clubinho. Trabalhar na Cidade Murada arecia empolgante, emocionante. Mas poucos permaneciam mais que algumas-semanas. Se a atividade ue dirigiam — jogos ou aulas — não tinham boa freqüência, logo desanimavam e nunca mais voltavam. Eu precisava encontrar obreiros que realmente tivessem amor pelas pessoas com

quem trabalhavam, mais do que pela atividade que exerciam.

Como os rapazes da Cidade Murada, eu passei a dormir de dia e ficava acordada à noite, pelo menos teoricamente. O que acontecia na verdade era que eu tinha as aulas de chinês, ia aos tribunais, visitava os presos e resolvia outros problemas e então ficava acordada de dia também. Todos os dias, quando acordava, a única maneira de fazer-me sair da cama era prometer a mim mesma que mais tarde voltaria para dormir, mas nunca o fazia. Então a solução foi aprender a tirar cochilos nos ônibus e balsas.

Certa noite, fizemos um churrasco numa colina das redondezas. O luar estava bem claro e divisei entre os nossos um rapaz grandalhão, de aspecto abrutalhado, sentado ali e comendo muito, enchendo-se de carne. Fiquei furiosa com ele, pois fora eu quem comprara tudo e calculara que seria suficiente para o nosso grupo. Mas, continuando a olhar, notei que os nossos rapazes estavam dando a ele a parte deles também, e pareciam magnetizados pelas suas palavras. Ah Ping sussurrou-me que aquele fora o seu daih lo, o chefe de sua quadrilha, da qual eram também muitos dos presentes. Além disso, ele era irmão carnal de Goko, e o segundo homem forte de toda a Cidade Murada. Sai Di ficara curioso a respeito de nosso clubinho, ao perceber que muitos de seus "irmãos" o freqüentavam, e resolvera participar daquela nossa atividade. Se

quisesse, estava em suas mãos controlar todos aqueles rapazes e o clubinho também.

— Será que eu poderia falar com você? indaguei. Ele achou engraçado aquele convite por parte de uma mulher e levantou-se com gestos apalhaçados. Mas, quando nos afastamos, ele abandonou aquela atitude e pôs-se a escutar-me atentamente. Disse-lhe que meu único objetivo no clubinho era fazê-los conhecer o amor de Jesus.

— Eu sei, replicou ele. Estamos observando-a há algum tempo. Muitos missionários vêm aqui a Hong Kong para ajudar-nos, a nós, os necessitados. Tiram retratos do pessoal aqui para chocar o povo de lá. E alguns até ficam famosos por terem vindo aqui. Mas nós damos cabo deles dentro de seis meses. Sempre arranjamos meios para fazê-los desanimar. Por exemplo, se você fosse homem, já teria levado uma surra há mito tempo. Não importa se a pessoa nos dá comida e graça, escola, aula de judô ou de bordado. Essas coisas não significam nada para nós, pois os que as realizam não têm nada em comum conosco. O que queremos saber de verdade é se eles realmente se interessam por nós. Você já está aqui há quatro anos e estamos achando que talvez você seja realmente sincera.

Não cantei de alegria na frente dele, mas meu coração estava rebentando de gozo.

Uma vez que os interesseiros, os "crentes da opa", tinham saído do clubinho, percebi que os que haviam ficado eram os que mais cedo ou mais tarde se interessariam pelas coisas

espirituais. E eles começaram a pensar seriamente que talvez Jesus fosse mesmo o que se dizia. Certo dia estávamos sentados no clubinho, quando Ah Keung, que é conhecido como o 'palhaço" do lugar, disse:

— Poon Siu Jeh, ontem à noite ficamos um longo tempo conversando sobre você e chegamos a duas conclusões. Ou você é espiã do governo britânico, ou então o que você diz a respeito de Jesus deve ser verdade. Porque ninguém iria passar a vida toda conosco, aqui, a não ser obrigado.

E foi assim que Ah Keung também se tornou crente, e revelou-se um dos mais entusiastas. Ele tinha cinco irmãos e todos viviam com o pai. A mãe fugira logo após o nascimento do sexto filho, e fora viver com um policial. O pai era membro de uma quadrilha muito forte. Mas um de seus amigos fora morto numa luta de bandos e ele resolvera mudar-se para a Cidade

Murada. Trabalhava num salão de jogo. Como trabalhasse à noite, nunca via os filhos durante o dia, e eles não receberam nenhuma criação.

Crescendo, os rapazes tornaram-se caloteiros. Nenhum deles estudou, e, obviamente, acabaram todos como membros de quadrilhas. Os três mais velhos foram presos já com a idade de treze, quatorze e quinze anos, por tráfico de drogas. Além disso, estavam viciados também. Mais tarde, os dois mais novos foram presos. Ah Keung era o único

que ainda não fora encarcerado; convertera-se bem a tempo.

Uma noite, ele entrou no clubinho correndo, ofegante, e disse que eu tinha de ir à sua casa imediatamente. Corri rua abaixo, procurando ir com muito cuidado, pois a rua estava muito escorregadia. Os jogadores utilizavam aquele beco para se aliviarem, na falta de banheiros.

O quartinho onde moravam era muito pequeno para todos eles, mas, como normalmente dois ou três sempre estavam presos, não havia muito problema de acomodação.

Quando ali entrei, vi que o irmão mais velho estava injetando heroína em si próprio. Deitado no chão, estava um homem, com os braços e pernas cheios de vergões e ferimentos, e as roupas ensopadas de sangue. Fora brutalmente surrado. Estava diante de mim a tarefa de limpar as feridas e tratar dele. Meu primeiro impulso foi transportá-lo para um hospital.

— Não podemos levá-lo, disseram os outros em coro. Ele é de uma quadrilha. Se o levarmos para o hospital, será interrogado pela polícia. E vão descobrir que é viciado.

Então não havia outra alternativa. Tinha que socorrê-lo. Peguei um balde com água e algumas ataduras imundas, e comecei a tratar do homem. Jesus dissera que tinha vindo ao mundo para curar as feridas, e era exatamente isso que estavam querendo que eu fizesse. Falei ao ferido sobre isso. Falei-lhe do amor de

Jesus. Não respondeu nada, mas senti que compreendera. Um ou dois anos depois, voltou a nos procurar.

Após este incidente, fiquei mais ligada à família de Ah Keung. Visitei os que estavam presos e tentei arranjar emprego para quando fossem soltos. Uma noite, estava saindo da Cidade Murada, quando escutei um deles, Sai So, dando meu telefone para um outro viciado.

— 83-3179, dizia ele. Guarde bem esse número ara o caso de você ser preso. Qualquer hora do dia ou a noite que você ligar, a Sr. ta Poon irá auxiliá-lo. Não importa se você cometeu o crime ou não. A única coisa que você tem de fazer é falar a verdade, pois, como você sabe, ela é crente.

Enquanto me dirigia para casa, ia pensando: "no Senhor, o vosso trabalho não é vão". Ali estava eu tendo o privilégio de ver os frutos. Alguns dos piores criminosos de Hong Kong sabiam que o nome de Jesus era Verdade.

A maioria dos moços que eu conhecia estava constantemente sendo presa e levada a julgamento. A medida que os fui conhecendo melhor, comecei a crer quando declaravam que eram inocentes de alguns delitos de que lhes acusavam, pois eu própria ia verificar is álibis deles. É claro que, na maior parte, eles eram criminosos, mas nem sempre culpados dos atos pelos mais eram presos. Parecia-me um erro muito grande me confessassem crimes que não haviam cometido ou legassem participação naqueles em que realmente estavam envolvidos.

Várias vezes, quando caminhava ao lado de Ah Ping fora da Cidade Murada, ouvi-o dizer:

— Fffffiu! Andei a rua toda e não fui preso!

Tinha avistado um ou dois detetives que o conheçam. Se quisessem, poderiam tê-lo detido e interroga-lo. Ou poderiam até levá-lo preso, e atribuir a ele um :rime qualquer. Isso acontecia muitas vezes.

Comecei a pedir aos rapazes que sempre dissessem a verdade no tribunal. Isso me levou a ir muitas vezes aos tribunais e passar ali várias horas, partilhando da vergonha daqueles criminosos, pois via pessoas apontando para mim e dizendo:

— Lá está aquela boba daquela crente, sentada com os marginais.

Eu tinha consciência de que os moços haviam praticado muitos crimes, mas estava sempre disposta a ir lá e me sentar com eles ali, culpados ou não, desde que falassem a verdade. Mas a vergonha dessa situação ajudou-me a compreender o admirável sacrifício de Cristo, quando publicamente se associou conosco, os pecadores.

Certa noite recebi um telefonema de Mau Jai. Eram quinze para as oito, e em minha sala estavam várias moças e rapazes que ali se achavam orando.

— Johnny acaba de ser preso. Venha para a delegacia depressa, disse ele.

— Como você sabe disso? indaguei. E onde você está?

— Não posso falar nada aqui. Mais tarde eu digo, respondeu.

A caminho da delegacia, fiquei pensando em Johnny, que era um dos viciados de aparência mais repulsiva que eu conhecia. Era um rapaz de compleição miúda e horrivelmente magro. Era carpinteiro e ganhava bom salário, mas gastava tudo em heroína.

Quando cheguei à delegacia, pedi para vê-lo, mas disseram-me que não se encontrava ali.

— A senhora pode voltar para casa, disse-me o sargento de plantão, e se ele aparecer, telefonamos.

— Pois vou ficar aqui até que o mostrem, respondi, e comecei a ajeitar-me para passar a noite ali.

Dois minutos depois, eles o trouxeram, mas eu chegara tarde demais. Ele já confessara um crime. Fora acusado de estar com uma chave de fenda com a intenção de entrar num prédio que ficava a um quilômetro e meio da Cidade Murada.

Johnny e Mau Jai estavam tomando droga numa das maiores salas de droga da Cidade Murada, quando dois detetives entraram e prenderam Johnny. Eles sabiam muito bem onde eram as salas, e os viciados eram presa fácil. O mal daquela situação toda era que certos policiais tinham combinado com os exploradores dos vícios ali que ignorariam os antros de comércio, em troca de um dinheirinho.

Vez por outra, eles davam batidas policiais, mas, em várias ocasiões, ouvi os vigias das salas falando ao telefone com guardas que lhes avisavam que estavam caminho de lá. Fiquei sabendo inclusive que muitos detetives eram sócios daqueles negócios ilegais, em cooperação com as quadrilhas. Comecei a compreender por que os rapazes eram tão confusos sobre as loções de certo e errado.

A família de Johnny morava num apartamento muito pobre, do lado de fora da Cidade Murada. Eles arranjaram dinheiro emprestado e pagaram sua fian-a, e assim ele foi solto; o que foi um erro, pois nesse leríodo de várias semanas em que aguardava a prisão preventiva, ele tomou mais e mais heroína. Fiz-lhe ima visita e tentei convencê-lo a declarar-se inocente, ias mostrou-se relutante.

— Não posso voltar atrás na confissão que já assinei. Os policiais me disseram que, se eu o fizesse, me prenderiam por outra coisa.

Os viciados sempre diziam que ganhavam heroína na delegacia, em troca de uma confissão. Falei a Johnny sobre Jesus e como ele sempre falava a verdade, ainda que isso lhe tivesse custado a vida. Oramos, e ele concordou em que seria acertado falar a verdade, mas acrescentou:

— Se eu disser a verdade no julgamento, isso significa que tenho que revelar onde ficam as salas de droga. E o que é pior, estou dizendo que os guardas também sabem onde

elas são. Tanto os meus amigos como a polícia vão querer se vingar.

Mas continuei a visitá-lo e a pedir-lhe que falasse a erdade. No dia do julgamento, ele estava decidido a lizer o que a polícia desejava, embora eu houvesse contratado um advogado para defendê-lo. Pouco antes de ele prestar depoimento, mostrei-lhe uma passa-gem bíblica que nos ensina que não precisamos ter medo, quando levados a tribunais, pois o Espírito Santo nos instruirá quanto ao que devemos dizer.

Mais tarde, ele me relatou que, quando se pusera de pé no tribunal, sobreviera-lhe forte convicção de que tinha de dizer a verdade. Nosso advogado fez longos interrogatórios aos policiais sobre as provas e fatos por ele apresentados, mas o juiz acabou aceitando como certa a versão deles, e considerou Johnny culpado. Quando ele pronunciou o veredito, rompi em pranto.

Era muito incomum ver-se uma moça inglesa chorando por causa de um criminoso chinês. O chefe de polícia encarregado do inquérito veio falar comigo. Perguntou-me por que estava chorando.

— Porque ele não fez aquilo, respondi entre soluços. Não é culpado.

— Pois a ficha dele é bastante extensa, disse ele com bondade. Eu não desperdiçaria com ele minha pena.

— Isso não vem ao caso, repliquei. Esse crime aí ele não cometeu.

— Se não cometeu esse, cometeu outros. No todo, a condenação é justa.

— Mas não está certo, insisti; o nome de Jesus é verdade, e temos que falar a verdade no tribunal.

Os detetives que efetuaram a prisão e alguns outros se aproximaram de nós. Sabiam que tinham mentido. Viram as lágrimas escorrendo em meu rosto, riram e debocharam de mim. Era preciso muito esforço para não sentir raiva deles.

Johnny foi mandado para a prisão e depois para um centro de reabilitação de viciados. Mas eu continuei a visitá-lo.

O veredito final ainda não fora dado. Recorremos da decisão. O juiz voltou atrás e Johnny foi liberto. Mas acabou voltando ao vício e preso de novo. Saindo da prisão, ele prosseguiu nesse terrível círculo vicioso.

Mas ele nunca se esqueceu do que acontecera naquele julgamento. Fui visitá-lo várias vezes. Mais ou menos dois anos depois, ele creu em Jesus, e foi para um centro de reabilitação cristão, onde sua vida foi totalmente transformada. Após sair de lá, tornou-enfermeiro em um sanatório de tuberculosos, trabalhando na ala dos viciados.

Aquele julgamento teve também alguns outros resultados positivos. Fora a primeira vez que eu maltratara um advogado para defender nossos rapais, e depois disso fiz o mesmo outras vezes. E em todas as vezes a polícia saiu vitoriosa no caso. Ao interrogá-los, diziam:

— Não fique pensando que essa inglesa pode ajudar vocês.

Mas vários rapazes me disseram que vez por outra eram detidos por detetives que lhes indagavam:

— Você pertence ao clube daquela mulher? Quando respondiam que sim, eles os deixavam ir.

A razão disso era que, quando detiam um dos nossos rapazes e ele era inocente, o julgamento poderia durar até uma semana, em vez de terem apenas uma simples audiência de dez minutos. E isso ficava muito dispendioso para eles. Era mais um sinal de que estavam de lho em mim; e assim Jesus era pregado.

Outro resultado veio dois anos e meio depois. Era natal, e eu queria fazer um jantar especial para os rapazes, mas não tínhamos dinheiro. O telefone tocou. Era do escritório do nosso advogado.

— Estamos fazendo uma revisão em nossa escrituração e descobrimos que temos de reembolsá-la em mil dólares, disse uma voz. Verificando o caso de Johnny Ho, percebemos que lhe devemos mil dólares em honorários pagos a mais.

— Não devem, não, repliquei. O pagamento foi feito corretamente.

— Mas pelos nossos registros houve recurso, e isso pago pela assistência jurídica.

— É, sei disso, respondi. Mas façam o favor de verificar tudo com muito cuidado, porque se me mandarem o dinheiro, vou gastá-lo.

E eles reverificaram os livros e me enviaram o dinheiro. E foi assim que passamos um ótimo Natal. Deus também estava de olho em nós, cuidando de nós.

A mãe de Johnny ficou extasiada quando ele se converteu. Todas as vezes que eu passava pelo mercado, ela me dava ovos e lingüiça, que ela vendia em sua barraca ali. Estava tão feliz, que sempre me dava muitos presentes. Afinal, tive que começar a passar de largo pela sua rua. Minhas roupas estavam começando a ficar apertadas.

8

Perseguindo o Dragão

Uma noite, quando saía daquela cidade escura, pus-me a pensar longamente. A vida que estava levando era muito estranha, pois nunca me deitava ou cantava em horários regulares, e ainda tinha que conversar com Deus o tempo todo.

"Graças a Deus não sou casada", orei. "Graças a Jesus sou livre, para cuidar dos filhos de outras pessoas."

Naquela época estava morando num apartamento m uma jovem de nome Stephanie, e ela nunca se preocupava com os horários em que eu chegava em casa. Já era

bem mais de meia-noite, quando tomei o micro-ônibus, para voltar.

Em dado momento, interrompi minha oração, pus minha atenção se voltou para um rapazinho de aparência horrível, um esqueleto ambulante, de uns quinze anos. As órbitas oculares eram escuras, imensa, no rosto acinzentado. Procurei lembrar onde o vira antes. Afinal, recordei de onde o conhecia.

Fora há cinco anos, quando começara a ir à cidade Murada. Havia uma grande casa de chá nas imediações, e aquele garotinho ficava por ali, esperando táxis para abrir a porta e receber uma pequena gorjeta. Tinha um aspecto muito doente, e era óbvio que estava vivendo pelas ruas. Como ainda não sabia lar chinês, pedi aos conhecidos chineses que escrevessem bilhetes para ele, oferecendo-me para ajudalo. O que eu não sabia era que o menino se viciara em drogas por volta dos dez anos. Ele nunca vinha aos encontros que marcava, mas continuei a orar por ele.

E ali estava ele de novo. Agradeci a Deus por aproximá-lo novamente de mim. Felizmente já sabia falar chinês. Ele saltou do veículo num setor da cidade onde a vida noturna era movimentada. Saltei também e o segui. Bati-lhe de leve no ombro e me apresentei, convidando-o para comermos alguma coisa. O garoto ficou bastante constrangido. Enquanto lanchávamos, notei que se sentia cada vez mais inquieto. Percebia-se claramente que estava precisando de uma dose da droga. Sua mente já estava muito

prejudicada pela quantidade de heroína que consumira. Ele não estava entendendo nada do que lhe dizia. Portanto, não adiantava falar com Ah Tsoi sobre Jesus. Calculei que, se resolvêssemos primeiro o problema de sua dependência da droga, sua mente se aclararia, e poderia falar-lhe de Cristo.

Nas semanas que se seguiram, encontrei-me com ele várias vezes, a qualquer hora do dia ou da noite. Nunca dormia no mesmo lugar, e eu estava receosa de perder o contato com ele, caso fosse preso. Com todas aquelas marcas de picada pelo braço, era um alvo fácil para a polícia. E o que era pior, soube que ele estava assaltando pessoas na rua, para comprar a droga.

Mas eu estava obcecada pela idéia de salvá-lo. Quanto mais via aquele garoto de vida miserável, mais gostava dele. Afinal, o Pastor Chan concordou em recebê-lo no seu Centro Cristão de Reabilitação. Era a resposta às minhas orações. Como ele teria que esperar algum tempo antes de ir para o centro, comecei a dar-lhe dinheiro. Estava um pouco em dúvida quanto a essa atitude, mas ele precisava do dinheiro para comprar heroína. Se não lhe desse, seria forçado a roubar. Assim me convenci de que estava agindo de modo certo.

Por fim, chegou o dia em que ele deveria seguir para o centro. Comprara-lhe algumas roupas novas, sandálias e calção de banho, pois o centro ficava próximo de uma praia. Embrulhando aquelas coisas, sentia uma

enorme ternura por Ah Tsoi. Eu lhe dissera para passar em meu apartamento e tomar um banho, antes de ir para o centro.

Duas horas depois do momento em que deveria ter chegado, ainda não havia o menor sinal dele. Quando eu já estava começando a achar que não viria mais, ele apareceu. Estava imundo, mas não havia mais tempo para o banho. Ele revelava uma atitude muito hostil, negativa; mesmo assim fomos, e então o entreguei ao Pastor Chan.

Fui deitar-me e dormi quase vinte horas seguidas. Havia semanas que não dormia com tranqüilidade. Estava exausta, mas grandemente aliviada. Graças a Deus, Ah Tsoi achava-se nas mãos de outra pessoa e era problema dela. O pastor poderia falar-lhe de Jesus e ajudá-lo a crescer. E eu poderia procurar o próximo...

Fui despertada por um telefonema. Ah Tsoi fugira do centro. Não suportara as dores da desintoxicação forçada. Os outros tentaram convencê-lo a orar, mas recusou-se, e, à noite, escapou. O pessoal do centro tentou encontrá-lo para convencê-lo a voltar, mas ele se recusava terminantemente a retornar.

Senti como se uma parte de meu ser houvesse morrido. Sentia-me muito abatida, e deitei-me no chão e chorei. Deitada ali fiquei a pensar que aquilo era o fim de tudo. Não sabia o que mais poderia ter feito para socorrê-lo. Eu dera a Ah Tsoi meu tempo, carinho, dinheiro, alimento, e tentara falar-lhe de Jesus. Mas nada disso adiantara. Eu fracassara.

Não estava zangada com Deus, mas sentia-me muito decepcionada e confusa com tudo que acontecera. Não entendia por que ele permitira que eu me aproximasse de Ah Tsoi, se aquilo não ia dar em nada. Afinal orei:

— Senhor, não quero mais saber desse tipo de coisa, por favor. Não querer lidar com viciados, pois não suporto isso. Eu só tinha amor para dar a uma pessoa, e dei-o todo a ele, mas não foi suficiente. Acho que não tenho mais nada para dar.

No dia seguinte, pela manhã, peguei o ônibus para ir à aula de chinês. Acomodei-me como pude no meio de outros quarenta e tantos passageiros de pé, quando, com o canto do olho, avistei um rapazinho que era deficiente mental. Virei o rosto, pois não queria olhar para ele. E meu olhos deram com outro viciado em drogas. A única coisa a fazer então era fechá-los.

"Senhor", orei, "não estou olhando, porque não desejo passar por todo aquele sofrimento outra vez. Eu pensava que tu irias ajudar-me, mas não deu certo. E por que não?"

Lembrei-me da época em que começara a ver e a reconhecer viciados. Em uma rua, havia mais de cem, inalando heroína abertamente. Naquela ocasião, eu dissera a Deus: "Valeria a pena dar minha vida por essa gente, se tu me usasses para socorrê-los."

Aos poucos fui-me refazendo do sofrimento que tivera por causa de Ah Tsoi, e então comecei a ver os erros que cometera no trato com ele. Tentara dar-lhe tudo que tinha,

mas estava tentando salvá-lo com minhas próprias forças. Queria vê-lo livre das drogas, mas ele não se achava tão desesperado, que desejasse a libertação.

Eu não tivera coragem de forçá-lo a libertar-se do vício. (Isso aconteceu antes de eu haver presenciado a libertação de Winson, operada pelo poder de Deus.) Estava convencida de que Ah Tsoi precisava dos cuidados de uma pessoa mais tarimbada. Vendo que nem isso dera certo, sentira-me derrotada.

Algum tempo depois, o Pastor Chan convidou-me a tomar chá com ele. Ele palmilhara sozinho aquela estrada. Com determinação e coragem, criara o seu centro de reabilitação de viciados, nos Novos Territó-rios. Uma vez que o viciado era liberto da droga, ficava ali um ano e meio, recebendo carinho e disciplina, e assim podia crescer em Cristo. Muitos dos que passaram pelo seu centro haviam-se tornado obreiros cristãos. E os rapazes de lá eram os únicos que eu conhecia que não voltavam à droga. E ele fora edificando sua obra aos poucos, com muitas experiências e sofrimento.

Os assistentes sociais são instruídos a não se envolverem emocionalmente com aqueles com quem trabalham, mas eu sabia que, se não tivesse tido uma aproximação maior com as pessoas com quem trabalhava, não teria permanecido. O fracasso no caso de Ah Tsoi ensinou-me que não tinha capacidade suficiente para pegar uma tarefa assim,

simplesmente porque era uma obra meritória. Mas eu sabia que meus recursos próprios estavam esgotados.

Entretanto, apesar de haver orado muito, pedindo a Deus que não me aparecessem mais viciados, aquilo não foi o fim. Descobri que poderia voltar a cuidar deles, com o amor de Deus.

Conhecendo melhor as quadrilhas e seu funcionamento, cheguei à conclusão de que havia tantos viciados entre eles, porque a droga era muito barata e de fácil obtenção.

Uma noite entrei numa das salas de comércio e consumo de heroína. Era numa espécie de coberta, nos arredores da cidade, mas funcionava com o conhecimento da polícia. Estava imunda. Havia algumas mesas longas, às quais estavam sentadas pessoas que mais lembravam figuras despersonalizadas. Senti como se estivesse entrando num banquete diabólico, num jantar estranho e silencioso. Pela quantia de cin-qüenta centavos, um "garçon" fornecia os pavios feitos de papel higiênico retorcido, a folha de estanho e o funil de papelão necessário para se "perseguir o dragão". São poucos os viciados chineses que injetam he-roína. Têm medo de tomar uma dose excessiva.

Entre os cinqüenta e poucos presentes ali, inalando a droga em seu festim macabro, achava-se um rapazinho de uns quatorze anos. Sua pele era pálida e sem vida, e suas forças estavam esgotadas. A namorada, que devia ter

mais ou menos a mesma idade, estava sentada ao seu lado', amparando-o nos braços, enquanto ele aspirava aquele veneno. Então me lembrei de que a moça tinha que comerciar com seu corpo, a fim de pagar a droga para o rapaz. Olhei os outros presentes que também sustentavam o hábito pelo mesmo processo, a menos que roubassem. Era uma cena degradante, mas sentia-me fascinada e atraída por aquilo. Senti a força de atração da droga, que todo viciado em potencial conhece muito bem, e que desafia toda a lógica. Ele sabe que ela destrói, que leva a uma dependência total e à depravação, mas ainda assim quer experimentá-la. E depois que a experimenta uma vez, sente-se forçado a continuar nisso, até ficar acorrentado a ela.

Todo viciado tem um relacionamento de amor e ódio com a droga. Na mente, ele a detesta, mas seu corpo a deseja fortemente, e atraiçoa a mente, fazendo-a crer que a droga é sua salvação. Nenhum deles percebe quando cruzou a fronteira que separa a condição de simples curioso, que "brinca" com as drogas, para a de viciado. Na primeira vez em que um indivícuo toma a droga, ele vomita, mas depois volta a tomá-la, só para ver se já consegue sentir alguma coisa. Outro, talvez, experimente poucos efeitos negativos, e fica pensando que pode tomá-la sem problemas. Começa com doses pequenas, mas daí a pouco tem necessidade de aumentá-las. E vai tomando doses cada vez maiores até morrer ou ser preso.

Senti o poder de atração da droga. Era muito forte. Era demoníaco.

No dia em que Winson veio ao clubinho e foi liberto do vício, Deus me revelou que o dragão podia ser derrotado. Naquele momento, percebi que a experiência por ele vivida poderia repetir-se em outros rapazes que se convertessem. Pouco depois, Ah Ping disse-me que um amigo seu, um viciado, desejava ir ao nosso acampamento no verão, e aceitei-o prontamente. Ah Ming era da Ilha de Hong Kong, um quadrilheiro de grande influência ali. Conhecemo-nos na balsa que nos conduzia à Ilha Lamma, onde se situava o acampamento, mas não quis apertar-me a mão, nem conversar.

Nos primeiros dias, eu não teria auxiliares masculinos, embora mais tarde dois rapazes ingleses, Tim e Nick, fossem trabalhar conosco. Por isso, orei a Deus nos seguintes termos: "Senhor, mande-me somente as pessoas certas. Não permita que venham os problemáticos."

O acampamento ficava no alto de uma montanha, um lugar lindo e tranqüilo. A programação era bem delineada, com horários de dormir bastante rígidos e trabalho bem distribuído, mas era difícil fazê-la funcionar sozinha. Eu e as poucas moças que foram dormíamos nas barracas, enquanto os rapazes acomodavam-se no enorme dormitório. Eu não podia ir lá examinar os pertences deles nem apagar as luzes. Mas podia orar a Deus, para que barrasse a ida de problemáticos.

Ah Ming surgiu à porta do dormitório e me viu sentada do lado de fora, em meio à escuridão. Não tinha contado com isso.

— Éééé... eu... éeéé... gosto de olhar as estrelas, disse improvisando uma desculpa.

— É, concordei. Eu também. São muito lindas, não são?

Ficamos ali sentados várias horas, mantendo uma conversa educada. Estava claro que ele estava ansioso para dar uma saída, e tomar sua droga. Afinal, fui-me deitar e ele dirigiu-se para o outro lado do morro para tomar sua heroína.

Eu pedira a Deus que impedisse a ida de rapazes problemáticos, então tinha de concluir que todos os que tinham ido haviam sido enviados por ele. Os missionários haviam-me dito que o melhor modo de se fundar uma igreja era trabalhar com um converso de cada vez. Depois que esse fosse crente e estivesse bem firme, então poderia trabalhar com outro. Eu fizera exatamente o contrário, e agora estava com um dormitório cheio de quadrilheiros. Comecei a pensar que talvez os missionários tivessem razão.

Dois dias depois, Ah Ming havia esgotado seu estoque de drogas. Mandou que um rapaz viesse dizer-me que tinham um problema urgente a resolver, e portanto iriam embora. Como estávamos realizando o culto matutino, três deles fugiram.

Pedi a Nick que fosse atrás deles. Aqueles ardilosos rapazes haviam elaborado uma boa

explicação para sua fuga, mas felizmente Nick não sabia falar chinês e continuou atrás deles.

Subiram e desceram três morros, sempre escutando aquele inglês dizendo repetidamente:

— Vocês têm que voltar! Jesus os ama!Mas o desejo deles pela droga era tão

forte, que subiriam cem morros, se fosse preciso, para chegar à balsa e aos fornecedores da heroína.

Enquanto isso, lá no acampamento, estávamos orando para que voltassem.

De repente, sem saber bem por que estavam agindo assim, os três rapazes estacaram. Viraram-se e começaram a voltar. Quando reapareceram com Nick, pareciam bastante encabulados. Não sabiam explicar, nem a si mesmos, aquela mudança de direção. E quando sugeri a Ah Ming que tivéssemos uma conversa, ele fez que sim.

Caía uma chuva forte e entramos numa barraca pequena. Ah Ming estava muito inquieto, incomodado com a situação, mas não podia sair da barraca por causa da chuvarada.

— Lamento muito, Ah Ming, principiei, você estar-se sentindo tão mal, mas queria dizer-lhe uma coisa que poderá ser-lhe muito útil.

Desenhei três cruzes no chão.— Vamos imaginar que podemos

enxergar todos os erros que uma pessoa praticou. Vamos pegar este lap-sap (lixo) para representar esses pecados, continuei, pegando

um pouquinho de terra, tampinhas de garrafa e pedaços de papel que havia por ali. Quando

Jesus foi crucificado, de cada lado dele também foram crucificados dois homens. Eram ladroes e talvez até já tivessem matado alguém.

Coloquei um montinho de lixo sobre as cruzes laterais, deixando vazia a de Jesus.

— Sabe por que essa do meio está sem lap-sap? indaguei.

— Sei. Jesus nunca fez nada errado. Não tinha pecado.

Apontando para uma das outras cruzes, continuei:

"— Ei, então você é o Cristo, não é?" disse o homem daqui em tom de ironia. "Então prove. Chame seus capangas para salvá-lo, e salve-nos também."

"— Você não devia falar assim", objetou o ladrão da cruz da direita. "Nós erramos, merecemos morrer. Mas esse homem não fez nada", e depois virou-se para Jesus e disse: "Senhor, lembre-se de mim quando chegar ao seu reino."

"— Hoje você estará comigo no paraíso", respondeu Jesus.

E ao dizer isso, peguei o montinho de terra da cruz da direita e coloquei-o sobre a de Jesus.

— Você está com vontade de vomitar? indaguei. Notara que a fisionomia de Ah Ming estava esverdeada, e que ele tremia.

— Pois bem, Jesus sentiu a mesma coisa. Só que foi muito pior, pois além de ficar com os

pecados daquele homem, recebeu todos os pecados e as dores de todas as pessoas do mundo, para que hoje não tivéssemos pecados nem dores.

Ficamos os dois olhando para o chão, durante alguns minutos, fitando a mensagem ali exposta. Depois eu disse:

— O ladrão desse lado foi perdoado e hoje está vivendo com Deus. Mas por que o outro não foi?

— Porque um creu e o outro não, respondeu Ah Ming.

— E é isso que você precisa fazer, repliquei. Se você quiser entregar suas dores a Jesus, ele poderá removê-las agora mesmo. Você quer?

Ah Ming não estava querendo muito. Seus olhos lacrimejavam, e ele comprimia o estômago com as mãos. Ainda estava chovendo, e ele se achava naquela barraca. Afinal, não conseguiu suportar mais.

— Suponhamos, disse ele com um suspiro resignado, suponhamos que eu faça uma tentativa.

Isso bastava. Então, fez uma oração clara pedindo a Jesus que removesse a dor e todos os seus pecados, para que pudesse começar uma nova vida. Naquele momento parou de chover.

Meus amigos ingleses vieram até a barraca, e impusemos as mãos sobre Ah Ming. Oramos, e ele recebeu o dom do Espírito Santo.

Uma semana depois, quando regressávamos do acampamento, o rapaz me

relatou como Deus atendera às nossas orações naquela noite. Ele fora deitar-se ainda um pouco confuso, e tivera um sonho bastante estranho. Sonhara que se achava deitado numa cama de madeira, no alto da montanha. Ventava muito, e ele ouviu alguém batendo à porta. Como estava-se sentindo muito mal, devido à carência da droga, não foi atender. Mas a pessoa bateu novamente, e ele foi ver quem era. Viu um homem com uma vela na mão. Ele voltou a deitar-se, pois estava de muito mau humor. Na terceira vez que o homem bateu, Ah Ming pensou: "Coitado desse homem, não deve ter para onde ir." Abriu a porta, e foi deitar-se de novo. O outro entrou no barraco e, aproximando-se da cama, colocou a vela sobre ela. Em seguida, disse a Ah Ming que se sentasse, e impôs as mãos sobre ele com muito carinho. As dores desapareceram, e o rapaz nunca mais sentiu nada.

O apito estava trilando. Todas as manhãs, os rapazes tinham que fazer a ginástica costumeira. Saltaram todos da cama. Ah Ming também se levantou, mas estava apalpando o leito. Ah Ping perguntou-lhe o que estava fazendo.

— Estou procurando as gotas de parafina da vela, replicou.

O sonho lhe parecera tão real, que ele tinha certeza de que Jesus estivera ali de verdade. Naquele mesmo dia, foi batizado no mar.

Embora Ah Ming tivesse um emprego nos estaleiros, ele próprio não fazia nada. Ficava deitado o tempo todo, enquanto seus "irmãos menores" lhe levavam heroína. No primeiro dia de serviço, após o acampamento, foi orando pela balsa que atravessava a baía. Estava tão imerso na oração, que nem notou que alguém havia-lhe furtado as sandálias. Mas seguiu em frente, para o trabalho, sem se deixar abater, e entrou pelo portão descalço. Logo notou que um grupo de uma quadrilha rival vinha em sua direção armado para a luta. Instintivamente, pegou a primeira arma que viu: dois pesados mourões de ferro. No acampamento, ele já havia dado instruções a seus irmãos com relação àquela briga. Vendo que Ah Ming se preparava para ir ao ataque, eles também pegaram em facões. De repente, o rapaz se lembrou de uma coisa.

— Epa! Eu vim pela balsa orando para ter paz! Não posso brigar com essa gente.

Largou as armas que pegara e, sentando-se no chão, pôs-se a orar novamente. Instantes depois, ergueu os olhos e viu que seus inimigos o cercavam, olhando-o com ar intrigado.

— O que você está fazendo? indagou o chefe deles.

— Orando. Agora sou crente. Quer saber como foi?

Responderam que sim, completamente espantados, e Ah Ming pôs-se a narrar-lhes o que sucedera. Os outros ficaram tão impressionados com o fato, que alguns passaram a assistir às nossas reuniões.

Desse modo nosso clubinho foi crescendo mais e mais. Eu ainda não conhecia pessoalmente o afamado Goko, mas seu "irmão grandalhão" ia ali muitas vezes.

Algumas semanas depois do acampamento, estávamos orando certo dia,' quando um dos rapazes teve uma visão. Como todos os que haviam crido em Cristo tinham recebido também o Espírito Santo, não nos surpreendíamos com as maravilhas que ele operava. Na visão, todos estávamos descendo a rua, enfileirados, cantando e dançando. Mas apenas doze se dispuseram a ir. Os outros se desculparam.

— Poon Siu Jeh, nós moramos neste lugar.Um dos corinhos de que mais

gostávamos no clubinho era "Não tenho prata nem ouro". Um dos moços tocava violão. Peguei meu acordeon, uns dois ou três pandeiros, e os outros doze vieram atrás de nós, enfileirados. Quando chegávamos ao verso que dizia "andando e saltando e louvando a Deus", todos nós dávamos alguns pulos.

Muitos dos comércios do vício naquela hora tiveram de parar. Ao passarmos pelo cinema pornográfico e pelas salas de jogo, os homens saíram para ver o que estava acontecendo. Muitas daquelas pessoas já tinham visto os crentes distribuindo papeizinhos pelas ruas, mas nunca os tinham visto cantar e dançar por ali.

Depois de passar pelos antros de ópio, chegamos às duas maiores salas de comércio

de heroína. Ali paramos, e Ah Ming começou a pregar. Dentro de uma delas um jovem alto, chamado Ah Mo, acabara de injetar em si uma dose. Ele pouco ou nenhum prazer alcançava mais com a droga, pois nem bem acabava de tomar uma dose, e já precisava pensar em como obter dinheiro para a próxima. Já estava maquinando o próximo assalto, quando escutou aquela cantoria lá fora. Saindo de lá, ficou espantado de ver seu amigo Ah Ming contando como Jesus havia transformado sua vida.

Realmente acontecera uma coisa maravilhosa com o rapaz, pois umas três semanas antes os dois tinham tomado heroína juntos. Esquecendo sua intenção de praticar um assalto, acompanhou a fileira de crentes até o clubinho. Ali pôs-se a escutar maravilhado as palavras dos moços que lhe diziam como Jesus poderia transformar-lhe toda a vida. Mas ele abanou a cabeça, e pediu para falar comigo em particular.

— Não posso ser crente, Sr.ta Poon. Matei minha esposa.

E me narrou a trágica história de sua ascensão na quadrilha pela fama de bom brigador. Ele costumava jogar pessoas para fora de boates e bares nos mais chiques setores da cidade. Em pouco tempo, tinha o controle de um pequeno império. Vivia com uma recepcionista de um dancing, mas tinha mais três amantes. Quando foi preso, a recepcionista o visitou na cadeia. Ela o amava realmente. Mas depois que foi solto, continuou

a procurar as outras mulheres. Ela começou a tomar drogas, e, certa vez, foi levada quase à morte para o hospital, onde fez lavagem estomacal. Mas Ah Mo não largou sua vida de libertinagem, e ela tomou outra dose excessiva. Na terceira vez em que o fez, morreu no hospital. Ele ficou profundamente abalado com o senso de culpa, e, num impulso de autopunição, entregou-se às drogas também.

Quando eu lhe disse que poderia encontrar perdão em Cristo, seus olhos ganharam nova esperança. Orou recebendo a Jesus e saiu dali pisando nas nuvens. Alguns dos velhos companheiros que se achavam lá fora, no beco, zombaram dele ao ver a expressão de seu rosto.

— Ele ficou religioso, gente, diziam. Ficou religioso.

Mais tarde Ah Mo me disse:— Não me importei com aquilo, pois meu

coração estava leve.Eu presumira que, como Winson e Ah

Ming tinham sido curados milagrosamente do vício, todos os que cressem o seriam também. Mas Ah Mo não o foi, e continuou a tomar drogas.

Pedi ao Pastor Chan que o recebesse em seu centro, mas não havia vagas, e ele teve de esperar várias semanas.

— Glória a Deus! disse Ah Mo alguns dias depois, quando veio para o culto de domingo. Essa semana não precisei assaltar ninguém

para comprar minha heroína. Arranjei um emprego.

Quando fiquei sabendo qual era o emprego, eu mesma não consegui dar graças a Deus. Ele estava trabalhando em uma das salas como tin-man-toi (metereologista). Todas as noites, tinha que ficar sentado em uma das entradas da Cidade Murada. Em seu maço de cigarros havia um plugue elétrico. Se visse um grupo de policiais aproximando-se, ou um investigador do departamento de narcóticos, ou um membro de uma quadrilha inimiga, sua tarefa era introduzir o plugue numa tomada que havia na muralha. Isso disparava um alarme nas várias salas, e, quando o intruso chegasse lá, toda a atividade estaria paralisada.

Para fazer este serviço, Ah Mo recebia cerca de HK$ 15,00 dólares diários, que eram suficientes para a heroína, mas não para o arroz.

Todos os dias eu lhe dava um pouco de alimento. Aprendera que não devia dar dinheiro. Ele dormia num beco atrás dos banheiros públicos de Kowloon, pagando para isso a quantia de HK$ 15,00 dólares a outro homem que se arvorara em "dono" da rua. Quase todas as vezes em que ia lá, eu me sentava ali e orava com ele, embora geralmente estivesse sonolento.

Dei graças a Deus quando acabou-se aquele trabalho de vigilante. Ah Mo foi para o centro de reabilitação, libertou-se da droga, e,

em um mês, engordou quase dez quilos. Mais um dragão beijara a lona.

Após a cura miraculosa de Winson, continuei mandando recados a Goko. Ia aos antros de jogo e deixava ali meu nome; conversei com a esposa dele. Afinal, concordou em falar comigo. Winson chegou com um recado, dizendo que ele me convidava para tomar chá no Restaurante Fairy, fora da cidade. Enquanto me encaminhava para lá, fiquei a imaginar como seria Goko. Sabia que era alto e forte, e que fora um grande jogador de futebol antes de se entregar ao ópio. O fato de ser viciado fazia um forte contraste com o terror que seu nome inspirava. Era um dos mais velhos chefes das quadrilhas, e orgulhava-se de observar bem as leis do seu mundo, como, por exemplo, encarregar-se dos funerais de um companheiro assassinado.

Ele me reconheceu primeiro, já que eu era a única ocidental a entrar no restaurante. Era um homem de uns trinta e cinco anos, muito bem vestido, e achava-se sentado sozinho. Fez um gesto cortês, indicando que me sentasse. Olhando-o de frente pela primeira vez, pude perceber que o ópio deixara profundas marcas de dissipação em seu rosto forte. Sorriu, exibindo dentes estragados e escurecidos pela droga.

Educadamente, aquele impiedoso chefe da corrupção indagou-me o que iria pedir. Entregamo-nos a uma conversa agradável, até que não agüentei mais e disse abruptamente:

— Não precisa ser tão educado comigo. Vamos parar com essa hipocrisia, por favor. Não temos a mínima simpatia um pelo outro. Por que me trata com tanta gentileza?

Ele pensou por uns instantes.— É que creio que você gosta de meus

"irmãos" assim como eu gosto.E ele não estava falando por falar. Era

conhecido de todos o cuidado que tinha por seus seguidores.

— É, realmente gosto deles, concordei. Mas detesto tudo que você faz, e as coisas em que está envolvido.

Então pôs de lado as gentilezas e passou a falar abertamente.

— Poon Siu Jeh, tanto eu como você conhecemos o poder. Eu o utilizo desse jeito (e cerrou os punhos), e você desse jeito (apontou o coração). Você possui um poder que não tenho. Não quero meus "irmãos" amarrados à heroína, mas não consigo fazer com que larguem. Mas acho que Jesus consegue.

Fiquei maravilhada ao pensar nas implicações do que ele acabara de dizer.

— Por isso, continuou ele, resolvi entregar todos os viciados a você.

— Não, repliquei prontamente. Já sei o que você quer. Quer que Jesus os liberte das drogas, para que voltem a lutar na quadrilha. Mas os cristãos não podem servir a dois senhores. Eles têm que seguir ou a Cristo ou a você. Nós dois estamos seguindo rumos diferentes. Não tenho a menor intenção de ajudar seus "irmãos" a se libertarem da droga,

simplesmente para você pegá-los de volta. Tenho certeza de que, se voltarem a seguir você, retornarão ao vício também.

— Está bem, então, disse ele erguendo a cabeça lentamente. Eu libero aqueles que quiserem seguir a Jesus.

Mal pude acreditar no que ele estava dizendo. Uma sociedade tríade nunca liberava seus membros. Quando uma pessoa se unia a uma quadrilha, era membro dela para o resto da vida. Se alguém tentasse sair, arriscava-se a ser severamente castigado ou até morto. E ali estava Goko, voluntariamente, liberando alguns de seus "irmãos".

— Sabe o que vou fazer? disse ele depois. Vou dar-lhe todos os imprestáveis e ficar com os bons para mim.

— Ótimo, repliquei, Jesus veio para os imprestáveis mesmo.

E foi esse o estranho pacto que fizemos. A partir daquele dia, Goko sempre mandava os viciados para eu curá-los. Quando ouviu falar do que acontecera a Johnny, ele disse:

— Vou ficar de olho em vocês. Se ele permanecer firme uns cinco anos, eu também terei que crer.

9

"Doenças" da Infância

Winson estava em perigo. Ele me procurou todo animado.

— Poon Siu Jeh, tenho que dar muitas graças a Deus. Ontem à noite, fui a uma sala de ópio e um deles me ofereceu a droga de graça. Tive vontade de tomar. Mas orei, e Deus me deu forças para resistir.

Fiquei furiosa com ele.— Isso não é razão para "louvar o

Senhor", Winson, disse-lhe. Isso é tentar a Deus. Você nem devia ter ido lá.

Mas o problema é que Winson não tinha outro lugar para dormir. Na época em que se convertera, estava morando nessa sala de ópio. Eu já lhe dissera para largar a quadrilha e seguir a Jesus, mas na prática isso era o mesmo que dizer: "Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos", e não fazer nada para suprir suas necessidades materiais. Tanto Winson como Ah Ping ainda estavam envolvidos com as quadrilhas, pelo simples fato de residirem na Cidade Murada. Quando um "irmão" deles era atacado, ficavam num dilema muito grande. O primeiro impulso deles era defendê-lo. Era muito difícil dar as costas aos amigos com quem haviam-se criado e de quem gostavam. Compreendi também que a mera presença deles ali era uma aprovação às atividades das quadrilhas.

Ah Ming também encontrou muitas dificuldades.

— Antes de me tornar cristão, disse, eu era bastante conhecido pela minha capacidade

de comando. Se eu dizia: "Vai", meus seguidores iam. Se eu dizia: "Faca", eles esfaqueavam. Nem paravam para pensar. Mas, agora, quando eles vêm se queixar comigo, tenho que parar e pensar. Não posso mandá-los lutar, pois sou crente. Pela primeira vez na vida, tenho parado para pensar no sentimento das vítimas. E meus "irmãos" estão perdendo o respeito por mim, e isso me magoa.

Andando pela Cidade Murada, eu estava sempre encontrando ex-viciados e quadrilheiros que revelavam um grande desejo de mudar de vida. Tinham que ser retirados dali, daquele ambiente de pecado. Mas não havia outro lugar onde pudessem viver. Pus-me a procurar lares ou pensões de crentes que pudessem recebê-los, mas sempre exigiam que eles tivessem um emprego ou estudassem, e que pudessem dar referências de um pastor e pagar um mês de aluguel adiantado. E como nenhum dos recém-convertidos que eu conhecia preenchia essas exigências, era impossível arranjar lugar para eles.

Eu procurara colocar um desses rapazes em casa de cada família inglesa que eu conhecia. Mas essa situação não foi bastante satisfatória, pois os garotos precisavam de maior vigilância e de um disciplina-mento mais rígido, o que tais pessoas às vezes não podiam dar. Além disso, a maioria delas, depois de algum tempo, achava muito desagradável ter um quadrilheiro em casa, mesmo sendo um quadrilheiro convertido.

Mary Taylor rompeu em lágrimas na primeira vez que viu nosso apartamento da Rua Lung Kong. É verdade que as paredes estavam rachadas, a ponto de desmoronar; no telhado havia um grande rombo, e a luz não estava ligada. No entanto, para mim era um presente do céu. Havíamos orado pedindo a Deus um lugar onde pudesse abrigar minhas ovelhas, e esse era o lugar.

Encontrei esse apartamento quando estava andando nas vizinhanças da Cidade Murada, indagando se ali havia cômodos para alugar. Tinha mais de trezentos metros de área ao todo, e havia uma escada que dava para um terraço que fora parcialmente recoberto com folhas de zinco ondulado, e assim era um quarto a mais.

Fiquei tão empolgada quando o vi, que enxerguei apenas as possibilidades. Mas Mary, sendo mais prática, via apenas as falhas dele. Os rapazes da Cidade Murada nos ajudaram a fazer os reparos necessários, contribuindo com suas habilidades, ou mesmo sem elas.

Baseadas na premissa de que o serviço sai com mais rapidez se o interessado se acha presente, eu e Mary nos mudamos para lá, acomodando-nos entre montes de entulho, sem luz e com um encanamento de água não muito confiável. Uma das grandes vantagens era o jardim do terraço, depois que removemos o lixo que ali havia e plantamos begónias, cactus e trepadeiras. Colocamos a trepadeira de forma a vedar a vista à casa do outro lado da rua.

Era então hora de resolver se iria receber ali rapazes ou moças, já que tantos estavam desabrigados. Se recebesse os rapazes, o que não era muito aconselhável visto ser eu solteira, seria necessário recusar as moças. Mas a chance de opção foi-me tirada das mãos, quando Ah Ping e Ah Keung tiveram de sair da casa que eu arranjara para morarem, e não tinham mais para onde ir, a não ser a Cidade Murada ou nosso apartamento da Rua Lung Kong.

Nossa família foi aumentada com a chegada de Joseph, o antigo presidente de nosso clubinho. Winson também largou a sala de ópio e passou a morar conosco. Tivemos que arranjar um jeito de Ah Ping ir morar com alguns amigos. E foi assim que criamos uma comunidade cristã, para auxiliar os rapazes no seu crescimento espiritual.

Eu me encarregava de muita coisa. Cozinhava, comprava roupas e alimento para os rapazes, cuidava da casa, arranjava escola ou emprego para eles. Também abríamos o clubinho quase todas as noites.

Quando finalmente me deitava para dormir, era acordada por viciados que queriam ouvir falar de Jesus. Prostitutas me ligavam da delegacia; detetives vinham à nossa porta procurando informações, e juízes me enviavam certos casos, pois nossa casa era uma das poucas que recebiam delinqüentes.

Afinal, nosso apartamento acabou sendo misto. Uma noite ouvi uma batida à porta. Quando abri, vi uma mocinha com um bebê

num dos braços e uma mala enorme na outra mão. Atrás dela estavam seu irmão e duas irmãzinhas menores.

— Poon Siu Jeh, murmurou ela. Viemos morar com você.

Eu conhecera aquelas crianças havia três meses e tivera muitos contatos com a família. A história da família Chung era de estarrecer. Moravam num quartinho minúsculo onde só havia uma cama de casal. O teto era um pedaço de linóleo que, quando chovia, ficava cheio de água e abaulado no meio. Era nessa cama que as crianças aprendiam a andar; dormiam nela, cozinhavam nela, brincavam e faziam os deveres de casa nela. Todos os cinco eram muito acanhados, e quando eu ia visitá-los, viravam-se para a parede, ignorando minha presença.

Nunca os vi comer nada a não ser congee, uma espécie de mingau de arroz cozido em água, porque o infeliz pai gastava tudo que tinha em heroína e não dava à família nenhum sustento. O único dinheiro que entrava ali era a Sr.a Chung quem ganhava, carregando água. Ela buscava água nas fontes que havia fora da Cidade Murada, levando-a às casas. Ganhava cinco centavos por balde que entregava, mas ficou reumática e não podia mais caminhar com os baldes pesados.

Embora estivesse esperando o sexto filho, ela estava sempre sorrindo. Recebera a Jesus no coração e muitas vezes orava conosco. Costumávamos levar-lhe bacon, peixe seco e azeite para melhorar um pouco seu

arroz. Se lhe déssemos dinheiro, o marido o roubaria para comprar heroína. No Natal, demos brinquedos às crianças e pagamos a taxa escolar para elas. Até mesmo os filhos tinham que trabalhar nas indústrias ali, para poderem comprar seu arroz. Levei o caso dessa família ao Departamento de Bem-Estar Social, solicitando alguma ajuda financeira, mas os sociólogos encarregados do levantamento eram muito desinteressados. Acompanhei a Sr.a

Chung até lá, pois não sabia ler. Ficamos sentadas lá o dia todo, esperando a assistente designada para cuidar do caso deles. Sugeri à moça que tratasse o casal como duas pessoas distintas, pois o marido raramente aparecia em casa, e não contribuía para a renda da família. Mandaram-me sair, enquanto a Sr.a Chung era entrevistada. Mais tarde, ela me disse que tinha ido outra vez à repartição para assinar o pedido de auxílio, e que devíamos aguardar uma carta deles. Passaram-se quatro meses e a carta não veio. Fui ao departamento para verificar, e a resposta que recebi foi:

— Essa família não se enquadra dentro das disposições para receber auxílio de pobreza.

— Se eles não estão enquadrados, então quem está? indaguei. Não conheço ninguém que seja mais pobre que eles. E agora têm uma criança recém-nascida.

Ao que parecia, os encarregados haviam solicitado a presença do marido na repartição para fazer uma declaração de rendimentos.

— Ganho HKS600 dólares por mês e dou 400 à minha esposa, dissera ele.

Isso era uma grande mentira, mas, para um chinês, é muito vergonhoso ter de confessar que não consegue sustentar sua família. Essa informação errada foi anotada, e quando a Sr.a Chung foi lá, pediram-lhe que endossasse a declaração do marido. Ela não sabia o que estava escrito ali. Pensou que estivesse assinando a petição de auxílio, e então colocou sua marca.

— Mas vocês não viram que ele é viciado? Não se pode confiar na palavra de um homem assim!

— Ele disse que está completamente liberto da droga, replicaram.

— Mas não sabem reconhecer um viciado?

O pessoal ali acabou-me tachando de "criadora de caso", mas voltaram atrás na decisão, e afinal a Sr.8 Chung recebeu auxílio do governo.

Então ajudamos a família a mudar-se da Cidade Murada. Meus rapazes contrataram um caminhão, e retiramos a cama de casal dali. Debaixo dela encontramos vários tambores cheios de roupa usada. Anteriormente, eles tinham estado em contato com uma instituição de caridade que lhes dera uma dúzia de tambores de roupas, enviadas de outros países para os "refugiados". A Sr.a Chung tinha um desejo tão forte de possuir coisas, que não jogava nada fora. Os tambores estavam apinhados de baratas. Havia muitas e muitas

roupas que não prestavam mais e amontoei uma porção delas junto às latas de lixo na rua. No dia seguinte, quando fui lá, soube que a filha mais velha, Ah Ling, as apanhara de volta.

Mais ou menos na época em que nos mudamos para o apartamento da Rua Lung Kong, a Sr.a Chung me disse que recebera ordens do governo para arranjar trabalho, já que não podiam sustentar a esposa de um viciado indefinidamente. Ela lhes respondeu que não estava bem, mas eles se recusaram a ajudá-la por mais tempo. Duas semanas depois, ela começou a tossir e morreu. Já padecia com tosse havia muito tempo e tinha-se consultado várias vezes.

Senti que, em parte, eu era culpada de sua morte. Sabia que estava tossindo, mas nunca me dera ao trabalho de acompanhá-la ao médico, e assim não fora diagnosticado que estava com tuberculose. E ela morreu. Uma morte que poderia ter sido evitada.

Após o sepultamento dela, continuei a visitar e a ajudar as crianças, que estavam sendo exploradas pelo pai. Ele mandou a filha de treze anos trabalhar numa fábrica, por um minguado salário de HK$ 100 dólares por mês. E tinha que entregar todo o dinheiro a ele. Quando fazíamos passeios com o clubinho, levávamos todas as crianças, e foi então que pediram para morar em minha casa. Disse-lhes que, pela lei, eles estavam sob a guarda e tutela do pai. Mas, um mês depois, fizeram a mala e fugiram de casa para morar comigo.

Parados ali à minha porta, constituíam um quadro patético. Estavam inteiramente convictos de que eu os receberia. Em minha casa já havia rapazes dormindo no chão, mas não tinha outra opção, senão acolhê-los. Eram crianças muito retraíadas, e só depois de muito tempo foi que conseguiram conversar comigo. Nossos rapazes eram muito bondosos com aquelas crianças, e gostavam imensamente de brincar com o bebezinho.

Depois, nossa família aumentou mais com as constantes visitas da Sr.a Chan, que eu conhecera havia alguns meses. Seu filho, Pin Kwong, era um viciado terrível, que não tinha a menor intenção de mudar de vida. Muitas vezes, pedi-lhe notícias de sua mãe, mas ele sempre me dizia:

— Ela não quer saber de crentes; é uma adoradora de ídolos.

Quando ele foi preso mais uma vez, procurei a mãe e encontrei-a de cama, em seu quartinho na Cidade Murada. Ela resolvera morrer, ao saber que o filho fora preso mais uma vez. Pin Kwong era toda a sua vida. As mulheres chinesas em geral têm muito orgulho dos filhos homens, mas o dela era um perdido, e por isso ela não tinha mais vontade de viver. Ele não queria que eu visitasse a mãe, para eu não saber que a explorava. Quando a encontramos, ela já estava recolhida havia vários dias, sem se alimentar, e achava-se enfraquecida. Então resolvemos tomar provi-dências para restaurar-lhe o animo. Demos-lhe alimento e falamos-lhe do Pai celestial, que

tinha dado ao mundo o seu bem mais precioso, o seu Filho, só porque a amava.

A Sr.a Chan nunca tinha ouvido falar de Cristo.

Impusemos as mãos sobre ela, orando em voz alta e pedindo a Deus que ele próprio lhe falasse de um modo que ela pudesse compreender. Terminada a oração, ela ergueu os olhos, sorriu e disse que fora curada da "doença do pulmão" e que já conseguia respirar sem dificuldade. E nunca mais sentiu nada.

Naquela noite ela sonhou que via um homem vestido com um longo manto branco, aproximar-se dela com os braços estendidos, pendindo-lhe que fosse a ele e se batizasse. A partir daquele momento, ela foi sempre uma pessoa alegre e radiante. Quando nos mudamos para a Rua Lung Kung, demos-lhe uma chave da casa, e ela estava sempre aparecendo por lá, fazendo a limpeza ou cozinhando para nós, e nos apresentava os negociantes do mercado local, seus conhecidos, que passaram a vender-nos alimentos por baixo preço. Gostava imensamente da nova família que adotara e ficava por ali dando ordens a todos.

Como não soubesse ler, pedi aos rapazes que lhe ensinassem versículos da Bíblia. Levou uma semana para aprender: "Disse Jesus: Eu sou o pão da vida".

Três anos antes, certa noite, íamos ter um estudo bíblico, e Dora viera até a Cidade Murada para interpretar para mim. Foi uma

dessas ocasiões em que só um rapaz veio ao culto. Fiquei muito irritada, e foi esta uma das raras vezes em que desejei estar na Inglaterra. E expressei esses sentimentos. Quando orávamos, Deus deu uma mensagem em línguas ao rapaz, e Dora interpretou-a.

— Ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai ou filhos, ou terras por amor a mim ou ao evangelho deixará de receber cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães e filhos, e terras nesta vida, e, na vida futura, a vida eterna.

Imediatamente abri a Bíblia em Marcos e li esses versos, e vi que realmente o texto dizia que receberíamos ainda nesta vida cem vezes mais. E naquela noite reivindiquei o cumprimento dessa promessa.

— Senhor, disse, gostaria de ter cem casas, cem irmãos e irmãs. E também cem mães e filhos.

Contei então o pessoal ali, naquele apartamento da Rua Lung Kong, e vi que devia ter pelo menos uns cem irmãos e irmãs. Como ainda era pequeno o número de mães, apareceu então a Sr.a Chan. Mas vieram outras mães também.

Certo dia fui procurada por um rapaz que acompanhava sua avó. Era bem velhinha e debilitada, e tinha um curativo na cabeça.

— Quero ser batizada, disse ela com voz esganiçada.

Fiquei logo desconfiada.— Se a senhora ainda não recebeu a

Jesus, batizar não significa nada. Se quiser que

eu lhe fale dele, terei imenso prazer, mas se o que a senhora quer é apenas o certificado, não posso dar-lhe. Aqui em nossa igreja não damos certificados.

A velhinha tinha levado um tombo e ferido a cabeça. Estava com receio de morrer, sem ter um lugar para ser enterrada. Em Hong Kong havia poucos lugares. Mas, como membro de uma igreja, ela conseguiria um. Levei-a à Sr.a Chan, que fez amizade com ela e falou-lhe de Cristo. A velhinha teve uma conversão genuína, foi batizada e seis meses depois morreu, tendo já o seu lugar reservado no céu.

Eu não fazia idéia de que cuidar dos rapazes em minha casa iria ser tão trabalhoso. Cometera um erro básico. Tinha pensado que "se alguém está em Cristo é um novo homem", ao passo que o texto bíblico diz que "é nova criatura". Eles eram como recém-nascidos, e tinham muito que aprender. A ignorância deles sobre as condições normais de vida era de estarrecer.

Alguns, como Mau Jai, tinham vivido pelas ruas desde a idade de cinco anos. Ele não pudera viver em sua própria casa, porque o pai tinha duas esposas, e a segunda, sua mãe, caíra no desagrado dele e os filhos dela foram expulsos de casa. Não tiveram uma infância normal. Logo tornaram-se peritos na arte da astúcia e da trapaça. Como estavam acostumados a ficar acordados a noite toda, não compreendiam por que tinham que ir dormir à meia-noite. Levantavam a hora que acordassem. Se não sentissem vontade de ir

trabalhar, não iam. Os regulamentos da casa eram logo associados com a idéia da prisão, e não os observavam da forma devida.

Por vezes, eu achava que eram eles que estavam-me dirigindo, e não eu a eles. Um exemplo de um caso assim foi o de Ah Hung, que nos fora enviado pelas autoridades, supostamente liberto da dependência à droga. Na verdade, ele recomeçou a tomar heroína no mesmo dia em que foi solto. Portanto, não foi surpresa para nós, quando perdeu o emprego e desapareceu de casa. Certo dia, reapareceu completamente drogado, confessando que havia participado de um assalto. Nós o convencemos a entregar-se, mas fugiu de novo. Como mencionara uma arma, liguei para a polícia, e, daí a pouco, seis viaturas cheias de detetives vieram pelo túnel, cantando pneus, e pararam diante do prédio. Num instante, entraram no apartamento, revólveres em punho, como se pensassem que ele ainda estava lá. Depois se foram, deixando alguns de vigia, os quais se revezavam, guardando a casa vinte e quatro horas por dia. Numa noite, os dois que estavam de guarda largaram seu turno e foram procurar um bom restaurante, deixando-nos um número de telefone, onde poderíamos encontrá-los.

Era tudo mentira. No dia seguinte, Ah Hung apareceu e explicou que não havia participado realmente do crime. Não acreditei, e levei-o à delegacia para confessar. Foi a melhor coisa que poderia ter-lhe acontecido, pois soubemos que não poderia mesmo ter

tomado parte no assalto. Todos zombaram dele, por haver inventado aquela história sob o efeito de drogas. Mas era exatamente o que precisava acontecer para que se comprovasse o fato de que ainda estava viciado, e chegasse ao ponto de desejar auxílio espiritual.

Estávamos sentindo claramente que os rapazes da Cidade Murada precisavam de uma disciplina mais forte. Em parte, eu tinha dificuldade nisso, pois me relacionara com eles como amiga, e tornou-se difícil a transição, e colocar-me na posição de pastor ou professora. Assim, eles chegavam em casa a qualquer hora do dia ou da noite, e não estavam crescendo espiritualmente, como eu desejava. Comecei a orar a Deus para que mandasse alguém que pudesse encarregar-se dos serviços caseiros, de modo que eu pudesse sair às ruas outra vez.

Pedi a dois rapazes crentes, chineses, que morassem conosco para dirigir a casa. Mas não deu muito certo. Eles queriam um salário definido, o que eu não poderia prometer-lhes. Queriam que os rapazes os tratassem de "professor". Quando eu acordava de manhã, perguntava-lhes se haviam chamado os rapa-zes e preparado o desjejum. Replicavam que tinham estado muito ocupados com a "hora silenciosa", isto é, seu momento de oração e leitura bíblica. Para eles, ensinar era realizar um estudo bíblico e pregar por quase uma hora e meia. Foram ensinados que era assim que se fazia o trabalho cristão: dirigir cultos, serem tratados com determinado título e pregar.

Ainda não haviam aprendido a lição de Jesus, quando lavara os pés dos discípulos.

Muitas vezes, eu levava os rapazes às reuniões promovidas pelo casal Willans, das quais eles gostavam muito. Ali sempre se fazia a interpretação para o chinês, a fim de que eles pudessem participar e ter comunhão com outros crentes. Muitas pessoas oravam por nós.

Certo dia, Jean Willans disse-me com firmeza:

— Se você quer mesmo trabalhar com esses rapazes, Jackie, tudo bem. Mas não precisa morar com eles. Ou pelo menos arranje um lugar, onde você possa ir vez por outra para recuperar suas energias em paz.

Mas eu não entendia essa atitude. Aliás, eu não entendia por que o mundo todo não queria trabalhar na Cidade Murada. Eu não desejava estar em nenhum outro lugar da Terra.

Entretanto, a despeito da confusão reinante em nossa casa, descobri que muitas vezes Deus usava crentes jovens para nos reanimar, a mim e aos outros. Todos os que haviam-se tornado crentes receberam o poder de Deus na mesma hora em que haviam crido. E nós os aconselhávamos a exercitar os dons espirituais, quando tínhamos nossas reuniões. Então eles sabiam perfeitamente que, o fato de terem um dom, tinha por objetivo auxiliarem-se mutuamente.

Certa noite, estávamos orando, quando um dos moços disse que Deus lhe dera

algumas palavras para nos dizer: "Vá e colha os repolhos e pegue o ônibus rapidamente." Era uma mensagem muito estranha. Só depois de uma consulta ao dicionário foi que consegui a interpretação correta. "A seara está pronta; vá trabalhar na colheita." Saímos e pregamos aos vagabundos que dormiam pelas ruas nas proximidades da nossa. Um deles aceitou nossa oração e mais tarde foi liberto das drogas em nossa casa.

Houve uma outra ocasião em que os rapazes me reanimaram bastante. Eu chegara em casa exausta e preocupada. Mary e os dois obreiros tinham ido embora. Estavam-se sentindo impotentes para dirigir os conversos e os outros rapazes. E me indagava se os missionários de outros países tinham os mesmos problemas que eu enfrentava com os novos convertidos.

— Achem um versículo bíblico bem reconfortante para mim, disse aos rapazes.

Mas o texto mais animador que acharam foi um verso deprimente de Apocalipse.

— Vamos orar, então falei.Quando estávamos orando, recebi uma

mensagem em línguas, e um dos rapazes a interpretou imediatamente. Só havia poucos dias que ele crera em Jesus, e não sabia ler a Bíblia direito. Mas a interpretação que deu foi uma citação clara e direta do livro de Salmos:

"Os que com lágrimas semeiamCom júbilo ceifarão.Quem sai andando e chorando

Enquanto semeia,Voltará com júbilo,Trazendo os seus feixes.Se o Senhor não edificar a casaEm vão trabalham os que a edificam.Inútil vos será levantar de madrugadaRepousar tarde.Comer o pão que penosamente

granjeastes. Aos seus amados ele o dá enquanto

dormem."(Salmo 126.5,6 e 127.1,2)

E aquelas criancinhas em Cristo, por meio do Espírito Santo, me disseram exatamente as palavras certas naquele dia.

A medida em que nossa família da Rua Lung Kong ia crescendo, nossa renda foi aumentando também. Desde que eu parara de lecionar em tempo integral, percebi que sempre recebia tudo de que precisava. As vezes chegava um cheque pelo correio. Outras, um amigo me dava exatamente a quantia que eu estava pedindo ao Senhor em oração. Certa vez, queríamos comprar um bote de borracha para um passeio que eu desejava fazer com os rapazes, e uma pessoa nos enviou da Inglaterra a quantia exata. Sempre tínhamos o suficiente para as despesas de cada dia. Para os jovens, isso era maravilhoso, pois sentiam estar participando de maneira direta na obra de Deus, quando oravam pela manhã pedindo o pão de cada dia.

Todos os domingos, após o culto da manhã, convidávamos muitas pessoas para almoçarem conosco. Num domingo, tivemos de dizer aos rapazes que não dispúnhamos de dinheiro para o alimento daquele dia.

— Mas vamos cozinhar o arroz assim mesmo, e orar para Deus nos dar mais alguma coisa para colocar nele.

Dez minutos antes da hora marcada para a refeição, chegou ali uma visita, arfando e suando, levando-nos alimentos enlatados'. Sua classe de estudo bíblico tinha levantado uma coleta para nós, à última hora, e mandara que ele a entregasse a nós. Era uma vida muito emocionante.

Naquela época, cometi muitas tolices, mas, mesmo assim, Deus via a intenção de meu coração e nos abençoava. Uma noite eu estava muito gripada e ficara em casa, sentindo-me bastante indisposta, quando ali chegou Geui Jai, um conhecido lutador de kung-fu, um dos poucos que era instruído. Era muito inteligente e falava inglês muito bem. Mas também era um miserável viciado e perdera sua utilidade para a quadrilha. Eu o encontrara muitas vezes dormindo nas ruas ou escadarias próximas de nossa casa, pois tanto seus pais como seus "irmãos" da quadrilha o haviam banido.

— Será que poderia emprestar-me sua máquina de escrever, SrM Poon? pediu ele. Vou conseguir um bom dinheiro ajudando uma pessoa a fazer traduções. Isso me rende o

suficiente para a droga e assim não preciso roubar.

A condição em que estava deve ter prejudicado meu discernimento. Deixei que levasse a máquina, contando que me devolvesse à noite.

Mais tarde ele me ligou.— Sr.ta Poon, sinto muito, mas não

poderei devolvê-la hoje. Pois arranjei um outro serviço. Que bom, não é? Tenho que datilografar duzentos convites para uma festa.

Seu argumento me pareceu razoável, até que coloquei o fone no gancho. Que ridículo! Ninguém aqui iria bater um convite duzentas vezes. Mandariam imprimir. Era óbvio que ele empenhara a máquina, e que nunca mais a veria.

Alguns rapazes ficaram sabendo do que Geui Jai fizera, e ficaram bastante zangados. Ameaçaram bater nele, embora eu tivesse dito:

— Deixem isso para lá. Perdi minha máquina, e daí? Jesus perdeu a vida. E a máquina nem se compara com uma vida. Foi culpa minha e não dele. Vamos esquecer isso.

Três meses depois, Deus me deu o primeiro fruto positivo disso. Minha máquina reapareceu na estante de livros, em casa. Interroguei Ah Ping para saber o que acontecera. Afinal, ele contou que Goko ficara tão irritado ao saber do que Geui Jai fizera, que mandara seus homens atrás dele. Estes exigiram dele a cautela de penhor da máquina, e Goko pagara do seu próprio bolso o resgate

dela. Então ele a devolvera sem mandar dizer nada.

Mais uma vez mandei um recado urgente para ele, pois queria agradecer-lhe. E mais uma vez fomos tomar chá juntos. E ali conversei com o "poderoso chefão" de quadrilha que, com uma das mãos, dirigia um império do crime e com a outra protegia uma missionária.

— Muito obrigada pela devolução da máquina, disse-lhe.

— Moeyeh, moeyeh. Não foi nada. Nada mesmo, replicou parecendo bastante constrangido.

— Seu gesto me comoveu profundamente, continuei. E eu queria explicar-lhe uma coisa.

— Geui Jai é um sujeito muito ruim, disse. Não poderia ter feito uma coisa dessas com você.

— Mas você não tinha obrigação nenhuma de resgatar minha máquina, continuei. Não é meu amigo. Sou contra você, e vim para cá, porque quero derrubar tudo isso por que você luta.

Em seguida falei-lhe um pouco do que Cristo havia feito para nós, resgatando-nos com seu próprio sangue. Ele ouviu atentamente, parecendo quase acanhado. Depois pagou a conta do lanche e saiu apres-sadamente. Mas ouvira a história da redenção.

O segundo resultado positivo foi que Geui Jai ficou com consciência de culpa e tornou-se mais sensível. Certa vez, dei com o fracassado

lutador dormindo em ruas e escadas. Ele vira a mudança que se operara em Winson e Ah Ming, e seu desejo de ser uma pessoa diferente também aumentou. Afinal chegou o dia em que ele orou conosco, e depois foi para o centro de reabilitação do Pastor Chan e trocou a seringa pela cruz. E não apenas libertou-se da droga, mas também foi estudar numa escola bíblica e tornou-se pastor.

Aqueles anos vividos no apartamento da Rua Lung Kong foram uma época de aprendizado e crescimento. Muitas vezes me senti confusa. A maneira mais fácil de expressar o que sinto é empregando as palavras do Evangelho de João: "A mulher quando está para dar à luz, tem tristeza, porque a sua hora é chegada; mas, depois de nascido o menino, já não se lembra da aflição, pelo prazer que tem de ter nascido ao mundo um homem."

As dores daquela época podem ficar esquecidas, porque deram à luz muitos filhos e um relacionamento maior com o casal Willans. As duas coisas me proporcionaram muita alegria.

10

É Jesus Mesmo

"Jean Stone Willans é uma senhora muito entusiasta. Tem o dom de falar 'línguas estra-nhas', e acaba de publicar um livro leve e interessante sobre religião. O título é The Acts of the Little Green Apples (Os atos dos maçãzinhas verdes) e descreve^ vida da família Willans — dela, de seu marido Rick, e de Suzanne, a filha do casal. A Sr.a Willans não pratica religião, ela a vive. Ao que parece, ela conseguiu uma forma de fácil comunicação com Deus. Mas, segundo ela diz, isso se acha ao alcance de qualquer pessoa. O pensamento de Jean Stone Willans é de que, se Deus está-

lhe chamando para trabalhar para ele, deve também capacitá-la para isso. E ele o faz muitas vezes."

Era o que dizia um artigo do Hong Kong Standard, em julho de 1973, a respeito do livro de Jean, e eu também partilhava desse entusiasmo acerca dele. Aquela altura, Jean e Rick eram meus amigos íntimos e conselheiros espirituais. Eles haviam-me ensinado que podemos apreciar as boas coisas que Deus nos dá. Eu fora levada a crer que os missionários devem ter o mínimo de coisas possíveis. Os Willans haviam vivido momentos de necessidade também, mas não achavam que Deus queria que vivessem assim para sempre. Quando tinham coisas belas, apreciavam-nas bastante, mas da mesma forma estavam dispostos a dar tudo para os outros, se Deus assim o determinasse. Haviam aprendido a estar contentes em quaisquer circunstâncias. Também eram os únicos crentes que eu conhecia que poderiam orar a noite toda, ou então assistir televisão, ou ir a um jantar refinado.

Descobrimos que houvera muita semelhança em nossas chamadas para trabalhar no Oriente, pois eles também tinham recebido a orientação através de um sonho e uma profecia. Seu ministério em Hong Kong era numa esfera de ação completamente diferente da minha.

Certo dia eu me encontrava num tribunal acompanhando um caso, quando avistei David agachado a um canto, no setor onde ficavam

os acusados. Era amigo de Ah Ming. Ele estava pensando em declarar-se inocente, mas quando me viu sentiu um aperto na consciência. Começou a orar e acabou confessando-se culpado das acusações que lhe eram feitas. O juiz resolveu soltá-lo, e ele saiu como que fora de si de espanto. Saímos juntos dali e fomos tomar um café. Ele me disse que estava disposto a seguir a Jesus de todo o coração. Logo pensei que devíamos então informar ao chefe de sua quadrilha que ele iria sair dela, pois seria bom se rompesse com o mundo do crime.

— Quem é o seu daih lo, David? indaguei.Ele ficou nervoso e pôs-se a remexer no

assento.— Ele não vai querer falar com você.— Mas qual é o nome dele? insisti.— O apelido dele é "Jesus", respondeu.

Mas ele não vai querer vê-la.— Por que você não tenta falar com ele?

Se quer mesmo ser crente, não poderá seguir a dois Jesus.

— Está bem, disse ele. Vou tentar encontrá-lo.

E foi a um telefone. Afinal voltou com uma expressão de surpresa no rosto.

— Ele vai falar com você. É para você ir à Quadra 20 do conjunto habitacional de Chaiwan, hoje à meia-noite, na lanchonete. Ali uma pessoa irá encontrá-la e levá-la a "Jesus". Mas terá que levar cem dólares.

— Mas por que os cem dólares? indaguei curiosa.

— Porque lá em Chaiwan ninguém a conhece, Sr.ta Poon, explicou David. É um lugar muito perigoso à noite e pode ser assaltada. Se você tiver o dinheiro, eles o levam e a deixam em paz; mas se não tiver nada, ficam com raiva e batem em você.

— Está brincando? Não tenho nem dez dólares, quanto mais cem. Não vou levar dinheiro nenhum. Se estou fazendo a obra de Deus, ele cuidará de mim. E depois, se isso puder fazer você compreender que Deus o ama, não me importo de morrer.

O rapaz olhou para mim com ar incrédulo e depois falou:

— Você está maluca, está louca!Deu uma olhada de relance para os

amigos e depois continuou:— Nunca vimos ninguém que quisesse

morrer por nós.Cheguei em Chaiwan às onze e meia e

fiquei alguns minutos passeando por ali. Trata-se de uma área bem espaçosa na Ilha de Hong Kong, onde haviam construído prédios de conjuntos habitacionais. Aquela hora, a rua ainda estava regurgitando de gente, centenas de pessoas estavam sentadas tomando seu lanche noturno.

Deu meia-noite. Eu estava na lanchonete da quadra 20. Na valeta da rua, ao lado, escorriam detritos em água poluída. Estava tão absorta olhando para aquilo, que não percebi a aproximação daquele que seria meu guia.

— O que você quer? indagou um cantonês de cabelos encaracolados.

— Quero que me conduza ao seu chefe, repliquei agarrando firmemente a minha Bíblia.

— Quem você quer ver?— Quero ver "Jesus".— Por que quer ver "Jesus"?— Quero falar com ele sobre o meu Jesus.— Tem certeza de que quer falar com ele?

Aquela conversa parecia um diálogo de filme de segunda classe.

— Tenho.— O que quer conversar com ele?— Quero falar sobre o meu Jesus, repeti.O homem virou a ponta do polegar para

si mesmo.— Está falando com ele.Eu e "Jesus" sentamo-nos num café

próximo. Abri a Bíblia e pus-me a falar-lhe de Jesus. E ele entendeu tudo que eu estava dizendo. Era quase como se o Espírito Santo estivesse ali, àquela mesa. Ali estava "Jesus", com lágrimas escorrendo pelo rosto, total-mente desligado do ambiente que nos cercava. E depois orou, pedindo a Jesus que entrasse em sua vida; e foi batizado no Espírito Santo, em meio às chícaras de café.

Já eram mais ou menos três horas da madrugada, quando saí de Chaiwan e peguei uma condução de volta a Kowloon. Mas antes disso, lembrei-me de uma coisa.

— Ah, a propósito, disse-lhe, você deve contar a pelo menos uma pessoa, que creu em Cristo hoje.

Quando o vi no dia seguinte, no apartamento de um amigo, quase não

reconheci nele o antigo "Jesus". Tinha uma expressão alegre e vibrante.

— Você falou a alguém que creu em Jesus ontem à noite? A pelo menos uma pessoa? indaguei um pouco ansiosa.

— Não, replicou. Falei com a quadrilha toda. Ficamos acordados até às seis da manhã, lendo os versos que você sublinhou na Bíblia, e agora todos querem crer em Cristo também.

Existem muitas descrições sobre o encontro de diversas pessoas com Jesus. Mas só aquele que já passou por essa experiência compreende a maravilha que ela representa. Minha vontade era pular, cantar, dançar, participar da festa que, naquele momento, estava acontecendo no céu, entre os anjos.

Todavia, eu ainda estava em Hong Kong, com os pés na terra. E à minha frente estava aquele ex-quadrilheiro, que me olhava, esperando ouvir mais alguma coisa. Trouxera consigo um sai lo, Sai Keung, que estivera presente à nossa conversa de madrugada. Também queria saber como poderia receber o poder de Jesus, como o seu daih lo. E então ele recebeu a Jesus e o dom do Espírito Santo. Eu sempre dizia aos rapazes que, logo que cressem, Jesus lhes daria o dom de língua estranha para auxiliá-los em oração. E aqueles novos convertidos aceitaram com facilidade o fato de que, se estavam seguindo um Deus Todo-Pode-roso, era perfeitamente adequado que ele lhes desse uma nova língua para que falassem com ele. E todos, sem exceção, receberam o dom, e assim não houve

nenhuma confusão sobre a possibilidade de um ser mais espiritual que outro.

Sai Keung mostrava-se radiante. Era um rapazinho baixo e corpulento, de pouca conversa, mas incentivou-me com muita ênfase a voltar a Chaiwan no dia seguinte, para pregar aos outros.

E eu voltei naquela noite, e em muitas outras. O número de interessados aumentou consideravelmente. Fazíamos estudos bíblicos junto a barracas de lanches, reuniões de oração em lojinhas, e cultos evange-lísticos nas escadas dos prédios. A obra estava-se alastrando para fora dos limites da Cidade Murada e atingindo pessoas de outros bairros.

Como sempre fazia, pedi a "Jesus" (que passou a chamar-se Christian) para apresentar-me ao seu "irmão maior".

— Ele não vai querer falar com você, disse. É uma pessoa muito importante e tem centenas de seguidores. Mesmo quando queremos falar com ele, não sabemos onde o podemos encontrar. Deixe para lá.

Mas fiquei sabendo que o nome dele era Ah Kei. Prometi que não iria forçar um encontro com ele, mas Christian deveria orar em favor dele. Estávamos todos com a impressão de que ele iria tornar-se um elemento muito importante em nosso trabalho. Onde quer que eu ia, sempre levava comigo exemplares da Bíblia, pronta para uma emergência.

A hora era meia-noite e quinze; o local, uma barraca de rua; o elenco, Sr.ta Poon,

"Jesus" e os crentes de Chaiwan. Ah Kei surgiu de entre a escuridão disposto a brigar.

— Poon Siu Jeh, disse em tom de desafio, se você puder me converter, eu lhe darei mil discípulos.

Parecia estar tendo enorme satisfação em "atirar a luva". E tinha-se até a impressão de que ele se preparava para duelar.

— Não posso convertê-lo, Ah Kei, repliquei. Acreditar em Jesus é uma decisão que você próprio deve tomar. E também não pode simplesmente dizer aos seus sai los para crerem nele. Terão que decidir isso por si mesmos.

Ah Kei tinha ouvido os rumores a respeito do que estava acontecendo em Chaiwan; e se ia haver um avivamento, então ele tinha que estar no comando da coisa. Sentando-se à mesa onde estávamos, convidou todos que se achavam por ali para lancharem com ele, exibindo ostensivamente sua condição de homem endinheirado. Queria que todos vissem bem quanto dinheiro iria gastar. Mas ele mesmo não comeu nada; e nem queria saber se estávamos com fome ou não. Aquilo era pura e simplesmente uma exibição.

Mas ele ficou muito pensativo e, após o lanche, convidou-me para acompanhá-lo a um certo lugar, onde iria mostrar-me uma coisa.

Começamos a caminhar em direção à favela cujos antros de jogo e drogas tinha sob seu comando. De repente, ele se virou para mim.

— Poon Siu Jeh, você despreza os viciados?

— Não, Ah Kei. Não os desprezo, pois foi por causa de pessoas como eles que Jesus veio ao mundo.

— Você seria capaz de ter amizade com um? indagou, e tanto ele como eu sabíamos a quem ele estava-se referindo.

— Pois o pessoal da Cidade Murada me critica justamente por que gosto mais de ter amizade com um viciado, do que com um indivíduo que pensa que leva uma vida certinha, respondi.

Continuamos a caminhar em silêncio, até que Ah Kei parou à porta de um barraco coberto com folhas de zinco. Quando ele empurrou a portinhola com um tapume de plástico escuro, vi-me diante de uma dezenas ou mais de homens jogando. Logo se estampou na fisionomia deles uma expressão de espanto e preocupação, pela presença ali de uma mulher inglesa, às três horas da manhã. Ah Kei ergueu a mão pedindo silêncio.

— Não tenham receio, disse. Ela não tem desprezo por nós. É cristã e veio aqui para nos falar sobre Jesus.

E em seguida me passou a palavra, convidando-me a pregar.

Depois fomos ao salão de ópio, que fica contíguo. Dentro presenciei um terrível espetáculo. Ali havia velhinhos esquálidos estendidos sobre um estrado. Pareciam mais uns insetos gigantescos, mais braços e pernas

que corpos. A metade deles estava inconscien-te. Ah Kei repetiu o que dissera antes.

— Não tenham medo. Ela não nos despreza. Veio aqui para nos falar sobre Jesus.

Os que ainda estavam conscientes escutaram atentamente o que eu dizia. Quando saí dali deixei vários exemplares da Bíblia em chinês.

Só o fato de eu ter pregado o Evangelho naquelas salas de perversão já era extraordinário, mas Ah Kei insistia em que eu conhecesse outros pontos de seu império de drogas, perversão e jogo. Fomos de Chaiwan para Shaukiwan, e dali para Lyemum, Kwon Tong e Ngautaukok. Em cada um desses lugares, ele me apresentou como uma cristã, e em todos as pessoas me escutavam respeitosamente. Distribuí bíblias em todos os pontos que passei. Em um dos antros, trouxeram-me um homem que se contorcia em dores.

— Poon Siu Jeh, a senhora é médica? Pode levá-lo para um hospital? Ele está padecendo muito.

— Não, não sou médica, nem enfermeira, e não tenho dinheiro para interná-lo num hospital. Mas posso orar por ele, respondi.

Ouvindo isso, soltaram risinhos maliciosos, mas concordaram em conduzir-nos a um quartinho dos fundos, que estava mais silencioso. Ali impus as mãos sobre o homem e orei por ele em nome de Jesus. Imediatamente, seu estômago relaxou e ele se levantou, parecendo bastante espantado. Estava

completamente curado. Os outros também estavam um tanto surpresos. Um deles perguntou:

— Esse é o Deus vivo, aquele de quem você esteve falando?

E então puderam crer, porque entenderam quem era Jesus, pelas suas obras poderosas.

No final, dei uma Bíblia para Ah Kei e escrevi uma dedicatória nela: "Para meu amigo Ah Kei, orando para que um dia seja meu irmão." Ele me agradeceu educadamente, mas sem a menor intenção de lê-la.

Nos três meses que se seguiram, passei a acompanhar a vida dele. Era casado, tinha mulher e filhos, mas também costumava dormir onde estivesse, tarde da noite. Uma noite ele ficou tão drogado, que leu duas páginas de A Cruz e o Punhal, duas de Foge, Nicky, Foge, e duas da Bíblia, alternadamente, durante dois dias. A certa altura começou a abrir-se comigo e disse-me como se arrependera de haver-se casado tão jovem. Mas tive mais pena da esposa dele, por ter um marido que quase nunca parava em casa.

As vezes ele dormia três dias seguidos. Outras, não dormia. Mas Deus sempre me revelava onde ele estava dormindo, e depois de procurá-lo por algum tempo, eu o encontrava. Ele me olhava com uma expressão que parecia dizer:

— Você, de novo? Como ficou sabendo que estava aqui?

Enquanto isso, eu pedi a muitos crentes que orassem por ele. Certo dia, quando o encontrei, disse-me:

— Deus me falou uma coisa.— O que quer dizer? Deus falou com

você? Fiquei meio irritada, pois pensei que estivesse brincando.

— É; Deus conversou comigo, insistiu ele. Estava lendo a Bíblia, e lá diz que ele tem uma graça especial para pessoas como eu.

— O que quer dizer com "graça especial"?— A Bíblia diz que quem mais pecou,

mais é perdoado.Quase senti inveja dele, mas estava

falando com muita seriedade sobre essa sua descoberta, e parecia preparado para pedir ao Senhor essa graça especial. Estávamos num barraco contíguo a uma de suas salas de jogo. Ele sentou-se no chão e eu também me sentei. E, pela primeira vez, orei com Ah Kei. Ele pediu a Jesus que aceitasse a dedicação que fazia de sua vida e que fizesse dele uma nova pessoa. Aquela altura, porém, ele ainda não tinha muita noção de pecado e orgulhava-se de seu passado.

Em seguida fomos para Mei Foo onde Jean e Rick estavam morando. Sabia que ficariam encantados de conhecer Ah Kei, já que tinham orado tanto por ele.

Fizemos uma grande festa pelo nascimento espiritual de Ah Kei. Geralmente orávamos em festinhas, e como Ah Kei ainda não recebera o dom do Espírito Santo, dissemos-lhe que Deus dá o seu poder a todos

quantos o seguem. E todos começamos a orar no Espírito, quando, de repente, Ah Kei caiu de joelhos. Depois da reunião, ele nos disse que, ao ouvir as línguas estranhas, ficara profundamente consciente de seus erros passados. Sentindo forte convicção de pecados, compreendera que não poderia ficar sentado na presença de Deus, mas tinha que ajoelhar-se. E começara a falar em línguas também. Era uma cena incrível, ver um chefe de uma tríade de joelhos. Naquela mesma noite, pegamos um táxi e fomos a uma praia, onde Rick o batizou.

Nas semanas que haviam precedido sua conversão, eu havia lido a Bíblia com ele muitas vezes. E certa vez ele me disse que não iria crer em Jesus com muita pressa, pois, se construísse uma casa rapidamente, ela poderia desmoronar-se com rapidez também. Mas, na noite em que foi batizado, começou a colocar sua vida em ordem, na mesma hora. Voltou para a esposa depois de muitos meses de afastamento. Ela parecia querer crer que ele mudara de vida, mas tinha tão pouca confiança nele, que temia ser mais uma esperança infundada.

Ah Bing casara-se com Ah Kei havia sete anos. Ele a conhecera numa festa e a seduzira, planejando "vendê-la" à prostituição. Mas acabara gostando dela e resolvera ficar com ela.

Até certo ponto, Ah Bing tinha direito de duvidar, pois para ele edificar um lar cristão, teria que pagar um alto preço. Não apenas

teria que abandonar uma imensa fonte de renda ilegal e seu controle sobre diversos homens, como também teria de enfrentar um processo de desintoxicação de ópio e heroína.

Ele não se libertou da dependência da droga, e eu estava sem saber o que fazer. Aguns dos viciados que haviam-se tornado crentes, haviam sido libertos ins-tantaneamente, enquanto outros iam para o centro de realibitação do Pastor Chan, onde recebiam muita assistência após a desintoxicação. Ah Kei solicitou admissão no centro, mas não havia vagas. O que eu poderia dizer-lhe? "Ore, Ah Kei, e Deus o libertará miraculosamente!" Eu vira o Senhor fazer isso, e não compreendia por que não acontecia sempre, em todos os casos.

Não poderia levar Ah Kei para minha casa, pois já estava cheia de rapazes que tinham sido libertos da droga, ou haviam saído da cadeia dados como libertos dela. E era claro que não desejava colocar ali um que tomava drogas declaradamente. Para reanimá-lo, dis-se-lhe sem muita convicção:

— Deus vai dar um jeito.Pouco antes do Natal, fui despertada às

quatro e meia da madrugada por um chamado telefônico. Era Ah Kei que desejava despedir-se.

— Poon Siu Jeh, muito obrigado por suas conversas a respeito de Jesus, por seu cuidado e consideração, mas não posso ser salvo.

— Pode, sim, Ah Kei. Para Deus tudo é possível, disse eu.

Mas minhas palavras até a mim mesmo pareciam sem convicção.

— Não adianta mesmo. Não posso mais ser crente.

— O que quer dizer com isso? Não pode ser crente?

— Não dá para mim. Parei de controlar as quadrilhas, o jogo e o tráfico de drogas. Agora não tenho com que viver. Muito obrigado, Sr.ta

Poon, por tudo que você fez. Mas não deu certo.

Tentei ainda argumentar com ele desesperadamente. Arranjei todos os argumentos possíveis. Não poderíamos perdê-lo. Talvez, se eu fizesse com que continuasse falando, aquele impulso passasse. Mas a voz dele foi ficando cada vez mais impessoal, e não conseguia mais falar ao coração dele. Afinal disse que ia sair à Procura de Ah Chuen para matá-lo.

— Ah Kei, você não pode matar ninguém. Você é crente.

Mas ele já não escutava mais os meus apelos patéticos. Estava fortemente drogado e depois de dizer-me que seria obrigado a fazer alguns assaltos para obter dinheiro, desligou.

Eu não queria acreditar no que ouvira. Não queria aceitar o fato de que uma pessoa que crera em Jesus pudesse pensar em matar alguém. Imediatamente liguei para Jean e Rick. Eles me ouviram atentamente.

— Vocês precisam levantar e orar, disse. Acho que Ah Kei saiu para matar um homem e também está planejando praticar assaltos.

Então o casal se pôs a orar. E eu também orei durante todo o período de festejos do Natal. E chorando cantei os tradicionais hinos natalinos. Estava um pouco zangada com Deus.

— Senhor, eu realmente cria que tu eras a solução para tudo. Como pode ser que, conhecendo-te, ele não te quis? Ah Kei e outros creram em ti, e veja como estão agora. Há muitos viciados e aleijados espirituais pelas ruas. E as pessoas olham para eles e zombam de ti. "Deus fez um milagre, mas não durou muito!"

Fiquei a procurar algum crente que pudesse dizer-me que, quando Cristo começa uma boa obra em alguém, leva-a até o fim. Mas não parecia que Deus estava fazendo sua parte nesse caso.

Alguns dias depois, Ah Kei apareceu em nossa porta.

— Nem sei por que vim aqui, disse. Estava só passando. Até logo.

— Ei, espere um pouco! disse eu. E os assaltos?

— Bom, respondeu, minha mulher preparou as fronhas, fez os capuzes para nós, isto é, fez os cortes nelas para enxergarmos por eles. Da primeira vez que planejamos ir, ficamos sabendo que um do grupo nos havia delatado. Então não fomos. Na segunda vez, estávamos sentados no carro com tudo pronto, mas eu não estava com vontade de fazer um assalto naquele dia. E não fomos.

Na noite em que me telefonara, não conseguira achar Ah Chuen.

— Pois bem, falei, vamos à casa do casal Willans. Você precisa ter uma conversa com eles. Está na hora de alguém agir com firmeza.

Como de costume, Jean mostrou-se bastante receptiva; mas pude sentir que estava começando a ficar transtornada em ver um verdadeiro crente não conseguir libertar-se das drogas.

— Você tem problemas? indagou.— Não, não, respondeu ele, e depois

acrescentou:— Só um. Ainda estou viciado em

heroína.— Se estiver sendo sincero em seu

propósito de seguir a Jesus, continuou ela firmemente, ele fará o que você quiser.

— Eu estou, disse acenando afirmativamente.

— Pois bem, quer ficar aqui e passar pela desintoxicação?

Fiquei grandemente admirada. Era exatamente isso que eu desejava, mas não tivera coragem de sugerir. Ela também não pensara em fazer esse convite, mas sua preocupação pelo futuro de Ah Kei, aliada inspiração do Espírito Santo, levou-a a isso. Em seguida, abriu o blusão, tirou alguns embru-lhinhos de heroína e atirou-os no vaso sanitário, apertando a descarga.

Depois disso, fomos também à sua casa, no conjunto habitacional. Lá, estendeu o braço debaixo da cama e tirou ali uma caixa

contendo um suprimento de heroína suficiente para várias semanas, jogou tudo no vaso, sob nossas vistas. Por fim, voltamos ao apartamento de Jean e Rick.

Jean ligou para um médico crente e pediu-lhe explicações sobre como seria o processo de libertação de drogas, para um viciado que durante dez anos vinha tomando heroína. Ele respondeu que, sem medicação adequada, ele iria sofrer agonias terríveis, febre, tremores, vômitos, diarréia e fortes dores no estômago. Ele poderia até tornar-se violento, ao ponto de atacar as pessoas que o assistiam. Ele não a aconselharia a cuidar dele, mas se ela o quisesse, ele poderia ministrar-lhe metadona, uma droga que substituía a heroína.

— Vamos ficar com Jesus mesmo, respondeu ela, recusando o oferecimento dele.

Passei três noites sem dormir, sentada ao lado de Ah Kei. Esperávamos todas as reações previstas, mas ele dormiu como uma criancinha. Ao fim dos três dias, estava completamente bom, e com ótima aparência. Nos momentos em que acordava, se sentisse uma pontada de dor, logo o instruíamos para que orasse em línguas, e a dor cessava milagrosamente. Já sabíamos que a maneira de uma pessoa passar pelo processo de desintoxicação sem dor era orar no Espírito.

Quatro dias depois, a esposa dele o visitou, e tentou convencê-lo a voltar para casa, já que estava curado. Mas nós nos opusemos. Ele ainda precisava de cuidados, e era melhor ficar mais algum tempo num

ambiente onde não houvesse drogas. Felizmente, ele começou de repente a sentir os efeitos da desintoxicação, com fortes sensações de frio seguidas de sensações de calor. Pusemo-nos a orar todos no Espírito, procurando o alívio para ele, e enquanto adorávamos a Deus, a dor passou. Mais uma vez Deus o libertara. No quinto dia, ele estava inteiramente liberto da dependência da heroína, mas ainda tinha forte desejo de fumar. Rick dizia firmemente que, se ele não se libertasse do vício do fumo também, então não estava completamente liberto. No sétimo dia, Ah Kei, que não estava muito satisfeito com essa situação, conseguiu que a empregada do casal, que era budista, lhe arranjasse alguns cigarros. Quase no mesmo instante, começou a sentir as dores. Redobramos nossas orações outra vez, e só depois que ele aquiesceu com a exigência de Rick, foi que as dores cessaram.

O milagre da cura de Ah Kei se deu também com vários de seus amigos. Certo dia, Jean Levou-o ao barbeiro para cortar o cabelo, e ele encontrou-se com um velho amigo, Wahchai. Conversando com ele, convenceu-o a acompanhá-lo ao apartamento de Jean, e ali tivemos de improvisar uma reunião. Recebi ali uma mensagem em línguas, mas a interpretação não veio. Esperamos alguns instantes, mas ninguém disse nada. Por fim, Wahchai confessou que recebera a interpretação da mensagem, mas ficara receoso de falar, pois ainda era viciado, embora tivesse se convertido pouco antes, e

recebido o dom do Espírito Santo. Ao transmitir-nos a interpretação da mensagem, começou a chorar incontrolavelmente. Depois disso, sua cura foi relativamente simples, uma questão apenas de ficarmos ao lado dele, e ele foi liberto da heroína sem nenhum sofrimento. Como acontecera com Ah Kei, todas as vezes que sentia a primeira pontada da dor, punha-se a orar no Espírito, e logo sentia-se melhor.

Na quinta-feira seguinte, na reunião regular, um outro rapaz, que também aceitara a Jesus, pediu o poder de Deus para se libertar do vício. Como o apartamento do casal Willans já não comportava mais ninguém, alugamos então um quarto num apartamento que era utilizado como bordel, e ficamos a noite inteira com ele ali, orando. Durante quatro dias, vários rapazes de nosso grupo se revezaram, dando assistência a ele, até que foi totalmente liberto. Depois que já estava bom, passou uma semana na casa de Jean e Rick, a fim de se completar a cura.

Duas semanas depois, Ah Kei resolveu ir à China e passar uma semana lá. Um bom grupo acompanhou-o à estação ferroviária. Quando o trem chegou à fronteira, os guardas de segurança do país interrogaram-no querendo saber quem eram as pessoas que o haviam levado à estação de Kowloon. Respondeu que tinha sido um senhor americano (Rick), um moça inglesa (eu) e uns amigos chineses.

— E quem eram esses ocidentais? indagaram eles.

— Ah, foram eles quem me falaram sobre Jesus Cristo, respondeu alegremente.

— Pois bem, replicaram os guardas. Então diga uma coisa: quem é melhor, o homem chinês ou os ocidentais?

— Bom, sendo chinês, acho que os chineses são melhores, respondeu Ah Kei. Mas aqueles ocidentais são crentes, e portanto também são muito bons.

Foi então que aqueles guardas revelaram que sabiam que Ah Kei muitas vezes tentara passar na fronteira com drogas.

— Por que dessa vez você não está trazendo drogas? indagaram. Quem são aqueles ocidentais? Como você se envolveu com eles?

Era um interrogatório incessante, e Ah Kei respondeu a tudo com a verdade. Explicou que havia deixado a quadrilha, abandonando as atividades criminosas. E que em março iria começar a trabalhar num escritório. Os agentes da segurança disseram que não era possível que ele estivesse liberto da dependên-cia das drogas, mas ele insistiu em afirmar que o estava, que cria em Jesus Cristo, e era uma nova pessoa. Explicou também que não tomara nenhum medicamento. A cura fora totalmente efetuada por Jesus. Ouvindo isto, os guardas ficaram muito irritados e responderam que era impossível. Mas essa reação deles foi a deixa para Ah Kei se lançar no relato de seu testemunho, uma narração completa do que Deus fizera por ele. Falou quase uma hora. Os policiais o escutaram atentamente, e depois

permitiram que entrasse na China levando sua Bíblia.

Chegando ao seu povoado de origem, soube de uma jovem crente que não conhecia bem as Escrituras, porque nunca tivera uma Bíblia. Ah Kei deu-lhe a sua e a notícia se espalhou.

Logo que Ah Kei se tornara crente, transmitira a boa-nova a todos os seus familiares, que a aceitaram um por um. O pai de Ah Bing ficou tão satisfeito de ver a transformação que se operara em seu genro, que também se tornou cristão e foi batizado com o Espírito Santo. E para comemorar deu-nos um banquete memorável, em que se serviram pratos chineses saborosos. Ao fim da festa, ele se ergueu e disse:

— Já fui moço, e agora sou velho, mas nunca antes vi um homem mau tornar-se um homem bom.

11

As Casas de Estêvão

Eis o testemunho de Daniel, escrito em minha casa, na Rua Lung Kong.

"Dou graças a nosso Senhor Jesus por ter-me salvado de minha antiga vida, dando-me uma nova e maravilhosa existência nele. Meu nome chinês é Ah Lam, mas meu nome ocidental é Daniel.

"A razão por que estou dando graças ao Senhor Jesus é que antes eu era um homem depravado. Há mais ou menos dez anos, eu estava com quatorze anos, larguei os estudos e entrei para uma quadrilha tríade. Desejava ser temido, respeitado, reconhecido por todos, e achei que, sendo membro de uma quadrilha, teria tudo isso. Então abandonei a vida normal e passei a viver no submundo da marginalidade. Um ano depois, fui preso e indiciado por roubo à mão armada. Fui sentenciado a cumprir pena num centro de treinamento para jovens delinqüentes.

"Naquela ocasião, estava muito sentido pelo que fizera, e me senti muito triste e infeliz. Resolvi modificar-me, começar vida nova. Mas logo que fui solto, tornei-me pior que antes. Aprofundei-me mais e mais no crime. Mas sentia um grande vazio interior. Então recorri à heroína.

"Tornei-me um viciado. Tentei libertar-me das drogas algumas vezes, mas nunca o consegui. Um dia, vim a conhecer Jesus, arrependi-me e aceitei-o como meu Salvador. Senti-me completamente diferente. Era como se tivesse sido liberto, como se tivessem tirado

um enorme peso de meus ombros. Foi uma experiência maravilhosa! Posso dizer que nunca voltei atrás na decisão tomada. Ele tem-me abençoado muito; já tenho aprendido muitas cousas e a cada dia aprendo mais. £ uma vida realmente maravilhosa. Dou graças a Jesus por haver-me proporcionado tudo isso.

"Oro para que você também goze dessa mesma experiência, e só então poderá entender plenamente meu testemunho.

"Que Deus o abençoe, Ah Lam."Isso foi escrito por um dos muitos

marginais que procuraram a mim ou aos Willans, após terem ouvido contar o que ocorrera a Ah Kei. Logo se espalhou entre os viciados a notícia de que, se quisessem crer em Jesus, receberiam um certo poder, que os capacitaria a libertar-se das drogas sem sofrimentos.

Tanto quanto possível eu evitava recebê-los em minha casa na Rua Lung Kong, pois era muito próxima da Cidade Murada, e em questão de segundos um viciado, em desespero, poderia obter a quantidade que quisesse de heroína ou ópio. No apartamento de Jean e Rick, eles não tinham opção de escape. A porta tinha tranca dupla, e as janelas eram protegidas por grades. E sempre havia pelo menos uma pessoa a vigiá-los nas vinte e quatro horas do dia.

Um jovem que fora trazido à minha casa por um padre disse:

— Sei que os viciados que vão à casa de Sr.ta Pullinger são libertos. Mas tenho um pouco de medo desse negócio de Jesus.

— Não se preocupe com isso, respondeu-lhe o padre. Jackie não tentará impingi-lo a você.

Estava redondamente enganado. Se não "impingíssemos" Jesus aos viciados, não teríamos nada para oferecer-lhes. Ele teria que sofrer as agonias do processo de desintoxicação, se não quisesse orar.

Entretanto, nunca tivemos de enfrentar um caso em que o viciado não quisesse crer em Jesus. Aliás, eles só nos procuravam quando já estavam dispostos a fazê-lo, pois sabiam o modo como trabalhávamos. E o número deles foi crescendo ao ponto de a casa de Jean e Rick ficar superlotada.

Estava claro que precisávamos de um lugar só para que os viciados se libertassem da dependência da droga, e onde pudessem ficar algum tempo, a fim de crescerem espiritualmente. A maioria deles exigia uma atenção constante.

E foi o problema de Ah Kit que afinal nos obrigou a resolver de uma vez por todas a questão da casa. Poucos dias depois de ter sido liberto das drogas, ele concluiu que queria governar a própria vida novamente e saiu da casa dos Willans. Todos oramos para que ele chegasse a um ponto onde não pudesse continuar com aquela vida de crimes e drogas, e voltasse a Jesus. E ele foi preso. Na prisão, ele teve uma genuína experiência de

transformação de vida e se arrependeu. Começou a orar e a falar de Cristo aos companheiros de cela. Foi indiciado por assalto à mão armada.

No julgamento, o juiz fez um comentário no sentido de que Ah Kit tinha uma ficha muito ruim e merecia uma longa sentença. Entretanto, ouviu o relato de Jean sobre a mudança que nele se operara, e, levando em conta o fato de que ela cuidaria dele, liberou-o, colocando-o aos nossos cuidados. Fora um ato bastante raro o dele: soltar um homem que tinha tais acusações.

Levamos Ah Kit para casa. Ao sairmos dali, escutamos os guardas comentando se não seria melhor uma pessoa ter um Deus do que um advogado...

Ah Kit começou a crescer espiritualmente bem devagar. Estava gostando de ficar na casa de Jean e Rick, mas exigia atenção constante. Depois de toda uma vida de descaso, parecia muito carente de afeto. Se Jean se afastava para falar com alguém, sentia-se rejeitado. Isso provocou enorme tensão na família, ao ponto de um dia Jean encontrar sua filha Suzy, de dezessete anos, fazendo as malas.

— Ou os viciados ou eu, disse ela à mãe, e falava sério.

Nenhuma família poderia resistir por muito tempo a esse tipo de pressão.

Estava na hora de procurarmos um lugar que tivesse a atmosfera de um lar, com muito amor, e uma vigilância de vinte e quatro horas por parte dos obreiros.

Eu me encontrava na Inglaterra, quando o casal Willans me telegrafou, dando a notícia. Uma pessoa que lera o livro de Jean doara uma soma em dinheiro para alugarmos um apartamento que seria utilizado exclusivamente para a assistência a viciados que desejassem começar uma nova vida em Cristo.

O nome escolhido pelo grupo que orava em casa dos Willans foi Associação Estêvão. Tanto eu como os Willans estávamos cada vez mais envolvidos em auxiliar marginais, e por isso precisávamos de atuar através de uma entidade oficializada, quando lidávamos com as leis do inquilinato, julgamento nos tribunais, e outras questões desse tipo. Então nos tornamos conhecidos por todo o submundo dos viciados como "Estêvão". Demos ao novo apartamento alugado o nome de "Terceira Casa de Estêvão", sendo que a minha fora a primeira e a de Mei Foo, a segunda.

Nosso primeiro obreiro de tempo integral foi Diane Edwards. Era uma ex-freira que já morara cinco anos em Hong Kong. Fora batizada no Espírito numa das reuniões na casa dos Willans.

Começamos com apenas um residente, mas, em poucas semanas, o número aumentou para seis. Cada vez que chegava um rapaz, o milagre se repetia. Ele cria em Cristo e era liberto da dependência das drogas sem dores, quando orava no Espírito. Depois, Ah Kei e seus familiares se mudaram para o apartamento para auxiliarem Diane na direção da casa.

Na época de Natal já havia dezessete pessoas naquele pequeno apartamento. Começamos a orar pedindo a Deus mais um lugar, uma quarta casa, por volta do Ano-Novo, a fim de acomodarmos aqueles que nos procuravam. Era-nos penoso ter que recusar-lhes admissão ali, sabendo que seria tão simples libertarem-se das drogas pelo poder de Jesus.

A reunião dos sábados na casa dos Willans cresceu tanto, que tiveram de mudar-se para uma casa maior. Por vezes, havia ali até cento e cinqüenta pessoas entre pastores, professores universitários, padres e freiras, juntamente com nossos quadrilheiros e ex-vi-ciados. No culto da véspera do Ano-Novo, oramos pedindo a Deus uma nova casa no novo ano, agrade-cendo-lhe pela resposta antecipadamente.

Após o encerramento do culto, um amigo inglês perguntou-me por que ainda não havíamos alugado a casa.

— Porque precisamos de uma promessa de dinheiro para o aluguel, ou então de que alguém nos doe o apartamento, ou então de uma garantia de Deus, de que podemos tratar do aluguel mesmo sem termos o dinheiro, respondi.

E ele me disse:— Faz duas semanas, depositei o dinheiro

numa conta especial para vocês.Então mandamos dois de nossos rapazes

procurarem um lugar adequado. Voltaram quase no mesmo instante, dizendo que havia

um apartamento desocupado ali perto. Eram onze e meia da noite, quando acertamos o aluguel do apartamento com o vigia. Coroamos o negócio fazendo uma reunião de oração na nova casa, comemorando a entrada do Ano-Novo. Foi o mais maravilhoso culto de vigília de que já participei em minha vida.

Pelas experiências obtidas com Ah Kei e outros viciados, aprendi que não era necessário esperar até que Deus "acidentalmente" os libertasse. Compreendi que poderiam ser libertos por intermédio do poder que Cristo lhes concede, no momento em que oravam na linguagem do Espírito. Nunca obrigávamos os viciados a orarem, quando estavam passando pelo processo de desintoxicação. Aliás, é impossível obrigar qualquer um a orar. Simplesmente reduzíamos a zero todas as outras alternativas possíveis; ou melhor, deixávamos apenas outra opção, sofrer.

Certa vez, um dos chefões do sindicato do crime fez uma oração recebendo a Cristo e foi cheio do Espírito, mas quando as dores começaram, recusou-se terminantemente a orar.

No dia seguinte, disse-nos que iria embora. Não o permiti, pois cria que ele fora sincero quando dissera que desejava seguir a Cristo.

— Não podem me prender aqui, objetou ele. Não têm esse direito.

— Ah, tenho sim, repliquei. Você pediu que o ajudássemos a começar vida nova, e se

o deixasse sair agora, estaria sendo desleal para com você.

— Mas vou embora, disse irredutível, e encaminhou-se para a porta, onde eu me encontrava.

— Se você orar, vai se sentir bem melhor.— Já decidi que não quero mais seguir a

Jesus, ou embora.— Pois bem, então você tem quatro

opções. Pode e dar um soco e pegar a chave, ou saltar do telhado, ou ficar aqui e passar por todo aquele sofrimento, ou então ficar aqui e orar. Mas terá que passar por cima de mim para sair.

Fiquei olhando-o, enquanto sopesava as alternativas. Um homem de grande influência como ele não usava de violência contra mulheres. Saltar do telhado significaria a morte. Então ele ficou e foi para o quarto. Afinal, seu desespero foi tão grande, que resolveu orar. Logo que começou, as dores cessaram e ele dormiu tranqüilamente. E da outra vez em que principiou a sentir dor, orou novamente. Quando o processo já estava quase findando, ele confessou que orara em línguas várias vezes, sozinho.

Eram bem poucos os viciados, com exceção dos da Cidade Murada, que tinham algum conhecimento do cristianismo, antes de passarem pela experiência de libertação da droga. Mas isso, ao invés de ser uma desvantagem, era um benefício para eles. Chegavam a uma de nossas casas dizendo:

— Ouvi falar que Ah Kei (ou outro amigo qualquer) mudou completamente de vida, e disse que foi Jesus que fez isso. E se Jesus pode mudar a vida dele, pode mudar a minha também

A fé dessas pessoas não se baseava no entendimento de conceitos teológicos, mas no fato de que Jesus havia operado em outros. Cada uma que orava, recebia a resposta de sua petição, e assim sua fé se fortalecia.

Certas pessoas explicavam esse extraordinário acontecimento espiritual como um caso em que a mente sobrepuja a matéria, mais tais pessoas não estão a par de todos os fatos. Um viciado em drogas, que passa por um processo de desintoxicação, tem a mente já parcialmente destruída. A maioria de nossos rapazes começou a entender quem era Jesus somente depois que já o haviam experimentado na própria vida. Só compreendiam verdades como salvação, per-dão, redenção muito tempo depois de já possuírem os benefícios delas.

Uma vez já tendo quatro casas, o clubinho da Cidade Murada e as reuniões e cultos, precisávamos de mais obreiros de tempo integral. Uma enfermeira inglesa, Doreen Cadney, resolveu ajudar-nos, bem como Gail Castle, que regressara dos Estados Unidos. Depois foi Sarah Searcy que abandonou um emprego, para responsabilizar-se pela direção das casas. Além disso, os rapazes que haviam sido libertos das drogas ajudavam muito aos "novatos". Arrumavam a

casa, cozinhavam e assistiam aos recém-chegados, orando por eles e incentivando-os à oração. E esses os escutavam com muito respeito.

Quase diariamente chegavam novos viciados desejosos de se libertarem das drogas. Vendo a transformação por que os moços passavam, muitas pessoas "boazinhas" ficavam impressionadas e criam em Cristo também. Muita gente batia à minha porta, a qualquer hora do dia ou da noite, cheia de problemas, e saía dali crente, batizada no Espírito Santo.

Aos domingos realizávamos cultos pela manhã na casa da Rua Lung Kong, aos quais compareciam muitos estudantes, rapazes da Cidade Murada, ex-viciados e outros visitantes, que vinham em busca de cura ou aconselhamento espiritual.

Durante muito tempo, eu tentara fazer tudo sozinha, mas depois comecei a passar tarefas para os outros. Entendi então o significado do Corpo de Cristo, vendo cada pessoa executar uma função diferente. Percebi também que eu não era indispensável.

Outra coisa que aprendemos foi que o trabalho de se transformar um viciado numa pessoa integrada à sociedade era tarefa a longo prazo. No ministério da Rua Lung Kong, eu tentara arranjar trabalho ou estudo para os rapazes o mais cedo possível. Mas a experiência me ensinou que, embora os rapazes estivessem fisicamente habilitados para tal, ainda tinham muito que aprender,

antes de poderem caminhar com os próprios pés.

Muitos tinham vivido pelas ruas durante anos e anos. Seu hábito de vida era mentir e trapacear, ao enfrentarem situações difíceis. Tínhamos que mantê-los em contato com uma família cristã, recebendo muito amor e uma disciplina rígida, até que se habituassem a agir à maneira do crente. A princípio, pensávamos que três meses seriam suficientes. Depois percebemos que eram necessários pelo menos seis meses, para que sua atitude mental se modificasse. Mais tarde passamos a recomendar que o tempo mínimo para isso fosse de um ano, embora ainda preferíssemos que fosse de dois.

Dos rapazes que desejavam realmente seguir a Jesus, nenhum foi mandado embora, jamais. E aos que apareciam querendo livrar-se da dependência da droga, dizíamos que, como ele fizera uma decisão voluntária de seguir a Jesus e entrar para uma de nossas casas, não permitiríamos que saísse antes de dez dias. Depois desse período, já completamente libertos, tinham a opção de ir embora ou permanecer na casa e conhecer melhor a Jesus. Nunca recomendavamos um período inicial inferior a dez dias. Seguir a Cristo era uma opção para toda a vida, e se o novo crente não tivesse feito aquela entrega pessoal básica, aquele comprometimento de modificar-se, Cristo não poderia transformá-lo.

E assim estabeleceu-se a rotina, embora não muito rígida. Os rapazes encontravam nela

um forte senso de segurança, e se aquietavam ali. Assim que percebiam que não iríamos mesmo deixar que voltassem para casa, eles se tranqüilizavam e passavam a ter uma vida ordenada. Diariamente oravam, individual-mente ou em grupo, iam ao mercado, faziam as tarefas caseiras. Tinham estudo bíblico, aulas de chinês e inglês. Quase todos os dias praticavam esportes, principalmente futebol, e aí tinham a oportunidade de falar de Cristo a outros. Sempre jogavam perto de um Centro de Metadona, uma espécie de clínica onde os viciados recebiam certas drogas em substituição à heroína, que eram fornecidas pelo governo. O time formado pelos nossos rapazes era tão forte e saudável, que muitos dos viciados que estavam por ali ficavam sabendo que Cristo poderia libertá-los do vício.

Recebemos a doação de uma enceradeira industrial, e isso ensejou a formação da "Conservadora Estêvão". Grupos de rapazes iam fazer a limpeza e enceramento de apartamentos. Isso constituiu-se numa oportunidade a mais para a pregação do Evangelho.

Nunca tivemos um melhor supervisor para o nosso serviço de assoalhos do que Tony, que dirigia a companhia como se fosse uma operação militar. Estava acostumado a mandar...

Eu havia conhecido Tony havia uns dois anos. Estávamos lanchando numa barraca de lanches em nossa rua, e ele me viu. Ficou intrigado por ver uma mulher ocidental

lanchando numa barraca de lanches, e com tantos criminosos por ali. Um amigo mútuo nos apresentou, e ele chegou até nossa casa. Mais tarde foi a uma outra igreja e disse que gostou, mas era tudo muito vago, como um conto de fadas, que não se conseguia apreender bem. Sua vida era muito diferente de um conto de fadas. Nascera em Havana, Cuba. Quando estava com oito anos, seu pai o mandara para a China, para ajudar sua primeira esposa, que não tinha filhos. E ele viveu com ela em Pequim durante algum tempo, na maior pobreza, até que a cidade caiu em poder dos comunistas. Sua verdadeira mãe escreveu-lhe de Havana suplicando-lhe que voltasse, mas isso era impossível para o garoto sem dinheiro. Quando estava com quatorze anos, fugiu e viajou pela China em direção à fronteira de Hong Kong. Afinal conseguiu cruzar a fronteira.

Aqui chegando, não tinha nenhum dinheiro. Então pôs-se a trabalhar como engraxate ou a bater carteiras para sobreviver. Inevitavelmente, acabou-se deparando com as tríades, que o encaminharam para o roubo com violência. Com dezesseis anos, começou a tomar heroína e pouco depois injetava-a diretamente na veia. Sentia que ninguém o amava, e devido às tristes experiências da infância, criou em torno de si uma couraça de amargura. Com isso, granjeou a reputação de "solitário" entre os "irmãos" da quadrilha. Até mesmo eles temiam aquele líder impiedoso, que conseguira deter tanto poderio nas mãos, fundando, com mais dois colegas, uma nova

ramificação da 14K. Eles se envolviam em chantagens, brigas e mortes.

Uma noite, Ah Kei me telefonou aflito, pedindo que procurasse Tony, que se encontrava em grande dificuldade. Então abotoei bem o casaco e fui fazer uma visita noturna à Vila Diamond, onde ficava a sede de seus domínios.

Encontrei-o sentado em uma casa de chá, o colarinho do paletó virado para cima a proteger-se do frio. Mas ele estava tremendo. Junto dele, dois companheiros de quadrilha. Mas quando fitei Tony, o que me chocou foi a expressão de seu rosto.

Era a expressão de quem ia morrer.Eu ainda não sabia como ia acontecer,

mas percebia, e isso era terrível, que ele já havia planejado tudo.

Pôs-se a narrar-me a situação. Contou-me que, ao sair da prisão, soubera que uma quadrilha rival tinha tentado tomar o controle de seu território. Tinham roubado seus pertences, e, sabendo de sua paixão pela música, haviam quebrado seu violão ao meio. Isso exigia represálias. Ele não tinha outra opção senão preparar o ataque da vingança. Entretanto, no fundo da lembrança havia uma recordação muito doce de uma coisa boa. Para aplacar isso, resolveu vender seu barraco e doar o dinheiro obtido para a Associação Estêvão.

Pouco antes de eu chegar ali, porém, a outra quadrilha havia arrastado suas roupas no chão, peça por peça, e depois tocara fogo em

sua casa. Mostrou-me o lugar onde ela era, e vi as cordas do violão ainda espalhadas pelo chão.

— Sr.ta Poon, disse ele, eu queria dar a escritura desse lote para a igreja.

— Não queremos seu terreno, Tony, queremos sua vida, respondi.

— Vocês podem construir uma igreja nele, insistiu.

— Não estamos querendo construir um templo, Tony, mas queremos ajudá-lo a reconstruir sua vida.

Descemos pela ruazinha que passava entre os barracos, e notei como os habitantes dali olhavam para ele. Tony tinha sido o "rei" do lugar. Todos estavam esperando que ele tomasse represálias. Se ele não revidasse ao ataque, nunca mais poderia andar pelas ruas com a moral de um chefe. Por isso decidira matar ou morrer. E nenhuma das duas coisas lhe importava muito. Estava cansado.

— Deus está chamando você, Tony, disse eu por fim. Venha comigo.

Não quis, mas eu insisti.— Deus o chamou para salvá-lo. Ele quer

você. Venha conosco.Chamei um táxi e entrei. Comecei então a

dizer-lhe:— Deus quer sua vida hoje, Tony. Venha

conosco.Quando eu estava no meio da frase, ele

entrou no carro e sentou-se ao meu lado. Era a última vez que via seu povoado por um período

de vários anos. Nem se despediu dos "irmãos" da quadrilha.

Em meu apartamento da Rua Lung Kong, os rapazes estavam prontos para recepcioná-lo. Perguntaram-lhe se desejava receber a Jesus. Ele estava com certo temor de Deus, mas ficou pensando no que eu dissera: "Deus o chamou; Deus o chamou", e fez que sim. Então eles lhe ensinaram como poderia receber uma nova vida. Mais tarde, ele escreveu seu testemunho.

"Eles oraram por mim e eu aceitei a Jesus como meu Senhor, recebendo depois o batismo do Espírito Santo. Quando fui cheio do Espírito, senti o coração arder e todo o meu corpo com um forte calor; e chorei. Desde que era criança nunca mais havia chorado. Então compreendi que realmente nascera de novo.

"Levaram-me para a Terceira Casa de Estêvão. Eu já tinha tentado outras vezes livrar-me da dependência das drogas. Mas a dor era muito forte, e eu não a suportava, por isso sempre andava com um pouco de heroína escondido em minhas roupas, para o caso de ficar sem ela. Mas daquela vez foi diferente. Meus irmãos em Cristo oraram por mim, e também orei em língua estranha, e a dor desapareceu. Dois meses depois, fui morar com o casal Willans. Eles são agora como pais para mim.

"De lá para cá, tenho visto Deus operar de muitos modos em minha vida. Fui com meus pais adotivos à China, e em 1976 visitei também os Estados Unidos e a Inglaterra, onde

falei em igrejas, no rádio e na televisão. Que coisa maravilhosa para mim, um ex-lutador de quadrilha, ex-viciado em heroína, ex-presidiário, receber uma concessão especial para visitar os Estados Unidos.

"Depois fiz um curso de cabelereiro, onde aprendi a cortar e pentear. Agora trabalho num dos principais salões de Hong Kong. Isso tudo é maravilhoso e mostra como o Senhor Jesus é poderoso. Mas a melhor coisa que ele fez por mim foi mudar meu coração. E hoje já não desejo seguir os caminhos do pecado, porque sigo a ele." O ideal seria que cada um de nossos rapazes se tornasse filho adotivo de uma família crente, onde pudesse ser amado e cuidado. Foi maravilhoso ver Tony crescer espiritualmente e ir sempre se transformando. Ele perdera sua vida, mas assim fazendo a reencontrara.

Os outros rapazes que se achavam nas outras casas também estavam-se desenvolvendo, embora alguns saíssem antes de sentirmos que estavam preparados para tal, o que nos entristecia bastante. A mais forte pressão que sofriam nesse sentido era a dos pais que, vendo os filhos libertados da droga, logo começavam a resmungar com relação a dinheiro e a responsabilidades de família. Mas, para aqueles rapazes, o peso de sustentar uma família era demasiado, e alguns voltavam a tomar droga, e depois pediam para retornar à nossa casa. Mas só os recebíamos quando tínhamos certeza de que estavam sendo sinceros.

Siu Ming não sofreu essas pressões por parte dos pais, pois era órfão. Sua mãe tinha morrido quando estava com seis anos e ele morava num casebre com o pai e uma irmã menor. Como acontece a muitas famílias de Hong Kong, todos dormiam numa cama só, e não havia cozinha, nem banheiro, nem eletricidade, nem água encanada.

Siu Ming e a irmã costumavam sentar-se numa pedra que havia à porta do barraco, esperando o pai voltar para casa. Se viam que ele trazia alguma coisa consigo, sabiam que teriam o que comer. Se as mãos dele estavam vazias, isso significava que ele perdera no jogo e não teriam jantar naquela noite. Siu Ming trabalhava vendendo jornais. Nunca aprendera a ler ou escrever.

Aos quinze anos entrara para uma quadrilha tríade. O pai ficou com muita raiva, e constantemente o repreendia, até que ele saiu de casa. Um ano depois, a irmã foi à sua procura e disse que o pai havia morrido. Como não tinham mais ninguém na vida, ele começou a tomar heroína. A irmã suplicou-lhe que não o fizesse, mas pouco depois já estava viciado. E então saiu de casa outra vez, para sempre.

Como a venda de jornais não fosse suficiente para custear a compra de heroína, ele passou a roubar. Foi preso e enviado para um centro de reabilitação. Depois de permanecer ali cinco meses, saiu e imedia-tamente voltou a tomar drogas. Voltou ao centro, e, certa vez, quando saiu num feriado,

foi preso de novo. Dessa vez foi mandado para o presídio. Liberto depois de algum tempo, ele sentia profunda amargura contra tudo e contra todos, e voltou às drogas.

O agente encarregado de vigiá-lo na condicional disse que ele era um caso perdido, mas resolveu dar-lhe uma última oportunidade e instruiu-o para que procurasse a Associação Estêvão. Escreveu meu nome e endereço, em chinês, num pedaço de papel, e deu-o a ele. Siu Ming foi procurar-nos pensando que iria entrevistar-se com uma mulher chinesa. Tampouco sabia que tínhamos alguma relação com igreja.

Ao ver-me, disfarçou um pouco a surpresa de encontrar-se frente a frente com uma inglesa. Mas, quando lhe falei que Jesus o amava, pareceu indeciso sem saber como receber isso. Afinal pensou: "Tenho que escolher entre Jesus e a cadeia", e preferiu Jesus. Alguns dos ex-quadrilheiros que moravam em nossa casa oraram por ele, e começou a falar numa língua que não conhecia. Depois o conduzimos à terceira casa, onde deveria passar pêlo processo de desintoxicação.

Alguns rapazes, inteligentemente, oravam logo, e não sentiam nem uma pontada de dor. Outros, como Siu Ming, esperavam até não suportarem mais. Ele simplesmente não queria orar. Sofria as agonias das dores provocadas pelo processo. E, mesmo que quisesse orar, não o saberia.

Afinal, não agüentando mais, desesperado, aceitou orar naquela língua estranha. Depois disso, falou que estava-se sentindo maravilhosamente bem, e daí a dez minutos dormia tranqüilo. Quando acordou, ti-nha verdadeira convicção de que Cristo o amava.

Siu Ming era uma pessoa muito calada, e parecia ter personalidade muito fraca. Nos primeiros meses em que esteve conosco, mal se notava sua presença. Sempre que fazíamos nossas excursões à praia, ou íamos ao campo de futebol, tínhamos que recontar nosso pessoal, esperando que nenhum deles houvesse escapulido para ir fumar no banheiro. Sempre nos esquecíamos de contá-lo. Mas, com o passar do tempo, começou a revelar-se um rapaz bondoso, trabalhador, digno de confiança, e, o que é mais importante, muito espiritual. Aprendeu a ler e escrever através de nossos estudos bíblicos diários, e muitas vezes o víamos orando sozinho. Acabou-se tornando um de nossos melhores auxiliares para os novatos.

Também havia homens mais idosos morando conosco nas casas. Ah Lun e o Sr. Wong chegaram à nossa casa da Rua Lung Kong no mesmo dia, mas não juntos. Ambos tinham ouvido falar de nosso ministério e pediram que os acolhêssemos imediatamente. Ah Lun estivera preso durante um ano e meio e só vivia para comer e tomar heroína. O Sr. Wong dizia que fora general do exército de Chiang Kai Shek. (Conheci tantos soldados

nacionalistas que afirmavam o mesmo, que acabei pensando que o exército era composto unicamente de generais.) Dizia também que já estivera em diversas igrejas de Hong Kong, mas que a nossa era a primeira em que Jesus estava presente.

Dei um jeito de dispensar os dois. Ah Lun tinha quase sessenta anos e o Sr. Wong uns cinqüenta e tantos. Não me parecia acertado misturá-los com os rapazes. Mas os dois continuaram a aparecer em nossa casa todos os dias, sempre pedindo que os aceitássemos. Não poderia deixá-los de fora, negando-lhe a oportunidade de receber a Cristo.

E assim os dois passaram a morar conosco e se adaptaram muito bem. Naturalmente houve certos problemas, pois Ah Lun tinha mania de ajuntar coisas, e guardava objetos debaixo de sua cama ou mesmo em cima dela. Além disso, pegou vários livros de Jean, embora não soubesse ler inglês.

Já o Sr. Wong se julgava superior a todos, devido à sua posição. Era um alto oficial do exército, e esperava que Taiwan reconquistasse a China Continental. Como isso não aconteceu recorrera às drogas. Embora sua reabilitação pudesse parecer mais fácil, na verdade ele apresentava o mesmo problema básico que os outros rapazes: orgulho. Empregava uma linguagem evangélica bastante floreada, que aprendera nas outras igrejas que visitava. Achava-se muito certo e justo, mas irritava-se facilmente. Era briguen-to e causava-nos muitos aborrecimentos.

Depois de ficar livre da dependência da droga, o Sr. Wong achou que não precisava mais de Jesus e parou de orar. Mas Sara lhe disse que devia orar pela manhã e à noite em língua estranha, e ainda tinha que orar pelo menos durante meia hora em seu devocional particular. Sua atitude começou a mudar imediatamente e um dia ele me disse:

— Meu coração de pedra está-se derretendo, e Deus está-me dando um coração de carne.

Ao que parecia, seu estilo pomposo não mudara nada.

Muitos rapazes, quando oravam para serem libertos da heroína, eram curados também de outras enfermidades. Um deles sofria de tuberculose e asma. Mas dois dias depois a asma desapareceu completamente e a chapa do pulmão estava limpa. Ah Lun também estava com o fígado inchado ao chegar, mas foi curado, e o órgão voltou ao normal.

Enquanto um viciado está fazendo uso de drogas, não fica ciente de outras doenças, mas, depois da desintoxicação, sempre descobríamos algumas que ainda perduravam. O problema mais comum eram os entes. Tivemos de gastar uma pequena fortuna em atamento dentários e em dentaduras. Felizmente, o exército britânico nos ofereceu assistência nos casos mais graves, e assim o Sr. Wong foi para o hospital militar, a fim de extrair todos os dentes, que haviam-se estragado pelo uso constante de heroína. O

exército ainda fez mais: doou-nos alguns fundos, para mandarmos fazer as dentaduras dele.

Não era a primeira vez que o exército auxiliava as Casas de Estêvão. Muitas vezes, já havíamos utilizado seus acampamentos e ônibus para nossas excursões. Isso foi de beneficio mútuo, pois alguns de nossos conhecidos ali tornaram-se crentes, devido ao contato conosco. Quantas vezes nossos rapazes diziam a um soldado inglês:

— Você já aceitou Jesus?E logo em seguida ofereciam orientação

espiritual.— Se quiser, podemos orar por você.Um de nossos mais entusiastas

evangelistas era Ah Fung. Ele era de uma família rica. Fizera alguns anos de curso secundário, e considerava-se um filósofo. O tio, que o criava, pertencia ao Jockey Clube, uma associação bastante elitista. Mas, apesar de todas essas vantagens, Ah Fung era um garoto carente. O pai havia morrido e a mãe desaparecera. Era fortemente viciado em heroína e precisava de meios para custear o vício. O tio lhe dava muito dinheiro, e isso lhe proporcionava maiores oportunidades de cultivar mais e mais o vício. Chegou um dia, porém, em que a quantia dada pelo tio já não era suficiente. E viu-se forçado a roubar ou fazer o que fosse necessário para arranjar dinheiro.

Quando o tio teve conhecimento do vício do sobrinho, obrigou-o a ficar preso em casa

durante dois meses, sob vigilância constante. O rapaz concordou, mas insistiu em que não o importunassem à noite. Certo de que não iriam perturbá-lo, ele ajeitava coisas na cama, a fim de dar a impressão de que estava lá dormindo, e todas as noites escapolia da casa sem ser visto.

Afinal, depois de dois meses, a família percebeu que ele ainda estava viciado, e o expulsaram de casa. Aí então ele procurou assistência profissional. Mais tarde, ele fez a triste declaração de que conhecia todos os centros de tratamentos de viciados de Hong Kong. Chegara até a ir a Taiwan e à Austrália, numa tentativa de procurar trabalho, mas ainda estava viciado.

Quando conheci Ah Fung, ele já estivera preso seis vezes, e parecia um caso perdido. Procurou-me em minha saleta na Cidade Murada.

— Sr.ta Pullinger, quais são as exigências para se entrar na Associação Estêvão? perguntou. Onde se faz a matrícula, e quanto tenho de pagar?

— Bom, Ah Fung, respondi. Não é bem assim. Somos um grupo de cristãos interessados em que você passe por uma mudança de vida. Se você quer apenas ficar livre do vício, eu lhe recomendo que procure um centro de tratamento. Lá você ficará alguns meses e depois sairá e voltará a tomar drogas. Mas nós só o aceitaremos, se estiver disposto a mudar de vida e quiser ficar pelo menos um ano.

Ele fez que sim. Alguns dos rapazes que estavam ali no clubinho lhe falaram entusiasticamente sobre Jesus. O rapaz ia acenando afirmativamente, meio alheado, e afinal concordou em fazer a oração de entrega pessoal.

No dia seguinte, o encaminhamos para a terceira casa. No segundo dia em que lá estava, começou a sentir dores, o que indicava que estava iniciando seu processo de desintoxicação. Recusou-se a orar, e exigiu que o deixassem sair. As dores pioraram.

Jean e Rick tinham acabado de sentar-se à mesa para jantar, quando veio um telefonema de um dos obreiros, dizendo que Ah Fung ainda estava teimando em sair, lutando para fugir. Rick foi até lá e falou ao rapaz com toda a firmeza, como se fosse um pai. Disse-lhe que acontecesse o que acontecesse, ele não teria permissão para sair, senão dali a oito dias.

A firmeza e autoridade dele fizeram com que o paz se acalmasse, e aquiescesse em orar com Rick. ais tarde contou-nos que, quando Rick impusera as mãos sobre ele, sentira como que um clarão sobre si, e as dores cessaram.

No dia seguinte, quando acordou, sentiu novamente as dores e lembrou-se do que acontecera no dia anterior. Espiou para um lado e outro, para ver se alguém o observava, e em seguida impôs as mãos sobre si mesmo. Mas nada aconteceu. Resolveu orar, e aí então foi liberto.

Assim Ah Fung aprendeu que era Jesus, e não Rick, que tinha as mãos de cura. E ele ficou em nossa casa dois anos e nos ajudou bastante no trato com os outros rapazes.

Cada um dos rapazes que acolhíamos tinha sua própria história, uma história maravilhosa. E todos, sem exceção, foram libertos do vício da heroína sem dores nem traumas.

Todos conheciam a realidade de um Deus vivo e o poder de seu Espírito. Aqueles que o seguiam eram evidências vivas de uma incrível transformação de vida. Ah Fung citou um provérbio chinês que diz: "É mais fácil mudar as características de um país, do que a disposição de um homem." Ele reconheceu que Deus podia remover montanhas.

12

Acolhendo Anjos

Elas poderiam ter vinte anos, ou sessenta. Não havia meio de se saber. A cabeça pendia sobre o peito, estando elas agachadas ou apoiadas à parede, aguardando os clientes.

A prostituta que comprara Maria, quando esta era ainda um bebezinho, estava pensando em aposentar-se. Postava-se junto ao cinema pornográfico, instando com os homens que de lá saíam para que desfrutassem dos prazeres juvenis da moça lá em cima, ou então sentava-se e contava o dinheiro.

Maria estava com treze anos, e quando sua mãe adotiva quis que ela começasse a trabalhar nos bordéis, ela se rebelou. Não que ela tivesse repugnância pelo trabalho, mas a idéia de dormir com homens velhos não lhe agradava muito. Tendo sido criada numa casa dessas, via aquilo apenas como um meio de ganhar a vida. Era uma garota muito bonita, de pele azeitonada e olhar expressivo. Contudo, ela estava procurando amor e atenção. Por isso, fugiu.

Maria tornou-se bailarina de dancing em Kowlo-on. As bailarinas constituíam uma casta superior de prostitutas. Aliás, não se consideravam meretrizes. Os homens pagavam

para dançar com elas, e se quisessem segui-las até a casa, teriam que pagar um pouco mais. Cada bailarina dessas tinha o seu "protetor", que recebia o dinheiro. Se ela quisesse mudar de protetor poderia fazê-lo, desde que ela ou o outro pagassem uma grande soma em dinheiro.

Eu não sabia onde ela se encontrava. Só sabia que havia fugido. Quanto mais o tempo passava, mais preocupada eu ficava. Num domingo à tarde, pus-me a andar pelas ruas, pedindo a Deus que me levasse até onde ela se achava.

"Siga diretamente em frente. Não vire para a esquerda, nem para a direita."

Não ouvi uma voz, nem vi uma nuvem branca, mas tive certeza de que Deus queria que fosse naquela direção. Caminhei em frente, atravessei a rua principal e depois senti claramente a orientação: "Pare aí." Encontrava-me diante de um prédio de apartamentos, muitos deles com cartazes anunciando "Massagens", "Hotel", etc.

Mas, naquele momento, refutei todas as revelações até ali recebidas e disse:

— Senhor, isso tudo é uma bobagem. Vou parar de brincar de detetive espiritual.

E voltei para casa.Alguns dias depois, sonhei com Maria. Vi

claramente o lugar onde estava morando e o homem com quem vivia. Acordei chorando, pois sentia que não possuía meios de encontrá-la, para dizer-lhe que me interessava por ela e queria ajudá-la. A única maneira possível de

saber seu paradeiro era recorrer à teia de comunicação dos tríades. Normalmente, eles conseguem localizar garotas desaparecidas em pouco tempo.

Entretanto, alguns meses depois, a própria Maria me telefonou. Disse que havia muito tempo estava tentando entrar em contato comigo, e me deu as instruções de como chegar à sua casa. Fui visitá-la. Era no mesmo prédio, na frente do qual eu parara, naquele domingo, alguns meses antes. E o apartamento era exatamente igual ao do meu sonho, com a exceção de que havia muitos espelhos pelas paredes e no teto.

Passei a visitá-la todos os domingos, à tarde. Contou-me que estava totalmente endividada no seu dancing. Geralmente, as moças desses lugares ganham lindos vestidos e recebem aulas de dança, mas tudo é debitado em sua conta, e vão descontando de seus ganhos. Ela não poderia sair dali, sem antes pagar uma quantia vultosa. Um modo de escapar disso era engravidar-se. E foi o que fez. Mas depois provocou o aborto. Engravidou-se pela segunda vez, e foi morar com a mãe de seu protetor, e depois arranjou serviço numa fábrica. Mas os familiares desse homem, seus amigos e ele próprio a desprezavam por ter sido dançarina. E afinal, essa rejeição por parte deles convenceu-a de que não valia a pena levar uma vida direita, então o melhor era mesmo voltar para o dancing.

A filhinha, porém, ficou com a vovó. Ela lhe dera o nome de Jackyan, em minha homenagem.

Mais tarde, Maria arranjou um novo protetor, mas sentia-se cada vez mais infeliz. Dançava muito todas as noites, e tomava comprimidos estimulantes para suportar o cansaço. Após o trabalho, ia para as salas de jogo e o inevitável acontecia, ficava mais e mais endividada, sendo forçada a tomar dinheiro emprestado de um agiota. Não demorou muito e ficou totalmente enredada e sem condição de saldar a dívida. O agiota então exigiu que ela se tornasse propriedade dele por dois anos, trabalhando na pros-tituição, a fim de pagar o débito.

E então ela me ligou, dominada pelo pânico. Isso seria a suprema humilhação para ela. Como bailarina de dancing, ela era independente até certo ponto. Mas estava por se tornar virtualmente prisioneira de um homem impiedoso. Queria que eu lhe arranjasse HK$ 1.500 dólares, a fim de evitar cair nesse destino. Contudo, eu não tinha nem HK$ 15 dólares. Minha grande preocupação era saber se ela estava realmente sendo sincera. Algum tempo antes ela tinha feito uma oração de entrega pessoal a Cristo, mas não fizera nenhum esforço para segui-lo. Eu não tinha intenção de dar dinheiro a uma moça que não tivesse um desejo sincero de mudar de vida. Mas precisava vê-la e falar com ela. Resolvei levar Ah Ping comigo. Precisava do conhecimento que ele tinha dessas coisas,

para descobrir se ela estava querendo apenas explorar-me. Fazendo um levantamento de meus bens materiais, cheguei à conclusão de que a única coisa de valor que eu possuía era o meu "querido" oboé. Como todo oboísta, considerava o instrumento quase como um amigo muito estimado. Numa certa reunião, recebemos uma mensagem em língua estranha, e Ah Ping recebeu a interpretação. Disse ele: "O Senhor Jesus Cristo entregou seu bem mais precioso por você, isto é, a sua vida." E se Jesus tinha dado a própria vida, o que era um oboé em comparação com isso?

— Está bem, Maria, respondi à moça mais tarde. Vou pagar a dívida, mas com duas condições. A primeira é que eu própria vou entregar o dinheiro; a segunda é que você mude de vida. Vou ajudá-la a arranjar um emprego e outro lugar para morar. Se ficar aqui, logo estará novamente com os mesmos problemas.

— Eles não vão querer manter conversações com você, respondeu ela. Michael é um agiota muito exigente.

Mas como ela não tinha outra escolha, então marcou um encontro numa casa de chá para daí a dois dias, à meia-noite e meia.

Vendi meu oboé e coloquei o dinheiro, quinze notas de HKSIOO dólares, num envelope grande. Cheguei ao restaurante e me sentei a uma das mesas centrais. Eu e Maria ficamos a tomar café, aguardando a chegada de Michael.

O ruído de pneus chiando no asfalto anunciou a chegada dos encarregados da

cobrança. Michael mandara quatro homens, que entraram pelo salão no velho estilo de Chicago. Mal deram uma olhada para nós. Pegaram logo o envelope, verificaram o conteúdo dele, e saíram novamente, sem dizer nada. Quando já estavam quase na porta, chamei-os.

— Ei, esperem aí!Um deles olhou para trás.— O que deseja? indagou com ar de

desdém.— Quero falar com Michael, respondi.— O que quer com ele?— Tenho uma mensagem muito

importante para transmitir a ele.— Pois pode dizer-nos o que é.— Não, repliquei, tenho que entregá-la

pessoalmente.— E o que é?— É muito pessoal. Como posso encontrar

com ele?Para surpresa minha, deram-me o

telefone dele, e quando liguei, ele concordou em me receber. Fui conduzida a um prédio alto. A boate dele ficava no vigésimo primeiro andar. O porteiro abriu-me a porta com uma chave dourada. Já estavam-me esperando. Dentro, tapetes macios e luz amortecida faziam o ambiente. Então era este o clube em que Maria teria de trabalhar, se não tivéssemos conseguido o dinheiro para ela. Sentei-me a uma das mesas e pus-me a esperar.

Afinal, Michael dignou-se a dar-me a entrevista. Era uma pessoa de aspecto agradável, bem vestido. Pôs-se a falar com muita emoção sobre as terríveis condições de vida em Hong Kong, e de como, sem o negócio da agiotagem, não poderia pagar os estudos de seus onze irmãos. Depois de esplanar toda a autojustificação, passou a atacar-me:

— Você é uma boba, disse. Talvez pense que praticou um ato muito nobre pagando a dívida daquela garota, mas sei que ela não vai mudar nunca. Acabará voltando ao mesmo tipo de vida. Não pense que ela ficará grata a você, nem que mudará de vida. Você foi levada a cometer um erro, um verdadeiro desperdício.

— Isso realmente não tem muita importância, falei. Vou explicar por que fiz isso. Já ouviu falar de Jesus?

Ele já tinha escutado algumas histórias bíblicas.

— Jesus foi o único homem perfeito que houve no mundo, expliquei. Ele só fez o bem. Curou os doentes, ressuscitou mortos, mas seus inimigos o pregaram numa cruz e assim o mataram. Ele morreu por minha causa. E não esperou que eu mudasse de vida e me tornasse uma pessoa boa, para morrer por mim. E tampouco disse que só morreria por mim, se eu mudasse de vida. Mas deu-me sua vida, e no instante em que morria perdoou-me. Foi isso que Jesus fez. E é isso que desejo que Maria compreenda. Fiz uma pausa.

— Mas ela não vai mudar. Voltará à mesma vida de antes, insistiu ele. Tudo que fez foi pura perda.

— Não me importo de passar por tola e perder esse dinheiro, disse. Afinal Jesus perdeu sua vida. Prefiro ser uma boba, e perder tudo, do que ser incrédula, e ver essa moça ir para o inferno. Agora, é com ela. Não posso mudar sua vida, mas ela tem a possibilidade de fazê-lo. Foi Jesus quem lhe deu essa oportunidade.

Michael abriu a boca para responder, mas não conseguiu dizer nada. Estava mudo de espanto. Passaram-se alguns minutos, e ele ainda não conseguia falar. Seus olhos ficaram marejados de lágrimas. Afinal resmungou com voz roufenha:

— Não sei o que dizer.Nunca mais vi Michael, mas quando

estava descendo pelo elevador, um dos empregados da boate entrou e veio falar comigo.

— Posso falar com você um instante? indagou. Quero aprender sobre esse negócio de ser crente. Pode me indicar um lugar onde posso ir para aprender?

Então fomos nos sentar num bar, e passamos o resto da noite ali, com uma Bíblia aberta à nossa frente.

Naquela ocasião, eu já começara a receber rapazes para morar em minha casa, e não poderia levar Maria para lá. Já tínhamos percebido que era mais difícil ajudar moças iguais a ela, pois eram poucas as que queriam mudar de vida.

Muitas não achavam que procediam mal. Achavam que valia a pena o*estigma que a sociedade lhes impigia, tendo em vista a liberdade que obtinham.

Eram livres no sentido de que podiam se divertir, ganhar muito dinheiro, e não se submetiam à vida insípida da mulher chinesa em geral. Muitas jovens tinham essa ilusão e a conservavam por muito tempo. Amavam o namorado com elevado grau de romantismo e os sustentavam de bom grado. Só mais tarde é que vinham a perceber que tinham sido exploradas. Mas àquela altura, não conheciam outra vida, e só aí percebiam que não tinham conquistado nenhuma liberdade, mas achavam-se cativas.

Algumas dessas moças até que gostariam de largar esse tipo de vida, mas os homens para quem trabalhavam naturalmente resitiam a isso, e, em alguns casos, eles eram em número de até sete ou oito. Também achavam-se em dívida com o clube para o qual trabalhavam, além de temer o cáften. Nas visitas que fiz ao dancing onde Maria estava, conheci muitas moças que queriam sair dali.

Uma noite, recebi um telefonema de Frederick.

— Poon Siu Jeh, falou ele em voz calma, uma pessoa de minha amizade levou uma surra, porque tentou largar dos tríades. Ela está desesperada e não tem para onde ir. Será que podemos ir até aí?

— Pode, Fred, tudo bem. Quer vir amanhã cedo?

— É "muito perigoso. Essa pessoa não pode ser ta. Iremos à noite.

No dia seguinte, à noite, quando abri a porta para receber meu fugitivo, levei um choque. Fred estava-me trazendo uma moça. Como na língua chinesa as palavras não têm gênero, pensara tratar-se de um rapaz, que estava querendo deixar a quadrilha. Os olhos dela exibiam marcas de pancadas. Mandei que entrassem rapidamente, e tentei conversar com a jovem, mas ela não quis dizer uma só palavra naquela noite. Sua necessidade de conversar limitava-se a acenos afirmativos ou a abanar a cabeça. O nome dela era Angel.

Frederick contou-me que ela trabalhara como stituta para uma quadrilha de Mong Kok. Sua e a dera para um homem que lhe pedira a menina, esperando que se casasse com a filha. Mas isso não aconteceu. Em vez de esse homem cuidar da moça, era ela quem o sustentava e a mais quatro ou cinco. Todas as noites tinha que ir para um bordel, onde trabalhava. Em algumas dessas casas, havia rapazes que vigiavam as garotas. Eles ficavam lá sentados, jogando baralho, assistindo televisão ou comendo alguma coisa. Estavam ali para vigiar as moças, para que trabalhassem o número devido de horas e não fugissem. Uma noite, Angel não foi trabalhar, e quando apareceu no apartamento, seu "namorado" bateu muito nela. Disse-lhe que, se acontecesse de ela não ir trabalhar uma outra vez, ele a mataria de pancadas.

A moça não queria apanhar mais, mas também não tinha para onde ir. Se fosse para casa, o namorado iria atrás dela; se alugasse um apartamento, os tríades a localizariam em quarenta e oito horas. Não tinha amigos. A única pessoa que conhecia era Fred, e então recorreu a ele.

Angel parecia ter dezessete anos, mas na verdade tinha vinte e cinco, e era bastante ingênua. Mas alguns dias depois, ela entendeu a mensagem cristã o suficiente para aceitar o fato de que Jesus a amava tal como era, e que a perdoava. E assim tornou-se crente. Só então vimos seu olhar adquirir um pouco mais de animação e vida.

Embora ela estivesse disposta a começar vida nova, era claro que não poderia andar livremente por Hong Kong, enquanto a situação não fosse solucionada. Tinha que haver uma gong-sou, isto é, uma conversação, para se acertar a taxa a ser paga para a separação dela, e assim ficasse oficialmente transferida para outra pessoa. Se não fizéssemos isso, na primeira vez que saísse à rua, a quadrilha poderia raptá-la, desfigurar seu rosto com ácido, ou entrar em luta contra nós.

Combinei com Angel para que fossemos falar com seu antigo namorado. Telefonei para ele, e marcamos um encontro nà Lanchonete do Hotel Hong Kong, pois era um lugar com muitas portas, e assim não poderiam encurralar-nos. Também era um lugar com bom afluxo de público, o que impediria que a quadrilha a seqüestrasse. Além disso, liguei

para a polícia e expliquei-lhe que iríamos ter essa conversação, e seria bom se houvesse algum dos seus homens por ali, apenas para "ficar de olho" na coisa toda.

E assim eu e Angel fomos para o hotel, acompanhadas de um dos rapazes; mas, ao chegarmos ali, já encontramos o namorado dela sentado a uma mesa, rodeado de quadrilheiros.

Deixe que Angel conversasse com eles, mas, a certa altura, percebi que não estavam discutindo as bases, mas concordando com tudo que o homem dizia. Estava simplesmente obedecendo a força de um hábito de vários anos. Eu já nos via saindo dali, eu entrando num táxi e ela em outro, para voltar a ser uma prostituta. Resolvi entrar na conversa, mas o homem estava irredutível; não abriria mão dela em hipótese alguma. Em seguida, procurou convencer a mim e a si mesmo de que amava a moça.

— Mas que maneira estranha você tem de demonstrar seu amor, comentei, mandando que ela vá fazer esse tipo de serviço.

— Mas não vou desistir dela, insistiu. Por direito ela é minha. Foram seus pais quem a deram para mim.

— Com você, ela não tem nenhuma chance de uma vida melhor, disse eu. E ela deseja parar com isso e começar vida nova. Ela creu em Jesus.

Mas isso não significava nada para ele, e ordenou à moça que fosse embora com ele. Agarrei-a por um braço, enquanto o nosso

moço a segurava pelo outro, e foi dessa forma que saímos porta a fora e tomamos um táxi. Quando este já se afastava do meio-fio, ele entrou e sentou-se no banco da frente. Como não queria sair, instruí ao motorista para dar uma longa volta. Não queria que o sujeito descobrisse onde Angel estava. Ele virou-se para trás.

— Meu chefe vai ficar muito irritado com isso, falou. Não vai deixar Angel sair. Preciso do número do seu telefone.

Neguei-me a dar o número, e expliquei que entraria em contato com ele. Afinal, ele saiu do carro, e pudemos ir para casa. Resolvemos que, quando voltássemos a ter nova conversação, Angel não iria, pois poderiam tentar raptá-la.

Ligamos para ele e marcamos um novo encontro. Decidi ter esse encontro no Café Diamond, que fica logo em frente ao nosso prédio, na rua Lung Kong. O namorado disse que deveríamos ir apenas eu e Angel, e mais ninguém, e ele também estaria sozinho.

Não confiei plenamente nele. Além disso, estava com medo de que brotasse violência de uma outra fonte. Os rapazes de nossa casa estavam tomando as dores de Angel, e desejavam protegê-la e a mim. E isso era exatamente o que eu não queria que acontecesse, pois, se houvesse briga, instintivamente eles iriam brigar. Então, na manhã daquele dia, meditei com eles sobre as histórias de Gideão e Josafá, no Velho Testamento, que estavam enfrentando

situações fortemente adversas, mas não tiveram de lutar para vencer. Simplesmente louvaram a Deus e cantaram, e assim obtiveram a vitória. Queria que nossos rapazes aprendessem que não precisamos lutar.

Algumas horas antes do encontro, os homens da quadrilha começaram a postar-se em vários pontos da rua, que ficou tomada por eles. Eu pedira aos nossos moços que ficassem no alto de nosso prédio, de onde podiam ver o que se passava, sem contudo serem vistos.

— A única coisa que vão fazer aqui é orar, disse-lhes. Se virem algum ato de violência, então podem ligar para a polícia. Mas não podem absolutamente sair para me defender.

Eles estavam querendo mandar pedir a Goko que enviasse alguns de seus homens para brigar com a outra quadrilha.

— Mas assim vocês não estariam lutando a batalha espiritual, que é o que devemos fazer como crentes. Não podemos nos envolver numa briga corporal, expliquei-lhes com firmeza.

Oramos bastante a respeito da situação, e afinal parti, acompanhada de um dos rapazes, enquanto que Angel ficou em casa.

O namorado de Angel não apareceu; mandou em seu lugar o chefe da quadrilha, juntamente com mais quatro ou cinco de seus companheiros, bem como os outros do lado de fora. Ficou furioso ao ver que Angel não estava comigo. Estava claro que tinham tudo preparado para seqüestrá-la.

— Não pense que vou ficar todo cerimonioso, só porque você é desse negócio de igreja, disse ele.

Ele não sabia que eu era bem relacionada com o pessoal da Cidade Murada; então, ingenuamente, tentei dar uma espécie de testemunho, mencionando o nome de alguns rapazes de lá, que já eram seguidores de Jesus. Imediatamente ele concluiu que eu tinha ligações com a 14K.

— Pois bem, falou. Não vamos mais ter nenhuma cerimônia com você, e deu um murro na mesa. Entregue-nos a moça. Não vamos deixar que saia daqui, enquanto não a trouxer.

Tentei falar-lhe de Jesus, mas não quis ouvir.

"Bom", pensei, "quis falar de Jesus e ele não me deu ouvidos. Se eu quiser argumentar sobre á moça, também não irá ouvir-me."

Senti muito medo naquele momento.— Por favor, posso dar um telefonema?

falei com voz mansa.Liguei para casa, e Willie atendeu.— Não olhe agora, mas na porta do café

há dois carros cheios de quadrilheiros armados de faca, disse-me ele. Estão aí esperando.

Fiquei aterrorizada e sussurrei para Willie:— Chame a polícia!Voltei à mesa e disse-lhes que teriam que

fazer as conversações comigo mesma, e que Angel desejava seguir a Jesus.

Quando a polícia chegou, os carros com os homens armados escapoliram, e quando os policiais entraram no restaurante já estava

tudo tranqüilo. Os outros rapazes, naturalmente, não portavam armas. Fui ao banheiro, e um dos investigadores estava lá.

— Ah, dá licença, disse eu. Há alguns carros lá fora cheios de homens com facas.

— Agora não há mais ninguém lá, respondeu. Quer que façamos uma revista no café?

— Não iria adiantar, repliquei. Não encontrariam nada.

Então, os policiais foram embora, e assim que saíram, os carros deles voltaram. Eu ainda estava presa ali, sem saber o que fazer. A única coisa a que poderia recorrer naquela situação era a oração. Então orei em línguas, em voz bem baixa, para que não escutassem.

Meus joelhos tremiam, e não tinha a mínima idéia do que iria fazer em seguida. Afinal, levantei-me e disse:

— Tenho que sair para comprar verduras. Estava tremendo fortemente quando saí dali, e à

porta vi os homens também saindo do carro. Vinham em minha direção. Meu maior medo era que os rapazes da Cidade Murada viessem lutar com eles em minha defesa. Por felicidade, naquele instante, passou um lotação e entrei nele e fui embora. Fui diretamente para a delegacia. Tentei explicar-lhes que havia uma porção de homens armados procurando Angel.

— Tenho certeza de que vão à casa de seus familiares e vão criar problemas para eles.

— E onde moram? indagaram eles.— Em Shek Kip Mei, respondi.— É fora de nossa jurisdição, disseram.

Quer ir à delegacia de Shek Kip Mei?— Não poderiam lígar daqui mesmo?

perguntei.Estou achando que vão matar alguém.

Um dos policiais disse-me com ironia.— Minha senhora, disse com uma

entonação deliberada, todos os dias morre gente nesta cidade.

— Mas estou avisando a vocês, porque gostaria que essa morte fosse evitada.

Afinal, concordaram em levar-me à delegacia de Shek Kip Mei numa de suas viaturas. Ali, senti que os outros policiais também não estavam muito dispostos a cooperar.

— Esse negócio é de Kowloon, disseram. Mas, afinal, o que deseja que façamos?

— Eles moram aqui nesse endereço, repliquei. Tenho quase certeza de que esses quadrilheiros irão aparecer para maltratar essa gente.

— Não podemos mandar uma pessoa ficar de guarda lá o tempo todo, responderam. Temos muito que fazer.

— Sei que não podem, mas poderiam ao menos instruir os policiais da ronda, para ficar de olho nessa casa.

Por fim, um dos inspetores anotou a queixa, não oficialmente, já que não acontecera nada.

Mas, algumas horas depois, recebi um chamado desesperado de um dos familiares de Angel.

— Saí para comprar umas coisas, e agora estou vendo cinco homens sentados em minha casa, disse a pessoa com voz trêmula. E ainda há outros sentados nas escadas, e estão armados.

Imediatamente liguei para a polícia. Já estavam a par do fato e mandaram seus homens para lá rapidamente. A maioria dos quadrilheiros conseguiu escapar, mas a polícia pegou dois ou três deles. Além disso, eles os amedrontaram, dizendo que, se quisessem, poderiam criar muitos problemas para toda a quadrilha. Nunca mais importunaram Angel.

Mais tarde, os familiares da moça me contaram que, quando os quadrilheiros entraram na casa e se assentaram lá, eles ficaram aterrorizados; interrogaram-nos bastante, querendo o meu endereço. Feliz-mente, eles não o sabiam e assim não o puderam revelar.

— Mas quem é essa dona que só fala de Jesus e quem são esses crentes? perguntou um dos rapazes da quadrilha.

— E vocês já viram o olhar dessa mulher? indagavam. Quando estávamos conversando com ela no café, ficamos muito nervosos, e a gente nem conseguia olhar para ela direito. Ela tem um poder qualquer.

E a palavra que empregaram designa poder sobrenatural. Quando me contaram isso, senti grande regozijo, pois aquele fora um dos

momentos mais terríveis de minha vida. E, no entanto, eles tinham ficado ainda mais atemorizados que eu, pois reconheciam ali a presença de um poder espiritual.

Uma vez que a liberdade de Angel estava garantida, não poderíamos mais mantê-la em nossa casa, juntamente com os rapazes. Como Jean e Rick tinham-se mudado para Hong Kong, o apartamento de Mei Foo estava à nossa disposição, até vencer o contrato de aluguel. Resolvemos acomodar a moça ali, com mais três. Sara permaneceu lá, para ser a respon-sável. E assim teve início a casa das moças.

Outra grande dificuldade na reabilitação dessas jovens era que ninguém esquecia o passado delas. Nos crimes dos homens, parece que existe uma espécie de glória. Mas com as mulheres é diferente. Mesmo que se tornem crentes, ninguém esquece o que foram antes.

Embora não tenhamos podido manter a casa das moças por muito tempo, aprendemos muita coisa com a experiência. Angel aprendeu a ler um pouco. Nunca mais foi incomodada por ninguém e mais tarde casou-se com um ótimo rapaz crente.

Mais ou menos um ano depois, um certo juiz ligou para Jean e perguntou se ela poderia considerar a hipótese de receber em nossas casas uma mulher de meia-idade. Fora presa no aeroporto com dois quilos de ópio escondidos nas roupas. O juiz acreditava que isso fora um incidente isolado em sua vida, e estava disposto a enviá-la para nós, pois seria melhor para ela.

Jean explicou-lhe sucintamente que não tínhamos mais a casa de moças, mas concordou em ir falar com a mulher no dia seguinte, no tribunal.

Fui com Jean, e quando lá chegamos, o juiz mandou esvaziar o salão para que pudéssemos falar com ela o tempo que desejássemos. Era uma mulher chinesa, com seus quarenta e sete ou quarenta e oito anos.

Não queríamos que ela pensasse que seu futuro estivesse dependendo das coisas que nos diria e de sua reação à nossa mensagem, pois poderia passar por uma conversão insincera. Então falamos-lhe de Cristo, e de como ele removia o peso de seu pecado, dando-lhe uma nova vida com seu poder.

Respondeu-nos que estivera orando na prisão e que éramos uma resposta a suas orações. Recebeu a Jesus com um sorriso, ao sentir que seus pecados tinham sido perdoados, e depois fez uma oração fervorosa para receber o Espírito.

Jean olhou para mim. Olhei para ela. E sorrimos, pois dissemos quase juntas:

— É melhor dizermos ao juiz que vamos levá-la. Ah Ying passou a morar na Terceira Casa. Era muito igrejeira, a princípio, mas também meio contenciosa e de difícil convivência. Mas, aos poucos, ela foi melhorando, tornando-se uma pessoa totalmente diferente; resultado, talvez, de ela sempre orar no Espírito, quando estava passando roupa. E, às vezes, passava horas e horas...

— Meu Deus, não posso falar de Jesus a essas mulheres. Seria horrível, se elas se convertessem.

Eu costumava passar por algumas das velhas prostitutas e evitá-las. Sabia que Cristo pode derrotar o poder do vício de drogas, mas sabia também que os novos crentes precisavam de um lugar seguro onde pudessem desenvolver-se espiritualmente; e não tinhamos mais uma casa para moças. Então, o que fazer com uma daquelas "senhoras", caso se convertesse? Deixá-la na rua?

Mas uma noite não pude resistir ao impulso de falar a uma delas. Estava sempre sentada num caixote de laranjas. Não tinha onde morar. A única maneira de ela arranjar uma cama para dormir era conseguir um cliente, e assim ela passava o resto da noite no quarto alugado por ele.

Ah King já estava com quase cinqüenta anos, e, para suportar aquela vida de prostituição, tomava heroína. Quase sempre, essas duas coisas estavam intimamente ligadas. Ela sabia quem eu era, pois passara por ela várias vezes, naqueles anos todos.

Comecei falando-lhe sobre a mulher que lavava os pés de Jesus com as próprias lágrimas e os enxugara com os cabelos; ela era prostituta, e ele, o Filho de Deus, a amou e tratou-a com bondade; e ainda lhe dissera: "Perdoados são os teus pecados... vai-te em paz."

Ah King ouviu tudo aquilo e creu.

— Esse é o Deus que eu quero, afirmou. Expliquei-lhe como poderia receber o Senhor, e

ela orou em chinês, em voz alta, com a maior naturalidade. O velho que era seu cáften estava por perto. Ficou a observar-nos, ali sentadas com os olhos fechados, e pôs-se a dar gargalhadas. Mas isso não afetou Ah King. Continuou tranqüilamente a conversar com seu novo Senhor.

— Esse mesmo Deus vai dar-lhe poder para a oração, disse-lhe.

Daí a pouco ela estava orando numa belíssima língua estranha.

Uns dez minutos depois, ela ergueu os olhos, o rosto radiante de felicidade. Chegou então o momento que eu mais temia. Não tinha nada para dar a ela. Não tinha uma casa para abrigar prostitutas, e minha bolsa estava vazia.

— Sabe de uma cdisa, Ah King? Você não precisa mais recorrer aos homens para obter sua porção diária de arroz, falei com ela. Busque a Deus.

— Você está querendo dizer que ele vai cair do céu? indagou.

— Talvez, repliquei falando seriamente. Deus pode muito bem mandar arroz do céu para você. A partir de agora você não pode mais viver nesse tipo de vida.

— Pois da próxima vez que nos encontrarmos, disse ela, vou lhe contar como foi que o arroz veio.

Saí dali, deixando-a sentada no caixote de laranja. Não estava muito satisfeita de fazer

aquilo, mas resolvi confiá-la inteiramente a Deus.

Uma semana depois encontrei-a novamente.

— Já aprendi muitas coisas, disse-me ela. Acho que é certo Deus me dar dinheiro para o arroz, mas não para a heroína.

Foi a última vez que a vi. Mais tarde indaguei às outras prostitutas onde ela estava, e responderam:

— Ah, ela não trabalha mais nisso. Foi para um lugar desses aí, para se libertar da droga.

Gosto de imaginar Ah King num lugar qualquer, sentada, e Deus derramando arroz para ela, como chuva.

13

Testemunhos

Estava muito escuro, aquela noite, na Cidade Murada. Quatro ou cinco rapazes achavam-se em nosso pequeno salão do clubinho, assistindo a um jogo de pingue-pongue. Uma figurinha patética surgiu em dado momento, na claridade do ambiente. Era muito jovem e magérrimo. Notava-se claramente que era viciado em heroína.

Reconheci Bibi, o irmão mais novo de Winson. Estava fugindo da polícia. Chamei-o para que se sentasse num banco de madeira, e falei-lhe de Jesus. Tive a impressão de que ele começou a entender a mensagem, mas não ficou ali mais que uma meia hora. Prometeu-me que voltaria, e, de fato, alguns dias depois reapareceu. Falei-lhe um pouco mais, e disse-lhe que já tinha conhecimento suficiente para tomar, sozinho, a decisão de seguir a Cristo.

— Não posso mais continuar encontrando-o, pois estarei desrespeitando a lei. Vou orar por você, e quando estiver disposto a seguir a Cristo, pode me chamar, que irei com você à delegacia para se entregar. Acompanharei todo o seu processo, pois, se realmente se dispuser a orar, tenho certeza de que tudo sairá bem.

Mas ele não se entregou. Mais tarde, foi preso e mandado para a cadeia. Fui visitá-lo, mas, assim que foi solto, voltou às drogas. Um dia ouvi dizer que fora outra vez preso por dois crimes bastante graves. Uma das acusações era que ferira um jornaleiro e roubara o relógio dele. A segunda era de assalto. Logo que fiquei sabendo dos detalhes das acusações, senti que ele não era culpado de pelo menos uma delas. No momento em que supostamente estaria assaltando o jornaleiro, ele estava no clubinho conversando comigo. Fui vê-lo na prisão, e fiquei sabendo que estava disposto a confessar tudo, pois, embora fosse inocente das duas acusações, tinha cometido uns vinte roubos em outro lugar.

— Vou-me confessar culpado e acabar logo com isso, disse com um tom de resignação.

— Mas não pode, insisti, isso não é verdade. Diga ao juiz que você cometeu os outros crimes, mas diga a verdade.

No julgamento, ele se declarou inocente, mas foi considerado culpado, apesar de meu depoimento. Ao explicar o caso, o juiz disse que acreditava que eu estava falando a verdade, mas achava que a outra testemunha se confundira a respeito da hora do crime. E encerrou o caso.

Eu passara muitos dias no fórum orando, e acabei ficando conhecida dos policiais. No fim do julgamento, quando eu saía da sala do júri, um inspetor de polícia me deteve.

— Como você se envolveu nisso? indagou.

— Bom, acontece que sou crente.— Então, por que está depondo a favor

de um criminoso?— Sei que ele é criminoso, e sei que

praticou muitos furtos, mas esse aí ele não praticou.

— Pois eu também sou cristão, disse o policial. Procure ver as coisas por esse prisma. Quando esse pessoal comete um crime, geralmente sabemos quem o cometeu, mas nem sempre temos provas para prendê-lo. Por isso, os acusamos de crimes para os quais possamos "arranjar" provas. É duro, mas é justo. E a sociedade sai ganhando, concluiu ele.

— Mas, a longo prazo, repliquei, o efeito sobre a sociedade é negativo. Isso destrói o respeito pela lei, pela polícia e pela verdade. O criminoso aprende a pensar que ser preso não tem nada a ver com sua culpa ou inocência. É simplesmente falta de sorte sua.

— Mas, pelo menos, estão recebendo castigo pelos seus crimes, argumentou o inspetor.

— Mas não reconhecem que estão pagando pelos atos praticados, repliquei. E ficam fortemente revoltados por estarem presos sob acusações falsas. E quando saem, a primeira coisa que querem fazer, é praticar o crime pelo qual foram castigados. Acham que, já se que cumpriram a pena por ele, têm o direito de cometê-lo.

Afinal, o homem encerrou a conversa meio desajeitado.

— E, nunca tinha pensado nisso dessa maneira, comentou e afastou-se apressadamente.

Quando Bibi saiu da prisão, encontrei-o novamente. Seu rosto parecia acinzentado e tinha profundas olheiras. Voltou direto a tomar drogas. Prometera modificar-se, mas achava-se sem forças para tal. Os viciados têm uma frase que gostam de repetir quando vão a uma "boca" de drogas: "Meu coração ainda não tinha decidido, mas meus pés foram por si mesmos."

Bibi arranjou o emprego de coletor de lixo, a fim de comprar a droga. Era o mais baixo tipo de trabalho ali, mas ele tinha que

ganhar algum dinheiro para adquirir a heroína. Mas o que ganhava não era suficiente; e voltou então a roubar. Sempre que me via, dava um jeito de fugir. Mas geralmente eu descobria onde ele estava morando. Certa vez, uma emissora de televisão foi à Cidade Murada fazer um filme sobre nosso trabalho. Procuramos Bibi, e ele foi filmado em casa. A família transformou o acontecimento numa novela. A mãe chorava:

— Conserte a vida de meu filho, Poon Siu Jeh, dizia ela. Leve-o para sua casa e faça dele um homem bom.

É lógico que não era assim que as coisas se passavam. Bibi tinha conhecimento da verdade, sabia que só ele poderia tomar a decisão de modificar-se. Eu já tinha aprendido que havia um tempo certo para se pregar e falar, e um tempo em que não se falava mais. E este tempo chegara para ele; então disse-lhe que havíamos chegado ao fim da linha.

— Esta é a última vez que venho falar-lhe. Você já conhece o caminho da salvação. Agora é com você. Pode escolher se quer segui-lo ou não. Não quero vê-lo mais enquanto estiver nesse estado, pois você não precisava estar assim. Quando estiver disposto a mudar de vida, aí então pode me procurar.

Uma semana depois, ele veio.— Agora estou disposto, falou. Para mim,

chega. Não há outro jeito. Não consigo me livrar do vício sozinho. Não posso ficar em casa, senão irei vender drogas para comprar a minha. Por favor, ajude-me.

Oramos durante muito tempo. Bibi foi cheio do Espírito e começou a falar numa nova língua. Depois me disse:

— Agora, você tem que me levar para sua casa. Dei um suspiro profundo e respondi:

— Sinto muito, mas não temos vagas. Ele ficou muito irritado. Sua única salvação seria ir para uma das casas de Estêvão.

— Mas você tem que deixar eu ir para lá, berrou ele. Não pode querer que eu fique pelas ruas, pois continuarei a tomar heroína. E nenhum crente de verdade pode tomar essa droga.

Conversei com os Willans e com os obreiros da terceira casa, pedindo que o recebessem, mas recusa--se. Sara explicou:

— Não podemos recebê-lo, porque não estamos condições.

— Mas tem que receber, argumentei. Esse é o objetivo dessas casas, isto é, que os moços possam desenvolver-se na vida cristã. Agora você não quer deixar que eu leve um aí, porque deseja a casa bem acertadinha.

— Não será bom trazer nenhum rapaz para uma a que não esteja com tudo acertado, replicou ela com firmeza. Se os que estão aqui não tiverem um relacionamento sólido para suportar a vida de mais um, ele terá que esperar até que já estejam mais firmes.

Ela tinha razão. Era seu dever proteger os membros de "nossa família". Se eu fosse simplesmente colocando mais e mais pessoas ali, desordenadamente, a situação poderia tornar-se caótica, como já o fora antes.

Tive que procurar Bibi e dizer-lhe que não havia vagas mesmo. Encontramo-nos junto a uma barraca de lanches. Ele ficou furioso comigo, quando lhe dei a notícia.

— Bibi, disse procurando acalmá-lo, só por um momento, pare de olhar para si mesmo e de pensar que nossa casa é a sua salvação. Olhe para o céu. Olhe para o alto e pense naquele que criou o céu, a terra, o mar e os pássaros. É ele quem faz tudo. E foi ele quem decidiu que seu Espírito habitasse em nós. Por quê? Por que Jesus deixou toda a sua glória e veio aqui e foi chicoteado, morreu e ressuscitou para que tivéssemos seu Espírito. Não é maravilhoso pensar que o Espírito do Deus que criou o mundo todo possa realmente vir morar em nós? Pare de ficar pensando que nossa casa é a sua salvação e pense em como nosso Deus é grandioso.

Deixei-o naquela barraca, orando, e saí para conversar com outro viciado. Voltei meia hora depois e encontrei-o ainda ali, de olhos fechados e um leve sorriso no rosto. Chamei-o, mas não respondeu. Na terceira vez que o chamei, abriu os olhos com muita relutância. Contou-me que tinha visto Jesus. Ele estava no alto de uma montanha e Jesus se aproximara dele com a mão estendida, dizendo-lhe:

— Bibi, você quer me seguir?— Quero, Senhor. A quem mais eu

poderia seguir? replicou ele.Então o Senhor o tomara pela mão e o

conduzira por um caminho belíssimo.

— Era um lugar lindo. Havia flores lindas por ali, e pássaros, e o perfume era muito doce. Estávamos andando por aquele caminho, quando a ouvi chamar-me, mas não queria voltar.

Daquele momento em diante, em vez de ficar com a idéia fixa de que nossa casa era sua única salvação, passou a olhar para o seu Criador, esperando só nele. No dia seguinte, abriu-se uma vaga para ele em nossa terceira casa. E ele ficou ali dois anos. Foi um dos melhores rapazes que já tivemos lá. Durante o processo de libertação da droga, levou uma vida normal. Certo dia, seus familiares ligaram para Jean e Rick informando que o pai dele estava à morte, e o rapaz foi visitá-lo no hospital. O pai, que também se libertara do ópio e se tornara crente, disse:

— Agora estou pronto para ir para o céu, pois Jesus transformou meus filhos em homens bons.

Mas não morreu. Os filhos oraram por eles e foi curado.

Como havia vários obreiros trabalhando na Associação Estêvão, eu podia sair mais às ruas. Os viciados espalhavam a notícia do nosso trabalho, e pessoas de todas as partes da colônia procurava-nos em busca de ajuda. Um policial crente deu-me um bip, para que eu pudesse ser contactada onde estivesse, a qualquer momento. Assim achei-me cada vez mais envolvida em tribunais e julgamentos. Certo dia eu havia assistido a um julgamento e, quando saía, ouvi alguém me chamando:

— Poon Siu Jeh! Estão-me acusando injustamente! Ajude-me!

Olhei para trás e vi o rapaz que iria ser julgado em seguida, sendo levado para o tribunal. Não o conhecia. Mas pude perceber o desespero em seu rosto sujo. Eu não tinha condições de saber se ele estava falando a verdade ou não, e mesmo que o soubesse, não tinha direito de falar no tribunal. Entretanto, aquele rapaz estava para enfrentar aquela batalha sozinho. Tive uma inspiração súbita e levantei-me.

— Meritíssimo, disse, não conheço bem o acusado, mas creio que é possível que não tenha tido acesso a um defensor. Será que poderia suspender o caso até que façamos verificações nesse sentido?

O juiz ergueu as sobrancelhas. Era uma solicitação meio incomum. Virou-se para o acusado.

— Você deseja um representante? indagou.

— Quero, respondeu o rapaz. Mas depois que fui preso, não me deixaram dar um telefonema.

O juiz suspendeu o julgamento por vinte e quatro horas, e então fui falar com o rapaz. Fiquei sabendo que tinha o apelido de Sorchuen, e que tinha conhecimento a meu respeito por intermédio de seus "irmãos" de Chaiwan.

Tremia convulsivamente e seus olhos estavam vermelhos e lacrimejantes. Fungava o tempo todo.

— Não tenho muito tempo para lhe falar de Jesus, mas se você clamar a ele, ele o ouvirá e o salvará.

Imediatamente, os sintomas de carência da droga desapareceram, e suas feições relaxaram. Quando o vi no dia seguinte, tinha o rosto tranqüilo e feliz.

— Orei a Jesus, disse ele, e agora me sinto totalmente diferente.

Sorchuen foi declarado culpado das acusações que pesavam contra ele. Depois de sair da cadeia, foi preso de novo, mas telefonou-me da delegacia. Fui visitá-lo acompanhada de um excelente advogado. Fora preso sob a acusação de arrombar vários carros no distrito de Shaukiwan. Segundo ele, isso era mentira. Afirmava que no momento do crime ele se achava no cinema, assistindo a um filme pornográfico, em Wanchai. Terminado o filme, pegara um ônibus para ir a Chaiwan, mas fora detido por dois detetives que lhes ordenaram que descesse e fosse "falar". Pediram-lhe que os ajudasse a encontrar outro quadrilheiro de nome Morgwai, (diabo), e o levaram num carro particular até um cinema, à procura do outro. Ali, Sorchuen viu um amigo seu, mas não conseguiram localizar o "Diabo"; então os homens o levaram para a delegacia, e o indiciaram sob aquela acusação, depois de ele haver assinado uma declaração incrimina-tória na delegacia de polícia.

Como muitos dos outros rapazes, Sorchuen afirmava que apanhara para confessar o crime. Vim a saber que muitos não

chegavam a apanhar, mas tinham tanta certeza de que isso aconteceria, que assinavam as confissões, incriminando-se. Muitos acusados eram condenados com base apenas em sua confissão, sem testemunhas, provas, nada.

Eu e Davi, o advogado, resolvemos investigar os fatos por nossa conta. Ele escreveu à polícia solicitando o número da placa dos carros que supostamente Sorchuen tinha tentado arrombar. Fui procurar o "Diabo", mas soube que também tinha sido preso. Encontrei, porém, o amigo que o rapaz vira no cinema. Ele se lembrava bem do dia e da hora. Sorchuen estava preso e não poderia ter entrado em contato com esse amigo. O rapaz disse que ele o tinha visto três horas antes da hora em que, segundo os autos, ele fora preso em Shaukiwan. Fiquei convicta de que estava falando a verdade, já que as duas versões eram idênticas.

De posse das placas dos veículos fomos a Sheko, onde morava o dono de um deles. Conseguimos localizá-lo e perguntamos onde normalmente estacionava o carro.

— Normalmente, respondeu ele, no estacionamento de Shaukiwan.

Mas no dia do roubo, não o tinha deixado lá. Tínhamos, afinal, uma testemunha.

Toda essa agitação em torno de um caso de menor importância era muito incomum, e o escritório da promotoria ficou alerta.

Num dos intervalos do julgamento do caso, o advogado de acusação pediu para falar

comigo. Tinha ficado muito irritado com o interrogatório longo e minucioso levado a efeito pela defesa.

— Por que vocês dois estão-se dando tanto trabalho por um caso tão insignificante? indagou ele. Se não fosse isso, já estaria tudo encerrado a essa altura. De qualquer modo, é uma questão tão trivial.

— Será que não se deve apresentar a melhor defesa possível em favor do acusado?

— Claro, replicou, mas por que perder tempo com um caso desses? objetou.

— Porque cremos que o acusado é inocente, respondi.

Olhou-me grandemente espantado.— Mas a ficha desse homem tem dezenas

de condenações!— Estamos falando das acusações de

hoje. Tenho certeza de que não cometeu esse crime.

— Olhe, minha cara, já estou em Hong Kong há seis meses...

Entretanto, aquele foi um dos poucos casos em que me envolvi, nos quais o acusado não foi declarado culpado. E estávamos com Sorchuen nas mãos também. No dia em que tínhamos orado na cela da delegacia, eu lhe falara do fato de que Jesus está vivo. Mas ainda teria que aprender que a maneira de se tornar seu discípulo não era assistindo a um filme pornográfico.

Após este caso, Davi representou vários outros acusados, e certa vez provocou a abertura de um precedente jurídico em Hong

Kong. Foi numa ocasião em que alguns rapazes foram presos por terem-se declarado membros de uma sociedade tríade. Embora uma pessoa não possa ser presa por ser membro de uma quadrilha, se se mantiver calada, pode ser presa caso se declare como tal. Dois dos rapazes tinham assinado confissão nesse sentido. Mais tarde afirmaram que o tinham feito sob coação. Os outros se declararam culpados.

O julgamento de problemas semelhantes, isto é, de membros de uma sociedade tríade, geralmente era rápido, mas esse acabou-se tornando extremamente complicado. Os dois rapazes acusados tinham-se tornado cristãos havia mais ou menos um ano. Muitos de nós estávamos orando para que esse julgamento, de alguma forma, fosse para a glória de Deus. Um indivíduo que fosse membro ativo de uma sociedade tríade não poderia ser cristão, pois as duas coisas eram incompatíveis.

A polícia apresentou sua primeira testemunha. Ele se apresentou no tribunal e deu seu depoimento.

— Sou um dos dirigentes de uma 14K. Pelos regulamentos de uma sociedade tríade, uma vez membro de uma delas, o indivíduo é membro para sempre. Embora hoje eu fique o tempo todo dando depoimentos na polícia, ainda sou membro da 14K.

Argumentamos que nossos rapazes já não pertenciam à tríade, porque tinham recebido o batismo cristão, renunciando assim

à condição de membros dela. Perante o juiz os rapazes declararam:

— Já fomos membros da quadrilha. Agora não o somos mais.

Outra testemunha técnica foi um filólogo chinês que explicou que a confissão dos rapazes tinha sido traduzida para o inglês, como se eles tivessem dito: "Sou membro de uma sociedade tríade". Mas esse sentido era questionável, pois na língua chinesa não havia tempos verbais, nem presente nem passado. Nosso argumento era de que tinha dito realmente:

— Sim; fui membro de uma tríade.Depois apresentamos outra testemunha,

Ah Kei, que tivera na sua quadrilha a mesma graduação que o rapaz que testemunhara pela polícia.

— Também sou um número 426 da 14K. Mas tornei-me cristão e renunciei à quadrilha. Esses dois rapazes que estão sendo julgados eram meus irmãos menores. Já disse aos membros do grupo que não sou mais responsável por eles. Se quiserem seguir a Jesus, são livres para fazê-lo.

O juiz já tivera de passar várias horas escutando essa gente falar de batismo, conversão e etc. Normalmente, nesse tipo de caso, os indiciados eram logo condenados ou absolvidos.

— Não vejo por que um homem tenha que ficar marcado para toda a vida, disse ele afinal. Se ele deseja mudar de vida e tornar-se cristão, muito bem. Caso encerrado.

Uma razão pela qual não havia mais absolvições, era que o povo de Hong Kong não se dispunha muito a depor nos tribunais. Havia uma desconfiança geral da justiça. Mas eu, como era ferrenha defensora do sistema judiciário britânico, crendo que ele era justo, tentei convencê-los de que, se falassem a verdade, não poderiam deixar de ser justificados. Se tantos casos eram julgados desfavoravelmente a eles, isso se devia ao fato de eles próprios se omitirem tanto.

Como eu ia muitas vezes ao tribunal, comecei a notar certos indivíduos que apareciam com regularidade. Havia, por exemplo, uma velhinha com uma longa trança que lhe caía pelas costas. Tinha nas mãos uma espécie de lista, e ficava ali sentada a manhã inteira, declarando-se culpada de pelo menos umas vinte acusações, sob nomes diversos. Quando um desses nomes era chamado, ela se levantava e murmurava:

Yauh (presente).Em seguida, anotava diante do nome a

quantia a da multa a ser paga. Vim a saber que era assim que ganhava a vida. Como não tinha mais condições de ficar na rua vendendo seus artigos, ia ao tribunal responder pelas infrações de seus colegas vendedores de rua, para que pudessem continuar com seus negó-cios. Para isso, recebia uma pequena quantia.

Havia ali também um velho de setenta anos que fazia a mesma coisa. As acusações eram lidas:

— Uso de tóxicos e posse de instrumentos para consumo de tóxicos.

O velho acenava afirmativamente, muito satisfeito.

— Cinqüenta e oito condenações anteriores por infrações semelhantes.

E ele continuava a acenar que sim, sorrindo.

— Cem dólares de multa, ou cinqüenta dólares, e um dia de detenção.

E o homem se afastava com um amplo sorriso no rosto. Comentei com Ah Keung:

— Ele sempre tinha a má-sorte de ser preso.

— Não, não, explicou ele. Esse homem é um "ator". Ganha dos donos da sala de drogas para ser preso.

Quando os proprietários das salas eram informados de que a polícia ia dar uma batida, fechavam tudo, deixando ali somente um velho viciado, que então era preso e indiciado. Devido à sua idade e ao número de condenações anteriores, recebia uma sentença leve. A loja lhe pagava cento e cinqüenta dólares para fazer isso, e ainda lhe fornecia ópio de graça: assim ele podia cultivar seu vício e, depois de pagar a multa, ainda lhe sobrava algum dinheiro.

O pai de Ah Keung pediu-me certa vez que socorresse seu filho Ah Pooi, que tinha sido preso por ter roubado um rádio de um velho, fora da Cidade Murada. Mas, no momento do roubo, ele estivera dentro da cidade, conversando com uma velhinha. A mulher

negou-se a depor. O pai também vira os dois detetives levarem o rapaz, mas não queria ir depor.

— Pa mahfan, não quero envolvimento com a polícia. É muito perigoso, argumentava.

Como estava ligado à jogatina ilegal, achava que era preferível ficar em paz com a polícia, do que defender o filho. Mesmo assim desejava que eu o ajudasse. Expliquei-lhe que, como ele estava retendo uma informação de vital importância, eu não poderia fazer nada.

Eu tinha que me controlar muito, para não me deixar dominar pela raiva, quando a verdade era derrotada. Mas também tinha que tomar cuidado, para não ser usada por indivíduos inescrupulosos, que não tinham o mínimo interesse em mudar de vida.

Muitas pessoas foram tocadas devido a esses problemas no tribunal, e, se parecia que os tribunais terrenos eram injustos, era cada vez maior o número de pessoas que compreendiam o que era ser justificado nos celestiais. Um maravilhoso exemplo disso foi Suenjai, um criminoso que se reabilitou. Durante dez anos, ele tinha levado uma vida certinha, trabalhando arduamente para sustentar a esposa e quatro filhos. Certo dia foi preso sob a acusação de bater carteiras. Tive certeza de que não fizera aquilo. Foi um golpe muito duro para ele.

A esposa dele entrou em contato comigo e visitei-o na cadeia, onde aguardava julgamento. Estava muito ressentido e revoltado. Queria falar-lhe de Jesus, mas ele

não queria ouvir sermões; pus-me então a orar. Aí ele ficou calmo. Não tinha uma Bíblia em mãos, apenas um livrete com trechos do Sermão do Monte. Achei que não era uma literatura bastante adequada, pois não continha a mensagem da salvação. Não tendo, porém, outra coisa, deixei-a com ele, para que a lesse.

Na primeira vez em que fui visitar o centro de triagem, Suenjai estava sentado no meio de um pequeno grupo. Perguntei-lhe:

— Por que Jesus teve de morrer?— Porque está escrito: "Não penseis que

vim revogar a lei ou os profetas: não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem um Í ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra." Foi a resposta dele.

O Sermão do Monte levou-o à fé. Pediu a Jesus que entrasse em sua vida e recebeu o Espírito Santo.

Pouco antes do dia do julgamento, perguntei-lhe como iria apresentar sua defesa. Resolvera não apresentar defesa nenhuma. Ia apenas declarar-se inocente. Comecei a aconselhá-lo a não fazer isso, mas ele me interrompeu.

— A Bíblia diz: "Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar, vem do maligno."

Suenjai foi condenado. Embora fosse obrigado a ficar preso um ano e três meses por um crime que não cometera, conservou-se sempre alegre, nunca cessando de louvar a

Deus. Aliás, alguns de seus vizinhos, quando ouviram falar da maneira como ele se condu-zira no tribunal, ficaram tão impressionados, que me pediram que fossemos falar-lhes desse Jesus que tinha poder para transformar o coração do homem.

Um dia, Suenjai contou-me que ganhara para Cristo doze prisioneiros. Fiquei um pouco em dúvida, pois sabia que seus conhecimentos teológicos eram baseados apenas em três capítulos de Mateus, algumas conversas comigo, e em sua própria experiência.

— Bem, explicou ele, uma noite um dos companheiros da cela acordou aos berros, contorcendo-se na cama, como se estivesse sufocando. Percebi que estava sendo agarrado por um demônio. Então, levantei-me e disse: "Satanás, em nome de Jesus, saia dele!" Mas nada aconteceu. Falei de novo: "Saia dele, já disse." Fiz que ia dar um chute no espírito, e ele saiu, e o colega ficou calmo e tranqüilo. Os outros colegas me perguntaram:

— Que foi isso? O que você fez?— Foi Jesus, respondi.— Então disseram que também queriam

crer nele. E assim expliquei-lhes como poderiam fazê-lo.

Três dias depois que Suenjai foi solto, sua esposa fugiu com outro homem e se prostituiu. Mas ele permaneceu fiel em oração, e, em encontros posteriores com a mulher, ela ficou tão impressionada com a atitude de compaixão e perdão da parte dele, que acabou voltando para o marido.

Durante algum tempo, ele realizou reuniões de oração em seu pequeno apartamento, convidando todos os vizinhos. Um ex-detento que assistiu a uma dessas reuniões, afirmou:

— Quando vi o que aconteceu com esse meu amigo, não pude deixar de receber a Jesus em meu coração.

E Deus não operava apenas no coração dos criminosos, mas em várias ocasiões tocou profundamente na vida de pessoas ligadas aos processos. Quando Ah Kit foi julgado, eu, Jean e vários outros membros de nosso grupo fomos assistir ao julgamento.

Após o veredito, quando o juiz o confiou às nossas mãos, um inspetor de polícia procurou-nos mostrando-se muito interessado em nosso trabalho. Sugeriu que fôssemos almoçar juntos para continuarmos a conversa. Várias horas depois, ele conseguiu dizer o que estava querendo.

— Sei que o que vou dizer é meio estranho, principiou, mas, quando vocês entraram no tribunal hoje de manhã, olhei para vocês, e, bom... parecia que havia uma auréola na cabeça de cada um.

Não tive vontade de rir; pelo contrário, engoli em seco várias vezes.

Nós o convidamos para a reunião de oração dos sábados à tarde, e ele compareceu. Acho que nunca vi uma pessoa que ficasse tão tocada por uma reunião de oração. No final, comentou:

— Normalmente, aos sábados à noite, saio com os colegas para beber. Mas hoje estou vendo que vocês aqui estão realmente sendo inspirados por uma coisa que não compreendo bem.

Fiquei aliviada ao ouvi-lo emitir um comentário tão positivo; pois, durante a reunião, uma das moças se aproximara dele e lhe indagara sem rodeios se era salvo. Fiquei preocupada, pensando que ele pudesse ter ficado agastado com um "ataque" tão direto. Mas não. E ao sair, levou consigo um exemplar do livro de Jean.

Leu-o durante todo o domingo. Afinal, teve que ajoelhar-se e orar. Em seguida, ligou-nos e disse que queria receber o batismo no Espírito Santo.

— Não consegui dormir, explicou. Fiquei só pensando no que vi ontem à noite; vi gente falando em línguas; vi com meus próprios olhos como a vida dos moços foi transformada. E cheguei à conclusão de que Jesus tem que ser mesmo real. E hoje pela manhã orei a ele pedindo que entrasse em minha vida.

No domingo seguinte, ele foi batizado no mar, juntamente com a esposa e com um antigo quadrilheiro.

Logo, muita gente ficou sabendo da conversão do policial. Seus amigos notaram que sua vida mudara completamente. A conversão de Ted causou um grande impacto no Departamento de Polícia de Hong Kong.

Não muito tempo depois disso, um de seus colegas, que fazia oposição à sua conversão, disse-lhe:

— Pelo menos espero que você não tente mudar-me.

— Não, replicou Ted, não estou tentando modificar você. Sei que quando você se arrepender tudo vai-se acertar.

— Bom, mas se eu "apagar" antes?— É, realmente isso pode acontecer,

replicou Ted.

14

E Pôr em Liberdade os Cativos

Certo dia recebi uma belíssima carta de um chinês de Taiwan, que se encontrava preso no centro de triagem, aguardando julgamento. Na ocasião em que o conhecera ali, era um homem revoltado, cheio de ódio. Em suas roupas havia uma tarja branca, que indicava ser ele um indivíduo perigoso. Na mesma cela, estava com ele um rapaz da Cidade Murada, que lhe falara a meu respeito.

Então fui falar de Jesus a Ah Lung. O que ele esperava era que eu iria ajudá-lo a sair da prisão. Contudo, depois de ouvir-me, disse que queria crer no Senhor. Respondi-lhe que teria de perdoar os guardas da cadeia e abandonar os ressentimentos.

— Não me peça para fazer isso, resmungou. Nunca poderia amar esses homens.

— É lógico que não pode perdoá-los, enquanto não compreender que você foi perdoado.

Expliquei-lhe que, fosse o que fosse que tivesse feito, Jesus perdoaria seus pecados. A seguir, orei, e senti o impulso de falar em língua estranha. Então ele pôs-se a interpretar-me em voz suave.

— Deus me falou que não poderá me perdoar, enquanto eu não perdoar a outros. Então, voluntariamente, perdôo os guardas.

E ele se tornou um detento-padrão. Modificou seu depoimento, declarando-se culpado no tribunal. Mais tarde nos disse:

— Tive que reconhecer que fiz uma porção de coisas erradas. Foi a primeira vez em minha vida que admiti que estava errado.

Ah Lung testemunhou para um rapaz que estava aguardando o julgamento por crime de estupro, e que assistiu a um dos estudos bíblicos que eu realizara no centro.

— Vi o que aconteceu com Ah Lung, quando creu em Cristo. O que há nisso tudo que faz um homem durão tornar-se uma pessoa de coração brando? Quero conhecer este Jesus.

Expliquei-lhe que Jesus era o Filho do Deus to-do-poderoso, que morrera pelos pecadores.

— Você crê que ele era o Filho de Deus? perguntei. -

— Não entendo bem essas coisas, respondeu, os olhos fixos no tampo da mesa.

— Mas você deseja crer?— Está bem, respondeu, continuando

com os olhos baixos.— Crê que ele morreu pelos seus

pecados?— Isso também eu não entendo.— Não tem importância se você não

compreende bem essas coisas. Deseja crer nisso?

— Está bem, respondeu, ainda sem erguer a cabeça.

— Crê que ele ressuscitou dos mortos?— Ah, creio, disse prontamente, e afinal

ergueu o rosto.— Por que tem tanta certeza disso, mas

não tem certeza das outras coisas? indaguei curiosa.

— Porque senão você não estaria aqui na cadeia conversando comigo.

— Pois bem, você deseja segui-lo? perguntei.

— Se ele é o Deus verdadeiro, é lógico; a quem mais eu iria seguir?

— Está bem. Jesus lhe dará poder para viver a vida cristã, pois ele não espera que você tenha essa vida obedecendo a um conjunto de regrinhas. Isso é impossível. Ele irá dar-lhe seu Espírito, para que este o ajude nisso.

Duas semanas depois, vi no jornal que seu caso tinha sofrido uma reviravolta. No julgamento, ele se dirigira ao juiz e dissera:

— Meu advogado instruiu-me para dizer-lhe que sou inocente, mas tenho que confessar que sou culpado, pois agora creio em Jesus.

Foi sentenciado a nove anos de detenção. Quando fui visitá-lo na penitenciária, sorriu para mim.

— Estou tão feliz de saber que meus pecados foram perdoados, Sr.ta Poon, exclamou ele.

E nunca cessava de testemunhar de Jesus aos outros, dizendo:

— É maravilhoso saber que Jesus levou sobre si todos os nossos pecados, até o tão terrível estupro.

Essa atitude se acha em franco contraste com a que vi em Daih So, quando fora visitá-lo, havia dois anos, no mesmo lugar. Não tivera permissão para utilizar uma sala privativa, e conversara com ele no salão geral. Os prisioneiros ficavam dentro de um compartimento, e a parede de separação consistia numa telinha muito fina, que não me permitia ver claramente suas feições.

Daih So tinha apenas trinta anos, mas como era viciado em heroína desde os treze anos, parecia mais um velho. Estava sempre babando, mas eu gostava muito dele, pois parecia haver uma aura de inocência em torno de sua pessoa. Certa vez, ele me deu a mais clara definição de pecado que eu já ouvira até então.

— O que é pecado? perguntara-lhe.— Isso é simples, replicara. Pecar é andar

em nossos próprios caminhos.Mas aquele dia na prisão, sua atitude era

outra.— Não adianta ficar conversando comigo,

Sr.ta Poon, falando que tenho de largar as drogas. Isso é impossível. Também não me peça para orar. E se deixar uma Bíblia aqui, não vou lê-la.

E assim dizendo, deu-me as costas, para encerrar a conversa.

Saí dali profundamente desolada, mas continuei orando por ele. Aquele pobre homem

estava convicto de que não poderia parar de tomar drogas na cadeia.

Mais ou menos uns seis meses depois, eu .estava andando pela Cidade Murada, quando um desconhecido meio gorducho correu para mim.

— Poon Siu Jeh! Sou eu, Daih So!— Daih So, você saiu da cadeia? E por

que está tão bem assim?— Eu queria mesmo contar a você. No dia

em que foi lá falar-me de Jesus, eu não queria ouvir, e chamei o guarda para me levar de volta. Mas quando cheguei à porta, olhei para trás e vi você sentada, parecendo tão triste. De repente, senti uma forte convicção e pedi ao guarda para voltarmos. Entretanto, quando voltei, você já tinha saído. Então fiz o que tinha me falado. Cheguei à cela e orei em nome de Jesus, e assim fiquei liberto da droga.

Houve ocasiões em que mandamos pessoas para a cadeia, em vez de ajudá-las a escapar dela. Muitos dos rapazes que chegaram à nossa casa tinham cometido crimes, pelos quais nunca haviam sido presos.

É verdade que tinham deixado para trás todo o passado, mas, às vezes, algumas coisas ficavam a importuná-los, e tinham que reparar o erro no plano humano também.

Ah Wah, por exemplo, queria ir à delegacia para entregar-se, por ter deixado de se apresentar quando devia. Ele fora preso em julho por posse de drogas, mas foi solto sob fiança, com a instrução de apresentar-se no tribunal daí a duas semanas. Naturalmente, ele

não tinha a mínima intenção de apresentar-se. Mas não sabíamos disso, e o recebemos numa das Casas de Estêvão em novembro.

Os meses foram-se passando, e sua consciência começou a importuná-lo. Então ele confessou que deveria ter ido a julgamento. Conversando com Ah Wah achei que a possibilidade de ele ser liberto era ínima. Quando cometera o último delito, encontra-se cumprindo pena em liberdade. Então, era bem provável que fosse preso ao apresentar-se. Seria muito difícil evitar isso. Disse a ele e a todos os rapazes de nossas casas que orassem.

Todos oramos muito em línguas naquela manhã de segunda-feira. Afinal, seguimos para a delegacia, onde nos serviram um cafezinho e pediram que esperássemos. Dissemos várias vezes que Ah Wah deveria ser preso, mas não pareciam muito interessados. Afinal, levaram-no para tirar impressões digitais, para fazer uma identificação precisa. Estava com tão boa aparência, que os homens que estavam tirando as impressões pensaram que fora ali para se candidatar a um emprego. Afinal ele conseguiu convencê-los de que fora entregar-se, explicando que Jesus transformara sua vida.

Finalmente, chegou o momento em que fomos convidados a entrar numa viatura, e nos dirigimos para o tribunal, orando todo o tempo. O juiz perguntou-lhe por que não fora apresentar-se, e ele respondeu:

— Eu era viciado, e sinto muito ter agido assim. Mas agora creio em Jesus, e vim para entregar-me.

— Meu parabéns, disse o magistrado, tomou uma decisão muito sensata. Desejo-lhe muitas bênçãos nesta nova vida. Pode ir.

Ah Wah apenas teve que assinar um compromisso de boa conduta, e, depois disso, nunca mais foi preso. Ficou muito feliz e aliviado, e quando chegou de volta, houve um grande regozijo em nossas casas.

De meu contato com tantos detentos, aprendi a fazer diferença entre os termos hauh-fui (sentir muito) efui-goih (arrepender-se). Muitos criminosos ficavam bastante sentidos por terem sido presos, mas bem poucos se arrependiam do erro cometido.

Um dos que estavam constantemente errando era Ah Bill, que ficou em nossa casa apenas dez dias, e afinal resolveu que já estava apto a cuidar, ele mesmo, de sua vida. Mas não sabia o que fazer com a liberdade e com as decisões que tinha de tomar. Foi preso e escreveu-me da cadeia.

Querida Pullinger,Faz muito tempo que larguei o povo aí da

casa. Espero que Jesus os abençoe em tudo.Terei que ficar aqui dez meses, depois

então poderei ter minha nova vida de novo. Espero poder arrepender-me e ser aceito pelo Senhor mais uma vez. Orem por mim, sim?

Fui transferido de área, pois fiz uma coisa muito errada aqui na prisão. Mas agora está tudo certo, pois aprendi a ser obediente. Você

tinha-nos visitado e ensinado a Bíblia para nós, mas não dei ouvidos e desobedeci aos regulamentos.

Logo que vim para a prisão, eu costumava ir à capela todos os domingos e orava em língua estranha todas as noites. Alguns dos homens aqui diziam certas coisas a meu respeito. Diziam por exemplo:

— Você crê em Cristo, mas mesmo assim tem que ficar preso.

Naqueles momentos, eu ficava com muita raiva, mas quando o milagre de Deus entrou em meu coração, consegui esquecer as palavras deles.

Agora estou seguindo a Jesus. E para terminar, quero dizer uma palavra aos novos irmãos. Deus nos tem dado muitas oportunidades, mas será que a» estamos levando a sério? Tenho passado por muitas dificuldades, mas apesar disso pude receber um pouco de sua graça.

Ficaria muito feliz de receber uma carta sua no mês que vem. E eu responderia para fazer-lhe algumas perguntas sobre a Bíblia.

Espero que esteja gozando boa saúde.Ah Bill.Ah Bill foi um dos que descobriram que

era mais fácil ser crente dentro de uma prisão. Não que ele gostasse da cadeia; claro que não. Mas é que ali não tinha que tomar ele mesmo as decisões de todos os dias. E cada vez que era liberto, tinha menos capacidade de viver do lado de fora.

Outro rapaz, Ah Kit, foi entregue aos nossos cuidados e falou-me de Kwok, um amigo da cadeia. Embora Kwok fosse policial, também era membro de uma tríade, e participara de uma batalha entre quadrilhas. Um dos rapazes de outra quadrilha fora morto durante a briga. Cinco dos quadrilheiros foram julgados.

Era um rapaz tranqüilo, do interior, vindo de Novos Territórios. Era muito cortês, de aparência limpa. Quando lhe falei de Jesus, só conseguiu compreender que ele era o Filho de Deus.

— Mas que esperança há para mim? repetia ele tristemente. Que futuro me espera?

— Você sabia que dois homens da Bíblia, dois homens que Deus usou muito, mais que todos os outros, tinham sido assassinos?

Ele teve uma expressão de espanto.— Um deles era Davi, continuei, e o outro

Paulo. Paulo foi chamado para pregar a Boa-Nova do perdão de Deus. E ele tinha matado os cristãos. Mas, ao usar este homem, Deus mostrou todo o significado do evangelho.

— Quer dizer então, disse Kwok, que além de ser perdoado, posso vir a trabalhar para Deus?

Essa idéia de que poderia ser útil para Deus foi de tanto estímulo para ele, que fez uma oração jubilosa, como se seu coração estivesse estourando de regozijo.

Dois dias depois fui visitá-lo novamente. Estava radiante.

— Sr.ta Poon, disse ele, tenho uma paz tão grande no coração. Agora sei que meu passado foi perdoado e tenho esperanças para o futuro. Não me importa se serei condenado ou não. Agora tenho esperança.

No dia seguinte, ele foi sentenciado à morte. Lembro-me de que fiquei a observá-lo no momento em que era pronunciada a sentença. Estava profundamente calmo. Mas o outro rapaz que fora condenado à morte juntamente cóm ele estava aterrorizado. Levantou os braços algemados até a altura do pescoço fazendo a mímica do enforcamento, e riu.

Nos dois anos que se seguiram não consegui mais entrevistar-me com Kwok. Por fim, sua sentença foi comutada para prisão perpétua.

Afinal, quando pude vê-lo novamente, sentia-me muito nervosa, pois conversara com ele apenas duas vezes, tendo-lhe falado muito sobre Deus. Ele sabia que Jesus era o Filho de Deus, que ele o amava e morrera por ele, e tinha orado e recebido o poder do Espírito Santo. E era só isso.

— Coitado, pensava eu, provavelmente já esqueceu tudo que lhe falei.

Quando entrei, não sabia exatamente o que ia encontrar. Mas ele veio correndo para a sala de visitas, muito radiante. Nunca tinha visto uma alegria tão pura no rosto de um homem.

— Oh, Poon Siu Jeh, falou quase sem fôlego, tudo isso é maravilhoso! Tenho uma paz

tão grande no coração, uma alegria tão grande de saber que meus pecados estão perdoados. Oro todos os dias em minha cela, de manhã e à noite. Oro naquela língua que Deus me deu, e sei que ele compreende o que vai em meu coração. Tenho falado aos outros presos sobre Jesus, e uns seis deles creram também. Aqui está o nome deles.

Deu-me uma lista com os nomes, e mais tarde os visitei. Um deles era o rapaz que fizera a mímica do enforcamento no dia do julgamento. E eles eram realmente crentes. Jamais conheci um grupo de homens que entendesse o que significava Jesus ter dado a vida por eles, melhor do que aqueles ali.

Dei uma Bíblia a Kwok, e ele leu o Novo Testamento em dois meses. E leu-o duas vezes antes que eu o visse novamente e ele pudesse perguntar-me:

— Ah, Sr.ta Poon, o que significa "gentio"?Os seus convertidos também se

desenvolveram bastante. Tinham seus próprios cânticos, que o Espírito Santo lhes inspirava. E oravam uns pelos outros, quando adoeciam.

Certo dia visitei Kwok, e estava um pouco temerosa de que não me dessem permissão para vê-los mais.

— Não se preocupe conosco, Poon Siu Jeh, disse-me sorrindo, procurando reanimar-me. Estamos muito bem. Estamos orando por você.

São os homens mais livres que conheço.

Recebi várias cartas deles, e alguns jovens de nosso grupo escreveram para eles também, inclusive alguns estudantes.

Prezado William,"Graças sejam dadas ao Senhor Jesus

Cristo, pois pelo seu maravilhoso nome nós nos conhecemos. Glória a Deus!

"Quero agradecer-lhe muito por ter-me escrito palavras de encorajamento e ensino, para eu compreender o amor de Deus. Jackie costuma visitar-nos aqui na prisão todos os meses, para explicar-nos o evangelho. Realmente estamos muito tocados por isto, pelo grande amor de Deus. Todas as vezes que ela vem, nos sentimos muitos felizes. Acredito firmemente no que a Bíblia nos afirma sobre Jesus Cristo ter morrido por nós, e, com toda sinceridade, espero fazer o máximo por ele.

"Pelo poder do Espírito Santo, Deus me tem dado muitas oportunidades de testemunhar a outros aqui, e muitos deles querem falar com Jackie, mas tenho a impressão de que têm segundas intenções. Mas eu apenas oro para que o Espírito Santo opere no coração deles, para que sejam totalmente transformados.

"Por favor, ore por nós aqui."Saúdo-o no mome de Jesus.Kwok."Na primeira vez que visitei Ah Lung

conheci um outro prisioneiro que estava sendo julgado por ter tentado entrar em Hong Kong, com uma grande quantidade de heroína, a maior que já se descobrira num navio. Logo

que o conheci, começou a discutir comigo sobre os pormenores de seu processo.

— A única razão por que estou aqui, disse-lhe, é falar-lhe sobre Jesus.

— Mas não posso tornar-me cristão, replicou Go Hing. Deixe-me contar-lhe uma história.

Há mais de vinte anos, uma familia chinesa fugiu da China para Taiwan. Nessa família havia um garotinho de mais ou menos quatro anos. Certo dia, ele saiu de casa e foi brincar com um amigo no pátio da escola. Ali havia uma lagoazinha. E ele caiu dentro dela. O amiguinho dele ficou tão apavorado, que saiu correndo e não disse nada para ninguém.

Horas depois, o diretor da escola voltou ali e viu, horrorizado, o corpo do menino boiando na água. Puxou-o para fora, mas não conseguiu reanimá-lo mais. Mandou chamar os pais, e a mãe ficou fora de si de desespero, e insistiu para que o levassem a um hospital. Naturalmente, já era tarde demais para salvá-lo, e os médicos deram o atestado de óbito. Afinal, com muita tristeza, a mãe levou o corpinho do filho para casa e vestiu-o com uma mortalha. Bem no meio da noite, o garoto sentou-se e disse:

— Por que estou vestido com essas roupas? A mãe pensou que se tratasse de uma visão.

— Você se lembra de que caiu dentro da lagoa? indagou ela.

— Lembro. Estava afundando na água e abri a boca para gritar pedindo socorro, mas a

água entrou por ela. Nesse instante, vi um homem vindo em minha direção.

— Um homem? Quem era ele? indagou a mãe.

— Bom, ele veio e me tirou da água, respondeu o garoto.

— Sabe o nome dele? perguntou ela.— É Jesus, replicou o menino.Aquela família nunca tinha ouvido falar

de Jesus antes. Mas, daquele dia em diante a mãe e toda a família tornaram-se discípulos de Jesus.

Go Hing contou-me essa história com muita emoção. Depois perguntou:

— Sabe por que conheço essa história? Eu era aquele menino. Voltei da morte, e desde então minha família sempre foi crente. Mas não posso ser crente porque eu conhecia a verdade, e não segui a Jesus.

— Pois tenho uma coisa muito boa para lhe dizer, Go Hing. Jesus não espera que o sigamos com nossas próprias energias. Portanto, se você disser a ele que está arrependido e pedir-lhe perdão, ele o perdoará. Ele lhe dará poder para segui-lo. Também lhe dará uma nova língua, para se comunicar com ele.

Ali mesmo nós oramos, e ele começou a orar em língua estranha; depois pôs-se a chorar. Após alguns instantes disse:

— Essa é a primeira vez que choro, desde que me tornei adulto. Agora sei que Jesus está comigo.

Passados alguns dias, fui visitá-lo novamente e conversei com ele.

— Você sabe que deve confessar a verdade no tribunal, não é?

— Estou com muito medo, replicou. Não vou conseguir.

— Mas você tem de falar a verdade. Você agora é crente.

— Se me confessar culpado desse delito, serei condenado à morte. Em Taiwan, dão pena de morte para tráfico de drogas, assalto à mão armada e por assassinatos.

— Estou só dizendo que você tem de falar a verdade, disse-lhe. Sabe que Cristo salvou sua vida, e não pode obedecê-lo apenas parcialmente.

O rapaz foi sentenciado a doze anos de detenção. Pouco antes de voltar à Inglaterra, pude ir visitá-lo na Prisão Stanley. Logo que olhei para ele através do vidro de comunicação, começou a chorar, mas estava sorrindo.

— Só quero lhe dizer uma coisa, falou. Sou conhecido como um homem muito durão. Fui marinheiro muitos anos, e não tenho medo de ventos e ondas bravias. Quando fui preso, sabia que ia passar muitos anos sem ver minha esposa e filhos, mas não chorei. Só houve duas ocasiões em minha vida em que chorei. Uma foi quando você me visitou na prisão e recebi a Jesus e seu Espírito Santo; e a outra é agora. Hoje estou chorando de alegria, porque sei que meus pecados foram perdoados. Quando você me disse que eu devia confessar a verdade, eu

não tinha a menor intenção de fazê-lo, mas fiz um acordo com Deus. Eu disse a ele: "Se ela vier me visitar hoje, à tarde confessarei a verdade." Você veio, então revelei à polícia que havia mais heroína naquele navio. Natu-ralmente, meus colegas ficaram furiosos comigo, porque havia ali uma fortuna escondida. A polícia não ficou satisfeita, porque isso a deixou muito mal vista. O juiz ficou com raiva e me deu uma sentença pesada.

E aqui ele sorriu para mim e concluiu.— Sei que tenho uma sentença pesada,

mas meus pecados estão perdoados, e um dia irei para o céu. E isso é melhor do que ter uma sentença leve aqui, e depois ir para o inferno.

15

Andar no Espírito

Certa vez, um marinheiro americano resolveu me passar um sermão por causa do meu dom de línguas. Achava que eu estava exagerando um pouco. Ele próprio tinha o dom, mas exercitava-o com muita parcimônia. Expliquei-lhe que sempre falava em línguas, quando andava pela Colônia, pelas ruas. E convidei-o para acompanhar-me numa de minhas rondas por Hong Kong, orando os dois, sem cessar.

No dia seguinte, nos encontramos e fomos caminhando do Setor Oeste até o cais.

Numa das ruas, uma rua tão íngreme que era feita de degraus, vimos um homem que morava num armário. Durante o dia, ele vendia verduras ali, e, à noite, subia nele para dormir. Com uma população de quatro milhões e meio de pessoas, ocupando cada metro quadrado do lugar, havia famílias inteiras morando num só cômodo.

Um pouco mais abaixo, encontramos uma velhinha que estendeu-nos uma tijela de plástico. Ninguém na cidade tinha dinheiro ou

espaço sobrando, então ela ganhava a vida mendigando.

Continuando a caminhada, vimos uma garotinha de mais ou menos cinco anos, carregando às costas uma criancinha, pois os pais tinham que trabalhar. Ninguém estava cuidando da pequenina e suja menina de cinco anos, mas ela estava cuidando do nenê.

Depois passamos por um rapazinho que pagava para ter o privilégio de dormir em cima de um balcão de loja. Parara de estudar logo após o curso primário.

Queria continuar estudando, mas os pais o haviam tirado da escola para trabalhar. Todas as vezes que o encontrava, pedia-me para falar inglês com ele, para praticar um pouco e poder conseguir um emprego melhor.

Chegando ao fim da rua, eu tinha a sensação de que passara toda a minha vida ali, e que poderia amar todas aquelas pessoas e conhecê-las bem. Mas entramos na outra rua, que era uma réplica da primeira. E depois desta, outra igual. Contei ao marinheiro como havia perguntado a Deus que setor de sua obra iria caber a mim, e ele me respondera enviando-me para a Cidade Murada, e concedendo-me os maravilhosos eventos dos doze anos seguintes.

Aquele marinheiro ficou pasmado com essa nova visão que tivera de Hong Kong. Mas meu objetivo naquele dia fora incentivá-lo a andar no Espírito. Então comecei a orar, à medida que caminhávamos mais. Atravessamos a baía e chegamos à Rua Jordan.

Entramos num prédio que alardeava bordéis e dan-cings, um lugar onde os viciados em heroína se reuniam. Havia várias pessoas deitadas pelas escadas. Estávamos procurando um certo marginal. Eu fora ali à procura de Mau Wong, que era "protetor" de várias prostitutas, e assim ganhava bastante dinheiro.

Quando o encontramos, estava em péssimo estado. Sentia forte dor de estômago e vomitava muito. Não se achava em condições de ouvir-me falar de Jesus, e então eu e o jovem americano simplesmente impuse-mos as mãos sobre ele e oramos silenciosamente, no Espírito, pedindo sua cura. Imediatamente, a dor passou, e em sua fisionomia surgiu uma expressão de espanto. Podia afinal sentar-se tranqüilamente e escu-tar-nos. Aceitou a Jesus e foi batizado no Espírito no mesmo instante. Mal termináramos de orar, quando ele se ergueu, saiu correndo, e voltou daí a pouco trazendo consigo um homem de magro e chupado. Mau Wong explicou que aquele seu amigo estava com dor de dente. Será que poderíamos orar por ele? Então oramos por aquele outro também. Foi curado na hora, e depois lhe falamos de Jesus. Ele também quis receber a Cristo e seu Espírito, e o fez imediatamente.

Tive oportunidade de visitar Mau Wong várias vezes, para falar-lhe mais a respeito de Jesus. Da segunda vez em que o vi, explicou-me que, como era crente, tinha de ganhar a vida de forma honesta, e que iria tornar-se engraxate.

Eu e o americano continuamos nossa ronda por Hong Kong. Atravessamos a baía de volta e pegamos um micro-ônibus para ir a Chaiwan. Eu ia orando o tempo todo, em voz baixa. O moço achava que orar num ônibus já era demais, mas depois do que vira na Rua Jordan, pôs-se a orar também. O dia inteiro nós oramos sem cessar, parando apenas para as refeições, ou para conversar com as pessoas que encontrávamos pelo caminho.

Em Chaiwan, fomos para um salão de drogas. Receberam-nos como se já estivessem nos esperando.

— Poon Siu Jeh, disse-me um viciado, pode arranjar-me uma Bíblia?

Um velho indagou:— Onde posso ir para ouvir mais a

respeito de Jesus e sua doutrina?— Você não precisa ir a um culto, para

ouvir falar de Jesus, respondi. Eu mesma posso falar-lhe.

Sentei-me ali e pus-me a explicar o plano da salvação, e um bom grupo foi-se aglomerando ao nosso redor para escutar-nos. O velho aceitou a Jesus com a sinceridade de uma criança. Depois passou a freqüentar regularmente nossas reuniões aos sábados.

Quando saímos, Ah Wing nos acompanhou. Era um dos homens que vendia heroína. Paramos numa barraca de lanches para comer, e ele também. Mas era só isso que queria, uma refeição gratuita. Eu estava-lhe falando de Jesus, mas ele estava-se apressando para podermos ir logo comer.

— Está disposto a crer que Jesus é o Filho de Deus? indaguei.

— Não tenho certeza, replicou. Talvez.— E você crê que ele morreu por você?— Não entendo isso.— Isso não tem importância. Quer crer?— Está bem, resmungou ele.— Está disposto a crer que ele

ressuscitou dos mortos?— Bom, acho que ele deve ter

ressuscitado mesmo, aquiesceu.— E você quer segui-lo?— Ah, quero, isto é, se ele é mesmo o

Deus yerdadeiro, é lógico.— Ah Wing, por que não pergunta a Deus

se Jesus é o Filho dele ou não? Tenho certeza de que ele responderá, disse-lhe, e pus-me a orar silenciosamente, fazendo um aceno ao americano, para que se juntasse a nós.

Alguns instantes depois, ergui a cabeça, julgando que já havíamos orado o suficiente. Mas, quando olhei para aquele traficante de drogas, vi que ainda estava orando, e continuou a orar por muito tempo. O ma-rinheiro fora sentar-se numa outra banqueta, procurando dar a entender que não tinha nada conosco. Mas, quando viu a expressão do rosto de Ah Wing, sua atitude mudou inteiramente. Suas feições tinham uma aparência celestial. Afinal, quando levantou o rosto, perguntei:

— O que foi que viu?— Bem, quando estava orando, vi uma

espécie de um quadro, e acho que era Jesus. Estava sentado a uma longa mesa e havia

outros homens em torno dela. Estavam passando uns para os outros um pedaço de pão, e depois um cálice de vinho, e todos bebiam.

Expliquei-lhe que aquilo significava, que Jesus havia dado seu corpo e seu sangue por nós.

Na continuação de nossa caminhada, mais duas pessoas se converteram, e meu amigo americano não precisou mais de argumentos sobre o valor de se orar no Espírito.

O marinheiro escreveu ao casal Willans indagando se poderia trabalhar conosco, depois que desse baixa da marinha. Eles responderam que àquela altura poderíamos ter cinco casas, cinqüenta, ou nenhuma. E que estaríamos nas mãos de Deus, para agir do modo que ele determinasse, quer nos mandasse ir para a China, ou incumbisse-nos de instalar mais doze apartamentos para os rapazes.

Muitas vezes, não tínhamos onde abrigar aqueles que ganhávamos para Cristo. Eu achava que tinha a responsabilidade de cuidar de cada um, até que ele acertasse a vida. A maioria deles não tinha um lar, nem roupas, lutavam com sérios problemas de perso-nalidade, bem como vício de drogas e doenças diversas.

Mais tarde, senti que devia voltar a Chaiwan e procurar Ah Wing para fazer com ele um trabalho de consolidação. Não o encontrei, mas vi Ah Kwan, que conversava com alguns

traficantes de droga. Todos me trataram muito bem, mas senti que devia dizer-lhes que, embora Jesus os amasse e eu também, o negócio que faziam era repulsivo. Ah Kwan disse que só poderia arrepender-se na semana seguinte, pois precisavam dos lucros dos três dias seguintes. Respondi-lhe que ninguém pode escolher a hora para se arrepender, e que se ele não seguisse a Jesus imediatamente, iria preso dentro de poucos dias. Quatro horas depois, foi apanhado e sentenciado a trinta dias na cadeia. Então espalhou-se em Chaiwan o boato de que eu era profeta.

Nunca mais vi Ah Wing, o traficante, mas confiei plenamente em que Deus cuidaria dele melhor do que eu poderia fazê-lo, já que ele o ama mais que eu.

Voltei então ao ponto de partida: primeiro, crera que Deus pode curar um viciado em drogas instantaneamente. Depois, que ele só poderia firmar-se, se eu pudesse fornecer-lhe uma atmosfera de segurança. Fi-nalmente vim a crer que poderia deixá-los inteiramente aos cuidados do Senhor.

Um outro irmão carnal de Goko voltou do Canadá. Era um homem alto, de modos brandos, impeçavelmente vestido. Conhecemo-nos no casamento de Johnny. Ele convidara membros de sua antiga quadrilha para que seu casamento fosse um testemunho para eles.

— Tenho que dar-lhe um aperto de mão, Sr.ta Pullinger, disse-me o irmão de Goko. Criei-me na Cidade Murada com esses rapazes, e

decidira estudar direito para ajudá-los. Mas agora estou vendo que não há mais nada para eu fazer. Você já fez tudo.

Prontamente recusei seus louvores, explicando-lhe quem realmente fizera toda a obra.

Fomos caminhando pelas ruas da Cidade Murada em direção ao clubinho. Muitos dos negócios ilícitos da Cidade Murada haviam-se fechado. Isso se devia em parte ao fato de que muitos dos rapazes da 14K tinham-se convertido.

O irmão de Goko entrou ali e logo gostou. Nas noites seguintes, assistiu às nossas reuniões e conversou comigo.

— Como resolve seus problemas de dinheiro? indagou ele um dia.

— Ah, Deus cuida de nós, repliquei. Quando precisamos de dinheiro, oramos.

— Está bem, mas, falando de maneira prática, de onde ele vem? Ele não cai do céu, cai?

— Bem, isso até pode acontecer, respondi. Naquele momento bateram à porta e entrou um velhinho, que me entregou um envelope.

— Poon Siu Jeh, disse ele, eu estava andando pela rua e uma pessoa me entregou esta carta.

Olhei para ela. Estava escrita em inglês: "Jackie Pullinger — Walled City (Cidade Murada)." E era só. Abri-a, e dentro havia a quantia de cem dólares, enviada por um homem que eu não conhecia e de quem nunca

ouvira falar. Mostrei aquilo para o irmão de Goko, e ele ergueu as mãos.

— Eu me rendo, falou. „Depois ele se foi, e saí por aquelas ruas

sozinha, passando pelas prostitutas, pelos cinemas pornográficos, pelos salões de drogas e jogatina. Passei pelo lugar onde, um ano antes, tinha presenciado um começo de briga entre dois desconhecidos, brandindo facões.

Saí da cidade e passei pelo local onde estivera o prédio da Rua Lung Kong; era apenas um monte de entulho. Lembrei-me de que Goko morava no edifício do outro lado da rua.

Alguns meses antes, sua esposa havia desaparecido, após perder uma grande quantia em dinheiro no jogo. Estava com muito medo de voltar para casa, sabendo que ele iria castigá-la severamente. Então raptou um filho dele com uma antiga amante, e escondeu o garoto, de apenas quatro anos, num apartamento. Depois telefonou para ele e disse que devolveria a criança, se ele perdoasse sua falta. Ele não quis prometer nada, e logo colocou os quadrilheiros na pista do apartamento. Mas a esposa dele não queria ficar à espera de que ele a encontrasse. Aterrorizada com o marido, forçou o garotinho a beber veneno e depois bebeu também, e ambos morreram.

Eu tinha feito o propósito de ver Goko pelo menos uma vez por ano, e quando nos encontramos outra vez para tomar chá, apresentei-lhe minhas condolências. Fez uma

expressão de desdém quando mencionei a esposa, mas pude sentir que sofria pela perda do filho. Percebi nele também medo da solidão, e como queria tanto ganhá-lo e tocar seu coração, disse-lhe que percebera seus temores.

— Como você sabe? Nunca contei a ninguém que tenho medo, confessou ele.

E Goko disse-me que nunca falara de seus sentimentos a ninguém.

Tanto Goko como Sai Di tinham atitudes semelhantes com relação a Cristo, mas o irmão canadense se confessava crente abertamente.

— Não estou dizendo que não creia em Jesus, diziam eles. Mas tenho observado vocês, os crentes, e já notei que a maioria ganha muito pouco em seus empregos. Mas eu tenho que mentir, roubar, trapacear para sustentar minha família, e sei que os crentes não podem fazer essas coisas. Por isso não quero ser crente, porque, se o fosse, queria ser um crente de verdade. Sei que Jesus pode me sustentar, mas quero ter certeza de que ele irá sustentar também os meus seguidores.

Sempre respeitei a opinião desses dois irmãos, e tenho orado para que eles vejam que Deus é suficientemente poderoso para suprir todas as suas necessidades. Mas estou certa de que nenhum deles fará uma entrega pessoal insincera. Muitas vezes, em minhas conversas com Goko, tenho-o ouvido dizer:

— Está bem, se aquele irmão deseja ser crente, tudo bem. Mas que siga a Jesus direitinho. Não quero que ele saia daqui hoje e

volte amanhã. Se quer ser crente, então que seja um bom crente.

Afastei-me da casa de Goko e dirigi-me para as Casas de Estêvão, onde os rapazes que continuavam a caminhar no Espírito se tornavam homens dignos de todo respeito e confiança. Os que tinham conhecido a Cristo, mas deixavam as casas prematuramente, a fim de seguir seus próprios impulsos, sempre acabavam tendo problemas.

Certa vez, um viciado de Chaiwan resumiu tudo isso muito bem:

— Ouvi dizer que Jesus faz o mesmo milagre para todos os rapazes que vêm a esse lugar. Mas sei também que a decisão de perservar ou não, ah!, isso é com o rapaz.

CONTRACAPA

Caça ao DragãoNo coração de Hong Kong, encontra-se a

temida Cidade Murada, verdadeiro inferno de

tráfico de drogas e de jogatina ilegal. Os forasteiros não são bem recebidos ali. A própria polícia tem receio de se aventurar naqueles domínios. Ali florescem a prostituição, a pornografia e o vício da heroína. E nessa área pequena e apertada vivem amontoadas pelo menos trinta mil pessoas — talvez o dobro.

Quando Jackie Pullinger saiu da Inglaterra, não tinha a menor idéia de que Deus a estava levando para trabalhar justamente na Cidade Murada. Mas, quando começou a falar de Jesus ali, rudes quadrilheiros se converteram, prostitutas largaram o ofício... e Jackie tropeçou na descoberta de um novo método de tratamento para a dependência das drogas.

Caça ao Dragão é um relato honesto, desafiante e inspirador, que revela a fibra, o amor e a dedicação de uma jovem disposta a tudo para servir a Deus.

Editora BetâniaLeitura para uma vida bem sucedida