Aristóteles e os segredos da vida

Embed Size (px)

Citation preview

Margaret DoodyAristteles E os Segredos Da Vida Traduo de Maria Nvoa Crculo de Leitores

Tttulo originalARISTOTLE AND THE SECRETS OF LIFE Capa Joo RochaISBN 972-42-3164789724 2316481Copyright 2003 by Margaret Doody Impresso e encadernado para Crculo de Leitorespor Tilgrfica, SARua da Amarela - Ferreiros, Braga em Abril de 2004 Nmero de edio Depsito legal nmero 207 164/04

Este romance dedicado a BEPPE BENVENUTO, o homem-ressurreioe a ROSALIA COCI, la tradutrice incomparabile LISTA DE PERSONAGENSFAMLIA E conhecidos DE Aristteles e EStefanoAristteles, filho de Nicmaco: filsofo de Atenas, 54 anos. Ptia, filha de Hrmias de Atrnea: mulher de Aristteles Ptia a Nova: filha de Aristteles, quase 6 anos.Herplis: escrava que cuida da jovem Ptia.Foco: chefe dos escravos de Aristteles, eficiente e responsvel. Olimpo: segundo escravo de Aristteles.Calstenes: sobrinho de Aristteles, cronista de Alexandre.Estfano, filho de Niciarco: cidado de Atenas, quase 26 anos; tenta melhorar de vida e casar.Eunice, filha de Diogton: me de Estfano, da tribo dos Erecteus. Teodoro: irmo mais novo de Estfano, com quase dez anos. Filmon: primo de Estfano, 25 anos; veterano.Esmicrnes: irascvel agricultor da zona de Elusis, futuro sogro de Estfano.Filomela, filha de Esmicrines: futura noiva de Estfano, 15 anos. Geta: escrava de Esmicrines, velha ama de Filomela.Filonice: mulher repudiada de Esmicrines, me de Filomela; apicultora do Himeto.Filocleia: me de Filonice e av de Filomela; gere a quinta da famlia no Himeto.Dro hpides: segundo marido de Filocleia, padrasto de Filonice; um homem invlido.Flocles: irmo de Filonice e tio de Filomela; herdeiro da propriedade no Himeto, mas de momento a viajar pelas ilhas orientais.Mica: escrava idosa da casa do Himeto.ACADMICOS E ESTUDANTES Do LiCEU.Teofrasto: acadmico, 40 anos, muito interessado em plantas; brao direito de Aristteles.

Eudemo de Rodes: acadmico espirituoso e educado, mais ou menos com a idade de Teofrasto.Demtrio de Faleros: jovem acadmico, muito bonito Hiparco de Argos: acadmico srio quase com 30 anos, parece um cavalo.Arcandro de Lmpsaco: acadmico srio na casa dos 30, muito plido.Mcon: estudante, 14 anos, interessado nos projectos de investigao do Liceu.Parmnion, filho de Arqubio: neto (linha ilegtima) do grande Parmnion, general de Alexandre, 14 anos; jovem estudante cujas estranhas perturbaes mentais so fonte de preocupaes.CIDADOS DE ATENAS E SEUS ASSOCIADOSMgacles: importante cidado de Atenas com a careca queimada pelo sol e modos srios.Trasmaco: importante ateniense com veia de orador; pai de Mcon.Apolnio: cidado robusto e patritico a quem no agrada o governo macednio.Teosforo: cidado de meia-idade e temperamento sardnico, que no morre de amores por Estfano.Epcrates: pequeno cidado rico, enganado num negcio com um perfumista egpcio.Hiperides: orador e homem de estado, 61 anos; no gosta dos Macednios; ajuda Epcrates no seu processo legal. Antgona: mulher alforriada, bem-sucedida prostituta de Atenas, proprietria de um bordel; envolvida num processo judicial com Epcrates.Euforbo: jovem de boas famlias, bem humorado e jogador. Clias: cidado rico, gosta muito dos seus animais de estimao; tem um macaco.Eurimedonte: do cl dos Eumlpidas; guardio do culto de Demter, leva muito a srio o seu cargo religioso.Grgias, filho de Lsipo: cidado teatral com pouco mais de vinte anos, filho de um ourives rico.PESSOAS ENCONTRADAS NA VIAGEM E NO ORIENTEsquines comandante ateniense da pequena e rpida embarcao. EudemniaHermipo de Uurio: viajante; trabalha no ramo da prata, proprietrio

de um tanque de lavagem e de um forno para fundir minerais.Ilva: filha de Hermipo e me da pequena Filocleia Filocleia: neta de Hermipo, 7 anos, sofre de asma. Miltades: alegre mercador de mrmore.Filcoro: distinto viajante que parece ter um fraquinho pelo seu escravo.Ssio: escravo de Filcoro.Dris: escrava aleijada com um cozinho Cardaca: ama de Dris.Magistrado de Delos.Lisis: gerente do bordel. Naumaquia, em Mconos Um mercador de mrmore de Paros.Aristodemo: gentil-homem de Naxos com ligaes a Delos; um velho amigo de Aristteles.Ncias: natural de Cs, capito da pequena e rpida embarcao Nice.Corisco: filho de um velho conhecido de Aristteles, numa embaixada a Alexandre.Itrocles: cirurgio de Cs e descendente de Asclpio; um velho conhecido de Aristteles.Nicumedes: scio de Itrocles, fsico de Cs e descendente de Asclpio.Oromedonte, filho de Daliocles: importante cidado de Cs, velho amigo de Aristteles.Peleu: militar experiente, habituado a organizar transportes Diofanto: oficial responsvel por um peloto na Lcia Menestor: prisioneiro tebano, quase 17 anos; escravo trabalhando para oficiais do exrcito na sia.Hrpalo: tesoureiro de Alexandre, antigo aluno de Aristteles. Pitonice: formosa amante ateniense de Hrpalo, que o acompanha sia.Nano de Calimne: bonita e rica dama das ilhas, antiga amante de um general macednio.Vrios viajantes, marinheiros e soldadosFala comigo, Musa, e abre-me a boca para que os meus lbios pronunciem coisas boas e verdadeiras. Deixa-me Contar com justia esta histria de pilhagens e maldade, sofrimento, cativeiro e viagens pelo mar imenso.Louvado seja Asclpio por ter sarado o meu ferimento. Que as bnos de Higia me acompanhem a mim e aos meus, agora e para sempre. Com todas as honras a Asclpio, o mdico divino, a Pon, cantado em hinos nos reinos do alto, e ao nosso senhor Apolo.PARTE IPARTES DE ANIMAISO SANTURIO DE ASCLPIOAinda estava escuro quando avanmos com cuidado pelo caminho estreito ao lado da ngreme Acrpole, em direco encosta sul. Quatro homens, dois dos quais escravos transportando uma liteira, que encerrava uma mulher invisvel.- Cuidado! - exclamou o mais velho com rispidez, quando um dos escravos quase perdeu o equilbrio no caminho invisvel. Algumas corujas atrasadas ainda piavam em volta do templo. Esforvamos os olhos na escurido procura do santurio. Ouviu-se um bater de asas. Um dos galos que eu levava debateu-se para voar, como se quisesse escapar morte ou apressar o fim que o esperava. Era difcil segurar as aves com aquelas patas e garras afiadas e os pescoos contorcendo-se, sobretudo porque no as via. Sentia uma delas picando-me a mo, embora lhes tivssemos atado os bicos.O santurio desenhou-se por fim nossa frente, uma forma escura misteriosamente slida na noite sem dimenses. Na manh de Vero, nesse perodo estranho antes da madrugada, espermos cabea de uma pequena fila de suplicantes. O cu ficou menos escuro. Os pssaros trinavam. Nisto, o cu cobriu-se de vermelho a nascente: parecia sangue jorrando de um corte na pele. Os primeiros raios incidiram na porta do templo, que se abriu. Ns, peregrinos, juntmo-nos aos sacerdotes e seus assistentes, cantando o hino da manh:Acorda, Pon Asclpio Acorda e ouve teu hino!15Aristteles e o escravo ajudaram a mulher a sair da liteira apertada. Ficou de p, encostada ao marido: era magra, no havia dvida de que estava grvida e um vu grosso tapava-lhe o rosto. Avanmos para o altar. Os poos sagrados com as serpentes achavam-se algures perto de ns, mas eu no conseguia v-los. Desatei os galos; Aristteles e os escravos ajudaram os auxiliares dos oficiantes a lev-los para o altar. Os animais bateram as asas e cantaram, anunciando a madrugada. O assistente avanou para eles com uma faca afiada e interrompeu-lhes o c-c-r-c!. Um jorro de sangue manchou a pedra de mrmore e as penas brilhantes. Um raio rseo incidiu no altar, fazendo cintilar o sangue e os olhos cegos das cabeas decepadas, com as suas cristas vermelhas.Rezmos e suplicmos no recinto iluminado pelo pequeno fogo do altar e pela luz fresca da alvorada. Uma doce brisa matinal entrava pela porta aberta.- O que te traz aqui? - perguntou o sacerdote-fsico.- A minha mulher tem uma febre baixa e falta de apetite respondeu Aristteles. - E quando come, muitas vezes no consegue conservar a comida no estmago.- Ela est grvida? - indagou rapidamente o sacerdote. Senhora, insisto que respondas por ti prpria. Quem s? Como te chamas?- Ptia, esposa de Aristteles de Atenas.- Ests grvida?- Estou.- Asclpio no tem remdios para a gravidez - disse o sacerdote, dirigindo-se aos dois. - uma coisa natural e no a tratamos. E do conhecimento geral que no deve nascer nenhuma criana no recinto consagrado a Asclpio.- Mas o mal da minha mulher no tem s a ver com a gravidez - objectou Aristteles. - Sou filho de um fsico e sei. Ela tem febre e treme. Descreve os teus sintomas - acrescentou, virando-se para Ptia.Ela respondeu em voz baixa e agradvel, com mais do que uma leve pronncia estrangeira:- Tenho calor e depois frio. Tremo. Tenho uma fraqueza nos olhos, que vem e vai. Sinto o estmago s voltas e uma dor surda de lado. No como das outras vezes.16- J tiveste filhos?- Dois que nasceram mortos, um que viveu um ano e morreu de uma doena e uma rapariga que est viva.- E tu, senhor - continuou o sacerdote, dirigindo-se a Aristteles -, descreve o que te atormenta.- Dores na perna... citica. Rigidez e dores na coxa e na perna.- Mais algum? - Olhou para mim e abanei a cabea. Encontrava-me ali para, literalmente, amparar Aristteles. De p sua esquerda, estava a postos para que ele se apoiasse a mim, caso precisasse. Aristteles amparava Ptia, que Teofrasto parente do filsofo, ajudava do outro lado.Pronuncimos as oraes adequadas, acompanhando o sacerdote-fsico. Observei o recinto interior, com o olhar cada vez mais apurado devido ao aumento da luz. Havia muitas imagens. Asclpio, a criana, o recm-nascido, rodeado por suaves chamas ou raios. Asclpio, o Amado, o Grande Salvador. Examinei uma esttua realmente boa, representando-o sentado num trono; dos lados da cadeira, as serpentes em relevo parecem rodas. Asclpio empunha o basto com a serpente enroscada. O cabelo comprido e ondulado e a luxuriante barba encaracolada fazem-no parecer ligeiramente estrangeiro, como um fencio. Tem o rosto nobre e os olhos muito bem esculpidos e profundos. Fitam a distncia com uma sugesto de sofrimento e esperana, mas tambm parecem observar-nos com um olhar de grande compaixo. Atrs dele, um grande baixo-relevo votivo mostra Asclpio com os filhos, os dois fsicos, Macon, o cirurgio, e Podalrio, especialista em doenas internas. E uma imagem alta da sua filha, Higia. Podemos fazer votos para no precisar dos filhos de Asclpio, mas toda a gente quer a filha, que a prpria Sade.De momento, encontrvamo-nos todos ali, Aristteles, Ptia, eu e Teofrasto, naquele pequeno santurio apertado. Juntos, vivos e em segurana. A luz deslizou e incidiu na parede, permitindo-me ver os ex-votos nela pendurados. Alguns eram pedaos de madeira de talhe grosseiro, outros esculturas elaboradas e lustrosas. Havia bastantes de prata, cintilando com os raios de sol. Uma brilhante imagem de bronze de um dedo17grande do p em tamanho natural, adornado com uma grinalda em miniatura. Uma perna, uma mo, um olho, um pnis, Aqui, um escudo que algum oferecera em sinal de gratido por ter sado ileso da guerra. Ali, parte de uma embarcao em mrmore... algum que se salvou de um naufrgio ou que recuperou dos danos fsicos provocados por um naufrgio. Grinaldas de cabelo verdadeiro dispostas em cabeas de madeira, imagens de crianas que voltaram a ser saudveis... tudo afirmando o poder do mdico divino e a fora curativa da terra escura, das nascentes sagradas e da serpente que surge das profundezas.Depois das instrues do sacerdote-fsico, que aconselhou Ptia sobretudo a mudar de alimentao e a sentar-se num srio quente ao sol, samos do santurio. Ptia seguia encostada ao marido. Tivemos de a ajudar a entrar para a liteira. Partimos de novo. Aristteles coxeava um pouco por causa da citica, o que era especialmente irritante para algum to activo como ele: o seu grupo foi chamado os peripatticos porque ele gostava de falar andando de um lado para o outro. Regra geral, preferia estar em movimento. Eu no receava que ficasse aleijado para sempre. O filsofo era ainda espantosamente activo para um homem da sua idade, embora a citica o atormentasse de vez em quando, sobretudo quando no tinha cuidado ou se esquecia e passava muito tempo sentado nalgum banco hmido de mrmore. Quanto a Ptia, em breve se veria livre dos seus padecimentos, dando a Aristteles o filho que ele h tanto desejava. O sacerdote-fsico tivera talvez razo em se alarmar com o risco de um nascimento no santurio, pois absolutamente proibido e Ptia evidenciava j um adiantado estado de gravidez.Aristteles parecia aliviado e falador:Estive aqui muito poucas vezes, mas Ptia quis vir. Por mim, prefiro o Asclpion do Pireu, que nalguns aspectos melhor e tem sacerdotes mais competentes do que este. E tambm mais tradio... lembras-te do Pluto de Aristfanes? Mas muito longe para ela... por outro lado, era perfeitamente possvel virmos aqui. Agora vai ficar mais descansada.O que lhe receitaram? perguntei, mais por delicadeza do que propriamente por curiosidade.18- O costume. Hidromel se no conseguir aguentar mais nada, porque a mistura de mel e gua tira-lhe a sede e alimenta o beb. Lquidos, ovos... Mandaram-na sentar-se ao sol... felizmente temos um ptio onde o pode fazer. Acham que em parte um problema de olhos. Quando melhorar, tem de oferecer ao santurio uma imagem de um olho... e eu de uma perna. Acho que vou mandar faz-las em prata e que sacrificaremos um porco. Quando as imagens estiverem prontas j teremos o nosso beb... o nosso rapaz, espero.- Pelo menos, j sacrificaste um galo - comentei.- Um galo para Asclpio: as ltimas palavras de Scrates... como de certeza ests lembrado. Como o galo canta de madrugada, esta oferenda feita ao dia, luz e prpria vida. Quando nascemos, vemos a luz do dia, a ddiva da nossa primeira madrugada. Sacrificando um galo, agradecemos o novo dia.- Mas Scrates disse isso mesmo antes de morrer.. no teve nenhum novo dia - objectei. - Na altura, estava a ser executado.-Mas deve ter agradecido o novo dia, mesmo sendo o ltimo. Creio que na verdade queria era agradecer toda a sua vida, a ddiva de ter nascido... de ter existido e levado uma vida humana no mundo. Viver uma coisa maravilhosa! Quando regressarmos ao Liceu, vamos reler este excerto no espantoso livro de Plato.Tnhamos sado da Acrpole e dirigamo-nos porta da cidade rodeando a gora, que j comeava a encher-se de gente. Embora j com a vantagem da luz do dia, os que transportavam a liteira de Ptia tinham alguma dificuldade em passar pelos becos estreitos com o seu fardo. Homens martelando ou fazendo cadeiras pareciam determinados a fzer o seu trabalho no meio da rua, dificultando a passagem. Crianas corriam ao nosso encontro, tentando vender-nos isto ou aquilo. Uma delas, um rapazinho embrulhado numa capa com um capuz grosso, teimava em nos impingir umas ervas pouco frescas. Aristteles acabou por pegar no funcho amarelecido, atirando-lhe uma moeda.- s para me ver livre dele - explicou.19- O rapaz no me parece muito saudvel - disse eu. Assim agasalhado e com capuz quase no solstcio de Vero, se calhar tem alguma doena.Na verdade, j estava a ficar quente, embora ainda faltassem cerca de vinte dias para o solstcio de vero. Fora da cidade, as searas amadureciam ou at j tinham sido colhidas. O feno j fora cortado. A efmera roseira-brava desabrochava e cheirava a flores at em Atenas, onde no se vem os jardins que florescem atrs dos muros.No teria precisado de andar muito para regressar a minha casa, mas a de Aristteles ficava um bocadinho mais longe: pelo menos bastante distante para os escravos, que seguiam carregados. (No que Ptia fosse pesada, longe disso, mas a liteira no dava jeito nenhum.) Aristteles vivia fora dos muros da cidade, na direco oposta da Academia de Plato, igualmente situada no exterior. Morava para leste, numa regio banhada pelo Ilisso e coberta de rvores: um stio magnfico, embora na altura bastante barulhento devido construo do novo estdio. A sua famosa escola ficava no recinto que tinha o nome de Apolo Liceu, o deus dos lobos... que, curiosamente, tambm afasta os lobos. As pessoas chamavam Liceu famosa escola de Aristteles, bem como ao ginsio que ficava ali perto, onde os jovens faziam o seu treino militar. Aristteles aceitava estudantes particulares e tnha uma equipa de acadmicos a trabalhar com ele. Era um local com pequenas matas, onde se discutia livremente; os arredores do Liceu eram uma zona de filsofos e amantes da filosofia. A maioria das famosas conferncias de Aristteles eram pblicas, ao jeito dos bons velhos tempos. Como o local sempre estivera cheio de jovens, era um bom stio para juntar os que queriam participar em conversas intelectuais.Aristteles teve de alugar tanto a casa como a escola. A lei de Atenas probe os estrangeiros, mesmo os estrangeiros residentes, os metecos, como Aristteles, de serem proprietrios. Por isso, e embora tivesse sido o melhor e, provavelmente, o estudante preferido de Plato, este no pde deixar-lhe a Academia. Depois da morte de Plato, Aristteles esteve fora de Atenas durante muito tempo. Quando regressou, casado com20esta estrangeira, alugou casa na zona do Liceu. Meteu algum dinheiro do seu bolso para a acrescentar e construir novos edifcios. Uma das suas necessidades bsicas era muito espao para os livros. As alteraes importantes tm de ser aprovadas pela cidade, e claro que os seus melhoramentos representam um prejuzo, j que no pode vender o local nem deix-lo aos seus herdeiros.Quando chegmos ao Liceu, Aristteles mostrou-se ansioso por ver Ptia instalada no conforto do seu lar:- Est cansada e precisa de repousar.- Herplis tratar de mim - disse uma voz abafada de dentro da liteira.- Olimpo e Foco ajudar-nos-o e arrumaro a liteira observou Aristteles. - Teofrasto, no queres levar Estfano l dentro e mostrar-lhe a nossa oficina do pensamento? Serve-lhe uma das nossas modestas refeies. Eu j l vou.Os escravos pousaram a liteira e ajudaram a sua senhora a sair. Aristteles pegou-lhe na mo com ternura e amparou-a com o brao. Subiram os dois o lance de degraus baixos do jardim at porta.- Ainda bem que Herplis est aqui - ouvi-a dizer. No entres... tens visitas.- Claro que entro, minha querida - respondeu Aristteles num tom de voz que eu nunca lhe ouvira antes.Teofrasto encarregou-se de mim e levou-me para os edifcios principais da escola por um caminho diferente. Conhecia bem o Liceu: tinha l estudado, por muito pouco tempo, certo, atrado pela reputao de Aristteles e pela sua inteligncia. Mas os negcios do meu pai atrapalharam-se tanto que tive de sair. Pouco depois, o meu pai morreu e a minha famlia mergulhou no caos. Como de modo algum era dos melhores estudantes, a minha ausncia no deve ter sido nenhum golpe para Aristteles. Mas recorri mais tarde ao meu velho professor. Depois da morte do meu pai, quando o meu primo foi acusado de homicdio, vim pedir ajuda a Aristteles, embora nada me desse esse direito. Vim a casa dele pedir conselho no princpio do Outono, quase trs anos antes desta visita21matinal ao Asclpion. Ainda bem que o fiz: a inteligncia e a aco do filsofo salvaram a nossa famlia do desastre. Eu e Aristteles estivemos recentemente a investigar um outro crime curioso, que nos levou a perseguir uma herdeira raptada at Delfos, Foi na Primavera deste mesmo ano que nos presenteava agora com um prazenteiro calor de Vero.Apesar da minha amizade por Aristteles, no entanto, de modo nenhum conhecia bem o Liceu no seu estado actual. Como Teofrasto me fez notar, houvera mudanas desde os meus tempos.Foi preciso arranjar mais espao... tnhamos tantos livros que tivemos de aumentar a sala dos livros. Isto sem contar com os que o Aristteles tem em casa. Assenti, pois j fora aos seus aposentos pessoais, com a sua surpreendente quantidade de livros. Temos um compartimento especial para conservar secos e limpos os rolos mais valiosos continuou Teofrasto. Aristteles chama-lhe a despensa dos livros. Foi ele que a desenhou.Entrmos numa diviso comprida... com cerca do dobro do comprimento de que me lembrava. A metade superior de cada parede estava forrada de estantes e compartimentos para os rolos. Pairava na sala o cheiro agradvel da madeira; as estantes, obviamente de muito boa qualidade, deviam ter sido importadas a bom preo, pois a madeira escasseia muito em Atenas. Na parte central da parede, abaixo dos compartimentos com os rolos e altura da cintura, havia uma prateleira larga em toda a sala, uma espcie de espao de trabalho. A luz vinha de janelas altas abertas altura do tecto, para a chuva no entrar.Aristteles chama a esta sala a cozinha dos livros. Escrevemos e lemos aqui. Desenhou as janelas e mandou fazer proteces de linho para o sol no bater directamente nos rolos, comendo-lhes a cor explicou Teofrasto. Do lado onde o sol incidia, as janelas estavam tapadas com tiras de tecido. E agora temos tantas plantas e espcimes mandados por Calstenes que tivemos de arranjar uma diviso especial. Virou-se para a porta: - Oh, olha Demtrio.Apareceu um jovem de enorme e rara beleza. Este Demtrio22era alto e bem feito, com um nariz admirvel... no, perfeito; o cabelo, bastante comprido, tinha o brilho do sol mesmo numa sala to agradavelmente obscurecida.- Demtrio de Faleros - apresentou Teofrasto. - Estfano de Cidatnion. - De passagem, pensei porque nos teria Teofrasto apresentado indicando o demo e no o nome do pai; um jovem to bonito devia ter um pai importante. Demtrio fez-me um amvel sinal com a cabea. Embora no pudesse ter muito mais de vinte anos, o aristocrtico jovem mostrava um grande aprumo. - Foi Demtrio que fez muitos destes magnficos desenhos - explicou Teofrasto. - Afasta um bocadinho essas proteces para Estfano ver melhor, Demtrio.Vi ento num canto da prateleira larga uma srie de desenhos e diagramas encostados a uma parede. Mas no era nada como uma galeria normal! Nem Dafnes nem Andrmedas, mas antes umas coisas muito estranhas. A imagem da pata de um animal, com a classificao das suas vrias partes; um tero e um escroto com testculos... as figuras isoladas, sem nenhum corpo. Havia uma ilustrao de muitos peixes cobertos de espinhas, com uma tira em baixo mostrando vrios crustceos.- Excelentes! - exclamei com delicadeza, observando as bizarras imagens de lulas e ourios-do-mar. - Tens uma grande variedade de ingredientes na tua cozinha dos livros. Demtrio de Faleros soltou uma gargalhada:- No penses que Aristteles no gosta que nos refiramos despensa e cozinha - garantiu-me. - Diz ele que o centro do corpo uma espcie de cozinha ou forno. O estmago est sempre ocupado a cozinhar, tal como o corao, que alimenta e mantm o calor natural sem o qual a alma no pode funcionar. E a alimentao...- transmitida ao resto do corpo - continuou Teofrasto.- Onde cada parte continua o trabalho e cozinha com o seu prprio calor - remataram os dois em coro, evidentemente repetindo frases e opinies do mestre. Um jovem de cabelo encaracolado entrou na sala, atrado pela sua alegria.- Mcon! Estfano, filho de Niciarco. Mcon, filho de23Trasmaco. - O divertido rapaz de cerca de catorze estios aproximou-se de ns com confiana. A apresentao formal que Teofrasto fez da criana levou-me a deduzir que era bem-nascido. - Micon tem feito progressos invulgares. E ajudou na criao destas imagens... foi ele que sombreou e coloriu muitas delas.- Impressionante - concordei. - Para que servem?- Vo ser integradas em livros! - exclamou Mcon. Que sero lidos por toda a gente!- Quando estiverem acabadas - esclareceu Demtrio. Esta ideia... sero copiadas para os livros sobre animais que Aristteles anda a escrever.- E ainda temos muitas plantas novas para examinar acrescentou Mcon.- Pois - disse Demtrio. - Queres ver, Estfano? Calstenes, sobrinho de Aristteles, que viaja com Alexandre, mandou-nos plantas novas da sia.- Gostava de as ver - afirmei com delicadeza. Sabia, pelas conversas de Aristteles, que ele tinha o sobrinho, Calstenes, em alta estima. Tal como, de resto, Alexandre da Macednia, que escolhera este distinto acadmico e escritor para o acompanhar sia. O sobrinho de Aristteles viajava agora, com Alexandre e o seu exrcito para escrever a histria oficial da Grande Guerra com a Prsia, que de resto era como se j tivesse terminado. Alexandre j controlava Ierspolis e a Babilnia: s lhe faltava encontrar e matar o rei Drio da Prsia. Mas o que eu no sabia era que Calstenes continuava a ser uma espcie de scio de Aristteles, fornecendo-lhe materiais asiticos para os seus estudos de cincias naturais.Passmos desta cozinha dos livros para a sala seguinte, atravessando um corredor curto com uma porta em cada ex- tremidade. Supus que tinham tentado isolar a sala dos espcimes vivos, de modo a que a humidade e o cheiro no penetrassem na sala dos livros. Inumerveis (assim parecia) raes e ramos enchiam a parede e pendiam de ganchos do tecto. Havia um arbusto com flores rosadas... muito bonito e com um cheiro interessante. Mas muitas plantas pareciam sem vida, secas e murchas. 24 difcil conserv-las - disse Demtrio, seguindo O meu olhar. - Calstenes envolve-as em musgo hmido, mas mesmo assim sofrem. E o ar de Atenas deve ser mais salgado do que aquele a que estas plantas esto habituadas.Tambm havia alguns esqueletos de animais pendurados no tecto (pareceu-me reconhecer um co). Bocados de animais flutuavam em vasos altos e grossos. Numa grande mesa de trabalho viam-se os desenhos das plantas e vrias tabuinhas, algumas escritas.- Esta a nossa cozinha das traseiras ou matadouro explicou Demtrio. - Agora chamamos-lhe mais sala das plantas. Mas estamos interessados sobretudo em animais.- Quem escreve? - perguntei, olhando as tabuinhas.- Todos ns. Esboamos uma descrio na placa de cera e depois discutimo-la - esclareceu Demtrio. - Se todos cuncordarmos, copiada para o livro que uma espcie de rascunho do nosso futuro catlogo. Aqui Hiparco de Argos pode explicar melhor do que eu, especialmente os animas.Hiparco era um homem grande e cheio de vontade de agradar, com um rosto comprido e um nariz direito e igualmente comprido.- E trabalhas com cavalos? - indaguei. Como o seu nome significa mestre de cavalos... alis, Mestre de Cavalo, ou seja, um chefe de cavalaria, achei que o trocadilho tinha piada. Talvez nem me tivesse lembrado disso se Hiparco no se parecesse tanto com um cavalo. Mas a minha frvola pergunta f-lo franzir as sobrancelhas como um cavalo perplexo.- No temos grande variedade de cavalos por aqui. O cavalo comum um quadrpede bem conhecido. Se nos viesse algum tipo diferente da sia, claro que gostaramos. Aristteles anda procura de vrias espcies de animais. Eu escrevo as descries aqui com Eudemo.- Estfano, filho de Niciarco de Atenas. - A formalidade de Teofrasto fez-me adivinhar, ainda antes de o ver, que este recm-chegado era muito bem nascido. - Eudemo de Rodes.Alto e de cabelo escuro e encaracolado, Eudemo era muito mais bonito do que seria de esperar num acadmico, embora25no to escultural como o jovem Demtrio. Olhando-me com aristocrtico -vontade, murmurou algumas frases convencionais sem mudar muito a expresso facial.- E Arcandro de Lmpsaco. - Era um jovem plido, como um bolbo que ficou muito tempo na cave. O cabelo preto ainda lhe acentuava mais a palidez. - Estes estudiosos colaboram todos no grande projecto de Aristteles - continuou Teofrasto. - So os seus principais... h...- Chama-nos seus assistentes - rematou Eudemo com amabilidade. - Juntamente com Teofrasto, somos os acadmicos em quem o mestre mais confia: os cozinheiros de Aristteles. Seccionamos animais e plantas.- Mas mais do que isso - observou o jovem Mcon. Vamos fazer um plano de tudo o que existe... para que tudo O que existe seja conhecido.- Tudo o que existe! Mas isso muito! - Aristteles aproximou-se por trs de ns. - verdad: tentamos explorar o universo da natureza e criar categorias racionais para os seres vivos.- Sem as devidas categorias, no possvel pensar acrescentou Arcandro, provavelmente citando alguma frase que ouvira ao filsofo.- Ests a ver os grandes passos que damos em direco ao conhecimento, Estfano? - disse-me Aristteles. - Tenho trabalhado nisto desde rapaz... desde que deixei a Academia de Plato... mas no era possvel completar nada trabalhando sozinho. Agora tenho estes excelentes assistentes e acadmicos a ajudar-me - abarcou-os a todos com um gesto da mo - e vamos fazendo progressos. Tal como Herdoto escreveu a sua gigantesca crnica sobre a natureza inteira e o desenvolvimento da guerra entre persas e gregos, tambm eu escrevo um relatrio completo dos animais. Aqui, observamos e anotamos todas as diferenas que nos permitem distribu-los por classes. Observamos a maravilha da ordem do cosmo, que s vezes nos parece muito pequena... ou muito grande... para que a possamos ver.Murmurei qualquer coisa com delicadeza, embora sentisse uma certa repugnncia pelo cheiro bafiento das razes das plantas e ainda mais pelo contedo dos vasos.26- estranho um filsofo preocupar-se tanto com animais - comentei.- Porqu? Plato sugere que somos bpedes sem penas; assim sendo, devamos respeitar os animais. Se estudamos a arte, porque no a natureza, que muito maior do que a arte? No devemos fazer m cara s porque a carne, o sangue, as espinhas, os bicos ou os rgos so desagradveis... vamos deixar as exclamaes infantis de nojo para as crianas. A questo : como podemos discutir um mundo que no conhecemos? Vivemos na ignorncia e as nossas descries so parciais e irregulares. Acontece o mesmo com os calendrios... sabes que estou interessado em reunir narrativas dos Jogos Olmpicos e Ptios. No porque esteja especialmente interessado nos acontecimentos atlticos, mas porque estas listas nos do medidas de tempo... ano aps ano. Em breve poderemos criar um calendrio mundial com todos os acontecimentos assentes numa linha de tempo, o que nos dar uma imagem uniforme da realidade temporal, sem a qual a histria... o estudo da humanidade... no possvel.Senti-me um tanto alarmado:- Mas eu gosto do tempo ateniense.- Bem, digamos que, tanto no tempo ateniense como no do Liceu, tempo de comer. Fica connosco - disse Aristteles. - Hoje vou comer com os professores e os alunos. Ptia est muito cansada e precisa de ficar deitada. Felizmente, tem Herplis. Um verdadeiro tesouro! Uma escrava domstica da famlia da minha me, na Eubeia. uma enfermeira excelente e um prodgio com as crianas. Ptia adora-a. Insisti com ela para que se deitasse porque no me agradam nada aqueles tornozelos inchados - acrescentou. Senti-me embaraado ao ouvir informaes to ntimas. Mas Aristteles no tinha parentes prximos mo (excepto talvez Teofrasto, cujo grau exacto de parentesco permanecia indefinido), e suponho que precisava de partilhar estes detalhes familiares com algum.- Mcon, chama os outros para o refeitrio - ordenou Eudemo. - Diz-lhes que a comida est pronta. - Mcon saiu pressa.- Deixa que te diga que uma refeio muito humilde27- observou Aristteles. - No bebemos vinho quando estamos a trabalhar. O nosso repasto muito pitagrico. Mas garanto-te que no vo servir-te nada desses vasos!Deixmos a sala dos espcimes e entrmos numa diviso comprida, uma sala de conferncias onde os escravos tinham montado tbuas em cima de cavaletes. Havia bancos volta. Era uma decorao simples para uma refeio simples. O pequeno grupo de jovens estudantes entrou em fila, com Mcon cabea. Respiravam sade, estavam bronzeados, falavam e riam; s no faziam mais barulho devido presena de Aristteles e dos professores. A sua tagarelice alegrava a sala. Mas um deles, triste e calado, olhava para o prato sem comer nada.- Que te parece? - perguntou-me Aristteles. Eu ocupava a posio de honra sua direita, suponho que um lugar geralmente reservado a Eudemo ou Teofrasto. - Mais ou menos como era no teu tempo, no? Com os dias to bonitos, comemos muitas vezes l fora, mas assim mais fcil e rpido para os escravos.- E os teus escravos j foram hoje Acrpole. Como correu a tua visita ao santurio de Asclpio, Aristteles? - perguntou Demtrio.- Oh... bem, como de costume - respondeu ele. Pareceu-me que no estava muito interessado em que a sua vida pessoal fosse objecto de conversa naquele momento e lugar, Olhando em volta, acrescentou: - Sabes que dizem que descendo de Asclpio atravs do filho, Macon?- Ento devias ser cirurgio - observou Hiparco. Por falar nisso, como nos vamos arranjar com os nossos espcimes, agora que est to quente? Achas que vo sobreviver ao calor?- O tempo est muito agradvel, no verdade? - comentou Eudemo, sentado esquerda de Aristteles. - O Cirofrion um ms encantador... especialmente porque s tem festivais antigos e pouco importantes, como as prprias Crofrias. to bonito ver a sacerdotisa de Atena e os sacerdotes de Posdon e do Sol percorrendo a estrada oeste debaixo de um plio branco! E o melhor que ningum sabe o que significa.28- Tambm o ms das Diplias, o festival de Zeus Polieus, guardio da cidade - fez notar Teofrasto.- E o maior sacrifcio das Diplias a Bufnia. Chegou o tempo da matana do boi, um costume ateniense! Devamos ir.- Podemos formar um grupo para ir ver. Queres vir, Estfano? Se calhar j no assistes Bufnia h muito tempo.- Obrigado - agradeci com amabilidade.Mudando de assunto, calhou eu falar a Aristteles do aluno plido e pouco socivel:- Quem aquele rapazinho que parece to triste?- Ele? Talvez at j tenhas ouvido o seu nome. Teofrasto falou-me dele quando tu e eu regressvamos de Delfos no princpio da Primavera. O jovem Parmnion costuma ficar choroso e triste, muitas vezes sem qualquer razo. E s vezes tem ataques. Parecia melhor no fim da Primavera, mas agora tem razes para se preocupar, pois no sabe do pai. No entanto, os seus problemas parecem estar na cabea, e temo que agora piorem. - Virando-se para a minha direita, acrescentou: - Fala-nos mais do estado do jovem Parmnion, Teofrasto.- mau e est a piorar - respondeu ele. - Achei que este mau humor comeava a desanuviar, mas agora temo que esteja a deteriorar-se bastante. Receio que tenhamos de o levar para casa. muito novo para fazer a viagem sozinho.- neto do grande general Parmnion, creio? Descendendo dele, estranho que seja to fraco da cabea - disse Hiparco. - Quanto a lev-lo a casa... pode ser perigoso. As coisas ainda esto complicadas.- Talvez tivssemos proteco do exrcito. A famlia toda, incluindo o pai, deve estar de muito boas relaes com a casa real. Sobretudo o grande Parmnion, outrora grande companheiro do rei Filipe e agora brao direito de Alexandre observou Teofrasto com o seu amor preciso e ordem. verdade que o pai do rapaz no filho legtimo do grande general, mas sempre foi tratado como se fosse da famlia.- Se at permitiram ao rapaz ficar com o nome do av... comentou Hiparco.- verdade. E o filho legtimo de Parmnion, Filotas, um brilhante general e um dos Companheiros de Alexandre,29gosta muito deste sobrinho, que tem muitas razes para esperar favores e ajuda... mas ainda no sabemos muito bem onde encontrar o pai, Arqubio, que, na qualidade de macednio, faz parte do exrcito de Alexandre. Numa altura em que esteve a ajudar a pacificar a ilha de Roie;. H a possibilidade de ter sido transferido para Cs.- Bem, tu ou Eudemo talvez tenham de fazer uma viagem para oriente - disse Aristteles com jovalidade. - Se calhar Eudemo at vai gostar... afinal de contas, veio de Rodes. uma pena no podermos fazer nada pelo rapaz aqui. Provavelmente devia ir a um bom centro de medicina. Als, pode ser que at melhore estando em Cs.Mudando de assunto, virou-se para mim:- O que achas do nosso liceu? - perguntou-me. - Est maior desde os teus tempos, no?- Est - concordei. No me agradava pensar nos meus tempos como uma poca muito distante.- Agora temos um conjunto de livros bastante considervel. Felizmente, Teofrasto tem um grande amor pelos livros e trata-os muito bem. Nunca os deixa apanhar p nem ficar fora do stio. Tem de voltar tudo para o seu devido lugar. Como vs, atramos acadmicos excelentes para trabalhar connosco. Eudemo de uma famlia muito distinta de Rodes, mas trabalha aqui nas plantas asiticas tanto com as mos como com a cabea. Como da regio, tem uma familiaridade diferente. Bem, eu tambm passei algum tempo na costa asitica, primeiro em Asso e depois em Lesbos. H uns anos, conhecia muito bem a regio costeira da sia. Foi l que comecei a estudar os animais, observando a vida das costas e examinando as raias, as lulas e os crustceos.- Mas diz-me: vais tentar descrever tudo o que vive?- Gostaramos de o fazer... mas um plano muito ambicioso! No entanto, como trabalhamos com uma variedade to grande, possvel que tenhamos razo no que dizemos. Todos os homens, incluindo os acadmicos, viveram at agora com categorias insuficientes... alis, at com uma ideia insuficiente do que uma categoria. E de facto a nossa investigao tem de ser sistemtica. Estudamos as particularidades.30- Aristteles pensa que h uma espcie de arte na natureza, at nas pequenas coisas - acrescentou Demtrio.- Com certeza. No h nada que no seja importante. Olhem o que Heraclito disse na latrina: Entra; at aqui h deuses. A complexidade dos corpos, dos corpos vivos, muito bela. O corpo no uma simples forma no sentido vulgar do termo ou at no que lhe do algumas pessoas com instruo, mas sim um centro de desenvolvimento e actividade. A natureza uma especialista em dinmica. Prefere fazer cada rgo perfeito para determinado fim. No uma trabalhadora medocre como um humilde ferreiro que, por questes utilitrias, faz um suporte de iluminao de metal e um espeto num s objecto! Pensem no que vimos nos vasos com o sangue...- Bem, difcil observ-los - interrompeu Demtrio, muito srio. - No fcil perscrutar os segredos ntimos da natureza. Claro que podemos abrir um animal... mas o sangue esguicha e a vida vai-se num pice.- Descobrimos que a observao d mais resultado quando no alimentamos o animal... os vasos sanguneos vem-se melhor. Mas claro que nem assim conseguimos v-los todos.- O que vemos, no entanto, de uma regularidade e uma ordem assombrosas - acrescentou Aristteles. - Assemelha-se aos regatos e canais de um jardim bem cuidado e bem irrigado, onde o jardineiro criou um canal principal e derivou dele muitos pequenos regatos.- Esse o tipo de comparao preferido de Teofrasto comentou Eudemo. - Se calhar at foi ele que a sugeriu. Adora jardins.Aristteles ignorou-o e continuou a falar:- Ao mesmo tempo, no so meras particularidades que fazem as categorias. Claro que no! E no o nosso catlogo que vamos publicar. Isso s um comeo. Sem mtodo, sem raciocnio, tudo o que temos so simples listas. Podia fazer uma lista das vezes em que corto as unhas, e seria verdade... e intil, a no ser que tivesse algum propsito. O objectivo no s o conhecimento do mundo que nos rodeia, mas tambm uma verdadeira compreenso do que a vida. A vida neste mundo transitrio, entre a existncia e a morte. O nosso sujeito no outro seno a prpria vida.31Quase me tirou o flego com a imensidade do seu tpico de conversa.- O mais importante o poder inerente do raciocnio, que o leva a perceber, adivinhar... e de certa forma gerar ordem - continuou Aristteles, entusiasmando-se. - Enquanto parte do intelecto divino do universo, o raciocnio conhece a ordem; ou seja, j temos dentro de ns o poder de perceber e falar de categorias. A ideia no criada por moluscos nem por rvores.- Oh, mas claro! - concordei, um tanto atabalhoadamente, pois estava a mastigar um pedao de po duro ao mesmo tempo. De resto, no tinha a certeza de conseguir compreender tudo o que ele dizia.- O corpo existe para a sua perfeio, que a alma, a capacidade para se mover, procriar e por a fora. absurdo pensar que a alma est no corpo como o marinheiro est no barco. A alma a forma que o corpo procura. O intelecto o principal. Mas a inteligncia viva, percebe o mundo usando os rgos do corpo. A compreenso precisa de montar as particularidades... de as mastigar, se assim posso exprimir-me. - Os olhos brilharam-lhe e eu tentei engolir pressa o po que estava a comer. - Precisamos dos pormenores, das particularidades. possvel obter uma compreenso do mundo trabalhando com eles, usando os sentidos para examinar as particularidades... desde que tenhamos um mtodo. o intelecto que tem de analisar... seno, ficamos s com uma lista de curiosidades. Queremos estabelecer caractersticas, para podermos agrupar os animais unidos pelas suas caractersticas. E ao analisarmos seres vivos, as produes da natureza, no procuramos histria e sim causas. Na natureza, as causas so fins e no princpios. A natureza cria para o futuro. Nas cincias tericas ou no estudo dos objectos que so fruto da arte humana, comeamos pelo que j . Pensamos da frente para trs. Uma esttua nova tem uma espcie de existncia, mas no tem futuro; s um passado. Falta-lhe vida. Um cachorrinho tem futuro. No estudo da natureza, consideramos sempre o que vai ser. Nos embries de todos os tipos, incluindo os ovos, o corao, esse rgo soberano, formado em primeiro lugar devido32ao trabalho que vai fazer. Um embrio humano tem mos porque ser um homem, que as usar.Os outros tinham feito silncio para ouvirem o animado discurso de Aristteles. Quando ele se calou, Eudemo disse:- Portanto, usando o pensamento e um processo de observao completa e regular... nem parcial nem caprichosa... as particularidades levar-nos-o s verdades gerais.- Isso - acrescentou Hiparco. - E ests a ver a vantagem: saberemos realmente o que so as espcies. Assim, quando se descobrir um animal novo... pop! Vai para a categoria correcta logo que aparecer.- Este mundo manifesta uma ordem ao mesmo tempo complexa e muito simples - rematou Aristteles. A quantidade de trabalho que ainda havia para fazer no parecia desanim-lo. Os olhos cintilavam-lhe. A refeio, constituda apenas por legumes, po, fruta e gua, fora realmente pitagrica mas, a julgar pelo seu entusiasmo, parecia que Aristteles bebera um vinho nobre. - Estou muito grato aqui aos meus colegas pelo seu trabalho incansvel e inteligente - acrescentou. Juntos, podemos fazer avanar os nossos conhecimentos.- Mas de certa forma estranho - disse eu. - A filosofia no deveria ocupar-se da verdade, do bem, do comportamento... dessas coisas?- Ahh! - exclamou Aristteles. - A filosofia o amor de toda a verdade. A verdade do universo, aqui e agora. , com certeza, muito doce contemplar a verdade e o bem. Mas quem contempla? O ignorante ou o seu contrrio? A mente est aberta para o mundo e abre o mundo. O bom filsofo examina tanto o seu mundo fsico como humano.- Ento, aquilo de que precisamos no de filsofos-reis e sim de muitos verdadeiros filsofos entre os cidados - observou Demtrio.- Tens razo. E devemos educar os jovens dando-lhes uma sabedoria vasta e verdadeira, de modo a que possam criar sociedades melhores, melhores estados. O filsofo devia ser um homem sempre pronto a ajudar os outros, a misturar-se com os outros e a colaborar. bem medocre o filsofo que no d ouvidos aos gritos de socorro. Com uma forma de estado33mais elevada, racional e benevolente e uma vida poltica cheia, solidria e harmoniosa, os homens podero tocar tudo O que os rodeia, num mundo que no obscuro nem desconhecido para eles. Um homem assim formado far mais do que simplesmente existir. Viver plenamente a vida e no se limitar a existir como uma planta, uma rocha... ou at um texugo.- O que Aristteles diz que muitos homens vivem na escurido e precisam de ver - concluiu Hiparco.- Assim, o nosso trabalho contm em si, as sementes de uma vida melhor para o homem do futuro - disse Aristteles. - Sabes, Estfano, acredito que o estudo da filosofia um benefcio para a humanidade.Sorriu-me, bem como aos jovens alunos e aos atentos acadmicos que o rodeavam mesa, seus amigos e colegas no grande empreendimento. Pensei depois muitas vezes naquele dia, em que o Liceu parecia um santurio cheio de vida, reflexes e alegres planos, antes de a dor e at o desespero tocarem a vida do mestre.34O ASSASSNIO DO BOIA expedio para ver a matana do boi, sugerida por Eudemo, acabou por se concretizar. O escravo de Aristteles trouxe-me um convite para me juntar ao grupo do Liceu. Decidi ir e levar comigo o meu irmo mais pequeno, Teodoro. Encontrmo-nos na encosta da Acrpole, frente do grande templo da Virgem Atena. Teodoro corria e saltava minha volta. Havia bastante gente, mas no grandes multides. E era-me possvel evitar as pessoas que no queria encontrar, como o cidado Teosforo, que tomara decidido partido contra a minha famlia na altura em que tivramos problemas. Vi-o distncia, com o mesmo ar azedo de sempre.Como era de esperar, Aristteles encontrava-se rodeado pelo seu pequeno squito.- Acho que j conheces toda a gente - disse-me. Era verdade: Hiparco com o seu nariz nobre e equino, Demtrio de Faleros, de uma beleza prodigiosa e maneiras afveis, Eudemo, to bonito, falador e vontade que ningum poderia deixar de reparar nele, e o plido Arcandro. Estavam encarregues do pequeno grupo de estudantes, que inclua o triste Parmnion e o alegre Mcon.Depois de apresentar Teodoro e de o entregar temporariamente aos cuidados dos rapazes mais velhos, aproximmo-nos todos do recinto de Zeus, Protector da Cidade.Mcon mostrou-se muito til, abrindo-nos caminho e empurrando-nos para que ficssemos juntos, o que provocou algumas resmunguices, se no mesmo altercaes.35- Olha l o que fazes, rapazinho - disse um cidado. Um outro, mais irascvel, advertiu:- Se tornares a empurrar-me, vais ver o que te acontece! Teofrasto teve de pedir desculpa pelo zelo de Mcon.Estas desculpas no eram dirigidas aos mais rufies da multido. Um grupo de jovens das zonas mais pobres comeou a soltar imprecaes, do tipo que indica que algum gosta muito da prpria me. Isto atrasou-nos um bocado, mas os nossos rapazes no se ensaiaram para responder, embora Eudemo os tenha censurado, dizendo que aquilo no eram maneiras. Um dos rufies, um mido forte e de ombros largos, desafiou Mcon para lutar com ele. Quando Eudemo impediu o nosso jovem acadmico de responder, o rufio gritou e saltou em triunfo. Depois, ps os dedos em forma de cornos em cima da cabea e carregou contra ns.- Sou um touro! - berrou. - Um touro, suas vacas! Vacas de merda! Vaca! - vociferou de novo para Mcon. - Vais arrepender-te - disse Mcon, furioso. - O meu pai Trasmaco, um homem muito importante que vai dar-te uma lio.- O meu pai Trasso - macaqueou o rapaz. - Olha, fedelho, o teu pap uma vaca. No uma vaca importante... s uma vaca. Boo!O rapaz de pescoo grosso correu para ns vrias vezes, batendo os ps e mugindo. Depois mudou de brincadeira e comeou a saltar, agitando no ar uma espada imaginria:- A mim, homens! Quero ouvir o grito de guerra! Vamos com esta escumalha... ho! Sou Alexandre. Ha... boo! Veno-vos a todos! Eu digo-vos como , seus medos e persas! O rapaz de cara de touro pavoneou-se ao nosso lado durante algum tempo, imitando a nossa maneira de andar enquanto os seus companheiros aplaudiam. Carregou ento outra vez, gritando:- Sou Alexandre e mando em Atenas! Sou o vosso rei... Cobardes! I!Fez a Mcon e ao receoso Parmnion uma careta pavorosa, torcendo a boca e arreganhando os dentes como a mscara de um stiro, e arregalando tanto os olhos que estes pareciam36prestes a saltar das rbitas. Parmnion empalideceu; Mcon e o seu amigo Drcon tentaram libertar-se para lhe bater. Os nossos alunos (incluindo Teodoro) desataram tambm a berrar to alto como o bando de jovens que se lhes opunha, e no me agradou que Teodoro ouvisse o que diziam (aimda que certamente fosse aprender aquilo e muito mais quando ingressasse na escola).- Sendo bem-nascidos, os nossos garotos no devem lutar contra este bando de sarnentos, mas no vejo razo para no disciplinarmos estes pirralhos - disse Eudemo em voz alta.- Tens razo - concordou Hiparco, ainda mais alto. Esto a precisar de umas boas chibatadas.- Ou de umas bengaladas - acrescentou Eudemo. - Vamos experimentar, meus meninos? - Avanou para eles. O rapaz de constituio de touro e os amigos afastaram-se, perseguidos pelas sugestes relativas aplicao profilctica e eficcia prtica de bengalas e chibatas. Claro que estas ameaas no poderiam ser concretizadas, porque os rapazes, embora vulgares e malcriados, deviam ser filhos de cidados. muito grave atentar contra um cidado ou o filho de um cidado agarrando-o ou batendo-lhe, a no ser que se tenha o consentimento do pai (como no caso de um professor). Com os rapazes longe, o valente Mcon pde libertar-se finalmente das mos dos mais velhos. Continumos a andar e aproximmo-nos do local onde decorreria o ritual da manh.- De quando data exactamente esta cerimnia? - perguntou Demtrio a Aristteles.- Bem, j era antiga no tempo em que Aristfanes escreveu As Nuvens... por falar nisso, devamos ler a pea hoje tarde com os rapazes. O jovem Fidpides, que acredita ser muito mais sbio do que o pai, Estrepsades, despreza os mais velhos e os bons conselhos. Esta opinio encorajada por Raciocnio Errado, que troa do passado, referindo-se a estas velharias como as Diplias, os alfinetes feitos de cigarras, as danas obscenas de Cedeides e a Bufnia. Hoje em dia, nunca usaramos broches de cigarras, mas a Bufnia sobreviveu.- Tal como algumas danas obscenas - observou Eudemo.- Est a comear! - gritou Teodoro. Os aclitos dispunham trigo e cevada sagrados no altar de pedra.37Um pequeno cortejo de quatro ou cinco bois entrou no espao sagrado. Pareciam cansados e velhos. J que tem de se sacrificar um boi, faz sentido que seja um j perto do fim. Conduzidos pelos seus guardies e seguidos por dois sacerdotes de Zeus encapuados, os animais comearam a dar voltas ao altar, como devia ser at um deles resolver ser sacrificado. Por fim, um dos bois perdeu o medo, levantou a cabea pesada e cheirou a comida. Depois, estendeu o pescoo grosso e dcil por cima do altar de pedra e comeou a comer os cereais. Era o sinal. Um dos sacerdotes aproximou-se; o boi, feliz, continuava a comer. Um comprido fio de saliva pingava-lhe da boca. O sacerdote encapuado levantou um machado de bronze... e baixou-o. Bastou um golpe. O animal caiu logo, soltando um mugido que foi o ltimo. Tombou sem vida.- Agora a parte mais interessante - murmurou Aristteles.O sacerdote que desferira o golpe fugiu. (Fora aberto um caminho para que os espectadores no impedissem a fuga ritual.) O outro pegou no machado e disse:- Declaro que temos de procurar o perpetrador deste assassnio. E o machado que cometeu o crime deve ser julgado. com o sacerdote e os aclitos do santurio de Zeus e entrmos no recinto do tribunal do Pritaneu. O machado apresentado num julgamento ritual. - De quem o machado? - Do homem que desferiu o golpe mortal.- Onde est o homem que matou?- ser procurado.- Este de certeza o machado que desferiu o golpe fatal? - - Como sabes? - Vi com os meus prprios olhos. Peguei nele. Estava ao lado do corpo.- Ento, com o poder deste tribunal, a lei da cidade de Atenas e o direito do assassinado, condeno este machado. Este instrumento deixa de ter direito a estar aqui e deve deixar Atenas para sempre. Condeno-o a ser atirado ao mar e nunca mais ser visto. Que nenhum objecto assassino permanea na nossa cidade. 38O machado foi levado para imediata execuo da sentena. Claro, teria havido o mesmo tipo de julgamento no Pritaneu se qualquer objecto inanimado houvesse matado uma pessoa. O objecto tem de ser julgado e expulso da cidade mesmo quando mata um homem por acidente, como no caso de um vaso que cai ou de um tijolo deslocado pelo vento. Seja o que for que mate um homem, est contaminado. Ainda h pouco tempo houve um homem que morreu com o golpe de um malho. Pois o objecto de madeira foi condenado como agora este machado. O que a Bufnia tem de extraordinrio que se trata apenas do assassnio de um boi de lavoura. No entanto, a morte (na realidade levada a cabo por toda a cidade) tratada como um assassnio privado e abominvel.- No faz sentido - comentou Demtrio. - Bem, no faz sentido mas uma distraco.- Mas claro que faz. Parece-nos estranho - retorquiu Aristteles. - Hoje em dia, consideramos assassnio a morte deliberada de um ser inteligente, um humano, levada a cabo por outro ser inteligente, tambm humano. Este costume faz-nos perceber que nem sempre vimos as coisas assim. Parece que o ritual data do reinado de Erecteu, no princpio dos tempos, quando Atenas comeava a nascer. A melhor explicao que encontrei que a Bufnia comemora o momento em que os seres humanos decidiram no s domesticar os animais como tambm mat-los... cri-los para os matar e comer. Mas talvez existisse antes qualquer coisa parecida com este ritual, celebrando com tristeza a deciso de que o homem tem o direito de matar os animais para os comer.- E ainda nos sentimos culpados por isso - acrescentou Teofrasto. - por isso que quero que os nossos rapazes assistam Bufnia: para que vejam bem o que fazemos. Tratamos os nossos animais como companheiros e amigos e depois matamo-los e comemo-los. Conseguimos... quase todos ns... controlar-nos o suficiente para no assassinarmos ningum, mas matamos animais inocentes, mesmo os que nos servem, como o boi que lavra os campos e nos ajuda a cultivar os cereais. Os pitagricos tm toda a razo em proibir o consumo de carne.39- Vamos l ver o boi outra vez - sugeriu Mcon. Regressmos ao local do crime. O boi j fora esfolado e o cadver ou carcaa encontrava-se agora num espeto, por cima de uma fogueira. Muita gente volta, especialmente das zonas mais pobres, aguardava com ansiedade o seu festim. O cheiro a carne assada comeou a pairar sobre a Acrpole. Estavam a usar feno e palha para encher a pele, ainda presa cabea e destacada da carcaa com rapidez e habilidade. Enquanto a sua carne assava, o animal comeou a reaparecer nesta imitao, uma boa reproduo da sua altura e forma, mas no do seu movimento.- O exemplo no podia ser melhor - comeou Aristteles. - Isto ilustra perfeitamente a diferena entre forma enquanto entidade viva e apenas forma. Esta ltima no suficiente: isto no o boi. um simulacro de vida mas no tem os sinais da vida. A simples forma no faz a vida.- E o que faz a vida? - perguntei por perguntar. No apenas no caso deste boi, mas em geral? Qual a razo de uma coisa estar morta e outra no?Aristteles soltou uma gargalhada:- Eis o mistrio da vida, Estfano. certeza que uma esttua... ou um cadver...A forma viva implica funo e movimento. A vida actividade concretizada materialmente.O novo boi, sem sinais de vida mas permanecendo em p, foi preso, obedientemente inerte, a um arado, como se os acontecimentos do dia tivessem sido uma simples brincadeira e pudesse voltar agora ao trabalho, como na vspera.- Olha o pap! - Mcon acenou a um senhor alto e digno, de p com um pequeno grupo de amigos. Eram, obviamente, pessoas importantes, com o seu squito de escravos atrs deles. Estes amigos do pap de Mcon incluam, infelizmente, o cidado Teosforo do humor azedo, um homem que eu conhecia e de quem no gostava. Mas estava l tambm Euforbo, muito mais novo e bem-humorado, que eu no conhecia mas de quem achava que gostaria. Trasmaco, o pap de Mcon, era um homem bem-nascido, de feies nobres e severas. Ocupara alguns cargos pblicos e fizera meia dzia de40discursos que tinham sido bem-recebidos, valendo-lhe o ttulo de orador. Pertencia a uma das famlias mais antigas de Atenas mas tambm era aparentado com o orador estrangeiro Trasmaco da Calcednia, que aparece nos dilogos de Plato. Deixando o seu grupo por uns momentos, este distinto ateniense dirigiu-se cortesmente a ns:- Bom dia, Aristteles. Vejo que tomas conta deste meu traquinas de caracis. Isto folga ou trabalho?- As duas coisas. Estudamos o ritual e a sua histria.- E Hiparco disse que hoje tarde vamos ler As Nuvens acrescentou Mcon.Sem comentar o facto de o sistema educativo de Aristfanes e a sua crtica satrica a Scrates serem convenientes ou no para os jovens lerem, Trasmaco respondeu com uma aprovao simples:- Muito bem, muito bem. Gosto de ver preservados os verdadeiros costumes atenienses, como a nossa Bufnia. E quem esta gente? Conheo Teofrasto, mas no verdade que no sei quem so estes professores todos que trabalham na tua escola?Aristteles explicou que eu era s um amigo e apresentou o seu grupo: Eudemo de Rodes, Demtrio de Faleros e os outros. Com ostentosa afabilidade, Trasmaco condescendeu em apresentar-nos aos amigos. Ia comear por Euforbo (porque era o melhor nascido ou talvez o mais impaciente), mas Aristteles interrompeu-o:- Claro que conheo o meu antigo aluno! - E Euforbo, rindo, disse ao mesmo tempo:- Claro que conheo o meu velho professor! Querido mestre, como ests? - continuou, abraando Aristteles afectuosamente. - H quanto tempo! Como vai o Liceu? O que te ocupa agora o tempo: a poltica ou os animais?Sorrindo com afecto a Aristteles, Euforbo compunha uma imagem muito atraente. Era ligeiramente esgalgado, mas bem proporcionado. Devia ter um ou dois anos mais do que eu, mas a agilidade e a expresso de felicidade asseguravam-lhe um ar constantemente jovem. O seu cabelo castanho formava aquela coroa de caracis apertados que atrai pintores e escultores.41Euforbo tinha o porte aristocrtico que chama sempre a ateno.- Ento que tal? - inquiriu, virando-se para ns. como um drama ou uma pardia, no vos parece? - Tinha um brilhozinho nos olhos. - Coitado do boi! como um marido triste, velho e enganado. Parece-me ouvir Clitemnestra dizendo: Dai-me o machado!Gostei de Euforbo: espirituoso, alegre e apreciando referncias literrias, tal como eu. Ocorreu-me que se calhar fora Aristteles que lhe pegara o hbito de fazer citaes e ironizar com elas.- Mas tagarelo de mais - desculpou-se Euforbo. - Devia era apresentar a este grupo de letrados o sbio Teosforo, o distinto Mgacles de Atenas e outros admiradores e amigos de Trasmaco.Os outros companheiros de Trasmaco eram, sem dvida, de meia-idade, mas muito distintos; em comparao com eles, o nosso grupo parecia sem cor e desmazelado. Teosforo dignou-se falar quando me foi apresentado:- J conheo Estfano - disse, indicando que o pouco que me conhecia j vnha de h muito tempo.- E este Mgacles de Atenas - continuou Trasmaco. Mgacles tinha o cabelo curto, ligeiramente grisalho e, no meio da cabea, uma impressionante careca que comeava a ficar vermelha devido ao sol do incio do Vero. Apesar do indesejvel escaldo, tinha uma aparncia distinta e apresentava-se muito bem vestido, com um quton de tecido fino. Cumprimentou-nos com ar aristocrtico, corts, confiante e srio (um senhor no tem necessidade de sorrir aos seus inferiores).- uma grande satisfao para mim conhecer-te pessoalmente. Tenho ouvido falar muito de ti, Aristteles de Estagira. O teu trabalho muito importante. Educar os nossos jovens atenienses um grande privilgio e uma enorme responsabilidade.- Tens razo... sinto-o bem! - Aristteles falava a srio. - Que poderia ser mais importante do que os cidados do futuro?Passmos alguns minutos dizendo banalidades. Trasmaco42deu ento umas palmadinhas na cabea encaracolada de Mcon e perguntou se o rapaz podia ficar com ele tarde, prometendo lev-lo ao Liceu noite. Pai e filho afastaram-se, rodeados pelos atentos escravos. O nosso grupinho separou-se e ns, do Liceu, comemos a preparar-nos para partir. Aristteles, porm, no tentou fzer prevalecer as doutrinas pitagricas, pois autorizou os rapazes e os professores que assim o qusessem a partilhar a carne assada da praa antes de se irem embora. Teodoro no se ensaiou nada para reclamar o seu quinho.E assim se passou o dia. Um dia que juntou o til ao agradvel. Todos tnhamos ficado a saber mais de um velho costume ateniense. O tempo estava bonito e Atenas muito bela. Alm disso, conhecramos gente nova... sobretudo 1eodoro, impressionadssimo com os rapazes da escola, que aos seus dez anos pareciam muito mais velhos e maduros.Mas, na verdade, as coisas no foram assim to agradveis. Soubemos no dia seguinte que fora morto um rapaz. Acontecera na costa e no propriamente na cidade de Atenas, o que era um alvio. Mesmo assim, era um ateniense. Pelos vistos, a vtima era o rapaz que nos insultara e fizera caretas, gritando: Sou Alexandre! Este falso Alexandre, o rapaz de cara de touro, fora morto com um objecto estranho: encontrara-se ao lado do corpo um machado antigo de bronze. Suspeitava-se que se tratava do machado que matara o pobre boi. Aristteles foi chamado a investigar e interrogou os sacerdotes responsveis por atirar o machado ao mar, obedecendo s ordens do julgamento ritual. Mas parece que, recentemente, se adoptara o costume de no o atirar de uma vez por todas ao mar. Isto , era lanado nos baixios e recuperado passados uns dias.- um machado antigo e valioso - explicou um sacerdote, em lgrimas. - No podamos dar-nos ao luxo de perd-lo. No a mesma coisa que matar uma pessoa! E s O usamos uma vez por ano. Depois de estar no mar durante algum tempo, consideramo-lo limpo e recuperamo-lo.Os sacerdotes e os seus assistentes tinham realmente atirado o machado ao mar. Mas, na verdade, haviam-no lanado43com cuidado do barco, depositando-o nos baixios, num local bem assinalado por eles. Como os sacerdotes j iam para a mesma parte da costa h vrios anos, qualquer um que tivesse curiosidade suficiente para investigar o que faziam ao machado podia encontr-lo com toda a facilidade. Mas como que O objecto letal regressara a terra e perpetrara um crime? Entre a gente do povo, havia quem falasse de um demnio sinistro erguendo-se das guas com o machado na mo... medida que o crime foi reconstrudo, no entanto, ps-se a hiptese de que alguns jovens desconhecidos, provavelmente pobres e vivendo naquela zona perto do mar, tivessem resgatado o machado e brincado com ele, se calhar imitando a matana do boi, e desferindo um golpe fatal no rapaz com cara de touro.Como os pais do garoto eram pobres, no teriam direito a nenhuma compensao generosa, especialmente se os criminosos tambm fossem pobres. Por isso, no puderam fazer mais nada. Embora negando qualquer responsabilidade oficial, a cidade de Atenas deu-lhes, mesmo assim, algum dinheiro. Nenhum jovem se apresentou a confessar o crime. O machado foi julgado de novo, desta vez por um homicdio a srio, e tornou a ser condenado a ser atirado ao mar. A sentena foi executada com vigor e muitas pessoas assistiram cena. Mas o assassino desconhecido (ou talvez s homicida acidental) no foi julgado.ENCONTRO COM UM MACACOEu pensava muito no futuro. Uma das questes mais importantes era o meu casamento, que depois definiria uma grande parte da minha vida. Houvera uma altura em que esperara unir-me a uma famlia distinta, tomando por mulher Crmia, filha de Calmaco, mas as coisas tinham dado uma reviravolta e encontrava-me agora noivo da filha de um tal Esmicrines, que cultivava a sua terra perto da estrada para Elusis. Esmicrines, cidado ateniense, nem era de modo nenhum distinto nem uma pessoa simptica; na verdade, o seu temperamento desagradvel era conhecido em toda a regio. Mas eu fizera-lhe um pequeno favor e cara-lhe no goto. Conhecera a filha graas s coisas estranhas e calamitosas que nos acontecem quando viajamos, mas claro que tinha de continuar a fazer de conta que no a vira para no lhe manchar a reputao. Filomela, filha de Esmicrines, era agradvel, doce, bem-educada e bondosa. O casamento j no me parecia uma tarefa difcil e pesada.Discutira o casamento com Esmicrines quando eu e Aristteles regressvamos de Delfos na Primavera. Tnhamos iniciado um longo debate relativo ao dote, mas no ficara nada assente em definitivo. Desde essa altura que trocvamos mensagens. Segundo o costume e a prtica ateniense, eu ainda era novo para casar: a idade mais prpria eram os trinta anos e eu ainda ia fazer vinte e seis. Mas o casamento era uma das poucas maneiras imediatas de ajudar a minha famlia, associando-me a outro cidado e proprietrio de terras. Era, portanto,45chegada a altura de me mostrar outra vez a Esmicrines. Como queria parecer respeitvel, levei comigo um escravo e um burro carregado de presentes.- Olha quem ele ! Afinal apareceste outra vez! - A primeira observao de Esmicrines no foi l muito amvel.- Mas claro - retorqui o mais calorosamente que pude.Tentava parecer calmo, masculino e bem-nascido, mas a jornada fora quente e suada. Vi com satisfao que o mal cheiroso esterco amontoado frente da porta diminura um pouco, sem dvida porque Esmicrines o usara no cultivo da terra. Esmicrines, temos de conhecer-nos melhor um ao outro!- Talvez, talvez - respondeu ele num tom de dvida. De momento, tenho muito trabalho.- Deixa-me ajudar - prontifiquei-me. - O meu escravo tambm pode dar uma mo.- No sei se quero estranhos aqui. Provavelmente ias fazer tudo mal. Mas as coisas vo bem... em geral. Temos uns porquinhos na engorda e um bezerro novo. Anda ver.Esmicrines estava satisfeito por ter algum a quem mostrar a quinta, inegavelmente muito bem tratada, embora na verdade fosse boa ideia haver algum para ajudar no trabalho. Estava eu a pensar c comigo como havia de abordar o assunto com tacto, quando nos dirigimos para casa.- O tempo est to bom que podemos sentar-nos c fora - sugeriu ele. - Talvez Filomela tenha arranjado alguma coisa para comermos. No que cozinhe muito bem... sinto-me envergonhado por apresentar a um hspede to distinto o que ela faz, mas o melhor que tenho. Como reconheci nas suas palavras a modstia, o tacto e as boas maneiras usadas em sociedade, repliquei elogiando os bolos de aveia, rolos de couve, queijos e doces obviamente preparados para a ocasio. Foi a velha criada que nos serviu. Pressenti a presena de Filomela atrs da porta da cozinha e fiz votos para conseguir v-la. J sabia que ela era adorvel: tinha olhos cinzento-esverdeados e o cabelo castanho, com reflexos cor de bolota. Quando for minha mulher, no trabalhar pensei. Mas claro que no o disse a Esmicrines, que estava mortinho por comear a negociar.46- Bem, suponho que vais querer casar-te em Gamlion, como toda a gente, embora no seja nada agradvel andar pelas estradas no Inverno. Na verdade, no sei se posso ir...- senhor, tens de vir... a minha casa ficaria desonrada para sempre se no viesses. A noiva tem de ser levada a casa da famlia do marido na presena de todos os seus parentes. Vai ser um lindo cortejo.- Os lindos cortejos de pacotilha custam dinheiro, como vers ainda antes de chegar a velho. E de certeza que vai chover! Tanta roupa fina deitada rua! Filomela ainda se constipa. O frio ataca-lhe o peito e ters o prazer e a despesa de a enterrar em vez de dormires com ela. Oh, que triste ver a minha filha, a minha nica filha, baixar terra antes de mim!- No penses em coisas tristes - protestei com suavidade. - A minha famlia vai gostar muito de a ver. Garanto-te que a tratar com todo o carinho.- Pois, mas vou perd-la, o que um osso duro de roer. Terei de arranjar um dote e perderei uma trabalhadora. Quem vai ajudar-me na quinta?- J pensei nisso. Deixa-me dar-te um escravo para te ajudar. Posso fazer isso na altura do casamento e...- Escravos! - Cuspiu no cho. - Quero algum da famlia, um cidado a srio, algum que se interesse. No sei o que pensaram os deuses para no me darem filhos homens... que maldio! E outra praga a selvagem da minha mulher, que me abandonou.- Quem ela? Onde est? - perguntei de supeto, embora andasse h muito tempo a pensar como poderia fazer estas duas importantes perguntas. - Suponho que viva?- A minha mulher? Que vagueie muito tempo nas margens do Estige e no tenha uma moeda para pagar a travessia quando chegar a sua hora! A minha mulher viva e floresce. Pelo menos florescia, da ltima vez que soube dela.- Disseram-me que ela... no sei o nome nem a famlia... te deixou e foi viver com o filho do primeiro marido. - No acrescentei que o meu informador fora um rapazinho que estava de visita a uma casa das redondezas na altura em que conheci o irascvel lavrador.47- No sei como se espalham tantas mentiras. Chama-se Filonice e filha de Filonico do Himeto, um homem bem-nascido e com propriedades. verdade que j fora casada antes, mas no por muito tempo, porque o marido morreu no mar. No teve filhos desse primeiro casamento. Ainda era nova quando nos casmos: tinha cerca de dezassete anos e eu mais de trinta e cinco. A minha mulher, Filonice, deu-me uma filha, Filomela - fez um gesto na direco da cozinha -, de pois teve um filho que nasceu morto e a seguir deu luz um rapaz, que morreu passado pouco tempo. Era um beb, nunca recebeu o seu khoes.Assenti. As crianas tm direito a uma comemorao especial quando chegam aos trs anos. No festival da Primavera, as Antestrias, cada uma recebe um khoes ornamentado, um recipiente que comemora o facto de a criana ser vivel e poder considerar-se uma pessoa dali em diante. O irmo de Filomela, tal como tantos outros, morrera na primeira infncia.- No invulgar os bebs morrerem assim tanto - disse Esmicrines, concordando com os meus pensamentos. - Mas Filonice ficou muito mal. Depois, calou-se: no falava nem comia... uma intil. O pai dela veio busc-la e levou-a para casa por uns tempos, at ficar boa. Suponho que nunca se achou recuperada, porque nunca mais voltou. Embora o pai j tenha morrido, continua em sua casa. - Mas... - comecei. - Podias divorciar-te e casar e Talvez tivesses ento mais filhos...- Eu sei. J quase o fiz - continuou. - Quando era novo, vigoroso e suficientemente estpido. No vou casar outra vez, nem penses. O pai dela no tinha o direito de a levar, pois deu-me uma filha viva. Podia t-lo levado a tribunal, exigindo-a de volta. No entanto, nunca soube que dormisse com mais nenhum homem. Suponho que sempre achei que regressasse. Qualquer dia, pensava eu, recebo uma carta a dizer: Chego daqui a trs dias com uma caixa de roupa nova. Beijos, Filonice. Mas no, nada disso. Foi uma tonrice da minha parte ter casado fora do meu demo. Se ela fosse filha de algum vizinho, estaria mais mo.A histria dava muito que pensar: e se a mulher fosse louca48e a loucura uma doena de famlia? Era uma possibilidade desagradvel. Por outro lado, no querer viver com Esmicrines no era sinal certo de insanidade. Pelo menos, no era divorciada: acho que no conseguiria decidir-me a casar com a filha de uma me divorciada. Filonice portara-se muito mal, de facto. Mas o seu comportamento lamentvel era talvez culpa dos pais... e falta de persistncia, para j no dizer de afecto, da parte do marido. Para Filomela que devia ser duro ter sido abandonada assim. Mas se calhar tivera sorte por no ser obrigada a conviver com uma madrasta.- Devia ir ver a tua propriedade - disse Esmicrines. No a tua casa da cidade, mas a tua quinta.- Claro - retorqui. - Temos oliveiras excelentes. O resto est talvez um bocado abandonado. Precisamos de reparar alguns edifcios. Quem toma conta da propriedade o meu criado Dametas e a mulher, Tamia. So fiis e cuidadosos. Mas j esto muito velhos e trmulos. Tenho de arranjar mais algum... mas claro que lhes dou casa e que eles continuam a fazer o que podem.- Pois, quando so abandonadas, as quintas vo-se degradando. Se no temos cuidado, depressa ficamos sem nada. Bem, mas eras muito novo e ignorante para fazer grande coisa quando o teu pai morreu. E pelo menos terra ateniense. Isso o mais importante. Mas h outro filho homem, no ?- . O meu irmo mais novo, Teodoro. No sou o nico herdeiro e ele tem de estar sempre amparado - expliquei. Era melhor pr tudo preto no branco. Teodoro teria sempre direito propriedade da famlia. - Espero que no tenha de se preocupar com estas coisas como eu. E muito mais novo. Uma criana.- Ah, bom, quanto mais rapazes melhor. mais um par de braos para ajudar. - Esmicrines no parecia descontente. - Se calhar at melhor para a minha filha... se te acontecer alguma coisa, e como no tem irmos... percebes? Mas... - acrescentou em tom pensativo, olhando a distncia -... nunca pode faltar nada a Filomela e aos filhos.- Claro! - exclamei.- Gostaria que arranjssemos as coisas de maneira a que49os seus filhos ficassem com a minha propriedade, acontea o que acontecer. Se tu morreres, e visto que o teu irmo tem parte da propriedade, ento ele e Filomela podiam dividir a casa de Atenas. Quer dizer, ele arrendava a nossa parte e dava-lhe os lucros ou vivia com ela e pagava-lhe a metade que lhe cabe.- Vou pensar nisso - repliquei com cuidado. - Parece-me justo que os teus netos herdem a tua terra. Quanto s despesas imediatas, posso dispensar j algum dinheiro da venda do azeite excedente do ano passado... para os lenis, alguma moblia nova e uma festa de casamento. Creio que posso garantir comida e roupa a Filomela e aos filhos.- Bem, a minha filha e os pequenos no precisaro de roupa enquanto eu for vivo, faas tu o que fizeres. Disso podes ter a certeza. E... no quero fixar j uma quantia, mas acho que posso prometer-te um bom dote. No entanto, quero segurana, percebes?- Com certeza - anu. - Posso transferir parte da terra do mesmo valor do dote.- Isso... e tem de ser terra que no herana nem inalienvel, mas que possa ser vendida com facilidade. Se morreres ou te divorciares dela, ou se ela morrer e deixar filhos, ficaremos garantidos. sempre melhor jogar pelo seguro. por isso que quero ver a tua propriedade antes de adiantar nmeros. Preciso de me certificar de que tens alguma coisa boa para oferecer. V l, no vs chamar campo a um terreiro coberto de pedras!Negociar com o meu futuro sogro era um desafio minha calma, mas engoli em seco e tentei parecer o mais amvel possvel.- uma pena que ela no possa deitar a mo ao dinheiro da me! - exclamou Esmicrines, seguindo os seus pensamentos. - Ainda me deviam dinheiro do dote, mas tiveram o descaramento de insistir que no, porque ela regressara... embora no estivesse divorciada, como te disse. E a famlia tem posses. Alguns dos seus bens deviam ser para Filomela. Tm uma bonita propriedade no Himeto, e o pai da minha mulher ia muito bem. Como este av materno de Filomela j morreu,50ela devia herdar parte do que ele deixou. Aquela gente do Himeto tem dinheiro, podes ter a certeza!- Porque no pediste o que lhe cabia por herana? perguntei, um tanto surpreendido.- Pensei nisso, mas nunca tive tempo. A cidade no para mim.- Mas, como cidado, vais Eclsia, no? - indaguei.- De vez em quando. Mas diz-me uma coisa: razovel esperar que quem trabalha a terra largue tudo de dez em dez dias e palmilhe tantos estdios at cidade s para ouvir um bando de cidados aperaltados? Fico logo cansado mesmo quando so grandes oradores como Demades, Demstenes ou Hiperides. E verdade que agora nos pagam para l ir, mas mesmo assim no vale a pena. E a cidade to suja e barulhenta! Cheia de carroas e lixo!Fiquei um tanto espantado com esta descrio, mas tenho de admitir que nunca tinha pensado no peso da cidadania para a gente do campo.- Quanto lei, o servio de jri j chega - continuou Esmicrines. - No me apetece meter-me em aces judiciais, pois isso implica ter de contratar retricos... e perder dias e dias em Atenas, arengando pelos tribunais. Eu no! E s vezes no nada bom para a reputao de uma pessoa nem da famlia. Imagina termos de contar os nossos problemas cidade toda! Mas tu s novo e tens instruo. Com os da tua laia, s conversa e nada de trabalho. Talvez te saias melhor do que eu. Mas no tenhas pressa.- Realmente, devia tentar - concordei. - Onde tenho de ir?- A minha mulher Filonice vive onde o pai viveu, na encosta ocidental do Himeto. O pai dela j morreu, como te disse, mas apareceu outro homem, que desposou a me e vive com ela como se fosse o dono da terra! Na verdade, este padrasto no manda nada, porque Filonice tem um irmo chamado Flocles. No me lembro bem de onde est nem do que faz. No o vejo sei l desde quando.Era uma novidade. Se a me de Filomela tinha um irmo, ento este tio era da maior importncia. Chefe da famlia, tinha51uma relao quase parental com a irm, Filonice, e, de certa forma, com a prpria Filomela. Este Flocles devia ser informado do casamento o mais cedo possvel. Talvez se mostrasse desagradvel e relutante em deixar sair da famlia uma parte do dinheiro que tinha, mas a lei e o costume atribuam-lhe certas obrigaes face sobrinha. Na verdade, eu devia tentar falar com ele.Entretanto, combinei com Esmicrines uma visita nossa quinta e uma ida casa da cidade, para ele poder v-la e conhecer o meu irmo.- Ainda temos muito que falar - disse Esmicrines. Mas parece-me que agora podemos marcar o noivado formal para... digamos, Boedrmion? No fim do Vero. Por essa altura, estou em condies de dizer o montante exacto do dote e j devemos ter combinado tudo entre os dois. No haver ento qualquer obstculo ao casamento.Parecia-me bem. No engye formal, o pai da rapariga entregar-me-ia a filha, colocando-a sob a minha proteco e, como costume entre as melhores famlias, anunciaria ao mesmo tempo o montante do dote. Depois deste anncio pblico e formal, no podamos voltar atrs. Comear o Outono com esta declarao parecia-me uma boa ideia, e havia muito tempo para combinar o casamento. Ainda tinha de convencer a minha me. Era verdade que ia desposar a filha de um cidado de Atenas, nascido num demo ateniense. Isso, pelo menos, contava em abono do casamento. Mas a minha me ia ficar desiludida por eu no contrair laos matrimoniais com a filha de um dos nossos cidados mais abastados, morando numa das zonas mais nobres de Atenas. Ao contemplar a paz do Vero no campo, no entanto, senti que valia a pena... e mais ainda quando entrevi o cabelo e o rosto de Filomela atrs da porta.As coisas no foram muito mais longe dessa vez, embora tenha ficado dois dias em casa de Esmicrines. Os presentes foram aceites de boa vontade. Eu no me esquecera nem sequer de Geta, a velha criada e antiga ama de Filomela: so pessoas que podem ser muito teis. Parti por fim para casa; o animal de carga ia muito mais leve, mas o meu corao no. Dei uma52folga ao burro e parti a p com o meu escravo, que na verdade tinha jeito para os animais: o burro trotava docilmente ao seu lado. Era uma espcie de compensao pela sua falta de esperteza e habilidade manual. Perdera um bocado de um dedo; por felicidade, no tinha nada nas pernas, e era bom a fazer recados.Quando chegmos a Atenas, mandei-o regressar quinta com o burro e continuei sozinho rumo gora. No fim da tarde, quando o sol menos sufocante, as pessoas saem rua a ver o que h para ver. Mas ainda estava calor. Era o tipo de dia em que os ces andam pelos edifcios pblicos em busca de um cho de mrmore onde possam deitar-se no fresquinho e no arranjam melhor stio para descansar do que algum elegante prtico ou os degraus de um templo. Fora ali vaguear para saber novidades, mas o cheiro de uma das lojinhas de comida atraiu-me a ateno e decidi comer alguma coisa. Estava debruado na mesa, cismando nos meus assuntos, quando O vigor da multido e o calor de uma conversa atrs de mim me obrigaram a deixar os meus pensamentos de lado.- Os impostos ainda nos matam! - resmungava um cidado de cabelo grisalho para um amigo, um homenzinho enfezado que pareceu concordar. Mas um terceiro, uma criatura forte e careca, tomou a palavra:- No, os impostos so a maneira de voltar a fortalecer a nossa cidade. Foram eles que nos permitiram ter muralhas e navios de guerra novos. Se no queremos estar sob o jugo da Macednia, temos de pagar impostos e cara alegre. E o que Atenas faz: nesta Primavera, ficmos a ver Antpatro esmagar os Espartanos.Foi nesta altura que olhei para o grupo, pensando que aquilo era um atrevimento num stio onde podia haver emissrios de Antpatro ou outros simpatizantes (para no dizer espies) macednios.- Ora, Apolnio! Que disparate! Ningum paga impostos de cara alegre - retorquiu o homenzinho, cujos caracis escuros sobre a testa pareciam a plumagem de um pssaro. Mas pagamos... esperando que Atenas volte a ser grande e temida.53- s pensarmos na riqueza e nos tesouros de Alexandre - replicou o ousado Apolnio. - A riqueza de Perspolis! Agora dizem-nos que incendiou Perspolis e guardou tudo na Babilnia.- Esta confuso e a necessidade de impostos altos devem-se aos desejos ridculos de uma famlia que se diz real - tornou o homenzinho de caracis escuros sobre a testa. - Uma famlia brbara l da Macednia. Houve tempos em que se discutia se os Macednios podiam participar nos Jogos Olmpicos. C para mim, no so nada gregos, por mais que se pavoneiem.- Oh, mas no, so to gregos! - riu outro homem que se juntou ao grupo. Reconheci Euforbo, o esgalgado e alegre antigo aluno de Aristteles, que o saudara calorosamente na matana do boi.- Como dizes?- Devem ser... esforam-se tanto por ser gregos - explicou Euforbo, continuando: - O nosso Alexandre percorreu as muralhas de Tria para imitar Aquiles derrotando Heitor. No comovente? Alexandre faz tudo para ser grego... anda com as obras de Homero numa caixa. mais helnico do que Helena. Coitado, tem de segurar bem a caixa para no perder a cultura.- Tens razo quando dizes que ele no um homem da tica - concordou o careca. - Atenas tem de voltar a afirmar-se. A Liga de Atenas devia ter sangue novo. Podamos suportar o nosso governo e proteger os nossos colonos com o dinheiro das ilhas e cidades libertadas. Se vai haver um imprio, que seja de Atenas e no da Macednia. Os Atenienses no tm reis. O jovenzinho da Macednia que v para Pla dizer que real no seu buraco.- revoltante a maneira como estes estrangeiros esto a tomar conta da nossa cidade - acrescentou um cidado mais novo, juntando-se ao grupo na peugada de Euforbo. Reconheci o recm-chegado, um homem solene com atitude de sacerdote: Eurimedonte era alto, de corpo frgil, rosto bonito como uma mscara, olhos muito grandes e nariz direito. Tinha o porte de um aristocrata, mas o rosto distinto, sensvel, rgido e srio parecia mais o de um poeta trgico... embora, que eu54

soubesse, no o fosse. Era um homem muito importante, membro dos Eumlpidas, um dos cls mais antigos. Os descendentes de Eumolpos guardam o templo e os rituais de Demter e Persfone em Elusis. Ningum pode participar nos mistrios sem a presena de um eumlpida, e os sacerdotes de De mter pertencem a este cl, que tem alguns membros muito religiosos... mas nem por sombras todos. - O que dizes verdade - continuou com a sua voz clara e precisa. - Estes homens da Macednia que se dizem reais so gente comum, mesmo quando bem-tencionados. Encorajam a presena de outros estrangeiros e enfraquecem os nossos costumes, religio e vida poltica. Ns, Atenienses, devamos resistir aos seus modos insidiosos. No concordas, Hiperides?Virei-me ao ouvir a pergunta, pois o homem que agora se juntava ao grupo era uma pessoa conhecida.Hiperides, o famoso orador, j tinha mais de sessenta anos. Era bastante velho, mas to activo que parecia mais novo. Os moralistas dizem que muito sexo pode prejudicar a sade e apressar a velhice, alm de nos dilapidar a fortuna, mas Hiperides conservava tanto a sade como a fortuna apesar de manter trs belas amantes ao mesmo tempo (desde que a esposa morrera). Era impressionante, se bem que de feies nada doces (mas o facto que as mulheres pareciam gostar bastante). Hiperides era facilmente localizvel, mesmo no meio de uma multido: muito alto, o rosto e as orelhas compridas (como as asas de um vaso decorado) destacavam-se acima das cabeas dos outros homens.Na mocidade, estudara com Plato. Ao princpio, escrevia apenas os discursos dos outros, mas depois ficara famoso como intercessor e at orador. Opusera-se aos Macednios e perseguira os seus apoiantes no tribunal ou defendera os simpatizantes antimacednios. No entanto, Hiperides no era azedo e sarcstico como Demstenes, e sim um homem alegre e jovial, que conquistava as pessoas (dentro e fora do tribunal) com a sua afabilidade e fraquinho por uma boa piada.- No verdade aquilo que Eurimedonte diz, Hiperides? o careca. - Temos de afastar o jugo da Macednia, tanto em pensamento como na prtica.55- Agora tarde - retorquiu Euforbo, dirigindo-se gravemente a Hiperides. - Atenas foi esmagada... Demades tinha razo ao dizer que Atenas perdeu um olho quando Tebas foi destruda. gis e os seus espartanos cobriram-se de glria e o rei morreu como um heri no campo de batalha. E ns? Ficmos sentados nas nossas casas a falar do tempo. Atenas curva-se aos governantes divinos da Macednia.- No - replicou Hiperides. - Estes governantes so simples mortais. Reparars que, apesar das homenagens prestadas ao rei Filipe e desta moda de lhe chamar imortal, a verdade que, agora, no passa de um mero cadver. Digo-te que nunca nenhum tirano cado se ergueu dos mortos; no entanto, j houve muitas cidades aparentemente destrudas que recuperaram o seu antigo vigor.- Mas como podem resistir os atenienses patriticos? inquiriu o careca. - Tu, Hiperides, exortaste-nos a armar os escravos e os residentes estrangeiros! Mas isso seria ir contra a constituio. Tal como, outrora, nos libertmos da tirania, temos de arranjar uma maneira prpria de resistir. Talvez Harmdio e Aristogton nos mostrem o caminho!O patriota careca fez um gesto na direco do famoso grupo de esttuas. Claro que no se viam do stio onde estvamos, porque a estrutura do novo templo de Apolo (que finalmente estava a ser reconstrudo) tapava-nos a viso. As famosas esttuas de bronze lembravam os dois hericos jovens que (geraes antes) tinham assassinado um tirano. O jovem Harmdio aponta a espada ao tirano enquanto Aristogton, mais velho e mais forte, segura a espada por cima da sua cabea, pronto a decapit-lo. um conjunto muito agradvel... e ainda mais porque o escultor no se deu ao trabalho de reproduzir o homem que est prestes a ser morto, poupando-nos assim a apiedarmo-nos dele.- Bem, no devemos esquecer que so apenas cpias comentou Euforbo. - Os Persas roubaram as verdadeiras. Mas agora Alexandre vai mandar-nos as originais de Perspolis. No amvel? Acho o gesto muito agradvel... no so muitos os tiranos que tm assim considerao pela oposioEuforbo passou os dedos pelo cabelo e fez uma expresso diferente, uma mscara rdcula de vaidade e presuno: 56- Cidados de Atenas, eu, Alexandre Magno, o milagre dos Helenos..., o que ele se acha, ...universalmente enaltecido maravilha entre os jovens, ofereo-vos.., ofereo-vos de graa, sem custos adicionais... um objecto que uma lio: primeiro, matai o tirano... se conseguirdes chegar-lhe!- Ests sempre a brincar, Euforbo - ralhou o cidado careca.Euforbo encolheu os ombros e tirou da manga um par de dados de ouro:- No podemos estar sempre srios. Deixemos a poltica e joguemos aos dados... assim pelo menos alguns podem ganhar. Vai uma aposta? - Os dados de ouro giraram no ar e brilharam luz quente do Sol.- Desembaramo-nos dos tiranos antes e podemos voltar a faz-lo! - agitou-se Apolnio. - E vamos libertar-nos dos que aceitam subornos da Macednia para trair o seu pas!- Calma, Apolnio - disse Hiperides. - Nada de violncia, peo-vos. Mais cuidado com o que se diz, meus senhores. Quanto aos subornos de qualquer tipo, a Eclsia e todos os bons cidados sempre foram contra.- Hiperides - comeou Eurimedonte -, no so s os homens da Macednia que estrangulam Atenas, e sim os estrangeiros de todos os tipos. J mau que a cidade seja metida no mesmo saco dos outros estados gregos com essa Liga que Filipe cozinhou em proveito prprio. V como estamos a ser invadidos por cirenaicos, fencios e o resto... assim como mendigos, que chegam vindos dos territrios reconquistados da sia.- E comerciantes... fencios. Escumalha egpcia! - atirou o homenzinho de caracis escuros em voz colrica. - Na minha opinio, temos de nos desembaraar deles todos, Hiperides!- No pode ser - volveu-lhe Euforbo. - Sabes muito bem disso, Epcrates. H muitos atenienses que adoram os perfumes egpcios, no verdade? Nunca nenhum de ns deu um presente bem cheiroso a uma amante Ou... - virando-se para Epcrates -... a um rapazinho, escravo ou livre?- Mas h-de fazer-se justia - teimou o homenzinho57chamado Epcrates, corando muito. - H-de fazer-se justia! Hiperides est a ajudar-me contra aquele porco egpcio e a prostituta que arranjou para me tentar! Rua com toda essa canalha!- Isso comigo, meus senhores? - Um outro homem aproximara-se do grupo. Ao contrrio do amontoado de srios oradores polticos, parecia satisfeito e bem-disposto. - Somos canalha?Virei-me e percebi porque usava o plural. O recm-chegado no estava sozinho: tinha ao ombro um macaco, por sinal nada pequeno.- Somos canalha? - Falava em voz alta e afectada, como se quisesse imitar um discurso imaginrio do macaco. - Pois que grupo to canalha... palavra que alguns at cheiram mal!Como o macaco estava nesse momento a fazer uma careta, palavras condisseram muito bem com a aco. O animal tirou uma pea de fruta do saco do dono e comeou a com-la, deixando escorrer o sumo.- Que animal to grande e mal-educado! - exclamou algum ao meu lado. Era Teofrasto. - Saudaes, Estfano acrescentou. - Ainda bem que te encontro. Tenho de falar contigo...Foi interrompido pelo macaco, que lhe cuspiu para a cabea um pedao de polpa molhada. O dono soltou uma gargalhada. Teofrasto tratou logo de limpar a cabea com a ponta da capa, que ficou imediatamente manchada de sumo de fruta. Apesar da arrogncia do animal e do azar de que fora vtima Teofrasto, o dono do macaco pareceu ficar na mesma. Era um homem de aspecto agradvel, com o cabelo bem tratado, os dentes brancos e limpos e a capa de boa qualidade. Naquele momento, o cabelo bem tratado estava a ser alvo da baba do macaco. O animal saltava-lhe nos ombros: todos os olhos estavam certamente em cima dele. Tendo conseguido a nossa ateno, o macaco mostrou-nos o corpo com o que parecia ter orgulho.- Parabns, Clias. Acho que nunca vi nenhum to grande - disse Teofrasto com secura.- Ahh! - riu Clias, acariciando o bicho. - No se arranjam58muitos como este. Veio de longe, para l do Egipto. Os negros levam-nos para o Egipto, at para a nova cidade que Alexandre est a construir. l que se compram.- Que o teu administrador os compra, queres tu dizer interrompeu Epcrates com azedume. - Tinha-me esquecido do teu negcio por esse mundo, transportando mel do Himeto para o Egipto, coisas persas para Atenas e por a fora.- Agora h bons mercados - anuiu o dono do macaco. At melhores desde que as cidades libertadas da Ldia e da Jnia acalmaram. Um grande volume de negcios. No estrangeiro, pagam bem por todo o tipo de coisas. Ces, por exemplo. incrvel como os ces so procurados. Ento os espartanos! E os de Melita tambm... quer dizer, no do meu demo, mas da ilha.- Melita... que nem sequer grega! Uma ilha onde os fencios e os comerciantes de Cartago parecem formigas!- Mas tem bons ces. De ossos finos, delgados e pequenos. Foi por isso que chamei Galhinho minha. Sentava-se