2. Para o seu pai e para o meu e pelas jornadas que eles
realizam dentro de ns
3. Quando as pessoas morrem, o que as aguarda no o que esto
esperando, e nem mesmo o que imaginam. Herclito, frag. 27
4. Andando junto com o animal que vive dentro de ns O Senhor
disse que Ele habitaria a mais espessa escurido. Salomo O
HOMEM-COBRA, imvel no alto do rochedo, observou o vento norte
repleto de estrelas brilhantes trazer a massa de nuvens na direo
das montanhas. O aguaceiro desabou, borrifando as salincias de
rocha negra e escorrendo ao longo das escarpas rumo mata
luxuriante. A imensido da paisagem a seus ps era pontilhada aqui e
ali por muitas colunas de vapor que subiam para o cu, dando aos
vales a estranha aparncia de sepulcros. Os grandes cmulos
elevaram-se e foram esgarados pelo vento, desaparecendo entre as
ltimas estrelas no cu violeta. A luz da aurora iluminou a silhueta
escura, produzindo uma sombra alongada sobre a encosta de pedra.
Era um homem negro e esguio, que trajava apenas
5. uma tanga feita de pele de cobra e ostentava nos ombros
cicatrizes rituais. Grandes serpentes tatuadas enrolavam-se em suas
pernas e do alto da cabea pendiam pequenas trancas de cabelo
encaracolado como vboras. O hlito condensava- se numa fumaa violcea
sob a luz fria da manh. O homem-cobra esquadrinhou com a vista a
amplido abaixo, at encontrar o plat onde as rvores gigantes da
floresta cediam terreno perante os picos de pedra. Naquele lugar, a
um dia de marcha, vivia o demnio. Durante sete anos ele vigiara o
vale para que o demnio no escapasse, s ousando aproximar-se para
levar oferendas quando estava certo de que no seria visto.
Recentemente, porm, os tambores das tribos vizinhas comearam a
falar sobre a criatura e finalmente aproximava-se a hora de descer
as trilhas frias em direo ao frenesi da floresta tropical e
enfrent-la. O sol alto surpreendeu-o esgueirando-se por caminhos
quase invisveis encosta abaixo. frente, grandes rochas nuas
emergiam da neblina e pequenas rvores retorcidas comeavam a
aparecer entre o cascalho e os penedos, cuja inclinao tornava-se
pouco a
6. pouco mais suave, at os campos de flores que coloriam os
declives e outeiros. Tufos de samambaias cresciam na fmbria da
mata, demarcando o limite alcanado pelas grandes rvores, no alto do
territrio do demnio. O vale estava escuro. Apenas num lugar ou
noutro, onde troncos apodrecidos haviam cado, a luz solar perfurava
a camada de folhas e iluminava o vo de pequenos pssaros verde-
esmeralda e algumas borboletas azuis. Mesmo quando o sol estava a
pino, a penumbra persistia e o coaxar dos sapos ecoava pelo ar
sempre mido. Na extremidade mais distante do vale, crianas nuas, da
tribo dos Nmades da Chuva, mergulhavam nas guas ambarinas de um
riacho. O acampamento da tribo encontrava-se um pouco alm de um
bosque de rvores espinhosas. Vrios dias atrs, uma expedio de coleta
de alimentos tinha avistado o demnio que vivia naquele vale, sombra
das montanhas. As mulheres que o viram declararam que tinha a
aparncia de uma criana, mas sua carne venenosa possua a palidez da
lua, o fogo do cu morava em seus cabelos e os olhos eram azuis e
brilhantes como estrelas. Os homens no queriam falar sobre o
assunto, portanto os
7. meninos mais valentes haviam partido para investigar por si
mesmos. Numa clareira logo aps a curva do rio, encontraram um poo
livre de crocodilos, onde poderiam brincar sem medo de serem
carregados pela correnteza ou comidos por animais. Mesmo assim
ningum esqueceu que estavam na piscina do demnio. O canto tmido de
algum pssaro ou o guinchar dos macacos interrompiam os folguedos e
colocavam a todos de sobreaviso, prontos a correr de volta para
suas mes, que procuravam alimento ao longo das trilhas na floresta.
A cada vez que isso ocorria, o menino mais velho zombava do medo
demonstrado pelos menores e apontava o animal causador do rudo. Por
entre as folhas escorregadias rio acima, o demnio observava. Era um
menino ainda pequeno e parecia brilhar entre as sombras. O cabelo
loiro cortado em forma de cuia e untado com leo de coco
re-verberava como metal ao sol, e sua pele clara emitia uma luz
suave. Somente a conformao dos ossos denunciava a origem tribal. O
rosto ostentava os mesmos contornos felinos das crianas que ele
observava, porm por baixo das sobrancelhas castanhas dois olhos
azuis estavam arregalados. Os meninos na gua tinham
8. aproximadamente a sua idade e ele acompanhava fascinado as
brincadeiras no riacho. As gargalhadas e os gritos eram sons
inteiramente novos para ele, pois nunca tinha visto crianas
brincando durante os sete anos em que havia vivido sozinho no vale,
na companhia de sua me, Mala. S h pouco tempo comeara a escutar os
tambores dos Nmades da Chuva. Tivera ento a idia de desafiar os
conselhos de Mala e atravessara o vale acompanhando o rio para
descobrir a origem da msica. Observara de uma distncia segura o
acampamento dos Nmades da Chuva, depois acompanhara as mulheres
enquanto apanhavam frutos e gravetos. Naquele dia aproximara-se
mais dos membros da tribo e agora tinha uma certeza: no eram
diferentes dele prprio. Menino-demnio! soou uma voz assustada. Uma
das crianas apontava para as moitas ao lado da margem. O menino
mais velho deu um passo frente, enquanto os outros se encolhiam de
medo. Um tronco corrodo pelos cupins rolou pela margem lamacenta ao
eco dos gritos: Menino-demnio! Demnio, demnio... O menino agachado
atrs dos arbustos
9. franziu a testa. Sabia que era a ele que os outros se
referiam. No dia anterior, quando as mulheres coletavam vagens,
tinham-no visto atravs das cortinas de trepadeiras. Matubrem-brem.
Menino-demnio! gritaram elas, antes de fugir. Mala chamava-o de
Jaki. Contara-lhe que o pai era um homem de uma terra muito
distante, como o prprio pai dela, e que viviam longe da tribo
porque o esprito dos ancestrais de ambos pertencia a regies
longnquas. Mas ele ainda no podia entender por que o chamavam de
demnio. Jaki gostaria de explicar tudo isso aos garotos que
escarneciam dele, mas havia prometido a Mala que no se deixaria
ver. Relutante, deu um passo atrs, resolvido a descobrir por que os
espritos de seus pais no encontravam abrigo na tribo. Quando
virou-se para sair, tropeou numa raiz, perdeu o equilbrio e se
precipitou ruidosamente com os braos estendidos atravs das folhas,
margem abaixo. As crianas na piscina irromperam em gritaria viso de
tal monstro vindo na direo deles. Fugiram em pnico, agarrando as
lianas que cresciam no barranco para subir o mais
10. rpido possvel. Apenas aquele que zombara dos outros no
correu, porm j no ria mais. Enquanto os companheiros se afastavam,
virou- se e enfrentou o olhar do demnio. Viu que a criatura no
passava de um menino, vestindo uma tanga de fibra igual de todos. A
nica diferena era que a pele, os cabelos e os olhos pareciam feitos
de neblina e raios de sol. Apanhou uma pedra e deu alguns passos na
parte rasa do riacho. Ferang! Volte aqui chamaram inutilmente as
crianas. Ele avanava com os maxilares cerrados e a mo apertando
firmemente o seixo. Andava meio de lado, espirrando gua para tentar
assustar aquela criatura repugnante. Jaki no se moveu. Estava meio
confuso pelo terror. O que haveria nele que assustava tanto aquelas
crianas? Ser que no percebiam que no havia diferena entre eles?
Quem era esse Ferang que o ameaava com uma pedra na mo, como se ele
fosse uma vbora? Abaixe a pedra! pediu. No quero fazer mal nenhum.
Sou um menino como voc. Voc no me engana respondeu Ferang, parando
de avanar e sacudindo a cabea. Sei quem voc , Matubrem-brem.
11. Saia daqui! Gritando as ltimas ameaas, atirou o pedregulho
no menino de cabelos loiros, que se desviou o mais rpido que pde.
Apesar disso, a pedra atingiu o lado de sua cabea, e a viso de Jaki
escureceu. O impacto derrubou-o na lama. Ferang soltou um uivo de
satisfao e voltou margem para apanhar outro seixo. A luz voltou
dolorosamente aos olhos de Jaki, que levou a mo at o local
atingido. Os dedos ficaram cheios de sangue. Levantou-se, comeou a
ver estrelas e caiu outra vez. Entontecido, rastejou pelo barranco
lamacento enquanto suportava as pedradas das crianas nas costas e
nas pernas. Apoiado nas mos e nos joelhos, embrenhou-se nas moitas,
onde se ps de p e fugiu a toda velocidade para o interior do vale
escuro. Atnito e assustado, Jaki corria como um animal selvagem
atravs da penumbra, naquela verdadeira catedral de troncos
gigantescos. Nunca fora atingido antes, e o choque tinha dominado
seu corpo, abolindo toda a capacidade de raciocnio. Correu at ficar
exausto, depois deixou-se cair num colcho de folhas sombra,
respirando pesadamente. O corao saltava no peito, batendo
acelerado: "Matubrem-brem,
12. menino-demnio, menino-demnio..." A dor piorava dentro da
cabea. Acima dele, um macaco com expresso esfomeada ria
zombeteiramente, e seu guincho agudo parecia ecoar:
"Matubrem-brem!" Jaki levantou-se e correu novamente, reunindo
todas as foras de suas pernas infantis. Um bando de pssaros
cor-de-rosa revoou na obscuridade spia da floresta, piando:
"Matubrem-brem!" Um gamb gritou e saltou para fora do caminho
daquele ser em carreira desabalada. A fadiga venceu outra vez o
menino, que dessa vez parou sob as razes salientes de uma grande
rvore repleta de teias de aranha. Finalmente estava sozinho. Depois
de recuperar o flego, tateou com cuidado o ferimento na tmpora e
descobriu que no era muito grande. Levantou-se e continuou, confuso
e zangado com a hostilidade demonstrada pelas crianas. Ser que era
mesmo um menino-demnio? Nesse caso, sua me teria mentido para ele.
Apressou- se por entre a semi-obscuridade mida, batendo com raiva
nas lianas e trepadeiras no caminho, a angstia crescendo a cada
passo. O terreno agora apresentava-se inclinado e o calor da
floresta tropical comeou a diminuir.
13. Um assobio chegou at ele, vindo da clareira na qual viviam.
Quando ouviu o chamado, compreendeu que no era hora de ir na direo
de Mala. No estava pronto ainda para encar-la. Jaki continuou
atravs da floresta e prosseguiu medida que a camada de folhas
ficava mais pedregosa e o ar mais frio, perfumado com odores
resinosos. Por volta do meio da tarde havia atingido as encostas do
vale, onde a selva tornava-se rarefeita e as samambaias
desenrolavam suas folhas em forma de pluma. O menino loiro saiu da
mata e piscou os olhos com a repentina luz solar, refletida
intensamente pelas nuvens que deslizavam no cu. Os campos de
rododendros atapetavam as encostas ngremes, o ar estava carregado
com o cheiro do plen. Alm dos campos de flores ele no tinha
permisso para ir. As escarpas de pedra quebrada eram o domnio dos
espritos. Jaki respirou fundo. O perfume etreo dos botes
misturava-se ao odor de cnfora que se evolava das rochas varridas
pelo vento. Os monlitos de granito realmente pareciam assombraes
vistos dali; veios de feldspato formavam desenhos sinistros e
manchas de liquens castanhos semelhavam silhuetas de rostos
ferozes. At esse dia aqueles olhares malvolos tinham mantido
14. Jaki afastado, porm agora ele encaminhava-se diretamente
para l, indiferente aos apelos da me que o chamava na clareira
abaixo. No olhou para trs at atingir os penedos rachados. A essa
altura, os gritos de sua me haviam diminudo, e, quando o menino
olhou para baixo, ela no passava de um ponto colorido na grama. Em
volta, o mundo ondulava no verde da floresta tropical que cobria
tudo que a vista podia alcanar em todas as direes. Uma coluna de
fumaa azulada subia do acampamento dos Nmades da Chuva. Garas
brancas voavam para o norte sobre as colinas, e do lado mais
distante do cu o sol brilhava como uma estrela branca,
refletindo-se numa cadeia de lagos interligados. Jaki escalou um
penedo rumo a um trecho de vegetao suspensa, e o esforo acabou por
exaurir a excitao do encontro. Quando sentou numa pedra entre tufos
de grama rosada, sentiu- se invadido por uma sensao de relaxamento
provocada pela fadiga muscular. Quem era afinal para que os outros
o temessem tanto quanto ele temia uma serpente venenosa? Olhou em
volta procurando as faces maldosas que havia enxergado l da mata,
mas nada viu, a no ser grandes pedaos de rochas negras com
manchas
15. prateadas de musgo. Ele era o nico demnio por ali. Jaki
levou os dedos ao rosto e delineou em seus traos o contorno da
histria do amor de seus pais. O vale que existia em suas bochechas,
como quando o pai havia deitado com a me, e o nariz proeminente
entre os olhos, como quando haviam se levantado. Mala tinha dito
que ele se parecia muito com o pai. O velho sentimento de tristeza
assaltou-o novamente, enquanto passava o indicador pela testa alta,
to diferente da de sua me. Afastou a mo e pronunciou em voz alta o
nome do pai: Pieter Gefjon. As palavras soaram bem no ar frio, um
nome apropriado para o vento. Jaki abraou a si mesmo protegendo-se
da brisa gelada, lembrando-se da histria contada por sua me, de
como o pai apanhara o vento com velas e viajara pelo mar num enorme
navio. Como nunca tinha visto o mar, nem um navio nem o vento
estendendo as velas, Mala construra para ele um barco de brinquedo
com uma casca de coco e uma folha de palmeira, que fizeram navegar
no lago de guas verdes que havia perto da clareira. As lembranas
das horas felizes com sua
16. me, o vento frio que vinha dos penhascos e a fome que
aumentava fizeram com que se levantasse. Mediu o verdadeiro
emaranhado de picos e vales alm do territrio onde vivia. Algum dia
percorreria essas distncias da mesma maneira que o pai havia feito,
prometeu a si mesmo. Deixaria para trs as tribos que acreditavam
ser ele um demnio e viajaria na direo do horizonte at encontrar o
povo de seu pai. Tal determinao diminuiu sua humilhao, e at mesmo a
dor do ferimento na cabea. Jaki comeou a jornada de volta para
casa. Mais acima, protegido por uma salincia de granito negro, o
homem-cobra observava Matubrem-brem descendo em direo floresta. Com
a mo encolhida em forma de pata, o vigoroso homem desenhou no ar um
smbolo destinado a proteg-lo da radiao invisvel produzida pelo
menino-demnio. Depois prosseguiu, como fumaa negra que escorresse
pelas rochas quebradas. Piratas! berrou uma voz na gvea. O grito
vindo do alto fez com que o capito girasse nos calcanhares de suas
botas de couro de cabra. Pieter Gefjon, um homem magro e barbado,
trajando calo azul at o joelho, camisa com gola rendada e um chapu
largo de
17. capito, permaneceu imvel no tombadilho, olhando fixamente
para o brilho ofuscante da nvoa matinal. Atrs deles, no estreito de
Makassar, delineava-se a costa ocidental da ilha de Celebes,
ocupando toda a extenso do horizonte. Ao longo do litoral, cujos
contornos pareciam indefinidos em virtude da neblina, tremulavam as
grandes massas verdes do mangue, dominadas por enormes rochedos,
marcados aqui e ali pelo vu branco de uma cachoeira. Piscando os
olhos contra a reverberao faiscante da luz na superfcie do mar,
Gefjon conseguiu distinguir na distncia as montanhas de Celebes.
Protegendo os olhos com a mo sobre a testa, o capito tambm enxergou
os piratas. Trs djongs juncos javaneses navegavam nessa direo. Com
seus baluartes em forma de cabea de drago, os navios pareciam
serpentes-marinhas cujos dorsos arqueados estivessem
momentaneamente fora d'gua. As velas catitas eram verdes, o que
assinalava a presena de muulmanos, e portanto inimigos de um
cargueiro holands como o Zeerover, comandado por Gefjon. Lanun
murmurou o capito. Os Lanun eram os piores piratas de toda a
18. Indonsia. A f muulmana no passava de convenincia, um legado
da Guerra Santa que percorrera a sia havia alguns sculos, mas j no
existia nada de santo neles. Gefjon sabia, por intermdio de outros
capites, que tinham caado os Lanun, que possuam o hbito de espetar
as caveiras de suas vtimas no topo do mastro do navio. Dirigiu para
l o olhar e percebeu entre o cordame o brilho esbranquiado dos
ossos. Gefjon levou a mo ao bolso do casaco onde estava sua Bblia e
comeou a rezar. Deus entendia suas necessidades. Em 1607, fazia
doze anos que os holandeses se encontravam na sia, e que Pieter
Gefjon fora capito pela primeira vez nessas guas. Naquela poca, sua
vida se tornara uma verdadeira pregao, no intento de levar para
casa uma glria que se equiparasse ao herosmo do pai e do irmo, que
haviam lutado na Guerra de Independncia contra a Espanha. Mas todo
o seu idealismo viera por terra em Java, durante o primeiro ano
como um dos mais jovens capites da infame Armada Sangrenta. Seu
almirante superior resolvera arrasar Jacarta, que recusava a
suserania da Holanda, e a fragata de Gefjon afundara dezenas de
djongs de velas frgeis que tentaram escapar da cidade em
19. chamas. Os gritos dos homens que se afogavam terminaram de
vez com sua busca de glria. Desde ento, havia vivido somente para
levar utenslios aos nativos, que trocava pelos verdadeiros tesouros
em bruto da criao que os primitivos praticamente ignoravam, ou
acumulavam para seus deuses exticos. O capito continuava a estimar
a velocidade de seus perseguidores. Os djongs eram mais leves e
aproximavam-se rapidamente. Procurou entre os rochedos cobertos de
vegetao uma enseada pequena, na qual pudesse abrigar-se e enfrentar
os atacantes por um s lado. Poucos olhares europeus conheciam essas
costas. Os mapas descreviam Bornu como uma imensido verde cercada
por recifes perigosos e infestados de piratas. Gefjon suspirou
profundamente, para livrar-se do temor que o invadia. Os mapas
tinham razo. O Zeerover era um fluit de vinte e sete metros de
comprimento, que deslocava trezentas toneladas. Um cargueiro de
popa achatada e casco arredondado. Era tambm o primeiro navio
holands a navegar na costa oriental de Bornu, atrado a esse
labirinto de estreitos traioeiros pela promessa de diamantes
grandes como nozes nas areias do rio Mahakam, o Devorador de
20. Homens. A promessa havia sido feita por um homem de
aparncia feroz e rosto quadrado, com o lbulo das orelhas aumentado
artificialmente e tatuagens em traos ntidos e rubros no pescoo e na
palma das mos. Sem um plo no rosto, o semblante de Batuh era
normalmente hostil, porm no momento estava plido e desfigurado pelo
enjo, deitado no tombadilho, olhando para o capito. Por que estou
aqui? gemeu Batuh, controlando a nsia que aumentava com o balano do
navio. Sou um Fantasma da rvore. Fantasmas da rvore no tm barcos.
No perteno a este lugar. Recife a bombordo! alertou um marinheiro
postado no mastro de proa. O Zeerover deu uma guinada quando o
piloto fez a correo de rumo. Essa deve ser a maldio dos
antepassados da tribo, me castigando porque tive prazer com muitas
mulheres sem casar! resmungava Batuh. Agora esto rindo de mim!
Batuh, o caador de cabeas! Coragem, Batuh! A vem a morte no recife.
Coragem agora! J estou morto. H dois anos, desde que o chefe tomou
minhas armas e me baniu para a floresta, por
21. matar o porco sagrado. O exlio me trouxe at aqui, e agora
vou morrer outra vez. No tenho medo, s estou enjoado. No conseguia
mais olhar para os marinheiros suspensos nos mastros e no cordame
oscilantes, ou correndo pelo convs, preparando-se para a batalha.
Fechou os olhos, tentando acalmar o estmago com as lembranas da
cabea dos inimigos que havia cortado para fertilizar os campos de
sua tribo. Uma vez, durante uma longa incurso, ousara aventurar- se
muito alm do territrio da borboleta-verde, ao norte, depois dos
riachos de neblina e das piscinas das tartarugas, at mesmo dos
rochedos onde as guias faziam seus ninhos, procura de uma fora
vital para reviver os campos de arroz. Entre o estranho povo de
pele clara e grande altura que vivia no litoral norte, conseguira
trs cabeas e capturara uma mulher. Ento o arroz havia crescido com
abundncia e a caa fora farta. O nome da moa era Malawangkuchingang
Ar Brilhante Entre as Palmeiras , e, embora parecesse feia aos
olhos dos Fantasmas da rvore, pois no raspava as sobrancelhas, no
esticava o lbulo das orelhas nem cortava os cabelos no formato de
cuia apreciado pela tribo, tinha poder sobre Batuh. Ele tolerava
sua falta
22. de beleza porque ela tinha visto os grandes navios e os
homens de rosto vermelho e nariz grande que os manejavam, e contava
histrias sobre espadas cujo ao era mais forte do que os melhores
que conhecia, e o "pau-de-trovo", capaz de matar a uma distncia
maior do que uma flecha. Ela tambm afirmava que o prprio pai fora
um desses seres extraordinrios, que a havia confiado aos cuidados
de um sacerdote antes de voltar ao mar. Desse homem santo ela
aprendera a linguagem de Deus, a f, e muitos outros segredos que
compartilhava com Batuh, em agradecimento por ter poupado sua vida.
Inspirado pelas histrias que Malawangkuchingang contava sobre o
resto do mundo, Batuh acreditava ser mais capaz de assumir a
liderana dos Fantasmas da Arvore do que os chefes tradicionais.
Numa tentativa de afirmar suas pretenses, ousara caar os porcos
reais e acabara banido por sua arrogncia. Corajosamente
encaminhara-se para o sul, na direo em que os tambores das outras
Tribos da Sombra falavam dos grandes navios e dos homens narigudos
de rosto vermelho. Ao final da primeira noite no exlio, Batuh
encontrou um feiticeiro chamado Jabalwan, um homem-cobra envolto em
peles de animais e dentes de urso.
23. Volte! ordenara o estranho personagem, apontando um osso
para Batuh. Os caminhos frente pertencem aos mortos. Nessa ocasio,
pela primeira vez em sua vida, Batuh teve medo de verdade. O homem
era magro e rijo, moldado por uma existncia de transes e jejum. Seu
corpo estava nu sob a tanga de cobra, a coroa de pele de pantera e
o colar de presas, e ostentava cicatrizes rituais e tatuagens de
serpentes que pareciam danar na pele escura das pernas. Muitos
teriam voltado diante dessa viso, mas Batuh esgueirou-se para o
lado, protegido pela escurido da selva, e ultrapassou o feiticeiro,
que era como a sombra do gavio, ou como a conversa do vento. "
proibido", foram as ltimas palavras que ouviu de sua tribo. Na
terceira lua Batuh encontrou os deuses que procurava. Desafiara o
homem-cobra e atravessara as terras dos mortos, sobrevivendo nos
pntanos e fugindo das ferozes tribos muulmanas da costa, at alcanar
o posto de comrcio holands de Bandjermasin. Entrecortada por
riachos e canais, erguia-se uma vila arborizada de casas com
telhados de samambaias erguidas sobre palafitas. Arvores enormes no
mangue tinham sido amarradas juntas de modo a formar um ancoradouro
entre
24. as ilhotas, num gigantesco emaranhado de guinchos e
andaimes sobre as plataformas carregadas com fardos, engradados e
barris. Elefantes traziam a carga do grande depsito fechado at o
molhe, e pequenos barcos transportavam tudo at a enseada de guas
mais profundas, onde ficavam ancorados os navios. Por um dia, os
homens barbados de cara vermelha assemelharam-se a verdadeiros
deuses aos olhos de Batuh, com sua vila maravilhosa. A excelncia
das roupas, o tamanho monstruoso dos navios e os estranhos olhos
azuis pareciam testemunhar sua aliana com os espritos. Mas as
pessoas na vila contaram a verdade sobre os homens que tinham a
cara peluda dos macacos. Logo depois ele os viu bbados e presenciou
uma disputa entre dois deles que deixou um morto, com a cabea
aberta e o crebro escorrendo para fora, como se fosse algum animal
marinho. No passavam de homens, como Malawangkuchingang havia dito,
mas a cobia tornava-os mais ferozes e mais fortes do que outros.
Batuh sentiu-se envergonhado de ter abrigado o pensamento de que
esses homens feios e barulhentos pudessem ser como deuses. Mesmo
assim, formavam uma tribo muito poderosa: o trovo partia de
seus
25. navios, o vidro holands transformava a luz do sol em raios
que produziam o fogo nas folhas secas, e o metal das lminas era
mais resistente do que as melhores facas que os muulmanos trocavam
por peles de animais com os Fantasmas da rvore. Batuh tomou a
resoluo de trabalhar para os estrangeiros barbados no depsito, na
esperana de atra-los at os domnios da borboleta-verde, onde o poder
deles poderia transformar-se em vantagem pessoal, e as cabeas
douradas enfeitariam sua cabana. No incio no conseguiu ganhar muito
dinheiro limpando botas e carregando gua para os marujos mais
comuns, porm em compensao garantiu sua alimentao e aprendeu um
pouco de holands com eles. Em um ano contava histrias de sua tribo
aos marinheiros, tentando- os com narrativas das coisas que mais
queriam encontrar: diamantes do tamanho de nozes de btel nas areias
do rio. Os gritos de guerra dos piratas arrancaram Batuh de suas
recordaes. Os soldados holandeses estavam a postos na amurada do
navio, com os arcabuzes apoiados em pequenas forquilhas
apropriadas, as mechas prontas e fumegantes. O canho disparou,
inclinando o
26. Zeerover para o lado contrrio. Batuh colocou-se de p a fim
de observar o que acontecia. O tiro levantou uma inofensiva coluna
de gua entre os geis djongs, que se aproximavam rapidamente. Os
piratas brandiam as espadas e apontavam os arcos, os rostos escuros
e crestados de sol brilhando de suor, lembrando besouros prontos a
levantar vo. Os holandeses dispararam os arcabuzes ao mesmo tempo
que partiam dos atacantes as primeiras setas. Batuh dirigiu-se para
o convs, e uma delas passou assobiando a seu lado. Ganchos de
abordagem bateram contra a amurada, e os marinheiros se aproximaram
para cortar os cabos. Uma seta atingiu um deles no olho, atirando-o
aos ps de Batuh, onde ficou gemendo e amaldioando. O aborgine
inclinou- se sobre o homem que gritava, e viu que ele tentava com
uma das mos agarrar a haste da seta que lhe saa do olho, enquanto
com a outra procurava desesperadamente arrancar um amuleto que
pendia do pescoo. Batuh conseguiu tirar o talism de prata de dentro
da camisa do infeliz, e observou que era uma cruz com um homem
pregado. O ferido beijou o objeto e aquietou-se. Batuh embolsou o
talism do moribundo,
27. guardando para si a fora do homem, e tentou juntar-se luta.
Mas o enjo tornava fracas suas pernas e ele caiu de costas,
vomitando blis sobre as roupas holandesas. Quando olhou novamente
para cima, constatou que os cabos de abordagem tinham sido cortados
e os homens conseguiam rechaar por completo o ataque, entre gritos
de alegria. O capito Gefjon trazia a Bblia na mo e batia com ela no
peito medida que gritava ordens: Aprontem o canho para atirar
quando eles voltarem! Assim que terminou de falar foi atingido por
uma flecha que o lanou contra a amurada do tombadilho. Batuh
alcanou o capito antes dos outros. Colocou a Bblia entre suas mos
para que ele pudesse segurar alguma coisa. Tateou ao longo da haste
e afastou as roupas encharcadas de sangue at onde a seta tinha
penetrado entre as costelas. Com alvio, percebeu que a ponta havia
se cravado no osso, sem perfurar nenhum rgo vital. Se o veneno no
fosse muito forte, o capito poderia sobreviver. Mos rudes o
afastaram para o lado. Batuh apoiou-se amurada e observou enquanto
os
28. marinheiros se movimentavam em volta do capito,
carregando-o finalmente para a cabina. Ento retirou do bolso "3o
gibo grande demais para ele a cruz escura de prata, com um homem em
grande agonia pregado a ela. Aparentemente esse era o deus mais
poderoso dos caras-de- macaco, porque todos juravam por ele e o
invocavam quando tinham medo ou estavam tristes. Esse era o deus do
livro negro do capito, o mesmo de quem Gefjon falava com tanta
freqncia. O aborgine revirava o objeto entre os dedos, sentindo a
forma do corpo torturado, que aqueles diabos adoravam. Com esse
amuleto ele seria capaz de conversar com o deus da dor. Rezou para
que o capito vivesse e para que o Zeerover no retornasse a
Bandjermasin e prosseguisse sem ser molestado pelos piratas at o
Devorador de Homens. Sentiu poder no amuleto que estava em sua mo e
achou que sua prece tinha sido ouvida. Como o capito dissera que
esse era o deus do perdo, acreditou tambm que, quando chegasse a
hora de tomar as cabeas douradas dos holandeses para assegurar uma
vida mais abundante aos Fantasmas da Arvore, seria perdoado pelo
bondoso deus. claridade avermelhada do crepsculo,
29. Jaki penetrou na clareira qual vivia. A silhueta de Mala
esperava por ele porta do abrigo sobre palafitas. Um fio de fumaa
subia para o cu, misturando-se ao vapor que se evolava de um caldo
borbulhante que fervia no fogo. Esquecendo o cansao, o menino no
perdeu tempo em subir os degraus entalhados do tronco que levava
varanda. Voc me desobedeceu, mocinho disse a me, descontente. Ela
cheirava a lenha, e seu corpo esguio inclinou-se sobre o filho,
ainda preocupada. Tem carne hoje? perguntou Jaki alegremente,
tentando mudar de assunto, sem muito sucesso. Trs vezes eu proibi
voc de sair do vale comeou Mala, procurando com os dedos insetos e
aranhas no cabelo do filho. E trs vezes voc me desobedeceu. O que
pensa que sou? Uma... ela interrompeu-se ao perceber o sangue
coagulado na tmpora do menino. Jaki encolheu-se enquanto a me se
afastava para que a plida iluminao do interior da choupana
incidisse sobre o machucado. Como aconteceu isso, Jaki? Antes que
ele pudesse responder, Mala levou-o para dentro, sentando-o ao lado
do fogo,
30. onde o caldo de aspecto saboroso borbulhava no caldeiro de
ferro e um pedao de carne de cobra estalava num espeto. Enquanto a
me limpava o ferimento com um tufo de musgo embebido em leo de
coco, Jaki contou o encontro com as crianas dos Nmades da Chuva.
Por que me chamaram de menino- demnio? perguntou por fim, olhando o
rosto largo da me. Os olhos escuros de Mala estavam tranqilos e
profundos como o brilho negro nas lagoas da mata, respondendo a sua
mgoa antes mesmo que as palavras o fizessem. Seu pai era diferente
dos outros pais da floresta. As crianas da tribo no entendem essas
coisas. Para eles, qualquer um que no se parea com eles um demnio!
So ignorantes. Tambm foram ignorantes comigo quando eu era criana.
Meu pai tambm era de uma terra distante... Ela serviu a sopa em
terrinas escavadas em ns de razes, picou a carne em pequenos pedaos
dentro dela, e os dois comeram juntos. Mala contou velhas histrias
sobre o pai dele e os piratas que o tinham assassinado, depois
contou sobre o prprio pai e o enorme navio no qual viera, e na
febre que o levara. Em seguida apanhou a Bblia de Pieter Gefjon e
leu sob a luz
31. do luar do Livro de Daniel sobre o apocalipse. Quando Jaki
foi dormir, sua cabea fervilhava com imagens de reis com rostos
severos talhados em pedra e com naes guerreando como formigas
vermelhas e pretas que disputassem uma carcaa. A ruga de preocupao
que se instalara em sua testa desde que Ferang atingira sua cabea
desapareceu, e o sono envolveu-o suavemente. Mala observou-o at que
as pupilas deixaram transparecer o movimento de olhos que sonhavam.
Essa tinha sido a terceira vez em pouco tempo que o filho a deixara
sozinha durante o dia inteiro, e ela sabia que isso assinalava uma
mudana; um momento que havia temido desde o dia em que Jaki
nascera. Aos sete anos os meninos das tribos da floresta eram
tirados das mes pelos pais e irmos, e circuncidados. Agora que Jaki
chegara a essa idade, ela estava convencida de que o destino iria
lev-lo a algum outro lugar. Acendeu um ramo de erva aromtica para
afastar os mosquitos e foi at a varanda. A luz de muitas estrelas
cintilava atravs das nuvens iluminadas pelo luar, e muitos
vaga-lumes traavam trajetrias luminosas contra a massa escura da
selva. A noite inteira respirava luz. A
32. distncia, os tambores dos Nmades da Chuva soavam, levados
pelo vento noturno, mas ela no entendia sua linguagem. Era
proveniente da costa norte, a filha de um pescador que havia sido
raptada pelo povo da floresta nove anos atrs, quando ainda era uma
criana. At agora no tinha entendido inteiramente o que acontecera
com ela desde ento, porm a f no deus de seu pai ajudara muito a
suportar a solido e a ignorncia quando Jaki nascera. Sombras longas
delineadas pelo luar cobriram a clareira, suaves como as sombras do
passado. Embora nunca tivesse visto o pai em toda a sua vida,
pensou ver o rosto dele, um estrangeiro entre os espritos escuros
dos de sua prpria tribo. Mas tanto os pescadores como seu pai
desapareceram naquela transparncia leitosa do luar, quando Mala
tentou firmar a vista para ver se estavam realmente ali. Estava
sozinha com seu filho, como havia estado nos ltimos sete anos. Nada
havia mudado. Uma sbita lufada de vento trouxe o perfume noturno do
jasmim e o ar frio das montanhas. Pieter Gefjon no morreu. Embora a
febre o dominasse completamente e uma dor atroz invadisse seu
corpo, sua atrao por diamantes
33. no foi afetada. Ordenou que o Zeerover continuasse ao longo
da costa desconhecida. Preso ao leito, sempre agarrado Bblia para
afastar as vises demonacas da febre, Gefjon no tinha condies de
supervisionar a expedio e passou o comando a Jan van Noot, o agente
da Companhia Holandesa das ndias Orientais. Van Noot era um homem
alto e bonito, com cabelos loiros quase brancos. Diferenciava- se
dos outros por apresentar-se sempre barbeado e meticulosamente
vestido segundo a ltima moda europia: babados de seda na camisa,
gibo com botes de prola, botas brancas de salto alto com solas
vermelhas, rendas nos punhos, no colarinho, nos tornozelos, na aba
do chapu de veludo negro e nas luvas perfumadas com jasmim.
Comandar o Zeerover no era uma tarefa desagradvel para Van Noot,
pois ele se contentava em deixar as decises nuticas a cargo do
piloto enquanto sonhava com a verdadeira fortuna em matrias-primas
que esperava por eles no rio Mahakam. Sendo um incorrigvel
conquistador de mulheres, a maior fora de Van Noot residia numa
luxria in- controlvel. Sua prpria presena naquela expedio era
resultado da ira de um poderoso
34. mercador de Amsterd, cujas esposa e filha ele havia
seduzido. Como o mercador tinha uma influncia considervel na
companhia, assegurou-se de que Van Noot fosse enviado na misso mais
arriscada possvel. O perigo na verdade no incomodava Van Noot,
desde que tivesse uma cabina para esconder-se e homens para lutar
por ele. Sem nenhuma chance de extravasar sua lubricidade,
entregara-se de corpo e alma ambio, decidido a retornar para a
Europa como um homem rico. Entoando em voz potente seus cnticos na
selva, a cada parada que faziam para apanhar gua, Batuh anunciava
sua vitria entre os deuses do sul. Quando o Zeerover chegou ao
Devorador de Homens, os tambores j haviam avisado que Batuh das
Tribos da Sombra estava de volta. Muitas outras tribos alm dos
Fantasmas da Arvore compareceram foz do Mahakam para testemunhar o
glorioso regresso. Nativos com os rostos pintados de vermelho
pulavam e danavam ao som dos tambores, dando as boas-vindas ao
exilado e aos deuses que o acompanhavam. Em manifestaes de alegria,
homens e mulheres com o corpo besuntado de leo de coco copulavam na
praia; outros furavam as bochechas com espinhos
35. pontiagudos de palmeiras e punham-se a danar em crculos. Os
holandeses saram do escaler que os havia levado at a praia,
observando tudo aquilo com sorrisos nervosos e expresses tensas,
preparando as pederneiras dos arcabuzes e olhando para Batuh, em
busca de segurana e confirmao de que os aborgines estavam felizes.
O primeiro nativo a ir ao encontro dos holandeses e do exilado que
voltava em roupas europias foi o homem-cobra. Jabalwan havia
viajado por todas as tribos em Bornu, e sabia que os deuses dos
caras-de-macaco eram verdadeiramente homens. Conduziu Batuh e os
estrangeiros praia acima, por entre os aborgines frenticos, at um
trono entalhado em madeira de lei. L estava o chefe que dois anos
antes havia banido Batuh. Era um homem de rosto esqulido, que tinha
o ar sonolento dos que j viveram em demasia. Sabia que seus dias
haviam terminado, pois a volta de Batuh entre os deuses
estrangeiros significava o final do seu reinado. Como ultimo ato de
desafio, tinha preparado um presente para os visitantes que iria
irritar profundamente o usurpador. Perante a multido de nativos de
todas as tribos reunidas, os deuses caras-de-macaco
36. foram presenteados com trs engradados de bambu de tamanhos
diferentes. O menor deles continha uma baixela de pratos de ouro
marchetado, e muito agradou aos holandeses. O engradado maior
estava cheio de presas de elefante. O ltimo deles se abriu,
revelando uma mulher completamente nua. Os estrangeiros perceberam
imediatamente que ela no era como as outras mulheres da tribo, que
usavam o cabelo curto e brilhante com leo de coco, esticavam o
lbulo das orelhas e tinham o rosto negro de feies largas. A pele da
mulher no engradado era da cor da canela; seu rosto, fino e
alongado. O cabelo castanho caa em longas madeixas abaixo dos
ombros, at a curva achatada do ventre e a penugem escura mais
abaixo. Enamorando-se instantaneamente da mulher, Van Noot
sentiu-se decepcionado quando ficou sabendo que ela era um presente
para o capito do Zeerover. Porm seu desapontamento no foi nada
comparado ao sentimento de ultraje de Batuh, j que o chefe estava
oferecendo a sua Malawangkuchingang, que lhe ensinara tudo o que
sabia sobre os caras-de-macaco e que se transformara de criana
feiosa numa mulher que os holandeses
37. obviamente achavam estonteante. Por direito, Mala era
propriedade de Batuh, que lhe lanou um olhar s mos calosas e
arranhadas, percebendo que os Fantasmas da Arvore a tinham colocado
para trabalhar no campo em sua ausncia. A atitude ofensiva do
chefe, dispondo da mulher como se fosse dele, era a nica desculpa
de que Batuh precisava para agir. Apanhou a espada de Van Noot e
dirigiu-se para o trono. O chefe levantou-se para enfrentar a lmina
brilhante, que penetrou atravs do colete de plo de macaco e
perfurou- lhe o corao. Batuh agarrou-o pelos cabelos, abaixo da
coroa de pele de leopardo, e jogou-o para a frente, esticando o
corpo no cho. A espada de ao movimentou-se como um raio em sua mo.
Silenciosamente, ele levantou do cho a cabea do chefe, o sangue
pingando na areia quente. Um grito de espanto percorreu a multido e
logo se transformou numa algaravia de comentrios entre os nativos
indecisos. Guerreiros dos Fantasmas da rvore, que guardavam os
flancos contra as outras tribos, avanaram na direo de Batuh, com as
facas desembainhadas. Olhem aqui! Olhem todos aqui. Os
38. deuses esto vendo! disse Batuh, balanando a cabea cortada.
Eu voltei para reclamar o que meu. Os deuses so testemunhas! Os
holandeses foram apanhados totalmente de surpresa pela situao, mas
no puderam fazer nada alm de permanecer em frente a Batuh, com as
espadas desembainhadas para se defenderem, se fosse preciso. A
presena deles era toda a autoridade de que Batuh precisava. Pelo
menos por hora, ele era o chefe dos Fantasmas da rvore. A multido
agitada separou-se para abrir passagem a Jabalwan, que caminhou at
Batuh e parou sob a sombra da espada. Vai matar o caador de almas
tambm? Batuh abaixou a espada e mostrou a cabea ao feiticeiro. Esse
o nico sangue que os deuses desejam hoje, Jabalwan. Deixe a cabea
aqui ordenou Jabalwan e venha comigo para a selva. Acabou de falar
e percorreu novamente o espao aberto pela multido, prosseguindo em
direo aos portais verdes da floresta. Batuh estreitou os olhos,
ponderando as alternativas. Se seguisse o feiticeiro ao interior da
selva, ficaria merc dos truques e dos venenos do
39. velho, o que poderia custar a prpria vida num piscar de
olhos. Se no fosse, todas as tribos testemunhariam sua covardia.
Aparentando autoridade, ordenou s tribos que recolhessem suas
melhores ofertas. Levantou o punho da arma na direo de Van Noot:
Vou ficar com isso. Com a minha bno garantiu o holands, contente
por perceber que as tribos estavam se acalmando e deixando de lado
as armas. O feiticeiro havia desaparecido de vista na densa vegetao
rasteira da mata, e Batuh dirigiu-se rapidamente zona escura e
sombreada, entremeada de palmeiras e reas de mangue. A luz
esverdeada envolveu-o num calor mido, e o vozerio na praia foi
abafado imediatamente. Batuh exultava, apesar do medo. Esse era seu
verdadeiro lar, e ele olhava cheio de saudade para os troncos
enormes cobertos com os tentculos de trepadeiras, para as alturas
titnicas, onde um dossel de musgos e lianas era perfurado pela luz
do sol. O chilrear dos pssaros indicou a direo tomada pelo
feiticeiro. Batuh seguiu em frente, escalando silenciosamente um
tronco cado no caminho.
40. Desejou no estar usando as desajeitadas roupas dos
caras-de-macaco, que pusera para fazer boa figura na chegada, pois
elas obrigavam-no a prosseguir devagar e mantinham o calor prximo
ao corpo de tal maneira que em poucos minutos estavam encharcadas
de suor. Os mosquitos zumbiam ao redor, e ele lamentou no ter mo a
pasta de razes e lama que os de sua tribo usavam para afugentar os
insetos. Passou por formigueiros do tamanho de homens em p, por
grandes flores vermelho- sangue que exalavam o odor de carne em
decomposio e por cogumelos do tamanho de prolas. No interior da
floresta, onde o ar penetrava frio pela copa das rvores, Jabalwan
encontrava- se sentado no cho sombra espessa de um enorme tronco
recoberto de fungos. Z-z-zhut! fez o feiticeiro. A imitao do zunido
de um arco disparando foi to perfeita que Batuh atirou-se ao cho e
rolou em busca de proteo. Voc quer ser o chefe dos Fantasmas da
rvore? escarneceu Jabalwan. Batuh levantou-se rapidamente, limpou
as folhas que aderiam ao seu traje e balanou a espada.
41. Eu voltei com os deuses afirmou. A prpria voz soou-lhe como
o coaxar de um sapo, e ele esperou um pouco antes de continuar.
Durante esse intervalo, seu olhar seguiu a lmina da espada que
empunhava at o semblante do feiticeiro. Os olhos dele estavam
fechados. Olhos de serpente tatuados em vermelho nas plpebras
observavam-no impassveis. Batuh abaixou o sabre. Os deuses so
minhas testemunhas. Eles so simplesmente homens, Batuh declarou
Jabalwan, com sua voz rouca. Sei tudo sobre eles e os grandes
navios. So homens como ns. Mas so diferentes... Eles fedem. E voc
fede como eles prosseguiu o feiticeiro com desdm. Voc cheira como
algum que no gosta de sol. Acho que sua sombra j est nas trevas,
Batuh. Sou o chefe legtimo da minha tribo. Cacei mais do que
qualquer um e ofereci mais cabeas. Andei alm da terra das chuvas e
fui at o mar, at a aldeia dos caras-de-macaco. E voltei de l
trazendo presentes. Voc e eu nos conhecemos desde o comeo dos
tempos afirmou Jabalwan, sorrindo e estreitando os olhos
tatuados.
42. Ento vai me ajudar? Vai fazer as pazes com os antepassados?
Paz? Os olhos do feiticeiro se abriram, e o olhar fixo e
intencional provocou arrepios em Batuh. Voc no est falando com
nenhum chefe ou com os velhos! O que me importam a paz ou as lutas?
Levantou o rosto, orgulhoso como uma cobra. Sou um caador de almas.
Vivo no mundo dos espritos, fora das tribos. Vejo o movimento das
nuvens no cu, com as costas para a terra. Converso com a floresta,
que se agarra terra como um homem louco, e aprendo como atingir as
nuvens. Se no me ajudar, vou mat-lo afirmou Batuh, apontando a
lmina para o caador de almas. Jabalwan sorriu com escrnio e
levantou o punho esquerdo com a mo fechada. Quando abriu a mo, um
leopardo rugiu atrs de Batuh, que girou nos calcanhares, a espada
pronta para entrar em ao contra um possvel bote do felino. Nenhum
leopardo quer a sua carne, Batuh tranqilizou Jabalwan, cruzando as
mos no colo. Se eu ajud-lo, o que me dar em troca? Batuh virou-se
novamente para o feiticeiro, as mandbulas cerradas com fora e a
espada
43. tremendo na mo. Sua raiva estava no auge, despertada pelo
medo. Depois teve uma idia, e a irritao desapareceu subitamente.
Enfiou a mo no bolso e pegou o crucifixo que havia apanhado do
holands que cara a seus ps durante o ataque dos piratas. Este o
deus dos caras-de-macaco anunciou. Voc aceitaria? Jabalwan encarou
o outro com ar sombrio, depois fechou novamente os olhos. Quando
Batuh j estava a ponto de admitir sua falha, o feiticeiro estendeu
lentamente a mo, como uma vbora vigilante, com a palma para cima.
Batuh sorriu por dentro, mas no deixou que o rosto demonstrasse.
Colocou o crucifixo na mo estendida, mas no soltou a corrente.
Preciso de mais uma coisa alm da garantia de paz com os velhos da
tribo. Jabalwan abriu os olhos sem retirar a mo. O chefe dos
caras-de-macaco foi ferido no peito por uma flecha Lanun contou
Batuh. Ele teve muita sorte por ser uma flecha Lanun comentou o
feiticeiro. Eles fabricam seu veneno com a lula-azul dos recifes. O
veneno enfraquece rapidamente, e eles so muito preguiosos para
prepar-lo sempre. Voc me daria o remdio para curar o
44. ferimento? O que voc procura est debaixo dos seus ps
afirmou Jabalwan, fechando os dedos sobre o crucifixo. As folhas
mortas? indagou Batuh, incrdulo. s isso que v na terra? O
feiticeiro passou levemente os dedos pelo cho, afastando as folhas
decompostas, e apanhou o corpo de uma formiga que se debatia.
Apanhe um punhado dessas formigas vermelhas. Vou pegar o resto de
que precisamos. Batuh enrolou uma folha em forma de cone, dobrando
uma das pontas. Aplicou a ponta de um galho resinoso para manter as
partes unidas e comeou a recolher as formigas do cho. Enquanto
isso, Jabalwan circulava o tronco sombra do qual estivera sentado,
recolhendo fungos azulados, de filamentos longos, que cresciam por
ali. Quando Batuh veio a ele com o cone repleto de formigas, o
caador de almas enfiou um chumao de fungos no interior da folha,
dobrou a ponta ainda aberta, e rolou o invlucro fechado contra a
coxa, at esmagar as formigas e as plantas, transformando tudo numa
pasta. Aplique isso no ferimento. Vai queimar e
45. provocar febre durante a noite. Ao amanhecer, ele se sentir
mais forte, e a ferida vai cicatrizar sem mais problemas. Batuh
enfiou a espada entre o cinturo e as roupas e apanhou a folha
contendo a pasta com as duas mos. Nunca esquecerei que me ajudou,
Jabalwan. Aceito este amuleto como pagamento pelo remdio declarou o
feiticeiro. Mas pela paz com os mais velhos voc ainda no me pagou.
O que quer? Uma vida. Batuh franziu a testa. No a sua. E no neste
momento. Uma vida, quando eu pedir. Batuh assentiu com um gesto de
cabea, e Jabalwan penetrou na escurido verde da selva. Um macaco
gritou, e uma serpente voadora moveu-se na copa das rvores. Quando
olhou novamente, o feiticeiro se fora. Jaki acordou no meio da
noite, arrancado do sono pela dor do ferimento. O sorriso rude de
Ferang e o alarido das crianas dos Nmades da Chuva com as pedras na
mo se dissolveram perante a viso familiar da choupana, e o som
escarninho das risadas transformou-se no coaxar
46. noturno dos sapos. Levantou-se e foi at a rede onde dormia
a me. Precisava do conforto dela contra os sentimentos horrveis
despertados pela pedrada recebida na cabea. Queria segurana, embora
soubesse instintivamente que estava alm da ajuda que ela poderia
dar, e isso o assustava mais do que nunca, fazendo-o desejar seu
abrao. Estranhamente, quando se aproximou o suficiente, no teve
coragem de toc-la. Ficou ali, vendo-a adormecida, a respirar
serenamente, e a dor dos ferimentos ocultou-se em seu corao. Ela
era to bonita como a vista maravilhosa que tivera a oportunidade de
observar do alto dos campos de flores, com o mundo se estendendo a
seus ps. Recuou um pouco, de maneira a observ-la por inteiro, as
pernas dobradas e as mos encolhidas abaixo do queixo. Parecia uma
criana, quase do mesmo tamanho que ele. Uma onda de amor invadiu
seu corao enquanto as sombras se adensavam na choupana. No transe
daquela viso, sentiu algo da mesma premonio que a prpria me tinha
experimentado ao velar seu sono ainda h pouco. Ele tambm tivera
conscincia de que uma mudana ocorrera na vida dos dois. A
primeira
47. vez que abrigara tal sensao fora no dia anterior, no alto
dos campos floridos, quando a figura da me parecera minscula contra
a imensido da selva. Algum dia ele deixaria o vale e vagaria pelas
terras alm, como o seu pai e o pai de Mala haviam feito antes dele.
O que seria feito dela ento, da criana que era sua me? Uma mariposa
roou-lhe a bochecha e quebrou o encantamento. Os pulmes encheram-
se com o ar mido da noite e ele recuou para a escurido protetora.
Quando Batuh saiu da floresta, os holandeses haviam acabado de
descobrir que Malawangkuchingang falava uma lngua que podiam
entender. Embora o espanhol fosse a lngua de um pas inimigo da
Holanda, a beleza etrea da moa conquistou logo a simpatia dos
estrangeiros. Van Noot mal conseguia manter as mos afastadas do
corpo dela e havia cerimoniosamente ajudado a cobrir sua nudez.
Malawangkuchingang estava feliz pela chegada triunfal de Batuh,
porque os Fantasmas da Arvore a tinham maltratado durante os dois
anos em que ele ficara fora. Batuh era seu seqestrador, porm sempre
a tinha tratado com respeito pela sabedoria que ela lhe oferecia.
Quando ele ordenara que fosse com os
48. holandeses at o navio e administrasse o remdio que o
feiticeiro havia preparado, tinha protestado, mas no pudera
recusar. Batuh havia percebido a adulao e a cobia nos olhos dos
holandeses, e compreendera que essa mulher feia vinda do norte
poderia ser de utilidade em seu plano para possuir as cabeas
douradas, que certamente iriam conferir-lhe superioridade entre as
tribos. Prometera a Van Noot que iria curar o capito, e enquanto
isso organizaria os bens das tribos para o comrcio. Os holandeses
encararam com desconfiana o remdio dos aborgines, porm aos olhos de
Van Noot a mulher alta de pele morena era ainda mais tentadora do
que o ouro e o marfim que receberam, e ele ordenou que ela fosse
levada a bordo, embora no tivesse esperana de que fosse de alguma
ajuda para o capito. Na viso delirante de Pieter Gefjon, a moa
nativa estava em chamas, o ar tremulando ao redor dela, com um
brilho dourado. Nos dois dias que se passaram desde que fora
ferido, a dor havia aumentado e a febre subira de forma
assustadora. Ele est muito doente disse Malawangkuchingang a Van
Noot, em espanhol.
49. Ela estava respirando atravs da boca para evitar o cheiro
de carne ptrida que dominava o interior do camarote do capito,
cujos olhos febris mantinham-se fixos nela. Trago remdio para seu
ferimento. A mulher chamejante falou na lngua do inimigo, e Gefjon
soube que ela era uma sedutora forma da morte, que tinha vindo para
libert-lo do sofrimento. Apertou com mais fora a Bblia entre as
mos. Ela era a morte, a leoa que o Senhor enviara para levar sua
alma. As garras pairavam sobre ele desde que a flecha o tinha
atingido. Iluminado por essa revelao, levantou o rosto para
encar-la de frente, e a dor nos pulmes flamejou. Com um gemido, o
capito deixou cair novamente a cabea. Esse remdio pode ser veneno
disse Van Noot em voz baixa, inclinando-se sobre Gefjon. Seria o
melhor remdio respondeu o capito, com um dbil sorriso. Deixe que a
leoa cuide de mim. Malawangkuchingang abriu a camisa de Gefjon,
maravilhando-se ao toque da seda e com a profuso de cores nos botes
de abalone, e exps a ferida. As bordas negras cauterizadas
dobravam-se ao redor de um buraco em carne
50. viva cheio de cogulos, supurando um lquido amarelo e
espesso. Ela olhou para Van Noot. Talvez seja muito tarde. Agora
voc precisa segur-lo. Mala abriu a folha enrolada, e um cheiro cido
espalhou-se pela cabina. Rapidamente ela acomodou a pasta
marrom-violcea na abertura do ferimento. Uma dor dilacerante
invadiu Gefjon e levou-lhe a conscincia de uma s vez. Na tarde
seguinte, depois do primeiro dia de comrcio bem-sucedido, trocando
as mercadorias holandesas pelas riquezas da selva, a febre do
capito baixou. Acordou e encontrou a mulher nativa ao lado do
leito. Apesar dos convites apaixonados de Van Noot para que ela o
acompanhasse at sua cabina, onde no havia aquele odor nauseabundo,
Mala havia preferido ficar com o homem doente, que provavelmente
era parecido com seu pai, e, como ele, um estrangeiro que ela mesma
no tinha conhecido. Gefjon estudou as ondas do cabelo castanho, a
base afilada do nariz e as profundezas palestinas dos olhos
escuros. Queria agradecer quela mulher por ter-lhe diminudo a dor,
mas o toque dela parecia fazer com que flutuasse fora do corpo e a
voz recusava-se a obedec-lo. Ela tinha uma aura sobrenatural a
51. envolv-la, doce e azul como a neve, ou como um remoto tufo.
O capito fechou os olhos, e o rosto mourisco seguiu-o at a
escurido. "Do que tem medo?", parecia perguntar a expresso
enigmtica. O tmulo como um bero. A terra o ninho do cu. Espiou
atravs das plpebras semicerradas e percebeu-lhe os brilhantes olhos
com a graa de um demnio determinado a conserv-lo neste mundo, a
diminuir-lhe o medo da encruzilhada final e a manter sua alma na
carne mortal. Ela iria cur-lo, e ele no resistiria. Durante a
noite, a Bblia cara de sua mo, e ela a havia apanhado,
conservando-a no colo, lembrando do conforto que tinha
experimentado durante os anos em que estivera no orfanato. Era to
pesada quanto a Bblia do pastor que conhecera quando menina, e
tambm era encapada em couro e impressa em latim, a nica lngua que
era capaz de ler. Ela abriu o livro e, para acalmar o atormentado
capito, leu em voz alta a primeira frase que lhe chamou a ateno:
Alegrem-se, pois seus nomes esto escritos nos cus. Pieter Gefjon
estava perdendo a conscincia novamente, e a voz acompanhou-o no
desmaio. Os ecos refletiam e reverberavam em sua mente:
52. "escritos nos cus". A escurido na qual penetrava possua
filetes luminosos. Cada um desses filamentos de fogo era na
realidade um nome, formando um turbilho de letras luminosas que
possuam o brilho da gua, ou o das estrelas. Pelo amanhecer, a dor
havia passado e o capito pde levantar e fazer suas necessidades na
proa. Como sinal de gratido pela cura, ajoelhou-se ao lado do que
teria sido seu leito de morte e orou juntamente com a nativa que o
salvara. Como recompensa, concedeu-lhe permisso de voltar a Batuh,
e Mala foi levada para a terra no primeiro escaler. Gefjon ficou
contente com o resultado do comrcio com os nativos. As tribos
mostravam-se vidas pelas mercadorias holandesas e haviam negociado
grandes quantidades de gengibre, noz- moscada, chifre de
rinoceronte e barras de prata. Mas os diamantes que o capito
cobiava no apareceram. Batuh deu sua palavra de que existiam, mas
haviam sido reunidos para uma cerimnia ritual no interior, e
estariam disponveis dentro de dois dias. Como prova disso,
presenteou Gefjon com uma bolsa feita de bexiga de peixe,
dizendo:
53. A moa Malawangkuchingang foi oferecida a voc pelo antigo
chefe. Com isso, eu a compro de volta. O capito abriu a bolsa. Seus
olhos brilharam quando viu as duas pedras leitosas no interior.
Diamantes! Isso, tuan. Estes me foram dados na festa dos Nmades da
Chuva, uma tribo do interior. Chamam essas pedras de Lgrimas do
Deus da Montanha. Existem mais destas? perguntou Gefjon sopesando
as pedras e percebendo com grande assombro que eram de excelente
qualidade. Claro! Muitas mais assegurou Batuh. Na verdade, no
esperava mais nenhum diamante. Em vez disso, havia secretamente
entrado em contato com os piratas Lanun por intermdio dos tambores.
Eles atacariam o Zeerover e tomariam a carga, deixando as cabeas
para Batuh. Mesmo com a promessa de mais diamantes, o capito no
gostava da idia de permanecer durante muito tempo naquele esturio
.raso. Alm de no confiar completamente em Batuh, temia novo
encontro com os piratas que haviam
54. repelido no mar. Deu ordens para aprontar o navio para
partir durante a noite, quando a mar enchesse. Mais tarde, sentado
sozinho escrivaninha em seu camarote, com a Bblia e os diamantes na
mo, Gefjon lembrou-se da viso que tivera quando delirava. A febre o
havia atirado num poo profundo e negro, cujas paredes ardiam como
linhas de fogo. Os pequenos filamentos incandescentes eram na
verdade como letras, que formavam nomes, sendo cada nome o galho de
uma rvore flamejante. Talvez no como uma rvore, e sim uma rede de
veias brilhando contra a rocha negra da febre, vermes de fogo. Qual
seria o significado dessas imagens? Abrindo a Bblia e examinando o
verso da capa de couro, ele leu o nome dos pais, Kee e Jaki,
escritos ao lado da respectiva data de nascimento. O espao para sua
assinatura permanecia em branco. Desde que ganhara a Bblia, havia
vinte anos, quando sara de casa para cursar a Academia Naval,
acreditava na superstio corrente de que, se assinasse o livro antes
da morte dos pais, estaria condenado a um fim prematuro. Agora,
enquanto destampava o tinteiro embutido na escrivaninha e tomava
da
55. pena, compreendeu que o espao no estava esperando somente
pelo seu nome, mas tambm pela viso que tivera. Assinou o nome ao
lado da data de nascimento, e abaixo acrescentou em latim: "Vi o
leo do momento final ele guarda a mina de assinaturas". Batuh ficou
desesperado ao saber que o Zeerover pretendia partir com a mar da
noite. As tribos, fascinadas com os caras-de-macaco, com certeza no
pegariam em armas para um ataque em massa, e os Lanun s chegariam
na madrugada seguinte. S havia uma maneira de manter a presa em
posio at que a armadilha estivesse pronta. Em suas roupas europias
folgadas, com um cocar de penas coloridas balanando na cabea, Batuh
avanou pela praia na direo de Malawangkuchingang, que estava
separada das outras mulheres. Ar Brilhante Entre as Palmeiras
comeou ele, assustando-a ao usar seu nome completo. A ltima vez que
a chamara assim fora quando explicara por que tinha necessidade de
desafiar o chefe e arriscar o exlio. Preciso de sua ajuda. Meu
chefe, tudo o que puder fazer, farei. Seus dedos tocaram o peito de
Batuh, que
56. pousou a mo sobre a dela. uma coisa muito difcil para mim o
que tenho a pedir, Ar Brilhante. Mas, se pretendo ser o chefe, e se
a terra dos Fantasmas da rvore quer colheitas fartas, preciso
manter os caras-de- macaco na baa at o amanhecer. Por qu, meu
chefe? Temos as ferramentas deles, as roupas deles e o sal. Agora
esto negociando moblia e bugigangas. Se partirem agora, no
perderemos nada a no ser ornamentos. Sou um caador. Eles so minha
presa. Trouxe-os at aqui para obter mais do que simples
mercadorias. As pessoas tm as mercadorias, mas a terra no tem nada.
Mala segurou com fora a camisa de Batuh quando compreendeu o que
ele pretendia. Seu rosto assumiu um ar preocupado. Pode fazer isso?
Posso. Mas s se eles ficarem mais uma noite. Mas, Batuh, e as
armas? Os canhes... Todos estamos prometidos aos mortos, Ar
Brilhante. Mas esse no assunto para as mulheres compreenderem. No
sou uma mulher dos Fantasmas da rvore. Conheo os mortos. Mas no
quero v-lo
57. entre eles declarou Mala com orgulho, as narinas se
dilatando. A tribo no vai desafiar os caras-de-macaco, Batuh. Eles
vo fugir ao primeiro barulho. Voc vai ficar sozinho. Existem
outros. Guerreiros ferozes. Esto a caminho e devem chegar ao
amanhecer. Preciso manter o navio aqui at ento. Mas os caras-de-
macaco vo partir esta noite. A menos que me ajude. Mas como posso
manter os estrangeiros aqui? O capito no me obedece... Existe uma
maneira Batuh respirou profundamente antes de prosseguir. H um,
chamado Van Noot, que a deseja... Ele to feio! exclamou Mala,
recuando com expresso de horror. verdade. Por isso to difcil para
mim pedir-lhe que conceda a ele seus favores esta noite...
Malawangkuchingang conteve um soluo e escondeu o rosto entre as
mos. Batuh aproximou-se dela e suavemente passou um brao ao redor
de seus ombros, enquanto lhe abaixava as mos e procurava seu olhar.
No se entregue a ele antes que o capito se convena a ficar at de
manh. Saber que conseguiu se o grande navio no levantar ncora
58. antes do amanhecer. A essa hora a mar j ter baixado e os
recifes vo mant-lo dentro da baa. Mas eu no posso me entregar a
ele! Batuh colocou a mo sob o queixo da companheira e encarou-a com
determinao. Voc mesma me ensinou que podemos fazer tudo. Mas no
isso, Batuh. No me entregue quele homem feio. No pretendo dar voc a
ele. Voc minha. Para sempre. Mas no consigo pensar em outra maneira
de mant-los aqui e assegurar o poder que preciso para manter a
terra. Para ns, e para nossos filhos. O pensamento de crianas,
filhos dela e de Batuh, amenizou o medo de Mala, porm o corao ainda
estava apertado. Nenhum homem a no ser voc jamais me desejou. Batuh
enfiou a mo no bolso do gibo e retirou de l um colar de asas de
liblula iridescentes, mais delicado do que qualquer jia dos
Fantasmas da rvore. Foi feito pelos Nmades da Chuva. Voc ter as
mais belas jias e roupas da tribo. Nunca mais precisar trabalhar
nos campos declarou ele, afastando as madeixas de cabelos
castanhos
59. e colocando-lhe o colar no pescoo. Amanh vamos voltar
juntos para as Cabanas Grandes. Voc ser minha mulher. Voc no vai me
odiar por fazer o que est pedindo? Vou odiar voc se no fizer o que
estou pedindo disse Batuh com veemncia, apertando-a fortemente
contra o peito. muito importante. Voc vai ganhar prestgio entre o
povo das tribos se fizer isso. Ningum vai cham-la de feia
novamente, e voc ser a mulher do chefe. Sua histria ser cantada
beira do fogo muito tempo depois que tivermos partido para alm
deste mundo. Vai me obedecer? Malawangkuchingang olhou para o
prprio corpo pequeno e esguio, que Deus havia feito com a lama da
terra. Mesmo entre o povo do norte, onde vivera antes, era
desprezada como franzina. Ao seqestr-la, Batuh a havia salvo de uma
vida de humilhaes. Deus, que a fizera feia, permitira que fosse
companheira de um grande homem como Batuh. Deus devolvera Batuh a
seu povo. Deus era glria e poder, e ela no passava de lama da
terra. Ela no era inteligente como o javali, nem forte como o bfalo
que vivia na gua, nem corajosa como o falco
60. representado no totem de Batuh. Ela no tinha totem, e
morreria como os animais. Essa viso confortou-a e fez com que
soubesse a maneira como devia viver. Olhou para Batuh como uma
mulher livre. Obedecerei, meu chefe. As jias da noite perfuravam a
copa das rvores. A lua ainda estava baixa no horizonte, e as
estrelas luziam como folhas de luz no campo escuro dos cus. A
prpria escurido tinha o brilho das penas negras, mas dentro em
pouco a aurora desdobraria suas asas e dissolveria a noite. Jaki
estava sentado num galho alto na orla da selva. Na penumbra, ele
voltava o rosto para a choupana na clareira abaixo, onde a me
dormia. Finas nuvens espiraladas de ervas aromticas queimadas
chegavam at ele. Mala queimava as folhas durante toda a noite e o
cheiro forte e refrescante conservava os insetos a distncia. A
fragrncia era reconfortante para Jaki, sempre associada noite e a
sua me. Mas outro odor pairava no ar da floresta, e Mala tambm
havia notado o sussurro da montanha, o eco da chuva, o cheiro de
nvoa do caador de almas. O aroma significava que teriam acepipes.
Carne, nozes raras e frutas enroladas em folhas
61. de oferendas estavam nesse momento sendo depositadas ao p
das rvores na clareira, para que fossem encontradas luz da manh.
Mala dizia que o caador de almas trazia todas essas coisas porque
os amava. Era o guardio deles, enviado por Deus para proteg-los da
selva. Jaki no acreditava que Deus tivesse mandado Jabalwan. Deus
enviava frutas e nozes s rvores, e tambm a carne aos ossos dos
animais. O feiticeiro era um homem, embora Jaki nunca o tivesse
visto. Percebera apenas movimentos tnues, como sussurros dentro da
noite, lampejos de formas atravessando a floresta, e certa vez o
brilho de olhos escuros como os de besouros observando-o atravs da
cerca do jardim de Mala. Nessa noite o menino havia despertado com
a dor dos ferimentos, mas, em vez de acordar Mala para confort-lo,
permanecera no escuro, pensando em tudo o que lhe acontecera.
Apesar dos Nmades da Chuva, sentia orgulho da prpria vida. Mala o
amava, e os animaizinhos brincavam com ele todos os dias. No tinha
necessidade alguma dos Nmades da Chuva, que o chamavam de demnio e
lhe atiravam pedras. Jaki estava determinado a nunca mais procur-
los.
62. O odor de nvoa e pedra que denunciava o feiticeiro
aparecera enquanto ele tomava sua resoluo. Ento, havia se
esgueirado da choupana para a escurido leitosa da selva, na
esperana de encontrar esse ser fabuloso que no conseguia nem
imaginar. Ser que o caador de almas os teria alimentado durante
tantos anos se o considerasse um demnio? Escondeu-se atrs de uma
rvore que ficava contra o vento; depois deu uma corridinha
silenciosa na direo do odor almiscarado do feiticeiro. Nunca havia
se aproximado tanto, e seu corao saltava de excitao. Uma brisa
tocou-lhe o rosto, denunciando um pssaro assustado. O eco do seu
pio soou frente, e o cheiro perseguido desapareceu. O menino
conteve um riso alegre. Ento o caador de almas era tmido como uma
cora an. O vento agitou o cho coberto de folhas da floresta, e
entre o odor de hmus e flores apareceu um trao do cheiro do
feiticeiro, dessa vez em direo oposta. Jaki voltou perseguio, e um
assobio agudo soou como o trinado de um pssaro pela clareira. Era
Mala quem chamava. Ela tambm sentira o cheiro. Sempre o chamava
para junto dela quando o caador de almas estava por perto.
63. Jaki estacou, e o odor se foi. Por um momento sentiu-se
tentado a prosseguir atrs do feiticeiro, ignorando o apelo da me.
Ento lembrou-se de como ela parecia uma criana, adormecida luz do
luar. Sentiu-se invadido por uma onda de amor por Mala, e voltou-se
em direo choupana sobre palafitas na clareira. Ela o deseja afirmou
Batuh em holands para Van Noot. Os dois estavam em p orla da
floresta, vista da praia onde se realizava o comrcio. Batuh havia
se dirigido diretamente a ele, e falara sem rodeios, apontando a
tmida moa nativa que permanecia sombra das rvores prximas. Do que
voc est falando? perguntou rispidamente Van Noot. Ar Brilhante
Entre as Palmeiras deseja voc repetiu Batuh, pensando nos piratas
Lanun para espantar o riso diante da expresso de incredulidade no
rosto do holands. Ela muito tmida para agir por si mesma. Tem medo
de que voc no a queira, e pediu-me para falar por ela. Voc a
aceita? Mas ela pertence ao capito! conseguiu finalmente balbuciar
Van Noot. O tuan j lhe concedeu liberdade
64. afirmou Batuh. No sabia? No. Eu... no tinha conhecimento
disso. Ela est livre agora? No em seu corao. At que voc a possua.
Preciso ouvir isso dela mesma insistiu o holands, andando at onde
estava a moa, que permanecia recatadamente de olhos baixos. Mala, o
que Batuh diz verdade? perguntou em espanhol. O senhor no deve
dizer nada ao capito respondeu Malawangkuchingang com suavidade.
Ele um cristo e no entenderia meu desejo pago. Respirando
profundamente para conter a averso, ela pousou a mo na camisa
empapada de suor do holands. Conceda-me apenas uma noite secreta
com voc aqui na floresta, e poderei voltar em paz para as Cabanas
Grandes. Eu no tinha a menor idia... No me deseja? Ela retirou a
mo, com uma ponta de esperana de que ele no a quisesse. claro que
sim respondeu ele, tomando-lhe a mo. Mas pensei que como tinha
recusado o convite para ir minha cabina na noite em que estava com
o capito... Bem,
65. pensei que me achasse repulsivo. Eu pertencia ao capito,
Jan. O som do primeiro nome dele soou de modo estranho. No tinha
escolha ento. Agora sou livre novamente. Falei com meu chefe,
Batuh, sobre meu desejo. Ele aprova. A proximidade do rosto suado
de Van Noot fez com que desviasse o rosto. No parece muito ansiosa
por essa unio, minha senhora. que essas coisas so muito diferentes
em minha tribo. Mala falava para a imensido verde que os rodeava, e
por um momento teve a impresso de divisar um brilho escuro entre as
lianas perfuradas por raios de sol. Ao balano de uma folha,
percebeu a sobrancelha do feiticeiro, mas no se interrompeu. nosso
costume, nessas ocasies, quando uma mulher deseja um certo homem,
que ela coloque uma raiz de mandioca na mo dele. Se ele tambm a
deseja, acompanha a moa at o seu leito. Se no a deseja, finge
continuar dormindo. Uma brisa agitou as folhas, e a sombra que ela
julgara ser o caador de almas no estava mais l. Um encontro direto
como esse muito embaraoso para mim. Para voc no? Tambm, mas estou
encantado em saber dos seus sentimentos. No quer olhar para
mim?
66. Mala levantou os olhos, e havia neles uma intensidade que o
holands interpretou como paixo, enxergando o reflexo de sua imagem
no brilho castanho. Van Noot continuou: Desde o incio eu a desejei.
Desde que a vi como o Senhor nos criou. No fale no nome do Senhor!
Certamente o que ambos sentimos tem a bno do Senhor, que abenoou
tambm leprosos, prostitutas e o prprio homem que o traiu. Mala
examinou-lhe as feies e ficou aliviada ao perceber que os olhos
brilhavam de luxria. Ento vir esta noite? Se puder. Precisa vir.
Ela apoiou a cabea contra o peito de Van Noot, sentindo o odor do
suor e a batida forte do corao. Por trs dele apareceu Batuh,
sorrindo satisfeito. Malawangkuchingang soltou o holands e
voltou-se, para esconder a vergonha que estava sentindo. Depois que
os escaleres estiverem a bordo, levantamos ncora declarou o capito
Gefjon, assim que o representante da companhia e o piloto entraram
no camarote.
67. Atravessamos a barra e passamos a noite navegando. Van
Noot, voc vai separar a parte da companhia em nossas mercadorias,
de acordo com o estabelecido no contrato. Quero o relatrio final at
o anoitecer de amanh. Piloto... Capito interrompeu Van Noot,
passando nervosamente a lngua pelos lbios. No podemos partir agora.
Garanti a Batuh que continuaramos o comrcio amanh. timo! respondeu
Gefjon, observando a postura vida do outro, a lngua que no parava
de se mover e o branco ao redor de seus olhos. melhor que ele
acredite que vamos voltar praia. Isso evitar qualquer atitude
desesperada de sua parte. Batuh ambicioso. O desespero de Batuh diz
respeito apenas s mercadorias, capito pressionou Van Noot. Ainda
temos de vender o conhaque. Os nativos j souberam da gua dos
espritos, por intermdio de Batuh. Ele falou tanto a respeito que os
nativos so capazes de oferecer at mesmo ouro em pagamento. A
tripulao precisa mais do conhaque do que esses caras-de-batata
protestou o piloto. Van Noot lanou um olhar irritado ao piloto
68. e ignorou a observao, continuando a falar diretamente a
Gefjon: Batuh garantiu que as cestas de diamantes esto a caminho
daqui. Certamente elas valem nossa bebida. Batuh prometeu ouro hoje
intrometeu- se novamente o piloto. Van Noot apontou a pequena bolsa
pendurada ao cinto do capito. Tem diamantes a dentro, no tem? Batuh
manteve a palavra sobre os diamantes. Gefjon removeu a bolsa do
cinturo e colocou as duas pedras em bruto sobre a escrivaninha. Uma
luz plida brilhava com aspecto leitoso, emitindo lampejos de todas
as cores do arco-ris. Batuh me deu esses dois quando devolvi a moa.
Ele disse que a estava comprando de volta. Aposto que uma isca
resmungou o piloto. Querem que fiquemos aqui at reunir aborgines
suficientes para tomar de volta tudo o que nos deram, e mais as
nossas cabeas. Quem sabe o que ele est preparando? acrescentou o
capito. Seja o que for, ele no vai fazer nada at obter a bebida
argumentou o representante da companhia. Deixe que eu leve
alguns
69. barriletes esta noite. Uma vez que tenham provado o
conhaque, vendero at seus dolos de ouro para obter mais. Vamos
deixar os nativos contentes e voltamos ricos para casa. J estamos
ricos protestou o piloto. Temos quase seiscentos tais de prata no
cofre. Temos o ouro e o marfim que recebemos de presente do velho
chefe. Alm disso, temos bas de cnfora, guta-percha, chifre de
rinoceronte e especiarias em volume suficiente para financiar uma
grande expedio. Podemos voltar aqui depois. Vamos garantir o que j
temos. Concordo com ele declarou Gefjon. Partimos assim que os
escaleres estejam a bordo. Com a mar da noite. No! a palavra saiu
quase involuntariamente dos lbios de Van Noot, que engoliu em seco
e prosseguiu: O navio, a tripulao e a carga so de propriedade da
Companhia, e eu sou o representante da Companhia nesta viagem. Eu
decido quando o comrcio termina. Sua responsabilidade navegar e
defender o navio. Ficaremos at que o comrcio termine. Insisto em
que seja assim. Van Noot havia quase levantado da cadeira em que se
encontrava medida que falava, depois sentou-se pesadamente, como
que para
70. reforar sua convico. O capito olhava fixamente para os
diamantes. As pedras capturavam a luz do sol no interior do brilho
oleoso, da mesma maneira que sua vida sem sentido o continha. Como
elas, ele estava incompleto, sobrecarregado com sua identidade
pessoal, uma gema em bruto, esperando para ser lapidada. Havia
deixado de lado a mulher e os filhos para fazer fortuna, e ali
estava, no interior das pedras que haviam comprado a vida de uma
mulher que conhecia a Bblia e mesmo assim queria seu amante
selvagem. Soltou um riso sem humor, provocando um olhar entre o
piloto e o representante da Companhia, que no lhe passou
despercebido. Deixe-os cismar. A Bblia no passava de um sonho dos
homens, comparada presena das pedras sobre a mesa. As lgrimas de
Deus. Pois o mundo fora dado a Sat, e ali era a eternidade do
mundo. Ele no passava de uma gota de orvalho, sua vontade um
pequeno raio de sol passando atravs da existncia rumo ao momento da
morte. Pieter Gefjon queria sua parte da eternidade agora, antes de
entregar a vida a Deus. Olhou para os dois homens frente com um
sorriso to tnue que ficou escondido pela
71. barba. Partimos amanh, com a mar cheia, antes do meio-dia.
Van Noot, quando acabar o relatrio, leve um barrilete de conhaque a
Batuh. As chuvas do fim da tarde haviam terminado, as nuvens
assumiram a cor suave do pssego e o mar apresentava o azul da cauda
dos paves quando Jan van Noot remava sozinho em direo praia,
levando um barrilete de conhaque. medida que se aproximava da terra
pontilhada de fogos, o corao batia mais forte no peito, mais de
medo do que pelo esforo que fazia. Era o primeiro que se aventurava
sozinho em terra, e a possibilidade de que tudo no passasse de uma
cilada para capturar sua cabea o assustava. Mas mesmo assim no
desistiu. Uma canoa com uma tocha aproximou-se dele perto da praia,
trazendo Batuh vestido com peles e adornado com penas coloridas,
depois acompanhou-o ao som de msicas e gargalhadas at a primeira
ponta de areia. L foi cercado pelos nativos, que colocaram tochas
na proa e na popa, empurrando o barco pela gua pouco profunda at a
praia. Os aborgines pareciam maiores luz do crepsculo, os corpos
lustrosos transbordantes de energia, e o holands desejou
72. ter aceitado a oferta do piloto para trazer um punhal. A
seguir compreendeu que uma pequena faca seria de pouca utilidade,
ou mesmo uma arma de fogo entre as centenas de selvagens que ali se
encontravam. O barrilete foi retirado do escaler e desapareceu num
segundo entre os corpos pintados. Batuh no disse nada a Van Noot.
Apenas apontou para o extremo lamacento da praia, coberto de
vegetao rasteira, na direo dos limites escuros da selva. O holands
comeou a articular uma pergunta, mas o chefe dos nativos voltou-se
e foi carregado pelos membros da tribo, as penas do cocar balanando
ao ritmo selvagem dos tambores. Van Noot seguiu ao longo da orla
espantando os mosquitos e tentando enxergar os troncos e buracos de
cobra do mar na luz que diminua a cada passo. Parou no final da
praia, frente da espessa escurido. Um medo profundo lhe apertava o
corao. Era como se o negrume da selva se abrisse para o interior da
terra. Vaga- lumes riscavam trajetrias irregulares e odores exticos
vinham da floresta, repleta de vozes de demnios. O holands
voltou-se para a baa, e seus olhos encontraram a viso reconfortante
do Zeerover com as luzes acesas produzindo um
73. reflexo caloroso de amarelo nas guas calmas. Sentiu um
intenso desejo de voltar para o escaler e esquecer aquela aventura,
mas, antes que pudesse mover-se, ouviu uma voz prxima: Tuan!
Virou-se rapidamente e deparou com Malawangkuchingang em p a sua
frente. Ela tomou-lhe o brao e conduziu-o para a floresta. Mala
chamou o holands enquanto andavam. Passei toda a tarde num sonho,
esperando que a noite chegasse. No diga mais nada, tuan pediu ela,
certa de que no suportaria falar com ele. Se ele se mantivesse em
silncio, o desejo de agradar Batuh talvez se sobrepusesse repulsa
que sentia. Nada de que possamos dizer pode se comparar ao que
sentimos. Por favor, fique em silncio. Van Noot apertou mais forte
a mo que o conduzia, e no disse mais nada por algum tempo, contendo
a exploso de sentimentos no peito. Mas no conseguiu controlar o
medo. Para onde est me levando? Voc vai gostar. No se preocupe
tranqilizou-o Mala, divertida pelo tom ansioso da voz dele.
Continuaram atravs de uma trilha no meio
74. da escurido quase total, escutando a bulha dos macacos e
pios de pssaros estranhos. doce fragrncia que Mala exalava, os
mosquitos pareciam picar menos, e em pouco tempo Van Noot adotava o
andar balanado da companheira. Sentia-se como que flutuando ao lado
dela no meio da noite, que se expandia com a enorme variedade de
sons de insetos em volta deles. Bem no alto, as estrelas apareciam
e desapareciam, conforme a mar do vento, como uma nvoa de luz
brilhante que perfurasse a copa negra das rvores. Uma clareira
luminosa abriu-se diante dos dois. Os galhos mais baixos estavam
repletos de lanternas pequenas cabaas de parede finssima com
centenas de perfuraes minsculas, cheias de vagalumes aprisionados
no interior. No centro havia uma choupana construda sobre longas
palafitas, coberta com folhas de palmeira. Mala conduziu-o pelos
degraus acima para o interior escuro, que recendia a flores.
Sentou-o no assoalho forrado com folhas macias de samambaias e
tirou-lhe as botas. O cabelo longo de Mala caa sobre o corpo de Van
Noot enquanto ela o despia, e as mos vidas do holands quase lhe
arrancaram o
75. sarongue. Quando os corpos se juntaram, ela fechou os olhos
temerosa. O entusiasmo dele era a alegria que Deus havia negado ao
homem que realmente amava. No queria oferecer nada a esse
cara-de-macaco, mas tinha de agir apaixonadamente ou ele
suspeitaria de alguma coisa, e ela perderia Batuh, alm do seu
orgulho. A msica que havia nas carcias do estrangeiro apanhou-a de
surpresa. Os lbios dele procuraram os dela, mordiscando e
acariciando com a lngua, e Mala estremeceu de desejo. Emaranhados
na penugem negra e macia, os dedos dele executavam um desenho
perturbador entre as pernas de Mala, e, com o rosto colado ao dela,
o homem branco conduziu- a lentamente ao prazer. Ainda que no ntimo
resistisse, dizendo a si mesma que tudo era fingimento, Ar
Brilhante no conseguiu reprimir o desejo que o toque experiente lhe
despertava e em pouco tempo parou completamente de fingir.
Rendeu-se ao odor de plvora que se misturava a um cheiro
subterrneo, abandonando-se alegria do prprio corpo, e as mos caram
sobre as costas do parceiro. Um xtase primitivo espalhou-se pelos
membros dormentes, que agora pareciam dotados de movimentos
prprios. No era amor. Mas ao
76. mesmo tempo era. Sentiu-se leve, o corao batendo mais
depressa e um relaxamento agradvel nos msculos. Tremeu
violentamente, um grito rouco escapou de seus lbios, e a paixo
incontrolvel fez com que movesse as pernas, abrindo-as. Jan
deitou-a de costas contra o leito de samambaias e penetrou-a de uma
s vez. Cavalgou-a como a lua cavalga o vento, o suor brilhante como
fsforos sobre a pele. Sua rigidez chegou ao mximo, acesa pela
umidade de Mala, at que o desejo explodiu, espalhando-se em ondas
quentes, deixando-os lnguidos e sem flego. Fizeram amor mais duas
vezes entre intervalos pacficos, em que permaneciam deitados,
escutando os sons noturnos da floresta. Depois Van Noot adormeceu,
repleto e exausto. Mala limpou-se com um tufo de samambaias,
colocou novamente o sarongue e saiu silenciosa como uma sombra.
Batuh esperava por ela luz das estrelas. Tomou-lhe o rosto entre
suas mos e beijou-a nos olhos. Aquilo libertou todas as emoes
contidas, e ela agarrou-se a ele soluando. Agiu bem, Ar Brilhante
disse ele, com a suavidade de um pai. Agiu muito bem. E, se
77. fizer por mim uma coisa mais, que exige muita coragem,
provar ser uma esposa digna de um chefe. Mala fez como Batuh havia
pedido e acordou Van Noot, acompanhando-o at o Zeerover. Fizeram
amor novamente na escurido da cabina, e, quando ele adormeceu mais
uma vez, ela vestiu-se e esgueirou-se pelo estreito corredor at o
tombadilho. A sentinela nos vaus e um homem que dormia numa rede na
proa no a viram quando ela abriu a tampa do bebedouro e encheu um
balde com gua. Mancando um pouco em virtude do peso excessivo, Mala
encontrou as escadas que levavam ao poro e baixou o balde cheio um
degrau de cada vez, seguindo atrs com cuidado. No convs das armas,
teve de fazer uma pausa at que a vista se acostumasse escurido e
ela pudesse distinguir as formas acinzentadas das redes da
tripulao. Todos estavam dormindo, e Mala passou entre eles e os
vultos escuros dos canhes, at o centro do salo, onde Batuh havia
dito que encontraria uma grande arca. Colocou a mo no interior e
sentiu o aro metlico e a tampa redonda de um barril. A tampa de
cada recipiente possua um orifcio onde estava enfiada uma rolha,
como um grande
78. cogumelo petrificado. Vrios barris encontravam- se na arca,
e ela mal teve fora suficiente para conseguir retirar todas as
tampas. Quando terminou, os msculos do brao doam. Um odor como o da
cinza saiu do interior dos recipientes. Com dificuldade, ela
levantou o balde e vagarosamente despejou gua nos barris,
controlando os membros cansados. Quando acabou, deixou o balde
dentro da arca e fechou a tampa. Sentiu-se enormemente aliviada, e
voltou em silncio para o convs principal, onde brilhavam as
estrelas. Mala chamou uma voz profunda, fazendo com que ela parasse
no lugar em que estava, encolhendo-se como um animal assustado. Por
que est a bordo? Ela reconheceu a voz que falara em espanhol e viu
a silhueta do capito. Tuan! Sonhos de diamantes zumbindo com o
brilho amarelo dos marimbondos haviam-no mantido acordado, e ele
viera at o tombadilho para se acalmar. Diamantes tinham-no atrado
at Bornu, mas ele agora compreendia que o que realmente desejava
era o brilho leitoso da Via Lctea. A graa de Deus, no as lgrimas de
Deus. No poo da noite, repleto de solido, havia
79. decidido dar os diamantes para o piloto, que possua uma
esposa e a esperana de uma famlia. Retornaria aos Pases Baixos com
a sua parte do lucro no comrcio que realizaram e comearia uma nova
vida. Os diamantes apenas imitavam a luz divina, pensara Gefjon, a
alma em si era infinitamente mais valiosa. Ele perambulava pelo
convs, respirando a luz pura das esferas celestes, pensando sobre
as gemas que Batuh lhe dera em pagamento pela mulher, quando se
surpreendera ao v-la saindo do poro. Mala terminou de subir a
escada e andou pelo convs at onde estava o capito, com a cabea
descoberta e os cabelos longos esvoaando ao vento marinho. Subi a
bordo com o representante da Companhia disse ela curvando a cabea.
Ele pediu que viesse a bordo? Pediu. O piloto me disse que Van Noot
estava apaixonado por voc. Mas no pensei que se importasse com ele.
O capito esperou, porm Mala no disse nada. Onde est ele agora?
Dormindo. No consegui ficar l dentro. Estava muito quente. Nesse
caso, ele no vai se importar se
80. voc vier comigo. Mala apoiou suavemente as mos contra o
peito de Gefjon e ousou levantar os olhos para encar-lo. Ele
parecia solene e claro, como um deus adormecido. No dessa maneira
que eu quero voc. Ele retirou as mos com delicadeza, enquanto os
olhos dela baixavam. Voc salvou minha vida. O remdio foi do
feiticeiro, mas voc... Voc foi o medo e o xtase que me trouxeram de
volta dos mortos. Vamos at a cabina. Dessa vez eu que vou ler a
Bblia e contar o que enxerguei em voc quando estava com febre. Mala
deixou-se conduzir atravs do corredor escuro at a cabina de
comando, onde o capito sentou-a numa poltrona de mogno e abriu as
janelas, permitindo que a brisa do mar penetrasse e refrescasse o
aposento. Ao lado da cama, uma lanterna de cristal abrigava uma
chama fina, prxima qual Gefjon abriu sua Bblia e leu a passagem que
dizia estarem os nomes dos mortos escritos nos cus. Quando
terminou, olhou para ela. O que acha que significa? No sei. Nem eu
sabia. At que tive febre e vi voc. Um dbil sorriso desenhou-se sob
a barba, sombrio com a lembrana. Vi voc
81. como a morte. A magnfica leoa da morte. Tive boas razes
para acreditar nessa viso, porque estava morrendo. Essa certeza
arrancou de mim a mais querida iluso: de que Deus habita nossas
ambies e nossos sonhos, e de que pode nos ajudar se orarmos. Pois
eu lhe digo: no ajuda! Atravs das oraes, ajudamos a Deus aprendendo
quem somos de verdade, conhecendo nossos nomes reais, que esto
escritos na escurido de onde vm todas as coisas. Fechou a Bblia.
Entende o que estou dizendo? Ficaria surpreso se entendesse.
Entendo que voc viu a verdade respondeu Mala com os olhos
brilhando, o rosto emoldurado pelos primeiros raios rubros da
alvorada. O pastor dizia freqentemente que a verdade liberta as
pessoas. Agora sou livre. At esta noite eu era um escravo da
Companhia, procurando fazer fortuna em terras estrangeiras... Como
se o ouro pudesse me libertar desse mundo de sofrimento. O ouro a
luxria, no a liberdade. Parece um pensamento simples, mas s quando
contemplei a morte de frente que pude enxergar essa verdade
simples. E isso finalmente me libertou da minha fome de riquezas.
Pela primeira vez nesses anos todos posso ir para casa. Posso
sair
82. da sia sem dinheiro e chegar Europa rico, e aceitar tudo o
que me espera l. Voc capaz de entender isso porque j foi uma
escrava. Conhece a liberdade. Existe uma outra verdade, que eu
preciso revelar disse Mala, com a impresso de que sua voz flutuava
longe do corpo. Neste momento, sua vida est ameaada. Enganei o
representante da Companhia com a prpria luxria, e ele o enganou em
seus propsitos. O que est dizendo? As feies do capito se contraram.
O terror dominou Mala, ao perceber que o rosto dele estava
completamente alerta, e ela teve de fazer um esforo enorme para
continuar. Nesse momento, o navio est cercado pelos piratas, tuan.
Deus favoreceu Batuh. Gefjon saltou da cama, apanhou a espada que
pendia do espaldar da cadeira e saiu da cabina. Mala pegou a Bblia
e foi atrs dele. Estavam no corredor quando o alarme comeou a tocar
freneticamente. Vozes assustadas irromperam do alojamento da
tripulao. Gefjon chutou a porta e saiu para o tombadilho, onde
encontrou o piloto, que corria em sua direo, com o punhal na mo e o
rosto congestionado pela fria.
83. Lanun! O homem apontava a lmina para o lado do mar, onde
uma flotilha de djongs convergia na direo do Zeerover. Em contraste
contra o rubor da aurora, pareciam um enxame negro. Canhes! bradou
Gefjon. A plvora est molhada disse o piloto, segurando o brao do
capito. Os canhes so inteis. A primeira saraivada de flechas
derramou- se sobre o convs, o gongo silenciou, e a tripulao que saa
dos alojamentos com punhais e cutelos nas mos escondeu-se atrs dos
escaleres. Uma seta cravou-se ruidosamente na prancha entre o
piloto e o capito. Levantar ncora! ordenou o capito. Homens s
velas. A segunda srie de flechas derrubou dois homens que tinham se
adiantado para o guincho da ncora. Cortem o cabo! O rosto rude do
piloto brilhava quando ele agarrou o brao de Gefjon e virou-o para
si. Adeus, capito. Vejo o senhor no cu. Abraou-o por um instante,
depois soltou-o e correu pela escada que levava ao convs principal,
gritando com a tripulao: Cortem a porra do cabo, seus bbados
moleires.
84. Outra saraivada de setas despejou-se sobre o convs
principal. O piloto foi pregado pelo pescoo e pelo peito ao mastro
da mezena. O primeiro djong bateu no casco, e os ganchos de
abordagem foram atirados por sobre a amurada, entre os gritos de
guerra do navio pirata. Gefjon desembainhou a espada e virou-se,
descrevendo um arco com a lmina, cuja ponta parou exatamente no
centro do pescoo de Mala, encolhida ao lado da amurada. Voc colocou
gua na plvora? Coloquei admitiu ela. Por qu? Por que me salvou para
matar- me outra vez? Se voc morresse, os outros teriam ido embora.
Batuh quer o tesouro. Tesouro! exclamou Gefjon, aproximando a ponta
da espada do pescoo de Mala, e fazendo com que ela batesse a cabea
ao recuar. E essa ento a minha perdio? Cobia? O rosto do capito
estava lvido, e quando ele a viu apertando a Bblia contra o seio,
deu um passo atrs. Com um gesto brusco, jogou a espada no convs
entre eles. Mala viu os piratas por trs deles, rostos manchados e
viperinos avanando como se
85. flutuassem pelo tombadilho. Abaixo, muitos marinheiros que
haviam saltado para o mar estavam sendo arpoados como peixes. Dois
homens que rezavam foram trucidados de joelhos. Os gritos
desesperados de Jan van Noot chegavam at eles, ecoando pelo
corredor desde seu camarote, onde os Lanun haviam-no encontrado.
Mala tremia de horror e desespero. Ento minha viso estava certa,
afinal de contas disse o capito, devolvendo seu olhar aterrorizado
com um sorriso amargo. Voc mesmo a minha morte, e tudo o que eu
consegui arrancar da minha sepultura foi cobia. Cristos e
selvagens, todos cavando esse poo profundo. Como se pudssemos
arrancar o suficiente da terra par