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A Revoluçã o do Local GLOBALIZAÇÃO GLOCALIZAÇÃO LOCALIZAÇÃO

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A Revoluçã

odo Local

GLOBALIZAÇÃOGLOCALIZAÇÃO

LOCALIZAÇÃO

Augusto de Franco

A REVOLUÇÃO DO LOCAL

Globalização | Glocalização | Localização

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Por que a volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

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“Em um universo infinito,local pode abranger algo tão gigantescoque sua mente se encolhe diante dele”.

Frank Herbert, 1976em “Os Filhos de Duna”.

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Apresentação

Estamos diante de uma grande mudança social, talvez a mais profunda mudança no “corpo” e no “metabolismo” da sociedade humana que já tenha ocorrido na nossa civilização. Essa mudança não é inexorável, mas as condições para que ela ocorra começaram a se constelar a partir do final do século passado.

Estou falando de algo que nunca aconteceu antes. Estou falando de uma condição geral, configurada pela co-presença de vários fatores interdependentes, que permite a manifestação de um fenômeno novo, uma espécie de alteração profunda na morfologia e na dinâmica desses sistemas complexos compostos por coletivos humanos estáveis afastados do estado de equilíbrio que chamamos de sociedade.

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Não se pode saber de antemão para onde tal mudança vai nos levar. Tudo dependerá dos movimentos sociais e das opções políticas que fizermos. Nenhum desfecho, portanto, está determinado. Todavia, existe agora uma possibilidade que não existia antes.

Não estou dizendo que tal mudança profunda vai acontecer necessariamente. Estou dizendo que essa mudança profunda, que agora tem chances de acontecer, poderá de fato ser consumada se conseguirmos ensaiar e replicar padrões de organização social e modos de regulação política compatíveis, que permitam que ela aconteça. Caso contrário, ocorrerá, por certo, sempre alguma mudança, provavelmente incremental, mas ela não será tão significativa ao ponto de representar uma transformação profunda do modo como estamos vivendo nos últimos séculos e, talvez até, nos últimos milênios.

Estou falando de uma mudança que depende, portanto, de algumas formas de agenciamento e que não ocorrerá espontaneamente, na ausência de certo tipo de comportamento social e de atuação política de agentes humanos. Assim, não é descabido encarar essa mudança social como uma revolução mesmo, para além dos sentidos metafóricos em que freqüentemente essa palavra tem sido empregada (como, por exemplo, quando se fala em “revolução da informática” ou em “revolução tecnológica”).

Pois bem, que mudança social profunda é essa, que revolução é essa que pode se realizar nas condições atuais do mundo globalizado e que não poderia ter ocorrido em outras épocas?Essa mudança se chama ‘localização’, no sentido “forte” desse conceito e da hipótese que o sustenta, a qual constitui, assim, o tema central da presente investigação.

Essa hipótese, em termos sucintos, é a seguinte. Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado. A revolução planetária (já aventada por Edgar

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Morin) é também uma revolução comunitária, que aponta para um novo desenho do mundo, cujo sentido é o da formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes. Essa é a mudança social que queremos interpretar como uma verdadeira revolução: a revolução do local.

Quando tornamos pequeno um mundo pela localização aumentamos o seu “poder social”. É como se concentrássemos esse “poder”, incrementando os valores de variáveis como freqüência ou velocidade de processamento, possibilitando mais feedbacks, mais laços de retroalimentação capazes de amplificar estímulos, por pequenos que sejam. Um mundo localizado é um mundo onde ocorreu uma espécie de big crunch social que (ao contrário do modelo do big bang cosmogônico) diminuiu drasticamente as distâncias!

Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no “meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia, por exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido de que aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais condutor, mais favorável à replicação de padrões de comportamento – à medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu tamanho diminui. A partir de certo grau de tessitura (ou de certo ‘tamanho de mundo’) surge o que chamamos de comunidade.

Mas as comunidades (de projeto) em um mundo globalizado não têm quase nada a ver com as comunidades tradicionais (de herança) que conhecemos em um mundo cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços de interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-elementos, comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo novos comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários podem se espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo a medida que podem ser amplificados por laços de

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realimentação de reforço de sorte a modificar o comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-los a realizar cópias dos “programas” gerados.

A medida que surgem comunidades globalizadas, globalização do local tende a ser igual a localização do global. E um mundo totalmente globalizado passa a ser um mundo totalmente localizado. O local não-globalizado pode ser um mundo até maior do que o mundial (no sentido de planetário) globalizado. Mas o local conectado é o mundo todo.

Isso só é possível ocorrer agora em vista de uma novidade: o fenômeno complexo, atualmente em curso no mundo, que chamamos, em geral superficialmente, de globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou seja, a novidade da mudança social que tem como fulcro a possibilidade inédita da conexão global-local na emergente sociedade-rede.

Pois bem. Minha investigação dos últimos anos está levando a uma conclusão surpreendente. Desde que exista a possibilidade de conexão global-local, para que o processo de localização se desencadeie é preciso apenas que a população de uma localidade, conectada entre si segundo um padrão de rede e regulando seus conflitos de modo democrático-participativo, o assuma cooperativamente. O mais surpreendente, porém, é que parece não ser necessário que toda a população de uma localidade se comporte desse modo, nem – como fomos levados a acreditar por vários motivos que não vêm agora ao caso – que a maioria dessa população esteja engajada nessa tarefa.

Por certo, para cada configuração particular haverá uma quantidade e uma qualidade mínimas de “massa crítica” detonadora, vamos dizer assim. E talvez não possamos conhecer, completamente e de antemão, nem os valores nem as características dessa “massa crítica” para que tal processo seja detonado em cada localidade. Mas uma coisa é certa: quanto mais elementos ela englobar, quanto mais

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tramada “por dentro” e conectada “para fora” ela estiver, mais chances teremos de que o processo venha a acontecer.

Sei que tais idéias ainda soam estranhas para boa parte da análise sociológica. E, na verdade, embora não pareça, estou falando de política.

Mas para entender o que estou dizendo, caro leitor, não há outra maneira senão acompanhar os resultados dessa investigação.

Primavera de 2003Augusto de Franco

Índice

Introdução

Capitulo Um | GlobalizaçãoEntendendo a globalizaçãoGlobalização e neoliberalismoGlobalização e capitalismoGlobalização e fundamentalismos laicos (de mercado e de Estado)Globalização e mudança socialGlobalização irreversívelGlobalização inéditaGlobalização, ordem e desordemGlobalização insuficienteGlobalização em disputaGlobalização e glocalização

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Capítulo Dois | GlocalizaçãoEntendendo a glocalizaçãoGlocalização e nova realidade glocal: ‘planeta-e-comunidade’Glocalização em disputaGlocalização e Estado-naçãoGlocalização e localização

Capítulo Três | LocalizaçãoEntendendo a localizaçãoLocalização e glocalizaçãoLocalização e ‘tamanho do mundo’Localização e ‘poder social’Localização e geração de identidadeLocalização e transformação de utopia em topiaLocalização e globalizaçãoLocalização e glocalizaçãoLocalização em disputaLocalização e revolução do local

Epílogo | Localização e desenvolvimento

Textos (excertos, transcrições e comentários)Texto 1 |Castells e a ‘Galáxia da Internet’Texto 2 |Held & McGrew e as variantes na política da globalizaçãoTexto 3 |A Carta da TerraTexto 4 |Guéhenno, o fim da democracia e o futuro da liberdadeTexto 5 | Bobbit e a emergência do Estado-mercadoTexto 6 | Small-World Networks: transformando o vasto mundo em um mundo pequenoTexto 7 | O recente experimento sobre Small-World de Peter Dodds, Roby Muhamad e Duncan WattsTexto 8 | Manzano e a ciência do local como ciência da singularidadeTexto 9 | Beck e a aliança em favor da atividade comunitária

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Texto 10 | Local e global: as cidades na globalização segundo Manuel Castells & Jordi BorjaTexto 11 | Michael Shuman e o ideário do localismoTexto 12 | Offe e a sinergia entre Estado, mercado e comunidade

DiagramasDiagrama 1 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-McGrew (2002)Diagrama 2 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)Diagrama 3 | Variantes na política da localização

Introdução

Há uma mudança social em curso no mundo. Essa mudança, que está na base do processo de globalização atual, tem um duplo sentido. Um sentido “macro”, que incide na dimensão planetária, e um sentido “micro”, que incide na dimensão local. Até agora temos colocado ênfase no sentido “macro”, sobretudo nas transformações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais que estão ocorrendo em escala global (daí os novos termos em voga:

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‘globalismo’, ‘globalidade’ e ‘globalização’) associadas à uma emergente ‘sociedade cosmopolita global’. Não temos percebido adequadamente, porém, as mudanças silenciosas, muitas vezes subterrâneas, que estão acontecendo na dimensão local e que estão provocando um reflorescimento da perspectiva comunitária. Talvez porque se trate de uma mudança fragmentada, dispersa, que ainda não logrou constituir um ator, um interlocutor, uma plataforma, uma justificativa teórica – o que, de resto, jamais ocorrerá mesmo, porque a fragmentação e a dispersão fazem parte da sua própria natureza.

Como temos mais dificuldade para pensar sem um padrão de ordem preexistente (ou como não percebemos facilmente a ordem emergente em sistemas complexos, a ordem subjacente ao caos ou, ainda, como não compreendemos o processo que o escritor americano de ficção científica, Frank Herbert, resumiu na frase: “não reunir é a derradeira ordenação”) (1), colocamos menos ênfase nesse sentido “micro”, sobretudo nas transformações sociais que estão ocorrendo em escala local (daí a menor divulgação de termos como ‘glocalização’ e ‘localização’) associadas a um novo “corpo” (em rede) e a um novo “metabolismo” (democrático-participativo) emergentes em comunidades que estão se constituindo neste momento em várias partes do planeta.

Ora, para perceber tais mudanças é necessário vê-las de outra maneira. Para perceber o que mudou é preciso, assim, ver o que mudou na nossa maneira-de-ver o que mudou. Foi somente quando mudou a nossa maneira de ver, que começamos a perceber o que está mudando em termos sociais, as transformações que estão ocorrendo no tecido íntimo das sociedades em virtude da germinação de algumas práticas seminais e de algumas idéias seminais sobre tais práticas.

Tão recente é o fenômeno que as pessoas ainda não estão entendendo a profundidade e a abrangência da mudança. O mundo realmente mudou... Mas a mudança mais

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significativa de todas será – quando florescer – aquela que foi semeada nos anos 90.

Para continuar com a metáfora da semente, podemos dizer que os anos 80 foram anos de preparação da terra. Os anos 90 foram anos de semeadura. A primeira década do século 21 não será, ainda, de pleno florescimento – porém, em grande parte, de germinação: o tempo em que o grão tem que morrer. Por isso, ao que tudo indica, será uma era de (aparente) retrocesso em vários campos e em vários lugares, de recrudescimento do estatismo, da retomada de velhos paradigmas de administração pública e de velhos padrões de relação entre Estado e sociedade – e isso de várias maneiras, patrocinadas por atores conflitantes e em circunstâncias contraditórias. Assim, Bush (belicista) e o Fórum Social Mundial (pacifista, pelo menos instrumentalmente, para se opor às pretensões neo-imperiais do atual belicismo norte-americano) impulsionado este último, entre outros, por alguns segmentos da esquerda estatista, no Brasil, fazem parte, provavelmente, do mesmo fenômeno (muito embora o Fórum Social Mundial seja, ele mesmo, um exemplo eloqüente dos aspectos positivos do atual processo de globalização ao juntar, de forma inédita, múltiplos setores de uma sociedade civil mundial). É difícil compreender essas coisas porquanto pensamos a partir do confronto de ideologias e não a partir de (conceitos sobre) padrões de relacionamento. Achamos que se alguém é “de esquerda” estará necessariamente no pólo oposto aos que são “de direita”. Todavia, quando o assunto é o protagonismo estatal (ou seja, um padrão de relação definido entre Estado e sociedade no qual o Estado está “sobre” a sociedade, relacionando-se com esta última como se ela fosse o seu dominium), não percebemos que, desse ponto de vista, em geral, ambos – os “de esquerda” e os “de direita” – encontram-se freqüentemente no mesmo pólo.

O canteiro para a semeadura dos anos 90 foi preparado sobre os destroços do Muro de Berlim. Mas o ressurgimento da perspectiva autocrática e guerreira do novo império americano representa uma reação à queda dos muros (e

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isso, ao que parece, não apenas em sentido simbólico: basta ver, por exemplo, a ereção – em curso neste momento em que escrevo – do muro de Sharon). Pior, representa uma proliferação dos muros, agora – salvo no triste caso acima – desmaterializados e incorporados à nova paisagem mundial de vez que o inimigo tornou-se invisível e onipresente e é preciso, portanto, estar-se protegido contra ele a todo tempo e em qualquer lugar. Os primeiros dez anos do nosso milênio serão, ao que tudo indica, para usar a expressão poética da velha linguagem alquímica, anos de nigredo: aqui ocorrerá a putrefactio, a mortificatio, a ‘obra em negro’. Para os alquimistas, todavia, isso não era motivo para desânimo. Pelo contrário, como diz um antiqüíssimo texto (“O Rosário dos Filósofos”, de 1593): “quando vires tua matéria enegrecer, rejubila-te: porque esse é o início da obra” (2). Oxalá haja um paralelo qualquer com nossa situação atual.

Mas vamos voltar aos anos 90, os anos de semeadura. Foram os anos onde emergiu ou foi percebida mais claramente a nova realidade de uma esfera pública não-estatal. Foram os anos em que se verificou um crescimento espantoso do chamado terceiro setor. Foram os anos da Internet e das redes sociais. Foram anos em que se gestou e experimentou um novo paradigma da administração pública, a descentralização e os programas inovadores: focalizados, flexíveis, que desencadeiam inovações capazes de alterar seu desenho original, baseados em múltiplas parcerias, preocupados com monitoramento e avaliação constantes e voltados para a conquista da sustentabilidade.

Sobretudo – e essa talvez seja a sua característica mais relevante – os anos 90 foram anos, conquanto marcados por numerosos conflitos regionais e locais, sem-guerra global, ou melhor, sem um “estado de guerra” (“quente” ou “fria”) generalizado no mundo. Com efeito, entre 1991 e 2001, entre a derrocada da URSS e o atentado ao World Trade Center, transcorreu a década na qual, como assinalou Friedman (ainda em 1999), o sistema da guerra fria foi substituído pelo que ele denominou de “sistema da globalização” (3).

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No Brasil e no mundo, a década de 1990 foi marcada pelo surgimento ou pelo aparecimento, em um cenário mais visível, de grandes novidades. No que diz respeito à uma nova concepção de desenvolvimento, tema final do presente livro, tais novidades podem ser identificadas por algumas visões ou concepções e por algumas idéias ou conceitos que não compareciam antes, ou que só se desenvolveram depois, no final da década de 80 (as quais – em muitos casos – ainda continuam emergindo e se desenvolvendo).

Dentre tais concepções e idéias novas citaria aqui, em primeiro lugar – por ordem de importância lógica ou metodológica e não cronológica – a concepção sistêmica, sobretudo a concepção dos sistemas complexos adaptativos, trazendo consigo as idéias de sustentabilidade como função de integração e como conservação da adaptação. (É preciso ver que o Santa Fe Institute, fundado pelo físico Murray Gell-Man em 1984, em 1987 começou a pesquisar coletivamente a economia como sistema complexo adaptativo, mas somente na década de 1990 pôde apresentar resultados mais significativos no tocante a uma nova visão sistêmica sobre as interações sociais) (4).

Em segundo lugar, colocaria a hipótese da existência de vários fatores do desenvolvimento – não como externalidades, porém com o mesmo status de centralidade, os quais foram interpretados, assim, como outros tipos de “capitais” – e sobretudo o conceito de capital social. Nos anos 90 surgiu a maior parte das teorias do capital social, inclusive aquelas baseadas no suposto da (ou na aposta na) capacidade da sociedade humana de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação.

Em terceiro lugar, a idéia de cooperação e de cooperatividade sistêmica como elementos sem os quais a competição e a competitividade sistêmica levam a crescimento concentrador e, portanto, a crescimento sem desenvolvimento.

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Em quarto lugar, a idéia da sociedade rede (é bom lembrar que a obra principal de Castells – que melhor identificou tal fenômeno – é um fruto dos anos 90), o desenvolvimento de uma nova disciplina de análise das redes sociais (Social Network Analysis), o surgimento das redes P2P e do encurtamento do tamanho do mundo em virtude do aumento da conectividade (‘small-world networks’) (5).

Em quinto lugar, a idéia da radicalização ou democratização da democracia, da democracia em tempo real, democracia digital ou cyberdemocracy, e a compreensão das relações intrínsecas entre desenvolvimento e política; quer dizer, a concepção de desenvolvimento como mudança social.

Em sexto lugar, a idéia de um novo padrão de relação Estado-Sociedade que leva em conta a existência e o papel estratégico, para o desenvolvimento, da nova sociedade civil, ou seja, daquele conjunto de entes e processos extra-estatais e extra-mercantis, também chamado recentemente de terceiro setor.

Em sétimo lugar a compreensão do fenômeno complexo chamado de globalização e a idéia de glocalização.

Em oitavo lugar o reflorescimento da perspectiva comunitária, a ‘volta ao local’, a revolução do local e a reformulação da idéia original de glocalização como localização (ou seja, a idéia de que “o local conectado é o mundo todo” – esta última, porém, já fruto dos primeiros anos do terceiro milênio).

As inovações introduzidas, especialmente nos anos 90, na maneira de ver a mudança social que agora interpretamos como desenvolvimento, constituem apenas um exemplo. Outros exemplos, semelhantes, poderiam ser encontrados em outros campos. Desse exemplo, porém, devemos reter a lição de que não se pode entender a globalização e não se pode captar plenamente o sentido das mudanças em curso no mundo atual se não se compreender a década de 1990 e se não se compreender as mudanças na maneira-de-ver as mudanças introduzidas na década de 1990.

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Pois bem. A maneira linear e unívoca de ver as mudanças, que procura sempre emparelhar fator-causa com modificação-efeito, não nos permite ver as constelações de múltiplos fatores interdependentes que co-originam as transformações, entendidas como mudanças de estado de um sistema complexo. Na maneira linear de ver, por exemplo, achamos que a globalização é um fenômeno que só se verifica no plano internacional, no relacionamento entre realidades de dimensão mundial. Assim, freqüentemente deixamos de ver que o aspecto global pode estar presente em dimensões locais, no plano subnacional e que, simultaneamente, aspectos locais podem estar presentes na dimensão global.

Mas, como já assinalou Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando novas pressões por autonomia local” (6). Avançando mais nessa linha de raciocínio, Giddens percebeu que “a globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo” (7).

O fenômeno da globalização atual – disse ainda Giddens, em outra ocasião –intensifica as “relações sociais em escala mundial que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar em uma direção anversa às relações muito distanciadas que os modelam”. Assim, ele conclui: “a transformação local é tanto parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço” (8).

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Com efeito, Manuel Castells assinalou como uma das características dos movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores, suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo em termos econômicos. Como se pode fazer isso? Pois bem, a Internet permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que acabam aterrizando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington, Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade” (9).

Isso tudo talvez tenha um sentido mais profundo do que parece à primeira vista. O significativo, aqui, é que o core da globalização atual não é a expansão dos fenômenos para uma escala global em si... mas a simultaneidade entre global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-local. Ora, a conexão global-local só é possível por intermédio das redes. São as redes, portanto, a “chave” para entender a globalização. É a sociedade-rede o fulcro de tudo e não o fato do mundo ser global porque reproduz fenômenos semelhantes no conjunto do globo terrestre, porque alguém come um Big Mac adaptado ao sabor chinês em Nanquim ou manda e-mails da África usando o Outlook Express traduzido para o inglês do Zimbábue, ainda que essas coisas também ocorram em virtude da conexão global-local.

Para usar os termos de Pierre Levy, a ‘aldeia global’ midiática (e “molar”) de Marshall McLuhan sugere o mundo virando um local. A ‘sociedade-rede’ (“molecular”) de Manuel Castells sugere cada local virando o mundo,

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holograficamente (embora Castells, ao que eu saiba, não possa ser responsabilizado por esta formulação). Uma frase surgida em recente discussão na AED resume bem o ponto: “o local conectado é o mundo todo”.

Para decifrar o enigma é preciso perceber a simultaneidade dos processos de ‘globalização’ – e – ‘localização’, ou melhor, o processo complexo de ‘globalização-e-localização’, que está possibilitando o mundo virar um só local e um só local virar o mundo todo.

Este texto é sobre isso.

Resumindo

Há uma mudança social em curso no mundo dos últimos anos.

O aspecto mais visível dessa mudança é o que estamos chamando de globalização. O que está acontecendo de fato é uma glocalização. O que menos se vê (ou o que ainda não se vê tão claramente), entretanto, é a localização.

Com o objetivo de mostrar que a volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação, vamos elencar 23 proposições para uma exposição ordenada.

Sobre a globalização

1 – O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

2 – A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

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3 – Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na) sociedade.

4 – O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

5 – A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo, depende da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na atualidade.

6 – A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

7 – A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem.

8 – “A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização” (Giddens, 2001) (10).

9 – A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal contradição.

10 – Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma

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mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).

Sobre a glocalização

11 – A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

12 – A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado e ‘interdependência’, por outro.

13 – O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

14 – Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido “forte”) da ‘localização’.

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Sobre a localização

15 – O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

16 – Quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é (small is powerful).

17 – Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

18 – Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

19 – Globalização do local tende a ser igual a localização do global.

20 – Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado.

21 – A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro próximo, os embates políticos dentro do Estado-nação.

22 – A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que seu aspecto subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede e dedicados a promover movimentos sociais de resistência e de geração de identidade – que dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de

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democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

23 – A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

(2) Moya, Miguel Angel Muñoz (ed.) (1986). “El Rosário de los filósofos”. Barcelona: Muñoz Moya y Montraveta, 1986.

(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(4) http://www.santafe.edu/

(5) Cf. Texto 6 e Texto 7

(6) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(7) Idem.

(8) Giddens, Anthony (1990). As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.

(9) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”. http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(10) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasília: Correio Braziliense, 04/10/2001.

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Capítulo Um | Globalização

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Entendendo a globalização

Conquanto seja possível tecer inumeráveis análises dos diferentes aspectos econômicos, tecnológicos e culturais da globalização, não é muito fácil chegar a uma compreensão global do fenômeno.

Grande parte das análises disponíveis não dá conta de captar o fenômeno da globalização no que ele tem de inédito. Essas análises são, em geral, fragmentadas, porquanto se baseiam em visões desfocadas: quer, por um lado, por uma certa euforia mercadocêntrica; ou quer, por outro lado, por reações estadocêntricas.

É preciso ver que o conceito de ‘globalização’ surgiu no marketing e, só depois, foi incorporado e recuperado por outras disciplinas. Já havia uma proto-ideologia (que Beck chama de “globalismo” e quase todo mundo chama de neoliberalismo) embutida no conceito inicial (1). Fomos apresentados ao tema da globalização (ou introduzidos na

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sua problemática) a partir de pontos de vista totalmente ou predominantemente mercadocêntricos. Na seqüência veio a crítica sociológica, da sociologia política baseada, sobretudo, na sociologia econômica. Essa crítica, ao desvelar a ideologia presente na visão inicial, se constituiu, muitas vezes, como uma rejeição do conceito e, não raro, como uma reação ao próprio fenômeno objetivo que o conceito (a idéia de globalização) queria captar. Assim, a crítica ao conceito transformou-se, em parte, em uma estiolante disputa (ideologizada) entre ideologias, contrapondo uma visão contra-liberal à visão neoliberal, uma perspectiva estadocêntrica àquel’outra, mercadocêntrica. Entrementes, o fenômeno mesmo, na sua integralidade e naquilo que lhe poderia conferir caráter distintivo de outros fenômenos sociais, passava (quase) despercebido.

Todavia, para entrar de fato no assunto é preciso partir da pergunta: qual é o fenômeno que está ocorrendo no mundo dos últimos anos e que estamos interpretando como globalização? O mercado financeiro, as multinacionais, o terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, o McDonalds, a CNN, a Internet – tudo isso sugere que o mundo está vivendo uma nova época ou passando por um processo de mudança que foi chamado de globalização.

Em primeiro lugar é preciso responder se está ou não está havendo tal mudança, que tipo de mudança é essa, qual a sua profundidade e abrangência e qual o seu sentido. Existem pessoas que acham que não está havendo mudança alguma significativa ou, pelo menos, alguma que mereça atenção especial. O mundo já teria passado por várias globalizações, desde a era dos descobrimentos e até antes.

Existem pessoas que acham que a mudança é de natureza fundamentalmente tecnológica e que são as novas máquinas que estão introduzindo novos comportamentos.

Existem pessoas que acham que a mudança atual decorre da liberação das forças de mercado que, pela primeira vez,

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estão podendo expressar toda a sua capacidade destrutiva-criativa sem as peias impostas pelas regulações normativas, heterônomas e exógenas, provenientes do antiquado Estado-nação.

Existem pessoas que acham que tudo não passa de uma tentativa das grandes corporações transnacionais para dominar o mundo, o que vai acabar configurando uma realidade social mundial composta por algumas ilhas de alto desenvolvimento tecnológico, fortemente protegidas, em um mar de pobreza e exclusão.

E existem pessoas que acham que tudo se explica por tal ou qual combinação de todos ou de alguns desses fatores: um pouco disso, um pouco daquilo.

Parto do princípio de que não é possível compreender a globalização se não se admitir que há uma mudança em curso no mundo, tão profunda e abrangente como talvez jamais tenha ocorrido antes na história conhecida. Como disse Giddens “a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora” (2).

Essa mudança é de natureza social. Ultrapassando as fronteiras dos Estados nacionais, ela está gerando um novo tipo de sociedade no mundo. Uma nova sociedade está sendo criada. Como sustenta Giddens, está sendo criado “algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global” (3). E, como escreveu Thompson, “uma nova cultura planetária está surgindo juntamente com a nossa nova economia globalizada” (4).

Creio que é necessário insistir nesse ponto de partida da análise. Uma nova sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião, ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do final dos anos 80.

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A mudança em curso, por certo, é social, mas em um sentido amplo, ou seja: no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional.

Todavia, conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária, não é certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de Estados-nações territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos” (5), quanto pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia.

Com efeito, sucedendo os promissores sinais de globalização política pós-guerra fria, surgidos sobretudo nos anos 90, os primeiros anos do terceiro milênio apontam para um retrocesso, com o recrudescimento do velho estatismo. Como tive oportunidade de escrever seis dias depois do atentado ao World Trade Center, “se a ‘America’s new war’ se generalizar, haverá, certamente, um retrocesso no fortalecimento da sociedade civil e no processo de sua mundialização, bem como uma contração da esfera pública, sobretudo da emergente esfera pública não-estatal – a novidade mais importante desta passagem, que estamos vivendo, para o novo milênio, na transição da sociedade hierárquica para uma sociedade em rede” (6).

Neste capítulo vamos ver que o fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo. Que a globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico. Que não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos

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desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas (de vez que a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da – uma mudança global na – sociedade).

Vamos ver ainda que o novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

Em seguida vamos ver por quê a globalização é um fenômeno irreversível (conquanto ao que ela vai levar, dependa da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na atualidade). Por quê a globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes. Por quê a globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem. E por quê, como disse Giddens, “a saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização” (7). E ainda, por quê a globalização está em disputa e quais são as forças políticas que se confrontam ou se defrontam hoje no cenário internacional.

Por último, lançando uma ponte para o capítulo seguinte, vamos interrogar por quê não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90) (8).

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(3) Idem.

(4) Thompson, William Irwing (2001). “Cultural History and Complex Dynamical Systems” in Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(5) Idem.

(6) Franco, Augusto (2001). “A ‘America’s new war’ e o recrudescimento do velho estatismo”: http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P24

(7) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasília: Correio Braziliense, 04/10/2001.

(8) Ver Capítulo 2.

Globalização e neoliberalismo

O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

Embora o termo ‘globalismo’ já figure no dicionário Webster desde 1943 e embora a idéia de que vivemos em uma “aldeia global” tenha sido introduzida, para captar o impacto das novas tecnologias de comunicação em nossas vidas, por Marshall McLuhan, em 1962 (no livro “A Galáxia de Gutemberg”), a palavra ‘globalização’, com a sua conotação atual, foi utilizada pela primeira vez em 1983, por Theodore Levitt, em um artigo de dez páginas intitulado “A Globalização dos Mercados”, publicado pela Harvard Business Review (em 1o de maio de 1983). No entanto,

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Levitt não poderia ter, àquela época, a dimensão plena do fenômeno que hoje chamamos de globalização. Ele estava detectando um importante sinal: a convergência dos mercados do mundo. “Em todas as partes – escreveu Levitt – a mesma coisa é vendida e da mesma forma” (1).

Mas conquanto Levitt tivesse introduzido o termo ‘globalização’ em 1983, ele só foi popularizado em 1990, com a publicação do livro “O Mundo Sem Fronteiras: Poder e Estratégia na Economia Interligada” de Kenichi Ohmae (2).

É significativo que tanto o introdutor do tema quanto o seu principal divulgador tenham encarado o fenômeno do ponto de vista da racionalidade mercantil. Também é significativo que ambos pareciam estar especialmente interessados em extrair, das novas tendências que lograram perceber, orientações para a gestão empresarial e para o marketing. O livro de Ohmae, por exemplo, tinha como subtítulo: “Lições de gerenciamento na nova lógica do mercado global”. Ohmae acreditava que a globalização constituía uma nova etapa no desenvolvimento das multinacionais. Ele imaginou que as multinacionais acabariam evoluindo para formas de gestão integrada em escala mundial e que isso as levaria a estabelecer, segundo seus próprios interesses, as novas regas do jogo global, tornando obsoleto inclusive o papel do Estado-nação. Com efeito, em 1995, Ohmae lançou outro livro (“O Fim do Estado-Nação”), que tinha como subtítulo: “Como o Capital, as Corporações, os Consumidores e a Comunicação estão reformatando os mercados globais” (3).

Fomos, assim, como já assinalei, apresentados ao tema (e/ou introduzidos na problemática) da globalização a partir de pontos de vista ou totalmente ou predominantemente mercadocêntricos.

Evidentemente, vários pesquisadores logo descobriram que o fenômeno era muito mais complexo do que simplesmente uma globalização dos mercados. Entretanto, a maior parte dos que escreveram sobre o tema na primeira e até, às vezes, na segunda metade da década de 90, ainda

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conferiam um peso bastante destacado ao fator econômico, talvez porque, juntamente com o processo de globalização em si, ocorria também, como fenômeno acompanhante, a emersão de uma ideologia (e de uma euforia) mercadocêntrica.

Globalismo, globalidade e globalização

Ulrich Beck, por exemplo, em 1998, (em “O que é globalização?”), fez uma distinção entre globalismo, globalidade e globalização. Globalismo seria a ideologia do domínio (mundial) do mercado (sobre as demais esferas da realidade social), ou seja, o neoliberalismo (correspondendo mais ou menos ao que eu chamo de perspectiva mercadocêntrica ou mercadocentrismo). Globalidade se referiria ao reconhecimento de que já vivemos em uma sociedade mundial, na qual há diversidade sem unidade – uma realidade irreversível, segundo ele, em virtude da conjunção de vários fatores ou motivos. Globalização, por sua vez, seria uma denominação genérica para os processos pelos quais os Estados nacionais sofrem a interferência cruzada de atores transnacionais em todos os campos (soberania, identidade, redes de comunicação, chances de poder e orientações políticas). A globalização seria, assim, uma “sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial”, uma nova forma global de capitalismo, desorganizado, na qual “não há poder hegemônico ou regime internacional econômico ou político”. Por isso, a globalização desencadeia um movimento contrário de defesa do Estado (social ou nacional) contra a invasão do mercado mundial (4).

Ora, se reconhecemos que existe uma realidade social objetiva (chamada de “globalidade”, como quer Beck ou, simplesmente, de “sociedade cosmopolita global”, como prefere Giddens), então é óbvio que o fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica (globalista em temos econômicos ou neoliberal) que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Levitt, Theodore (1983). “The Globalization of Markets” in Harvard Business Review (May 1, 1983).

(2) Ohmae, Kenich (1990). The Borderless World. New York: Harper & Row, 1990.

(3) Ohmae, Kenich (1995). O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996 (orig. The End of the Nation State: How Region States Harness the Prosperity of the Global Economy. Free Press, McMillan, Inc., May 1995).

(4) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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Globalização e capitalismo

A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

Na segunda metade da década de 90 começaram a aparecer também outros pontos de vista sobre a globalização, que pagavam menos tributos ao reducionismo da visão econômica. Pesquisadores como Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Manuel Castells, entre outros, começaram a ver que o fenômeno não se restringia ao aspecto exclusivamente econômico, como continuaram enfatizando alguns organismos financeiros (como o FMI e, até os dias de hoje, os seus críticos, de esquerda ou de direita – inclusive alguns de seus antigos funcionários, como Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, para o qual, em suma, quando alguém fala de globalização está se referindo a “remoção das barreiras ao livre comércio e a maior integração das economias nacionais”) (1).

No final do século passado, Anthony Giddens (1999) já havia considerado um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização – escreveu ele – é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica” (2). Outros pesquisadores, por sua vez, começaram a perceber que o fenômeno da globalização tinha raízes mais antigas (uma parte das quais, talvez a mais significativa, lançada uns dez anos antes da “descoberta” de Levitt) e só começou a se revelar de fato, naquilo que tinha de mais inédito e surpreendente, uns dez anos depois da publicação do “A Globalização dos Mercados”.

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Pois bem. Afirmei acima que para analisar corretamente o processo de globalização é preciso admitir, como ponto de partida, que uma nova sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião, ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do final dos anos 80.

A conjunção desses dois fatores, no dealbar dos anos 90, possibilitou uma mudança tão rápida no funcionamento da sociedade humana em nível global, como jamais se viu na história. Creio ser essa mudança o fenômeno que interpretamos atualmente como globalização.

Inovação tecnológica e condições políticas favoráveis

Com efeito, as inovações tecnológicas que possibilitaram o atual processo de globalização surgiram na década de 1970, com a revolução das TICs (tecnologias de informação e comunicação). Por um lado, com o surgimento dos primeiros satélites de órbita estacionária, que viabilizaram a comunicação em tempo real entre dois pontos quaisquer do planeta (e, depois, da fibra ótica, da transmissão eletromagnética em uma faixa maior de freqüências, da utilização do laser, da telefonia digital etc.). E, por outro lado, com a invenção do microprocessador e do microcomputador. A união, sinérgica, dessas duas tecnologias, possibilitou que pessoas pudessem se conectar com pessoas superando as barreiras do tempo e do espaço. No entanto, tudo isso somente veio a ocorrer, em escala significativa, vinte anos depois, em meados da década de 1990, por meio de uma rede de redes de computadores capazes de se comunicar entre si chamada Internet.

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Simultaneamente, as condições políticas que permitiram que o atual processo de globalização ocorresse, só se reuniram a partir da queda do Muro. Nesse aspecto tinha razão Thomas Friedman quando disse, em 1999, que “o mundo vagaroso, estável e fragmentado da Guerra Fria, que dominara o cenário internacional desde 1945, foi substituído por um novo e bem lubrificado sistema interconectado, chamado globalização” (3). Para Friedman, “a globalização é o sistema internacional que substituiu o sistema da Guerra Fria”, no qual os Estados-nações detinham em suas mãos a quase totalidade da capacidade ordenadora (4).

Difusão mundial do capitalismo

Embora enfatize a importância das condições políticas, a visão de Thomas Friedman ainda é centrada predominantemente no mercado, sobretudo na combinação de livre mercado com inovação tecnológica. Para ele “a idéia que dá impulso à globalização é o capitalismo de livre mercado – quanto maior a liberdade de atuação das forças de mercado e quanto mais ampla a abertura da economia para o livre comércio e para a competição, mais eficiente e mais próspera será a economia. A globalização significa a difusão do capitalismo de livre mercado para praticamente todos os países do mundo. A globalização também conta com o seu próprio conjunto de regras de economia – normas que giram em torno da abertura, da desregulamentação e da privatização da economia” (5).

Friedman, como se vê – e ele não esconde – está possuído por aquela ideologia que Ulrich Beck chama de ‘globalismo’. Para se deixar possuir por tal ideologia é necessário, antes de qualquer interpretação do fenômeno da globalização como triunfo do liberalismo, aderir à crença de que o capitalismo de livre mercado constitui a alternativa mais eficaz de organização social.

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Visões como essa, evidentemente, geraram e continuam gerando fortíssimas reações por parte daqueles que não têm motivos para aderir a tal crença (seja porque já abraçaram utopias igualitárias, seja porque já estão suficientemente impregnados por ideologias contrárias, baseadas no papel suficiente do Estado como protagonista único e exclusivo do processo de organização das sociedades); e também por parte daqueles que, como registrou o próprio Friedman, “foram violentados ou deixados para trás pelo novo sistema” (6).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000. Anthony Giddens considerou um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica”. Para Giddens as mudanças em curso no mundo atual “estão criando algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global. Somos a primeira geração a viver nessa sociedade, cujos contornos até agora só podemos perceber indistintamente. Ela está sacudindo nosso modo de vida atual, não importa o que sejamos. Não se trata – pelo menos no momento – de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva. Ao contrário, ela está emergindo de uma maneira anárquica, fortuita, trazida por uma mistura de influências... A globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora”. Assim, para Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando novas pressões por autonomia local. O sociólogo americano Daniel Bell descreve isso muito bem quando diz que a nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos”. Avançando mais nessa linha de raciocínio, Giddens percebe que “a globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”.

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(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. Mais adiante veremos que a queda do Muro é um evento cujas conotações simbólicas são muito mais profundas e abrangentes do que parecem à primeira vista. A queda do Muro de Berlim representa a queda de muitos outros muros, o fim de muitas separações, ou seja, da ausência de múltiplos caminhos... É, em certo sentido, uma dessacralização do mundo (sagrado = separado), ou seja, uma des-hierarquização (de vez que a hierarquia constitui-se sempre como uma ordem sacerdotal, quer dizer, sagrada), caracterizada pela existência de caminhos únicos. A possibilidade da conexão em rede – ou seja, da existência de múltiplos caminhos – foi, aqui, o fator-chave.

(4) Idem.

(5) Idem-idem.

(6) Ibidem.

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Globalização e fundamentalismos laicos (de mercado e de Estado

Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na) sociedade.

A visão de Friedman, conquanto (como frisei anteriormente), tenha o mérito de reconhecer a dimensão política da globalização como processo de mudança ora em curso no mundo, é claramente mercadocêntrica. Ele não se pergunta se alguma coisa (e que tipo de coisa) mudou no desenho da sociedade civil e nos seus padrões de relacionamento com o Estado e com o mercado, para permitir que a conjunção de inovação tecnológica com livre mercado, sob condições políticas favoráveis – com o fim do sistema de “muros” da guerra-fria “que dividia todo o mundo” e a introdução da ‘www’ (World Wide Web) “que une todo o mundo” – pudesse assumir uma dimensão planetária, alterando o antigo equilíbrio do sistema global (1).

Partindo de pressupostos semelhantes aos de Friedman, muita gente tenta explicar a globalização a partir do mercado, imaginando talvez que alguma coisa como uma

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acumulação ou incubação de forças econômicas, represadas politicamente durante 40 anos e sem meios técnicos para se expressar, de repente, quando as condições (políticas e técnicas) foram favoráveis, tivesse irrompido à luz do dia. Nas explicações dessas pessoas os comportamentos e as normas sociais são, por certo, alterados por tal fenômeno, mas o fenômeno em si mesmo não é explicado pela alteração da estrutura e da dinâmica social, por mudanças no “corpo” e no “metabolismo” das sociedades e nem por mudanças culturais-civilizacionais. É como se as forças de mercado tivessem um comportamento autônomo, uma dinâmica imanente, inerente apenas à sua própria “esfera” e não fossem construídas historicamente pela experiência concreta das sociedades humanas.

Por outro lado, os que se contrapõem a essa visão, em geral também não fazem tais perguntas e não tentam investigar o que mudou na sociedade para produzir o fenômeno. Reagem à ideologia ‘globalista’ (neoliberal) com uma outra ideologia, simetricamente posta, contraliberal: o estatismo.

A cruzada estatista contra o neoliberalismo

No afã de resistir às mudanças, introduzidas em especial a partir dos anos 90, no padrão de relação Estado-sociedade, a luta contra a globalização assumiu assim, em grande parte, a feição ideológica de uma cruzada contra o chamado neoliberalismo.

O estatismo (ou estadocentrismo) imagina a sociedade como dominium do Estado. Imagina que o Estado não só detém mas deve deter eternamente o monopólio do público. Imagina, hobbesianamente, que o Estado deve ser o supremo regulador dos conflitos sociais. E imagina, em alguns casos, que o Estado deva ser o protagonista único e exclusivo das mudanças sociais.

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Ora, para quem pensa dessa maneira não pode mesmo haver ameaça maior do que a globalização. Porque a globalização ameaça de fato o velho status do Estado-nação. Todavia, os que se deixaram impregnar pela ideologia estatista deveriam parar e perguntar: qual é mesmo o problema para a sociedade humana? O fato de estarmos entrando em contato com realidades que não podem mais ser adequadamente enfrentadas pelas tradicionais estruturas políticas nacionais e pelos sistemas de governança atuais, não deveria significar que, necessariamente, está indo tudo por água a baixo. Deveria significar, isso sim, que temos pela frente a imensa tarefa de reconstruir novas estruturas e novos sistemas que dêem conta de enfrentar os novos desafios.

Globalidade irreversível

Beck lista oito motivos que tornam a globalidade irreversível:

“1) ampliação geográfica e crescente interação do comércio internacional, a conexão global dos mercados financeiros e o crescimento do poder das companhias transnacionais.

2) A ininterrupta revolução dos meios tecnológicos de informação e comunicação.

3) A exigência, universalmente imposta, por direitos humanos – ou seja, o princípio (do discurso) democrático.

4) As correntes icônicas da indústria cultural global.

5) A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número... com uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias, organizações não-governamentais, uniões nacionais).

6) A questão da pobreza mundial.

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7) A destruição ambiental mundial.

8) Conflitos transculturais localizados” (2).

A esta lista poderíamos acrescentar outros tantos itens que comparecem na nova realidade do mundo globalizado e que, de algum modo, estão associados aos desafios para os quais o velho sistema de Estados-nações não está preparado:

1’) A volta ao local, ou o reflorescimento da perspectiva comunitária como alternativa de desenvolvimento, revelando a inadeqüabilidade do Estado-nação para interagir com as peculiaridades dos processos locais. Como assinalou Daniel Bell: a nação se tornou, simultaneamente, pequena demais para resolver os grandes problemas e grande demais para resolver os pequenos. Como exemplos poderíamos citar, no primeiro caso, as questões ambientais e as questões relacionadas aos direitos humanos, que ultrapassam os fronteiras nacionais; e, no segundo caso, as questões, sobretudo políticas, relacionadas ao desenvolvimento local (que questionam as cadeias clientelistas de intermediação de recursos públicos que sustentam todo o sistema político).

2’) O terrorismo internacional, a lavagem de dinheiro e os paraísos fiscais, o narcotráfico e os tráficos de armas, de nascituros e crianças para adoção ilegal, de pessoas para prostituição ou trabalho forçado e de órgãos.

3’) A incapacidade do Estado-nação de reprimir as novas dimensões coletivas da criminalidade e o questionamento e a deslegitimação – na prática de milícias, gangues, grupos separatistas – do monopólio da violência por parte do Estado.

4’) A produção de armas de destruição em massa, sobretudo as nucleares, químicas e biológicas (mas também as de altíssima tecnologia, como as eletromagnéticas) nas mãos de países autocráticos e nas mãos de grandes potências com pretensões imperiais.

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5’) As ameaças à paz mundial representadas pela velha noção de soberania (como vem revelando atualmente as insanidades do grupo belicista que ascendeu ao poder nos USA com George W. Bush e as novas ideologias perversas urdidas e difundidas por esse grupo, como, por exemplo, a doutrina da preempção ou da guerra preventiva).

6’) As novas doenças endêmicas e pandêmicas, provavelmente causadas por uma intervenção antrópica desarmonizante no meio ambiente natural (como a malária amazônica resultante de desmatamento e as viroses da “zona quente” da África subsaariana).

7’) O colapso da política nacional baseada no sistema de representação, ou seja, o esgotamento e a perda de legitimidade das democracias realmente existentes (transformando os processos de eleição de governantes e legisladores, como diz Thompson, em uma espécie de “cruzamento do entretenimento, dos esportes televisionados e da gestão de celebridades na cultura popular da ilusão compartilhada...” (3).

8’) A exarcebação de fundamentalismos religiosos (em maior parte ligados à correntes sectárias do islamismo, mas não só) e laicos, como o fundamentalismo de mercado (com a ampla intoxicação pelo neoliberalismo dos policymakers e decisores de vários países do mundo, disseminando visões ideológicas, pretensamente científicas, segundo as quais o ser humano seria naturalmente ou intrinsecamente competitivo e desenhando políticas públicas que não levam em conta o papel da cooperação) e o fundamentalismo de Estado (com o amplo recrudescimento do estatismo, a partir, inclusive, de uma reação contra-liberal ao processo de globalização por parte de tendências políticas de direita e de esquerda, disseminando uma cultura adversarial e visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo e fazendo política de oposição na base do “quanto pior para o

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país comandado pelo inimigo melhor para mim” ou, quando na situação, desenhando políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o papel da cooperação).

(A esta nova lista ainda poderiam ser acrescentados alguns outros itens, como o protecionismo dos países ricos e as demais assimetrias do mercado internacional, ou seja, como lembra Stiglitz, as injustiças do sistema comercial global e a hipocrisia das organizações econômicas internacionais quando fingem que estão “ajudando países em desenvolvimento ao forçá-los a abrir seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios mercados”) (4).Para enfrentar esses novos desafios de maneira responsável, é necessário abandonar tanto a visão eufórica do globalismo econômico, que imagina que o livre jogo das forças de mercado levará, por si só, ao melhor dos mundos, quanto a visão reativa, estadocêntrica, que imagina que o fim da capacidade de impor, vertical e heteronomamente, uma ordem previamente concebida ao caos social, signifique alguma coisa como a volta à barbárie. Para fazer isso é preciso partir de uma visão proativa, que aceita o desafio da mudança da realidade, tal como ela se afigura (com os seus aspectos negativos e positivos, ainda que, no momento, mais negativos do que positivos) e procura fluir junto com ela para captar o seu sentido, conhecer as suas tendências e interagir positivamente com as novas configurações de atores que ela enseja.

A nova sociedade civil

Para falar de novos atores, se o processo chamado de globalização não modificasse o comportamento dos Estados-nacionais, não poderia estar emergindo, não pelo menos com a intensidade e a velocidade que verificamos na década de 1990, uma nova sociedade civil (o chamado terceiro setor). Igualmente, o reflorescimento da

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perspectiva comunitária – um dos sinais mais promissores dos tempos atuais – não poderia estar ocorrendo se o velho Estado-nação permanecesse tal como era antes. Foi preciso abalá-lo, desconstruir a ideologia que justificava a sua autosuficiência, de certo modo vergar a sua espinha dorsal – sua pretensão de onipotência e sua ambição de onipresença na sociedade – para que houvesse um pouco mais de ar para respirar... e as pessoas, então, respirando por seu próprio esforço (fora dos “balões de oxigênio da grande incubadeira-Estado”), pudessem se agrupar para pensar e agir por si mesmas.

É assim que está emergindo, em toda parte em que as condições políticas o permitem, uma nova sociedade civil. Pessoas se associando a outras pessoas para fazer coisas que, voluntariamente, estão a fim de fazer – e, cada vez mais, de maneira independente de raça e credo, de língua e costumes, de território e nação – não, predominantemente, para ganhar alguma coisa, levar alguma vantagem, destruir algum concorrente ou eliminar algum inimigo. Isso significa que estamos avançando, na prática, para a perspectiva inédita de um mundo onde seja desejável e possível a cooperação, um ‘mundo (pelo menos em parte e sob certas condições) de colaboradores’, ao invés do ‘mundo (apenas) de competidores’ (dos neoliberais) ou do ‘mundo vincado pela relação amigo x inimigo’ (dos estatistas).

Com efeito, a cooperação é (para usar uma expressão marxiana) mais ‘conforme ao ser social’ da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) do que ao ser social do mercado ou ao ser social do Estado. Por isso, a emergência do terceiro setor (crescentemente acompanhada do reconhecimento do seu papel estratégico para o desenvolvimento social) é um fenômeno muito significativo dentro do processo de globalização.

Como qualquer pessoa inteligente pode facilmente perceber, isso nada tem a ver com perspectivas privatizantes ou com a derruição do Estado pregada pelo pensamento neoliberal ou a ele atribuída. Tem a ver com uma nova perspectiva sociocêntrica, publicizante mas não

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estatizante, que está podendo surgir no contexto atual do processo de globalização, mesmo que os efeitos desse processo tenham se mostrado, até o momento, em grande parte, perversos.

Portanto, para compreender adequadamente o que é a globalização temos que centrar o foco na sociedade e não apenas no mercado ou somente no Estado, desvencilhando-nos dessas duas “drogas pesadas” que turvam o pensamento, ou seja, das ideologias mercadocêntricas e estadocêntricas: o neoliberalismo e o estatismo, respectivamente.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(2) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(3) “À medida que a política do governo representativo é transformada em esporte e entretenimento pela mídia eletrônica, em um ambiente em que as pessoas ficam livres para votar na celebridade mais bem-sucedida na captação de recursos e na propaganda, a civilização tradicional volta a assumir formas distorcidas de estágios anteriores – subculturas acadêmicas de filosofias pós-modernas não populares e obscurantistas em universidades, cultos a gurus de autoridade carismática em religiões medievais e gangues de adolescentes de dominação primata”). Cf. Thompson, William Irwin. “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution” (MA: Lindisfarne Books, 2001).

(4) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.

Globalização e mudança social

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O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

A partir de meados da década de 1990, alguns pesquisadores compreenderam também que as inovações tecnológicas que possibilitaram a ocorrência do processo atualmente chamado de globalização não determinaram, stricto sensu, este processo, senão que permitiram que ele acontecesse com as características que de fato apresenta no final do século 20 e início do século 21 e que o distinguem de outras possíveis ou imaginadas “globalizações” pelas quais teria passado o mundo em épocas pretéritas.

Por certo a globalização atual, dominada pelo fato da interligação crescente das economias nacionais sob a influência devastadora de um mercado financeiro livre de qualquer regulação normativa, acarreta muitas injustiças comerciais e sociais. O fenômeno global que chamamos de globalização, no entanto, é muito maior do que isso. Não se trata, como ainda imagina boa parte da velha esquerda, de um plano urdido pelas corporações transnacionais, que estão na vanguarda do processo de internacionalização da economia mundial, para dominar o mundo. Trata-se do surgimento de novas condições, sem as quais seria impossível o fluxo interativo de informação e conhecimento que tem permitido, inclusive, que os poderosos complexos

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financeiros e comerciais possam se internacionalizar e se integrar e tentar dominar o mundo. Mas que permite, também, a percepção compartilhada de problemas e perspectivas globais e o surgimento de novos atores globais, como a nova sociedade civil mundial que está emergindo na atualidade.

Inovação tecnológica e mudança social

Muitas vezes interpretamos essas condições como recursos técnicos: o surgimento das redes telemáticas que possibilitam a interação em tempo real, dando uma qualidade inédita ao processo de globalização do final do século 20, que o diferencia qualitativamente das antigas globalizações possivelmente já ocorridas em outras épocas, como na era das navegações, por exemplo. No entanto, é preciso ver – e isso faz toda a diferença em termos de análise – que tais condições são sociais. O fundamental aqui, como veremos mais adiante, não é o fato das redes telemáticas serem telemáticas (inovação tecnológica resultante da sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente disponibilizadas) e sim o fato de serem redes (inovação social no padrão de organização).

Os avanços técnicos que estão possibilitando a existência de um mundo em tempo real – ou seja, de um mundo sem distância – cumprem um importante papel, de fato, mas a direção do seu desenvolvimento responde ao surgimento de novas relações sociais e não o inverso. Quando se inventa um novo hardware ou um novo software que permitem que tal ou qual operação seja feita entre grupos humanos é porque essa operação atende ou corresponde a um padrão de comportamento dado pela configuração e pela dinâmica desses grupos – uma necessidade, um desejo coletivo, enfim uma possibilidade de vida ou convivência social admissível ou apropriável por eles.

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Em outras palavras, são as relações sociais que determinam, em grandes linhas, os contornos e as características do campo dentro do qual surge a inovação tecnológica. Isso vale tanto para a tecnologia hidráulica dos egípcios, há 4 mil anos, quanto para a tecnologia atual das redes de computadores. Com efeito, como lembra Thompson (no excelente artigo “História cultural e sistemas dinâmicos complexos”, 2001), cada uma das bifurcações ou transformações culturais... [pelas quais passou a humanidade], desde as ferramentas da Idade da Pedra até os computadores, não constitui simplesmente uma mudança tecnológica. A própria inovação tecnológica é algo profundamente embutido em diversos sistemas de valores e símbolos, de modo que uma nova ferramenta pode surgir em sincronia com uma nova forma de sistema de governo e também como uma nova forma de espiritualidade. Em contraste com a história mais linear da tecnologia, a história cultural preocupa-se com o complexo sistema dinâmico no qual a flutuação biológica natural, as restrições ecológicas e os sistemas de comunicação e organização social interagem em um processo de “co-originação dependente” (1).

Mais ou menos nessa mesma linha, conquanto referindo-se especificamente à Internet, Manuel Castells assinalou, no início de 2002, que “as tecnologias são produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a Internet” (2) (cf. Texto 1).

Ora, a esta altura da discussão, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: qual é a mudança social (em sentido amplo, ou seja, no sentido “micro”, relativo a estrutura e a dinâmica das sociedades e no sentido “macro”, cultural-civilizacional) acompanhante – vamos dizer assim – das

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novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização? Esse é o ponto.

Acho que é possível mostrar que no sentido “micro”, a mudança social acompanhante das novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é uma mudança democratizante e aponta, dessarte, na direção de novas redes pactuadas de conversações, de um novo “metabolismo” (um novo modo de regular conflitos no interior do sistema formado por agentes que interagem em termos de cooperação e competição) e de um novo “corpo” compatível com esse novo “metabolismo” (ou seja, um novo padrão de organização, caracterizado pela existência de caminhos múltiplos entre os agentes, de conexões “horizontais” – isto é, de redes). Nesses termos, o sentido da grande mudança é o da emergência de cada vez mais redes e a emergência das redes, portanto, constitui a chave para entender a mudança social que está na base do fenômeno que chamamos de globalização.

Penso ser possível mostrar também que, no sentido “macro”, a mudança social acompanhante do surgimento do novo ambiente político mundial que se esboça a partir da queda do Muro e que, juntamente com a inovação tecnológica, tem possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é o surgimento de uma nova cultura planetária, uma cultura conforme àquilo que Giddens chamou de “sociedade cosmopolita global”, uma cultura que só foi possível emergir na nova ambiência política pós-guerra-fria e que – aqui está toda a dificuldade para a análise – acompanha sim os movimentos da nova economia globalizada, porém pode apontar para outra direção, diferente daquela captável pela visão mercadocêntrica ou proposta pelo ‘globalismo’ como ideologia neoliberal.

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Assim, há quem anteveja que o processo de emersão dessa nova cultura tenha outro sentido. Thompson, por exemplo, acredita que “estamos testemunhando o surgimento de complexos sistemas noéticos de governança nos quais os seres humanos estão se agrupando em redes eletrônicas globais de consciência. Máquinas que antes eram externas a nós estão se tornando arquiteturas íntimas do nosso envolvimento com outras mentes, outras culturas, outros corpos celestiais” (3).

Com efeito, as coisas estão tão imbricadas – novo ambiente político mundial, inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local – que torna-se muito difícil para a análise linear da velha sociologia (que procura relacionar causa e efeito por meio de relações unívocas ou bi-unívocas e confunde causação com anterioridade temporal) captar o fenômeno em sua globalidade. Mas a globalização, como, aliás, diz o termo, é um fenômeno que só se deixa captar por uma visão da sua globalidade enquanto sistema complexo interagente que co-evolui com seus componentes, relacionados entre si por processos de co-originação com múltiplos laços de interdependência.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(2) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”. http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(3) Thompson; op. cit.

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Texto 1 | Castells e a ‘Galáxia da Internet’

“A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a Internet”.

Tomando como exemplo a tecnologia da Internet, Manuel Castells, na aula inaugural do programa de doutorado sobre sociedade da informação e do conhecimento, proferida em fevereiro de 2002 na Universidade Aberta da Catalunha (UOC), intitulada “A Internet e a Sociedade Rede” (1) afirma que “a Internet [que não passa de “uma rede de redes de computadores capazes de se comunicar entre si”] é o tecido de nossas vidas neste momento... No entanto, essa tecnologia é muito mais do que uma tecnologia. É um meio de comunicação, de interação e de organização social”.

Castells comenta a famosa idéia de que “a Internet é algo incontrolável, algo libertário, etc., por causa da tecnologia”. Para ele, “isso ocorre porque esta tecnologia foi desenhada, ao longo da sua história, com tal intenção. Quer dizer, como um instrumento de comunicação livre, criado de forma múltipla por pessoas, setores e pesquisadores inovadores, que queriam que ela fosse um instrumento de comunicação livre. Creio, nesse sentido, que as tecnologias são produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os

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comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a Internet”.

Castells conclui dizendo que “a Internet é a própria sociedade, expressa os processos sociais, os interesses sociais, os valores sociais, as instituições sociais... A especificidade da Internet é que ela constitui a base material e tecnológica da sociedade rede, é a infraestrutura tecnológica e o meio organizativo que permite o desenvolvimento de uma série de novas formas de relação social que não têm sua origem na Internet, que são fruto de uma série de mudanças históricas, porém que não poderiam desenvolver-se sem a Internet. Essa sociedade rede é a sociedade que eu analiso como uma sociedade cuja estrutura social está construída em torno de redes de informação a partir da tecnologia da informação microeletrônica estruturada na Internet. Porém a Internet, nesse sentido, não é simplesmente uma tecnologia, é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades... A Internet é o coração de um novo paradigma sociotécnico que constitui, na realidade, a base material de nossas vidas e de nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a sociedade rede, que é a sociedade em que vivemos”.

Com efeito, Manuel Castells, assinalou como uma das características dos movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores, suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo em termos econômicos. Como

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se pode fazer isso? Pois bem, a Internet permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que acabam aterrissando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington, Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade”.

No livro “The Internet Galaxy: Reflections on Internet, Business and Society” (Oxford: Oxford University Press, 2001) Manuel Castells já havia tecido reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade (2). O nome da obra evoca, obviamente o célebre livro de MacLuhan: “assim como a difusão da máquina impressora no Ocidente criou o que MacLuhan chamou de a “Galáxia de Gutenberg”, ingressamos agora em um novo mundo de comunicação: a Galáxia da Internet”, afirma Castells.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”. http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(2) O livro foi publicado no Brasil com o mesmo nome. Cf. Castells, Manuel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Globalização irreversível

A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo, depende da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na atualidade.

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Entendido como um processo de desconstituição do antigo sistema mundial baseado no Estado-nação, parece óbvio que a globalização é um processo irreversível. Temos hoje outros atores internacionais, além do Estado-nação. Do ponto de vista econômico, como assinala Friedman, “os países... ainda são de enorme importância, hoje em dia; mas também o são os supermercados e os indivíduos com superpoderes. É impossível compreender o sistema da globalização ou a primeira página dos jornais, sem a visão da interação complexa entre esses três agentes: os Estados em choque com os Estados, os Estados em choque com o supermercados, e os supermercados e Estados em choque com os indivíduos com superpoderes” (1).

Eliminar esses outros sujeitos que atuam na cena internacional, devolvendo ao Estado-nação um papel semelhante ao que cumpria antes da queda do Muro, para tomarmos um referencial político, não parece ser uma tarefa possível. Para o mal ou para o bem (melhor seria dizer: para o mal e para o bem), o processo de globalização interligou as unidades sócio-territoriais do planeta, os diversos mundos que antes podiam viver mais ou menos isolados, de tal forma e com tal intensidade que, voltar a estados anteriores de separação, implicaria realizar uma tarefa impossível: seria necessário não apenas cortar as conexões, proibir os meios de comunicação globais e os meios de transporte de pessoas e objetos senão, também, apagar a memória das duas últimas décadas. Isso para não falar na desarrumação que tal tentativa de re-compartimentação nas unidades nacionais acarretaria na economia global, no desenvolvimento científico e tecnológico, na política internacional e, inclusive, na estabilidade sócio-política mundial. Assim, parece razoável afirmar que a globalização é um processo irreversível. No entanto, tal não significa que ela nos levará para um lugar determinado, ou melhor, determinável a priori.

É bom frisar: conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária, não é

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certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de Estados-nações territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos”, quanto pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia (2).

Bifurcação

Mas o conceito de ‘bi-furcação’ não deve ser entendido literalmente como a existência de apenas duas alternativas, do tipo ‘civilização ou barbárie’ ou ‘ordem ou caos’. Bifurcação é o ponto crítico em que o sistema pode “optar” entre mais de um futuro possível. Atingido esse ponto crítico, a descrição determinista entra em colapso, tornando-se impossível prever o estado futuro do sistema. Tudo indica que o mundo atingiu ou está atingindo esse ponto crítico na passagem do século 20 para o século 21.

Existem vários futuros possíveis para além do bom cenário das ‘redes eletrônicas de consciência’ e do mau cenário ‘Blade Runner’, ainda que – por algum motivo que não deveria ser tão desprezado pelos analistas – mais de 90% das tentativas de antecipação da literatura de ficção científica apontem para cenários do tipo Blade Runner.

Todavia, a mudança macro-cultural em curso, a mudança, como assinala Thompson, “da nossa matriz de identidade de uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico para uma nova cultura planetária, na qual a ciência e a espiritualidade [um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa] são os país diplóides de uma nova matriz de consciência” está gerando uma reação que introduz a bi-polaridade. Isso dá a impressão de que só existem duas alternativas.

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Essa reação é o fato mais preocupante nos dias de hoje, porquanto não se trata propriamente apenas de uma reação à globalização (ou às suas más conseqüências, o que seria justificável) e sim, também, de uma reação às melhores promessas da globalidade. Os fundamentalismos religiosos (mas também os laicos, como o neoliberalismo e o estatismo) e as reações terroristas nacionalistas ao que Thompson chama de ‘planetização’ (e que outros, como Edgar Morin, por exemplo, chamam de ‘planetarização’), constituem ameaças gravíssimas. “Como a Inquisição e a Contra-Reforma – escreve ele – essas explosões reacionárias podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural por séculos a fio. Se a humanidade pode ou não ascender para uma identidade transcultural, na qual a ciência e um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa possam reintroduzir a consciência plenamente individuada da pessoa em um cosmos multidimensional, é a questão dos nossos tempos” (3).

O que vai acontecer, não se pode saber de antemão. O jogo está sendo jogado.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(2) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(3) Idem.

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Globalização inédita

A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

Há quem afirme que o mundo já passou por várias globalizações. Citam-se, freqüentemente, a globalização ocorrida na época dos descobrimentos ou, ainda, a globalização dos primeiros anos do século 20. Os que dizem isso estão, obviamente, pensando a partir da economia, estão pensando em termos de ampliação e de integração de mercados.

Ora, mesmo desse ponto de vista, a globalização atual é um fenômeno único. Antes de qualquer coisa porque, antes, jamais havia se conformado a constelação particular de fatores políticos e tecnológicos que possibilitou a globalização atual. Por exemplo, não se poderia sequer pensar em um mercado financeiro que funcionasse em

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todos os lugares do planeta simultaneamente, quer dizer, em tempo real. Primeiro porque as condições políticas do mundo anterior não o permitiriam. Segundo porque a tecnologia disponível não o permitiria.

Mas a razão fundamental e mais substantiva é, simplesmente, porque, antes, não estava acontecendo a mudança social, em sentido amplo, atualmente em curso. Ou seja, não estava ocorrendo, no nível “macro”, a transição para uma cultura global e, no nível “micro”, a emergência de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-participativos – fatores sem os quais, é bom frisar, a inovação tecnológica atual certamente não teria tomado a direção que tomou. Basta apontar um exemplo: não teríamos a Internet, não, pelo menos, com a estrutura e o funcionamento libertários que a caracterizam, porque as pessoas que desenharam essa rede de redes de computadores teriam feito, historicamente, outras escolhas, condicionadas por outra imagem de ordem, por outros padrões de organização e por outros princípios de regulação, avessos às possibilidades de imprevisibilidade e de holarquia. Essas pessoas não poderiam suportar conviver com a idéia do caos e dificilmente iriam produzir algo que ninguém pudesse, a rigor, controlar, a partir de um modelo preexistente de ordem, de cima ou de fora. Não porque não pudessem reunir disposição emocional (ou a vontade) ou capacidade intelectual (ou os conhecimentos necessários) para fazer isso e sim porque não teriam nenhuma experiência de mudança nessa direção capaz de mobilizá-las e inspirá-las, nenhum precedente concreto que conformasse um novo “lugar” a partir do qual tais escolhas fizessem sentido.A globalização atual, portanto, é única. A descompartimentação que ela promove está ensejando o surgimento de uma coisa que jamais existiu antes no mundo: um novo tipo de sociedade, uma sociedade cosmopolita global, organizada em rede e capaz de possibilitar a interação entre seus nodos em tempo real.

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Globalização, ordem e desordem

A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem.

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A globalização não é ainda a transição para uma nova ordem mundial (embora possa levar à essa transição), mas uma desconstituição do mundo assentado na velha ordem do Estado-nação. Como diz Beck, é “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” (1). E como assinala Giddens, “não se trata de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” (2).

Para alguns, isso é um verdadeiro horror. Grande parte das reações fundamentalistas à globalização (e, na verdade, à globalidade), sobretudo as laicas, apóiam-se na idéia de ordem. São reações de fundo hobbesiano. Elas partem da idéia de que se não houver uma ordem pré-existente, previamente concebida e adotada por um sujeito particular que, falando em nome de um bem comum universal, lhe dê o direito e a capacidade de impô-la, vertical e heteronomamente, às sociedades, será a volta à barbárie ou o caos. Como tal sujeito (único e exclusivo) é o Estado, trata-se de uma visão estadocêntrica que, não raro, reúne agentes de direita e de esquerda no mesmo pólo reativo.

As sociedades humanas são tomadas, por tal visão, como sociedades em estado de natureza (e uma natureza que se comporta darwinisticamente). Não existe sociedade civil a não ser como dominium do Estado. Deixadas a si mesmas as sociedades se fragmentarão em virtude da ausência de uma instância superior reguladora dos conflitos gerados pela inexorável competição entre os humanos. Os conflitos não são regulados por processos políticos (ex parte populis), por modos de regulação societários e sim por sujeitos pretensamente situados acima da sociedade. O fim (isto é, o sentido) da política (ex parte principis) é a ordem (Hobbes) e não a liberdade (Spinoza). A competição é inerente à natureza humana enquanto que a cooperação é o resultado de um aprendizado (e de uma racionalização visando obter vantagens a longo prazo). Em suma, a sociedade humana é incapaz de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação.

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Ora, se a ordem não pode ser gerada espontaneamente, ela tem que ser imposta por alguém. O mal maior, então, não é a ordem injusta e sim a não-ordem. O caos é o demônio, a deusa-dragão Tiamat (a deusa do caos) que deve ser cortada por Marduk (o deus da ordem) com a espada que separa, que reintroduz continuamente todo tipo de compartimentação. Com efeito, grande parte das críticas estatistas, de direita ou de esquerda, à globalização, são pautadas pelo tema do confronto com a desordem internacional gerada por tal processo. São reações à desordem, como se a ordem anterior e compartimentada do velho “sistema de muros” do Estado-nação fosse alguma maravilha ou algo que merecesse ser preservado. Mesmo os relatórios elaborados por segmentos da sociedade civil mundial (como os do Social Watch) adotam essa perspectiva, o que nos dá uma medida de quão profundamente estão fundeadas no subsolo dos preconceitos as visões ideológicas de boa parte dos que se opõem a globalização por medo de uma globalidade não-controlável, ou seja, por horror ao caos.

É bom repetir: a globalização não é um processo de constituição de uma nova ordem mundial. Talvez seja até mais por isso, e não porque tal processo estivesse construindo uma nova ordem injusta, que ela – ao ameaçar a velha ordem (o sistema de equilíbrio de poder internacional protagonizado pelo Estado-nação) sem colocar nada no lugar – aterrorize tanto os cavaleiros da ordem do Estado.

Todavia, a desarrumação do mundo que está sendo promovida pela globalização (com conseqüências adversas, por certo, para a qualidade de vida da maior parte da população mundial, pelo menos nesse primeiro momento) é, provavelmente, a única chance (ou uma chance) de desconstituir uma ordem injusta que impede a planetização, obstrui a vigência da democracia no plano internacional e possibilita a reprodução de enclaves autocráticos constituídos por Estados nacionais separados e escudados por velhas noções de soberania (3).

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A opinião pública mundial não tem mais aceitado que, em nome da soberania, um Estado particular prenda, torture ou elimine suas minorias políticas, discrimine seus habitantes por razões religiosas, raciais ou de gênero, ou provoque catástrofes ambientais. Isso significa que uma nova cultura planetária está surgindo, impulsionada pelos novos movimentos sociais globais emergentes, em defesa da democracia e dos direitos humanos, das minorias sociais e do meio ambiente. A emersão desses novos movimentos sociais – democráticos, pacifistas, ecumênicos, feministas, ecológicos e comunitaristas – ampliou a participação popular, levando-a de uma perspectiva predominantemente econômica e corporativa, setorial e compartimentada sócio-territorialmente, para uma perspectiva mais universal e global.

Os riscos da ordem imposta

O risco, visível hoje claramente, é que em nome da defesa desses valores, um Estado particular se invista unilateralmente no direito de regular o mundo todo e de normatizar, a partir do seu próprio poder militar e da sua capacidade econômica, a vida dos outros povos do planeta. Por isso, é melhor que a globalização seja mesmo “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” e que tal processo não esteja instaurando “uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” particular, até enquanto não se reúnam as condições para a consolidação de uma nova instância (ou de uma nova dinâmica, talvez seja melhor dizer assim) democrática internacional.

Um governo mundial democrático, nos moldes atuais (com um parlamento e uma instância executiva mundiais ou algo equivalente), pode não ser, contudo, a melhor alternativa. Pois, ao que tudo indica, não se trata de transplantar a realidade política vigente no interior dos atuais Estados-nações considerados democráticos, para o plano internacional. A democracia realmente existente no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos

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não tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de globalização. Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macro-culturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O corpo e o metabolismo do Estado-nação ainda permanece, todavia, como uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade, dos Estados-nações do globo.

Isso significa que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.

Sonhando com alternativas

Ora, novos sistemas globais de governança, para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas (novos arranjos produtivos e iniciativas de uma nova sócio-economia solidária) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião nacionais, sub-nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.

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Estamos fazendo aqui, evidentemente, um exercício de antevisão daquilo que, na falta de uma palavra melhor, Thompson chamou de “ecumene planetária” como sistema de governança resultante da transformação cultural, que está acontecendo atualmente no mundo, na transição de uma economia globalizada, ainda baseada em Estados-nações industriais, para uma nova ecologia cultural global, caracterizada por uma era pós-industrial, por uma matriz de identidade noética (científica e espiritual pós-religiosa, não mais baseada em língua e religião e em classe e nação), por uma mentalidade dinâmica complexa (pós-galileana) e por uma modalidade de governança participativa (pós-representativa) (4). Exercícios análogos têm sido feitos por vários arautos da sociedade da informação e do conhecimento ou da “nova era”, conquanto tais exercícios, em boa parte, ainda estejam, no primeiro caso, muito presos a visões unilaterais das conseqüências introduzidas pelas transformações econômicas e pelas inovações tecnológicas em curso no mundo hodierno e, no segundo caso, a visões míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas (como se a nova era devesse ser um novo reino de velhos magos) e não consigam, ambas, captar muito bem as mudanças sociais, em sentido amplo, implicadas em tudo isso.

O fato é que o processo de globalização não conduz para nova ordem alguma previsível, conquanto sua ocorrência, desconstituindo a velha ordem, destranca o futuro permitindo que a interação global dos atores sociais construa, de fato, novas alternativas civilizatórias. Ainda que o sentido da “nova ordem” jamais será dado pelo desejo de um ator individual, não é proibido sonhar com tais alternativas (como ensaiei, seguindo Thompson, no exercício acima).

E é melhor assim.

NOTAS E REFERÊNCIAS

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(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000

(3) Mollison e Slay observam que “não deveríamos confundir ordem com arrumação. Arrumação separa... enquanto que a ordem integra.... Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a criatividade imaginativa...” Cf. Mollison, Bill e Slay, Reny Mia. Introdução à Permacultura. Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998.

(4) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

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Globalização insuficiente

“A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização”.

Não é possível (e nem desejável) barrar a globalização “fugindo para trás” ou tentando se refugiar em um mundo de localidades isoladas. No terceiro capítulo deste livro, veremos que, para o processo de democratização, o problema não é o excesso e sim a falta de globalização.

Referindo-se aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Anthony Giddens escreveu que “a saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização. A interdependência global veio para ficar e é mais benéfica para o mundo do que uma retomada da polarização dependência x independência que pretenda atrasar o relógio em várias décadas” (1).

Contra aqueles que, tolamente, culpam a globalização pelo ocorrido, clamando por mais governo, Giddens argumenta: “Precisamos de mais globalização para emergir da fase difícil em que estamos mergulhados. Entre outras coisas, globalização diz respeito a progressos nas leis internacionais... Os movimentos antiglobalização advogam que o hiato entre pobres e ricos está aumentando. Culpam a globalização por isso. Porém, a primeira idéia é questionável e, a segunda, falsa. Não existe uma tendência única para as desigualdades no mundo. Alguns países

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asiáticos, incluindo a China, têm, hoje, um Produto Interno Bruto (PIB) – em comparação com países ocidentais – muito superior ao registrado há 30 anos. O resultado se deve ao fato de que, durante esse período, tais países obtiveram uma média de crescimento consideravelmente alta. Esse sucesso foi atingido por meio de entrosamentos com a economia mundial, não pela rejeição dela. Países que consideraram isolar-se das influências da globalização, como Coréia do Norte, Mianmá ou Irã (e, claro, Afeganistão), estão entre as mais pobres e autoritárias nações do mundo” (2).

A globalização é adversa por estar ainda inconclusa, incompleta, inacabada. O mundo ficou como ficou (injusto socialmente, desigual economicamente, opressivo politicamente e dominado ideologicamente) muito mais em virtude do unilateralismo (estatista) dos impérios do que por todas as (pouquíssimas) tentativas e ensaios de globalização que já ocorreram. E, do ponto de vista da democracia, o mundo está, neste preciso momento, muito mais ameaçado pelo unilateralismo do novo projeto de Império americano do que por todos os efeitos perversos do liberalismo de mercado.

A globalização atual, entretanto, não é uma urdidura dos neoliberais que, por certo, tentam conduzi-la em uma determinada direção. No entanto, não obstante os seus desejos e os seus esforços, nenhum desfecho está assegurado pois a globalização está em disputa.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasília: Correio Braziliense, 04/10/2001.

(2) Idem.

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Globalização em disputa

A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal contradição.

A globalização está em disputa. Várias posições se defrontam ou se confrontam hoje na cena internacional e não apenas as posições favoráveis dos neoliberais e as posições contrárias dos estatistas. Uma tentativa

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razoavelmente consistente e sofisticada de análise e sistematização da configuração das forças que interagem hoje em torno do tema (e do fenômeno) da globalização, foi elaborada no ano passado por David Held e Anthony McGrew (2002), no livro “Globalization/Anti-Globalization”, em especial no Capítulo 8, intitulado “A nova política da globalização: mapeando ideais e teorias”.

Em suma, Held e McGrew, avançando um pouco em relação às suas próprias análises anteriores e também em relação ao que escreveram sobre o assunto Anthony Giddens e outros pesquisadores da London School of Economics, estabelecem um quadro de referência para situar e caracterizar as diversas posições existentes no cenário internacional.

Assim, em relação a cinco características principais (quais são os princípios éticos norteadores; quem deve governar; quais são as reformas essenciais; qual é a forma desejada de globalização; e, qual é a modalidade de transformação política preconizada), Held e McGrew identificam seis posições distintas: os neoliberais, os internacionalistas liberais, os reformadores institucionais, os transformadores globais, os estatistas/protecionistas e os radicais (Cf. Texto 2).

Isso, convenhamos, é muito mais inteligente do que apenas contrapor, de um lado, os neoliberais e, de outro, os que querem evitar o desastre neoliberal, como fizeram, ad nauseam, durante toda a década de 1990, muitos ativistas políticos em debates de salão, seminários acadêmicos, manifestações corporativas, discussões partidárias e campanhas eleitorais, no Brasil e alhures.

Assim, em resumo, a tabela Held-McGrew (2002) – que procura estabelecer a comparação entre os modelos de política – seria a composição das seis tabelas seguintes:

Os neoliberais

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Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Liberdade individual

Quem deve governar? Indivíduos por meio de trocas de mercado e Estados "mínimos"

Reformas essenciais Eliminação de organizações estatais burocráticas e desregulação de mercados

Forma desejada de globalização

Mercados livres globais, princípio geral do direito, com "rede de segurança" para os mais desfavorecidos

Modalidade de transformação política

Liderança política eficaz, minimização da regulação burocrática e criação de uma ordem internacional baseada no livre comércio

A crença dos neoliberais, expressada desde o início dos anos 60 da década passada por Hayek e outros, é a de que a liberdade e a iniciativa dos indivíduos – realizadas pelo livre mercado – devem ter a primazia em relação a vida econômica e política nacionais e, inclusive, sobre a ordem internacional. Ocorre que os neoliberais foram os primeiros a perceber o fenômeno da globalização, o que os levou a cavar um sulco mercadocêntrico de interpretação por onde escorreram as demais interpretações dos que se posicionaram ou a favor ou contra o fenômeno. Muitos teóricos e militantes políticos que ficaram contra a globalização, só o fizeram porque não conseguiram distinguir entre a interpretação (subjetiva) que se consagrou e o fenômeno (objetivo) que permaneceu praticamente desconhecido durante vários anos (1).

Os internacionalistas liberais

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Direitos humanos e responsabilidades compartilhadas

Quem deve governar? As pessoas, por meio de governos, regimes internacionais responsabilizáveis e organizações

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Reformas essenciais Livre comércio internacional e criação de mecanismos transparentes e abertos de governança internacional

Forma desejada de globalização

Interdependência acelerada por meio do livre comércio, inserido em formas cooperativas de intergovernamentalismo

Modalidade de transformação política

Fortalecimento de um regime de direitos humanos, regulação ambiental juntamente com uma reforma da governança global

Os internacionalistas liberais são os defensores dos modelos de governança estruturados em torno da idéia de cooperação internacional e da democratização “realista” das relações entre os Estados-nações. Quase a totalidade dos governos ocidentais e dos governos de repúblicas e governos representativos modernos, são (ou se declaram como, ou adotam posturas políticas que permitiriam seu enquadramento como) internacionalistas liberais. Também participam dessa posição a maioria dos funcionários de organismos internacionais e agências multilaterais (Organizações do Sistema ONU, OMC, BIRD, BID etc.). Evidentemente, os internacionalistas liberais tomam a competição entre os Estados nacionais como um dado da realidade a ser mitigado por formas adequadas de mediação racional (2).

Os reformadores institucionais

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Ethos colaborativo baseado nos princípios da transparência, das consultas e da responsabilização

Quem deve governar? As pessoas, por meio da sociedade civil, Estados eficazes e instituições internacionais

Reformas essenciais Ampliação da participação política, abordagem tripartite para processos decisórios em nível nacional e internacional, provisão segura de bens

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públicos globais

Forma desejada de globalização

Processos globais regulados, juntamente com uma governança global democrática

Modalidade de transformação política

Fortalecimento do papel do Estado e da sociedade civil visando ampliar espaços para ações coletivas e reforma da governança do nível local para o global

Os reformadores institucionais são mais avançados do que os internacionalistas liberais. Propõem uma reforma do sistema de governança internacional ainda estruturado sobre a idéia original da Liga das Nações e das Nações Unidas. Reconhecem as limitações do sistema ONU e admitem a necessidade de participação de outros atores para além dos Estados nacionais. Uma parte dos governos democráticos bem como um contingente crescente de funcionários de instituições de fomento ao desenvolvimento do sistema ONU e de agências de cooperação internacional poderiam ser enquadrados nessa posição (3).

Os transformadores globais

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Igualdade política, liberdade igual, justiça social e responsabilidades compartilhadas

Quem deve governar? As pessoas, por meio de mecanismos de governança em múltiplas camadas, partindo do local para o global

Reformas essenciais Fortalecimento da participação de membros diversificados em comunidades políticas que se sobrepõem, desenvolvimento de foros deliberativos com a participação de todas as partes interessadas do nível local para o global, fortalecimento do papel do direito internacional

Forma desejada de globalização

Sistema de governo de múltiplos níveis, democrático e cosmopolita, regulação de processos globais visando garantir uma

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autonomia igual para todos

Modalidade de transformação política

Reconstrução da governança global por meio da democratização dos Estados, da sociedade civil e das instituições transnacionais

Os transformadores globais pareceriam ser os mesmos reformadores institucionais quando fora dos governos e das instituições internacionais e agências multilaterais sustentadas por governos, se não fosse por duas diferenças muito importantes: eles se posicionam mais contundentemente contra os rumos que vem tomando o processo de globalização e eles não admitem que as formas de governança – subnacionais ou supranacionais – centradas no Estado-nação, sejam as únicas possíveis. Por isso estão engajados frequentemente em campanhas por reformas democratizantes das instituições políticas em todos os âmbitos, inclusive no local e no global. Nesta posição parecem se situar os autores do estudo em tela (4).

Os estatistas/protecionistas

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Interesse nacional, identidade sociocultural compartilhada e ethos político comum

Quem deve governar? Estados, pessoas e mercados nacionais

Reformas essenciais Capacidade estatal de governar fortalecida, cooperação política internacional (onde necessária)

Forma desejada de globalização

Capacidade de Estados nacionais reforçada, geopolítica eficaz

Modalidade de transformação política

Reforma estatal e geopolítica

Sobre esses já tecemos muitos comentários nas seções anteriores. Os estatistas constituem a força mais

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reacionária que ainda remanesce na atualidade. São os únicos que podem ser considerados propriamente contrários à globalização (não apenas às interpretações neoliberais do fenômeno, mas inclusive ao sentido mesmo do fenômeno objetivo). Por isso, não seria muito adequado, ao meu ver, imaginar – como fazem Held e McGrew – que eles possam desejar uma forma qualquer de globalização. Os estatistas são estadocentristas e, não raro, também são estadocultistas. Grande parte das instituições executivas, parlamentares e judiciárias (sobretudo estas últimas) da imensa maioria das nações-Estados no globo estão dominadas pela cultura estatista e estão ocupadas por pessoas impregnadas por tal ideologia. Não há nenhuma alternativa possível – nem mesmo para disputar os rumos do processo de globalização, invertendo radicalmente o seu sentido para torná-lo mais justo e mais includente – que possa se constituir em aliança com os estatistas (5).

Os radicais

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Igualdade, bem comum, harmonia com o meio ambiente natural

Quem deve governar? As pessoas, por meio de comunidades que se autogovernam

Reformas essenciais Empresas, locais de trabalho e comunidades auto-administrados, juntamente com mecanismos democráticos de governança

Forma desejada de globalização

Localização, regionalização subnacional, desglobalização

Modalidade de transformação política

Movimentos sociais, organizações não-governamentais, mudanças sociais "de baixo para cima"

Este é o ponto mais fraco da análise de Held e McGrew. Em primeiro lugar, porque nem todos os radicais são antiglobalização e, em segundo lugar, porque há uma aproximação, não adequadamente identificada e realçada, entre eles (ou parte ponderável deles) e os transformadores

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globais, em uma intensidade às vezes até maior do que entre estes últimos e, por exemplo, os internacionalistas liberais. Em todo caso, colocá-los em globo no limite do espectro (onde deveriam estar, justamente, os estatistas) não parece correto em termos de análise de posições políticas (6).

Mas Held e McGrew quiseram ir além do simples mapeamento das forças. Eles identificaram aspectos em comum nos ideários políticos de algumas posições (a dos internacionalistas liberais, a dos reformadores institucionais e a dos transformadores globais) que conformariam um possível campo de convergência em torno do que chamaram de uma (nova) ‘social democracia cosmopolita’. Desse campo de convergência não participariam – pelo menos não diretamente – os neoliberais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Assim, Held e McGrew elaboraram um esquema das variantes políticas a favor e contra a globalização, tentando evidenciar os padrões de influência e as zonas de pontos em comuns às diversas posições, como podemos ver no Diagrama de Held-McGrew, 2002 (cf. Diagrama 1).

Ao meu ver há aqui, todavia, dois problemas. O primeiro problema diz respeito à classificação dos radicais. Os autores incluem sob tal denominação grande parte dos inovadores, sobretudo os glocalistas (a turma do ‘pensar globalmente e agir localmente’) como se fossem, todos, agentes anti-globalização – o que não é justo. Os que reconhecem o fenômeno da glocalização, no sentido em que venho empregando aqui o termo, não são anti-globalização necessariamente. Essa, aliás, é a grande novidade do fenômeno complexo, ora em curso no mundo, que chamamos em geral de globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou seja, a novidade da mudança social que tem como fulcro a possibilidade inédita da conexão global-local na emergente sociedade-rede.

O segundo problema se refere à tentativa de reeditar a velha e surrada solução social-democrata, agora renovada

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pelo atributo de “cosmopolita”. Tudo bem com o cosmopolita. O problema está no componente social-democrata que é, na verdade, um componente estatal-democrata. Em outras palavras, a social-democracia é um estatismo social-democrata. Como diz Claus Offe, é uma “filosofia pura da ordem social” (7) que confere ao Estado o protagonismo único, exclusivo ou preponderante, excluindo ou subordinando as outras esferas da realidade social: o mercado e a sociedade-civil (ou a comunidade), ao invés de buscar a “mistura cívica correta” desses três grandes tipos de agenciamento.

De qualquer modo, o texto de Held e McGrew é um insumo importante para estimular e informar esse debate. No entanto, seus esquemas deveriam ser corrigidos para evitar alguns problemas, como, por exemplo, a confusão entre os que estão trabalhando na nova perspectiva da localização e que não gostariam de ser arrolados, juntamente com os manifestantes de Seattle, sob o mesmo epíteto de “radicais”.

Em suma, Held e McGrew deixam de considerar uma posição importante no espectro de forças: a posição daqueles que são a favor da globalização, que acham que o que está faltando é mais globalização (e não menos globalização), que compartilham de muitos dos ideais dos que eles chamam de radicais, mas que também não se confundem com os reformadores institucionais e com os transformadores globais. Esses são os que poderiam ser chamados de glocalistas.

Os glocalistas

Para usar as mesmas categorias comparativas da tabela de Held-McGrew, as posições dos glocalistas seriam as seguintes:

Princípio(s) ético(s) norteador(es)

Liberdade como sentido da política (em uma democracia radicalizada ou democratizada), igualdade como

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possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de inserção e participação igualmente valorizada de todos na comunidade política e sustentabilidade. Aposta na capacidade da sociedade humana de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação

Quem deve governar? As pessoas, por meio de comunidades que se autogovernam e por meio de mecanismos de governança em múltiplas camadas articulando o local (em diversos níveis) e o global

Reformas essenciais Reforma do padrão de relação entre Estado e sociedade com o fito de buscar sinergias entre os três principais tipos de agenciamento: o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou a comunidade)

Forma desejada de globalização

Formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede holográfica de miríades de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes.

Modalidade de transformação política

Empoderamento molecular das populações, sociedade-rede, transformação glocalizante da forma atual do Estado-nação (rumo ao Estado-rede), revolução do local como revolução planetária/comunitária em direção à uma “ecumene planetária”.

A presença dessa nova variante altera obviamente o diagrama proposto por Held e McGrew, gerando um novo esquema como podemos ver no ‘Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)’ (ver Diagrama 2). Mas o perfil dos glocalistas, as suas características básicas distintivas e o overlapping na posição política com os reformadores institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, só poderão ser adequadamente compreendidos após a discussão apresentada no presente estudo (8). De qualquer modo, para os que não acreditam que existam um pensamento e uma prática localistas (os

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glocalistas – comunitaristas inovadores – são os novos localistas, mas existem também os velhos localistas, os comunitaristas conservadores – todos mais ou menos enfiados por Held e McGrew na categoria de ‘radicais’) vale a pena dar uma olhada no Texto 11, que resume um ponto de vista (de Michael Shuman) sobre o ideário do localismo na atualidade.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1)-(6) As notas e referências numeradas de (1) a (6) se referem aos itens análogos do Texto 2, que reproduz excertos de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-Globalization. Cambridge: Polity Press, 2002.

(7) Offe, C. (1991) “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(8) Ver Capítulo 3.

Texto 2 | Held & McGrew e as variantes na política da globalização

“Muito ao contrário de provocar a morte da política, como algumas pessoas temem, a "globalização" está re-iluminando o terreno político”.

Estão reproduzidos abaixo excertos do Capítulo 8 – do livro de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-Globalization. Cambridge: Polity Press – intitulado “A nova política da globalização: mapeando ideais e teorias”.

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(1) NEOLIBERAIS

Segundo Held e McGrew (2002), “os defensores do neoliberalismo (ou do neoconservadorismo, como às vezes ele é chamado) têm, de um modo geral, se empenhado em promover a visão de que a vida política, assim como a vida econômica, é (ou deveria ser) uma questão relacionada à liberdade e iniciativa individuais (veja Hayek, 1960, 1976; Nozick, 1974). Por essa razão, seu objetivo fundamental é promover uma sociedade que se norteia pelo princípio da não intervenção ou do livre mercado, bem como um Estado de proporções mínimas. O programa político do neoliberalismo prevê, entre outras coisas, a extensão do mercado para um número crescente de áreas da vida, a criação de um Estado isento do ônus da intervenção "excessiva" na economia e na vida social e a imposição de limites ao poder de alguns grupos (por exemplo, dos sindicatos) de pressionar por seus objetivos e metas. De acordo com essa visão, uma ordem livre é incompatível com a sanção de normas que especificam como as pessoas devem usar os meios à sua disposição (Hayek, 1960: 231-2). Os governos se tornam coercitivos ao interferirem na capacidade das pessoas de determinar seus próprios interesses. Além disso, só existe um mecanismo suficientemente sensível para determinar a opção “coletiva” em bases individuais: o próprio livre mercado. Quando protegido por um Estado constitucional regido pelo princípio geral do direito, nenhum sistema pode oferecer um mecanismo de opção coletiva que seja tão dinâmico, inovador e sensível quanto o livre mercado (veja Held, 1996: capítulo 7).

Para os defensores de uma ordem mundial neoliberal, a globalização define uma nova era na história da humanidade, na qual "Estados-nações tradicionais tornaram-se unidades comerciais não-naturais e até mesmo inviáveis em uma economia globalizada" (Ohmae, 1995: 5). Na visão desses pensadores, estamos testemunhando atualmente o surgimento de um único mercado global baseado no princípio da concorrência global que seria o

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precursor do progresso humano. A globalização econômica está provocando a desnacionalização de economias por meio do estabelecimento de redes transnacionais de produção, comércio e finanças. Nessa economia "sem fronteiras", governos nacionais estão se tornando meras correias de transmissão para forças globais de mercado ou pouco mais do que isso. Strange interpreta essa postura da seguinte maneira: "Onde Estados costumavam ser os senhores dos mercados, agora é o mercado que, em relação a muitas questões cruciais, é o senhor dos governos de Estados… a perda de autoridade dos Estados se reflete na crescente dispersão de autoridade para outras instituições e associações…" (1996: 4).

Para as elites e os "obreiros do conhecimento" dessa nova economia globalizada, a fidelidade tácita à "classe" transnacional vem evoluindo, cimentada na dedicação à ortodoxia econômica neoliberal. Mesmo entre os excluídos e sem posses, a difusão mundial de uma ideologia consumista também impõe um novo senso de identidade que substitui culturas e estilos de vida lentamente. A disseminação global da democracia neoliberal do ocidente reforça ainda mais o senso de uma civilização emergente definida por padrões universais de organização econômica e política. A governança dessa ordem é conduzida principalmente por meio de disciplinas do mercado mundial associadas a formas mínimas de governança internacional concebidas para promover a integração econômica global mediante a eliminação de barreiras ao comércio e aos investimentos. O poder econômico e o poder político estão se desnacionalizando e se tornando difusos de tal maneira que as nações-Estados estão cada vez mais se transformando “em uma modalidade transicional de organização voltada para a gestão de negócios econômicos" (Ohmae, 1995: 149). A globalização representa o potencial de criar uma ordem mundial radicalmente nova que, segundo os neoliberais, estimulará a liberdade humana e a prosperidade sem o ônus das regras da sufocante burocracia pública e do poder político dos Estados. Esse estado de coisas representa nada menos do que uma re-forma(ta)ção fundamental da ordem mundial

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para que ela se enquadre na lógica permanente da liberdade humana”.

(2) INTERNACIONALISTAS LIBERAIS

Para Held e McGrew (2002), “reconhecendo os desafios de uma crescente interconectividade global - em contraste com um mundo moldado cada vez mais harmoniosamente pela concorrência global e por mercados globais -, os internacionalistas liberais acreditam que necessidades políticas exigirão e ajudarão a provocar o surgimento de uma ordem mundial mais cooperativa. Três fatores constituem a base dessa postura: a crescente interdependência, a democracia e as instituições globais. Destacados internacionalistas liberais do século 19 argumentaram que a interdependência econômica gera condições propícias para a cooperação internacional entre governos e pessoas (veja Hinsley, 1986). Uma vez que seus destinos estão vinculados por muitas questões econômicas e políticas sérias, os Estados, como atores racionais, acabam reconhecendo que a cooperação internacional é essencial para a administração de seu destino comum. Em segundo lugar, a disseminação da democracia proporciona uma base para a paz internacional. As democracias são restritas em suas ações pelos princípios da abertura e da prestação de contas perante seus eleitorados. Nessas condições, os governos ficam menos propensos a adotar políticas que não sejam transparentes, de perseguir objetivos geopolíticos que envolvam manipulação e de partir para a guerra (Howard, 1981). Em terceiro lugar, uma maior harmonia pode ser mantida entre Estados pela criação de leis e instituições internacionais concebidas para regular interdependências internacionais. Além disso, em um mundo cada vez mais interdependente, a autoridade política e a jurisdição dessas instituições internacionais têm a tendência natural de se ampliar à medida que o bem-estar e a segurança das sociedades nacionais vão se tornando cada vez mais condicionada ao bem-estar e à segurança da sociedade global.

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No século 20, as visões dos internacionalistas liberais desempenharam um papel importante nos difíceis períodos enfrentados após a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. A criação da Liga das Nações, com a esperança que trouxe de um "mundo seguro para a democracia", estava permeada por essa ideologia, assim como a fundação do sistema das Nações Unidas. No contexto da Nova Ordem Mundial pós-Guerra Fria, as idéias dos internacionalistas liberais foram revitalizadas, embora tenham sido adaptadas no sentido de se enquadrar a novas circunstâncias (Long, 1995). A declaração mais recente e sistemática dessa postura pode ser encontrada no relatório da Comissão para a Governança Global, intitulado Our Global Neighbourhood (1995). O relatório reconhece o profundo impacto político da globalização: "O encurtamento de distâncias, a multiplicação de vínculos, a crescente interdependência: todos esses fatores e sua interação estão transformado o mundo em uma vizinhança (ou uma espécie de bairro)” (pag. 43). Sua principal preocupação é abordar o problema da governança democrática nesse novo "bairro global". Como o relatório afirma, “é extremamente importante que a governança esteja escorada na democracia em todos os níveis e, em última análise, na norma do direito exeqüível… Tanto em nível nacional como na vizinhança global, o princípio da democracia deve prevalecer. A necessidade de uma maior democracia é determinada pelo vínculo entre a legitimidade e a eficácia… à medida que as instituições internacionais passam a desempenhar um papel cada vez mais importante na governança global, cresce também a necessidade de se garantir que elas sejam efetivamente democráticas” (pags. 48, 66).

No entanto, o relatório é enfático ao afirmar que a governança global "não implica um governo mundial ou um federalismo mundial" (pag. 336). Ao contrário, ele vê a governança global como um conjunto de mecanismos pluralistas por meio dos quais Estados, organizações internacionais, regimes internacionais, organizações não-governamentais, movimentos de cidadãos e mercados se associam para regular ou administrar aspectos de questões globais.

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Para termos uma ordem mundial mais segura, justa e democrática, o relatório propõe a adoção de uma estratégia multifacetada de reforma institucional internacional e a promoção de um novo ethos colaborativo "baseado no princípio da consulta, da transparência e da prestação de contas… Essa é a única alternativa para se trabalhar coletivamente e se usar o poder coletivo para se criar um mundo melhor" (Comissão para a Governança Global 1995: 2, 5). Em alguns sentidos essenciais, o atual sistema de governança global não tem como garantir a concretização desse anseio sem uma reforma substancial, uma reforma baseada em uma estratégia política que promova uma transformação institucional em nível internacional e uma nova ética cívica global. Para que isso seja possível, precisamos contar com um sistema das Nações Unidas reformado e apoiado por mecanismos regionais de governança internacional, como a União Européia, devidamente fortalecidos. Mediante o estabelecimento de uma assembléia dos povos e de um Fórum da Sociedade Civil (Global), ambos associados à Assembléia Geral da ONU, os povos do mundo devem estar direta e indiretamente representados nas instituições de governança global. Além disso, a Comissão propõe que indivíduos e grupos tenham um direito de petição junto à ONU por meio de um Conselho de Petições, que recomendará ações ao órgão pertinente. Juntamente com um entrincheiramento mais profundo de um conjunto comum de direitos e responsabilidades globais, o objetivo seria o de fortalecer noções de cidadania global. Propõe-se o estabelecimento de um Conselho de Segurança Econômica para coordenar a governança econômica global, tornando-a mais aberta e sujeita a prestação de contas perante a sociedade. É importante promover e fortalecer formas democráticas de governança dentro dos Estados por meio de mecanismos internacionais de apoio e adaptar os princípios da soberania e da não-intervenção "de maneira que reconheçam a necessidade de se promover um equilíbrio entre os direitos dos Estados e os direitos das pessoas e entre os interesses das nações e os interesses do bairro global" (Comissão para a Governança Global 1995:

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337). Como elemento de ligação entre todas essas reformas, assumiríamos o compromisso de promover uma nova ética cívica global baseada em "valores fundamentais que toda a humanidade possa sustentar: os valores do respeito à vida, da liberdade, da justiça e da igualdade, do respeito mútuo, da afeição e da integridade. O elemento central dessa ética cívica global é o princípio da participação na governança em todos os níveis, do local ao global”.

(3) REFORMADORES INSTITUCIONAIS

Held e McGrew (2002) avaliam que “a gestão das mudanças sociais, econômicas e políticas provocadas pelos processos contemporâneos da globalização é o ponto de partida de uma linha-chave de trabalho focada em uma reforma institucional radical baseada na iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de prover bens públicos globais (veja Kaul, Grunberg e Stern, 1999). Os bens públicos, segundo o programa do PNUD, não podem mais ser equiparados somente aos bens fornecidos pelo Estado. Diferentes atores estatais e não-estatais moldam recursos, contribuem para a sua disponibilização e regem sistemas de vida pública - e eles precisam fazer isso para que os desafios mais profundos da globalização possam ser superados. Além disso, uma vez que esses desafios abrangem o domínio público em todos os países e regiões, somente por meio de um diálogo público ampliado sobre a natureza e o provimento de bens públicos é que uma ordem mundial nova, mais ciente da obrigação de prestar contas perante a sociedade e justa poderá ser construída.

Os defensores dessa visão argumentam que muitas das crises globais no terreno das políticas públicas - envolvendo desde o aquecimento global à disseminação da AIDS - podem ser melhor compreendidas à luz da teoria dos bens públicos e que o interesse comum freqüentemente pode ser melhor protegido pelo provimento desses bens em nível global. No entanto, as atuais instituições de governança

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global não permitem um provimento efetivo de bens públicos globais por estarem enfraquecidas devido a três lacunas cruciais. Em primeiro lugar, observa-se um problema de jurisdição - a discrepância entre um mundo globalizado e unidades formuladoras de políticas nacionais e separadas, dando margem ao problema de quem seria responsável por muitas questões globais prementes, particularmente externalidades. Em segundo lugar, observa-se um sério problema de participação - a incapacidade do atual sistema internacional de ouvir adequadamente o que muitos atores globais importantes, tanto estatais quanto não-estatais, têm a dizer. Atores da sociedade civil são freqüentemente excluídos das estruturas decisórias de importantes Estados e instituições internacionais, que mais se parecem "silos" superlotados do que um sistema transparente, aberto e acessível por todos os lados. Em terceiro lugar, observa-se um problema de incentivo – os desafios gerados pelo fato de que, na ausência de uma entidade supranacional para regular a oferta e o uso de bens públicos globais, muitos Estados tentarão simplesmente "pegar carona" ou não conseguirão identificar soluções coletivas duráveis para problemas transnacionais prementes.

Para superar essas restrições, a teoria da gestão pública global advoga o fortalecimento e a reforma da função dos Estados e das instituições internacionais de promover a oferta de bens públicos globais. Contrariando a visão dos pensadores neoliberais, a premissa seria de que os Estados continuam sendo os principais agentes por meio dos quais decisões públicas são tomadas e implementadas e de que um continuum eficaz deve ser criado entre processos nacionais e internacionais de formulação de políticas (Kaul, Grunberg e Stern, 1999: xix-xxxviii). A eliminação dessas três lacunas constituiria uma agenda para uma maior cooperação multilateral. O problema jurisdicional pode ser atacado ampliando-se a cooperação entre Estados mediante o estabelecimento, por exemplo, de "perfis de externalidades" claros, que poderiam ser usados como uma base para se promover a reciprocidade entre eles e para a internalização de externalidades por parte de todos os

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envolvidos (trazendo de volta para as comunidades nacionais os custos e os benefícios externos de uma política). Se essas iniciativas puderem ser vinculadas ao estabelecimento de mapas bem definidos dos desafios jurisdicionais gerados por problemas públicos transnacionais, poderíamos ter uma base para responsabilizar Estados pelos problemas externos que geram e também para identificar pouco a pouco onde seria necessário desenvolver novas instituições, ou seja, onde o sistema atual dos Estados precisaria ser desenvolvido e suplementado.

O problema da participação pode ser atacado adotando-se uma abordagem tripartite em processos decisórios que permita a governos compartilhar oportunidades de expressar suas opiniões com a sociedade civil e o setor empresarial. "Todos os atores devem ter uma voz, oportunidades adequadas de prestar as contribuições esperadas deles e acesso aos bens resultantes" (Kaul, Grunberg e Stern, 1999: xxix). Agentes políticos, empresariais e da sociedade civil de reconhecida importância devem participar ativamente do estabelecimento de agendas públicas, da formulação de idéias para políticas e de deliberações em torno delas.

Por último, o problema do incentivo pode ser atacado criando-se incentivos e desincentivos explícitos para a superação de fricções no campo da cooperação internacional mediante o fornecimento de todas as informações necessárias para uma cooperação adequada, uma vigilância eficaz para reduzir fraudes e garantir a observância das normas, uma distribuição eqüitativa dos benefícios da colaboração, o fortalecimento do papel de comunidades epistêmicas como provedoras de conhecimentos e informações "objetivas" e o estímulo necessário às atividades de ONGs como mecanismos de responsabilização que expõem políticas fracas ou mal-sucedidas. Não se pode aplicar apenas um pacote de incentivos a todas as áreas, mas sem mecanismos dessa natureza será muito mais difícil resolver problemas relacionados às políticas globais”.

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(4) TRANSFORMADORES GLOBAIS

Segundo Held e McGrew, “há muitas afinidades entre alguns dos princípios e objetivos dos internacionalistas liberais e dos reformadores institucionais e... a postura dos transformadores globais. Essa postura aceita que a globalização, como um conjunto de processos que alteram a organização espacial das relações e transações socioeconômicas, não representa um fenômeno novo ou inerentemente injusto ou antidemocrático (veja Held et al., 1999). O que ela levanta é uma questão relacionada à sua forma desejável e conseqüências distribucionais. O argumento é que não há nada inevitável ou fixo em relação à sua forma atual, caracterizada por enormes assimetrias em termos de poder, oportunidades e chances na vida. A globalização pode ser administrada, regulada e formatada melhor e de uma maneira mais justa. Esse argumento diferencia os transformadores globais dos que argumentam a favor de alternativas à globalização - seja na forma de protecionismo ou de localismo - e dos que simplesmente desejam administrá-la mais eficazmente. Nesse sentido, sua postura não é diretamente contra ou a favor da globalização; o que ela questiona são seus princípios organizacionais básicos e suas instituições.

Os defensores da postura transformacionista afirmam que a globalização deve ser reformulada a partir de um "processo duplo" (veja Held, 1995; Linklater, 1998; Archibugi, Held e Köhler, 1998). O termo processo duplo - ou processo de dupla democratização - não diz respeito apenas ao aprofundamento de reformas políticas e sociais em uma comunidade nacional envolvendo a democratização de Estados e sociedades civis ao longo do tempo, mas também a uma maior transparência, responsabilização e democratização não limitadas por fronteiras territoriais. A democracia do novo milênio deve permitir que cidadãos tenham acesso aos processos sociais, econômicos e políticos que afetam suas fronteiras comunitárias tradicionais e possam exigir que sejam prestadas contas

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por seus efeitos sobre eles. Cada cidadão de um Estado precisará aprender a se tornar um "cidadão cosmopolita" também, ou seja, uma pessoa capaz de atuar como mediador entre tradições nacionais e formas alternativas de vida. Argumenta-se que, em um sistema democrático de governo do futuro, a cidadania tenderá a envolver uma crescente função mediadora: uma função que envolve diálogo com as tradições e discursos de outros no sentido de que os cidadãos possam ampliar os horizontes de sua estrutura de sentido e preconceito e o âmbito de seu entendimento mútuo. Os agentes políticos que conseguirem "raciocinar a partir do ponto de vista de outros" terão mais condições de resolver, em bases justas, as novas e complicadas questões transfronteiriças que criam comunidades com destinos sobrepostos. Os transformadores globais argumentam também que para que muitas formas contemporâneas de poder possam ser responsabilizadas por seus atos e para que muitas das complexas questões que afetam a todos nós - em nível local, nacional, regional e global - possam ser democraticamente reguladas, as pessoas precisarão ter acesso a diferentes comunidades políticas e ser membros delas.

Esse projeto implica, essencialmente, a necessidade de se reformular a atividade política legítima de uma maneira que a emancipe de sua ancoragem tradicional em fronteiras fixas e territórios delimitados, ao invés de articulá-la como um atributo de mecanismos democráticos básicos ou de um direito democrático básico que possa, em princípio, estar solidamente fundamentado em diversas associações auto-reguladoras que dele se aproveitem - de cidades e regiões subnacionais a nações-Estados, regiões supranacionais e redes globais mais amplas. Argumenta-se que esse processo de emancipação já está em andamento, na medida que a autoridade política e formas legítimas de governança se difundem "abaixo", "acima" e "ao longo" da nação-Estado. No entanto, esse projeto político "cosmopolita" só defende uma ampliação radical desse processo se ele ficar circunscrito e delimitado pelo compromisso de garantir todo um conjunto abrangente de

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direitos e deveres democráticos. Ele propõe uma série de medidas de curto e longo prazos na convicção de que, por meio de um processo de mudanças progressivas e incrementais, as forças geopolíticas acabarão sendo socializadas na forma de agências e práticas democráticas (Held, 1995: parte III; 2002).

O que estaria em jogo, em primeiro lugar, seria a reforma do sistema das Nações Unidas. Nesse contexto, essa reforma significaria a reformulação do acordo geopolítico de 1945, que determina a distribuição de poder e autoridade na Organização das Nações Unidas atualmente. A estrutura de veto e votação do Conselho de Segurança deve ser alterada urgentemente para que se possa gerar, aplicar e administrar normas e regulações internacionais em bases imparciais. A criação de uma segunda câmara da ONU ajudaria a promover esse resultado se ela não fosse moldada de acordo com princípios de representação geopolítica, como ocorre na Assembléia Geral da ONU, e seguisse uma linha deliberativa de atuação, com possibilidades iguais de participação de todas as partes interessadas. Uma segunda câmara desse tipo atuaria como um microcosmo da sociedade global e representaria as deliberações de partes importantes. A criação de assembléias públicas eficazes em nível global e regional deve complementar as assembléias locais e nacionais. Além disso, as instituições internacionais precisam se manter abertas ao exame público e ter suas agendas definidas por partes interessadas essenciais. Além de transparentes em suas atividades, exigindo, por exemplo, liberdade internacional no tratamento de informações, esses organismos devem também ser acessíveis e manter-se abertos ao escrutínio público em todos os aspectos de suas atividades. O estabelecimento de novas estruturas de governança global responsáveis por lidar com questões relacionadas à pobreza e ao bem-estar global e com outras questões afins também é vital para contrabalançar o poder e a influência de organismos predominantemente orientados para o mercado, como o FMI e a OMC (mesmo que eles sejam reformados, como precisarão ser em seu devido tempo).

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Juntamente com novas maneiras de se promover a democracia e a justiça social além das fronteiras nacionais, os transformadores globais argumentam que devem ser adotados novos mecanismos para administrar e implementar acordos internacionais e o direito internacional e promover a capacidade de se manter e fazer a paz. O ideal é que essa capacidade seja desenvolvida mediante a criação de uma força militar permanente e independente composta por indivíduos recrutados entre voluntários de todos os países. Por último, nenhum desses mecanismos pode ser eficaz sem novas fontes de recursos para o financiamento dessas atividades e a criação, em princípio, de uma base para uma autoridade política autônoma e imparcial em nível global. Novos fluxos de recursos serão indispensáveis, seja na forma de um imposto nos moldes propostos por James Tobin, de um imposto sobre o uso de recursos ou de mecanismos paralelos. A defesa de novas instituições cosmopolitas se limitaria a uma magnanimidade estéril na ausência de um compromisso de melhorar as desesperadoras condições dos mais pobres mediante o cancelamento da dívida dos países mais pobres, a inversão do fluxo de capitais líquidos do Sul para o Norte e a geração de novos meios para se investir na infra-estrutura da autonomia humana - saúde, educação, previdência social e assim por diante”.

(5) ESTATISTAS/PROTECIONISTAS

Held e McGrew (2002) assinalam que “a postura que chamamos de estatista/protecionista é, obviamente, muito diferente das posturas descritas acima. Além disso, mais do que as outras posturas políticas discutidas até este ponto, ela representa uma ampla gama de pontos de vista, dos quais apenas alguns aspectos se sobrepõem. Em primeiro lugar, muitos argumentos fortes em prol da primazia das comunidades nacionais, nações-Estados e nações organizadas em estados da ordem mundial não são,

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necessariamente, protecionistas no sentido de serem hostis em relação a uma economia mundial aberta e ao livre comércio. Freqüentemente, esses argumentos dizem mais respeito a meios essenciais, ou seja, estruturas estatais fortes, para garantir uma participação bem-sucedida em mercados abertos e mecanismos de boa governança do que ao afastamento ou desvinculação do resto do mundo (Cattaui, 2001). Em segundo lugar, esses argumentos estão freqüentemente associados a um ceticismo acentuado em relação à tese da globalização... Esse ceticismo conclui que o alcance da "globalização" contemporânea está totalmente exagerado (Hirst, 1997; Hirst e Thompson, 1999). Além disso, ele sustenta que a retórica da globalização é altamente equivocada e politicamente ingênua, uma vez que subestima o poder duradouro de governos nacionais de regular a atividade econômica internacional. Em vez de estarem fora de controle, as próprias forças da internacionalização dependem do poder regulador de governos nacionais para garantir a continuidade da liberalização econômica.

Essa visão enfatiza, também, a necessidade de se acentuar ou reforçar a capacidade dos Estados de governar - em outras palavras, sua capacidade de ajudar a organizar a segurança, o bem-estar econômico e os mecanismos previdenciários disponíveis a seus cidadãos. A prioridade seria desenvolver Estados competentes, ou seja, aprofundar essa capacidade onde ela já existe nos países desenvolvidos e promovê-la onde ela for mais urgentemente necessária - nos países mais pobres. Sem um monopólio dos meios da violência, não se pode coibir a desordem e o bem-estar de todos em uma comunidade política estará provavelmente ameaçado. No entanto, mesmo um monopólio da violência não garante, necessariamente, um bom governo: a corrupção precisa ser coibida, habilidades políticas adquiridas, direitos humanos garantidos, a responsabilização assegurada e investimentos na infra-estrutura do desenvolvimento humano - saúde, educação e bem-estar - mantidos. Sem fortes capacidades nacionais de governar, pouca coisa pode ser lograda no longo prazo. Nesse contexto, o sucesso econômico dos

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Estados desenvolvimentistas do Leste Asiático oferece um exemplo importante, uma vez que esse sucesso resultou de medidas inspiradas pelo governo e não do livre mercado (Cattaui, 2001: veja Leftwich, 2000.). A promoção da indústria nacional, a limitação da concorrência estrangeira e a adoção de políticas comerciais agressivas constituem novas formas de estatismo que têm alguns aspectos em comum com o mercantilismo à moda antiga. De Washington a Pequim, o protecionismo, sob o pretexto de interpretações comerciais e geoeconômicas estratégicas da política mundial, teve sua influência renovada nos principais centros do poder global.

Posturas estatistas e protecionistas afinam-se mais estreitamente quando a política de comunidades nacionais é associada a uma atitude hostil em relação a vínculos e instituições globais ou mesmo a uma completa rejeição desses vínculos e instituições, principalmente quando se acredita que eles são motivados por interesses comerciais norte-americanos, ocidentais ou estrangeiros. Freqüentemente, alguns aspectos desses interesses são rejeitados com base na percepção de que representam uma ameaça direta a identidades locais ou nacionais ou a tradições religiosas. O mais importante aqui é a proteção de uma cultura, tradição, língua ou religião distinta que une as pessoas e oferece um ethos comum valorizado e um senso de destino comum. Se esse senso de destino comum for vinculado a uma estrutura política que defende e representa uma comunidade, ele pode, obviamente, ter um enorme significado simbólico e nacional. Isso pode dar margem a um amplo espectro de posturas políticas por parte de grupos nacionalistas seculares (representados por fortes tradições culturais nacionais) e grupos religiosos fundamentalistas (como muçulmanos radicais). É importante enfatizar que esse espectro pode conter uma expressiva diversidade de projetos políticos. Enquanto alguns reforçam a política da primazia do interesse nacional e enfatizam a geopolítica ou a geoeconomia como a luta inevitável de Estados e comunidades antagônicos, outros representam um desafio fundamental para todas as estruturas políticas, sejam elas nacionais ou globais, que

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não se adaptam a uma determinada identidade (Huntington, 1996).

No entanto, mesmo que um choque de culturas ou civilizações não configure uma aversão a forças globais, posturas estatistas/protecionistas podem estar vinculadas a um ceticismo ou a uma aversão profundamente enraizada em relação ao poder e dominância ocidentais. Nesse contexto, o argumento tende a interpretar a governança global e a internacionalização econômica como projetos principalmente ocidentais cujo objetivo principal seria o de garantir a primazia do ocidente nos negócios mundiais. Na interpretação de um observador, "ordem internacional e solidariedade internacional sempre serão slogans dos que se sentem suficientemente fortes para impô-los" (Carr, 1981: 87). Segundo esse ponto de vista, somente um questionamento mais profundo dos interesses geopolíticos e geoeconômicos dominantes poderá gerar uma ordem mundial mais pluralista e legítima, na qual identidades, tradições e visões de mundo particulares podem florescer livres da pressão de forças hegemônicas. Nesse sentido, ele tem muito em comum” com o conjunto de posturas dos radicais.

(6) RADICAIS

Held e McGrew afirmam que “enquanto os defensores do internacionalismo liberal, da reforma institucional e de transformações democráticas globais enfatizam a necessidade de se fortalecer e promover mecanismos de governança global, os proponentes do projeto radical enfatizam a necessidade de se dispor de mecanismos alternativos de governança baseados no estabelecimento de comunidades inclusivas e autogovernadas (Burnheim, 1985; Walker, 1994; Falk, 1995). O projeto radical propõe o estabelecimento de condições que empoderem as pessoas para assumir o controle de suas próprias vidas e criar comunidades baseadas na igualdade, no bem comum e na harmonia com o meio ambiente natural. Para muitos radicais desse tipo, os agentes das mudanças necessárias

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são os movimentos sociais existentes (críticos), como os movimentos ambientais, movimentos de mulheres e movimentos antiglobalização que desafiam a autoridade de Estados e de organismos internacionais e definições ortodoxas do "político". Promovendo uma política de resistência e empoderamento, esses movimentos desempenhariam uma função crucial na criação de uma nova ordem mundial semelhante à função dos (velhos) movimentos sociais, como o dos trabalhadores organizados, na luta pela democracia nacional. Esses novos movimentos sociais atuam no sentido de mobilizar comunidades transnacionais de resistência e solidariedade contra crises ecológicas, econômicas e de segurança em nível global. Esse projeto fundamenta-se nos objetivos da igualdade social e econômica, do estabelecimento das condições necessárias para o autodesenvolvimento e da criação de estruturas políticas autogovernadas. Estimular e desenvolver, nos cidadãos, o senso de pertencer simultaneamente a comunidades (locais e globais) que se sobrepõem constitui um objetivo básico da política dos novos movimentos sociais e um elemento central da busca por novos modelos e formas de organização social, política e econômica sintonizados com o princípio do autogoverno. O modelo radical baseia-se em uma visão "de baixo para cima" de uma ordem mundial civilizadora (Klein, 2000). Ele representa uma teoria normativa de "governança humana" baseada na existência de uma multiplicidade de comunidades e movimentos sociais, em contraste com o individualismo e os apelos por um auto-interesse racional do neoliberalismo e de outros projetos políticos afins.Os que adotam essa postura radical relutam em recomendar projetos constitucionais ou institucionais substantivos para um mundo mais democrático, uma vez que isso representaria a abordagem estatista centralizada, moderna, "de cima para baixo" de vida política que eles rejeitam. Por essa razão, eles enfatizam a identificação de princípios normativos sobre os quais a política possa ser construída independentemente das formas institucionais particulares que ela possa assumir. Por meio de um programa de resistência e da "politização" da vida social, os movimentos sociais estariam definindo uma "nova política

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progressista" que envolve "a exploração de novas formas de ação, novas formas de se saber e estar no mundo e novas formas de se agir coletivamente com base em solidariedades emergentes" (Walker, 1994: 147-8). Como Walker sugere, "uma lição... é a de que as pessoas não são tão impotentes quanto são levadas a crer que são. As imponentes estruturas que parecem tão distantes e impassíveis podem ser claramente identificáveis e resistíveis diariamente. Não agir é agir. Todos podem mudar seus hábitos e expectativas ou se recusar a aceitar que os problemas estejam lá fora e não nos digam respeito" (1994: 159-60). Esse modelo radical de mudança baseia-se em teorias normativas de democracia direta e democracia participativa (Held, 1996).

Ele inclui elementos da visão democrática de Rousseau e dos ideais da Nova Esquerda em relação à política comunitária e à democracia participativa. No entanto, o modelo radical leva em consideração também as críticas marxistas contra a democracia liberal, como se pode observar claramente pela sua linguagem de igualdade, solidariedade, emancipação e transformação de relações de poder existentes. A conquista de uma "democracia efetiva" seria inseparável da conquista da igualdade social e econômica, do estabelecimento das condições necessárias para o autodesenvolvimento e da criação de comunidades políticas fortes (veja Callinicos, 2002). Estimular e desenvolver, nos cidadãos, o senso de pertencer simultaneamente a comunidades de interesses locais e globais constitui também um elemento central da busca por novos modelos e formas de organização social, política e econômica sintonizados com o princípio do autogoverno. No entanto, o modelo reconhece que "atualmente, o autogoverno... exige uma política que possa ser plenamente aplicada em uma multiplicidade de cenários, de bairros a nações e ao mundo como um todo. Essa política exige cidadãos capazes de pensar e agir como eus multiplamente situados" (Sandel, 1996: 351).

Embora a política do radicalismo esteja firmemente enraizada na preocupação de protestar e, freqüentemente,

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em campanhas que envolvem temas individuais, há sinais de que alguns elementos de movimentos contemporâneos de protesto estão indo além dessa agenda e desenvolvendo programas de reforma institucional não diferentes dos propostos por reformadores institucionais e transformadores globais. Na reunião do Fórum Social Mundial, realizada em Porto Alegre no início de 2002, por exemplo, diversas recomendações para a reestruturação de determinados aspectos da globalização foram incluídas na agenda, entre as quais a de se melhorar a governança corporativa, de se impor limites à liberdade dos fluxos de capital e de se adotar medidas para proteger normas trabalhistas básicas e o meio ambiente. O alvo do ataque dessas propostas seria a "globalização sem limites" e "o poder irrestrito das empresas" e não a globalização per se. Uma nova ênfase na necessidade de se trabalhar com o sistema das Nações Unidas e de reformá-lo cria possibilidades positivas de compatibilidade com algumas das outras posturas definidas acima. No entanto, essa compatibilidade nunca será completa, uma vez que alguns grupos radicais - por exemplo, diversos grupos anarquistas, como os que atacaram a Starbucks na reunião da OMC de 1999 em Seattle - não desejam promover essa convergência ou uma nova harmonização de pontos de vista. Nesse sentido, as posturas desses grupos não são diferentes das adotadas por neoliberais mais extremados, que depositam a sua fé, em primeiro lugar e acima de tudo, em mercados desregulados”.

NOTAS E REFERÊNCIAS DE HELD-McGREW

Archibugi, D., Held, D. and Köhler, M (eds) (1998) Re-imagining Political Community: Studies in Cosmopolitan Democracy. Cambridge: Polity.

Burnheim, J. (1985) Is Democracy Possible? Cambridge: Polity.

Callinicos, A. (2002) “Marxism and global governance” in Held and McGrew 2002.

Carr, E. H. (1981) The Twenty Years’ Crisis 1919-1939. London: Papermac.

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Cattaui, M. L. (2001) Making, and respecting, the rules. 25 Oct. At www.openDemocracy.net

Commission on Global Governance (1995) Our Global Neighbourhood. Oxford: Oxford University Press.

Falk, R. (1995) On Humane Governance: Toward a New Global Politics. Cambridge: Polity.

Hayek, F. (1960) The Constitution of Liberty. London: Routledge and Kegan Paul.

Hayek, F. (1976) The Road to Selfdom. London: Routledge and Kegan Paul.

Held, D. (1995) Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance. Cambridge: Polity.

Held, D. (1996) Models of Democracy, 2nd edn. Cambridge: Polity.

Held, D., McGrew, A.G., Goldblatt, D. and Perraton, J. (1999) Global Transformations: Politics, Economics and Culture. Cambridge: Polity.

Held, D., McGrew, A.G. (2002) Globalization/Anti-globalization. Cambrigde: Polity.

Hinsley, F. H. (1986) Sovereignty, 2nd edn. Cambridge: Cambridge University Press.

Hirst, P. (1997) The global economy: myths and realities. International Affairs 73(3) July.

Hirst, P. and Thompson, G. (1999) Globalization in Question, 2nd edn. Cambridge: Polity.

Howard, M. (1981) War and the Liberal Conscience. Oxford: Oxford University Press.

Huntington, S. P. (1996) The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Simon and Schuster.

Kaul, I., Grunberg, I. and Stern, M. (eds) (1999) Global Public Goods: International Cooperation in the Twenty-First Century. Oxford: Oxford University Press.

Klein, N. (2000) No logo. London: Flamingo.

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Leftwich, A. (2000) States of Development. Cambridge: Polity.

Linklater, A. (1998) The Transformation of Political Community. Cambridge Polity.

Long, P. (1995) “The Harvard School of Liberal International Theory: the case for closure”. Millennium 24 (3).

Nozick, R. (1974) Anarchy, State and Utopia. Oxford: Blackwell.

Ohmae, K. (1995) The End of the Nation State. New York: Free Press.

Sandel, M. (1996) Democracy’s Discontent. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

Strange, S. (1996) The Retreat of the State. Cambridge: Cambridge University Press.

Walker, R. B. J. (1994) Inside/Outside. Cambridge: Cambridge University Press.

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A favor da Globalização

Antiglobalização

Neoliberais

Internacionalistas liberais

Reformadores

Institucionais

Transformadores globais

Estatistas / Protecionist

asRadicais

Social-democratas cosmopolitasAspectos comuns (overlapping) na posição política

Marxistas

Variantes políticas

Padrões de influênciaZona de pontos comuns

Diagrama 1 | Variantes na política da globalização – Diagrama de Held-McGrew (2002)

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A favor da Globalização

Antiglobalização

Neoliberais

Internacionalistas liberais

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Social-democratas cosmopolitas

Marxistas

Variantes políticas

Padrões de influênciaZona de pontos comuns

Diagrama 2 | Variantes na política da globalização - Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)

Glocalistas

Democratas radicais (pós-liberais e pós-

Globalização e glocalização

Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).

Como dissemos na introdução, a mudança social em curso, que está na base do processo de globalização atual, tem um duplo sentido. O significativo não é a expansão dos fenômenos para uma escala global em si, mas a simultaneidade entre global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-local. De sorte que não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’.

Quase dez anos atrás, já havia escrito (em “Ação Local: a nova política da contemporaneidade”) que “a ‘volta ao local’ é um fenômeno acompanhante do processo de globalização atualmente em curso. Global e Local não constituem polos de uma contradição irreconciliável, mas partes complementares de uma mesma tendência que brota da crise do padrão civilizatório atual...” (1). Sem o saber, estava falando de glocalização. Naquela época o termo ‘glocalização’ ainda não era conhecido, muito embora já tivesse aparecido na Harvard Business Review no final dos anos 80.

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Ao que sabe foram economistas japoneses que introduziram, o termo ‘glocalização’ (na mesma revista onde Levitt – como vimos anteriormente – já havia introduzido o termo ‘globalização’ em 1983). Tal como o anterior (‘globalização’), esse novo termo (‘glocalização’) foi cunhado com um sentido predominantemente mercadocêntrico. A preocupação principal dos japoneses era o marketing.

Com efeito, comumente o termo (‘glocalização’) tem sido usado pelo marketing para designar a criação de produtos ou serviços para o mercado mundial, mas adaptados à cultura local. Na sua intervenção intitulada “Comments on the ‘Global Triad’ and ‘Glocalization’”, Roland Robertson (1997) afirmou que “como usado na prática comercial japonesa, o termo se refere à venda ou fabricação de produtos para mercados específicos. E como acredito que a maioria de nós sabe, os empresários japoneses têm sido particularmente bem-sucedidos na venda de seus produtos em diferentes mercados, em contraste com as estratégias desastradas dos americanos…” (2).

Do ponto de vista do marketing (como assinala o site SearchCIO.com), “a crescente presença de McDonalds em todo o mundo é um exemplo de globalização e as mudanças em seu menu para agradar gostos locais são um exemplo de glocalização. Um exemplo que talvez seja ainda mais ilustrativo da glocalização é o seguinte: em suas promoções na França, a rede resolveu recentemente substituir o seu mascote tradicional, o Ronald McDonald, por Asterix o gaulês, personagem popular de histórias em quadrinhos e desenhos animados franceses” (3).

Embora o termo ‘glocalização’ tivesse sido introduzido pelos japoneses, o seu principal divulgador ou popularizador foi o sociólogo Roland Robertson. Para Robertson a palavra glocalização descreve os efeitos moderadores de condições locais sobre pressões globais. Na conferência sobre "Globalização e Cultura Indígena", citada acima, Robertson disse que glocalização "significa a simultaneidade – a co-

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presença – de tendências universalizantes e particularizantes" (4).

Dois anos antes, porém, no texto “Globalization”, Robertson (1995) já havia afirmado que “o local e o global não se excluem. Pelo contrário: o local deve ser compreendido como um aspecto do global. Globalização quer também dizer: a conjunção e o encontro de culturas locais que deverão ainda ser conceitualmente definidas em meio a este “choque de localidades” (5). Robertson propôs então a substituição do conceito base de globalização cultural por glocalização – o cruzamento das palavras globalização e localização.

Ao redefinir o termo ‘glocalização’ no contexto da globalização cultural, Robertson transbordou o escopo mercadocêntrico onde foi introduzido inicialmente, mostrando que ele se refere a um fenômeno mais amplo do que a glocalização dos mercados (6).

Conquanto o enfoque de Robertson inverta o sentido, inserido pelo globalismo econômico, de uma adaptação aos mercados locais feita a partir da dimensão global (do global para o local), contrapondo a idéia de que o contexto local altera a oferta global (do local para o global), sua visão ainda parte do mercado, embora ultrapasse esse aspecto. Como assinalam Cohen e Kennedy, Robertson tentou “descrever como pressões e demandas globais são ajustadas a condições locais. Embora empresas poderosas possam adaptar seus produtos a mercados locais, a glocalização opera na direção oposta. Atores locais selecionam e modificam elementos de uma série de possibilidades globais, dando início a um envolvimento democrático e criativo entre o local e o global” (7).

Todavia, o conceito ainda pode ser mais ampliado para dar conta de captar, inclusive, aquilo que interpretamos como globalização como um caso particular do fenômeno objetivo da mudança social que está ocorrendo na atualidade. Nesse sentido, não se pode captar plenamente o sentido do

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processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’. É o que veremos no próximo capítulo, sobre a glocalização.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Franco, Augusto (1995). Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília - Rio de Janeiro: Agora | Instituto de Política | Fase, 1995.

(2) Robertson, Roland (1997). “Comments on the ‘Global Triad’ and ‘Glocalization’”. (intervenção proferida na conferência “Globalização e Cultura Indígena”, promovida em 1997 pelo Institute for Japanese Cultures and Classics da Kokugakuin University): http://www.kokugakuin.ac.jp/ijcc/wp/global/15robertson.html.

(3) Cf. http://searchcio.techtarget.com/sDefinition/0,,sid19_gci826478,00.html

(4) Op. cit.

(5) Cf. Robertson, Roland (1995). “Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity” in Featherstone, Mike, Robertson, Roland & Lash, Scott. Global Modernities. London: Sage Publications, 1995.

(6) Craig Stroupe, da Universidade de Minnesota Duluth, assinala, com razão, (em seu site http://www.d.umn.edu/~cstroupe), que “o termo ‘glocalização’ denota novos tipos de relações entre domínios locais e globais que são possibilitados por tecnologias da informação. Essas relações emergentes subvertem estruturas de poder tradicionais e mediadoras como a economia, o Estado-nação e as disciplinas que compõem as profissões e a "indústria do conhecimento". O conceito de glocalização é altamente contraditório e contestado, pois é usado tanto em teorias de marketing corporativo para descrever o processo de se modificar produtos para públicos locais (essencialmente, tornar o global atraente para o local) como na teoria pós-moderna crítica para descrever as representações globais do local (tornar o local atraente para o global). Em contraste com a “glocalização” – afirma Stroupe –, o termo mais comum “globalização” sugere uma dissociação radical entre o “global” (as multinacionais, o terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, a CNN, a Internet) e o “local” (o senso de lugar, de bairro, de cidade, de localidade, de etnicidade e de outras fontes tradicionais de identidade). O termo “glocalização”, por outro lado,

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denota uma relação mais dinâmica e de duas vias entre esses dois domínios, principalmente à medida que eles estabelecem contato na Internet e em outros meios de comunicação. Wayne Gabardi (em “Negotiating Postmodernism”. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000) escreve que a glocalização caracteriza-se pelo “desenvolvimento de campos diversificados e sobrepostos de vinculações globais-locais... [criando] uma condição de panlocalidade globalizada... que o antropólogo Arjun Appadurai chama de “escapes” espaciais globais desterritorializados (escapes étnicos, escapes tecnológicos, escapes financeiros, escapes da mídia e escapes ideológicos)... Essa condição de glocalização… representa uma mudança de um processo de aprendizagem mais territorializado e vinculado à sociedade do Estado-nação para um processo mais fluido e translocal. A cultura se tornou um software muito mais móvel e humano empregado para se misturar elementos de contextos diferenciados. Com formas e práticas culturais mais separadas de enclausuramentos geográficos, institucionais e atributivos, estamos testemunhando o que Jan Nederveen Pieterse chama de "hibridização" pós-moderna”.

(7) Cohen, Robin & Kennedy, Paul (2000). Global Sociology. London: MacMillan, 2000.

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Capítulo Dois | Glocalização

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Entendendo a glocalização

Para começar, examinemos um (aparente) paradoxo: por quê se observam como simultâneos dois movimentos, aparentemente contraditórios: a) um de amplificação e, de certo modo, de desterritorialização, em escala global (supra-nacional) de importantes fatores que condicionam a vida das sociedades nacionais; e b) outro, de reflorescimento da perspectiva comunitária que reforça as identidades sócio-territoriais em escala local (infra-nacional) possibilitando, inclusive, que elas se projetem em escala global sobrepassando mediações nacionais?

Neste capítulo vou sustentar uma resposta para a pergunta acima. Tudo isso ocorre simultaneamente porque estamos vivendo, a partir dos anos 80 e 90, um processo de glocalização. A revolução do local, de um certo ponto de vista, nada mais é do que a globalização do local ou do que o resultado do que vamos chamar de processo simultâneo de ‘globalização-e-localização’.

É preciso dizer agora o que estamos entendendo por ‘glocalização’. Já vimos no final do capítulo anterior, que o que foi chamado de globalização é separável da visão mercadocêntrica que acompanhou a cunhagem desse novo termo.

Vamos ver ainda que a glocalização é uma planetarização e uma comunitarização. E que o sentido do processo de glocalização, entendido nesses termos, é o da formação de

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uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes. E, finalmente, que esse sentido pode jamais vir a se materializar uma vez que a glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado e ‘interdependência’, por outro.

Em seguida, vamos ver que o processo de glocalização impõe uma transformação do velho Estado-nação, ainda que não seja certo se tal transformação será necessariamente glocalizante, pois embora o Estado, ao que tudo indica, não tenda a desaparecer na atual transição histórica, o destino da sua forma atual está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

Por último, vamos ver que assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido forte) da ‘localização’.

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Glocalização e nova realidade glocal: ‘planeta-e-comunidade’

A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

A idéia de glocalização, no sentido em que estamos empregando aqui o conceito, é anterior ao termo ‘glocalização’. Essa idéia-matriz começou a se formar muito antes da recente percepção da constelação de fatores que possibilitou a eclosão do fenômeno que interpretamos, quase sempre unilateralmente, como globalização.

A consciência da glocalização começa quando se pode ver o planeta como um lugar mas só se afirma plenamente quando

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se pode ver um lugar como um holograma do planeta inteiro. Há, todavia, uma imagem antes da idéia.

A imagem antes da idéia

Talvez por isso a glocalização tenha começado a ser percebida e a fazer sentido para as pessoas, quando se pôde, pela primeira vez, olhar a Terra do espaço, percebê-la como um corpo único. Aquela imagem (e isso já foi observado por várias pessoas) altera completamente o nosso imaginário... Como escreveu o astrônomo Fred Hoyle em 1948, “quando tivermos uma fotografia da Terra, tirada de fora da Terra... uma nova idéia mais poderosa que qualquer outra na história será desencadeada” (1).

Além da citação acima, não sei o que mais disse sobre isso Fred Hoyle. No entanto, mesmo sem conhecer o contexto da citação ou outros possíveis escritos de Hoyle sobre o tema, podemos adivinhar que idéia é essa. É a idéia da planetização, ou seja, da “Espaçonave Terra” (introduzida por Richard Buckminster Fuller em 1969) – uma espaçonave na qual somos todos tripulantes – e, também, da ecumene planetária, quer dizer, da casa da humanidade (um mesmo lugar de todos e para todos) e, ainda, para além da casa dos seres humanos, a casa de todos os seres aqui existentes em uma mesma totalidade viva – ou seja, a idéia, bem mais abrangente, de Gaia.

A hipótese Gaia

O formulador da hipótese Gaia, no início dos anos 70, foi o cientista independente inglês James Lovelock. Segundo ele a idéia foi exposta pela primeira vez “em 1972, na forma de uma nota com o título de “Gaia vista através da atmosfera”... Depois de discussões muito demoradas e intensas, Lynn Margulis e eu fornecemos declarações mais detalhadas, embora concisas, nas revistas Tellus e Icarus. Em 1979, a

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Oxford University Press publicou o meu livro “Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra”, que reunia todas as nossas idéias até aquele momento. Comecei a escrever aquele livro em 1976, quando o módulo espacial Viking da NASA estava para pousar em Marte. Utilizei a presença dele ali como um explorador planetário a fim de estabelecer o cenário para a descoberta de Gaia, o maior organismo vivo do sistema solar” (2).

Em “O Planeta Simbiótico” (1998), Lynn Margulis – que deve ser considerada co-autora da hipótese Gaia – conta que “o termo Gaia foi sugerido a Lovelock pelo romancista William Golding, autor de “O senhor das moscas”. No início da década de 1970, os dois moravam em Bowerchalke, Wiltshire, na Inglaterra. Lovelock perguntou ao vizinho se seria possível substituir a longa e pesada expressão “sistema cibernético de tendência homeostática conforme detectado por anomalias químicas na atmosfera da Terra” por um termo que significasse “Terra”. “Preciso de uma boa palavra curta”, disse. Em caminhadas pelo campo na magnífica região das chapadas calcárias, no sul da Inglaterra, Golding sugeriu Gaia. Antiga palavra em grego para “Mãe Terra”... [Mas] Gaia não é um organismo... é o resultado da interligação dos 10 milhões ou mais de espécies vivas que compõem seu corpo sempre ativo... É uma propriedade emergente da interação de organismos...” (3).

A introdução do conceito (e do termo) ‘Gaia’, no âmbito da ciência, trouxe duas conseqüências complicadas. Por um lado, municiou o nascente movimento ecológico mundial com o argumento de que, degradando o meio ambiente natural, estávamos destruindo o planeta inteiro, ato que seria equivalente, do ponto de vista ético, ao assassinato de um super ser vivo e deveria, portanto, ser considerado como um super-crime. Por outro lado, mexeu profundamente com um imaginário mítico, fazendo renascer esperanças de uma volta à tradicionalidade de uma hipotética era primordial, com a conciliação final entre o ser humano e a grande deusa mãe-terra. A complicação, aqui, se refere ao fato de que ambas as

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interpretações são antropocêntricas; tentam humanizar a natureza e o cosmos ao invés de tentar humanizar a humanidade.

Contra as simplificações do conceito introduzidas por ambientalistas e espiritualistas, Margulis invectiva que “Gaia não significa apenas conservação da natureza ou um retorno à deusa. Gaia é a superfície regulada do planeta que está incessantemente criando novos ambientes e organismos. Mas o planeta não é humano, tampouco pertence aos seres humanos. Nenhuma cultura humana, a despeito de sua inventividade, pode acabar com a vida neste planeta, mesmo que tentasse. A Terra é mais um gigantesco conjunto de ecossistemas em interação do que um único ser vivo, e como fisiologia reguladora de Gaia ela transcende todos os organismos individuais. Os seres humanos não são o centro da vida, e nenhuma outra espécie o é. Os seres humanos não são sequer fundamentais à vida. Somos uma parte recente e em rápido desenvolvimento de uma gigantesca e antiga totalidade... Gaia é a série de ecossistemas em interação que compõem um simples e enorme ecossistema na superfície da Terra. Ponto final” (4).

Por outro lado a hipótese de Gaia não foi bem captada pelas correntes espiritualistas, cujas visões de futuro como repetição de passado ainda estão aprisionadas em um paradigma de tradicionalidade, correntes que carregam o peso de uma tradição mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática e que imaginam que nada está acontecendo além do retorno à unidade primordial e que tudo isso já estava escrito ou já tinha sido previsto. Para essas correntes tudo está seguindo um plano, o futuro já está contido no divino software implantado na Criação (ou coisa que o valha) em todos os seres (daí porque todos os seres são, de certo modo, vivos – o que fez a hipótese Gaia cair como uma luva), a evolução não passa de um desdobramento da “centelha” inicial (é o software “rodando”), e todos os componentes do sistema estão dispostos por graus evolutivos em uma ordem sagrada (hierarquia), ou seja, estão hierarquicamente

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distribuídos em uma cadeia vertical que vai da pedra ao deus, passando por diversos “reinos” (e mesmo esta denominação talvez não seja por acaso): mineral, vegetal, animal, humano, angélico e divino. Ora, o modelo de Gaia como uma rede de 10 milhões de tipos diferentes de nodos, um sistema auto-organizador, que produz ordem a partir das múltiplas e imprevisíveis interações entre os seus componentes, não poderia mesmo ser bem compreendido pela mente determinista tradicional.

Não faria sentido dar seguimento a tal polêmica em um livro como este. Para os propósitos da presente investigação o importante a considerar é que – como assinalou Lovelock – “a teoria de Gaia obriga a que se tenha uma visão planetária” (5). Neste sentido, a elaboração da hipótese de Gaia faz parte desse movimento cultural emergente de planetização.

Do ponto de vista científico (ou melhor, da filosofia da ciência), podemos reprobar, como fez Margulis em relação à hipótese de Gaia, os espiritualistas e os arautos da nova era, sobretudo pelas simplificações e pelas imprecisões que introduzem quando pulam de um campo do conhecimento para outro sem fazer as necessárias transposições hermenêuticas, esquecendo-se de levar em conta as diferenças de status epistemológico dos conceitos que manejam sem muito rigor metodológico e sem muita cerimônia semântica. Por certo, eles não fazem ciência. Isso não é motivo, porém, para, simplesmente, desconhecer ou desprezar, do ponto de vista cultural, a influência de suas idéias.

Idéias não-científicas seminais

Assim, por exemplo, ainda na década de 1960, Dane Rudhyar escreveu um curioso livro chamado “A Planetarização da Consciência” no qual antecipava o advento de uma “sociedade plenária”, um novo tipo de organização social vislumbrado por meio de um enfoque holárquico, para além

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do enfoque (teoricamente) democrático. Rudhyar já fazia, àquela época, uma crítica radical das democracias realmente existentes, do igualitarismo e do que ele chamou de “democracia de mercado” que “vê o indivíduo livre como uma entidade competitiva, em verdade como um ego agressivo cujo propósito ao viver é dominar os outros (e, a miúdo, enganá-los), a fim de acumular riqueza, poder, posses” (6).

Visionário, Rudhyar assinalou que o quadro social atual “deverá parecer cruel e tragicamente nocivo ao homem do futuro, vivendo em uma sociedade plenária composta por uma imensa rede de comunas regionais, cada uma com um forte grau de independência, porém todas integradas em uma espécie de condição organísmica de totalidade operativa dentro da totalidade global da humanidade. Em certo sentido, este tipo de organização retem algumas das características da nação americana primitiva, quando era uma federação de pequenos estados” (7). Rudhiar retoma, a esse respeito, o velho sonho de Thomas Paine, de inaugurar, “um novo ponto de partida para os assuntos humanos”. Mas, diferentemente de muitas correntes de pensamento sectárias e ortodoxas, ele deixa claro que “não existe uma só verdade, um só caminho para a realização de uma sociedade plenária que abarque todos os homens, todas as culturas regionais e todas as comunidades em sua diversidade de enfoques e respostas ante ao novo passo evolutivo com o qual a humanidade se defronta” (8).

O mais significativo, porém, é que ele percebeu o movimento cultural em direção à planetização quando disse que “uma sociedade ou uma cultura consideradas como um campo organizado de atividade humana se acham sempre dominadas por algum símbolo especialmente poderoso e por algum ato heróico arquetípico que inspira as multidões. Hoje em dia, o símbolo do Globo está emergindo como fator dominante da civilização que se forma lentamente a partir de nossa confusa e trágica sociedade ocidental que logrou expandir-se pela superfície da terra de modo implacável e cego; e seu símbolo gêmeo é o da geração de um fantástico calor através de um

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esforço organizado, no qual colaboram cientistas de todas as nações; calor que destrói, mas também calor que nos dá a possibilidade de nos aventurarmos para além da gravitação terrestre, chegando à Lua e, finalmente, também a outros planetas. Nesta aventura, que agora está fascinando a imaginação dos homens, da mesma forma que as cruzadas e as grandes viagens do início do Renascimento fascinaram a imaginação dos homens há cinco séculos, o homem se encontrará alcançando a meta paradoxal de descobrir-se como cidadão da Terra, justamente porque é capaz, agora, de libertar-se de sua atração gravitacional” (9). É bom lembrar que Rudhyar escrevia essas coisas às vésperas de o ser humano chegar à Lua e mais de dez anos antes da primeira sonda terrestre pousar em Marte.

Seria necessário fazer um inventário cronológico do surgimento de idéias como essas para perceber como foi emergindo no mundo uma visão de futuro baseada, simultaneamente, na planetarização e na comunitarização – nas correntes espiritualistas, na literatura de ficção e, inclusive, em diversas disciplinas científicas –; para perceber a dimensão e o sentido desse movimento cultural. Não importa aqui se se trata ou não de um conceito científico. O futuro não é científico. E as nossas opções políticas, que o constroem, felizmente, também não o são.

Vamos ver um outro exemplo. O polêmico e controvertido Bhagwan Shree Rajneesh, que ficou mais conhecido como Osho, centrou boa parte dos seus ensinamentos na visão de uma nova humanidade como uma república de comunas. Em um discurso proferido em 1987 ele disse: “Minha visão de um novo mundo, o mundo das comunas, significa ausência de nações, ausência de grandes cidades, ausência de famílias – mas milhões de pequenas comunidades espalhadas por toda a terra, em espessas florestas, verdes e luxuriantes florestas, em montanhas, em ilhas. A menor comuna viável, a qual nós já experimentamos, pode ser de cinco mil pessoas; e a maior pode ser de cinqüenta mil – de cinco mil a cinqüenta mil. Mais do que isso se tornará inviável, e então volta a surgir a

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questão da lei e da ordem, da polícia e dos tribunais, e todos os velhos criminosos têm que ser trazidos de volta... Pequenas comunas – cinco mil parece ser um número perfeito... Todo mundo conhece a todo mundo... Não existe casamento, as crianças pertencem à comuna; a comuna tem hospitais, escolas, colégios – a comuna toma conta das crianças... Todas as comunas deveriam ser interdependentes... O mundo inteiro deveria ser uma só humanidade, somente dividida em pequenas comunas, em bases práticas – nenhum fanatismo, nenhum racismo, nenhum nacionalismo. Então, pela primeira vez, nós poderemos abandonar a idéia de guerras” (10).

Se formos dividir a população mundial atual nas comunas sonhadas por Osho, teríamos 1 milhão e 200 mil comunidades de 5 mil pessoas; ou, se tomarmos uma população média de 20 mil pessoas por comuna, teríamos 300 mil comunidades. Tal exercício numérico tem apenas o objetivo de mostrar que centenas de milhares de unidades sócio-territorias, ao invés das menos de poucas centenas de nações atuais, introduz uma mudança de qualidade no sistema. É um exercício sobre a “força da dispersão”, sobre a pulverização, sobre a grande variedade e, portanto, sobre a complexidade. Uma rede de um milhão de comunidades, de um milhão de tipos de elos diferentes e interdependentes, não poderia ser regulada por um padrão de ordem preexistente. Seria um sistema complexo cuja regulação se aproximaria necessariamente dos mecanismos regulatórios de Gaia.

Da Terra-Pátria à Terra-Frátria

Edgar Morin, em “Terra-Pátria”, um livro de 1993 (escrito com Anne Brigitte Kern), dedica um capítulo inteiro à emergência de uma era planetária. Para ele, “a era planetária começa com a descoberta de que a Terra não é senão um planeta e com a entrada em comunicação das diversas partes do planeta. Da conquista das Américas à revolução copernicana, um planeta surgiu e um cosmos se desfez” (11).

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A globalização ocorrida na passagem do século 15 para o século 16, juntamente com as mudanças no modo-de-ver o mundo introduzidas pela nascente ciência moderna, criaram as condições para o surgimento de uma nova era, que “começa pelas primeiras interações microbianas e humanas, depois pelas trocas vegetais e animais entre Velho e Novo Mundo” (12). Na seqüência, há uma ocidentalização do mundo que “começa tanto pela imigração de europeus nas Américas e na Austrália quanto pela implantação da civilização européia, de suas armas, de suas técnicas, de suas concepções, em todos os seus escritórios, postos avançados, zonas de penetração” (13).

No século 19, a ocidentalização do mundo já é, simultaneamente, uma globalização econômica e uma globalização das idéias. “O surto econômico, o desenvolvimento das comunicações, a inclusão dos continentes subjugados no mercado mundial determinam formidáveis movimentos de populações, que vão amplificar o crescimento demográfico generalizado (em um século, a Europa passou de 190 para 423 milhões de habitantes e o mundo de 900 milhões para 1,6 bilhão)... Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é Londres, torna-se um sistema unificado após a adoção do padrão-ouro para as moedas dos principais Estados europeus” (14).

Se recuarmos um pouco vamos ver que, já no século 18, “o humanismo das Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto à razão e lhe confere uma igualdade de direitos. As idéias da Revolução Francesa, ao se generalizarem, internacionalizam os princípios dos direitos do homem e do direito dos povos”. Surge então no século 19 as teorias evolucionistas e a biologia que, de algum modo, “vão reconhecer a unidade da espécie humana” (15).

Mas é somente em meados do século 19 que surge “plenamente a idéia de humanidade, como uma espécie de ser coletivo que aspira a se realizar reunindo seus fragmentos separados” (16). Sob o influxo de tal idéia, “a era planetária é

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também a aspiração, no início do século 20, à unidade pacífica e fraterna da humanidade” (17).

No século 20, há a globalização pela guerra. “A guerra tornou-se total, mobilizando militarmente, economicamente e psicologicamente as populações, devastando os campos, destruindo as cidades, bombardeando as populações civis” (18). A bomba em Hiroshima, em agosto de 1945, sinaliza a passagem para uma nova etapa na consciência planetária. Os seres humanos tomam consciência de que a humanidade pode ser destruída. A constituição da ONU, com todas as suas deficiências e insuficiências, marca o início do processo de tomada de consciência da planetarização (ou de planetarização da consciência).

Com efeito, Morin assinala que “a despeito de todas as regressões e inconsciências, há um esboço de consciência planetária, na segunda metade do século 20” (19). Ele aponta oito fatores como componentes desse fenômeno de formação de uma consciência planetária: a) a persistência de uma ameaça nuclear global; b) a formação de uma consciência ecológica planetária; c) a entrada, no mundo, do terceiro mundo; d) o desenvolvimento da globalização civilizacional; e) o desenvolvimento de uma globalização cultural; f) a formação de um folclore planetário; g) a teleparticipação planetária; e h) a Terra vista da Terra.

Morin conclui seu diagnóstico afirmando que, em virtude da interação desses fatores, “concretiza-se o sentimento de que há uma entidade planetária à qual pertencemos, de que há problemas propriamente mundiais, trazendo nele [nesse sentimento] uma evolução para a consciência planetária. Assim, de forma ainda intermitente mas múltipla, a “global mind” se desenvolve” (20).

Embora o livro de Morin tenha sido publicado em 1993, seu diagnóstico é anterior aos anos 90. Àquela altura, era natural

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que tal diagnóstico, por um lado, não enfatizasse suficientemente as mudanças políticas decorrentes da queda do Muro de Berlim e, por outro, não pudesse perceber o impacto (e a amplitude e a profundidade) das inovações tecnológicas, introduzidas, em meados da década de 1990, sobretudo com a Internet. A teleparticipação planetária de que fala Morin era ainda, para usar uma expressão de Pierre Levy, mais “molar” (via TV e outras mídias não-interativas) do que “molecular” (via redes telemáticas, funcionando em tempo real) (21).

Mas o fundamental aqui é que Morin percebeu que a chamada globalização (atual) faz parte de um grande movimento em direção à planetarização, que começou a se expressar como um “sentimento de pertença à uma mesma comunidade de destino, doravante a do planeta Terra” (22). Quem tiver qualquer dúvida sobre o andamento de tal processo, previsto por Morin, pode ler, por exemplo, “A Carta da Terra” – talvez o documento mais importante da glocalização (cf. Texto 3).

Morin também percebeu as características holográficas desse processo: “não apenas cada parte do mundo faz cada vez mais parte do mundo, mas o mundo enquanto todo está cada vez mais presente em cada uma de suas partes... A globalização é... onipresente” (23).

A idéia de que a partir de um certo momento do final do século 20, cada parte do mundo “traz em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro” é a idéia-chave para entender a glocalização no sentido que atribuímos aqui a esse termo.

Dando seguimento a essa linha de raciocínio é possível afirmar (mas ele, ao que eu saiba, não chegou a dizer isso) que a ‘revolução planetária’ de Morin e a revolução comunitária – que chamamos aqui de ‘revolução do local’ – não são apenas realidades coevas, movimentos simultâneos, senão que constituem o mesmo fenômeno.

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Planeta-e-comunidade é a realidade glocal. Esta nova realidade poderá se afirmar no mundo inteiro, quer dizer, há uma visível macro-tendência que aponta nessa direção, mas não é certo que ela consiga substituir a antiga ordem mundial ainda prevalecente. O destino configurado por um mundo holográfico de miríades de comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede planetária não está garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas que nos levarão para esse ou para outro cenário.

Não os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais, particularistas, reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem alternativas de vida e convivência social aos padrões da sociedade patriarcal, autocrática e guerreira, que vigem há milênios. Não os movimentos embebidos por visões estatistas, regressivas e contra-liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo a qual o mundo esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela divisão amigo x inimigo) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia econômica ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma decorrência do comportamento egotista dos indivíduos, que os impele inexoravelmente à competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que constituem humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin – pelo sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária de destino. Esses novos movimentos sociais não se caracterizam, predominantemente, pela vontade de poder (no sentido de serem desenhados para viabilizar a tomada e a retenção do poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade), pela motivação de derrotar um concorrente ou destruir um inimigo. Não são baseados em jogos do tipo ‘ganha-perde’ ou do tipo ‘o vencedor leva tudo’ e sim em jogos ‘ganha-ganha’. São, todos eles, movimentos de ethos predominantemente cooperativo (24).

Ora, que movimentos são esses? São movimentos: i) pelos direitos humanos e

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ii) pela universalização da cidadania (pela inclusão e pela igualdade ou não-discriminação em virtude de diferenças de renda e riqueza, de gênero, de raça e etnia, de origem ou situação social ou territorial, de condição física e psíquica – como, por exemplo, os que defendem direitos dos portadores de diferenças, ainda julgadas como deficiências à luz de uma visão de saúde como oposto de doença ou de sanidade como adequação à normalidade); iii) pela radicalização da democracia, abarcando todo o experimentalismo inovador que se desenvolve em torno dos processos participativos ensaiados em escala local e de democracia em tempo real ou cyberdemocacy (envolvendo social networks e civic networks); iv) pela conquista da sustentabilidade, como os movimentos ecológicos, ambientalistas e em prol do desenvolvimento sustentável; v) pelo ecumenismo em sentido amplo e pela tolerância com as diferenças de pensamento, de credos ou visões e práticas devocionais ou confessionais; vi) pela paz mundial; vii) pelo fortalecimento da sociedade civil, pela promoção do voluntariado, pela responsabilidade social (individual, comunitária e institucional – visando o engajamento de empresas, governos e organizações do terceiro setor em ações sociais) e pelas parcerias interinstitucionais que esboçam um novo padrão de relação entre Estado e sociedade no combate à pobreza e à exclusão social e na promoção do desenvolvimento humano e social sustentável; e viii) pela glocalização (compreendendo os diversos movimentos de ‘volta ao local’ ou comunitários no contexto de uma globalização que se quer includente, como os movimentos de desenvolvimento integrado e sustentável e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).

O sentido desses movimentos prefigura uma nova utopia. Ao invés da Terra-Pátria ou da Terra-Mátria (a “Mãe-Terra” de uma parte dos intérpretes espiritualistas de Gaia) essa nova utopia

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é a da Terra-Frátria. Como canta Caetano Veloso (em “Língua”, 1984), “e eu não tenho pátria: tenho mátria e quero frátria”.

Resta ver quais são as escolhas políticas capazes de nos conduzir na direção da Terra-Frátria.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cit. por Russell, Peter (1983). O Despertar da Terra: o Cérebro Global. São Paulo: Cultrix, 1991.

(2) Lovelock, James (1988). As eras de Gaia. Rio de Janeiro: Campus, 1991. Lovelock reconhece, todavia, que quando formulou a teoria de Gaia pela primeira vez, ignorava inteiramente idéias desenvolvidas por cientistas anteriores, especialmente Hutton, Korolenko e Vernadsky... A idéia de que a Terra está viva provavelmente é tão velha quanto a humanidade. A primeira expressão pública desta idéia como fato científico é a de um cientista escocês, James Hutton. Em 1785, em uma reunião da Royal Society de Edimburgo, Hutton afirmou que a Terra era um superorganismo e que o estudo mais adequado para ela seria a fisiologia... Ievgraf Maximovitch Korolenko [que] viveu há mais de cem anos em Cracóvia, na Ucrânia... afirmava que “a Terra é um organismo”... Hoje todos nós usamos a palavra “biosfera”, reconhecendo raramente que foi Eduard Suess quem primeiro a utilizou, em 1875, de passagem, ao descrever o seu trabalho sobre a estrutura geológica dos Alpes. Vernadsky desenvolveu o conceito e a partir de 1911 usou o seu significado moderno. Vernadsky disse: “A biosfera é o envoltório da vida, ou seja, a área da matéria viva... a biosfera pode ser vista como a área da crosta da Terra ocupada por transformadores que convertem as radiações cósmicas em energia terrestre eficaz: elétrica, química, mecânica, térmica etc.”(3) Margulis, Lynn (1998). O planeta simbiótico. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

(4) Idem.

(5) Lovelock: op. cit.

(6)-(9) Rudhyar, Dane (1969). Planetarización de la Conciencia. Málaga: Sírio, s. d.

(10) Discurso proferido no Uruguai: 26 de maio de 1987.

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(11) Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.

(12)-(20) Idem.

(21) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

(22)-(23) Morin: op. cit.

(24) Em meados de 1994, tentei coligir uma lista que expressasse a temática desses novos tipos de movimento. Essa lista acabou sendo publicada, dois anos depois, no folheto “A transição para um novo padrão civilizatório” (Brasília: Instituto de Política, 1996). Naquela época escrevi que “observando iniciativas inovadoras que vêm ocorrendo a partir dos anos 70 veremos que delas não escapam alguns temas centrais: a ética (sobretudo na política); a (universalização da) cidadania; a (radicalização da) democracia; a ecologia (e o desenvolvimento sustentável); o (macro) ecumenismo (entre as religiões, tradições espirituais e culturas do planeta); a paz (mundial) e a constituição de uma humanidade global (em termos políticos, geográficos, jurídicos e sociais e não apenas como reflexo da globalização da economia). Tanto é assim que dificilmente se encontrará uma experiência social realmente nova e expressiva, seja laica ou religiosa, que não tenha, entre seus anunciados fins, um ou vários desses sete temas. Por tal motivo podemos considerá-los como temas centrais da transição (não sendo totalmente impossível aduzir outros tópicas a esse elenco)”. Com efeito, hoje, quase uma década depois, eu retiraria da lista acima o tema da ética (por ser transversal a todos os demais) e acrescentaria o tema dos direitos humanos, explicitando os movimentos pela igualdade de gênero e o tema do fortalecimento da sociedade civil e traduzindo o último tema como glocalização (entendido como comunitarianismo não-conservador e de índole tolerante, no contexto de uma globalização includente).

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Texto 3 | A Carta da Terra

Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local e global estão ligadas.

No dia 14 de Março de 2000 na UNESCO em Paris foi aprovada, depois de 8 anos de discussões em todos os continentes, envolvendo 46 países e mais de cem mil pessoas, desde escolas primárias, esquimós, indígenas da Austrália, do Canadá e do Brasil, entidades da sociedade civil. até grandes centros de pesquisas, universidades, empresas e religiões, a chamada “Carta da Terra”.

A CARTA DA TERRA

PREÂMBULO

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, em uma época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas.

Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum.

Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e em uma cultura da paz.

Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações.

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Terra, Nosso Lar

A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única.

As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo.

O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.

A Situação Global

Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas.

Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causa de grande sofrimento. O crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão ameaçadas.

Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis.

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Desafios Para o Futuro

A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida.

São necessárias mudanças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos de vida. Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas, o desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais, não a ter mais.

Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para abastecer a todos e reduzir nossos impactos ao meio ambiente.

O surgimento de uma sociedade civil global está criando novas oportunidades para construir um mundo democrático e humano.

Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes.

Responsabilidade Universal

Para realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre bem como com nossa comunidade local.

Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local e global estão ligadas.

Cada um compartilha da responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem-estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos

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com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida, e com humildade considerando em relação ao lugar que ocupa o ser humano na natureza.

Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à comunidade mundial emergente.

Portanto, juntos na esperança, afirmamos os seguintes princípios, todos interdependentes, visando um modo de vida sustentável como critério comum, através dos quais a conduta de todos os indivíduos, organizações, empresas, governos, e instituições transnacionais será guiada e avaliada.

PRINCÍPIOS

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade. a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos. b. Afirmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade. 2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor. a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas. b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas. a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos e as liberdades fundamentais e

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proporcionem a cada um a oportunidade de realizar seu pleno potencial. b. Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de uma subsistência significativa e segura, que seja ecologicamente responsável.

4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações. a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas necessidades das gerações futuras. b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, a longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.

Para poder cumprir estes quatro amplos compromissos, é necessário:

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida. a. Adotar planos e regulamentações de desenvolvimento sustentável em todos os níveis que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte integral de todas as iniciativas de desenvolvimento. b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera, incluindo terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento à vida da Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural. c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas ameaçadas. d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modificados geneticamente que causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução desses organismos daninhos.

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e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos florestais e vida marinha de formas que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a sanidade dos ecossistemas. f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e combustíveis fósseis de forma que diminuam a exaustão e não causem dano ambiental grave.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução. a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos ambientais mesmo quando a informação científica for incompleta ou não conclusiva. b. Impor o ônus da prova àqueles que afirmarem que a atividade proposta não causará dano significativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano ambiental. c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas globais, cumulativas, de longo prazo, indiretas e de longo alcance. d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o aumento de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas. e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário. a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos. b. Atuar com restrição e eficiência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos recursos energéticos renováveis, como a energia solar e do vento. c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de tecnologias ambientais saudáveis. d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de venda e habilitar os consumidores a

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identificar produtos que satisfaçam as mais altas normas sociais e ambientais. e. Garantir acesso universal a assistência de saúde que fomente a saúde reprodutiva e a reprodução responsável. f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material em um mundo finito.

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla aplicação do conhecimento adquirido. a. Apoiar a cooperação científica e técnica internacional relacionada à sustentabilidade, com especial atenção às necessidades das nações em desenvolvimento. b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano. c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao domínio público.

III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental. a .Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos não-contaminados, ao abrigo e saneamento seguro, distribuindo os recursos nacionais e internacionais requeridos. b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência sustentável, e proporcionar seguro social e segurança coletiva a todos aqueles que não são capazes de manter-se por conta própria. c. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem, e permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.

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10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável. a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações. b. Incrementar os recursos intelectuais, financeiros, técnicos e sociais das nações em desenvolvimento e isentá-las de dívidas internacionais onerosas. c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos sustentáveis, a proteção ambiental e normas trabalhistas progressistas. d. Exigir que corporações multinacionais e organizações financeiras internacionais atuem com transparência em benefício do bem comum e responsabilizá-las pelas conseqüências de suas atividades.

11. Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde e às oportunidades econômicas. a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda violência contra elas. b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida econômica, política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias, tomadoras de decisão, líderes e beneficiárias. c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os membros da família.

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias. a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas em raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.

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b. Afirmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos, terras e recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis de vida. c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os a cumprir seu papel essencial na criação de sociedades sustentáveis. d. Proteger e restaurar lugares notáveis pelo significado cultural e espiritual.

IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões, e acesso à justiça. a. Defender o direito de todas as pessoas no sentido de receber informação clara e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tenham interesse. b. Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação significativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia pacífica, de associação e de oposição. d. Instituir o acesso efetivo e eficiente a procedimentos administrativos e judiciais independentes, incluindo retificação e compensação por danos ambientais e pela ameaça de tais danos. e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas. f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes, e atribuir responsabilidades ambientais aos níveis governamentais onde possam ser cumpridas mais efetivamente.

14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.

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a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas que lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável. b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na educação para sustentabilidade. c. Intensificar o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de aumentar a sensibilização para os desafios ecológicos e sociais. d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração. a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de sofrimentos. b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado ou evitável. c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não visadas.

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz. a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações. b. Implementar estratégias amplas para prevenir conflitos violentos e usar a colaboração na resolução de problemas para manejar e resolver conflitos ambientais e outras disputas. c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em propósitos pacíficos, incluindo restauração ecológica. d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em massa. e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção ambiental e a paz. f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas,

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outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte.

O CAMINHO ADIANTE

Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Tal renovação é a promessa dos princípios da Carta da Terra.

Para cumprir esta promessa, temos que nos comprometer a adotar e promover os valores e objetivos da Carta. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal.

Devemos desenvolver e aplicar com imaginação a visão de um modo de vida sustentável aos níveis local, nacional, regional e global.

Nossa diversidade cultural é uma herança preciosa, e diferentes culturas encontrarão suas próprias e distintas formas de realizar esta visão.

Devemos aprofundar e expandir o diálogo global gerado pela Carta da Terra, porque temos muito que aprender a partir da busca iminente e conjunta por verdade e sabedoria.

A vida muitas vezes envolve tensões entre valores importantes. Isto pode significar escolhas difíceis. Porém, necessitamos encontrar caminhos para harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem comum, objetivos de curto prazo com metas de longo prazo.

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Todo indivíduo, família, organização e comunidade têm um papel vital a desempenhar. As artes, as ciências, as religiões, as instituições educativas, os meios de comunicação, as empresas, as organizações não-governamentais e os governos são todos chamados a oferecer uma liderança criativa.

A parceria entre governo, sociedade civil e empresas é essencial para uma governabilidade efetiva.

Para construir uma comunidade global sustentável, as nações do mundo devem renovar seu compromisso com as Nações Unidas, cumprir com suas obrigações respeitando os acordos internacionais existentes e apoiar a implementação dos princípios da Carta da Terra com um instrumento internacional legalmente unificador quanto ao ambiente e ao desenvolvimento.

Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida.

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Glocalização em disputa

A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado e ‘interdependência’, por outro.

Na seção anterior afirmei que a idéia segundo a qual, a partir de um certo momento do final do século 20, cada parte do mundo, como disse Morin, “traz em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro”, é a idéia-chave para entender a glocalização no sentido que estamos atribuindo a esse termo (diferente daqueles atribuídos pelos economistas japoneses que o cunharam no final da década de 1980 e, também, por Roland

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Robertson, que o redefiniu, como aspecto da globalização cultural, em meados dos anos 90).

Somos tentados a ver aqui uma certa ordem na história. Agnes Heller concluiu um belo ensaio, publicado em 1999 (“Uma crise global da civilização: os desafios futuros”), com uma frase luminosa: “E a modernidade só pode sobreviver em nível global” (1). Com efeito, é difícil deixar de pensar que se o mundo moderno é um mundo global e o mundo pré-moderno era um mundo local, o mundo pós-moderno será um mundo glocal. Mas resistindo a tentação de urdir uma nova filosofia ou um novo schema interpretativo da história, parece mais razoável afirmar que o destino configurado por um mundo holográfico de centenas de milhares de comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede planetária não está garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas que nos levarão para esse ou para outros cenários.

Cheguei a mencionar os novos movimentos sociais, de ethos cooperativo (ou, pelo menos, não predominantemente competitivo), que poderiam nos levar na direção dessa nova utopia. Na presente seção pretendo tratar das escolhas políticas.

Começo com a seguinte afirmativa. A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado e ‘interdependência’, por outro.

Dizer que a glocalização está em disputa, nos termos acima, significa dizer que existem reações à glocalização que podem inviabilizá-la. A glocalização, apenas prefigurada nos dias de hoje, só poderá se consumar com o ‘local conectado’. As reações que podem inviabilizar a glocalização são aquelas que procuram manter o ‘local separado’.

Dizendo a mesma coisa de outra maneira, e talvez com um pouco mais de precisão, a glocalização somente poderá se

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consumar em um quadro de interdependência. As reações que podem inviabilizar a glocalização são aquelas que procuram manter o mundo congelado e aprisionado em um estágio de contraposição ‘dependência x independência’. E isso é a mesma coisa porquanto ‘independência’ significa ‘local desconectado’ como alternativa à ‘dependência’ que significa ‘local hierarquicamente subordinado’. Ou seja, estamos falando de rede.

Definimos assim interdependência como a dependência mútua de todos os processos que ocorrem em um sistema complexo que admite como padrão organizativo o padrão de rede. Conclusão: a glocalização só pode se consumar na sociedade-rede.

Todavia, a interdependência tende a se manifestar nas coletividades humanas que possuem um ethos de comunidade. Somente em um contexto de comunidade se pode ascender à consciência do papel, vital para a continuidade do sistema, que cumprem as múltiplas relações que se estabelecem entre seus membros. Daí porque a glocalização aponta para um mundo holográfico de numerosas comunidades sócio-territoriais e virtuais, transnacionais e subnacionais, articuladas em rede planetária.

Vamos nos concentrar agora, entretanto, na disputa em torno da glocalização, ou seja, nas escolhas políticas que poderão nos levar à uma superação da polarização ‘dependência versus independência’ ou que, ao contrário, poderão nos manter aprisionados nessa estiolante contradição não-resolvida, característica do que alguns chamam de modernidade.

Parece óbvio que um mundo configurado como um conjunto a-sistêmico de Estados-nações inviabiliza (ou dificulta sobremaneira) a adoção da democracia no plano internacional. Modos de regulação de conflitos que hoje se exige sejam praticadas por todos os países no âmbito interno,

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não são exigidos no âmbito externo. A isso se chama realismo político.

Também parece óbvio que arranjos competitivos de Estados-nações poderão ser estáveis somente em curtos intervalos de tempo. Mais cedo ou mais tarde tais arranjos levarão à predominância de um Estado ou de um conjunto de Estados sobre os demais, em uma dinâmica de ‘centro x periferia’ ou de ‘dependência x independência’.

Todavia a unipolarização é um caminho para a multipolarização e, portanto, para a desconstituição do monopolo. Mantendo-se as escolhas políticas feitas atualmente pelas grandes potências (como os USA), o mais provável é a volta de uma bipolarização. No caso do mundo atual, pode-se prever que, dentro de duas ou três décadas, forme-se novamente um dipolo (por exemplo, USA contra China, ou América do Norte e Reino Unido contra União Européia). Por quê? Porque impérios precisam sempre de pólos conflitantes e não podem ser construídos na ausência de inimigos. Por isso, a “lógica” autocrática é essencialmente guerreira.

Isso não significa, necessariamente, existência de guerra (“quente”), mas pode se dar em um ambiente de guerra (“fria”). O que importa aqui é a “lógica” de guerra como um modo de relação e não se serão disparados mísseis sobre a cabeça de alguém. O mais provável é que, tornado permanente ou constante esse ‘estado de guerra’, se passe da guerra fria para a guerra quente e, depois, novamente para a guerra fria, aprisionando o mundo em um círculo satânico.

As guerras quentes movidas nos albores do presente século pelos USA constituem uma reação ao fim da guerra fria simbolizado pela queda do Muro de Berlim. Como vimos no capítulo anterior, constituem uma reação à globalização e, na verdade, como estamos vendo agora, constituem, mais precisamente, uma reação à glocalização. Tentam manter

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diferentes partes do mundo em uma disputa pela independência em relação à parte dominante, ou seja, aquela parte que tenta manter as outras partes em estado de dependência. Quer dizer: tentam manter o mundo preso na polarização ‘dependência x independência’.

Tentar romper com a dependência a partir de lutas pela independência reforça a “lógica” autocrática. As novas partes independentes logo virarão cópias malfeitas das que, no passado, mantiveram-nas dependentes e tenderão, no futuro, a manter outras partes dependentes de si. A única maneira de superar a dependência é desconstruindo a dinâmica ‘dependência x independência’ e isso só pode ser feito com a instalação da ‘interdependência’.

A principal escolha política para desconstruir a “lógica” autocrática é a democracia, ou melhor, o processo continuado de democratização, sobretudo a democratização da própria democracia (ainda insuficientemente democratizada, apenas representativa e apenas formal, escolhida sem grandes dificuldades por Estados-nações com pretensões neo-imperiais, inclusive como aval e pretexto para poder manter o mundo em ‘estado de guerra’, por exemplo, movendo guerras contra as não-democracias). No plano político o movimento pela democratização – em especial em âmbito global, pela democratização das relações internacionais e, em âmbito local, pela democratização de instituições, procedimentos e processos decisórios – é a principal revolução capaz de libertar o mundo do círculo satânico da guerra e de consumar a glocalização.

Ora, a democracia é um “metabolismo” (um modo político de regulação) conforme a um determinado “corpo” (um padrão social de organização): o padrão de rede. Digam o que quiserem dizer – inclusive os que tentam híper-historicizar suas ocorrências buscando dela retirar qualquer característica universal intrínseca – a democracia é, sempre, uma rede pactuada de conversações. Por isso, uma outra forma de apresentar a mesma hipótese dos dois últimos parágrafos é

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dizer que a única maneira de superar a realidade do local hierarquicamente subordinado a outro local, não é por meio do ‘local separado’ e sim por meio do local conectado a uma multiplicidade de outros locais. O monopolo (em geral mantido como dipolo) somente pode ser superado pelo multipolo. E o multipolo só é viável como rede.

Em âmbito global, se os Estados-nações não fizerem tal escolha, em termos de política externa, cabe à sociedade civil mundial e a outros atores não-nacionais fazê-la, sobretudo promovendo um amplo e vigoroso movimento pela paz. Em âmbito local (interno) se os Estados-nações não fizerem tal escolha, em termos de orientação de suas policies, cabe também às sociedades civis e a outros atores não-nacionais fazê-la. De qualquer modo a alternativa é o surgimento de atores transnacionais e sub-nacionais que tenham capacidade de se relacionar entre si não obstante o que pretendam os Estados nacionais. Essa parece ser a única alternativa capaz de consumar o processo de glocalização que ora se prefigura, ativando a conexão global-local.

Portanto, fortalecer as sociedades civis locais, nacionais, regionais e, sobretudo a sociedade civil mundial e outros atores não-nacionais (trans-nacionais e pan-nacionais, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas) e fortalecer as comunidades sócio-territoriais e virtuais subnacionais e transnacionais parece ser a orientação estratégica mais adequada para aqueles que desejam consumar a glocalização que é, como vimos, um processo de planetarização e de comunitarização simultaneamente.

Por certo, o Estado não desaparecerá, não pelo menos em um horizonte previsível. Mas será transformado por pressões globais e locais, ou seja, por efeito de glocalização.NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Heller, Agnes (1999). “Uma crise global da civilização: os desafios futuros” in Santos, Theotônio et al. (orgs.) (1999). A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

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Glocalização e Estado-nação

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O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

A glocalização não é um movimento contra o Estado nacional. Ocorre que a mudança social em curso no mundo tem se dado, pelo menos até agora, em âmbito supra-nacional (global) e sub-nacional (local). Como já assinalei, no capítulo sobre a globalização, a democracia realmente existente no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos [de âmbito nacional] não tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de globalização [na verdade, de glocalização]. Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macro-culturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O “corpo” e o “metabolismo” do Estado-nação ainda permanece, todavia, como uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade, dos Estados-nações do globo.

Isso significa, é bom repetir, que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo

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ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.

Ora, novos sistemas globais de governança [como os que seriam exigidos por uma rede planetária de miríades de comunidades interdependentes – aduzo agora], para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas (novas empresas) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião sub-nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.É necessário identificar as insuficiências ou inadequações do Estado-nação para tentar prever que tipo de transformação ocorrerá na sua estrutura e no seu funcionamento por força do processo em curso de glocalização.

As três insuficiências ou inadequações do Estado-nação

Em primeiro lugar, voltando a Daniel Bell, constatam-se duas principais insuficiências ou inadequações do ponto de vista da sua operacionalidade administrativa: o Estado-nação é grande demais para dar conta da dimensão local e pequeno demais para dar conta da dimensão global.

Em segundo lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, não se dá muito bem com o que Claus Offe (1999), denominou de “trajetórias dominantes de mudança social a que todos nós... estamos expostos de forma direta” (1). Em recente ensaio (“A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade”), Offe identificou três trajetórias atuais de transição: a democratização, a globalização e a pós-modernização (ver versão integral deste ensaio em Texto 12).

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Pois bem. A forma Estado-nação atual admite a democracia política, representativa e formal, mas coloca obstáculos ou retarda a velocidade do processo de democratização na direção da democratização da sociedade e da adoção de modos de regulação mais participativos e mais substantivos. Sobretudo, no plano explicitamente político, impõe limites à chamada radicalização (ou democratização, como prefere Giddens) da própria democracia (2). Isso no âmbito interno. No âmbito externo, por sua vez, o Estado-nação não consegue promover o casamento entre a manutenção da soberania nacional e a simples adoção da democracia formal na sua relação com os outros Estados, curvando-se ao realismo político, o qual constitui, como todo mundo sabe, uma orientação substancialmente autocrática (e os que negam isso só o podem fazê-lo em nome do mesmo realismo político).

Além disso, a forma Estado-nação atual não convive muito bem com a globalização, que lhe retira poder. Como assinalou Castells em um ensaio de 2001, “confrontado com fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de gestão, de informação e de crimes, o Estado-nação foi perdendo, na última década, boa parte do seu poder... A crescente falta de operacionalidade do Estado-nação para resolver os problemas econômicos, de meio ambiente, da insegurança cidadã produz uma crise de confiança e legitimidade em boa parte da população em quase todos os países... [De sorte que] o Estado é cada vez mais inoperante no global e cada vez menos representativo no nacional” (3).

Por último, o Estado-nação, na sua forma atual, também está sendo indiretamente questionado pela redescoberta ou pelo renascimento (como assinala Offe) “de tradições religiosas e estéticas locais que são adotadas como formas simbólicas de resistência à uniformidade da cultura global e que dão origem a uma política cultural pós-moderna da identidade e diferença” (4) ou, diretamente confrontado (como afirma Castells), por numerosos atores sociais que, “golpeados pelas tormentas da transição histórica para uma nova economia e

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um novo paradigma tecnológico, abandonados por um Estado que concentra suas energias em navegar no encapelado oceano da globalização, desconfiados de políticos ineficazes e, freqüentemente, cínicos e corruptos... se refugiam nas trincheiras de identidades construídas com base em sua experiência e seus valores tradicionais: sua religião, sua localidade, sua região, sua memória, sua nação e sua cultura étnica. E identidades de gênero ou, em algumas ocasiões, sua identidade eletiva, constitutiva de um sistema alternativo de valores” (5). Assim, prossegue Castells, “ao questionamento do Estado-nação pelos fluxos globais de capital, comércio e informação se acrescenta o solapamento de sua legitimidade por identidades singulares que não se reconhecem na cidadania abstrata de uma democracia cada vez mais retórica, e a serviço de uma minoria globalizada” (6).

Castells vai mais além ao supor que, “se essas tendências se confirmarem, na era da informação, na qual já nos encontramos, poderemos desembocar em uma justaposição generalizada de mercados globais e tribos identitárias enfrentando-se sobre as ruínas do Estado democrático e da sociedade civil, que foram construídos com tanto esforço no trajeto histórico da era industrial” (7).

Nem tanto. O que ocorre, ao meu ver, é que, como o próprio Castells afirma, citando o ensaio de Guéhenno (1993) sobre o fim da democracia (ver Box S), “o conjunto da construção do Estado-nação democrático da era industrial, baseada nos conceitos inseparáveis de soberania nacional e representação democrática cidadã, entra em crise” (8). Mas entra em crise, sobretudo, porque sua forma antiga não foi capaz de se adequar às novas dinâmicas introduzidas pela transição histórica – inclusive no sentido da democratização (com a queda dos “muros” que mantêm o isolamento das populações imposto pelo Estado, visando ao seu controle pelo confinamento dentro de “fronteiras” sócio-político-culturais) e da glocalização (ou seja, da formação de uma nova cultura, conforme a uma nova sociedade cosmopolita global e de um reflorescimento da perspectiva comunitária ou da volta ao

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local) – e não porque, supostamente, esteja sendo atingido nos seus melhores valores de democracia e cidadania universais (o que é muito questionável de vez que democracia e cidadania existem, a rigor, apenas “para dentro” no Estado-nação industrial).

Não se trata de travar uma luta contra o Estado-nação e a favor da promessa utópica de um mundo sem fronteiras nacionais contida na (ou prenunciada pela) glocalização. Trata-se apenas de reconhecer que o Estado-nação está sendo atingido não propriamente pelas suas virtudes e sim pela sua incapacidade de se adaptar a um mundo que mudou – o que, convenhamos, parece muito mais lógico se quisermos interpretar o que de fato está ocorrendo ao invés de valorar a globalização negativamente para tentar responsabilizá-la pela derruição de conquistas arduamente construídas et coetera et tal.

Por outro lado, o Estado não vai mesmo desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado. E nem é certo se tal transformação será necessariamente democratizante, globalizante e pós-modernizante (para mencionarmos as trajetórias dominantes da transição, segundo Offe) ou glocalizante (como prefiro sintetizar). Talvez haja uma reação à essa transição, com um recrudescimento do estatismo, que tudo fará para manter um sistema internacional cristalizado em algumas poucas centenas de núcleos duros de poder formalmente democrático “para dentro” e substancialmente autocrático “para fora” (ou de um número menor de blocos pluri-nacionais seguindo a mesma receita) por meio da instalação de um “estado de guerra” generalizado no mundo.

Não se sabe. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização. O que se pode avançar desde agora, entretanto, é que dificilmente uma reação regressiva como essa teria sucesso na ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”, não importa), daí a tremenda importância

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que adquirem, nos tempos atuais, os movimentos pela paz. Voltarei a esse ponto.

Em terceiro lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, revela-se necessário porém francamente insuficiente para a promoção ou a indução do desenvolvimento. Ou seja, nesse campo existem coisas que precisam ser feitas e que não podem ser feitas pelo Estado senão, em alguns casos, pelo mercado e, em outros, pela sociedade civil ou, ainda, por parcerias intersetoriais entre Estado e mercado, Estado e sociedade civil, mercado e sociedade civil e Estado, mercado e sociedade civil. Ou, para usar os termos empregados por Claus Offe (ver Texto 12), existem coisas que devem ser feitas pelo Estado, pelo mercado e pela comunidade ou por combinações desses “três fundamentos da ordem social, e em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e os elimine” (9).

Para Offe, uma “mistura cívica” dessas três esferas deve evitar seis “abordagens patológicas para a construção de instituições sociais e políticas, ou ao que denominamos seis falácias. Três delas resultam da permanência de uma abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras três advêm da premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente deixado de fora na arquitetura da ordem social” (10). Essas falácias são: 1) a do estatismo excessivo; 2) a da capacidade de governo “pequena demais”; 3) a da excessiva confiança nos mecanismos de mercado; 4) a de uma limitação excessiva das forças de mercado; 5) a do comunitarianismo excessivo; e 6) a de negligenciar comunidades e identidade (11).

Enveredar por qualquer uma dessas “abordagens patológicas” significaria, para Offe, inviabilizar a possibilidade de encontrar a “mistura correta” dos três setores. Isso ocorre, segundo ele, quando nos deixamos impregnar por doutrinas puras que conferem a um (ou a dois) dos setores papel protagônico, excluindo os demais (ou o terceiro). Como exemplos desses tipos de doutrinas puras, Claus Offe cita o ‘estatismo social-

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democrata’, o ‘liberalismo de mercado’ e o ‘comunitarianismo conservador’: “esses são os três tipos competitivos de filosofia pública que estão presentes e em competição no final do século 20” (12).

Nos termos empregados neste livro, poder-se-ia dizer que isso ocorre quando nos deixamos impregnar por ideologias estadocêntricas, mercadocêntricas ou sóciocêntricas. Há, todavia, uma importante diferença entre estatismo, neoliberalismo e qualquer coisa que se pudesse propriamente chamar de “socialismo” enquanto expressão de um sociocentrismo (não o que foi chamado nos dois séculos anteriores de socialismo que, freqüentemente, era uma forma de estatismo, a não ser em algumas de suas versões anarquistas).

O sociocentrismo, que poderia teoricamente ser um problema (semelhante ao estadocentrismo e ao mercadocentrismo) é, na verdade, também, uma fonte de solução, uma saída para a contraposição estiolante Estado versus mercado. O próprio Offe reconhece que “instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se tornarem beneficiários da) formação e acumulação de capital social no interior da sociedade civil. As forças associativas são mais capazes de definir e redefinir de forma constante a “mistura correta” de padrões institucionais do que qualquer autoproclamado especialista ou protagonista intelectual de uma das doutrinas “puras” da ordem social” (13).

É, portanto, o capital social disponível no interior da sociedade civil que pode conduzir “a sintonia fina, processual, crítica e flexível, ao mesmo tempo que a recombinação imaginativa dos três componentes da ordem institucional separados” (14) (ou seja, o Estado, o mercado e a comunidade). Mas o capital social, como veremos mais adiante, é gerado, basicamente,

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por comunidades ou pela “capacidade de comunidade” que possuem, em maior ou menor grau, as sociedades humanas.

É por isso que a emergência de um comunitarianismo inovador incentivado pelo “associativismo cívico e de capital social, que capacita as pessoas a se engajarem em práticas associativas” (15) formando organizações não-governamentais e sem fins lucrativos, porém, além disso, sobretudo, tolerantes – comunidades “não-sectárias”, não exclusivistas ou não-discriminatórias – constitui hoje um novo caminho para a mudança social.

Ora, se o processo de glocalização incrementa tal “capacidade de comunidade” é de se esperar que ele consiga mudar o padrão de relação entre Estado e sociedade, quer mediando, a partir do “lugar” da sociedade civil, a interação entre Estado e mercado, quer aumentando o controle social sobre o Estado e impondo a orientação social ao mercado.

O Estado-rede

De qualquer modo o Estado-nação não poderá mais ser como antes ou se comportar da maneira como se comportava ou se estruturar da maneira como se estruturava, se – digo: se – a glocalização avançar no rumo da formação de redes de comunidades subnacionais e transnacionais. Neste caso ele terá que se transformar, como quer Castells (por esse e por outros motivos: além da transferência de atribuições e iniciativas aos âmbitos regionais e locais, a própria crise que o assola e o desenvolvimento de instituições supranacionais), em uma espécie de Estado-rede.

Castells explica o surgimento do Estado-rede como decorrente da necessidade de novos mecanismos de coordenação. Segundo ele, “as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao

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fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional. Daí a importância de que o processo de redistribuição de atribuições e recursos seja acompanhado por mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis institucionais em que se desenvolve a ação dos agentes políticos. A fórmula político-institucional que parece mais efetiva para assegurar essa coordenação é o que denomino Estado-rede” (16).

Para ele, “Estado-rede é o Estado da era da informação, a forma política que permite a gestão cotidiana da tensão entre o local e o global” (17) (em nossos termos, o Estado transformado pela glocalização). Embora pareça muito literal, faz sentido: uma sociedade-rede não poderia admitir outro tipo de Estado que não fosse o Estado-rede. Ou, em outras palavras, em um mundo em rede o Estado só poderá sobreviver como Estado-rede.

A reação a glocalização

Todavia, isso pode não acontecer. Se não acontecer será porque a disputa em torno da glocalização conseguiu bloquear de alguma forma a expansão das conexões no interior dos âmbitos locais e interlocais ou entre o local e o global. Ou seja, se isso não acontecer será porque o ‘local separado’ conseguiu prevalecer sobre o ‘local conectado’ ou porque uma dinâmica de interdependência não conseguiu se instalar em grau suficiente para desencadear uma mudança na configuração global do sistema.

Uma outra maneira, mais otimista e também mais ousada, de dizer a mesma coisa, é a seguinte: isso não acontecerá enquanto nodos locais – em número suficiente e com um número suficiente de conexões – não estiverem conectados em rede. A questão de saber qual seria a “massa crítica” necessária para desencadear a predominância de uma nova dinâmica de interdependência em âmbito global e de qual seria o grau de conectividade (a extensão característica de

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caminho) para reduzir o tamanho do mundo de sorte a permitir que a glocalização seja consumada é, ao meu ver, o mais importante tema da investigação de vanguarda contemporânea. Trataremos desse assunto no próximo capítulo, sobre a localização.

Todavia, tendo a achar – dada a autonomia do político – que sempre é possível bloquear, ou ao menos retardar por longo tempo, processos de mudança social. Manter o ‘local separado’ parece ser, hoje, o grande objetivo dos que querem reter o mundo congelado no modelo do equilíbrio competitivo de Estados-nações. Tal modelo, por certo, traz em si uma contradição, uma vez que, na ausência de “estado de guerra”, ele só é estável por curtos períodos e que, na presença de guerras (“quentes” ou “frias”), ele não possa admitir uma multipolarização (dificilmente administrável do ponto de vista dos interesses econômicos dos pólos individuais), tendendo para a bipolarização, a qual, por sua vez, também não se mantém por longo tempo na medida em que um pólo acaba predominando sobre o outro, levando à unipolarização que conduz, então, à multipolarização.

Diz-se que Creta (a minóica) conseguiu ficar um milênio sem guerras não obstante estar imersa em um mundo de guerras. Creta, em si, era um mundo autosuficiente, uma ilha em todos os sentidos. Mas hoje não podem mais existir ilhas (em todos os sentidos). E não se conhece na história recente longos períodos de ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”) generalizados. A única exceção foram os dez anos entre a derrocada da URSS e o atentado ao World Trade Center, no quais, como assinala Friedman, o sistema da guerra fria foi substituído pelo que ele chama de sistema da globalização (18). Não por acaso foram aqueles os anos 90, onde pôde avançar o processo da glocalização.

A hipótese da inevitabilidade da guerra e do seu papel motor das transformações

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Por certo, existem outras interpretações para o declínio do Estado-nação que ora se prenuncia.

Philip Bobbit (2002) lançou recentemente um curioso livro, chamado “O Escudo de Aquiles”, com o objetivo de apresentar uma nova visão sobre o Estado moderno – “como surgiu, como se desenvolveu e que direções podemos esperar que tome” (19).

O argumento central de Bobbit é o seguinte:

i) em 1990, com o fim da guerra fria, encerrou-se o período da ‘longa guerra”, iniciada em 1914, no qual estava em disputa a forma do Estado-nação (se comunista, fascista ou parlamentar);

ii) tal disputa ensejou o surgimento de novos fatores que questionam o velho modelo de Estado baseado em uma noção de soberania vinculada a fronteiras territoriais; iii) em decorrência disso, um novo tipo de Estado – o Estado-mercado – está se sobrepondo ao Estado-nação; e

iv) a antiga sociedade de Estados-nação está sendo substituída por uma nova sociedade de Estados-mercado.

Bobbit elenca os cinco principais fatores que estão questionando o velho tipo de Estado-nação:

“(1) o reconhecimento dos direitos humanos como normas que requerem a adesão de todos os Estados, independentemente de suas leis internas;

(2) a ampla distribuição de armas nucleares e de destruição em massa, que fazem com que a defesa das fronteiras do Estado seja insuficiente para garantir a proteção da sociedade em seu bojo;

(3) a proliferação de ameaças globais e transnacionais que transcendem as fronteiras dos Estados – como, por exemplo,

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os danos ao meio ambiente ou os perigos da migração, expansão populacional, doenças ou fome;

(4) a expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na movimentação de investimentos de capital em uma medida tal que os Estados vêem-se tolhidos na administração de seus problemas econômicos; e

(5) a criação de uma rede global de comunicações capaz de penetrar fronteiras eletronicamente e pôr em risco idiomas, costumes e culturas nacionais” (20).

Bobbit conclui então sua análise afirmando que em conseqüência do questionamento introduzido pelas novas realidades mencionadas acima, “surgirá uma ordem constitucional que não só refletirá esses cinco fatores como também os exaltará, como demandas que apenas essa nova ordem poderá atender. A emergência de uma nova base para o Estado também modificará as premissas constitucionais da sociedade internacional de Estados, uma vez que também essa estrutura é derivada das racionalizações constitucionais internas de seus membros constituintes” (21).

Portanto, para ele, é a guerra (aqui incluída a celebração da paz pós-guerra) o motor das transformações de vez que, no plano interno, “a interação entre inovações estratégicas e constitucionais modifica a ordem constitucional do Estado” e que, “assim como as guerras momentosas moldam a ordem constitucional de cada Estado, [no plano externo são] os grandes acordos de paz [que] dão forma à ordem constitucional da sociedade de Estados” (22).

Para Bobbit não existe sociedade civil, não pelo menos como uma esfera da realidade social subsistente fora da ordem do Estado. Sua perspectiva é tão mercadocêntrica que ele é obrigado a supor, diante da mudança social em curso no mundo atual, um processo de transição para um hipotético “Estado-mercado”, uma nova forma de Estado que estaria sucedendo a forma Estado-nação. Ou seja, para ele, parece

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que nem o mercado pode ter uma existência per se, uma “lógica” e uma racionalidade próprias.

Assim, ao invés de tratar dos novos padrões de interação entre Estado e mercado e dos novos padrões de interação entre Estado e sociedade civil, entre mercado e sociedade civil e entre Estado, mercado e sociedade civil, ele – simplesmente – reduz tudo à realidade estatal, supondo que todo esse processo poderá ser revelado pelo desenvolvimento de uma estranha disciplina chamada “estadística”.

Infelizmente, o extenso tratado (de quase 900 páginas) de Philip Bobbit é condicionado por suas crenças religiosas na inevitabilidade da guerra. “A guerra é inevitável... em virtude da natureza do Estado (que operacionaliza e amplifica a capacidade de cada grupo de entrar em choque com os outros) e da natureza do ser humano em grupos” (23).

Em um pós-escrito de 13 de dezembro de 2001, a propósito do atentado ao World Trade Center, Bobbit começa afirmando que “a guerra não é uma patologia que, com a devida higiene e tratamento, pode ser plenamente prevenida. A guerra é uma condição natural do Estado, que se estruturou de modo a constituir um instrumento eficaz de violência em nome da sociedade. É como a morte – embora possa ser adiada, virá quando tiver de vir e não pode ser evitada indefinidamente” (24). Parece que todo o tratado de Bobbit, de certa forma, foi escrito para dar razão à uma citação que faz de Joseph Conrad, o qual escreveu (em “Notes on Life and Letters”, Pennsylvania State University: 2001): “a história da vida na Terra deve, em última instância, ser a história de uma guerra realmente implacável. Nem seus companheiros, nem seus deuses, nem suas paixões deixarão o homem em paz” (25).

Ao comparar a guerra a um desiderato biológico, fatal como a morte, Bobbit naturaliza a guerra. Ela faria parte da “biologia” da sociedade humana, como se estivesse geneticamente inscrita. Em outras palavras, o ser humano de Bobbit é geneticamente competitivo e geneticamente programado

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para solucionar o conflito de modo destrutivo. Daí decorre a sua teoria hobbesiana do Estado.É uma pena porque, apesar disso, a periodização introduzida por Philip Bobbit poderia ajudar a compreender melhor o século 20 (ver Texto 5). Ou, pelo menos, poderia ajudar a compreender o significado dos anos 90, como uma espécie de interregno no que tange a instalação de um estado de guerra generalizado (embora ele não diga – e, ao que parece, nem pense – isso).

Um software diabólico

Ocorre que não estamos mais na década de 1990. Nos primeiros anos do presente milênio, ao que tudo indica, a “America’s new war” está se instalando, ou seja, está sendo novamente inicializado um software diabólico: um “estado de guerra” generalizado no mundo (e de novo tipo: ao mesmo tempo focalizado e “quente”, aplicado preventivamente contra potenciais inimigos localizados – os Estados-nações “fora da lei” – e universalizado e “frio”, contra um inimigo invisível, o terrorismo globalizado). Sobretudo essa última forma, ‘o estado de guerra permanente contra o inimigo invisível e onipresente’ é a maior ameaça que poderia ser concebida e praticada contra a planetarização.

Reconheço que as dificuldades atuais são imensas para manter o mundo como um quebra-cabeça de peças rígidas compostas de locais separados diante dos interesses multilaterais. Seria preciso, por exemplo, tirar “do ar” ou controlar a Internet, o que não agradaria muito aos sistemas financeiros e comerciais já globalizados. Mas, ainda assim, creio que se pode retardar por longo tempo o processo de emersão da sociedade rede (e do seu correspondente Estado-rede).

Quero dizer que o avanço da glocalização não ocorrerá por força de qualquer determinação extra-política, por algum tipo de desdobramento de uma tendência histórica imanente.

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Embora a glocalização não teria podido começar sem um conjunto de condições objetivas determinadas (como a inovação tecnológica telemática, por exemplo) seu desfecho está em disputa. E se, no âmbito global, a planetarização pode ser enfreada pela ação política de atores nacionais poderosos (como os USA na “Era Bush” e seus aliados), no âmbito local isso será muito mais difícil de fazer. Esse, aliás, é um dos sentidos da expressão ‘revolução do local’.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Offe, Claus. (1991). “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(2) Ver Epílogo.

(3) Castells, Manuel (1991). “Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(4) Offe: op. cit.

(5) Castells: op. cit.

(6)-(8) Idem.

(9)-(15) Offe: op. cit.

(16)-(17) Castells: op. cit.

(18) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(19) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House, 2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz

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na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).

(20)-(25) Idem.

Texto 4 | Guéhenno, o fim da democracia e o futuro da liberdade

“O ano de 1989 marca, efetivamente, o crepúsculo de uma longa época histórica, da qual o Estado-nação, surgindo progressivamente dos escombros do Império Romano, foi o coroamento”. “Parece-me que a evolução contemporânea deva provocar o fim das construções institucionais herdadas do Renascimento e do Século das Luzes, do Estado-nação e das formas tradicionais de soberania democrática que lhe são associadas”.

Jean-Marie Guéhenno, publicou dois ensaios importantes sobre “O fim da democracia” (1993) e “O futuro da liberdade” (1999). Escrito, o primeiro, no início dos anos 90, ainda sob o impacto da queda do Muro de Berlim e, o segundo, já no seu ocaso, sob o impacto do processo de globalização, os dois livros de Guéhenno são plenos de pistas para o

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questionamento das alternativas fundadas na liberdade. Ele parece convencido de que a liberdade só possa ser alcançada pela democracia tomada como um fim em si. Todavia, revela-se cético quanto as possibilidades de realizar a liberdade dos antigos no mundo que se avizinha, vale dizer, com as possibilidades da democracia como utopia/topia da comunidade política.

Guehénno sustenta que “o que chamamos de globalização ou mundialização está transformando em profundidade todas as sociedades do planeta”. Todavia a pergunta que ele faz é: para onde isso está nos levando, considerando que “um mercado global não cria uma comunidade global”? (1).

Todavia, ao identificar a comunidade política ao Estado nacional Guehénno decai para uma perspectiva pessimista. Assim, ele vaticina, em 1993, que “o desaparecimento da nação implica a morte da política”. Embora tenha revelado alta percepção, ao ser um dos primeiros a diagnosticar que estamos vivendo “na idade das redes”, Guehénno não tira conseqüências positivas para o futuro da democracia (ou da liberdade) dessa constatação. Pelo contrário, avalia que “a relação entre cidadãos e corpo político sofre a concorrência da infinidade das conexões estabelecidas fora de seu alcance, de modo que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens na sociedade, aparece como uma atividade secundária, até uma construção artificial, pouco adaptada a solucionar os problemas práticos do mundo contemporâneo” (2).

Como as tendências não apontam para qualquer espécie de república universal (o que – tudo indica, para ele – seria o correspondente do Estado nacional democrático no âmbito global), Guehénno observa que “o que se cria não é nenhum corpo político mundial, mas sim um tecido sem costuras aparentes, um acréscimo indefinido de elementos interdependentes” (3). Logo... isso aponta para o fim da democracia.

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Cerca de cinco anos depois, Guehénno volta ao tema para tentar “definir as novas condições da democracia dentro da globalização”. Sua pergunta continua sendo, basicamente, a mesma: “como construir as comunidades políticas do futuro?” (4).

“Por um lado, com efeito, a globalização faz de nós órfãos, pois não mais herdamos de uma comunidade, pelo acaso do nascimento. Temos que, de agora em diante, construir a comunidade. E esta passagem de um mundo de comunidades de memória para um mundo de comunidades de escolha é uma liberdade difícil de carregar, para a qual estávamos mal preparados. A fuga para dentro do “comunitarismo”, a xenofobia e, finalmente, a tirania podem seduzir aqueles a quem esta nova liberdade inquieta, pois, não sabendo mais de onde vêm, não sabem quem são e não têm força para escolher para onde ir”... (5).

“Graças à desmaterialização da informação, os homens estão se reagrupando em comunidades de um novo tipo, sobre as quais não se sabe se são “frágeis”... ou se, ao contrário, estão destinadas a estruturar o mundo de amanhã.

Ao contrário das comunidades territoriais do passado, as atuais comunidades virtuais são comunidades de escolha, o que as torna mais homogêneas, contudo também mais arbitrariamente separadas”. Guehénno vê aqui o fim do espaço público comum, na medida em que as pessoas podem optar sempre por sub-espaços, por seus próprios fóruns privados, “pois todos podem, sem maiores dificuldades, encontrar o “nicho virtual” onde, com certeza, só acharão seus “semelhantes”...

Essa evolução – ele assinala – não é pouco importante, pois, se é verdade que a praça do mercado foi o primeiro lugar do debate público, seu desaparecimento terá conseqüências sobre a definição do “espaço público” onde a comunidade de cidadãos se encontra: ele não pode ser a simples soma dos espaços virtuais da Internet, e a multiplicação dos “fóruns de

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discussão” não é suficiente para fazer dos internautas cidadãos de uma nova república virtual da Internet...

A organização em redes de comunidades humanas, o acesso a uma grande quantidade de comunidades virtuais provocam no indivíduo o sentimento de que todas as escolhas, todos os contatos lhe estão abertos, que ele foi, enfim, libertado de suas origens e que sua liberdade de moderno vai se consumar: territórios novos se abrem. Mas, ao mesmo tempo, a ausência de um espaço público comum e a enorme concorrência que resulta da própria abertura do campo de possibilidades forçam as comunidades particulares a procurarem antes de mais nada a semelhança entre seus membros, em vez de procurarem a comunicação com os outros. Assim, em meio a essa liberdade, que pareceria ser o remate da liberdade “moderna” e o triunfo do indivíduo, aparece um novo tipo de comunidade mais parecida com Esparta do que com Atenas” (6).

O ponto de vista de Guehénno é interessante e bem fundamentado. No entanto, tudo indica que em uma sociedade-rede, não é mais possível promover, pelas fronteiras da preferência ou da escolha individual, barreiras semelhantes às que delimitavam Esparta como entidade sócio-territorial em relativo isolamento para gerar uma unidade cultural imune (ou imiscível) às influências de Atenas. Basta que um nodo da “rede espartana” esteja conectado a um nodo da “rede ateniense” para que se tenha construído um atalho pelo qual trafegarão, em mão-dupla, os “programas” de ambos. Assim, em uma sociedade-rede, o que separa também integra. O que localiza também globaliza. A diferença é que a nova ordem que integra não é mais concebível a priori, não é o resultado de uma arrumação racional e sim que brota da dinâmica das redes como comportamento emergente.

Em uma sociedade-rede a partir de algum momento não caberão mais “quistos espartanos”. Resta saber se – e de que modo – caberão, ao contrário do que indica o pessimismo de

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Guehénno, “nodos atenienses”. Este é um dos temas da presente investigação.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

(2)-(3) Idem.

(4)-(6) Guéhenno, Jean-Marie (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

Texto 5 | Bobbit e a emergência do Estado-mercado

“Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e políticas de previdência social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado promete, por sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo representativo, tornando-os mais sensíveis ao mercado”.

Philip Bobbit (2002) lançou recentemente um curioso livro chamado “O Escudo de Aquiles”, apresentado no Brasil como um estudo do “impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações” (1). Eis um apanhado das teses de Bobbit.

Tese 1 – “A guerra iniciada em 1914 será vista, no futuro, como tendo se estendido até 1990”.

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Para ele, “as guerras momentosas podem ser compostas por vários conflitos considerados pelos participantes guerras separadas; podem compreender períodos de paz aparente (incluindo até mesmo elaborados tratados de paz); e com freqüência não mantêm o mesmo alinhamento de adversários e aliados ao longo de seu desenvolvimento. A Longa Guerra (que abrange a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Revolução Russa e a Guerra Civil Espanhola, as Guerras da Coréia e do Vietnã e a Guerra Fria), assim como as guerras momentosas anteriores, girou em torno de uma questão constitucional fundamental: que tipo de Estado-nação – comunista, fascista ou parlamentar – herdaria a legitimidade antes atribuída aos Estados-nação imperiais do século 19” (2).

Tese 2 – “A interação entre inovações estratégicas e constitucionais modificada a ordem constitucional do Estado”.

Segundo Bobbit, “as guerras momentosas oferecem desafios cruciais ao Estado. Um Estado em guerra que não consegue prevalecer dentro das práticas estratégicas e constitucionais outrora dominantes precisa inovar. Nessas guerras, as inovações bem-sucedidas – seja em termos estratégicos ou constitucionais – de um determinado Estado são reproduzidas pelos seus concorrentes. Essa imitação entre os Estados permeia a sociedade de Estados e resulta na súbita mudança das ordens constitucionais e paradigmas estratégicos após uma guerra momentosa; assim, emerge uma nova ordem constitucional dominante sobre as novas bases de legitimidade, e as formas mais antigas entram em declínio e desaparecem” (3).Tese 3 – “O Estado-mercado está sobrepondo-se ao Estado-nação, em decorrência do fim da Longa Guerra”.

Para Philip Bobbit, “o fim da Longa Guerra foi rapidamente sucedido pelo surgimento de uma nova ordem constitucional. Essa nova forma é o Estado-mercado. Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e políticas de previdência social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado promete,

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por sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo representativo, tornando-os mais sensíveis ao mercado. Os Estados Unidos, um dos principais inovadores no desenvolvimento do Estado-mercado, deve elaborar suas políticas estratégicas tendo em vista essa mudança constitucional fundamental” (4).

Tese 4 – “A sociedade de Estados-nação desenvolveu uma constituição que procurava tratar os Estados como se fossem indivíduos em uma sociedade políticas de cidadãos iguais, autônomos e detentores de direitos”.

Segundo Bobbit, “na sociedade de Estados-nação, o mais importante direito de uma nação era o de autodeterminação – o que, porém, criava um enigma para essa sociedade, a saber: dada a interpenetração dos povos nacionais nos Estados multiétnicos, quando uma nação obtinha seu próprio Estado? Quando a maioria da população do Estado concordava, ou quando a maioria de um grupo nacional – em geral uma minoria das pessoas do Estado como um todo – demandava? E quando determinado grupo nacional detinha o poder, quais eram os seus limites ao lidar com os demais grupos nacionais (“minorias” dentro do Estado-nação) – visto que um dos objetivos do Estado-nação era utilizar a lei para fomentar os valores culturais e morais do grupo nacional dominante? A confusão decorrente dessa charada levou à difusão da responsabilidade internacional, culminando na Terceiro Guerra Iuguslava na Bósnia, que finalmente desacreditou a legitimidade de uma sociedade de Estados erguida sobre essa ordem constitucional” (5).

Tese 5 – “Assim como as guerras momentosas moldam a ordem constitucional de cada Estado, os grandes acordos de paz dão forma à ordem constitucional da sociedade de Estados”.

Ele explica. “Os congressos internacionais que resultaram em tratados de paz para pôr fim às guerras momentosas

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produziram as constituições da sociedade de Estados para suas respectivas eras. Esse processo, iniciado na Europa com o nascimento de uma pequena sociedade de Estados, durante o Renascimento, acabou expandindo-se até abranger todo o globo. O direito internacional pode ser compreendido em termos dessas constituições – e, portanto, como tendo se desenvolvido em vários períodos distintos. O estudo desse desenvolvimento proporciona um fundamento para que se compreenda a era constitucional seguinte da sociedade de Estados” (6).

Tese 6 – “Está surgindo uma nova sociedade de Estados-mercado”.

Para Philip Bobbit, “os desafios com que se defronta a sociedade de Estados são uma conseqüência direta das inovações estratégicas que venceram a Longa Guerra. As maneiras como as diversas formas básicas do Estado-mercado vão lidar com tais desafios é que estruturarão os conflitos de uma nova sociedade. É preciso agir tendo em vista esse desenvolvimento, aceitando os conflitos onde forem necessários para evitar guerras cataclísmicas ou o colapso da superinfra-estrutura global e criando instituições que legitimem a nova sociedade de Estados-mercado” (7).

A nova ortodoxia econômica do Estado-mercado (ou “O Consenso de Bobbit”)

Para Bobbit “a ortodoxia econômica dos Estados-nação recomendava a intervenção estatal na economia como um instrumento necessário para atingir o crescimento e outras metas. A regulamentação econômica fazia parte dessa ortodoxia e estava de acordo com o ethos dos Estados-nação, que tanto dependiam do direito. Os Estados-mercado possuirão sua própria ortodoxia econômica e suas próprias ferramentas específicas” (8).

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Ele trata então de um conjunto de idéias que todos os Estados-mercado poderão – na verdade, deverão – aceitar:

1 – Os mercados de capital têm de ser menos regulamentados, a fim de atrair investimentos de capital, e este deve globalizar-se mais para obter o máximo de retorno sobre o investimento.

2 – Os mercados de trabalho precisam ganhar em flexibilidade, a fim de competir com os mercados estrangeiros e manter no âmbito interno os empregos que dependam da fabricação de produtos a um custo capaz de concorrer com os de Estados de custos trabalhistas inferiores.

3 – Para que a economia cresça, faz-se necessário assegurar o acesso a todos os mercados e reduzir a regulamentação do comércio.

4 – Para que os bens dos Estados consigam penetrar nos mercados estrangeiros – e, assim, tomar parte desse crescimento – a política comercial de cada Estado precisará tornar-se mais livre.

5 – Os subsídios, gastos e programas de previdência governamentais devem ser administrados de forma a possibilitar mais investimentos em infra-estrutura e permitir uma maior poupança privada (o que reduzirá os custos de investimento).

6 – A política tributária tem de fornecer incentivos para o crescimento, atraindo empreendimentos e maximizando a inovação e o empreendedorismo.

Caso nada disso ocorra o Estado entrará em um círculo vicioso, que Bobbit descreve sumariamente assim:

a) “Se um Estado-mercado deixar de proporcionar incentivos fiscais para a formação e retenção de capital, os

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investimentos domésticos ou não ocorrerão, ou vão evadir-se junto com os investimentos estrangeiros.

b) A fuga de investimentos é acompanhada do desaparecimento da inovação e dos ganhos de produtividade, de modo que os produtos destas concorrentes serão mais baratos e de melhor qualidade que aqueles fabricados no país.

c) Se os produtos de outros Estados forem mais competitivos, os empregos serão também perdidos para tais Estados.

d) Com a perda dos empregos, a arrecadação despencará e o desemprego e os custos da previdência se tornarão insuportáveis.

e) Uma carga tributária cada vez mais pesada produzirá arrecadação cada vez menor.

f) O Estado que resistir à liberalização de seus mercados de trabalho tendo em vista a proteção de cargos de salários elevados acabará sem empregos para proteger.

g) O Estado que se esquivar de cortar seus gastos previdenciários não terá outra alternativa além de recorrer aos cortes quando cair a arrecadação e ele vir-se com uma conta estratosférica de seguridade social nas mãos, à medida que aumentar o desemprego.

h) O Estado que procurar proteger sua indústria doméstica recusando-se a liberalizar suas políticas comerciais acabará vendo-a isolada dos demais mercados e, de qualquer modo, sem condições de competir – de maneira que, no âmbito interno, os preços permanecem altos e o padrão de vida despenca.

i) O Estado que tentar restringir fugas de capital acabará apartado dos demais, e o que inibir as importações de capital será ignorado – o que também elevará o custo de produção e

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deprimirá o padrão de vida, em mais um volta deste círculo vicioso” (9).

Em contrapartida, Bobbit afirma que “o Estado-mercado promete um círculo “virtuoso” aos Estados que reproduzirem seu formato e se submeterem às suas diretrizes:

a) A privatização de estatais, ao liquidar vastos monopólios, acarreta para o Estado gigantescos ganhos de capital, os quais, por sua vez, vêm complementar a economia possibilitada por cortes nos programas previdenciários e, portanto, reduz os déficits, ocasionando um queda da inflação.

b) Esta tem o efeito de atrair capital e reduzir os custos de empréstimos necessários para financiar os déficits, o que os diminui ainda mais, viabilizando assim uma redução dos impostos – a qual pode produzir um aumento da poupança, permitindo mais investimentos, que geram mais fundos para pesquisa e desenvolvimento.

c) Estes levam a um recrudescimento da produtividade, o que provoca uma queda dos preços e, assim, torna as exportações mais competitivas, criando empregos e, ao mesmo tempo, reduzindo o custo de vida do público consumidor.

d) No mundo subdesenvolvido, essas políticas implicam um maior crescimento devido às vantagens salariais relativas.

e) Tal crescimento tem como conseqüência uma maior qualificação da população, levando mais mulheres para o mercado de trabalho, o que acarreta uma queda dos índices de natalidade e, por conseguinte, aumenta a estabilidade política.

f) Esta, por sua vez, significa uma maior prudência macroeconômica, levando a mais investimentos estrangeiros, que financiam ainda mais crescimento – o qual tende a liberalizar o autoritarismo, estimulando a autonomia pessoal” (10).

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House, 2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).

(2)-(10) Idem.

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Glocalização e localização

Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido “forte”) da ‘localização’.

O conceito de glocalização só é útil como ferramenta de análise porquanto a mudança social que está em curso no mundo tem um duplo sentido: altera relações na dimensão global e na dimensão local. Dizendo a mesma coisa de outra maneira: altera a relação entre global e local ao possibilitar a existência de conexão direta entre o global e o local. Ou, ainda: elimina a distância entre o global e o local. Com efeito a conexão direta é uma conexão em tempo real e é, assim, uma conexão sem-distância.

Isso significa que, diante da mudança que ora se processa, o local adquire um novo status que, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de ‘localização’. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos, constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou da emersão da realidade glocal.

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Um conceito de ‘localização’ já surgiu em função da necessidade de alocação de produtos (em geral de conhecimento e em geral ligados à informática, como programas) em realidades culturais/nacionais diversas. Neste sentido, localização (ou nacionalização) é o processo de se transferir dados de uma localidade a outra. Trata-se de um superconjunto de tradução, uma vez que envolve não apenas a tradução, mas também a conversão de uma formatação culturalmente específica de dados, como datas, horários e moedas. Segundo tal acepção, além disso, a localização inclui o processamento de todos os aspectos técnicos envolvidos no processo e a visualização adequada de conteúdos localizados. O processo inclui a importação e exportação de conteúdos localizáveis, manipulação de gráficos, recompilação em um ambiente localizado (no caso de conteúdos binários/executáveis), especificação e conversão da codificação de caracteres, redimensionamento de elementos da interface gráfica com o usuário e assim por diante.

Tal conceito informacional de ‘localização’, evidentemente, constitui apenas uma sombra ou um pálido reflexo do fenômeno segundo o qual o local assume um novo status em virtude da glocalização. É, no máximo, uma localização em sentido fraco, uma adaptação de ofertas globais a demandas locais.

Há, todavia, uma localização em sentido forte e é sobre ela que discorreremos no próximo capítulo.

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Capítulo Três | Localização

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Entendendo a localização

Na última seção do capítulo anterior mencionei que, diante da mudança glocalizante que ora se processa no mundo, o local adquire um novo status, o qual, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de ‘localização’. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos, constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal.

Neste capítulo vou tratar do tema da ‘localização’, tomando essa hipótese no seu sentido forte e não apenas como sinônimo de “nacionalização” (por exemplo, a tradução de softwares) ou “climatização” (por exemplo, a “tropicalização” de carros europeus e americanos para venda e uso no Brasil).

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Ou seja, não vamos tratar da ‘localização’ em seu sentido fraco, como adaptação de ofertas globais de produtos e serviços aos gostos, cultura, condições socio-ambientais e necessidades locais.

Pois bem. Qual é o sentido forte da ‘localização’? Em primeiro lugar devemos ver que ‘localização’ não é apenas um novo termo, uma nova denominação para um antigo fenômeno ou um processo já bem conhecido. É um novo termo que designa um novo conceito, uma nova elaboração intelectual baseada em uma nova hipótese. Qual é essa nova hipótese é o que vamos ver no presente capítulo.

Localização e ‘tamanho do mundo’

O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

A assertiva acima diz que o local é necessariamente o pequeno. Ora, isso parece estar em contradição com o que escrevi há três anos, em “Por que precisamos de desenvolvimento local integrado e sustentável”. Naquela

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ocasião afirmei que “a palavra ‘local’... não é sinônimo de pequeno e não alude necessariamente à diminuição ou redução. O conceito de local adquire, pois, a conotação de alvo socioterritorial das ações e passa, assim, a ser retrodefinido como o âmbito abrangido por um processo de desenvolvimento em curso, em geral quando esse processo é pensado, planejado, promovido ou induzido” (1). Neste sentido, afirmei ainda que “de certa maneira, todo desenvolvimento é local, seja este local um distrito, um município, uma microrregião, uma região de um país, um país, uma região do mundo” (2).

Minha investigação dos últimos anos, entretanto, vem revelando que o local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

Como chegamos a isso? Vou tentar mostrar em seguida, de modo resumido por questões de espaço – o que, freqüentemente, ao invés de simplificar, acaba complicando.

Vimos nas seções anteriores que o processo de glocalização se confunde com com o processo de surgimento da sociedade-rede. A mesma configuração de fatores que permite que distantes localidades se tornem interagentes também possibilita que os elementos endógenos de cada localidade se tornem igualmente interagentes – o que significa que as novas condições sociais que, no plano mundial, possibilitaram que tal configuração tenha se conformado – por exemplo, que permitiram que tecnologias telemáticas tenham se desenvolvido em uma determinada direção (‘molecular’ para além de ‘molar’, para usar as expressões de Levy) –, também podem incidir dentro de cada localidade. É nesse sentido que falo de glocalização como globalização do local.

O mais importante aqui, porém, é o outro lado da moeda, ou seja, é a constatação de que a globalização do local é uma localização do global (como comentaremos mais adiante). Isso

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significa, em primeiro lugar, que a conjunção particular de fatores que possibilita a globalização também possibilita a localização. E, em segundo lugar, que a localização diminui o tamanho do mundo, torna o mundo um local, torna qualquer mundo – qualquer realidade socioterritorial ou virtual, independentemente do número e do tamanho de seus elementos componentes e da distância entre eles – um mundo pequeno. Daí porque local é, nesse sentido, sempre um ‘mundo pequeno’, aquilo que os teóricos que trabalham com análise de redes estão chamado de SWN (“small-world networks”).

Rede e hierarquia

O que caracteriza fundamentalmente uma rede é a existência de caminhos múltiplos. Forçando um pouco a intenção do conceito e estabelecendo um paralelo geométrico, poder-se-ia dizer que, se uma rede é uma coleção de nodos ligados por muitos caminhos (ou um conjunto de vértices interconectados por muitas arestas) uma hierarquia é um caso particular de rede caracterizado pela existência do menor número possível de caminhos (ou uma linha quebrada que, conquanto possa ter múltiplos vértices, nunca chega a formar uma figura geométrica fechada). Neste sentido uma hierarquia “máxima” (ou uma organização com o máximo grau de hierarquização) poderia ser vista como um conjunto de nodos (vértices) conectados por caminhos únicos.

Se existissem apenas dois elementos no mundo, hierarquia seria igual a rede, porque o número de caminhos possíveis entre tais nodos seria o menor número possível de caminhos, ou seja, apenas um caminho pelo qual uma mensagem pudesse se propagar de um nodo ao outro.

Todavia, em um mundo com três ou mais elementos, enquanto que no padrão de organização hierárquico (“máximo”), uma mensagem emitida de um nodo a qualquer outro só pode se propagar através de um mesmo caminho, no

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padrão de organização em rede tal mensagem pode se propagar através de vários caminhos diferentes.

Em um mundo de três elementos (A, B e C), por exemplo, esse padrão hierárquico permite que uma mensagem emitida por A chegue a B (ou a C) somente por um caminho: o caminho AB (ou ABC). Todavia, se estes três elementos estiverem organizados segundo um padrão de rede (com A, B e C figurando como os vértices de um triângulo) podemos ter o dobro de caminhos: AB e ACB (ou AC e ABC). Enquanto que na hierarquia o número máximo de caminhos diferentes possíveis entre todos os nodos é igual a 3 (AB, BC e ABC), na rede o número máximo de caminhos possíveis é igual a 6 (AB, BC, ABC, AC, ACB e CAB).

Em um mundo de quatro elementos (A, B, C e D), o padrão hierárquico (“máximo”) permite que uma mensagem emitida por A chegue a B (ou a C ou a D) somente por um caminho: o caminho AB (ou ABC, ou ABCD). Mas se esses quatro nodos estiverem conectados em um padrão de rede, com o número máximo de conexões possíveis (com A, B, C e D figurando como vértices de um quadrilátero, incluindo as duas conexões diagonais), teremos cinco vezes mais caminhos entre um nodo e qualquer outro: se se trata, por exemplo, de fazer uma mensagem proveniente de A chegar a D, então essa mensagem pode percorrer cinco caminhos diferentes (AD, ABCD, ACBD, ABD e ACD). No primeiro caso, da hierarquia (no grau “máximo” de hierarquização) o número de todos os caminhos possíveis é igual a 6 enquanto que, no segundo caso, da rede, teremos um máximo de 30 caminhos, ou seja, 5 vezes mais.

No caso de uma hierarquia de 4 elementos teremos como caminhos possíveis apenas 6 caminhos: AB, BC, CD, ABC, BCD e ABCD. No caso de uma rede de 4 elementos teremos no máximo: AB, BA, BC, CB, CD, DC, DA, AD, AC, CA, BD, DB, ABC, ABD, ACB, ACD, ADC, ADB, BAD, BAC, BCD, BCA, BDA, BDC, CAB, CAD, CBA, CBD, CDA, CDB, DAB, DAC, DBC, DBA, DCA, DCB, ABCD, ABDC, ACBD, ACDB, ADBC etc. ... até DABC,

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DACB, DBCA, DBAC, DCBA, DCAB – totalizando 60 combinações de 2, 3 e 4 elementos a qual, divida por 2, uma vez que um caminho AB é igual ao caminho BA (ou seja, as conexões são transitivas) dará 30 caminhos diferentes .

Do ponto de vista do padrão de organização, o que chamamos de ‘tamanho do mundo’ é dado não apenas pelo ‘número de elementos’ do mundo ou pela ‘distância’ entre tais elementos, mas pelo ‘número de conexões possíveis’ entre eles. Abstraindo a questão da distância (o que já pode ser resolvido praticamente pela conexão telemática, em tempo real, que significa a mesma coisa que conexão sem-distância), para dois conjuntos com o mesmo número de nodos, podemos ter mundos de tamanhos muito diferentes, se tais nodos estiverem conectados segundo um padrão de rede ou segundo um padrão hierárquico.

No caso do último exemplo acima, a rede com um número máximo de caminhos torna um mundo de 4 elementos (nodos) cinco vezes menor do que a hierarquia (com um número mínimos de caminhos).É fácil mostrar que, no caso de termos cinco nodos, a rede mais tramada possível produz, em relação a hierarquia, um “encurtamento” de 16 vezes no mundo. Em outras palavras, um mundo com 5 elementos conectados segundo um padrão de rede (com o número máximo de conexões) é um mundo com 16 vezes mais caminhos do que a hierarquia (com o número mínimo de conexões, quer dizer, nunca mais do que 2 conexões para um nodo). Enquanto na hierarquia teríamos apenas 10 caminhos entre todos os nodos, na rede teríamos algo como 160 caminhos. E enquanto na hierarquia (“máxima”), uma mensagem emitida de um nodo só dispõe de um mesmo caminho para chegar a outro nodo qualquer, na rede ela possui 16 caminhos diferentes.

No caso de uma rede de 5 nodos (A, B, C, D e E), os caminhos possíveis diferentes entre um nodo e outro nodo qualquer (por exemplo, entre A e E) totalizam 16 possibilidades (AE, ABE, ACE, ADE, ABCE, ABDE, ACBE, ACDE, ADBE, ADCE, ABCDE,

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ABDCE, ACBDE, ACDBE, ADBCE e ADCBE). Isso produz 160 caminhos diferentes entre todos os nodos da rede. Se os 5 nodos estivessem organizados em um padrão hierárquico teríamos apenas um caminho possível entre A e E e apenas 10 caminhos diferentes possíveis entre quaisquer nodos.

Da mesma forma, em um mundo de 6 elementos, enquanto que a hierarquia (“máxima”) estabelece como possíveis apenas 14 caminhos, a rede com número máximo de conexões permite pouco menos de mil caminhos diferentes (precisamente 910, se meus cálculos estiverem corretos). Isso significa que, em um mundo de 6 elementos, se tais elementos estiverem conectados em rede com grau máximo de conexão (cada nodo conectado aos outros cinco) existem 65 caminhos diferentes entre dois nodos, 65 maneiras diferentes de fazer uma mensagem chegar de um nodo a qualquer outro. A rede mais tramada de 6 nodos cria um mundo 65 vezes menor do que a hierarquia de 6 nodos.

Analogamente ao caso anterior, em uma rede de 6 nodos (A, B, C, D, E e F) teremos 65 possibilidades de fazer uma mensagem emitida por um nodo (por exemplo A) chegar a outro nodo qualquer (por exemplo F) – ou seja, teremos 65 combinações de 2, 3, 4, 5 e 6 elementos começando em A e terminando em F – e, assim, teremos 910 caminhos possíveis entre todos os nodos da rede. Se esses 6 elementos estivessem conectados segundo um padrão hierárquico teríamos apenas 1 combinação começando em A e terminando em F e apenas 14 caminhos diferentes possíveis dentro do conjunto.

Tudo isso significa que duas localidades com o mesmo número de habitantes, podem ter tamanhos de mundo completamente diferentes na medida em que a ‘extensão característica de caminho’ (ou seja, o número de “estações” ou intermediações que são necessárias, em média, para fazer uma mensagem chegar de um nodo qualquer a outro qualquer) de cada uma delas for diferente. Uma cidade sumeriana de 2 mil habitantes com toda a certeza seria

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muitas vezes maior do que um subúrbio novaiorquino atual de mesma população.

Ainda não temos uma equação que permita calcular o ‘tamanho do mundo’ do ponto de vista do padrão de organização, mas já podemos prever que o fator ‘conectividade potencial’ nesta equação (ou seja, o número de caminhos possíveis entre os nodos) tem um peso muito maior do que os fatores ‘tamanho dos nodos’, ‘número de nodos’ e ‘distância entre os nodos’ (3).

Assim, pode-se supor que uma cidade sumeriana de 2 mil habitantes (como Uruk, sobretudo a Uruk do início do terceiro milênio, da invenção da escrita, das muralhas colossais e do zigurate dedicado ao supremo AN) seria um mundo muito maior do que, por exemplo, todo o Silicon Valley atual. Por que? Porque (essa) Uruk, do ponto de vista do padrão de organização, era uma cidade-Estado-Templo rigidamente centralizada e verticalizada, onde as pessoas eram separadas por graus de poder e dispostas como os degraus de uma escada (não por acaso os zigurates eram pirâmides feitas de escadas) – ou seja, Uruk era a materialização de uma hierarquia, de uma ordem (arché) sacerdotal (hieros) e também não é por acaso que “sagrado” na língua sumeriana tinha o mesmo sentido de “separado”. Isso significa que o acesso de uma pessoa a outra, era muito mais difícil, em Uruk, do que em Silicon Valley onde, de repente, um pesquisador de uma empresa e o dono de uma outra empresa concorrente almoçam no mesmo restaurante e sentam-se à mesma mesa várias vezes por mês (coisa que não poderia mesmo ocorrer em Uruk, mas que também não ocorre, por exemplo, nos e entre os Keiretsu japoneses atuais). Ou seja, em Silicon Valley existem mais redes sociais do que em Uruk e, assim, o mundo da primeira é muito menor do que o mundo da segunda não obstante o seu território ser muito maior e o seu número de habitantes idem.

Isso significa que, do ponto de vista do padrão de organização, o local não-globalizado pode ser um mundo até

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maior do que o mundial (no sentido de planetário) globalizado. E que globalização do local tende a ser igual a localização do global. O mundo estará totalmente globalizado quando estiver totalmente localizado. E que, assim, o local conectado é o mundo todo. Comentaremos isso tudo mais adiante.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Franco, Augusto (2000). Por quê precisamos de desenvolvimento local integrado e sustentável. Brasília: Instituto de Política, 2000.

(2) Idem.

(3) Vale a pena ler os textos do jovem pesquisador Duncan Watts, sobretudo Small worlds: the dynamics of networks between order and randomness. New Jersey: Princeton University Press, 1999 e Six degrees: the science of a connected age. New York: W. W. Norton & Company, 2003. Cf. Texto 6 e Texto 7.

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Texto 6 | Small-World Networks: transformando o vasto mundo em um mundo pequeno

“Mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1 por cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de caminho serão baixas”.

No capítulo intitulado “Desempenho”, da coletânea editada em 2001 por Andy Oram, “Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto”, Theodore Hong começa contando a famosa experiência de Stanley Milgram para desenvolver considerações sobre as características de mundo pequeno das redes sociais (1). Reproduzo abaixo excertos do trabalho de Hong.

“Em 1967, o professor Stanley Milgram, de Harvard, enviou 160 cartas pelo correio, para um conjunto de pessoas escolhidas aleatoriamente que moravam em Omaha, Nebraska. Pediu a elas que participassem em uma experiência social incomum, na qual tentariam passar essas cartas a uma determinada pessoa-alvo, um corretor de valores que trabalhava em Boston, Massachusetts, utilizando apenas intermediários que se conhecessem pelo nome de batismo. Ou seja, cada pessoa passaria a carta a um amigo que

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julgasse poder levar a carta para mais perto do alvo; o amigo por sua vez a passaria a outro amigo, e assim por diante até que a carta chegasse a alguém que conhecesse o alvo pessoalmente e pudesse entregá-la a ele. Por exemplo, um engenheiro em Omaha, ao receber a carta, a passou a um nativo da Nova Inglaterra que morava em Bellevue, Nebraska, que a passou para um professor de matemática em Littleton, Massachusetts, que a passou a um diretor de escola em um subúrbio de Boston, que a entregou a um lojista local, que a entregou ao bastante surpreso corretor de valores.

Ao todo, 42 cartas chegaram a seu destino, por meio de um número médio de apenas 5,5 intermediários. Esse número surpreendentemente baixo, comparado à população dos Estados Unidos, de 200 milhões, demonstrou concretamente pela primeira vez, aquilo que se tornou popularmente conhecido como small-world effect (efeito de mundo pequeno). Esse fenômeno é conhecido de qualquer um que exclamou “Este mundo é pequeno, não é?!” ao descobrir uma amizade comum partilhada com um estranho.

A experiência de Milgram tinha por finalidade explorar as propriedades de redes sociais: os elos interconectores de amizade entre indivíduos em uma sociedade. Uma das formas pelas quais podemos pensar em redes sociais é utilizando a disciplina matemática da teoria dos grafos. Formalmente, um grafo é definido como sendo e coleção de pontos (chamados vértices) conectados em pares por linhas (chamadas arestas).

Como os grafos se relacionam a redes sociais? Podemos representar uma rede social como grafo criando um vértice para cada indivíduo no grupo e adicionando uma aresta entre dois vértices sempre que os indivíduos correspondentes se conhecerem. Cada vértice terá um número diferente de arestas conectado a ele levando a locais diferentes, dependendo do quão amplo seja o círculo de conhecimentos dessa pessoa. A estrutura resultante é bastante complexa. Por exemplo, um grafo para os Estados Unidos apresentaria mais de 280 milhões de vértices conectados por uma teia

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intrincada de arestas...

Há uma série de perguntas interessantes que podem ser feitas em relação a grafos. Uma pergunta imediata a ser feita é se é ou não conectado. Ou seja, é sempre possível ir de qualquer vértice (ou indivíduo) para qualquer outro ao longo de alguma cadeia de intermediários? Ou há alguns grupos que estão totalmente isolados uns dos outros e que jamais se encontrarão?

Uma propriedade importante a ser observada em relação a essa pergunta é que caminhos em uma rede são transitivos. Isso significa que se houver um caminho do ponto A ao ponto B e também um caminho do ponto B ao ponto C, então deve haver um caminho do ponto A ao ponto C. Esse fato pode parecer demasiadamente óbvio para necessitar de afirmação, mas tem conseqüências mais abrangentes. Suponha que existam dois grupos separados de vértices formando dois subgrafos, cada um conectado em si mesmo, mas desconectado do outro. Então a adição de apenas uma aresta de qualquer vértice em um grupo, a qualquer vértice no outro, fará com que o grafo fique conectado em seu todo. Isso decorre da transitividade... Inversamente, eliminar uma aresta crítica poderá fazer com que o grafo se torne desconectado...

Sendo possível ir de qualquer vértice para qualquer outro por meio de algum caminho, a pergunta seguinte seria quanto à extensão desses caminhos. Uma medida útil a ser considerada é a seguinte: para cada par de vértices no grafo, encontre a extensão do caminho mais curto entre eles; depois, tire a média entre todos os pares. Esse número, que denominaremos extensão característica de caminho do grafo, nos dá uma idéia do quão distanciados são os pontos na rede...

Em redes peer-to-peer descentralizadas, essas duas questões têm significado semelhante. A primeira nos diz quais pares podem se comunicar entre si (por meio de alguma rota de encaminhamento de mensagens); a segunda, quanto esforço

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está envolvido em fazê-lo. Para vermos como podemos lidar com essas questões, vamos retornar à experiência de encaminhamento de cartas em maior profundidade. Então veremos se podemos aplicar quaisquer esclarecimentos à situação peer-to-peer.

O sucesso dos voluntários de Milgram em passar cartas entre os mundos aparentemente díspares do coração de uma região tipicamente rural e da metrópole urbana sugere que a rede social dos Estados Unidos é realmente conectada. Sua extensão característica de caminho corresponde ao número mediano de intermediários necessários para completar uma cadeia, medido em cerca de seis.

Intuitivamente, parece que a extensão de caminho de uma rede de tal porte deveria ser muito maior. Os círculos sociais da maioria das pessoas são altamente exclusivos ou agrupados; ou seja, a maioria das pessoas que você conhece também se conhece. De forma equivalente, muitos dos amigos de seus amigos são pessoas que você já conhece. Assim, empreender quaisquer saltos adicionais pode não aumentar em muito o número de pessoas ao alcance. Parece que um grande número de saltos seria necessário para romper um círculo social, viajar pelo país e alcançar outro, especialmente considerando o tamanho dos Estados Unidos. Como então explicar a medição de Milgram?

A chave para a compreensão do resultado reside na distribuição de vínculos dentro de redes sociais. Em qualquer grupo social, alguns conhecidos serão relativamente isolados e contribuem com poucos novos contatos, enquanto outros serão conexões mais amplas capazes de servir como pontes entre grupamentos sociais mais distantes. Esses vértices de ponte desempenham um papel crítico na aproximação da rede. Na experiência de Milgram, por exemplo, um quarto de todas as cadeias que alcançaram a pessoa-alvo passou por uma só pessoa, um lojista local. A metade das cadeias foi mediada por apenas três pessoas, que coletivamente agiram como pontes entre o alvo e o mundo maior.

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Acontece que a presença de mesmo um pequeno número de pontes pode reduzir drasticamente as extensões de caminhos em um grafo, como mostrado por um trabalho recente de Duncan Watts e Steven Strogatz, na revista Nature (“Collective Dynamics of ‘Small-World’ Networks”, Nature 393, 1998)” (2).

Segundo Hong, os “resultados [da pesquisa de Watts e Strogatz] podem explicar as características de mundo pequeno da rede social dos Estados Unidos. Mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1 por cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de caminho serão baixas. Isso ocorre porque a transitividade faz com que tais indivíduos ajam como atalhos, ligando comunidades inteiras umas às outras. Um atalho não beneficia apenas um único indivíduo, mas também todos os que estão ligados a ele e todos ligados àqueles ligados a ele, e assim por diante. Todos podem beneficiar-se do atalho, em muito encurtando a extensão característica de caminho. Por outro lado, mudar uma conexão local para uma de longo alcance tem apenas um efeito pequeno sobre o coeficiente de agrupamento” (3).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (2001). Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.

(2)-(3) Idem.

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Texto 7 | O recente experimento sobre Small-World de Peter Dodds, Roby Muhamad e Duncan Watts

"Laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social”.

No final de 2002, Peter Sheridan Dodds, Roby Muhamad e Duncan Watts, da Universidade de Colúmbia, apresentaram à revista Science os resultados de um estudo experimental de busca em redes sociais globais. Utilizando programas de e-mail eles, de certo modo, buscaram refazer o trabalho experimental pioneiro realizado por Travers e Milgram no final dos anos 60.

Os resultados da pesquisa são surpreendentes. Duncan e seu colegas encontraram, para o mundo inteiro – e 35 anos depois –, um resultado muito parecido com o de Milgram, que

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focalizou apenas a sociedade americana. Isso sugere que o ‘tamanho de mundo’ do mundo inteiro no final de 2002 é mais ou menos o mesmo do ‘tamanho de mundo’ dos USA em 1967. Mas talvez não seja possível afirmar isso a partir (ou somente a partir) do experimento de Duncan.

Travers e Milgram encontraram, em média, seis graus de separação. Duncan e sua turma, que pareciam já conhecer o resultado antes mesmo do experimento, encontraram cinco a sete graus de separação! Supondo que o ‘tamanho de mundo’ seja função direta do capital social, isso reforça a hipótese (defendida por Robert Putnam e outros) de que a sociedade americana vem perdendo, nos últimos anos, velocidade relativa na produção de capital social; ou, em outras palavras, vem dilapidando aceleradamente o seu estoque de capital social. Se o experimento de Duncan tivesse sido feito, com outros meios não-eletrônicos, no final dos anos 60, provavelmente seria encontrado um grande intervalo entre os valores mundiais e os americanos. Como isso não é possível, restaria a Duncan e sua equipe refazer a experiência para algumas sociedades escolhidas, inclusive a americana.

De qualquer modo, o experimento revelou, entre outros, quatro resultados importantes: a) existe mesmo o efeito ‘Small-World Network’. Esta é a principal conclusão; b) os laços "fracos" são mais relevantes que os "fortes"; ou seja, cooperação social vale mais do que laços de sangue ou parentais (confirmando as hipóteses das teorias do capital social). Como eles próprios escreveram: "laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social"; c) nas palavras dos próprios autores, "a busca social parece ser um exercício geralmente igualitário, cujo sucesso não depende de uma pequena minoria de indivíduos excepcionais"; e d) "um ligeiro incremento de incentivos pode levar as buscas sociais ao sucesso sob diferentes condições". Ou seja, como eles dizem "a rede não é tudo", porém, existindo a rede, basta um peteleco...

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Excertos das conclusões desse novo experimento são reproduzidos abaixo (1).

Um Estudo Experimental de Busca em Redes Sociais Globais

“Relatamos um experimento de busca social global, no qual mais de 60 mil usuários de e-mail tentaram se comunicar com uma de dezoito pessoas-alvo em 13 países, encaminhando mensagens a alguém conhecido. Constatamos que a busca social bem sucedida é realizada, primordialmente, por meio de laços que variam de intermediários a fracos, não requer “hubs” de muitos contatos para obter êxito e, contrariamente à busca social mal sucedida, depende, de forma desproporcional, de relações profissionais. Contabilizando o atrito de correntes de mensagens, estimamos que as buscas sociais podem alcançar seus alvos com um número médio de cinco a sete passos, dependendo da separação entre a fonte e o alvo, embora pequenas variações nos comprimentos das correntes e taxas de participação gerem grandes diferenças na acessibilidade. Concluímos que, embora as redes sociais globais sejam, em princípio, passíveis de busca, o sucesso de fato depende, sensivelmente, de incentivos individuais.

Já se tornou lugar comum a afirmação de que qualquer pessoa no planeta pode chegar a qualquer outra por meio de uma curta corrente de laços sociais. Um trabalho experimental pioneiro realizado por Travers e Milgram, sugeria que o comprimento médio dessas correntes é de mais ou menos seis passos; trabalhos teóricos e empíricos recentes generalizam a alegação de uma vasta gama de redes não-sociais.

Entretanto, muito do que se fala sobre essa hipótese de “mundo pequeno” é mal compreendido e carece de substância empírica. Em particular, em redes sociais reais os indivíduos dispõem apenas de informações limitadas e locais sobre a rede social global e, portanto, encontrar atalhos

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representa um esforço de busca significativo. Ademais, e contrariamente à sabedoria aceita, a evidência experimental no que se refere a comprimentos de correntes globais curtas é extremamente limitada. Por exemplo, Travers e Milgram relatam 96 correntes de mensagens (das quais 18 foram concluídas), iniciadas por indivíduos selecionados aleatoriamente em uma cidade que não a do alvo. Quase todos os demais estudos empíricos de redes de larga escala focalizaram redes não-sociais ou substitutos grosseiros de interação social tal como cooperação científica, e estudos específicos de redes de e-mail têm-se limitado, até o momento, a instituições individuais.

Abordamos essas questões por meio de um experimento de busca social global, baseado na Internet. Os participantes se inscreveram online, tendo-lhes sido atribuída, aleatoriamente, uma das 18 pessoas-alvo em 13 países. Os alvos incluíam um professor de uma renomada universidade norte-americana, um inspetor de arquivos na Estônia, um consultor de tecnologia na Índia, um policial na Austrália, e um veterinário do exército norueguês. Os participantes foram informados de que sua tarefa seria ajudar a retransmitir uma mensagem ao alvo que lhes havia sido atribuído, enviando a mensagem a um contato social que considerassem “mais íntimos” do alvo do que eles próprios. Dos 98.847 indivíduos inscritos, cerca de 25% forneceram informações pessoais e iniciaram correntes de mensagens. Como os remetentes subseqüentes foram efetivamente recrutados por seus próprios conhecidos, a taxa de participação após o primeiro passo subiu para uma média de 37%. Incluindo-se os remetentes iniciais e subseqüentes, foram registrados dados referentes a 61.168 indivíduos em 166 países, que constituíram 24.163 diferentes correntes de mensagens. Mais da metade de todos os participantes viviam na América do Norte e eram de classe média, exerciam uma profissão, tinham grau universitário e eram cristãos, refletindo idéias comumente aceitas sobre a população usuária da Internet.

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Além de fornecer o nome e o endereço de e-mail do contato escolhido, cada remetente foi solicitado a descrever como havia conhecido a pessoa, bem como o tipo e a intensidade do relacionamento mantido com esta...

Ao enviar suas mensagens, os remetentes geralmente recorreram a amizades em detrimento de laços profissionais ou familiares. Entretanto, quase metade dessas amizades foi formada em ambientes de trabalho ou escolares. Ademais, em comparação com correntes interrompidas, as correntes bem sucedidas envolviam, de forma desproporcional, laços profissionais (33,9 versus 13,2%), em detrimento de relacionamentos de amizade ou familiares (59,8 versus 83,4%).

Correntes bem sucedidas também apresentavam maior probabilidade de apresentar laços estabelecidos em ambiente de trabalho ou de educação superior (65,1 versus 39,6%). Os homens transmitiam mensagens mais freqüentemente a outros homens (57%) e as mulheres a outras mulheres (61%), e essa tendência de transmitir mensagens a um contato do mesmo sexo aumentava em cerca de 3% se o alvo fosse do mesmo gênero do remetente e diminuía, na mesma proporção, no caso oposto. Tanto nas correntes bem sucedidas quanto nas mal sucedidas, os indivíduos geralmente usavam laços com conhecidos que consideravam “relativamente íntimos”. Entretanto, nas correntes bem sucedidas, laços “ocasionais” e “não íntimos” foram escolhidos com uma freqüência 15,7 e 5,9% superior àquela registrada nas correntes mal sucedidas, agregando suporte, e alguma resolução, à duradoura asserção de que laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social.

Os remetentes também foram solicitados a indicar o motivo pelo qual consideravam o conhecido escolhido um destinatário adequado. Duas razões – a proximidade geográfica entre o conhecido e o alvo e a semelhança de ocupação – responderam por pelo menos metade de todas as

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escolhas, corroborando constatações anteriores. A geografia dominou, claramente, os estágios iniciais de uma corrente (quando os remetentes estavam geograficamente distantes), mas após o terceiro passo, foi citada com menor freqüência do que outras características, das quais a ocupação foi a mais freqüentemente citada. Em contraste com asserções anteriores, a presença de indivíduos com muitos contatos (“hubs”) parece ter relevância limitada em relação ao tipo de busca social incluído em nosso experimento (busca social com grandes custos/recompensas associados, ou incentivos individuais de outra forma modificados podem se comportar de forma diferente). Os participantes raramente indicaram uma pessoa conhecida pelo fato de esta ter muitos amigos, e os indivíduos de correntes bem sucedidas apresentaram uma probabilidade infinitamente menor de enviar mensagens a “hubs” do que os indivíduos de correntes interrompidas (1.6 versus 8.2%). Também não encontramos evidência de “afunilamento” de mensagens por meio de uma única pessoa conhecida do alvo. No máximo 5% das mensagens passaram por uma única pessoa conhecida do alvo e 95% de todas as correntes foram concluídas por intermédio de indivíduos que transmitiram no máximo três mensagens. Concluímos que a busca social parece ser um exercício geralmente igualitário, cujo sucesso não depende de uma pequena minoria de indivíduos excepcionais.

Embora a taxa média de participação (cerca de 37%) fosse alta em relação àquelas relatadas na maioria das pesquisas baseadas em e-mail, os efeitos combinados do atrito em laços múltiplos resultou em uma atenuação exponencial de correntes como uma função de seu comprimento e, portanto, em uma taxa extremamente baixa de conclusão (384 de 24.163 correntes chegaram aos seus alvos). As correntes podem ter sido rompidas (i) aleatoriamente, devido à apatia do indivíduo ou à sua pouca disposição em participar; (ii) especialmente em comprimentos mais longos de corrente, correspondendo à alegação das correntes “se perder” ou não conseguir chegar aos seus destinatários; ou (iii) especialmente em comprimentos menores de correntes

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porque, por exemplo, os indivíduos mais próximos ao alvo apresentam maior probabilidade de dar continuidade à corrente... [mas] a falta de interesse ou de incentivo, e não a dificuldade, foi a principal razão para a ruptura da corrente...

Em conjunto... [as] evidências sugerem um cenário misto de busca em redes sociais globais. Por um lado, todos os alvos podem, efetivamente, ser alcançados a partir de remetentes iniciais aleatórios em apenas alguns passos, com uma variação surpreendentemente pequena nos alvos em diferentes países e profissões. Por outro lado, pequenas diferenças, quer nas taxas de participação ou nos comprimentos de correntes adjacentes, podem produzir um impacto brutal na aparente acessibilidade de diferentes alvos. O alvo 5 (um professor de uma renomada universidade dos EUA) se sobressai nesse sentido. Como 85% dos remetentes tinham educação universitária e mais da metade eram americanos, os participantes podem ter previsto poucas dificuldades para contatá-lo, o que justifica o fato de que a taxa de atrito de sua corrente (54%) foi bem inferior àquela de qualquer outro alvo (60 a 68%). O alvo 5 alcançou notáveis 44% dentre todas as correntes concluídas. Ainda assim, esse resultado é coerente com o fato de sua “verdadeira” acessibilidade ter sido um pouco diferente da de outros alvos. Seus remetentes talvez estivessem mais confiantes no sucesso.

Nossos resultados, portanto, sugerem que, se os indivíduos que buscam alvos distantes não tiverem incentivos suficientes para prosseguir, a hipótese de “mundo pequeno” não terá sustentação, mas que mesmo um ligeiro incremento de incentivos pode levar as buscas sociais ao sucesso sob diferentes condições. Em termos mais gerais, a abordagem experimental aqui adotada sugere que uma estrutura de rede observada empiricamente somente poderá ser significativamente interpretada à luz das ações, das estratégias e mesmo das percepções dos indivíduos envolvidos na rede: A estrutura da rede sozinha não é tudo”.

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Comparação com o experimento original de Milgram

“O experimento de Travers e Milgram foi realizado no final dos anos 1960, quando o volume de correspondência indesejável era bem inferior ao de hoje. Como resultado, é improvável que a taxa de respostas de Travers e Milgram, de cerca de 75% em cada passo de sua corrente de cartas, pudesse ser reproduzida hoje, quando as taxas de respostas típicas em pesquisas de correspondência não ultrapassam 1 ou 2% (cf. www.surveywriter.com/site/news/Shoestring.htm). Analogamente, a prevalência atual de e-mails indesejáveis (spam) representa um problema substancial para qualquer experimento envolvendo e-mails. Estima-se que, no momento, os e-mails indesejáveis representem 40% de todos os e-mails recebidos (ver http://zdnet.com.com/2100-1106-977809.html, por exemplo). Evidências indicam que filtros automatizados de e-mails indesejáveis bloqueiam os e-mails do experimento, levando indivíduos dispostos a participar do experimento a tomar esses e-mails por correspondência comercial. Entretanto, a taxa média de participação em cada link após o primeiro foi de cerca de 37%, excedendo a taxa típica de resposta em pesquisas de e-mails. Como indicamos no documento, a baixa taxa de conclusão de correntes (0,4%) resulta da atenuação exponencial das correntes de mensagens, uma característica inevitável do protocolo experimental. Para esclarecer esse ponto, considere o efeito do aumento de nossa taxa de resposta por link (37%) em relação àquela obtida por Travers e Milgram (75%): em uma corrente de comprimento 6, a taxa de conclusão de corrente correspondente aumentaria em um fator de aproximadamente 64” (2).

REFERÊNCIAS E NOTAS

(1) Publicado em maio de 2003 (2 December 2002; accepted 23 May 2003 |10.1126/science.1081058)

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(2) Idem. As tabelas, equações, referências e notas originais deste artigo podem ser acessadas em sciencemag no endereço http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/301/5634/

Localização e ‘poder social’

Quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é (small is powerful).

Na seção anterior mostrei que quanto mais conectado é um mundo, quanto mais caminhos existirem entre seus elementos (nodos de uma rede, necessariamente, se o número de conexões ou caminhos entre eles for maior do que 1 e se o número total desses elementos for maior do que 2) menor ele é.

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Agora passo a comentar a proposição segundo a qual quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é (small is powerful).

Vimos que, do ponto de vista do padrão de organização, as hierarquias aumentam o ‘tamanho do mundo’, enquanto que as redes diminuem. Desse ponto de vista, ‘mundo pequeno’ é sinônimo de mundo muito conectado.

Agora vamos ver que quanto mais conectado é o mundo mais potente socialmente ele é. Small is powerful. Se quanto maior a tessitura social, ou seja, quanto mais conexões ou caminhos puderem ser estabelecidos, menor o ‘tamanho do mundo’, então ‘pequeno’, do ponto de vista (e por força) de uma alta “tramatura” do tecido social, é uma força poderosíssima.

Por quê? Porque quanto mais caminhos existirem mais possibilidades existirão de um pequeno estímulo, proveniente de qualquer lugar do mundo, se propagar e se amplificar por “reverberação”, por feedback positivo, i. e., por laços de realimentação de reforço, atingindo o mundo todo. Ora, isso significa, por um lado, que os elementos do mundo (os nodos da rede) terão mais chances de verem suas idéias – ou os seus “memes” – se replicarem; ou seja, eles estarão mais empoderados. Mas significa também, por outro lado, em primeiro lugar, que é o sistema como um todo que empodera seus componentes e, em segundo lugar, que tal sistema funciona como amplificador e macro-processador dos estímulos recebidos/emitidos por seus componentes.

Vamos ver primeiro o primeiro lado da questão. Lanço mão aqui da poderosa metáfora aventada por Richard Dawkins em 1976 (em “O gene egoísta”) e brilhantemente comentada por Daniel Dennett, sobretudo em 1995 (em “A perigosa idéia de Darwin”), como um recurso lateral de argumentação. A idéia de que haveria uma unidade autoreplicadora, análoga ao gene, chamada “meme”, é instigante. Não tenho certeza se seria possível construir uma “teoria memética” com status de teoria científica, como a genética. E também não tenho

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certeza se comprar a idéia de “meme” (ou o “meme” de ‘meme’) implica ter que assumir também a visão neodarwinista, da qual discordo bastante (1). Desconfio que a ideologia que vem junto no pacote (segundo a qual os “memes” se propagariam por “replicação egoista”, disputando o tempo todo entre si pelos cérebros que vão parasitar ou infectar viroticamente) possa ser espancada sem que, com isso, precisemos abrir mão da hipótese de que existem replicadores independentes, ou melhor – a meu ver – inter-dependentes, (“softwares culturais”) capazes de instruir comportamentos (tal como os genes são capazes de instruir a síntese de proteínas).

Ao evocar a idéia de “meme” quero colocar a questão de que cada elemento do mundo (ou nodo da rede) influi no mundo a partir da afirmação da sua própria maneira de ser/estar/receber-processar-devolver estímulos/interagir em suma, e que quanto mais essa maneira puder ser copiada (provavelmente por imitação – e é a isso que se chama, no caso dos “memes”, de replicação) por outros nodos, maior será o poder (como medida da capacidade) desse elemento de influir no comportamento dos outros elementos do mundo.

Essa concepção de ‘poder’ como capacidade de afirmar sua própria forma de ser, ainda que não seja incompatível com uma concepção shimittiana da política e com outros realismos políticos, traz, obviamente, muitos outros problemas ao deslocar o sentido relacional do conceito de poder para identificá-lo com alguma coisa que possa conotar capacidade intrínseca de um sujeito de agir sobre outros, fazendo, por exemplo, como sugerem à primeira vista as teorias dos “memes”, com que suas idéias prevaleçam sobre as idéias dos outros (conquanto nessas teorias o sujeito não tenha necessariamente consciência disso, haja vista que os “memes” seriam autoreplicadores independentes e, assim, eles é que seriam egoístas – e não nós, os humanos, seus hospedeiros). Este, porém, não é o nosso tema agora (2).

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Em todo caso, as teorias de inspiração neodarwinista que admitem a hipótese dos “memes” poderiam talvez ser refeitas a partir da idéia de que essas unidades autoreplicadoras independentes na verdade são unidades replicadoras interdependentes que só se configuram e replicam em um processo de interação com o meio. (Para tanto, valeria a pena confrontar as idéias de Dawkins com as idéias de Maturana) (3).

Dessarte, ninguém é “dono” de uma idéia, mas não porque seja a idéia, autonomizada, que o possui (como querem os adeptos da tese do “virus in the mind”) e sim porque as idéias são geradas em um indivíduo e reproduzidas no meio em um processo de troca permanente entre o indivíduo e o meio (os outros indivíduos). Além disso, nesse processo as idéias (ou os “memes”) se combinam, recombinam e se modificam – como uma tela exposta no hall de um cinema que é pintada por todos os expectadores que entram, cada qual dando apenas umas poucas pinceladas; ou como um texto publicado na Internet para ser re-escrito a muitas mãos – de tal sorte que não é possível identificar exatamente quais foram seus “autores” – nem em que medida o resultado final estava nos “planos originais” (supondo que pudesse haver um ponto de partida, ou seja, uma idéia que não tivesse nascido de combinações de outras idéias).

De um certo ponto de vista, parece que as idéias se polinizam mutuamente. Já de outro ponto de vista, parece que as idéias brotam ou emergem (ou imergem?) em complexos. É por isso que, como dizia Thompson em 1987 (no Prefácio de “Gaia: uma teoria do conhecimento”), “as idéias, da mesma forma que as uvas, crescem em cachos. As pessoas gostam de se agregar pelo simples fato de sentir que, na videira, suas idéias se tornam mais completas e mais enriquecidas” e são, freqüentemente, o resultado do “trabalho de uma comunidade intelectual que reflete as idéias, reuniões, discussões, cartas e comunicações... acontecidas a partir do momento em que cada um de seus membros reconhece que o seu trabalho está

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sendo descrito e desenvolvido não mais individualmente, mas por outros colegas” (4).

De outro ponto de vista, ainda, parece que “as idéias estão no ar”. Alguém as “capta” em certo momento e às vezes várias pessoas “captam” simultaneamente a mesma idéia (por exemplo, Newton e Leibnitz ao conceberem simultaneamente o cálculo infinitesimal). De qualquer modo, esse também não é o nosso tema; não, pelo menos, agora (5).

O que eu quero dizer, em suma, lançando mão de uma comparação extrema, é que um jovem de 16 anos em Durnovaria, na Britânia do ano 480, não tinha a milionésima parte do “poder” que tem um internauta (sobretudo se for um hacker) de mesma idade em Dorchester, na Inglaterra de hoje. Muito além disso, porém, e para não ser tão extremo assim, o que eu quero dizer – bem mais na linha de pensamento de Maturana do que na de Dawkins – é que as idéias (genericamente, os softwares que instruem comportamentos) são blocos que se formam e se reforçam como unidades relativamente autônomas em virtude de circularidades inerentes às conversações predominantes ou recorrentes em um determinado meio e daí conformam um padrão capaz de se propagar como se fosse por si mesmo para outros meios a medida que os indivíduos que o “possuem” (ou são por ele “possuídos”) o replicam sem intenção de fazê-lo, pelo simples fato de serem como são. (Não devemos esquecer aqui, como nos ensinou há décadas Norbert Wiener, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”). E que esse poder (ou essa capacidade de propagação) é tanto maior quanto menor for o mundo no sentido de ser mais tramado.

Comunidades de pensamento são mundos pequenos, quer dizer, mundos com alta “tramatura” social e é por isso que as idéias “crescem em cachos” em tais comunidades e saltam delas para o ambiente exterior com mais facilidade. Comunidades de qualquer natureza (ou mundo pequenos, em geral) são usinas de padrões de comportamento (seqüências

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“meméticas” que se replicam e que – aqui está a “x” da questão em termos de um paralelo com as teorias evolutivas neodarwinistas – ao se replicarem podem se modificar) (6). Um comportamento assim “usinado” tem alto poder de replicação.

Pois bem. O que tudo isso tem a ver com a nossa hipótese, segundo a qual quanto mais conectado (quanto mais small no sentido dos ‘small-worlds’) é o mundo, mais potente socialmente ele é (small is powerful)?

Para dar uma resposta a essa pergunta temos que definir o que entendemos por “potente socialmente”, um “poder” que nasce da configuração particular de um sistema social. Não se trata do poder de um sistema de obrigar ou compelir outros sistemas a adotarem comportamentos, desejáveis pelo primeiro e contra a vontade dos segundos, em virtude da sua capacidade de destruí-los ou de prejudicá-los de alguma forma – em geral pelo uso da força ou pela ameaça explicita do uso da força ou pela ameaça implícita, como dissuasão exercida sobre os segundos (que evita comportamentos indesejáveis ao primeiro) baseada em demonstrações específicas ou genéricas de força. Esse, em geral, é o poder, regido ou não por lei, dos Estados e de outras organizações piramidais e internamente autocráticas (como corporações e sociedades privadas de diferentes naturezas, compreendendo até organizações criminosas como a Máfia). Poder-se-ia dizer que, ao contrário, o “poder social” é um poder de induzir comportamentos coletivos em virtude da capacidade de exportar padrões de comportamento que são adotados por imitação e sem violência, o que parece óbvio. Trata-se portanto, como sugeriu o próprio Dawkins em 1986 (em “O relojoeiro cego”), de um “poder replicador” – mas sinto que ainda não é bem isso (7).

Pegando agora o segundo lado da questão vamos ver que, em primeiro lugar, é o sistema como um todo que confere esse tipo de poder aos seus componentes – e isso está longe de ser trivial face às concepções correntes: examine-se, por

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exemplo, um pressuposto (talvez o principal) da ideologia chamada de ciência econômica, segundo o qual o comportamento das sociedades pode ser explicado a partir do comportamento dos indivíduos, sendo esse último comportamento basicamente egoísta e que tudo o mais decorre daí, inclusive a separação entre fortes e fracos que está na raiz do poder político; e, em segundo lugar, que tal sistema funciona como amplificador dos estímulos recebidos/emitidos por seus componentes, vale dizer, como uma espécie de processador capaz de realizar múltiplas operações em paralelo simultaneamente por meio de seus componentes.

Talvez esteja aqui pelo menos uma parte da explicação para os processos de inteligência coletiva. Como percebeu Joël de Rosnay em 1995 (em “O homem simbiótico”) “um dos pontos fundamentais da ação em rede... [é que] milhares de agentes atuando em paralelo, a partir de regras simples, podem resolver coletivamente problemas complexos... [e que] enquanto as grandes manifestações públicas mostram que as multidões estão longe de dar prova de uma inteligência significativa, determinados sistemas adaptados de retroação societal podem fazer emergir uma inteligência coletiva superior à dos indivíduos isolados”. Mas esse, conquanto apaixonante, ainda não é o nosso tema no momento (8).

Vimos até agora que dizer que small is powerful significa dizer que o mundo pequeno (no sentido de muito tramado socialmente) é mais empoderante de seus componentes do que o mundo grande e que ele tem mais capacidade de usinar softwares que instruem a construção de comportamentos e de replicar tais programas. Porém, muito além disso tudo, significa dizer que uma mudança de comportamento, mesmo periférica, ensaiada no mundo pequeno, tem mais chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o comportamento dos outros agentes que o compõem. Ou seja, mundos pequenos são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos grandes.

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Ora, se interpretarmos (pelo menos algum tipo ou classe de) mudança social como desenvolvimento, então mundos pequenos são mundos mais aptos a experimentarem (isso que interpretamos como) desenvolvimento do que mundos grandes. Esse tema é extremamente importante e voltaremos a ele mais adiante. Por enquanto é bom dizer que “poder social”, nesse particular sentido, pode ser encarado como capacidade de desenvolvimento – entendido esse último não como qualquer crescimento (e. g., da variável econômica – o PIB –, ou de outra variável qualquer: humana, social, ambiental etc.), mas como movimento sinérgico; em suma, como o que se chama, um pouco redundantemente, de ‘desenvolvimento sustentável’ (e entendendo sustentabilidade como função de integração e conservação da adaptação). Temos assim uma concepção de “poder social” como capacidade de mudança social sustentável, como “aptidão” ou adaptabilidade de um sistema para realizar uma coreografia estrutural que garanta a sua co-evolução com o meio, como vocação para a sinergia, para construir e reconstruir, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio... Isso tudo também é muito apaixonante, mas por ora vamos ficar por aqui, uma vez que o assunto será tratado no epílogo deste livro.

Quando tornamos pequeno um mundo pela localização aumentamos o seu “poder social”. É como se concentrássemos esse poder, incrementando o valor de variáveis como freqüência ou velocidade de processamento, possibilitando mais feedbacks, mais laços de retroalimentação capazes de amplificar estímulos, por pequenos que sejam. Um mundo localizado é um mundo onde ocorreu uma espécie de big crunch social que (ao contrário do modelo do big bang cosmogônico), diminuiu drasticamente as distâncias!

Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no “meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia, por exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido de que aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais condutor,

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mais favorável à replicação – a medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu tamanho diminui. É possível que a partir de certo grau de tessitura (ou de certo tamanho de mundo) surja o que chamamos de comunidade. Altos graus de tessitura podem possibilitar a ocorrência de um fenômeno novo, que chamei, em outro lugar, de comunalidade (9).

Para que isso aconteça, como parece óbvio, é necessário que os sistemas em questão estejam afastados do estado de equilíbrio (senão não poderão mutar), mas é necessário também que sejam sistemas estáveis. Sistemas conformados, por exemplo, por pessoas em filas de ônibus, não terão a permanência necessária para gerar uma dinâmica própria capaz de empoderar seus elementos e processar coletivamente seus impulsos usinando programas replicadores (ou seja, unidades culturais imitáveis).

Mas aqui já entramos em outra proposição, segundo a qual localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) O problema com o neodarwinismo é o darwinismo: diga-se o que se quiser dizer, um “meme” terrivelmente competitivo, quem sabe – como suponho – por ter olhado para a natureza com os óculos fabricados pela competição “selvagem” do capitalismo inglês do século 19 (a “selva”, aqui, era mais a “praça do mercado” do que as estepes e as florestas, enfim o habitát natural das espécies vivas). Com efeito, tentei mostrar em outro lugar que esse padrão de competição parece ter saído da sociedade para a natureza e não o contrário (cf. Capital Social. Brasília: Instituto de Política, 2001). Um bom antídoto contra a impregnação pela ideologia competitiva (ou uma “vacina” contra esse poderoso “vírus-meme” que, ironicamente, talvez pudesse ser chamado de ‘padrão competitivo a priori’) pode ser encontrado em Humberto Maturana e Lynn Margulis (para quem “a vida se apossa do globo não pelo combate e sim pela formação de redes”).

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(2) Os interessados na extensa literatura sobre “memes”, devem ler Richard Dawkins (“O gene esgoísta”, 1976; “The extended phenotype”, 1982; “O relojoeiro cego”, 1986; e “Desvendando o arco-íris”, 1998), Daniel Dennett (op. cit., 1995; e também “Consciousness explained”, 1991), Richard Brodie (“Virus in the mind”, 1995) e Susan Blackmore (“The meme machine”, 2000). Mas existem vários outros investigadores interessantes. Vale a pena visitar o sites http://users.lycaeum.org/~sputnik/Memetics/index.html que contém uma boa lista intitulada “Memetics Publications on the Web” e o site http://jom-emit.cfpm.org/biblio que contém “A Bibliography of Memetics” atualizada porém até 1997).

(3) O próprio Dawkins admite como possível “um modelo “simbiótico” em vez de virulentamente parasita”. Em “Desvendando o arco-íris” (1998) ele cita o trabalho de Terrence W. Deacon (1997) “que faz uma abordagem da linguagem à luz dos memes... traçando a comparação com as mitocôndrias e outras bactérias simbióticas nas células. As línguas evoluem para se tornar boas em infectar os cérebros das crianças. Mas os cérebros das crianças, essas lagartas mentais, também evoluem para se tornar bons em serem infectados pela língua: coevolução mais uma vez”. Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Cf. ainda Deacon, Terrence W. (1997). The symbolic species: the co-evolution of language and the brain. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

(4) Thompson, William Irwin (org.) (1987). “Prefácio” in Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo, Gaia/Global, 1990.

(5) Os “memes” como novos tipos de replicadores (para além dos genes) podem ser encarados como idéias, mas apenas grosso modo. Eles não são – como afirma Dennett (1995) – “as ‘idéias simples’ de Locke e Hume (a idéia de vermelho, ou a idéia de redondo, quente ou frio), mas o tipo de idéias complexas que se reúnem em unidades memoráveis distintas... unidades culturais mais ou menos identificáveis... [e essas unidades de transmissão cultural ou unidades de imitação] são os menores elementos que se replicam com confiabilidade e fecundidade”. Cf. Dennett, Daniel C. (1995). A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

(6) Em “Memes, mentes e egos”, Susan Blackmore (1996) relembra que Dawkins “sugeriu que toda vida em toda parte do universo deve desenvolver-se pela sobrevivência diferenciada de entidades auto-replicadoras levemente imprecisas” (cf. http://www.memes.org.uk/lectures/mms.html#Minds-Memes-and-Selves). Daniel Dennett (1995) afirma que, “as linhas gerais da teoria da

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evolução pela seleção natural deixam claro que ela ocorre sempre que existem as seguintes condições: i) variação: há uma contínua abundância de elementos diferentes; ii) hereditariedade ou replicação: os elementos têm a capacidade de criar cópias ou réplicas de si mesmos; e iii) “aptidão” diferenciada: o número de cópias de um elemento que são criadas em um determinado tempo varia dependendo das interações entre as características desse elemento e as do ambiente em que ele subsiste. Observe que essa definição, embora baseada na biologia, não diz nada específico sobre as moléculas orgânicas, a nutrição ou mesmo a vida... Como Dawkins observou, o princípio fundamental é ‘que toda vida evolui pela sobrevivência diferenciada de entidades replicadoras...’ [Dawkins, 1976]” (op. cit.). Cf. Dawkins, Richard (1976). O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.

(7) Em “O relojoeiro cego” (1986), Richard Dawkins explica que “os replicadores de DNA construíram “máquinas de sobrevivência” para si mesmos – os corpos dos organismos vivos, incluindo nós mesmos. Como parte do seu equipamento, os corpos desenvolveram um computador de bordo – o cérebro. O cérebro desenvolveu a capacidade de se comunicar com outros cérebros por meio da língua e das tradições culturais. Mas o novo meio de tradição cultural abre novas possibilidades às entidades auto-replicadoras. Os novos replicadores não são DNA e não são cristais de argila. São padrões de informação, que apenas prosperam no cérebro ou em produtos fabricados artificialmente pelo cérebro – livros, computadores, etc. Mas dado que o cérebro, os livros e os computadores existem, estes novos replicadores, a que atribuí a designação de memes para os distinguir dos genes, podem propagar-se de cérebro para cérebro, de cérebro para livro, de livro para cérebro, de cérebro para computador, de computador para cérebro. À medida que se propagam podem modificar-se – mutam. E talvez os memes “mutantes” possam exercer os tipos de influência que aqui designei por “poder replicador”. Não esquecer que este se refere a qualquer tipo de influência que afete a probabilidade de propagação própria. A evolução sujeita à influência dos novos replicadores – evolução memica – está ainda na infância... [mas] está se iniciando...”. O neodarwinista Dawkins não resiste à tentação de usar um padrão competitivo para explicar o fenômeno da chamada evolução cultural. “A evolução cultural – diz ele – processa-se a uma velocidade de uma ordem de grandeza muito superior à da evolução fundada no DNA, o que nos faz pensar ainda mais na idéia de “tomada do poder”... E se um novo tipo de tomada do poder replicadora está se iniciando, é concebível que parta para tão longe que deixará muito para trás o DNA seu progenitor... Se assim for, podemos estar certos de que os computadores estarão na vanguarda”. Doze anos depois (em “Desvendando o arco-íris”, 1998), Richard Dawkins iria retomar a comparação evocada pelo computador ao supor que “os genes constroem o hardware. Os memes são o software. A coevolução é

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que pode ter impulsionado a inflação do cérebro humano”. Ele estava procurando “inovações de software [como a linguagem] que poderiam ter iniciado uma espiral auto-alimentadora de coevolução software/hardware para explicar a inflação do cérebro humano”. Isso significa admitir que os “memes” (os softwares) podem ser capazes de produzir modificações neuroestruturais; ou – como aventou Dennett em 1991 – que “a própria mente humana é um artefato criado quando os memes reestruturam um cérebro humano para torná-lo um melhor hábitat para os memes”. Cf. Dawkins, Richard (1986). O relojoeiro cego. Lisboa: Edições 70, 1988.

(8) Ver o Capítulo 5 do livro de Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997 – sobretudo a seção “Democracia participativa e retroação societal” –; os livros de Pierre Levy (em particular “A inteligência coletiva” de 1994; op. cit.) e a literatura mais recente sobre ciberpolítica e democracia digital. Por exemplo, “Cyberdemocracy: technology, cities and civic networks” editado por Rosa Tsagarousianou et al. (London: Routledge, 1998); “Cyberpolitics: citizen activism in the age of the Internet” de Kevin Hill & John Hughes (Maryland: Rowman & Littlefield, 1998); “Digital democracy: discourse and decision making in the information age” editado por Barry Hague & Brian Loader (London: Routledge, 1999); e “Democracy in the digital age: chalenges to political life in cyberespace” de Anthony Wilhelm (New York: Routledge, 2000), entre outros.

(9) Em Capital social: leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy. Brasília: Instituto de Política, 2001.

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Localização e geração de identidade

Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

O que caracteriza um local é, fundamentalmente, a sua identidade, a sua maneira de ser (o seu “way of life”, poderíamos dizer, alargando bastante a extensão do conceito designado por tal expressão).

Para caracterizar um local, as configurações particulares que o identificam devem ser estáveis, ou seja, devem ter a durabilidade necessária para gerar um padrão capaz de replicar.

Coletividades eventuais não são capazes de gerar um padrão durável. Padrões que se conformam eventualmente também

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se desfazem eventualmente. Comportamentos coletivos particulares gerados em filas, aglomerados ocasionais, manifestações de massa, platéias de shows e multidões em geral, dificilmente se propagam para outras regiões do tempo, isto é, não inventam tradições nem se transmitem como cultura.

Coletivos estáveis, todavia, geram padrões capazes de se reproduzir. Em outras palavras, constroem unidades culturais imitáveis, softwares capazes de “rodar” em outros coletivos; ou, se quisermos lançar mão da metáfora de Dawkins (comentada na seção anterior), criam “memes” – replicadores que instruem a construção de comportamentos (em analogia com os genes, que instruem a síntese de proteínas). Isso ocorre na medida em que certas dinâmicas endógenas se conservam por repetição. Quer dizer, para usinar um replicador é necessário dispor de “laboratórios” ou “incubadoras” sociais nos quais possa ocorrer o processo de gestação de padrões seminais de comportamento. Tal processo ocorre quando certas operações são recorrentes, sobretudo quando se instalam redes de conversações que possuem circularidades inerentes.

Geração por repetição e replicação por imitação: essas são condições para afirmar uma identidade local, sem o quê se desconstitui o próprio conceito de local. Cada local é único porquanto possui uma identidade própria. Se os locais pudessem ser iguais não faria sentido o conceito de local. Ademais, cada local existe na medida em que é percebido como tal, tanto pelos seus integrantes quanto pelos que a ele não pertencem (ou não reivindicam pertencer).

Dessarte, um local só se define completamente pela sua relação com o entorno (o que é sempre um nexo com o global), pela sua maneira de interagir com esse entorno e pela sua capacidade de fazer com que esse entorno o reconheça como “um” local – determinado e diferenciado. Em termos de desenvolvimento (ou de caminho em direção a um futuro desejável por uma coletividade humana estável), afirmar uma

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identidade local é, ao mesmo tempo, gerar um modo-de-ser e exportar esse modo-de-ser, induzindo o entorno a copiar esse modo (ou características “meméticas” que o instruem).

Quando nos interessamos pelo processo de desenvolvimento ocorrido na Emília Romagna, na verdade estamos sendo induzidos a copiar segmentos replicáveis do seu “DNA memético”. Olhamos Bologna como um local, ou seja, como um campo configurado com um grau de estabilidade que permitiu a conservação de uma dinâmica endógena particular e procuramos então identificar quais os componentes dessa dinâmica (os seus elementos e as relações entre eles) que permitiram a produção desse ou daquele resultado desejável. Queremos descobrir os comportamentos sociais que possibilitaram a produção desses resultados. E queremos ver se é possível – abstraindo condições circunstanciais peculiares, como, por exemplo, a história e a geografia daquela região italiana – reproduzir tais comportamentos em outras circunstâncias. Não queremos copiar a experiência em si, porque sabemos que isso não é possível. Queremos copiar elementos do seu “DNA memético”, isto é, queremos importar aquela tecnologia empacotável para viajar, queremos os softwares para colocá-los para rodar em outros hardwares.

Evidentemente só podemos capturar aquelas unidades culturais que sejam imitáveis, os programas que estiverem “prontos”, os padrões de comportamento que foram gerados socialmente e autonomizados pela repetição a tal ponto que conseguem se reproduzir por si mesmos ou como se fosse por si mesmos (e é isso que significa estar “pronto para rodar”).

Tais programas existem em qualquer local que é tratado, no âmbito global, como “um” local, quer dizer, uma unidade divisável. No nosso exemplo, em Bologna, eles existem com alto grau de desenvolvimento. Se não existissem, nesse alto grau, Bologna não seria um local com tanta visibilidade (ou divisabilidade).

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Pois bem. O grau de desenvolvimento desses programas é a mesma coisa que o grau de desenvolvimento da sociedade que os gerou.A afirmativa acima lança nova luz para a compreensão do processo de desenvolvimento. Dela (aliada a outras premissas) podemos inferir pelo menos três conseqüências importantes que redefinem o próprio conceito de desenvolvimento: i) todo desenvolvimento é social; ii) todo desenvolvimento é local; e iii) todo desenvolvimento local só se define completamente pelas suas conexões com o global. Mas, como o assunto será tratado no epílogo deste livro, não vamos enfrentar agora o desafio de construir argumentações para tentar justificá-las (nem enunciar as outras premissas que seriam necessárias para uma exposição lógica desses teoremas).

Existem aqui, além disso, outros problemas mais complicados para resolver. Não copiamos somente aquilo que desejamos. Freqüentemente, aliás, copiamos padrões de comportamento que não desejamos. Padrões que impedem o desenvolvimento (social) vêm se replicando há milênios por si próprios (ou como se assim fosse, quer dizer, uma vez usinados eles ganharam algum tipo de autonomia e se transmitiram). O cetro, a coroa, o bastão e a espada, constituem exemplos de símbolos de padrões que se replicam há pelo menos seis milênios e que comparecem, por incrível que pareça, na maioria das atuais projeções futurísticas contidas nos romances e nos filmes de ficção ambientados em milênios vindouros...

Mas voltando ao nosso ponto no momento, é possível mostrar que – do ponto de vista do desenvolvimento (humano, social e sustentável) – quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar padrões capazes de se replicar. Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem comunitária estará em andamento. Com efeito, comunidades

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– definidas como coletivos de interdependência – são, por excelência, as usinas de tais padrões.

O processo de localização

A localização é um processo. Todavia, o que constitui tal processo? Afirmei que a localização é, fundamentalmente, um processo de geração de identidade e de replicação de características próprias dessa identidade gerada. E afirmei também que quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar padrões capazes de se replicar.

Como estamos falando aqui da geração de replicadores é quase impossível – conhecendo a hipótese dos “memes” – deixar de estabelecer uma comparação com a dinâmica de replicação genética.

Embora afirmando que tratava-se de um recurso lateral de argumentação, lancei mão da metáfora de Dawkins – o “meme” – aventada há quase 30 anos por analogia com o “gene”. Este último estaria para a síntese de proteínas assim como o primeiro estaria para a construção de comportamentos. Tanto genes quanto “memes” seriam replicadores: enquanto os primeiros seriam copiados, grosso modo, por células, os “memes” seriam copiados por cérebros.

Utilizei a metáfora de Dawkins, do “meme” como uma espécie de replicador análogo ao gene, para tentar modelar o processo de transmissão cultural. Supus que seria possível fazer isso sem importar a visão neodarwinista (e determinista em termos genéticos) que compareceu na origem mesma da “teoria do meme”.

Todavia, isso não é tão simples assim.

A metáfora do “meme” é, sem dúvida, muito interessante. Mas ela tem alguns problemas graves. Em primeiro lugar ela se baseia em alguns pressupostos de “comportamento” do

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gene que parecem não corresponder ao que realmente se passa na reprodução e na evolução biológicas de um ponto de vista sistêmico.

Em segundo lugar ela vem acompanhada por uma concepção (neodarwinista) segundo a qual o DNA seria uma molécula intrinsecamente estável sujeita a mutações aleatórias ocasionais (1).

Em terceiro lugar, como assinala Strohman (1997), “a extensão ilegítima de um paradigma genético – que passa do nível relativamente simples da codificação e decodificação genética para o nível complexo do comportamento celular – representa um erro espistemológico de primeira ordem” (2). Ou seja, Richard Strohman adverte que há aqui uma confusão de níveis que “não dá certo”. Uma teoria que funcionava bem para explicar o código genético acabou se transformando em uma teoria geral da vida, atribuindo aos genes o papel de agentes causais de todos os fenômenos biológicos. Isso é o que se chama determinismo genético.

Ora, os problemas de concepção do papel do gene são também problemas de concepção do papel do hipotético “meme”. A analogia com o gene, que gerou o conceito de “meme”, promove uma importação desses problemas.

A concepção do determinismo genético, do DNA como uma espécie de programa autônomo (por analogia aos programas de computadores), acabou contaminando a concepção do “meme”, como se este fosse também um programa autônomo (e podemos comprovar isso facilmente lendo, por exemplo, as considerações de Dawkins, em 1998, em “Desvendando o Arco-Íris”) (3).

Qual é o problema aqui? O problema é que, no caso dos genes, ao que tudo indica, o “programa” não pode ser tão autônomo assim, uma vez que ele não está arquivado propriamente no genoma e sim em uma rede celular (que envolve muitos outros nodos além dos genes: proteínas,

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hormônios, enzimas e complexos moleculares), que compõe o ambiente no qual o genoma pode existir enquanto tal. No caso dos “memes”, os programas, correspondentemente, também não estão em uma espécie de “diretório memético” de arquivos (o “caldo” ou “fundo” de “memes” ou a “memesfera” aventados por Dawkins, Dennett, Blackmore e outros) – nem em algo do tipo de The Matrix (do filme dos irmãos Wachowski) – e sim em uma rede social que regula a produção e a reprodução de comportamentos.

Assim como a rede celular é um sistema complexo, com múltiplos laços de realimentação, fazendo com que os padrões de atividade genética mudem continuamente com a mudança das circunstâncias, para manter o tempo todo uma congruência dinâmica com o meio (sem o que não poderia haver isso que chamamos de vida), a rede social também é um sistema complexo e, como tal, apresenta características semelhantes; ou seja, os padrões de comportamento também surgem e se modificam na interação com o meio (sem o que não poderia haver isso que chamamos de cultura). Dessarte, a forma e o comportamento culturais manifestam-se como propriedades que emergem da dinâmica complexa das redes sociais e não pela alteração casual de “memes” que conseguiram vencer algum tipo de competição pelos cérebros que vão parasitar (e que foram copiados de forma levemente alterada pelos cérebros infectados).

Todavia, apesar disso tudo, de todos esses problemas apontados acima, continuo achando que é útil considerar a hipótese do “meme” e quero tentar dizer por quê.

O problema não me parece ser propriamente o “meme” e sim algo que possa sugerir um determinismo memético (tal como o problema não é o gene e sim o determinismo genético). Assim como a focalização exclusiva no gene embaça a visão do organismo como um todo, uma focalização excessiva no “meme” dificulta que se veja os fenômenos que ocorrem no campo de interação que chamamos de sociedade.

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Mas, tal como deve existir alguma coisa como o gene – independentemente do papel mais ou menos autônomo, mais ou menos abrangente e mais ou menos determinante que queremos atribuir a isso que conotamos com o conceito de ‘gene’ –, tudo indica que deve existir também alguma coisa como o “meme” como um replicador de idéias e comportamentos.

A questão é: precisamos ou não precisamos da hipótese do “meme”? E para quê?

Creio que precisamos de alguma coisa pelo menos parecida com o conceito de ‘meme’, para explicar porque certos padrões de comportamento se replicam para outras regiões do tempo (ou o que se chama de tradição), para explicar a transmissão não-genética de comportamentos (ou o que se chama de cultura), para explicar, em suma, por quê o general chinês do que seria o exército do povo se comporta de maneira tão semelhante ao general do exército norte-americano e por quê o militar espartano materializava – no seu comportamento cotidiano – valores tão parecidos com os do militar inglês do século 19, dois mil e trezentos anos depois!

Parece que certos padrões acabam constituindo um sistema fechado em termos de informação e são transmitidos como mensagens, conservando de tal modo elementos do seu código básico que permitem a sua identificação. Assim, freqüentemente (em uma freqüência acima da coincidência estatística), somos capazes de identificar, por exemplo, um sacerdote católico ou um militante de certo tipo de organização mesmo que eles façam um esforço para esconder suas identidades. Por quê?

Ademais, parecem existir padrões seminais que se replicam a partir de códigos congelados e não-explícitos. Idéias que vicejam a partir de simples frases ou imagens, gerando às vezes padrões tão complexos como instituições. Isso talvez constitua o início de uma explicação para o fato, ainda

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misterioso, de determinadas instituições de uma civilização terem sido replicadas em outras civilizações (coetâneas ou posteriores) que não mantiveram um intercâmbio tão intenso ou uma herança tão forte assim que justificasse a fidelidade das cópias (4).

Uma coisa parece certa: padrões de comportamento coletivos (ou replicáveis por coletivos) são gerados por coletivos. Afirmei na seção anterior que os coletivos que têm mais chances de gerar padrões replicáveis são comunidades, ou seja, mundos pequenos que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social. Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem comunitária estará em andamento.

Mas é preciso ver que comunidades em um mundo globalizado não têm quase nada a ver com as comunidades tradicionais que conhecemos em um mundo cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços de interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-elementos, comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo novos comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários podem se espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo a medida que podem ser amplificados por laços de realimentação de reforço de sorte a modificar o comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-los a realizar cópias dos “programas” gerados.

Em suma, o que chamamos de localização é realmente um processo. Uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento, mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

Esse processo, como qualquer processo, leva um tempo. Depende do arranjo social que se conforma particularmente sobre um território (físico ou virtual). E depende, em última instância, das pessoas – conquanto tal arranjo social nunca

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possa ser reduzido às pessoas que o compõem, quer dizer, suas características de conjunto não podem ser obtidas a partir da simples conjunção das características individuais dos seus elementos.

Quem localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse construindo um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira particular em um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim, criado pelo desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem “cheiro” e tem um conjunto de outras características que lhe são atribuídas pelos que nele (com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o constituem e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma porção do planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza um acidente geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

É por isso que localizar não é encontrar um local, é criar um local. Mas esse já é o tema da próxima seção.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Quem quiser conhecer uma perspectiva não darwinista, não neo-darwinista e não determinista em termos genéticos deve ler, fundamentalmente, os livros de Lynn Margulis e Humberto Maturana. E também: Ho, Mae-Wan e P. T. Saunders, orgs. (1984). Beyond darwinism: introduction to the new evolutionary paradigm. London: Academic Press; Ho, Mae-Wan e S. W. Fox, orgs. (1988). Evolutionary processes and mataphors. London: Wiley; Ho, Mae-Wan (1998). Genetic engineering: dream or nightmare? Bath: Gateway Books; Strohman, Richard (mar., 1997). “The Coming Kuhnian Revolution in Biology”, Nature Biotechnology, vol. 15 e, sobretudo o mais recente Keller, Evelyn Fox (2000). The century of the gene. Cambridge, Mass.:Harvard University Press. Para uma abordagem simplificada de divulgação, pode-se ler ainda: Harman, Willis e Sahtouris, Elisabet (1998). Biologia revisada. São Paulo: Cultrix:, 2003; e Capra, Fritjof (2002). As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002 (em especial o capítulo seis).

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(2) Strohman; op. cit.

(3) Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

(4) A acreditar no que diz o erudito Samuel Noah Kramer (por exemplo, em History Begins at Sumer. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981) parece incrível que há 6 mil anos, na antiga Mesopotâmia, já haviam se esboçado os protótipos de boa parte das instituições religiosas e laicas do chamado mundo civilizado posterior: o panteão de doze seres divinos (que depois foi replicado por praticamente todas as culturas subseqüentes), templos e sacerdotes, a monarquia, exércitos, artes da guerra e armamentos, escolas e parlamentos, justiça e tribunais, música e artes, construção, entalhação em madeira e gravação de metais, uso do couro e tecelagem, escrita e matemática e muitas outras coisas, totalizando mais de uma centena de “programas” (chamados de “ME”, espécies de “fórmulas divinas”). O mais incrível é que esses misteriosos “ME” eram conhecimentos armazenáveis. As várias versões da autêntica narrativa suméria “Enki e Inanna” sugerem, curiosamente, que os “ME” podiam ser transportados, ou seja, eram objetos físicos, como se fossem disquetes. Segundo a assirióloga Gwendolyn Leick (2001), em Mesopotâmia: a invenção da cidade (Rio de Janeiro: Imago, 2003), “ME” é um “termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de comportamento social, emoções e símbolos... que, em sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular do mundo”.

Localização e transformação de utopia em topia

Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

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Comentando o processo de localização afirmei, na seção anterior, que quem localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse construindo um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira particular em um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim, criado pelo desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem “cheiro” e tem um conjunto de outras características que lhe são atribuídas pelos que nele (com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o constituem e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma porção do planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza um acidente geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

Dando continuidade a essa reflexão vamos comentar agora mais uma hipótese (do elenco original de proposições sobre a localização em seu sentido “forte”) segundo a qual ‘localizar não é encontrar um local, é criar um local’.

Com efeito, quando localizamos uma cidade em um mapa estamos fazendo o quê? Na verdade estamos apenas fornecendo referências geográficas que pouco ou nada informam sobre as características distintivas daquela localidade. Este tipo de “localização” nada nos diz sobre como são as pessoas que vivem ali, o que elas gostam de fazer, quais são suas necessidades e suas potencialidades, que vocação escolheram, que caminhos tomaram – caminhos que só elas mesmas poderiam abrir, da sua maneira – para afirmar no mundo uma identidade própria.

Evidentemente o olhar que revela essas coisas é lançado de um certo ponto de vista – o ponto de vista do desenvolvimento humano e social sustentável, que adotamos aqui.

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Desse ponto de vista, pode-se afirmar que só existe localização se existir perspectiva de futuro para uma (e compartilhada por uma) coletividade. E se, além disso, essa perspectiva puder ser antecipada no presente. O que chamamos de desenvolvimento é o caminho em direção ao futuro desejado; ou melhor, é a caminhada coletiva a partir do presente que vai construindo tal caminho.

Assim como profetizar (para os hebreus do Norte da Palestina por volta do setecentos a. C.) não era adivinhar o futuro mas inventá-lo, localizar não é encontrar um local, é criar um local. A comparação com a profecia – quer dizer, com a utopia – não é fortuita. Localizar é transformar uma utopia (u-topos = não-lugar, uma realidade almejada, projetada no futuro) em uma topia (um lugar concreto, uma realidade localizada e presentificada, aqui-e-agora).

Isso significa que o local não é um dado, é uma construção. Não é um ponto de partida e sim um “ponto de chegada”. Em outras palavras, o local é definido no final. Só no final ele se desenha e se recorta... e mesmo assim nunca completamente (ver Texto 8).

O início da localização é sempre um coletivo humano estável. Mas o “ponto de chegada” depende do que esse coletivo humano estável for capaz de gerar.

Pois bem. Vimos nas seções anteriores que a localização é um processo. E que uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento, mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena para que as inovações que chamamos de desenvolvimento possam aparecer. Coevoluindo por adaptação, por congruências dinâmicas, feitas e refeitas continuamente com o meio, quer dizer, por conservação da adaptação: isso é, aliás, o que chamamos de desenvolvimento sustentável. Nada mais.

Soa estranho aplicar um conceito biológico (ou melhor, surgido a partir do estudo das espécies vivas), como o de

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evolução (e o de coevolução), a sociedades humanas. Mas Robert Wright (2000) em “Não Zero” nos lembra que “o significado original da palavra “evolução” era “desenvolvimento” ou “desenrolar” – como no desenrolar de um rolo antigo para ver o fim da história. Há algo a ser dito por esse sentido, há muito perdido, da palavra. Muito embora nem a evolução biológica, nem a cultural, tenham um roteiro nem sejam inexoráveis assim como uma narrativa escrita é inexorável, ambas têm uma direção – e até, defendi, uma direção que sugere uma finalidade, um telos. O desenvolvimento da vida neste planeta pode ser uma história com uma razão de ser” (1). Para Wright, é a “sinergia potencial” (ou o “non-zero-sumness”) que dá sentido ao desdobramento evolutivo. Ele está falando de cooperação, ou melhor, de um tipo “de relacionamento em que, caso houvesse cooperação, esta beneficiaria ambas as partes” (2).

A questão das relações entre localização e desenvolvimento será abordada no epílogo deste livro. Por enquanto, já se deve adiantar que qualquer coletivo humano estável, para subsistir, requer cooperação. Uma sociedade com grau zero de cooperação não seria estável e, portanto, não seria uma sociedade.

Mas se estabilidade (aplicado o conceito a coletivos humanos, i.e., a sistemas sociais) requer cooperação, cooperação, por sua vez, leva à comunidade, ou seja, à sociedades de parceria, ou, ainda, à coletividades regidas por interdependência (3).

Nesse sentido, local é sempre comunidade porquanto localização tende a criar comunidade. No centro de tudo está o que chamamos de cooperação (e o conceito de capital social), como veremos mais adiante.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Wright, Robert (2000). Não Zero. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

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(2) Idem.

(3) Bill Mollison e Reny Mia Slay, no livro “Introdução à Permacultura” (Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998) incluem, dentre as características da Permacultura ou “(agri)cultura permanente” – um sistema de design voltado para a criação de ambientes humanos sustentáveis – as relações entre diversidade, estabilidade e cooperação de um ponto de vista sistêmico. Um dos princípios do planejamento permacultural é a policultura e diversidade de espécies benéficas que tem como objetivo a conformação de um sistema produtivo interativo. Nessa agricultura eco-sistêmica, o papel da diversidade nas suas relações com a estabilidade e com a cooperação (ou sinergia) evoca um paralelo com o processo de localização. Comentando o livro de Edgar Andersen, Plants, man and life (Berkeley: University of California Press, 1952), “que descreve os plantios de jardins/pomares agrupados em volta das casas na América Central”, Mollison e Slay observam que ele “contrasta o pensamento linear, ordenado, restrito e segmentado dos europeus com a policultura produtiva, mais natural, dos trópicos secos. A ordem que ele descreve é uma ordem seminatural de plantas em seu relacionamento correto umas com as outras (consórcios), mas não separadas em vários agrupamentos artificiais. Não está claro onde ficam os limites entre pomar, casa, campo e jardim, onde existem [espécies] anuais ou perenes, ou, na verdade, onde o cultivo dá espaço para sistemas evoluídos naturalmente”. “Para o observador – explicam Mollison e Slay – isso pode parecer um sistema desordenado e desarrumado; no entanto, nós não deveríamos confundir ordem com arrumação. Arrumação separa espécies, cria trabalho e pode, também, convidar pragas, enquanto que a ordem integra, reduz trabalho e dissuade o ataque de insetos. Jardins europeus, freqüentemente arrumados de forma extraordinária, resultam em desordem funcional e baixa produção. Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a criatividade imaginativa... A diversidade é freqüentemente relacionada à estabilidade na Permacultura. No entanto, estabilidade só ocorre entre espécies cooperativas, ou espécies que não causem prejuízo umas às outras. Não é o bastante, simplesmente, incluir o maior número possível de plantas e animais em um sistema, pois poderão competir pela luz, nutriente e água. Algumas plantas, como nozes e eucaliptos, inibem o crescimento de outras excretando hormônios de suas raízes no solo (alelopatia). Outras plantas oferecem habitat de inverno para pragas e doenças danosas a espécies próximas. Gado e cavalos, deixados no mesmo pasto, eventualmente causarão degradação. Árvores grandes competem pela luz com cereais. Caprinos no pomar ou no arvoredo irão comer a casca das árvores. Assim, se vamos utilizar todos esses

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elementos em um só sistema, devemos ser cuidadosos na colocação de estruturas ou plantas que intervenham entre elementos potencialmente prejudiciais... Se tivermos um sistema com uma diversidade de plantas, animais, habitats e microclimas, a possibilidade de uma infestação de pragas é reduzida. Plantas espalhadas umas com as outras dificultam a movimentação de pragas de uma planta para a outra. Todavia, uma vez que a praga se reproduza em qualquer planta, insetos e predadores irão perceber isso como uma fonte concentrada de alimentos, e também se concentrarão para aproveitar-se. Na situação monocultural, a alimentação para as pragas é concentrada; em uma policultura, a própria praga é uma concentração de alimento para os predadores... Então, a importância da diversidade não está muito no número de elementos de um sistema, mas no número de conexões funcionais entre esses elementos. Não é o número de coisas, mas o número de formas nas quais as coisas trabalham. O que procuramos é um consórcio de elementos (plantas, animais e estruturas) que trabalhem harmoniosamente juntos”.

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Texto 8 | Manzano e a ciência do local como ciência da singularidade

“O local não seria apenas um local entre locais, mas também a encruzilhada entre os locais (ou entre os tempos, ou ainda entre os contextos)”.

Nivaldo Manzano (2003), em comunicação pessoal ao autor, tece interessantíssimas considerações sobre a ciência do local que, segundo ele, é a ciência da singularidade que está ainda por ser construída. Publico abaixo excertos da intervenção de Manzano nesse debate realizado por e-mail com o autor.

“O local tem a extensão ou ocupa o lugar que lhe atribuímos. Ou seja, a sua delimitação não nos é dada de antemão ou imposta de baixo, de cima ou de fora para dentro, como se fosse um destino ou uma fatalidade, mas resulta de um exercício de livre escolha contextual, pelo qual decidimos limitar as suas fronteiras, assim como ocorre quando nos pomos a caracterizar um problema, em busca da solução.

Um problema – ou seja, a disputa entre possibilidades inconsistentes entre si pela ocupação do mesmo espaço da solução – é, por definição, um subproblema de um problema maior, ao infinito. As fronteiras de um problema dependem da solução que o problema requer. Ao mesmo tempo, a solução que o problema requer depende das fronteiras do problema: eis um processo auto-recorrente.

Tudo remete, pois, ao ponto de indução, ao exercício recorrente do "olhar", na metáfora utilizada por você [quando afirmou que “o local é produzido pelo olhar”]. O ser humano delimita fronteiras livremente ao mesmo tempo que se deixa livremente delimitar por elas, eis de onde procede o caráter necessariamente contextual da existência ("liberdade em situação", como escreveram os filósofos existencialistas). Sou livre para eleger o contexto de minha ação, mas, uma vez delimitado o seu contexto (subproblema de um problema maior), submeto-me às regras geradas pela referência do

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contexto. Assim, os parceiros de jogo são livres para escolher o jogo que quiserem jogar; feita a escolha, submetem-se às suas regras. O desejo e o prazer de jogar aquele jogo e não outro é a referência.

A sua noção de local – e a minha equivalente de contexto, ou de problema como subproblema –, e de suas interações ao infinito, leva-me a pensar o local a um só tempo como "topos" e "utopos". "Topos", como objeto de eleição já feita, delimitação abstraída de uma realidade por definição indeterminada; "utopos", como projeção ideal do "topos" no qual me encontro, ponto de apoio das inspirações e motivações que me instigam a projetar o olhar para outros locais, para fora ou para dentro do próprio"topos" no qual me encontro. Toda ação humana no espaço do "topos" tem também um caráter utópico. É uma aposta no futuro, na expectativa de que o resultado visado se confirme. Ao promover a coexistência do "topos" e do "utopos" em um mesmo espaço de possibilidades inconsistentes entre si, tenho consciência de que estou brigando contra os princípios de identidade e de não contradição, ao mesmo tempo que sei que a lógica gramatical não é uma ferramenta inteiramente adequada (suficiente) para pensar a existência, individual ou social, que é também não-lógica...

O estatuto do local, que você busca definir, deveria tomar como matriz a estrutura da ação humana: enraizamento presente em uma tomada de consciência crítica do passado, que se projeta na construção imaginária de um futuro com vistas à reconstrução do presente. Passado, presente e futuro estão fundidos e inseparáveis na ação humana.

Assim vistas as coisas, o local não seria apenas um local entre locais, mas também a encruzilhada entre os locais (ou entre os tempos, ou ainda entre os contextos), sendo o local propriamente dito um "vazio", lugar natural de uma potência capaz de estabelecer uma distância (crítica), graças à qual se retoma criticamente o passado, que já não é (o passado pode ser poder, mas não é uma potência), para construir no

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presente um futuro que ainda não é. Assumo, pois, a experiência do local como expressão da simultaneidade ou contemporaneidade dos tempos, escapando aos engodos das filosofias da História, do hegelianismo, do positivismo e de todo pensamento linear e mecânico.

Explico-me melhor quanto ao termo "vazio", retirado do Tao, de Heráclito ou de Espinosa, ao gosto do freguês: assumo que o "eu" (o "local", o "social", o contexto, enfim) não tem substancialidade alguma: constitui-se de interfaces em interação, abertas para dentro do "eu" e para o mundo. Assim, por exemplo, minhas interfaces comigo mesmo e com o mundo correspondem aos meus papéis: jornalista, filósofo, pai, filho, marido, sogro, jogador de futebol, amigo, vizinho, etc. Espelho-me como "eu" em cada uma dessas interfaces, sem as quais não me reconheceria a mim mesmo, eu que ao mesmo tempo também não sou elas, e o meu "eu" não é outra coisa senão o conjunto delas, e também não é elas, um conjunto de interfaces conflitantes e solidárias. Conflitantes, porque as regras que obedeço quando jogo futebol conflitam com as regras do pai, que exigem que esteja ao lado do filho, e assim por diante. Solidárias: cada um desses sistemas racionais, correspondentes a cada um de meus papéis, conflitantes entre si, convive na solidariedade da unidade que sou. Conceber o "eu" como expressão das interfaces em interação corresponde a concebê-lo, pour cause, como constituído pelo comunal, já que as minhas interfaces são o correlato de interfaces sociais, que não são eu e também o são: como pai, tenho como correlato meu filho, e assim por diante. Emerjo, pois, da comunidade ou do social, como uma irrupção individual, ou um novo modo de ser, inaugural, único, singular, do social, ou local, que me precede. É dizer também que eu sou o local, o nodo da rede, o lugar do vazio, o ponto de interseção de minhas interfaces, o locus da potência, o entrecruzamento de todos os sistemas racionais que caracterizam os meus papéis. Por isso, quanto a mim, propriamente, não sou em primeiro lugar ou unicamente o locus da racionalidade (papel reservado aos tratados de lógica ou às ciências que se apóiam em inferências, estatística ou

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probabilidade), e sim um sujeito diverso na minha unidade, ou uno na minha diversidade (emoção, razão, ética, intuição, estética, sentimentos, lúdico, tudo a um só tempo).

Assumir o local é apropriar-se da potência (potência que se contrapõe a poder, no mesmo sentido grego utilizado por Maquiavel, já que potência remete à capacidade humana de destituição recorrente de todo poder autocrático ou hierárquico, de toda ordem constituída).

A ciência do local é a ciência da singularidade, que está por ser construída...”

Localização e globalização

Globalização do local tende a ser igual a localização do global.

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A afirmativa de que globalização do local tende a ser igual a localização do global não é trivial. Formalmente (em termos lógicos) ela significa que globalização e localização serão a mesma coisa quando local e global também o forem. Ocorre que mesmo que o mundo inteiro seja (visto como) um local, isso não significa que a dimensão global terá desaparecido. E nem se, por hipótese, o mesmo processo de localização, que ocorre em uma localidade qualquer do mundo, se completasse no planeta inteiro (com a coletividade mundial projetando e antecipando um mesmo futuro desejado, unificadamente, o que, como veremos, não parece ser possível – nem desejável...), ainda assim permaneceria existindo a dimensão global.

A dimensão global de certo modo é necessária para a definição da dimensão local. Local só adquire sentido diante do global. Toda a novidade do processo em curso de glocalização é a possibilidade da conexão global-local e não o fato de estar havendo, por um lado, uma globalização e, por outro lado, simultaneamente, uma localização. Quando uma localidade se conecta com outra localidade – que pode inclusive ser contígua geograficamente – ela está acionando a conexão global-local (ou local-global, tanto faz, pois essa relação é transitiva).

Assim, o local se globaliza quando ativa suas conexões externas. E, obviamente, tanto mais se globaliza quanto mais conexões “para fora” estabelecer. Em contrapartida, e isso está longe de ser tão óbvio, o global se localiza da mesma maneira; ou seja, quanto mais localidades globalizadas existirem mais o global estará localizado. Ou, ainda, o global se localiza “por dentro”.

Enquanto um coletivo humano estável assentado sobre um território se localiza em função de suas conexões internas, o planeta humano como um todo se globaliza em virtude da localização dos seus componentes e não em função de sua própria localização, ou seja, de ter se transformado em uma “aldeia global”.

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Em outras palavras, a globalização – ao contrário do que se imagina – não leva à uma aldeia global mas à miríades de aldeias (unidades localizadas) globais. Isso é muito, muito relevante para que se possa entender o sentido da glocalização.O que é o local? O local não é o que parece... O mundo pode ser um local: se o local globalizado for um mundo inteiro. Como escreveu Frank Herbert em 1976 (em “Os Filhos de Duna”), “em um universo infinito, local pode abranger algo tão gigantesco que sua mente se encolhe diante dele” (1).

A grande novidade da network society é que, pela primeira vez na história, o mundial pode virar local. A volta ao local significa que, em certo sentido, tudo está virando local. Por isso se diz que a localização é a outra face do fenômeno chamado globalização.

Já vimos que o local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

Assim, uma localidade não globalizada não é pequena, mesmo que seja apenas uma vila com 500 habitantes. O mundial não localizado é enorme, porque é inalcançável. O mundo de Dom Manuel em 1500 era um mundo imenso, tão imenso que as pessoas não sabiam sequer onde estavam as outras pessoas e o que encontrariam para além do que enxergava a vista... Ou seja, não era um local.

O mundial localizado será um mundo pequeno, menor, muito menor do que a Paraíba atual. Como vem cantando Caetano Veloso, desde 1978 (em “Terra”): “Pequenina como se eu / Fosse o saudoso poeta / E fosses a Paraíba / Terra, Terra”. Ainda que possa ser composto por milhares de localidades menores do que a Paraíba atual.

O mundo estará totalmente globalizado quando estiver totalmente localizado, o que significa: composto por miríades

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de identidades próprias. Para tomar uma imagem, já empregada por outros e em outras circunstâncias, milhões de pontos de luz, cada um com uma cor diferente, vibrando em uma freqüência diferente, porém conectados entre si, formando uma grande rede neural. Como escreveu Robert Muller, há mais de 20 anos, “conforme caminhamos para o terceiro milênio, talvez a participação em networks se torne a nova democracia, um novo elemento importante no sistema de governança, um novo modo de vida nas complexas e miraculosas condições globais do nosso estranho e maravilhoso planeta vivo, girando e circulando no universo prodigioso em uma encruzilhada de infinidade e eternidade” (2).

Em geral somos levados a pensar que se o mundo pudesse desejar coletivamente um mesmo futuro, globalização e localização seriam a mesma coisa. Tal, contudo, não ocorrerá, não pelo menos da forma como ainda estamos imaginando. Pode-se dizer que o sistema como um todo terá uma “mente” (a Global Mind citada por Morin) (3), mas apenas em sentido metafórico, não de uma consciência unificada e sim de um processo fractal.

Se a “mente de Gaia” é uma espécie de anima mundi, ou seja, uma inconsciência coletiva, isso não quer dizer que ela vá (ou possa) se tornar uma consciência coletiva individualizável. Pode-se sempre especular com hipóteses como as do aparecimento de um super-ser planetário, de um “cérebro global” e lançar mão de metáforas bio-tecnológicas e de outros paralelos semelhantes para tentar dizer (ou esperar) que um processo regulatório consciente surgirá. Ao que tudo indica, porém, essas hipóteses não são necessárias, não pelo menos nas formas como têm surgido. A regulação é uma propriedade emergente, uma função da dinâmica complexa da rede e não atributo de um conhecedor individual. Substituir o deus preexistente (que sobrevém) pelo deus construído (que provém e advém, característica, aliás, da melhor tradição profética: o IHVH, dos profetas hebreus do setecentos a.C., é o deus que ‘será o que será’, como

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percebeu genialmente Ernst Bloch quando observou que, do ponto de vista dessa utopia hebraica primitiva, “deus não existe, porém existirá”) (4) só seria útil se tal operação substituísse também a compreensão de que a regulação é extrínseca ao sistema pela compreensão de que ela é inerente ao seu processo adaptativo; ou seja, de que a regulação societária global se dá por meio de miríades de processos holográficos que ocorrem em cada local-nodo da rede e não de um processo que possa ser unificado em um local distinto dos demais (e, portanto, separado dos demais), em um mainframe do tipo de The Matrix.

Por certo, ‘inteligências coletivas’ (no sentido de Pierre Levy e também, em parte, no sentido aventado por Joël de Rosnay) (5) tendem a surgir com o processo de localização e, assim, pode-se dizer que teremos, cada vez mais, “mentes coletivas” em funcionamento. Mas não é a ligação “em paralelo” entre essas “mentes” que produzirá o supremo regulador (como se fosse um supercomputador) e sim as numerosas conexões que cada uma delas estabelecerá com as demais (ou seja, a conexão local-global) que ensejarão a emergência de uma dinâmica complexa adaptativa.

A dispersão e a conexão e não a unificação é a chave para entender a nova dinâmica da globalização-localização e isso faz toda a diferença. É a chave para entender em quê sentido globalização do local tende a ser igual a localização do global.

Parafraseando Herbert, ‘em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local pode assumir características tão holográficas que nossa “mente coletiva” se expande para o mundo todo ao concentrar-se nele’.

Mas com isso já entramos na próxima hipótese do elenco, segundo a qual ‘localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado’.

NOTAS E REFERÊNCIAS

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(1) Herbert, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

(2) Cit. por Lipnack, Jéssica & Stamps, Jeffrey (1986). Networks: redes de conexões. São Paulo: Aquariana, 1992.

(3) Cf. Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.

(4) Bloch, Ernst (1968). El ateismo en el cristianismo. Madrid: Taurus, 1983.

(5) Cf. Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997 e também Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

Localização e glocalização

Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado.

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O aspecto holográfico da afirmativa acima já foi abordado na seção anterior. As duas principais questões que restam para debater são as seguintes: a) que comunidades são essas que reflorescem no mundo globalizado? e, b) por quê a localização do global ocorre em função direta do reflorescimento dessas comunidades?

Cada uma dessas questões poderia se desdobrar em várias outras; por exemplo: estão mesmo surgindo comunidades em um mundo pós-industrial (fenômeno que não ocorreu, a não ser vestigialmente, ou como remanescência, no mundo industrial)? Por quê? Se um novo tipo de comunidade que está surgindo implica (ou abarca) “comunidades virtuais” (ou sem base físico-territorial), tais “comunidades” poderiam ser consideradas como comunidades de fato? E depois vêm também todas aquelas questões, já colocadas por Guehénno (em 1993 e em 1999) (1), sobre se as novas comunidades de escolha que estão surgindo isolam ou unem as pessoas, constroem ou destroem o espaço público comum (e a possibilidade da política), uma vez que “o mercado global não cria uma comunidade global” etc. (ver Texto 4).

Por tudo o que foi dito nas seções anteriores deste capítulo fica claro que existe uma co-implicação entre localização e comunidade. Ora, se está em curso um processo de localização, então é razoável esperar que esteja em curso também um processo de criação de comunidades. Mas que comunidades são essas?

As novas comunidades de projeto do mundo globalizado

Enquanto as velhas comunidades eram comunidades de herança (e, portanto, formadas por repetição de passado), as novas comunidades que estão surgindo, durante o processo

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em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos humanos estáveis.

Quais são as novas comunidades de projeto? São as comunidades originadas por movimentos sociais de resistência e de geração de identidade a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania (não na velha noção em que tudo é “direito do cidadão e dever do Estado”, mas como direito-e-responsabilidade de todos), do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

Algumas dessas novas comunidades de projeto são virtuais (no sentido de não terem base físico-territorial), mas não todas. Algumas são sócio-territoriais mesmo, formadas em torno de processos de desenvolvimento local que estão acontecendo em povoados, distritos, bairros, municípios, microregiões e outros âmbitos espaço-territoriais no mundo todo, como causa-e-conseqüência (ou, pelo menos, como fenômeno acompanhante) desse movimento emergente de volta ao local observado na contemporaneidade.

No entanto, boa parte dessas novas comunidades que estão surgindo são subnacionais ou transnacionais. Isso é relevante porque a não-coincidência com fronteiras nacionais indica que elas, em alguma medida, se subtraem ao controle central do Estado-nação.

O fundamental aqui não é o tamanho do território físico e sim o âmbito do espaço político. O fundamental é a capacidade construída de se auto-conduzir (a self-reliance política). Para abrir um ponto de discussão com Jean-Marie Guéhenno, o

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fundamental são as novas “Atenas” (virtuais ou sócio-territoriais, neste sentido tanto faz, pois o que importa aqui é que sejam sociedades de parceria ou coletivos de interdependência) que vão surgir, possibilitando a universalização de novos princípios éticos norteadores: dentre outros, a liberdade como sentido da política (em uma democracia radicalizada ou democratizada) e a igualdade como possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de inserção e participação igualmente valorizada de todos na comunidade política.

A localização do global e o reflorescimento comunitário

Pois bem. O surgimento de comunidades no mundo globalizado indica apenas que o processo de localização está acontecendo.

O local, no sentido “forte” da hipótese da localização, é sempre futuro antecipado. O reflorescimento comunitário – ou melhor, o florescimento das novas comunidades de projeto – antecipa a ecumene planetária.

Ao contrário do que se pensa comumente, a pergunta não é se isso vai ou não vai acontecer algum dia. Isso já está acontecendo. Não haverá um momento mágico do desfecho, de inauguração de uma “república planetária de comunas” ou algo semelhante. Na sociedade-rede, o que globaliza também localiza. Cada comunidade de projeto constituída no mundo globalizado antecipa o mundo como rede holográfica de miríades de “aldeias globais”. Como vimos na seção anterior, a aldeia são as aldeias; não a soma, mas a configuração geral regida por múltiplos laços de interdependência. Esse é o sentido da glocalização.

O conceito de capital social

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Talvez sem ter ainda uma compreensão global do fenômeno da glocalização, muitas pessoas, sobretudo a partir da década de 1990, têm procurado trabalhar com novas categoriais analíticas – exteriores ao mundo do pensamento econômico – para tentar explicar por quê comunidades tecidas por redes e redes de comunidades estão se constituindo como ambientes mais favoráveis ao desenvolvimento.

O que está acontecendo é que as pessoas estão descobrindo que as redes sociais têm muito mais a ver, do que antes se imaginava, com o que chamamos de desenvolvimento. Mas essa descoberta não se deu a partir da observação das novas dinâmicas sociais introduzidas pelo funcionamento das grandes redes mundiais, como a Internet, em meados da década de 1990. Ela é anterior. A percepção das relações intrínsecas entre rede (como padrão de organização) e desenvolvimento (como “movimento” social), data do início dos anos 60, conquanto somente nos anos 90 tenha sido possível interpretar mais completamente o fenômeno. Foi no estudo das dinâmicas sócio-políticas de pequenas localidades que antropólogos e urbanistas – como Jane Jacobs –, ainda nos anos 60, começaram a desconfiar que as redes sociais constituíam um fator decisivo para o desenvolvimento local, como se fossem uma espécie de “capital” (e imagino que a expressão ‘capital social’ tenha sido introduzida metaforicamente por Jacobs – a primeira pessoa que empregou o termo no sentido em que o estamos trabalhando a partir dos anos 70 – não para mercantilizar uma dimensão social, da vida comunitária e sim para dizer que tratava-se de uma internalidade (e de uma centralidade), de um fator tão importante quanto o capital propriamente dito, físico ou financeiro) (2).É significativo, porém, que as relações entre rede e desenvolvimento tenham sido descobertas no local (no caso de Jacobs, em bairros e distritos que se pensavam, cada qual, como um local em termos de desenvolvimento).

É preciso ver, entretanto, se esse é um elemento fortuito ou se tais relações só poderiam ter sido descobertas no local.

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Contrariando, talvez, uma parte dos teóricos do capital social, opto pela segunda alternativa; ou seja, o capital social é produzido (e acumulado e reproduzido) sempre em um local. Quer dizer, em um coletivo humano estável que pensa a si próprio (e é assim visto pelos demais) como um sujeito caminhante em direção a um futuro desejado. Todas as evidências empíricas sobre a relação entre capital social e desenvolvimento foram recolhidas em localidades. Em sentido positivo, em localidades que apresentaram incrementos em seus índices de desenvolvimento em virtude da existência de redes sociais, de organizações voluntárias da sociedade civil e outras formas de sociabilidade motivadas por emocionalidades cooperativas. E, por inferência, em sentido negativo, naquelas localidades que ficaram paralisadas (ou retrocederam) em relação aos seus índices de desenvolvimento em virtude da predominância de padrões hierárquicos de organização e de modos autocráticos de regulação (como, por exemplo, um padrão vertical de relação entre Estado e sociedade e a prática do clientelismo).

Redes abertas, que não se constituem como sujeitos, não fornecem evidências suficientes de serem usinas de capital social. Ou, para usar os nossos termos, redes não localizadas não são produtoras de capital social (ou, pelo menos, com tal quantidade e/ou qualidade capaz(es) de ensejar a percepção desse “processo de produção”).

Em suma, tudo indica que capital social é produzido por comunidades. A ampliação social da cooperação, que dá origem a (ou co-origina) esse fator do desenvolvimento chamado de capital social, ocorre (ou exclusivamente, ou predominantemente) em comunidades.

Ora, como vimos, comunidades são ‘mundos pequenos’ que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social e, portanto, adquiriram mais ‘poder social’ para usinar padrões de comportamento (programas) capazes de se replicar. Esse ‘poder social’ dá a medida do capital social que ela é capaz de produzir (e é o próprio conteúdo da expressão ‘capital social’).

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O que chamamos de capital social é algo assim como se fosse o “combustível” que alimenta a geração de identidade e a replicação de características (que podem ser vistas como softwares que instruem a construção de comportamentos) das peculiares identidades geradas. Dessarte, em virtude de geração por repetição e replicação por imitação, se constrói o mundo como uma rede holográfica de miríades de comunidades. E o “combustível” ou a “energia social” para isso tudo não vem de outra fonte senão da cooperação.

A cooperação como fonte de localização

Comunidades de projeto estão sendo formadas pelo que chamamos aqui de novos movimentos sociais. Que movimentos são esses? No capítulo anterior afirmamos – para estabelecer uma distinção com os velhos movimentos sociais – que eles não são os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais, particularistas, reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem alternativas de vida e convivência social aos padrões da sociedade patriarcal, autocrática e guerreira, que vigem há milênios.

Não são os movimentos embebidos por visões estatistas, regressivas e contra-liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo a qual o mundo esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela divisão amigo x inimigo) (3) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia econômica ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma decorrência do comportamento egotista dos indivíduos, que os impele inexoravelmente à competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que constituem humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin – pelo sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária.

É importante retomar aqui que esses novos movimentos sociais não se caracterizam, predominantemente, pela

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vontade de poder (no sentido de serem desenhados para viabilizar a tomada e a retenção do poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade), pela motivação de derrotar um concorrente ou destruir um inimigo. Não são baseados em jogos do tipo ‘ganha-perde’ ou do tipo ‘o vencedor leva tudo’ e sim em jogos ‘ganha-ganha’. São, portanto, todos eles, movimentos de ethos predominantemente cooperativo.

Este é o ponto mais importante. Ninguém participa desses movimentos em virtude unicamente de uma escolha racional e sim porque se sente emocionalmente compelido a aderir a sua causa, e tal adesão, na maior parte dos casos, se dá a partir de uma identidade com a forma como eles atuam e não simplesmente por concordância intelectual com as suas finalidades declaradas.

Mas é preciso compreender de uma vez por todas que a cooperação é uma emocionalidade, não uma racionalidade. Aquilo que explica o trabalho voluntário, a ação gratuita, e que constitui, em suma, o ethos cooperativo que pode se instalar em qualquer sociedade humana, é uma emotional motivation e não apenas a rational choice.

Unicamente baseados nas teorias da escolha racional não poderíamos explicar nada ou quase nada do que acontece na emergente sociedade civil mundial e nem nas sociedades civis locais.

Não é por acaso que, dentre as principais formas de agenciamento, a sociedade civil (ou a comunidade) destaca-se como usina privilegiada de capital social, muito mais do que o Estado (que em geral extermina), ou do que o mercado (que em geral consome), esse tipo de “capital”. E isso porquanto o Estado se caracteriza pela sua racionalidade normativa, por sua “lógica” heterônoma e por seu padrão vertical de relação com a sociedade, enquanto que o mercado se caracteriza pela sua racionalidade lucrativa (ou seja, visa maximizar a apropriação privada de um sobrevalor gerado,

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em geral, coletivamente) e pela sua “lógica” competitiva. Ora, nenhuma dessas racionalidades e nenhuma dessas “lógicas” são, por excelência, produtoras de capital social na medida em que nenhuma delas se baseia predominantemente na cooperação. Já tratei desse assunto em outro lugar e não seria o caso de reproduzir aqui os argumentos construídos para mostrar que o que caracteriza, positivamente, a nova sociedade civil (ou o chamado terceiro setor) é a cooperação (4).

Se são movimentos de ethos cooperativo que estão dando origem às novas comunidades de projeto, não é difícil mostrar por quê a cooperação é fonte de localização.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cf. Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999; e também (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

(2) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

(3) Uma parte dos velhos movimentos sociais, embora pertença à sociedade civil, por incrível que pareça, ainda está possuída por uma espécie de fundamentalismo de Estado. Esse estatismo, comum a tendências políticas de direita e de esquerda, foi exacerbado pelas reações contra-liberais ao processo de globalização surgidas na última década do século passado. Não é a toa que tais movimentos disseminam na sociedade uma cultura adversarial e visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo. Quando na oposição aos governos tais movimentos atuam na base do “quanto pior para o país comandado pelo inimigo melhor para mim” e, quando na situação, em geral desenham políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o papel da cooperação.

(4) Cf. Franco, Augusto (2003). Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico para o desenvolvimento. Brasília: AED, 2003.

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Texto 9 | Beck e a aliança em favor da atividade comunitária

“A atividade comunitária poderia se tornar um... centro de atividade que garantiria a substância democrática da sociedade”.

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Ulrich Beck, na quarta parte do seu livro “O que é globalização?” intitulada “Respostas à globalização”, elenca, como sexta em uma lista de dez respostas, o que chamou de “aliança em favor da atividade comunitária” (1).

Segundo Beck, “um novo contrato social deveria partir do seguinte ponto. Nosso trabalho se tornou produtivo a um tal ponto que necessitamos cada vez menos do trabalho e precisamos produzir cada vez mais bens e serviços. A integração sócio-material dos homens por meio do trabalho aquisitivo continuar a ter grande importância, mas deixou de ser a única forma. Proponho que se reflita por um instante se aquilo que é identificado por toda parte nos biótipos sociais como engajamento da sociedade civil – a saber, a capacidade de auto-organização, e também o interesse em projetos políticos que não foram percebidos com a clareza suficiente pelas instituições – não poderá ser considerado como um segundo centro de atividade e integração ao lado do trabalho remunerado: a atividade pública, a atividade comunitária...

A atividade comunitária poderia tornar as cidades habitáveis, enaltecer o espírito democrático e aumentar a eficácia da energia dispendida. Por que não falarmos de uma vez em uma aliança civil-estatal pela sociedade civil em vez de “aliança pela atividade comunitária” e atrair capital para realizá-la. A atividade comunitária poderia tomar uma forma que não fizesse dela um abrigo provisório para o desemprego: ela deveria ser atrativa para todas as pessoas. Ela poderia se tornar um segundo centro de atividade que garantiria a substância democrática da sociedade...

O trabalho civil não poderia... ficar preso ao contexto nacional-estatal; ele poderia amparar e enriquecer a sociedade civil transnacional, suas redes e seus movimentos sociais...

Portanto, são sobretudo dois princípios – espontaneidade ou auto-organização, ao lado do financiamento público – que

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poderiam fazer da atividade comunitária uma alternativa interessante...

Essa iniciativa pressupõe uma concepção política que desestrutura o monopólio do sistema político. É necessário que se descubra, por exemplo, uma novo distribuição do poder e do trabalho entre o sistema político nacional-estatal e a sociedade civil (trans)local. Fortalecer as sociedades civis para além das suas fronteiras não significa transferir para ela, sob a forma de um palavrório comunitarista, todos os problemas causados pela ineficiência burocrática. Este fortalecimento significa: o reconhecimento maduro das responsabilidades é sucedido por um deslocamento do poder desde o centro até as regiões, até as cidades; e as iniciativas da população serão a um só tempo viabilizadas pelo dinheiro da comunidade e provarão deste modo a sua eficácia” (2).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Beck, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Idem.

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Localização em disputa

A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro próximo, os embates políticos dentro do Estado-nação.

Como globalização e localização são aspectos do mesmo processo de glocalização, os fatores que condicionam e possibilitam a localização são os mesmos que possibilitam a globalização, porém com uma diferença importante e relativa à forma como se apresentam e ao âmbito em que incidem.

Glocalização é o nome de uma mudança social que está ocorrendo em virtude da conjunção de vários fatores interdependentes: novo ambiente político mundial, inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local.

No âmbito global, o relevante em termos do novo ambiente político instalado depois da queda do Muro é a possibilidade aberta de democratização das relações internacionais. No âmbito local, todavia, isso se revela como uma possibilidade de democratização das relações políticas intra-locais, inter-locais, entre o local e o micro-regional, o estadual, o nacional, o regional e, em suma, entre o local e o global.

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Entretanto, no âmbito nacional, o comportamento do Estado-nação (que ainda domina o processo político nacional e infra-nacional) bem como o comportamento das instâncias de governo nacionais, estaduais e municipais, são decisivos para acelerar ou retardar a localização.

Sobretudo os dois últimos fatores listados acima – rede e democracia ensaiados em âmbito local – indicam que há um outro condicionante da localização: o ambiente político nacional. Com efeito, os agentes políticos nacionais ainda constituem interventores capazes de colocar obstáculos à glocalização – não tanto à globalização, mas à localização.

Por quê? Porque tais interventores, se não podem, no nível “macro”, refazer inteiramente o “clima” da guerra fria, impor uma regressão tecnológica, impedir totalmente o processo de transição para uma nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, eles podem, por outro lado, dificultar a emergência de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-participativos no nível “micro”.

Isso significa que a localização também está em disputa e essa disputa – conquanto seja, fundamentalmente, a mesma disputa que se trava em torno da glocalização – pode e deve ser olhada de outra maneira a partir da perspectiva local.

Do ponto de vista da localização o melhor governo é, obviamente, aquele que deixa o protagonismo local se exercer. Portanto, quanto mais intervencionistas, verticalistas e centralizadores forem os governos, mais eles conseguirão colocar obstáculos à localização.

Também parece óbvio que, do ponto de vista da localização, o melhor governo é aquele que estimula o empreendedorismo individual e coletivo, encorajando pessoas e comunidades a enfrentarem seus próprios problemas da sua maneira. Assim, quanto mais paternalistas e clientelistas forem os governos, mais eles dificultarão o processo de localização.

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Por último, pessoas e comunidades terão mais capacidade e mais possibilidade de ensaiar, em âmbito local, padrões de organização em rede e modos de regulação democrático-participativos, quanto mais respirável for o “ar” democrático no seu entorno. Logo, autocracias e democracias com alto grau de antagonismo e governos dominados por partidos impregnados por uma cultura adversarial constituem ameaças seriíssimas à localização. Governos cuja intervenção divide as sociedades locais em amigos x inimigos baseados em critérios político-ideológicos de alinhamento a programas e normas partidárias são forças reacionárias perigosas, capazes de atrasar em muito a revolução do local.

Evidentemente, sempre se pode lutar para eleger governos mais sintonizados com a localização. Não é por aí, todavia, que se processa a revolução do local. A rigor não se trata de uma revolução política, em termos leninianos (do Lênin de 1901-1902, do “Por onde começar?” e do “Que Fazer?”), quer dizer, de um plano urdido e executado por um contingente centralizado de agentes. Por certo, a revolução do local tem seus agentes, mas, desse ponto de vista, ela é mais martoviana (do Martov que altercava sobre isso com Lênin no dealbar do século passado), é um processo ao invés de um plano. Muito mais do que isso, porém, ela é um processo descentralizado (a rigor, pulverizado), não de construção de um sujeito revolucionário mas de florescimento de miríades de experiências inovadoras que introduzem modificações no comportamento dos sujeitos que interagem em termos de competição e cooperação e que – dada a presença de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-participativos – podem se amplificar “contaminando” o sistema como um todo. Tal processo é caótico, não porque seja – ou esteja condenado a ser – sempre desordenado e sim porque alcança padrões de ordem flexíveis e mutáveis, que se constroem e reconstroem continuamente e que, assim, não são impostos “de fora”, a partir de um modelo preexistente, mas emergem “de dentro”.

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Desse ponto de vista, a solução não é ter governos “alinhados” com a localização, mesmo porque isso não é possível em virtude da própria natureza do Estado-nação, que sempre resistirá, em alguma medida ou de algum modo, perder poder para níveis infra-nacionais. Bastaria ter governos comprometidos com a manutenção de um clima democrático e que adotassem um padrão de relação com a sociedade não-muito-inibidor das iniciativas locais, quer dizer: não-muito-intervencionista, não-muito-centralizador, não-muito-paternalista, não-muito-clientelista. Isso se revelaria na matriz de suas policies, sobretudo nas chamadas políticas públicas na área social.

Neste particular o fundamental é que sejam governos que não queiram voltar atrás, reeditando, por exemplo, políticas sociais que venho classificando como de “primeira geração”; ou seja: “políticas de intervenção centralizada do Estado... para as quais: i) o Estado é suficiente; ii) os benefícios são uma espécie de concessão do poder e/ou de intermediação político-partidária, eleitoral ou institucional; iii) seus serviços não são encarados propriamente como direitos; e iv) a gestão governamental não é pública porquanto não é transparente, admite graus insuficientes de accountability e não incorpora – em uma dinâmica democrática – outros atores na sua elaboração, na sua execução, no seu monitoramento, na sua avaliação, no seu controle ou na sua fiscalização” (1).

Em qualquer caso, porém, deveriam ser governos que não pretendessem deter o monopólio do público e que não se acreditassem protagonistas únicos e exclusivos do desenvolvimento. Em suma, que não atuassem como se fossem suficientes. Em qualquer caso, portanto, será necessário contar com o comparecimento de outros atores não-governamentais, em um tipo de arranjo semelhante ao proposto por Claus Offe no capítulo anterior, ou seja, capaz de permitir a constelação de sinergias entre Estado, mercado e comunidade, mediadas pelo capital social produzido na sociedade civil.

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Para entender esse ponto de vista é preciso admitir que a revolução do local não é uma revolução política nacional, não visa a substituição das elites no poder do Estado-nação. É uma revolução social stricto sensu, uma mudança no “corpo” e no “metabolismo” das sociedades.Todavia, é preciso reabrir o debate sobre o que entendemos por mudança, transformação ou revolução em termos sociais, como será abordado na próxima seção (cf. também Texto 12).

O que se chamará de revolução social daqui a algum tempo serão os processos de mudanças de relações entre os diferentes tipos de agenciamento (ou seja, que alterem os padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade civil ou comunidade). Isso tenderá a abalar o quadro institucional estabelecido. E envolverá luta na medida em que houver resistência às mudanças.

O Estado-nação resistirá a perda de poder diante da luta pelo maior protagonismo das localidades, que começarão a se subtrair ao seu domínio em uma série de setores de atividade, fazendo parcerias com outras localidades em prol de objetivos econômicos, sociais, políticos, culturais, ambientais e científico-tecnológicos comuns. Os poderes estatais locais também resistirão às iniciativas autônomas das sociedades civis locais, que tenderão, cada vez mais, a conformar-se como sociedades civis trans-locais.

Em suma, uma vez que isso seja possível, as comunidades se organizarão em torno da conexão local-global. E o velho Estado-nação, baseado em sua anacrônica capacidade de construir muros para exercer seu domínio a partir da separação, será confrontado pelo novo poder da conexão. Ora, tudo isso é parte do processo de localização.

E tudo isso significa, pelas evidências já percebidas atualmente, que a disputa em torno da localização tenderá a pautar, em futuro próximo, os embates políticos dentro do Estado-nação.

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Tal será o rebatimento, no interior do Estado-nação, do que chamamos de revolução do local.

As posições políticas em disputa diante da localização

No primeiro capítulo, na seção que analisa as posições políticas diante da globalização, foram atribuídas algumas características à posição dos chamados glocalistas. O overlapping na posição política dos glocalistas com os reformadores institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, dá origem a um campo de confluência que foi definido como sendo o dos democratas radicais (pós-liberais e pós-estatistas) (cf. Diagrama 2).

No entanto, tais definições foram tomadas a partir de posições e comportamentos políticos diante da globalização. Será necessário refazer o esquema tendo agora como referencial a localização. Ainda que consideremos que a globalização e a localização são aspectos de um mesmo processo de glocalização, as ênfases (e, portanto, os fatores evidenciados) serão diferentes se mudarmos os pontos de vista (ver Diagrama 3).

Se, como vimos, o que se chamará de revolução social daqui a algum tempo serão os processos de mudanças de relações entre os diferentes tipos de agenciamento (ou seja, que alterem os padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade civil ou comunidade), então o referencial para classificar as diferentes posições diante da localização – que parece ser, de fato, uma revolução social stricto sensu e não apenas uma revolução política feita “em nome” de uma revolução social, como veremos na próxima seção – é a ênfase conferida ao tipo de agenciamento que deveria ser predominante. Desse ponto de vista existem três grandes posições: a dos que privilegiam o mercado, a dos que privilegiam o Estado e a dos que privilegiam a sociedade civil

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(ou a comunidade). Ou seja, os neoliberais, os estatistas e os comunitaristas.

Todavia, na prática política os estatistas se dividem em três campos: o dos ‘estatistas de direita’ (compreendendo tudo aquilo que se possa chamar de “velha” direita, composta, entre outros, por forças políticas possuídas por visões míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas, como vários grupos fundamentalistas religiosos e laicos, os ideólogos dos complexos industriais e pós-industriais-militares e, ainda, uma boa parte dos chefes militares e dos aparatos de segurança, das correntes políticas nacionalistas e dos estamentos burocráticos e castrenses), o dos ‘estatistas de centro-esquerda’ (ou “novos” social-democratas) e o dos ‘estatistas de esquerda’ (os velhos trabalhistas de base corporativa e inspiração marxista, os “velhos” social-democratas e socialistas igualmente de inspiração marxista e, dentre estes últimos, os herdeiros não-renunciantes do leninismo). Os comunitaristas, por sua vez, também se dividem em dois campos: o dos ‘comunitaristas conservadores’ (ou velhos localistas), e o dos ‘comunitaristas inovadores’ (ou glocalistas, que são os novos localistas).

Como a localização é sempre uma comunitarização, talvez estes últimos pudessem ser melhor definidos pela denominação de ‘localistas’. No entanto isso poderia criar alguma confusão com os velhos comunitaristas conservadores, que são localistas em um sentido antigo e “fraco” e que não leva em conta o papel determinante da conexão local-global (e são, justamente por isso, antiglobalização). De sorte que parece mais adequado manter mesmo a denominação ‘glocalistas’ para designar os comunitaristas inovadores ou os novos localistas em um sentido “forte” do conceito de localização.

Pois bem. Neoliberais são radicalmente a favor da globalização e não seriam, em princípio, antilocalização, a não ser na medida em que tendem a não aceitar quaisquer orientações provenientes de outras esferas (e, portanto,

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inclusive as sociais) para o mercado, não se importando muito com a capacidade de autoregulação das comunidades (mas também a ela não se contrapondo quando se trate de outras esferas – extra-mercantis – da vida social). Estatistas são, em geral, antiglobalização e antilocalização, muito embora existam, dentre estes, os que tendem a ser a favor da globalização ou da localização ou de ambas (uma parte dos estatistas de centro-esquerda) e os que são radicalmente contra as duas (os estatistas de esquerda e os estatistas de direita). Por último, como vimos, os comunitaristas, por definição a favor da localização, se dividem em dois grupos: os que são antiglobalização (os comunitaristas conservadores) e os que são a favor (os glocalistas).

Muito embora boa parte dos “novos” social-democratas sejam, em geral, a favor da globalização (os internacionalistas liberais e os reformadores institucionais da classificação de Held & McGrew), ainda não é possível divisar claramente as posições internas nesse campo de modo a definir os que são também a favor da localização. Um processo de desligamento da referência no Estado-nação está em curso neste momento no seio dos setores social-democratas de centro-esquerda, o que deverá levar parte destes setores a abandonar o ideário do estatismo social-democrata. Provavelmente, uma parte permanecerá estatista (os “novos” social-democratas anti-liberais), outra parte absorverá uma porção maior do ideário do liberalismo de mercado, mitigando suas “preocupações sociais” (os “novos” social-democratas anti-estatistas) e, outra parte, ainda, avançará para posições pós-liberais e pós-estatistas (talvez uma parte dos reformadores institucionais e uma parte dos transformadores globais da classificação de Held & McGrew), assumindo a tarefa de construir uma alternativa de radicalização ou democratização da democracia e fazendo, portanto, convergir suas posições com as dos glocalistas, ou melhor, com as de uma parte destes últimos.

E isso porquanto nem todos os glocalistas podem ser considerados como defensores da radicalização da democracia. Aqui também se encontra uma variedade de

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agentes, em um espectro amplo, que vai desde ambientalistas e ecologistas, passando pelos que participam de movimentos em prol dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e da tolerância cultural, pela paz mundial, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela promoção do voluntariado, até os dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos participativos de democracia em tempo real ou cyberdemocacy (envolvendo social networks e civic networks) e de processos de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local, muitos dos quais foram considerados como ‘radicais’ na classificação de Held & McGrew (2).

Conquanto a maior parte desses agentes já tenha se posicionado em relação às principais posições políticas em disputa diante da globalização e, muitos deles, já tenham optado, na prática, pela localização – o que justifica sua inclusão no campo dos glocalistas – somente alguns poucos já lograram tematizar politicamente suas opções tendo como referência as duas filosofias públicas mais expressivas da atualidade – ou seja, o liberalismo de mercado e o estatismo social-democrata – de sorte a poderem se reivindicar, em conjunto, como democratas radicais (pós-liberais e pós-estatistas), ainda que existam, dentre eles, os que assim já se identificam.

É preciso ver que os glocalistas não constituem propriamente uma posição política com perfil identificável, com o mesmo status, por exemplo, dos neoliberais e dos social-democratas (velhos ou “novos”). Compõem um campo extremamente diversificado, cuja maioria das posições não se expressa por intermédio de organizações e programas partidários ou baseadas em perfis ideológicos mais definidos. Pertencem, em boa parte, a iniciativas da sociedade civil de caráter público. São, portanto, em geral, sujeitos políticos de outra natureza. Qualquer tentativa de classificá-los, hoje, com as categorias utilizadas usualmente para mapear o espectro político-

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ideológico – como, por exemplo, as de “esquerda” e “direita” – se revelaria forçada.

No entanto, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, os glocalistas vão acabar assumindo perfil ideológico mais definido a medida que os embates políticos começarem a ser pautados pela resistência do Estado-nação às pressões “de baixo”, provenientes da luta por maior autonomia para os níveis sub-nacionais. Localidades pequenas e grandes, metrópoles, cidades-médias e pólos regionais e, até mesmo, estados e regiões inteiras de um país, tenderão a se opor aos ditames do Estado nacional, não propriamente em movimentos de cunho separatista, porém por mais liberdade para transacionar economicamente, empreender conjuntamente, celebrar parcerias para desenvolver programas e iniciativas governamentais e sociais, ambientais, culturais e científico-tecnológicos e, inclusive, adotar regulamentações, análogas ou recíprocas, que facilitem o intercâmbio em todas essas áreas, com outras localidades para além das fronteiras nacionais. Além disso, tenderão a aumentar, internamente, as reivindicações por uma maior descentralização das decisões e pela repartição mais equânime dos recursos provenientes da receita fiscal.

O velho Estado-nação, já fragilizado pela globalização, dificilmente resistirá a esse movimento emergente de suas unidades, ainda que possa, em certa medida, contê-lo e retardá-lo por algum tempo (que pode, inclusive, ser bastante longo). Portanto, como nada disso será feito sem luta, aumentará o lobby em favor do localismo, e seus argumentos e instrumentos serão cada vez mais elaborados e matizados política e ideologicamente (ver Texto 11). Parece ser inevitável, assim, que os glocalistas acabem assumindo um perfil mais definido do ponto de vista político-ideológico. E não é improvável que alguns partidos venham a endossar sua causa ou, mesmo, que surjam novos partidos com ela identificados.

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Tudo isso será acompanhado pelo fortalecimento das sociedades civis locais e pelo crescimento do número de organizações do terceiro setor que não poderão ser controladas nem pelo poderes estatais centrais, nem pelos intermediários e, nem mesmo, pelos locais. Tecendo suas próprias redes, tais organizações estarão linkadas a organizações de outros países, com propósitos semelhantes ou convergentes, e farão parte, voluntária e conscientemente, da sociedade civil mundial.

Ora, é muito improvável que surja daí qualquer coisa como um “partido mundial da sociedade civil”, mas é bem provável que boa parte dessa sociedade civil mundial, tecida a partir da conexão local-global, formule objetivos, estratégias e programas congruentes com um ideário glocalista.

Retomando, mais uma vez, as categorias de Held & McGrew, não é difícil ver porque um ideário glocalista acabará se estabelecendo como uma referência importante para parte ponderável dos entes e processos que participam da emergente sociedade civil mundial.

Em primeiro lugar, parece óbvio que os princípios éticos norteadores capazes de inspirar miríades de organizações constituídas com base no voluntariado e, em grande parte, voltadas para finalidades públicas, não poderão ser os da liberdade individual (dos neoliberais) ou do interesse nacional (dos estatistas). Pela sua própria natureza (de rede) e pelo processo de sua formação (emergente), os nodos de uma sociedade civil mundial terão razões de sobra para apostar na capacidade da sociedade humana de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Mais do que isso, porém, tenderão a encarar os princípios de liberdade e igualdade não como atributos abstratos dos indivíduos ou como o resultado da aplicação de normas formais sancionadas por um poder central (nacional), mas como funções sistêmicas da participação (voluntária) na comunidade política.

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Em segundo lugar, também parece óbvio que, para boa parte da emergente sociedade civil mundial, quem deverá governar, no futuro, não são os indivíduos por meio de trocas de mercado, nem os aparatos estatais-nacionais (“mínimos” ou não) e sim as pessoas, por meio de comunidades que se autogovernam e por meio de mecanismos de governança em múltiplas camadas articulando o local (em diversos níveis) e o global.

Em terceiro lugar, no que tange às reformas essenciais, não se trata de priorizar uma eliminação das organizações estatais burocráticas para favorecer a desregulação dos mercados (como querem os neoliberais) nem, por outro lado, apenas de fortalecer a capacidade estatal de governar (como querem os estatistas). Tudo indica que a reforma essencial prioritária, para boa parte das organizações de uma sociedade civil mundial, deverá ser a reforma do padrão de relação entre Estado e sociedade com o fito de buscar sinergias ou interações construtivas com os outros dois principais tipos de agenciamento: o Estado e o mercado.

Em quarto lugar, a forma desejada de globalização não será inspirada pela ideologia do globalismo econômico – ou seja, mercados livres globais “corrigidos” por redes de proteção social para os que não conseguirem ser incluídos “naturalmente” pela dinâmica da economia – (como preconizam os neoliberais) e nem poderá ser vista como uma “globalização” que reforce a capacidade dos Estados nacionais, os quais deveriam implementar arranjos geopolíticos eficazes para garantir esse intento (como imaginam os estatistas). A maior parte da sociedade civil mundial que se contrapõe à globalização, se contrapõe, na verdade, à ideologia do globalismo econômico e tem tudo para aderir à idéia da formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede holográfica de miríades de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes.

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Por último, em quinto lugar, a modalidade de transformação política mais desejável por entes e processos de uma sociedade civil mundial não será, por certo, aquela que prevê uma minimização da regulação burocrática para favorecer a criação de uma ordem internacional baseada no livre mercado (pregada pelos neoliberais) e nem a velha reforma estatal e geopolítica (dos estatistas) e sim o empoderamento molecular das populações, o fortalecimento da sociedade-rede, a transformação glocalizante da forma atual do Estado-nação (rumo ao Estado-rede); em suma, a revolução do local como revolução planetária/comunitária em direção à uma “ecumene planetária”.NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cf. Franco, Augusto (2003): “Três Gerações de Políticas Sociais” in Aminoácidos 5; Brasília: AED, 2003; ou em http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P117

(2) Cf. Texto 2.

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A favor da Localização

Estatistas de centro-esquerda (“novos” social-

democratas)

Antilocalização

Comunitaristas

inovadores

Comunitaristas

conservado

Neoliberais

Social-democratas

anti-estatistas

Social-democrataspós-estatistas e pós-

liberais

Social-democratas anti-liberais

Estatistas de

esquerda

Democratas radicais (pós-liberais e pós-

estatistas)

Estatistas de

direita

Variantes políticas (atuais)

Variantes políticas

(tendências)

Padrões de influênciaZona de pontos comuns

Diagrama 3 | Variantes na política da localização

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Texto 10 | Local e global: as cidades na globalização segundo Manuel Castells & Jordi Borja

“Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão global... Tais desafios, entretanto, requerem respostas locais”.

Manuel Castells e Jordi Borja, no livro “Local e global: a gestão das cidades na era da informação”, propõem, a título de resumo de sua obra, “três conjuntos de conclusões sobre a democracia local, as políticas urbanas e as cidades nas relações internacionais” (1). Reproduzimos abaixo excertos desse resumo.

“1 – A democracia local na globalização

Um só mundo, um mundo urbanizado: o valor do âmbito local

A economia global, a era informacional, a dissolução dos blocos político-militares e o fortalecimento das instituições internacionais configuraram um espaço político mundial. Esta nova situação não é nem mais justa nem mais regulamentada do que a que vigorou no passado. Pelo contrário: os grandes grupos econômicos multinacionais atuam em mercados selvagens e deformados. Os nacionalismos e fundamentalismos agressivos e desesperados explodem e os mais fracos não encontram, nas organizações internacionais, o apoio de que necessitam.

Paralelamente, porém, os âmbitos locais e regionais se fortalecem como configurações econômicas, espaços de identidade coletiva e de participação política e também como expressão concentrada dos problemas e desafios da humanidade: crescimento e meio ambiente, desperdício e pobreza, liberdades possíveis e exclusões reais. As cidades

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são hoje a manifestação majoritária e simbólica de nossa forma de vida, de suas contradições e de suas potencialidades. Mas, ainda que seja verdade que a população urbana tenda a ser majoritária, é preciso ter em conta que uma parte dessa população é urbana porém não tem os direitos próprios de cidadania e que o agravamento dos desequilíbrios entre as zonas urbanas e rurais provocam migrações difíceis de suportar pelas cidades e que tornam ainda mais pobres as zonas rurais.

A cidade como espaço da democracia

A cidade é a possibilidade de construir uma democracia de proximidade, de participação de todos na gestão dos assuntos públicos e de fortalecimento das identidades coletivas integradoras. O princípio da subsidiaridade, que deve ser entendido como a descentralização do poder e das competências e a disponibilidade de recursos financeiros... [para tornar efetivos o exercício desse poder e dessas competências, deve vigorar aqui]. A política, como gestão pública que pode ser exercida a nível local, não deve ser exercida em âmbitos superiores. É necessária uma política no nível mundial para estabelecer sistemas de regulação que garantam os grandes equilíbrios e as trocas justas. E é preciso enfatizar a importância dos Estados como responsáveis pelas políticas de coesão social e de proteção dos direitos e das liberdades de todos os cidadãos. Mas, além disso, convém destacar o significado dessa terceira dimensão da política: a local, o governo das cidades e a participação cívica, tão imprescindível e legítima quanto as outras duas.

Democracia local é cidadania

Todos os homens e mulheres que vivem nas cidades são e devem ser iguais em direitos políticos e sociais. Não há cidadania se não há igualdade jurídica, seja qual for a origem nacional ou étnica. Portanto, é legítimo o direito de todos os

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habitantes e de todas as famílias de participar da vida política local. Tampouco há cidadania se há exclusão social, se se constituem guetos para a população imigrante, se não se toleram as diferenças e as identidades de cada grupo e se se tolera a intolerância. Não há cidadania se a cidade como conjunto de serviços básicos não chega a todos os seus habitantes e se não se oferece esperança de trabalho, de progresso e de participação a todos. A cidade deve ser um espaço de fraternidade.

A inovação democrática

As cidades são os lugares privilegiados da inovação democrática. A chamada crise das instituições representativas e das organizações burocráticas pode ser superada por meio das múltiplas possibilidades de relação direta eleitor-eleito, do acesso mais fácil às administrações públicas, da consulta imediata, da cooperação público-privado e da autogestão social que podem acontecer nas cidades. Para isso é preciso que as cidades possam inovar em três campos:

i) a estruturação de âmbitos de gestão, representação e participação metropolitanos;

ii) a descentralização interna das grandes cidades;

iii) o estabelecimento de novos mecanismos de participação e a configuração de novos direitos sociais.

A comunicação, uma condição da democracia cidadã

Não há cidadãos ativos e responsáveis se não estiverem informados e não tiverem possibilidade real de receber e de responder às mensagens dos atores públicos e privados que tomam decisões sobre a cidade. Convém estimular a multiplicação de todas as formas de comunicação dentro das cidades, desde as mais tradicionais, como os centro cívico-culturais de bairro, até as mais modernas, como as rádios e televisões locais e à cabo. Ninguém, nenhum agente público

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ou privado, pode arrogar-se ao monopólio da comunicação. A socialização das novas tecnologias de comunicação a serviço da participação cívica é uma oportunidade histórica.

A gestão da cidade e a cooperação público-privado

O governo local, eleito e representativo, deve optar por liderar a gestão coletiva da cidade porém não pode monopolizá-la. Todos os âmbitos da vida cidadã podem ser oportunidades de cooperação público-privado e de participação social. Não há promoção econômica, proteção ambiental, segurança cidadã, solidariedade social e tolerância cultural sem a cooperação público-privado. Nem o monopólio político da administração, nem o mercado exclusivo e excludente resolverão sozinhos os desafios da cidade atual.

A cooperação público-privado pode ser formalizada em um projeto global de cidade de caráter estratégico que supere as limitações dos planos tradicionais e das desregulamentações neoliberais.

A nova autonomia local

A autonomia local não se reduz unicamente – ainda que seja uma dimensão importante e nem sempre instituída – ao reconhecimento político-legal e à proteção jurídica de um âmbito de competência [jurisdição] próprio e específico de ordenação urbana e de gestão de serviços. Tampouco pode apoiar-se na existência de funções claramente separadas entre as distintas administrações públicas. Hoje a autonomia local, a partir da origem democrática dos governos locais, deve incorporar novos conteúdos, como:

i) o direito à inovação política para além da estrita uniformização das legislações estatais (sistemas eleitorais, organização, descentralização, coordenação metropolitana, participação cívica);

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ii) o reconhecimento da capacidade de coordenar as distintas administrações e empresas públicas para que seja possível aplicar políticas integrais e não setoriais na cidade;

iii) a possibilidade de assumir competências e funções em âmbitos tradicionalmente não locais porém fundamentais na atualidade, como a promoção econômica e o emprego, a justiça e a segurança, a presença internacional, a gestão dos novos sistemas de comunicação etc.

iv) o direito de exigir do Estado as transferências necessárias de competências legais e recursos financeiros para poder exercer as funções sociais que se esperam dos governantes locais em áreas tais como a saúde, a educação, o meio ambiente, a luta contra a pobreza, a habitação e o transporte público;

v) o reconhecimento do princípio de autonomia financeira como elemento essencial da autonomia local.

2 – As política urbanas: novos objetivos e novos instrumentos

A cidade: compromisso entre desenvolvimento econômico e qualidade de vida

Na economia global as cidades devem ser competitivas na escala internacional. Para isso devem dispor de infraestruturas de comunicação potentes (especialmente zonas logísticas baseadas nas telecomunicações) e desenvolver áreas de centralidade articuladas com outras cidades, mas também integradas à cidade em seu conjunto. Não há uma contradição insuperável entre competitividade e integração social, entre crescimento e qualidade de vida. As cidades mais competitivas internacionalmente são, em sua maioria, aquelas que oferecem maior qualidade de vida aos seus habitantes.

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Cidades ricas, cidades pobres

Se bem que seja certo que existem zonas de grande pobreza nas cidades mais ricas e setores opulentos nas mais pobres, não podemos esquecer as enormes diferenças existentes entre as cidades do mundo mais desenvolvido, nas quais se verificam um desperdício e uma ostentação escandalosos, e as cidades do mundo menos desenvolvidas onde a maioria da população não dispõe dos bens e serviços indispensáveis. Por isso é preciso elaborar e propor modelos de crescimento que assegurem um uso racional e austero dos recursos nas cidades ricas e promovam um intercâmbio solidário com as cidades mais pobres.

A cidade de todos: centralidade e mobilidade

Não podemos aceitar a cidade dual, a que consolida centros e periferias mutuamente excludentes, nem a cidade que segrega social e funcionalmente populações e atividades. As cidades devem ser policêntricas, os bairros plurais e as zonas de atividade polivalentes. Cada parte da cidade deve ter sua monumentalidade, sua simbologia e sua identidade. Ademais, uma cidade democrática é aquela que maximiza as possibilidades de mobilidade para todos os seus habitantes. Os sistemas de transportes de massa acessíveis são, muitas vezes, a condição de acesso ao emprego e a habitação e também um requisito para construir um sentido e um projeto coletivo de cidade.

Emprego e habitação, condição de cidadania

A desocupação ou a permanência da informalidade obstaculizam o exercício da cidadania. O governo das cidades deve promover o crescimento econômico, estabelecer pontes entre a economia formal e a informal e também inovar na formulação de empregos. Os serviços de proximidade, a ecologia urbana e a manutenção das infraestruturas e dos equipamentos podem ser, juntamente com as políticas mais

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tradicionais de obras e equipamentos públicos, importantes geradores de emprego.

A habitação é um direito elementar dos cidadãos. Os poderes públicos não podem, sempre, oferecer imediatamente habitações regularizadas a todos os habitantes, porém podem, sim, reconhecer os assentamentos humanos, estabelecer mecanismos de cooperação com seus ocupantes para melhorar suas casas e fazer chegar a elas os serviços urbanos básicos.

Educação e formação, saúde e serviços coletivos como direitos cidadãos

A educação básica e os serviços básicos de saúde devem ser acessíveis e gratuitos para toda a população. Não há cidadania sem acesso à educação e à cultura na cidade, sem formação continuada, sem serviços de saúde acessíveis e sem serviços coletivos como a água, o saneamento e o tratamento ecológico dos resíduos. Isso porque o exercício desses direitos condiciona a qualidade da habitação, o acesso ao emprego e a dignidade da vida familiar. Não há nenhum argumento econômico que justifique a falta desses serviços para uma parte da população urbana.

Segurança cidadã como condição de liberdade

O medo gera intolerância e a insegurança nega o exercício da cidadania. A economia criminal e a pobreza são fatores de insegurança. A marginalidade e a exclusão de uns gera intolerância nos outros. Uma cidade segura é a que combate a pobreza e a intolerância, a que multiplica os projetos solidários e favorece a comunicação entre todos os seus habitantes. Contra a insegurança, é necessário uma política de integração social e cultural e reconhecer o direito à diferença, assim como programas integrais de prevenção. Mas também uma justiça eficaz e próxima, uma polícia cívica, uma

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administração honesta e acessível e uma participação possível para todos.

A política preventiva é, por certo, a melhor política de segurança, porém sua eficiência depende não somente da gestão pública senão também da responsabilidade individual e coletiva de todos os cidadãos.

O novo contrato urbano

Uma política integral de cidade requer um contrato urbano entre governo e cidadãos, entre administração e empresas, entre entidades públicas e associações cidadãs.

Mas exige também uma reformatação das relações entre Estado e poderes locais. As relações hierárquicas, quando não são justificadas por critérios de funcionalidade e igualdade, devem ser progressivamente substituídas por relações contratuais que garantam uma coordenação eficaz entre os agentes públicos e permitam ao poder local, segundo suas capacidades, exercer uma função de coordenação do setor público e de participação da sociedade civil.3 – As cidades, atores nas relações internacionais

Multiplicam-se atualmente as relações de intercâmbio e de cooperação entre as cidades e criam-se múltiplas redes e associações regionais e temáticas de cidades, tanto de poderes locais como de instituições da sociedade civil. Progressivamente se aceita a legitimidade, a conveniência e o direito das cidades e em especial de seus governos democráticos, de atuar na vida política, econômica e cultural internacional.

O reconhecimento desse direito é hoje um fator principal de democratização das relações internacionais e é indispensável para dar eficiência aos acordos e aos programas das conferências e dos organismos internacionais.

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O associacionismo local, um objetivo de importância global

A democratização das relacionais internacionais supõe o desenvolvimento das associações internacionais de cidades e poderes locais e a união entre elas. A existência de associações fortes e unidas é a melhor base para que se reconheça, por parte dos Estados, os direitos dos governos locais de participar na vida internacional e também de uma maior autonomia, de um poder urbano mais efetivo e de competências e recursos superiores no marco nacional...

O municipalismo no nível mundial

A existência de múltiplas organizações temáticas e regionais expressa a diversidade e a riqueza do municipalismo. Mas também parece necessário poder atuar de forma unida no nível mundial e face às grandes organizações internacionais, hoje exclusivamente intergovernamentais...

A cooperação descentralizada

A participação nos organismos internacionais pode reforçar as atividades de cooperação e de solidariedade internacionais praticadas pelas cidades.

Para isso as cidades e suas organizações devem poder:

i) participar nos recursos e na gestão dos programas internacionais de cooperação;

ii) administrar uma porcentagem importante do conjunto dos fundos públicos nacionais destinados à cooperação em cada país desenvolvido;

iii) estabelecer, em certos casos, programas de cooperação com poderes locais e organizações não governamentais de países menos desenvolvidos sem dependência de governos nacionais;

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iv) articular a cooperação dos poderes locais com as organizações sociais e culturais, empresas e, em geral, com a sociedade civil;

v) estender a cooperação também como intercâmbio, como benefício mútuo e combater os obstáculos que opõem a isso.

As cidades e a regularização da globalização

Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão global, como:

i) a exigência de uma nova economia compatível com a sustentabilidade ambiental e a progressiva redução da pobreza;

ii) a regulação dos movimentos de população, reconhecimento da mobilidade universal e da igualdade de direitos e deveres das populações que vivem em um mesmo território;

iii) a perseguição e punição das múltiplas formas de criminalidade, mas também a formalização daquelas atividades que acabam sendo mais perniciosas se permanecerem na ilegalidade;

iv) o controle democrático das novas tecnologias de comunicação e a socialização do seu uso;

v) a reformas dos Estados e das organizações políticas internacionais, relativamente inoperantes em virtude de seu déficit econômico, do seu “burocratismo” organizativo e do seu afastamento da cidadania.

Tais desafios, entretanto, requerem respostas locais. Somente nesses âmbitos é possível que os acordos normativos e os programas de atualização de adaptem a cada situação concreta e se estabeleça a indispensável cooperação entre instituições públicas e sociedade civil.

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Conseqüentemente, devem ser reconhecidas as cidades, ao lado das nações e seus Estados e das organizações políticas, econômicas, sociais e culturais internacionais, o direito e o dever de participar, com a mesma legitimidade, nos fóruns onde se elaboram e aprovam normas e programas e nos organismos encarregados de sua aplicação” (2).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Castells, Manuel & Borja, Jordi (1997). Local e global: a gestão das cidades na era da informação. Madrid: Taurus, 1997.

(2) Idem.

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Texto 11 | Michael Shuman e o ideário do localismo

“Nós temos muito mais poder do que imaginamos”.

Michael Shuman (2000), no livro “Going Local: creating self-reliant communities in a global age”, defende um ponto de vista do localismo, que, em certo sentido, poderia ser caracterizado como sendo aquele do comunitarismo conservador (se enfatizarmos os aspectos da auto-dependência econômica que ele prioriza). Mas a posição de Shuman já contém também elementos de um comunitarismo inovador (que admitem a interdependência e) que podem caracterizar, em parte, os novos localistas ou glocalistas. Seguem abaixo alguns excertos do último capítulo do livro, intitulado “Fazendo História”.

Going local: por quê não começar hoje? (1)

“O falecido Tip O’Neill costumava dizer que toda política é local. Talvez seja mais apropriado dizer que toda política significativa é local. A comunidade é o instrumento mais acessível para a expressão política coletiva, uma vez que é onde o cidadão tem maiores possibilidades de derrotar as forças da corrupção, do dinheiro e da apatia, e engajar-se em um processo democrático. É também onde os indivíduos exercem maior influência sobre suas relações econômicas e políticas – onde mesmo pequenos gestos podem melhorar a qualidade da vida cotidiana. E o mais importante, é onde a formulação de políticas adquire uma face humana.

Dois investigadores da Polícia Metropolitana do Distrito de Columbia visitaram meu instituto recentemente para discutir o que poderia ser feito para reverter a epidemia de crimes e

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assassinatos por arma de fogo que afligiam Washington. Sua conclusão, após haverem trabalhado para solucionar centenas de homicídios? Alguém precisa se interessar. Hoje, um número excessivo de jovens cresce em famílias pobres, chefiadas por apenas um dos pais, nas quais o amor é problemático ou inexistente. Com a derrocada das economias locais, as instituições que poderiam ter ajudado (escolas, igrejas, polícia, associações cívicas) entraram em total desalinho. As cidades ficaram tão grandes e suas populações tão móveis, que o contato pessoal e a confiança praticamente desapareceram.

Um dos investigadores, um ítalo-americano criado na realidade nua e crua dos bairros de Jersey City, lembrou-se de um homem negro que havia prendido. Enquanto estava sendo algemado, o jovem criminoso blasfemava por não poder ganhar a vida honestamente. O investigador, agindo talvez mais por culpa do que compaixão, telefonou para um amigo que gerenciava uma oficina mecânica e lhe pediu que desse um emprego ao jovem quando este deixasse a prisão. O jovem teve uma segunda chance. Um milagre aconteceu. Alguém se interessou.

O interesse de fato começa em casa. Não há como o Presidente, o Secretário-Geral da ONU, o Presidente da General Motors e outros mais se interessarem pelas massas que afirmam representar, já que o interesse requer um relacionamento pessoal. “Em uma casca de noz”... esse é o motivo pelo qual a comunidade é importante. Uma comunidade na qual as pessoas se conhecem e se interessam umas pelas outras é o principal pilar de todas as demais atividades civilizadas, sejam estas comerciais, políticas, sociais ou espirituais. Se não pudermos nos interessar por nossos vizinhos, jamais desenvolveremos a capacidade para nos interessarmos por nossa nação ou pelo mundo. E não há melhor manifestação de interesse do que criar uma economia local que atenda às necessidades básicas de cada um de nossos vizinhos e ajudar outras economias em todo o mundo a fazerem o mesmo.

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Dez passos para a auto-suficiência (ou auto-dependência) da comunidade

Chega de filosofia. O orçamento de sua cidade está no vermelho, empresas-chave estão deixando a cidade, serviços públicos vitais estão fechando as portas, instituições cívicas estão se desintegrando, os cidadãos estão se sentindo desesperançados. O que você pode fazer? Por onde você pode começar?

No transcorrer do meu livro [“Going Local”, citado na nota (1)] há dezenas de idéias que já estão surtindo efeito em comunidades em todo o mundo: empresas locais com fins lucrativos, sem fins lucrativos, cooperativas e públicas estão demonstrando de que forma os negócios podem estribar-se em uma comunidade. Novos tipos de empresas comunitárias estão atendendo às necessidades locais de energia elétrica, alimentos, água e materiais. Bancos especiais, cooperativas de crédito e poupança, e fundos de micro-crédito estão fornecendo novas fontes de financiamento local. Os sistemas monetários locais estão induzindo os residentes a optar por bens e serviços locais. E os governos locais estão acelerando a transição para economias nacionais, destinando cautelosamente doações municipais, reduções de impostos, investimentos, contratos, privatizações e contratações. Nenhum desses esforços é uma panacéia e qualquer deles, se empreendido isoladamente, estará fadado e produzir um impacto não mais do que moderado. É crucial que essas iniciativas sejam vistas como um pacote, no qual uma política reforça as demais.

O lema das cooperativas Mondragon é “construímos a estrada na medida em que viajamos”, e toda comunidade sustentável deve encontrar seu próprio caminho. Ainda assim, as inovações na economia comunitária, adotadas em conjunto, sugerem 10 passos básicos confiáveis.

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(1) Uma declaração de direitos e garantias da comunidade

Imagine uma placa na parede da Prefeitura de Cleveland com os seguintes dizeres:

Nós, o povo de Cleveland, buscamos criar uma cidade melhor para nossos filhos, atraindo empresas de fora, comercializando nossos produtos internacionalmente e garantindo tanto dinheiro do governo federal quanto possível. Criaremos um bom clima empresarial mantendo os salários e a proteção ao meio ambiente a um nível mínimo. Endossaremos o comércio livre em todos os fóruns, mesmo que isso reduza nossa capacidade para controlar nossa economia. E nos certificaremos de que nossos representantes em Washington tragam para casa mais do que nossa merecida parcela de verba paroquial.

Suspeito que a maioria dos moradores de Cleveland, se refletissem tempo suficiente sobre essas palavras, impugnariam sumariamente o prefeito e reconvocariam a Câmara Municipal.

Os princípios que hoje regem a vida econômica são um desastre. Em todo o país, políticos locais privilegiam bens de baixo custo em detrimento de um padrão de vida de alta qualidade; empresas multinacionais em detrimento de empresas nacionais; dependência da economia global em detrimento da independência por meio da auto-suficiência (ou auto-dependência); e a sinecura federal em detrimento do poder local. Esses princípios, bem como essas prioridades e políticas florescem não porque representam o que o povo americano quer, mas porque são invisíveis. Um primeiro passo para a auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária é submeter todos os aspectos da economia local ao escrutínio e à discussão.

A economia de mercado está fundamentalmente associada à escolha – não apenas a escolha do consumidor e do produtor –

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mas também a escolha política. O que queremos produzir? Como? Onde? Que tipos de bens e serviços são, efetivamente, essenciais? Qual deveria ser nossa norma para os salários e os direitos dos trabalhadores? Basta que as empresas atendam aos padrões mínimos em termos ambientais e de segurança pública previstos nas legislações federal e estadual, ou devemos exigir mais? Será que nós – e nossos vizinhos – deveríamos ter direito a um salário mínimo, a uma pensão e a um plano de saúde? Que tipos de estruturas de propriedade são melhores para a comunidade? Muitos de nós temos sentimentos fortes em relação a essas questões, embora raramente tenhamos tido condições de expressá-los em público.

Um importante primeiro passo para uma comunidade comprometida com a auto-suficiência (ou auto-dependência) é uma conversa pública. Toda a comunidade – e especialmente seus empresários locais – deveria participar de uma série de reuniões que culminassem em uma declaração de princípios e práticas econômicos – uma Declaração de Direitos e Garantias da Comunidade. Esse documento deveria elucidar o que caracteriza o comportamento de uma empresa amiga ou de um consumidor amigo da comunidade, e ser distribuído a todas as famílias. Um conselho de cidadãos poderia avaliar o desempenho das empresas locais e conceder, anualmente, Selos de Reconhecimento pela Preservação da Comunidade a empresas responsáveis (e retirar os Selos das irresponsáveis). Esses emblemas, exibidos ostensivamente em produtos qualificados, vitrines e material de escritório de prestadores de serviços, podem influenciar as decisões das pessoas em relação a compras, serviços bancários e investimentos, além de oferecer ao empresariado local um poderoso incentivo para que cumpra a Declaração de Direitos e Garantias.

Para conquistar o selo, poder-se-ia exigir que uma empresa apresentasse, anualmente, um relatório completo sobre seu desempenho. Em seu recente livro “Tyranny of the Bottom Line” (2), Ralph Estes, professor de contabilidade da

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Universidade American, descreve, em linhas gerais, os tipos de dados que toda empresa deve divulgar. Qual a diferença salarial entre os empregados que recebem a maior e a menor remuneração? A força de trabalho é sindicalizada? Até que ponto os empregados têm poder para tomar decisões? Quais os principais insumos à produção como terra, energia, água, aço, concreto e assim por diante, e quantos desses bens são importados de fora da comunidade? Quais os níveis anuais de descarga de poluentes e resíduos, e o que está sendo feito para reduzi-los? Para quais campanhas a empresa contribuiu e quanto gastou com lobbying? Quantos processos foram instaurados contra a empresa nos tribunais, quantas multas foram aplicadas por órgãos governamentais e quantas queixas foram apresentadas no Better Businesss Bureau (órgão de defesa do consumidor dos EUA)? Que percentual da propriedade da empresa está nas mãos de moradores da comunidade?

A existência de sistemas de classificação de produtos como Relatórios do Consumidor e Selos Verdes sugere que a participação do governo local não é necessária. Ainda assim, a Câmara Municipal poderia ajudar realizando audiências, ratificando a Declaração de Direitos e Garantias e arcando com os custos de impressão e distribuição do documento. Poderia, ainda, subscrever o conselho de avaliação, fazer nomeações formais para o conselho e publicar uma relação de empresas amigas da comunidade (a exemplo do que faz o jornal quinzenal de Paul Glover, “Ithaca Money”). A Câmara poderia, ainda, realizar novas audiências anualmente para avaliar emendas.

Uma Declaração de Direitos e Garantias da Comunidade cumpre várias metas. Ela permite aos residentes afirmar, fundamentalmente, que os fins precedem os meios – que as empresas serão bem-vindas apenas se servirem à comunidade. Cria um conjunto de normas públicas sobre comportamento comercial que protege o público e notifica adequadamente as empresas. A fidelidade de uma empresa à Declaração de Direitos e Garantias, embora voluntária, traz

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conseqüências. Toda vez que um cidadão pensar em fazer uma compra, assinar um contrato, abrir uma conta bancária, ou investir em valores mobiliários, terá em mente a relação de empresas qualificadas. Empresas amigas da comunidade terão uma vantagem comercial sobre as não amigas, as quais tenderão a mudar-se para outro lugar.

Há precedentes para esse tipo de definição de meta comunitária, embora nenhum deles tenha abordado a responsabilidade empresarial. Desde 1994, a cidade de Chattanooga, no estado do Tennessee, vem realizando uma série de reuniões públicas, nas quais a população visualiza a forma como quer que a cidade mude. Após as inundações de 1993 haverem devastado a cidade de Pattonsburg, no estado do Missouri, 250 sem-teto decidiram adotar uma Carta de Sustentabilidade e garantir que os esforços de reconstrução prosseguissem com base em princípios ecológicos. Essas pessoas reconstruíram suas casas com a melhor orientação para captar energia solar, expandiram pântanos para tratar da poluição por meio de processos biológicos e instalaram um sistema de recuperação de metano em fazendas de porcos adjacentes. Esses esforços acompanharam a visão tecnocrática de sustentabilidade exposta pelo Conselho de Desenvolvimento Sustentável do Presidente e não se pronunciaram sobre mobilidade empresarial. Entretanto, demonstraram o potencial de uma comunidade para articular uma Declaração de Direitos e Garantias.

(2) O relatório do estado da cidade

Estudiosos e políticos debatem incessantemente a escala apropriada de uma economia viável. A maioria dos economistas influentes, de Adam Smith a Karl Marx, via o Estado-nação como a unidade apropriada de planejamento. Jane Jacobs observou as forças econômicas das grandes cidades. Os arquitetos urbanistas concentram-se cada vez

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mais em regiões e “cidades marginais”. Adotar uma posição excessivamente rígida em relação a essa questão, entretanto, significaria negligenciar inevitavelmente os desafortunados que vivem em comunidades não priorizadas, tais como pequenas cidades, guetos, ou regiões de mineração. Conforme enfatizado no meu livro [“Going Local”], mesmo pequenas comunidades têm a oportunidade de gerar sua própria eletricidade, cultivar seus próprios alimentos, reciclar água e madeira, transformar bens locais em roupas e abrigo, criar economias de serviço viáveis e participar de redes de produtores mais abrangentes. As cooperativas Mondragon tiveram início na década de 1940 em uma cidade com 8 mil habitantes, e mesmo após seu espetacular sucesso econômico a população não ultrapassa 25 mil habitantes. O potencial para criar uma economia local viável e auto-suficiente (ou auto-dependente) pode residir em assentamentos com apenas mil habitantes – talvez até mesmo algumas centenas. Quem pode saber o que aconteceria até que novas experiências sejam feitas? Como argumenta Wess Roberts “Quem não erra não está se esforçando o suficiente” (3). Descartar qualquer comunidade como economicamente inviável parece uma atitude prematura, prosaica e mesquinha.

Em praticamente toda comunidade na América há uma mina de ouro que os economistas ainda precisam descobrir. Entre seus veios e depósitos podem ser encontrados recursos humanos desempregados, instituições cívicas subutilizadas, e ativos econômicos rejeitados. Em um maravilhoso livro intitulado “Building Communities from the Inside Out”, John P. Kretzmann e John L. McKnight, da Rede de Inovações de Bairros da Universidade Northwestern mostram, passo a passo, de que forma uma comunidade pode identificar, avaliar e aproveitar esses recursos (4). Há muitos tipos de ativos humanos potencialmente úteis, mas ainda não aproveitados: a inventividade dos jovens; as habilidades esquecidas dos aposentados; as mentes ativas dos portadores de necessidades especiais; o instinto de sobrevivência das mães que vivem da assistência social e dos sem-teto; e os talentos

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inexplorados de artistas locais. Há associações subutilizadas que formam a sociedade civil, especialmente nas comunidades menores da América. Dirija ao longo de uma rodovia e observe quem “adotou” cada milha: grupos de escritores, de músicos, de artistas; a Câmara de Comércio; os Clubes Elks, Kiwanis, Moose e Rotary; grupos de jovens como o Clube 4-H, as Bandeirantes e a Liga Juvenil; clubes de futebol e equipes da Liga Infantil; Associações de Pais e Mestres e grupos de centros de recreação extracurricular; clínicas de saúde da mulher e centros locais de Planejamento Familiar; comitês locais de Democratas e Republicanos; grupos liberais e conservadores dedicados a causas sociais; instituições beneficentes como a United Way; vigilâncias de bairros; comitês ad hocs organizadores de eventos no Natal e 4 de julho; e instituições de atendimento ao público sem fins lucrativos como igrejas, hospitais e universidades públicas. Finalmente, contabilize os ativos inanimados que foram descartados: prédios vazios, maquinaria ociosa, terrenos vazios, áreas industriais abandonadas (conhecidas como “campos marrons”), energia desperdiçada e água mal utilizada.

Uma comunidade pode compilar essas informações em um Relatório do Estado da Cidade anual. O processo de reunir-se periodicamente para inventariar forças locais pode ser um exercício de união poderoso para uma comunidade. Se distribuído a todos os lares e empresas, o estudo pode se transformar em material de conversa pronto para ser utilizado em mesas de centro e salas de espera. Cópias extras podem ser colocadas em escolas e bibliotecas públicas, ou em uma página na Internet. O que se precisa não é apenas um instantâneo de ativos, mas sim um filme de tendências. O processo de elaboração do Relatório do Estado da Cidade ano após ano, permitirá à comunidade mapear o que está melhorando e o que está piorando – e decidir o que fazer a seguir.

Elizabeth Kline, professora da Universidade Tufts, desenvolveu um conjunto de indicadores comunitários para mensurar a

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segurança econômica, a integridade ecológica, a qualidade de vida e a atribuição de poderes políticos (5). Para aferir a segurança econômica, Kline recomenda que uma comunidade monitore fundos de aposentadoria, contas de poupança, empréstimos, taxas de inflação, salários, impostos e distribuição de renda. Como a ecologia local é parte integrante da segurança econômica, a professora também sugere um inventário do consumo: os recursos renováveis locais (energia, árvores, peixes, vida silvestre, terra agricultável e água) estão sendo utilizados de forma sustentável? Os recursos não-renováveis, como petróleo e cobre, estão sendo substituídos por recursos renováveis? Para aferir a saúde ecológica, Kline recomenda que uma comunidade avalie áreas pantanosas, a erosão do solo, a diversidade de espécies e o abastecimento de água. A comunidade também deve monitorar a formação de lixo e resíduos tóxicos e a poluição do ar e da água. Obviamente, os indicadores de qualidade de vida incluem taxas de longevidade, divórcio, fome, falta de moradia, doenças e criminalidade. Finalmente, há indicadores de atribuição de poder. Nesse aspecto, Kline faria com que a comunidade analisasse o número de jardins comunitários, as taxas de participação em eleições e reuniões da câmara municipal, bem como o progresso em relação à igualdade de gênero e raça em diversas profissões. Os indicadores são quantitativos, mas a escolha do que aferir e de como aferir é inerentemente subjetiva. Kline e outros defensores de indicadores, como a Redefining Progress, sediada em São Francisco, incentivam as comunidades a adaptar essa lista genérica aos valores e às necessidades locais.

Algumas cidades dos EUA passaram da teoria para a prática. O programa Sustainable Seattle, lançado em 1980, monitora mais de cem indicadores no Condado de King (6). Em Jacksonville, na Flórida, os moradores definiram 74 indicadores-chave, além de uma série de metas comunitárias a serem cumpridas até o ano 2000 (7). Grupos populares de Jacksonville utilizaram os indicadores para pressionar as

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autoridades eleitas a despoluir os rios locais e priorizar os gastos públicos na redução das taxas de evasão escolar (8).

Até o momento, os indicadores parecem se sair melhor na aferição do desempenho ambiental do que da auto-suficiência (ou auto-dependência) ou do progresso social. No decorrer do tempo, as comunidades deveriam desenvolver modelos de insumo-produto de suas próprias economias, a fim de descobrir, exatamente, onde estão as dependências. Até que ponto a poupança e os fundos de aposentadoria estão sendo reinvestidos na comunidade? Quais recursos naturais estão sendo importados? Quais insumos de produção poderiam fornecer a base para indústrias de alto valor agregado? Qual é a balança comercial da comunidade? Será que os melhores alunos estão deixando a comunidade? Na realidade, muitos dos dados necessários para responder a essas perguntas constarão dos relatórios anuais apresentados pelas empresas locais.

Várias cidades adotaram esses tipos de análises de importação-exportação, as quais consideraram extremamente úteis (9). Em 1979, uma instituição sem fins lucrativos denominada Community Economics analisou os padrões de propriedade, renda e gastos em Oakland, Califórnia. Essa análise detectou três tipos de vazamento da economia local que ajudaram a explicar a persistência da pobreza na cidade: US$ 43 milhões por ano sendo transferidos para proprietários ausentes em pagamentos de aluguel; US$ 40 milhões indo para bancos de fora para o pagamento de juros de crédito imobiliário; e US$ 150 milhões sendo gastos por consumidores em lojas localizadas fora dos limites da cidade. Oito anos mais tarde, Chester, uma pequena cidade ao sul da Filadélfia no estado de Pennsylvania, analisou suas próprias possibilidades para adotar a substituição de importações. Com a assistência do Instituto Rodale e da Igreja Presbiteriana, a comunidade produziu um estudo de quatro volumes documentando a porcentagem ínfima de aquisições de energia, alimentos e serviços bancários realizadas dentro da comunidade que estava privando a população local dos benefícios de qualquer

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multiplicador econômico. No cômputo geral, apenas 16 cents de cada dólar ganho por um morador de Chester vinham de empresas locais, e surpreendentes 87 cents de cada dólar gasto destinavam-se a proprietários de fora da comunidade. O Projeto de Renovação Comunitária do Instituto Rocky Mountain utilizou esse tipo de análise para ajudar pequenas cidades rurais a se revitalizar.

(3) Empresas-âncora

Se bem elaborado, o Relatório do Estado da Cidade ressaltará oportunidades comerciais maduras de três formas. Primeiramente, necessidades não atendidas sugerem novos mercados para as empresas locais. Pode ser que os empresários, ao verem seus vizinhos famintos e desnutridos, construam estufas de plantas ou entrem no ramo da agricultura urbana. Como salienta o Professor Michael Porter, da Harvard Business School, essas demandas são especialmente atraentes para novas empresas por serem tão parcamente atendidas atualmente. “Embora a renda familiar média no interior da cidade de Baltimore seja 39% mais baixa do que no restante da cidade”, escreve o professor, “o poder de gasto agregado é praticamente o mesmo e o gasto estimado no varejo, por estabelecimento, é dois terços maior no interior do que no restante da cidade” (10).

Em segundo lugar, recursos não utilizados ou subutilizados sugerem insumos promissores para a produção. Pilhas de estrados de madeira rejeitados constituem a matéria-prima para a Big City Forest, sediada no Bronx, que corta, remodela e dá polimento na madeira, transformando-a em peças deslumbrantes de mobiliário. Cadeiras, sofás, escrivaninhas, brinquedos e computadores de segunda mão – todos tão velhos que nem mesmo a Goodwill tocaria qualquer deles – são considerados inestimáveis pela Urban Ore, em Berkley, Califórnia, especializada na restauração, no conserto e na revenda desses produtos abandonados.

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Finalmente, toda dependência constitui uma oportunidade para as empresas da comunidade. Pode ser que os consumidores, ao constatar que a eletricidade que utilizam está sendo transmitida de usinas de carvão localizadas a centenas de milhas de distância, desejem gastar mais um penny ou dois por quilowatt/hora em alternativas de geração local. O Distrito de Serviços de Utilidade Pública Municipal de Sacramento (SMUD) lançou um programa de “tarifação verde” em 1994, no qual os usuários residenciais eram convidados a pagar uma sobretaxa de US$ 6,00 ao mês para ter um aparato fotovoltaico de 4 quilowatt preso ao teto de suas casas e ligado na grade comunitária (11). Até o momento, mais de dois mil clientes se ofereceram voluntariamente para participar do programa.

Uma comunidade comprometida com a meta de auto-suficiência (ou auto-dependência) em sua Declaração de Direitos e Garantia propiciará, obviamente, um lar mais receptivo para essas empresas de substituição de importação. Uma comunidade que tenha como meta atender à maior parte de suas necessidades de alimentos com produtos cultivados localmente, induzirá os empresários a criar um mercado de agricultores ou mercearias especializadas. Se os consumidores estiverem dispostos a pagar um preço ligeiramente mais alto por pães feitos localmente, os empresários naturalmente abrirão padarias no bairro.

Nada é mais persuasivo do que um bom exemplo. Há uma geração, a reciclagem era uma forma esquisita utilizada pelos Escoteiros para ganhar alguns trocados recolhendo e revendendo jornais velhos. Mas quando um punhado de operações de reciclagem bem sucedidas apareceu em todo o país, os imitadores proliferaram. Hoje, o negócio de reciclagem fatura mais de US$ 30 bilhões e mais de 4 mil empresas filiaram-se a uma associação comercial intitulada National Recycling Coalition (12). A despeito dos pronunciamentos insistentes de políticos sem imaginação, de jornalistas céticos e de empresas que investiram na incineração – para os quais a economia da reciclagem jamais

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funcionará – 200 cidades dos EUA hoje ganham dinheiro reciclando mais da metade de seu lixo sólido (13).

A mera existência de uma ou duas empresas comunitárias bem sucedidas – que utilizem insumos locais, produzam bens de qualidade, operem em harmonia com o meio ambiente, vendam para consumidores locais, tratem bem os trabalhadores e propiciem lucros a acionistas locais – deveria inspirar outros a fazerem o mesmo. Como disse certa vez o falecido Kenneth Boulding, tudo que existe é possível (14). Essas novas empresas criarão novos empregos, impulsionarão as compras locais por parte dos empregados e ampliarão a base de impostos local. Na medida em que aumentar sua demanda por insumos à produção, essas empresas estarão motivadas a se estabelecer. Jane Jacobs sugere que “ao substituir antigas importações, uma cidade que adota a substituição de importações não importa menos do que o faria caso não adotasse a substituição, mas passa a fazer outras aquisições em lugar do que não mais necessita trazer de fora. A vida econômica como um todo se ampliou, a ponto de a cidade que substitui importações ter tudo o que tinha anteriormente, mais seu complemento de importações novas e diferentes (15).

Auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária não significa isolamento. Significa, sim, ampliar a base econômica para produzir os bens imprescindíveis à população local e concentrar os recursos existentes em um número maior de indústrias de valor agregado. Significa uma economia mais bem protegida contra mudanças abruptas no preço e no fornecimento de produtos importados. Significa empenho para manter uma fatia cada vez maior do multiplicador econômico em casa. O processo de substituição de importações nunca termina. Tão logo um conjunto de dependências é atendido, novas dependências tomam seus lugares. Mas cada nova dependência se torna cada vez menos vital para a sobrevivência de toda a comunidade. Novas dependências invariavelmente abrem novas oportunidades comerciais

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locais, desde que haja empresários locais preparados para aproveitá-las.

(4) Faculdades de administração amigas da comunidade

Poucos de nós têm experiência na administração de uma empresa mas, vale lembrar, o mesmo acontecia com o padre espanhol que iniciou Mondragon. Se você já tem o impulso de servir à sua comunidade, se você trabalha como voluntário servindo sopa aos pobres ou contribui para uma instituição de caridade local, pense em redirecionar essas boas intenções para a criação de uma empresa comunitária. Se você não está disposto a assumir a tarefa sozinho, convide outras pessoas com experiência administrativa para se tornarem seus parceiros em um novo empreendimento.

Uma lição importante de Mondragon é o papel central do treinamento. Muitos de nós que temos apenas uma formação em ciências humanas e recursos financeiros limitados temos o potencial de nos tornarmos bons empresários. As comunidades carecem de instituições de treinamento capazes de lhes proporcionar os meios e a confiança necessários para que sejam bem sucedidas. Você pode incentivar seus programas de educação de adultos e faculdades comunitárias com cursos de curta duração, como acontece em Milwaukee, a priorizar cursos de contabilidade e gestão, em detrimento do bridge e do tênis. As escolas de segundo grau podem receber financiamento comunitário para incrementar seus programas de treinamento vocacional. As instituições locais sem fins lucrativos podem criar escolas de treinamento. Em 1994, meu instituto criou a Escola de Ação Social e Liderança para Ativistas (SALSA), que oferece cursos noturnos em administração de instituições sem fins lucrativos a mais de 1.500 adultos anualmente, na área de Washington.

A transformação das faculdades de administração e dos departamentos de economia das universidades é outro imperativo. Essas instituições hoje privilegiam o lucro pessoal

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em detrimento do serviço comunitário. Lewis Mumford certa vez observou que a sociedade industrial transformou todos os sete pecados capitais – à exceção da preguiça – “em virtudes positivas. A cobiça, a avareza, a inveja, a gula, a luxúria e o orgulho são as forças propulsoras da nova economia” (16). Um estudo surpreendente da Universidade Cornell constatou que os alunos do curso de pós-graduação em economia, quando tinham a oportunidade de contribuir para instituições beneficentes, doavam metade do valor doado pelos alunos de outros cursos (17). Seu impulso caridoso na realidade diminuía na medida em que esses alunos acumulavam mais anos de treinamento, e atingiam um nível mínimo quando eles se tornavam professores.

A economia e a administração de empresas precisam se tornar profissões com os mais elevados princípios de caridade e serviço público. E seus praticantes devem atender aos mais altos padrões de conduta profissional e ética. É absurdo que os estados exijam que futuros médicos, advogados e contadores se submetam a exames extenuantes, durante vários dias, a fim de lhes conceder a licença para o exercício da profissão, enquanto aos futuros empresários basta assinar um cheque de US$ 200,00 em troca do privilégio de administrar uma empresa. Uma comunidade pode elaborar um exame de ética empresarial para assegurar que apenas as empresas administradas por indivíduos comprometidos com o bem-estar da comunidade recebam o Selo de Reconhecimento pela Preservação da Comunidade.

(5) Financiamento comunitário

Uma importante inovação de Mondragon foi associar criação empresarial, treinamento e transações bancárias. Mesmo que mercados promissores e empresários dedicados estejam disponíveis, nenhuma empresa pode iniciar suas atividades sem capital. Segundo a Administração de Pequenas Empresas dos EUA, uma em cada quatro novas empresas fracassa em dois anos e cerca de 70% em oito anos em decorrência, essencialmente, da subcapitalização (18).

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Quase todos nós temos poupança e conta corrente, cartões de crédito, contas de aposentadoria e Plano Keogh (conta de plano de aposentadoria com tributação diferida, idealizada para funcionários de pequenas empresas ou profissionais autônomos) em instituições da nossa escolha, com base em conveniência, taxas de retorno e grau de amicabilidade – mas não em lealdade à comunidade. Qualquer pessoa interessada no futuro que persistir nessa prática estará jogando dinheiro fora. Mesmo que seu banco atual apresente uma boa pontuação em relação aos critérios da Lei de Re-investimento na Comunidade, há grandes possibilidades de que ele não esteja financiando empresas da comunidade.

Há muitas formas para localizar operações bancárias, conforme sugere no meu livro [“Going Local”]. Uma opção seria persuadir seu atual banco (quer seja um banco comercial, uma sociedade de poupança e empréstimo imobiliário, ou uma cooperativa de crédito) a criar uma divisão especial que invista localmente e permita que clientes com espírito cívico depositem suas poupanças nessa conta. Uma outra opção seria convencer sua associação de bairro a criar uma cooperativa de crédito comunitária. A Administração Nacional de Cooperativas de Crédito certificou e segurou cooperativas de crédito com ativos totais que não ultrapassavam US$ 100 mil. Se tiver dificuldade para levantar capital suficiente para fazer jus ao seguro federal, você pode pressionar sua Câmara Municipal a comprar ações, transferir folhas de pagamento para o banco, ou oferecer um empréstimo ou uma garantia de empréstimo.

Quando um banco da comunidade pendurar uma placa e anunciar que há disponibilidade de crédito para empresas da comunidade, os empresários locais se apresentarão naturalmente. Caso isso não aconteça, o banco deve encontrá-los e treiná-los, talvez por intermédio de programas destinados a micro-empresas. Ou o banco pode criar um fundo especial para o desenvolvimento da comunidade, no qual empréstimos sem juros são trocados por ações e alguma

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responsabilidade gerencial, como faz Mondragon. Um banco comunitário pode apoiar mutuários empresariais, incentivando todos os seus clientes a fazer negócios com essas empresas. Pode enviar uma brochura mensal a seus clientes, com publicidade. Ou, ainda, criar um sistema comercial interno entre todos os beneficiários de empréstimos, como faz o Círculo Econômico na Suíça.

A necessidade de investidores locais aumentará na medida em que as empresas se expandirem. Um esforço conjunto precisará ser feito para convencer seus vizinhos a transformar suas pensões e outros ativos de ações e títulos globais em locais, e fundos mútuos sem preferência de colocação em fundos mútuos locais destinados a empresas da comunidade. Um aliado importante no redirecionamento de fundos de pensão pode ser a mão de obra. Sindicatos no Canadá criaram fundos de investimento nas províncias de Québec, Ontário, Columbia Britânica e Manitoba, que hoje investem US$ 3,1 bilhões em pequenas e médias empresas amigas do trabalhador. Sindicatos de funcionários municipais nos Estados Unidos podem exercer pressão para que seus fundos de pensão sejam reestruturados de forma semelhante e reinvestidos localmente.

Você pode ficar nervoso em fazer experiências com seus investimentos se eles forem essenciais – como o são para a maioria dos americanos – para a educação de seus filhos e sua própria aposentadoria. Essa pode ser a área na qual mesmo aqueles de nós com maior espírito comunitário ficaríamos relutantes em sacrificar ainda que um ou dois pontos percentuais de nossa taxa de retorno.

O risco, entretanto, não é exclusivo do investimento local. A maioria de nós esquece que praticamente todos os nossos investimentos hoje correm risco – e não estão segurados. Se o mercado de ações entrasse em colapso amanhã, sua segurança financeira de longo prazo poderia estilhaçar-se. Assim, a questão real é se você considera a atual economia de cassino, apinhada de especulação e baseada na

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exploração de trabalhadores de baixa renda e em ecossistemas em ruínas mais arriscada, no longo prazo, do que uma economia local revitalizada. Mesmo que o dinheiro de sua aposentadoria se saia bem em fundos de investimento convencionais, vale a pena procurar saber quão útil ele seria se sua aposentadoria precisar ser gasta em uma comunidade que está se desintegrando.

Analistas financeiros de correntes majoritárias argumentam que quaisquer restrições em um universo de investimentos – quer a preferência recaia sobre empresas socialmente responsáveis ou sobre empresas amigas da comunidade –reduzirão as taxas de retorno. Entretanto, há evidências cada vez mais fortes de que carteiras socialmente responsáveis se desempenham tão bem quanto as irresponsáveis (20); Por exemplo, John Guerard Jr., diretor de pesquisas quantitativas da Vantage Global Advisors, comparou o desempenho de um universo de 1300 ações com um universo selecionado de 950 empresas socialmente responsáveis. Um dólar investido na carteira não-selecionada em 1987 se teria transformado em US$ 2,77 ao final de 1994. Um dólar investido na carteira socialmente responsável se teria transformado em US$ 2,74 – um empate estatístico.

Entretanto, será que o risco aumenta quando restrições geográficas são impostas? Talvez. Mas o sucesso surpreendente de Mondragon, onde os fundos de pensão dos trabalhadores foram re-investidos em cooperativas, deveria deter os céticos, o mesmo acontecendo com a experiência do Fundo de Solidariedade de Quebec, acima mencionado, que investe estritamente em empresas sediadas na província. Um levantamento realizado em 1992 constatou que 87% dos investidores do Fundo, que incluía tanto membros de sindicatos quanto outros investidores, estavam satisfeitos com a taxa de retorno.

Ainda que se constate, em última análise, que os limites geográficos impõem alguns riscos, há uma solução intrigante. Comunidades auto-suficientes (ou auto-dependentes)

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poderiam criar parcerias nacionais – talvez até mesmo globais – entre si. Poderiam reunir algumas de suas carteiras de aposentadoria e investir nas empresas comunitárias umas das outras. Isso diversificaria as opções de investimento e reduziria o risco, mas de tal forma que continuasse a beneficiar empresas locais.

(6) Moeda comunitária

As compras locais andam de mãos dadas com os investimentos locais e nada os facilita mais do que o dinheiro local. O LETS, o HOURS de Ithaca e outros sistemas demonstram que o planejamento, o gerenciamento e o recrutamento de participantes com vistas à criação de uma moeda comunitária é um incrível projeto de organização que nos dá a percepção de quem vive na comunidade, que cidadãos estão comprometidos com a auto-suficiência (ou auto-dependência), que bens e serviços estão disponíveis localmente e onde eles estão disponíveis. Esse projeto também fortalece as relações entre empresas e consumidores locais e ratifica a avaliação pública de que toda compra é um ato cívico.

Nenhuma empresa deve receber o Selo de Reconhecimento pela Preservação da Comunidade a menos que aceite a moeda local. (Essa exigência não é na realidade punitiva, desde que a empresa esteja autorizada a aceitar outras moedas dentro e fora da comunidade). O princípio subjacente é simples: qualquer empresa que se recusa a aceitar a moeda local está se recusando a participar de um esforço comunitário para incrementar o multiplicador local e merece ser afastada. Se você não apoiar a comunidade, a comunidade não o apoiará mais.

Os organizadores devem tentar convencer o governo local a aceitar pagamentos de impostos em moeda local. Essa atitude, por sua vez, forçaria o governo em questão a certificar-se de que um número maior dos cheques de sua folha de pagamentos fosse emitido em moeda local e de que

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um número maior de seus contratos e suas compras envolvesse empresas locais. Os sindicatos de funcionários municipais poderiam até mesmo reivindicar aumentos de salários na moeda da comunidade.

A administração de um sistema de moeda comunitária oferece uma oportunidade importante para que os membros da comunidade discutam a economia local e planejem seu desenvolvimento. Debates sobre regras de entrada (o sistema deveria envolver apenas empresas com o Selo de Reconhecimento pela Preservação da Comunidade?) levantam importantes questões políticas sobre o significado de auto-suficiência (ou auto-dependência) local. A decisão sobre o suprimento correto de recursos financeiros democratiza e desmistifica escolhas que hoje são feitas em segredo pelos economistas da Diretoria do Federal Reserve, que se preocupam muito mais em manter a inflação nacional baixa do que em criar empregos e estabilizar comunidades.

(7) Uma prefeitura amiga da comunidade

Todos os passos acima podem ser dados por indivíduos e organizações que atuam oficiosamente. Não há lei nos Estados Unidos que proíba cidadãos que trabalhem em conjunto de criar um conjunto de princípios, conceder selos, compilar um Relatório do Estado da Cidade, estabelecer empresas e bancos locais, treinar empresários com espírito comunitário, empreender uma campanha em prol de investimentos locais e emitir uma moeda comunitária. Para toda e cada uma dessas atividades, a participação do governo local não é necessária – embora possa acrescentar experiência, legitimidade e financiamento.

Ainda assim, conforme detalhado no meu livro [“Going Local”], um governo local comprometido com a auto-suficiência (ou auto-dependência) da comunidade pode acelerar o ritmo de transformação. Pode garantir que os

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únicos beneficiários de investimentos, contratos, compras e financiamento de títulos locais sejam empresas da comunidade. Pode ajudar a igualar fornecedores locais de insumos e trabalhadores a produtores locais. Pode criar fundos de bolsas de estudo que incentivem os alunos melhores e mais inteligentes a voltar para casa após a universidade. Pode reestruturar impostos sobre rendas, riquezas e recursos para privilegiar empresas da comunidade.

Essas iniciativas constituem a plataforma que os políticos locais deveriam ser instados a endossar. Esqueça o pacote da Toyota e o acordo da Wal-Mart. Não se distraia com projetos jurássicos de estádios ou centros de convenções. Não permita mais que os políticos negligenciem a agenda econômica local, impressionando as pessoas com seus discursos sobre a criminalidade ou as mães que vivem da assistência social...

Se o Prefeito ou os membros da Câmara Municipal de sua cidade se recusam a adotar as posições econômicas que efetivamente importam, pense em competir com eles. Poucas, do meio milhão de autoridades locais eleitas na América, são políticos profissionais. Muitas delas são voluntários que também trabalham como advogados, médicos, professores, comerciantes, empregados de linhas de montagem ou ativistas. Você não precisa de muito dinheiro para conquistar uma vaga na Câmara Municipal (embora, até que uma reforma séria no financiamento de campanhas ocorra, alguma arrecadação de fundos seja necessária). E em uma cidade de tamanho médio, um candidato dedicado concorrendo, digamos, em um reduto de dez mil pessoas, pode conhecer a maioria dos eleitores visitando igrejas e empresas, postando-se em intercessões movimentadas e estações de trem e percorrendo, de porta em porta, cada zona eleitoral.

(8) Reforma política

Uma comunidade que inicia a transição para a auto-suficiência (ou auto-dependência) logo encontrará inimigos poderosos. Empresas multinacionais que estejam perdendo

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mercados locais e privilégios especiais do governo certamente retaliarão. Elas farão lobbying junto a governos estaduais e nacionais para retirar os poderes de governos locais e continuarão a utilizar tratados comerciais e salas de tribunal cordiais para, sempre que possível, burlar os incômodos da democracia. Mas sua reação mais provável – e mais perigosa – será apertar o cerco aos governos locais. Desde que a América continue comprometida com um mercado livre no poder político, no qual votos e influência podem ser vendidos a quem pagar o melhor preço, as empresas multinacionais com enormes cofres financeiros poderão fazer lobbying e campanhas, e persuadir com agrados e subornar políticos para que se posicionem contra a auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária. O princípio central da política neste país passou de uma pessoa/um voto para US$1/um voto.

Os americanos apresentam os índices mais baixos de participação em eleições em todo o mundo desenvolvido. Enquanto três em cada quatro eleitores qualificados no norte da Europa votam em suas eleições nacionais, apenas um em cada dois eleitores americanos participa de eleições presidenciais (21). Das nove democracias ocidentais recentemente estudadas, os Estados Unidos também apresentaram a taxa mais baixa de participação em eleições municipais e a maior lacuna entre as taxas de participação municipal e nacional (22). Não é segredo o fato de que os americanos estão cada vez mais frustrados com seu sistema político e desistindo de participar.

A percepção amplamente difundida é a de que votar não faz a menor diferença. O jornalista William Greider escreve: “O que os desiludidos estão dizendo, o que tenho ouvido em muitos lugares diferentes, é que a política das eleições lhes parece fora de propósito – desconectada de qualquer coisa que efetivamente importe” (23). Se as eleições e as políticas podem ser compradas pelos ricos, se a escolha de candidatos é sempre entre seis e meia dúzia, se os eleitos aparentemente fazem muito pouco, de qualquer forma – por que se

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preocupar? A reforma política, portanto, é um passo essencial para a criação da auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária.

Pelo menos quatro tipos diferentes de reforma seriam úteis. Primeiramente, sérias restrições ao financiamento de campanhas poderiam ajudar a disseminar a convicção cínica de que a política é apenas para os ricos. Enquanto o dinheiro for uma parte cada vez mais importante da política americana, os pobres relutarão em concorrer a um cargo eletivo ou em participar do sistema político. Um dia, um Supremo Tribunal Federal mais sábio poderá reconsiderar os princípios de Buckley v. Valeo, que equiparou a habilidade irrestrita para gastar dinheiro em campanhas políticas à liberdade de expressão da Primeira Emenda Constitucional (24). Até lá, os governos locais deveriam refletir sobre a criação de sistemas de financiamento público de campanhas eleitorais, os quais um candidato poderia optar por não aceitar (como Buckley exige), mas ao preço da humilhação pública.

Um segundo problema são os partidos políticos cansados da América. A forte manifestação da candidatura de Ross Perot à presidência em 1992 (a melhor exibição de um terceiro partido desde 1912) sugere uma desilusão crescente da população com o sistema bipartidário. Diferentemente de seus irmãos europeus, os partidos políticos da América não representam ideologias bem definidas, coerentes. Os estrangeiros que observam a política americana ficam surpresos em ver como são pequenas as discrepâncias entre Republicanos e Democratas. Hoje, os líderes nacionais dos dois partidos, por exemplo, se opõem à re-distribuição de renda aos pobres, aos cortes no orçamento militar, ao sistema único de saúde, a direitos mais amplos aos sindicatos e à reforma do financiamento de campanhas. Ambos os partidos são dominados por empresas globe-trotters e pelos ricos, com as organizações de origem popular – tanto de direita quanto de esquerda – marginalizadas. O surgimento de novos partidos políticos poderia acentuar as posições dos partidos

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existentes, aumentar a probabilidade de que pelo menos um partido representasse o interesse das comunidades e tornar o debate público mais informativo e participativo. O fato de que a maioria das eleições locais é não-partidária, na realidade permite que os candidatos se alinhem com partidos embriônicos e vençam as eleições.

Uma terceira reforma valiosa seria limitar os mandatos, que contém a promessa de colocar um fim no controle monopolista de cargos políticos por parte de uma categoria profissional de políticos relativamente pequena. Quanto mais tempo um político permanecer no cargo, maior a probabilidade desse político ser capturado por interesses especiais. Limites de mandatos aumentam a probabilidade de que novatos, não-profissionais e pessoas pobres concorram a um cargo eletivo. Vozes populares também poderão ser mais bem ouvidas nas eleições se os cidadãos tiverem poder para colocar iniciativas nas cédulas e a opção de votar em “nenhum dos nomes acima” (o que exigiria que os partidos retrocedessem e escolhessem outros candidatos).

Um aspecto final da atribuição de poderes ao cidadão é a criação de formas para que as pessoas participem nos períodos entre as eleições. As comunidades podem criar – a exemplo do que fez Berkeley – uma ampla rede de comissões administradas por cidadãos dedicadas a diferentes questões de política que afetam a comunidade. Essas comissões poderiam ter o poder de fazer pequenas doações e submeter leis às câmaras municipais. Se os membros das comissões forem eleitos, eles incrementarão os tipos de inspeções e equilíbrios no governo municipal que podem ajudar a evitar a insularidade e a corrupção.

(9) Lobby em favor do localismo

Sugeri no meu livro [“Going Local”] muitas formas pelas quais as comunidades têm um interesse crítico na formulação de políticas regional, estadual, nacional e internacional. As autoridades eleitas localmente precisam conduzir a revolução

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da devolução, para que recebam poderes de fato sobre a economia local e não apenas mais responsabilidades sem a capacidade de arrecadar receitas para pagar por elas. Elas precisam forçar o governo nacional a re-direcionar as políticas comerciais da nação para longe da autocracia centralizada da Organização Mundial do Comércio e em direção aos princípios matizados do federalismo americano. Elas devem convencer o Congresso a abolir a previdência social para empresas e bancos que não sejam leais às comunidades.

Hoje, um governante eleito localmente que empreende viagens oficiais a Washington está vulnerável a acusações de estar viajando às custas dos cofres públicos e negligenciando os problemas locais. Esse tipo de pensamento político está obsoleto. Se os políticos locais não re-definirem a agenda federalista, os capitães das empresas destruidoras de comunidades o farão. Literalmente, milhares de lobistas de empresas multinacionais estão trabalhando nos corredores do poder em Washington, Nova York, Bruxelas e Genebra.

A estruturação da agenda para lobistas comunitários constitui uma oportunidade para discussões públicas, apresentação de insumos e planejamento. A câmara municipal – ou talvez um órgão subsidiário – pode realizar uma série de audiências anuais sobre a agenda nacional e internacional da comunidade. Posteriormente, deve-se investir em lobistas profissionais (ou pelo menos em uma parte do tempo de um lobista), para que lutem regularmente pela agenda.

(10) Interlocalismo (25)

Os profissionais da auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária devem estar atentos ao paroquialismo e ao isolacionismo. Uma comunidade que se retira do mundo não pode assumir suas responsabilidades sérias como uma parte do mundo. Durante muito tempo, equiparamos a cidadania global responsável à interdependência econômica. Como salientam os cientistas políticos, entretanto, a interdependência econômica será construtiva apenas se o

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poder entre os atores for equilibrado (26). A interdependência que entrega o poder a forasteiros implica custos econômicos de longo prazo e cria o potencial para um grave conflito. Poucas comunidades no mundo de hoje têm poder sobre empresas independentes que orientam a globalização. Nesse contexto, uma maior interdependência econômica assegura maior dependência, vulnerabilidade e exploração.

Um caminho mais responsável para uma comunidade com espírito global é deslocar-se em direção à auto-suficiência (ou auto-dependência) e ajudar outras comunidades em todo o mundo a fazerem o mesmo. Como? Transferindo inovações tecnológicas e de políticas que fomentem a auto-suficiência (ou auto-dependência), especialmente para as comunidades mais pobres do mundo, que necessitam desesperadamente de uma nova abordagem ao desenvolvimento sustentável. Mais de duas mil comunidades de países ricos no Hemisfério Norte têm algum tipo de relação com um igual número de comunidades no Hemisfério Sul. Os americanos chamam essas relações de “cidades irmãs”; os europeus de “elos” ou “ligações”. Algumas vezes elas existem apenas no nome, mas freqüentemente incluem intercâmbios de cultura, informações, tecnologia, finanças, experiências e políticas. As melhores dessas relações não fazem isso por lucro pessoal, mas sim pelo bem público.

Muitos participantes dessas relações cidade-a-cidade falam a língua da auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária e trilham o caminho do capital móvel. Os prefeitos americanos que apóiam relações com cidades-irmãs, bem como os líderes da organização que sustenta esses laços (a Sister Cities International), proclamam que novos contratos para empresas voltadas para a exportação são medidas de sucesso. Uma melhor medida seria o ponto até o qual os parceiros municipais, trabalhando em conjunto, podem reduzir sua dependência do comércio.

A cidade-Estado de Bremen, na Alemanha, por exemplo, está disseminando tecnologia de biogás para ajudar as

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comunidades a se tornarem mais auto-suficientes (ou auto-dependentes) em energia. Desde 1979, a cidade co-patrocinou três conferências sobre biogás, financiou um boletim técnico intitulado “Fórum do Biogás” e apoiou projetos de demonstração por intermédio da Associação de Pesquisa e Desenvolvimento de Bremen para o exterior (BORDA). Durante a década de 1980, a associação gastou mais de US$ 300 mil para distribuir digestores de biogás em comunidades no Malí, na Etiópia e na Tanzânia.

Por intermédio da Agência de Desenvolvimento Internacional do Canadá, 22 cidades canadenses transmitiram a funcionários municipais africanos as habilidades técnicas necessárias para planejar sistemas mais eficientes de água e transporte. Cada cidade canadense participante deverá fornecer três administradores ou técnicos urbanos para trabalhar por um curto período de tempo na África e receber dois ou mais profissionais de sua comunidade parceira africana por um período de três semanas.

Para lutar contra a devastação de florestas tropicais, os europeus forçaram comunidades nacionais e internacionais a encontrar substitutos para a madeira tropical. Dois terços das comunidades dos Países Baixos adotaram uma política oficial para reduzir “sempre que possível” o consumo de madeira tropical em projetos municipais. Graças às cartas escritas por prefeitos colaboradores, a campanha gradualmente atingiu outros municípios na Europa e no Japão.

Mais de 150 municípios europeus, inclusive 75 dos Países Baixos e 20 da Áustria, estão lutando contra o aquecimento global por intermédio da Aliança do Clima. As cidades participantes do norte comprometeram-se a reduzir suas emissões de dióxido de carbono à metade até 2010, por meio de conservação de energia, melhor transporte público e compras seletivas (não adquirindo, por exemplo, produtos que contenham clorofluorcarbonos ou madeira-de-lei tropical). Essas cidades também estão prestando assistência financeira e jurídica a comunidades da América do Sul, essencialmente a

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comunidades indígenas, no levantamento, na demarcação e na proteção da floresta tropical Amazônica.

Todos esses exemplos demonstram que a busca da auto-suficiência (ou auto-dependência) não leva inevitavelmente ao isolamento. Nada disseminará a economia pró-comunitária mais rapidamente do que a colaboração entre cidades comprometidas com a busca conjunta da auto-suficiência (ou auto-dependência). Comunidades em todo o mundo precisam compartilhar informações sobre o que está funcionando em termos de serviços bancários, moedas locais, agricultura urbana, produção de energia renovável, etc. O Conselho Internacional de Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI), sediado em Toronto, abrange atualmente 266 cidades que pagam uma média de US$ 2.000,00 em contribuições para compartilhar tecnologia de ponta e formulação de políticas destinadas à proteção do meio ambiente. A Organização das Cidades Unidas (UTO), em Paris, e a União Internacional de Autoridades Locais (IULA), em Haia, estão promovendo colaboração interlocal na área de desenvolvimento sustentável. Outras redes globais de cidades estão lutando por direitos humanos, controle de armamentos e responsabilidade empresarial. Na medida em que aumentar o número de comunidades que utilizam a Internet e outras formas de telecomunicação, esse tipo de compartilhamento de informações e de colaboração globais deverá se tornar mais fácil e barato.

A nova aldeia global

Em um mundo com um número cada vez maior de comunidades auto-suficientes (ou auto-dependentes), ainda haverá empresas comerciais e do tipo globe-trotters, embora a expectativa seja de que o comércio venha a envolver bens e serviços menos essenciais e essas empresas tenham menos poder sobre a vida das pessoas. Um dos desafios contínuos para as comunidades será como gerenciar essas forças externas. Aqueles que se preocupam há muitos anos com a

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mobilidade de capital, esperavam criar um código de conduta empresarial global. A idéia percorreu as ante-salas das Nações Unidas durante anos e se tornou uma demanda padrão em declarações de países não-alinhados e do Terceiro Mundo. O Centro de Corporações Transnacionais da ONU chegou a esboçar esse código. Mas as empresas globais reagiram com uma vingança. O jornal “The Wall Street Journal” e outros meios de comunicação conservadores ridicularizaram esses esforços e, sob a liderança dos EUA, o Centro da ONU foi extinto. O resultado é que as instituições globais hoje estão promovendo liberdade empresarial por meio da OMC, em vez de responsabilidade empresarial por meio das Nações Unidas.

Ainda que a abordagem centralizada à responsabilidade empresarial esteja agonizando, é possível conceber-se uma carta social esboçada e implementada no nível popular. Imagine centenas de comunidades em todo o mundo se reunindo, formulando um código de conduta padrão para as empresas, criando uma câmara de compensação central de informações sobre o comportamento das empresas e concordando em investir em e adquirir produtos de empresas responsáveis. Poder-se-ia idealizar um Selo de Reconhecimento pela Preservação da Comunidade global, que um consórcio de comunidades e organizações não-governamentais (ONGs) poderia conceder a empresas responsáveis perante sua força de trabalho, sua base comunitária e ecossistemas.

Uma comunidade auto-suficiente (ou auto-dependente) poderia, em última análise, empenhar-se no sentido de negociar apenas com outras comunidades comprometidas em aderir a esse sistema global de classificação. O comércio global prosseguiria, mas apenas entre parceiros comprometidos com uma visão de comércio centrada na comunidade. Uma conseqüência dessa estratégia poderia ser o surgimento de dois blocos globais de comunidades, cada um deles adotando diferentes paradigmas econômicos e negociando com diferentes empresas. O “bloco neoliberal” de comunidades poderia se beneficiar de produtos mais baratos

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e taxas mais altas de retorno para seus investimentos, mas também teria de suportar condições de trabalho em deterioração, colapso do meio ambiente, e instabilidade comunitária. O “bloco socialmente responsável” poderia acabar pagando preços mais altos, mas gozaria de uma melhor qualidade de vida. Embora as comunidades e as empresas no último bloco constituíssem, inicialmente, uma minoria, no transcorrer do tempo – na medida em que um número maior de trabalhadores no bloco neoliberal perdesse seu emprego e salário, os problemas de poluição e produtos perigosos se multiplicassem e organizações ecológicas, trabalhistas e de mudança social surgissem para responder a esses problemas – um número cada vez maior de comunidades e empresas neoliberais provavelmente começasse a optar por uma melhor qualidade de vida em detrimento de noções obsoletas de eficiência econômica. A mera existência de um bloco alternativo daria aos políticos e ativistas comprometidos com uma nova economia do local e interlocal uma meta concreta para que se organizassem.

Os estágios iniciais dessa colaboração interlocal já podem ser vistos no movimento denominado “comércio justo”, que começa a surgir, no qual os compradores de países desenvolvidos adquirem bens diretamente dos produtores de países pobres. Nos Países Baixos, mais de 300 comunidades e 11 (de 12) governos de províncias estão comprando o “café da solidariedade” de pequenos produtores em países como a Guatemala e a Nicarágua, a um preço ligeiramente superior, a fim de garantir que os produtores tenham renda suficiente para ganhar a vida dignamente. Ao evitar a figura do intermediário, o qual geralmente abocanha uma parcela considerável dos lucros, os negociantes justos conseguem vender o café em grão a grandes empresas de torrefação e distribuição a preços competitivos. Os compradores podem identificar o café da solidariedade pelo selo de aprovação “Max Havelaar”. Em apenas quatro anos, o café da solidariedade capturou mais de dois por cento do mercado de café nos Países Baixos e, juntamente com o chá e o chocolate da solidariedade, está sendo introduzido na Bélgica, na

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França, na Alemanha, em Luxemburgo, na Suíça e no Reino Unido.

Hoje há cerca de 500 “lojas do Terceiro Mundo” na Alemanha, 300 Wereldwinkels (“lojas mundiais”) nos Países Baixos e 20 “Casas do Terceiro Mundo” na Dinamarca, muitas das quais recebem apoio financeiro de autoridades locais. Essas lojas vendem artesanato, roupas e outros produtos de países pobres, com pouco ou nenhum lucro. Os artigos são adquiridos de pessoas ou cooperativas no Terceiro Mundo que paguem salários dignos e ofereçam condições de trabalho decentes. Exposições e literatura nas lojas ajudam a informar o cliente sobre a fabricação dos produtos; os lucros algumas vezes são empregados para pagar por aulas sobre a economia global. Essas lojas também podem ser encontradas nos Estados Unidos, embora a maior parte das transações comerciais lícitas no país seja feita pelo correio, por intermédio de empresas como a One World Trading e a Pueblo to People.

Um bloco global de comunidades socialmente responsáveis, solidificado por meio de um comércio justo e institucionalizado com contribuições das cidades membros, ajudaria a solucionar os demais desafios de se tornar local. A fim de fornecer a quantidade cada vez mais reduzida de produtos associados a grandes economias de escala, essa nova organização internacional poderia intermediar a formação de redes de fabricação flexíveis. Poderia criar uma carteira de aposentadoria diversificada e geograficamente dispersa, que investisse em empresas da comunidade. Poderia, ainda, converter moedas locais em bases mais justas do que atualmente o fazem o Fundo Monetário Internacional e os grandes bancos. Poderia criar um novo Banco Verde Global, que fornecesse capital inicial para cooperativas de crédito comunitárias e fundos de microcrédito em todo o mundo. E poderia atuar junto à OMC e outros organismos internacionais, no sentido de que regras anticomunitárias fossem revistas ou rejeitadas. O universo de iniciativas interlocais possíveis obedece apenas aos limites de nossa imaginação.

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A estratégia liliputiana

Será que uma economia do século XXI pode ser localizada? Os céticos provavelmente se lembrarão da história do Grande Salto para o Futuro. Em 1958, Mao Tsé-tung e o Partido Comunista da República Popular da China arrastaram milhões de agricultores relutantes pelo caminho da industrialização, dando ordens a 25 mil comunas para que estabelecessem suas próprias fábricas. Milhares de usinas de pequena escala foram montadas às pressas na zona rural para produzir aço, cimento, fertilizante, energia e maquinário, com tecnologias inadequadas, sem coordenação central e sem o apoio e as peças necessários. O resultado foi o caos, e a União Soviética imediatamente decidiu retirar seus técnicos da China. As imagens do Grande Salto que persistem até os dias de hoje são as de usinas dilapidadas e ociosas.

Já que em nenhuma parte do meu livro [“Going Local”] há recomendações no sentido de que o governo confisque à força e converta as empresas existentes em estruturas de propriedade da comunidade, a analogia com o Grande Salto é absolutamente irrelevante. As empresas comunitárias devem ser formadas voluntariamente, não por decreto do governo; devem ser adaptadas às necessidades de cada comunidade e não a uma ideologia central; devem ser orientadas pelas realidades de um mercado não subsidiado e não a despeito dessas realidades. Ademais, mesmo na medida em que pequenas empresas da comunidade atenderem às necessidades locais, empresas maiores da comunidade ou redes de empresas da comunidade continuarão a produzir e oferecer produtos complexos, tais como computadores e aviões, que as comunidades não podem produzir, de forma eficiente, por conta própria. As empresas comunitárias são ferramentas para a evolução da auto-suficiência (ou auto-dependência) e não um princípio totalitário de organização para cada parte da economia.

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Mas o Grande Salto suscita uma importante pergunta: Será que a ação comunitária pode efetivamente definir a agenda econômica de uma nação? Ou do mundo? As forças das empresas móveis parecem tão grandes, tão globais, tão refratárias, que qualquer coisa feita no nível local pode parecer insignificante – algo como combater a seca com um conta-gotas. Mas nenhuma empresa pode existir sem clientes e investidores. Retire qualquer um deles e até mesmo a empresa mais poderosa sucumbirá. Nossos próprios poderes para adquirir bens ou ações próprias são o calcanhar de Aquiles das gigantescas bestas comerciais que vêm destruindo as comunidades.

Iniciei minha própria jornada na política há vinte anos, durante uma campanha contra a energia nuclear. Naquela época, a disseminação da energia nuclear e de suas “externalidades” (resíduos radioativos, fusões, acidentes com combustíveis usados, proliferação de armas) parecia inevitável. Havia setenta usinas nucleares em operação, e as empresas de utilidade pública falavam da necessidade de se construir pelo menos um reator por dia até a virada do século. Dezenas de milhares de manifestantes tentaram deter uma indústria nuclear de mais de US$ 100 bilhões. Esses manifestantes se atiravam na frente de tratores e eram presos nos locais de construção de reatores. Enfrentaram dezenas de batalhas em tribunais desafiando as análises de saúde, segurança e meio ambiente e insistiram na modificação dos projetos. Promoveram plebiscitos e submeteram projetos de lei às assembléias legislativas estaduais para fechar usinas nucleares.

No final, entretanto, essas iniciativas não mais importavam. Algo muito mais sutil, inesperado e poderoso acabou por destruir a indústria nuclear: as pessoas pararam de comprar mais eletricidade. Na medida em que os americanos começaram a detectar e eliminar os usos ineficientes de energia, as projeções de demanda de energia despencaram. Às empresas de utilidade pública restou definir não se as

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próximas usinas de energia deveriam ser nucleares, mas se novas usinas de energia seriam de fato necessárias.Há uma importante lição em tudo isso. Por que nos exaurirmos lutando contra empresas que se comportam mal? Se criarmos nossas próprias empresas com base em uma nova visão de responsabilidade social e se optarmos por comprar e investir apenas nessas empresas, as outras empresas se adaptarão ou morrerão. Se criarmos um número ainda que pequeno de comunidades auto-suficientes (ou auto-dependentes), nas quais todo morador tenha um emprego decente que produza bens essenciais para um e para todos, outras comunidades nos visitarão, aprenderão conosco e nos seguirão. Nós temos muito mais poder do que imaginamos.

Grandes momentos de decisão na história da humanidade foram definidos por lutas cruciais. O Renascimento foi uma luta entre aqueles que abraçavam o mito e a superstição e aqueles que buscavam a verdade empírica. Os séculos 18 e 19 testemunharam uma luta entre monarcas que se agarravam ao poder por direito hereditário e democratas que acreditavam nos direitos naturais de todas as pessoas à auto-governança. O século 20 tem visto uma luta pela definição de progresso entre engenheiros sociais que buscavam conquistar a natureza e ecologistas que buscavam alcançar um equilíbrio com essa mesma natureza. A grande luta do século 21 será travada entre aqueles que acreditam em produtos baratos e aqueles que acreditam em lugares. Essa é uma luta que desafia definições ideológicas simples. Os defensores de produtos baratos hoje dominam os maiores partidos políticos e administram praticamente todas as Prefeituras no País. Mas em todo o espectro político há dissidentes que se preocupam com os custos para a natureza, para as famílias e para as comunidades. Eles querem saber se o futuro da civilização e da humanidade deve ser definido por um desejo ilimitado de consumir.

Muitos de nós sabemos, em nossos corações, que há muito mais na vida do que a próxima liquidação no shopping. Muitos de nós ansiamos por laços mais profundos com nossas

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famílias, nossos vizinhos e nosso meio ambiente. Desejamos desesperadamente adquirir um senso de espaço no qual possamos alimentar a cultura e nos orgulharmos de nossa história. Trabalhamos longas horas para legar aos nossos filhos e netos os tipos de comportamento econômico que dêem prosseguimento à prosperidade. Por que apenas imaginar o que seria possível fazer em seu quintal? Por que apenas sonhar com um passado remoto ou um futuro distante? Por que não começar hoje?”

NOTAS E REFERÊNCIAS DE MICHAEL SHUMAN

(1) Shuman, Michael (2000). Going Local: creating self-reliant communities in a global age. New York: Routledge, 2000. Michael H. Shuman ([email protected]), ex-diretor do Institute for Policy Studies, atualmente é diretor da Village Foundation’s Institute for Economics and Entrepreneurship (www.villagefoundation.org). As notas e referências seguintes são do autor.

(2) Ralph Estes, “Tyranny of the Bottom Line: Why Corporations Make Good People Do Bad Things” (São Francisco: Berrett-Koehler, 1996), pags. 220-31. Veja também Thad Williamson, "The Content of Ethical Impact Reports: A Two-Tiered Proposal", Tikkun, Vol. 12-4, pags. 36-40.

(3) Wess Roberts, “Victory Secrets of Attila the Hun” (Nova Iorque: Dell Trade, 1993), pag. 59.

(4) John P. Kretzmann e John L. McKnight, “Building Communities from the Inside Out” (Evanston, IL: Centro para Temas Urbanos e Pesquisas sobre Políticas, 1993).

(5) Elizabeth Kline, "Sustainable Community Indicators" (monografia) (Medford, MA: Consórcio pela Sustentabilidade Regional, 1995) e Elizabeth Kline, "Defining a Sustainable Community" (monografia) (Medford, MA: Consórcio pela Sustentabilidade Regional, 1993).

(6) Richard Douthwaite, “Short Circuit” (Devon, Reino Unido: Resurgence, 1996), pag. 336.

(7) Ibid., pag. 337.

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(8) Alex MacGillivray e Simon Zadek, "Accounting for Change" (monografia) (Londres: Fundação New Economics, outubro de 1995), pag. 26.

(9) Um bom resumo desses estudos pode ser encontrado em Christopher Gunn e Hazel Dayton Gunn, “Reclaiming Capital: Democratic Initiatives and Community Development” (Ithaca, Nova Iorque: Editora da Universidade de Cornell, 1991), pags. 37-53.

(10) Michael E. Porter, "New Strategies for Inner-City Economic Development", “Economic Development Quarterly”, fevereiro de 1997, pag. 14.

(11) John J. Berger, “Charging Ahead: The Business of Renewable Energy and What It Means for America” (Nova Iorque: Henry Holt, 1997), pag. 61.

(12) Brenda Platt, Pesquisadora Sênior do Instituto para a Auto-Dependência Local, Comunicação Pessoal , 16 de abril de 1997.

(13) Ibid.

(14) Kenneth Boulding, “Stable Peace” (Austin, Texas: Editora da Universidade do Texas, 1981), pag. 93.

(15) Jane Jacobs, “Cities and the Wealth of Nations” (Nova Iorque: Vintage, 1984), pag. 42 (ênfase no original).

(16) Lewis Mumford, “The Transformation of Man” (Nova Iorque: Harper, 1956).

(17) Douthwaite, nota 6 supra, pag. 334.

(18) Brian Headd, Encarregado de Ações de Advocacy da Administração de Pequenas Empresas dos Estados Unidos, Comunicação Pessoal, Julho 1997.

(19) Sherman Kreiner e Kenneth Delaney, "Labour-Sponsored Investment Funds in Canada" (monografia) (Winnipeg, Canadá: Crocus Fund, 1996).

(20) Patrick McVeigh, "Study SRI No More", “Investing for a Better World”, 15 de outubro de 1996, pag. 1. Veja também Estes, nota 2 supra, pag. 238.

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(21) Robert L. Morlan, "Municipal vs. National Election Voter Turnout: Europe and the United States", “Political Science Quarterly”, Outono de 1984, pag. 462 (Tabela 1).

(22) Ibid., pags. 462-65.

(23) William Greider, “Who Will Tell the People: The Betrayal of American Democracy” (Nova Iorque: Editora Simon & Schuster, 1992), pag. 22.

(24) Buckley v. Valeo, 424 U.S. 1 (1976).

(25) Os exemplos citados nesta seção foram extraídos de Michael H. Shuman, “Toward A Global Village: International Community Development Initiatives” (Londres: Editora Pluto Press, 1994).

(26) Robert Keohane e Joseph Nye, Jr., “Power and Interdependence”, 2a ed. (Glenview, IL: Scott, Foresman, 1989).

(27) Shuman, nota 25 supra, pags. 30-31.

Localização e revolução do local

A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que seu aspecto subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede e dedicados a promover movimentos de resistência e de geração de

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identidade – que dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local.

Em geral usamos, como equivalentes, as expressões ‘transformação social’, ‘mudança social’ ou ‘revolução social’ para designar, pelo menos, duas coisas diferentes: i) o “conjunto de forças cegas e impessoais, tendências estruturais e contradições às quais os agentes humanos estão expostos como objetos, ou como vítimas passivas a quem a mudança “acontece”; e ii) o “resultado de esforços deliberados e intencionais de agentes humanos racionais para dar conta, individual ou coletivamente, de necessidades e problemas que eles encontram na sua vida social, econômica e política” (ver Texto 12).

A velha idéia de revolução estatal-nacional

A solução para tal ambigüidade do conceito de ‘revolução’, encontrada pelos movimentos políticos revolucionários, de inspiração marxista, do último século, foi a de tentar fundir esses dois grandes sentidos, estabelecendo que as revoluções são feitas, sim, por agentes humanos, sujeitos intencionados que, em virtude do seu trabalho militante de organização e ação políticas reuniriam, portanto, as condições subjetivas

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necessárias para fazer eclodir ou desencadear o processo revolucionário a partir da fixação de objetivos, da elaboração e aplicação da estratégia (ou seja, do planejamento dos passos do caminho para atingir tais objetivos), da formulação da tática (ou dos modos de atuação capazes de materializar a estratégia em circunstâncias diversas) e, enfim, de uma forma organizativa fulcral portadora de um programa (isto é, de um conjunto de medidas que, ao serem tomadas, dão desdobramento ao projeto estratégico). No entanto, tais agentes só poderiam lograr seu intento caso estivessem consteladas as condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário (e essas condições seriam objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos sujeitos).

É óbvio que esse sentido prático ou pragmático de revolução manejado pelos movimentos revolucionários, em geral identificados com o marxismo-leninismo ou herdeiros não-renunciantes dessa tradição, é orientado por razões políticas. As condições para realizar o projeto exigem um poder suficiente para implementar o programa, o que requer, por sua vez, a posse dos instrumentos capazes de viabilizar a sua execução. Esse poder foi encarado como o poder político decorrente da conquista do Estado por parte dos movimentos revolucionários. Portanto, o primeiro objetivo seria empalmar o poder de Estado, apossar-se dos seus instrumentos ou aparelhos (os meios de coerção e dissuasão, administração, controle e regulamentação ou normatização, cooptação ou sedução). Ora isso implica uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses aparelhos. Essa luta é a revolução política – passo necessário para desencadear a revolução social propriamente dita.

A estratégia passa, assim, a ser compreendida como uma urdidura, um plano para “dar o bote” invertendo a correlação de forças, seja por meio da violência, seja por meios pacíficos, em geral pela via eleitoral nas democracias. Mas em qualquer caso o modelo político de atuação é fornecido por essa espécie de “teoria do bote”. A conquista do aparelho de Estado reflete uma mudança na correlação de forças existente

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na sociedade – de vez que exige uma certa “acumulação”, que desequilibre a balança do poder a seu favor, por parte do contingente revolucionário (em geral organizado em um partido ou em uma frente de partidos e outras organizações), sem o que não é possível adquirir o comando dos centros decisórios (em geral as estruturas do governo central), tomando-os pela emprego da violência ou ganhando uma eleição decisiva. Para tanto, é necessário “acumular forças” para “dar o bote” na hora certa.

Evidentemente tudo isso se baseia em uma certa visão adversarial da política (vista como um campo de relações amigos x inimigos), segundo a qual a sociedade se divide em grupos com interesses e opiniões contraditórios os quais, em algum momento próximo a um desfecho final, se agruparão sempre em grandes campos em confronto. A revolução política é, então, sempre uma luta, uma sucessão de combates, uma guerra (com ou “sem derramamento de sangue” – termos, aliás, com o quais Mao definia a própria política) (1). Há, sempre, um momento decisivo, aquele que define qual grupo vai empalmar o poder de Estado (daí a “teoria do bote”).Depois, é claro, restam por fazer todas as tarefas substantivas. O poder de Estado é o meio, o instrumento fundamental para realizar tais tarefas (consubstanciadas no programa revolucionário). Mas depois é depois. O instrumento fundamental a ser conquistado para que se possa realizar as medidas é tão importante (e coloniza de tal maneira a consciência dos agentes) que o objetivo intermediário da sua conquista embaça a visão do objetivo final (a implantação do projeto revolucionário de transformação da sociedade).

Assim, a conquista e a retenção pelo maior tempo possível do poder conquistado não raro se constitui, na prática, como o objetivo final do projeto revolucionário. Por quê? Porque mesmo tendo ocupado os aparelhos do Estado é necessário mantê-los nas mãos até que se possam consumar as medidas do programa. Como, em geral, a posse desses aparelhos e a hegemonia política estabelecida dentro das instituições

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governamentais não são suficientes para assegurar a realização dessas medidas, torna-se necessário, sempre, conquistar ainda mais poder para garantir a sua consecução. Então se, por exemplo, um partido conquistou o executivo central de uma república, cabe conquistar também o legislativo e controlar (ou pelo menos estabelecer um relacionamento que subordine) o judiciário e o ministério público, tanto em âmbito nacional quanto em todas as demais esferas onde tais poderes republicanos constitucionalmente se estabelecem. E se isso não basta, cabe controlar (ou, pelo menos, pressionar para “domesticar”) os meios de comunicação. E finalmente, cabe exercer um controle sobre a (ou reduzir os graus de liberdade da) sociedade – o mercado e a própria sociedade civil –, sobre os (ou dos) seus entes e processos, em todas as esferas.

É óbvio que essa idéia de revolução – esboçada aqui com tal ênfase em certos aspectos que a tornam até um pouco caricatural – leva à autocracia. E é óbvio que ela tem poucas chances de se realizar em uma sociedade-rede nas democracias modernas na medida em que a posse de aparelhos estatais (e mesmo o controle sobre os aparatos oficiais de propaganda e sobre os recursos orçamentários a eles destinados e a capacidade de pressionar e subordinar os complexos privados de comunicação) não pode garantir o controle sobre as redes sociais e as novas formas de agenciamento que elas ensejam e dinamizam.

Podemos, entretanto, fazer um exercício de exposição, tomando inclusive as mesmas categorias tradicionais utilizadas pelos movimentos revolucionários de inspiração marxista, para evidenciar os aspectos que distinguem essa velha idéia de revolução estatal-nacional (como revolução política), vamos dizer assim, de uma nova idéia de revolução do local (como revolução social).

A velha idéia de revolução era uma idéia de transformação no âmbito do Estado-nação e referenciada, portanto, nessa forma de Estado, tendo, na prática, o efeito de fortalecê-la e não

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questioná-la, mesmo quando incluía a pregação por uma revolução mundial (que aboliria, em algum lugar do futuro, todas as fronteiras et coetera).

Como já haviam percebido os anarquistas, a velha idéia de revolução do marxismo-leninismo (e, mesmo, das variantes social-democratas mais pacíficas posteriores) não era uma luta para desconstruir a forma (piramidal) do poder (estatal). Era uma disputa pelo (por esse tipo de) poder e não contra o (ou contra tal estrutura de) poder.

O poder (estatal) capaz de ser usado como instrumento fundamental das mudanças na sociedade era o poder hierárquico mesmo. Aliás, quanto mais verticalizado e centralizado ele fosse, melhor. Porquanto mais capacidade conferiria aos seus detentores de impor superávits de ordem à sociedade, requisito considerado absolutamente necessário para espancar, na raiz, os interesses dos grupos sociais em contradição com os objetivos, as medidas e os procedimentos revolucionários.

A chamada revolução do local como uma revolução social é algo muito diferente disso, como veremos a seguir.

A nova idéia de revolução do local

Em primeiro lugar vamos examinar, para o caso da revolução do local, qual é a constelação de condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário que são objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos sujeitos (imaginando que isso seja possível).

Como vimos, essas condições se referem a uma conjunção particular de vários fatores interdependentes: novo ambiente político mundial (instalado depois da queda do Muro, abrindo a possibilidade de democratização das relações internacionais), inovação tecnológica (sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real com tecnologias

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miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente disponibilizadas), nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local (abrindo novas possibilidades de democratização das relações políticas intra-locais, inter-locais, entre o local e o micro-regional, o estadual, o nacional, o regional e, em suma, entre o local e o global).

Portanto, nesse sentido “forte” do conceito (e da hipótese que o sustenta), a localização é o aspecto objetivo da revolução do local.

Em segundo lugar vamos ver qual é a constelação de condições necessárias para fazer eclodir ou desencadear o processo revolucionário que são subjetivas, quer dizer, que dependem de sujeitos intencionados que as reúnem a partir do seu trabalho militante de organização e ação políticas.

Tais condições são sempre: a existência de um certo número de agentes, imbuídos de objetivos congruentemente inspirados por visões de futuro (i.e., uma classe de utopias) conformes ao – ou sintonizáveis com o – processo objetivo em curso (no caso, de localização), capacitados para elaborar e implementar estratégias compatíveis e para adaptá-las às mais diversas circunstâncias, conectados em formas organizativas capazes de gerar e replicar medidas e procedimentos que materializam tais estratégias.

Baseados nas evidências disponíveis podemos afirmar que, na revolução do local, tais fatores se apresentam de uma maneira bastante diferente de como compareciam na velha revolução estatal-nacional. Como veremos a seguir, na revolução do local: i) os agentes estão dispersos e não reunidos sob disciplina em um contingente centralizado; ii) seu trabalho não visa ocupar lugares de poder e, portanto, sua militância não se resume a uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses lugares;

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iii) seus objetivos são os de promover o desenvolvimento humano, social e sustentável, de pessoas e comunidades, setores e organizações nos quais se inserem; iv) sua estratégia é baseada em micro-mudanças de comportamentos e na capacidade de difusão e amplificação dessas mudanças por intermédio das redes sociais; e v) suas táticas são as de resistência ou geração de identidade dos novos movimentos sociais que dão origem a comunidades de projetos (e.g., ambientalistas, pelos direitos humanos e pela universalização da cidadania, feministas, ecumênicos, pacifistas, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela promoção do voluntariado etc. e, sobretudo, os dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de processos de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).

Evidências da revolução do local

Vamos considerar aqui apenas uma classe particular de evidências, que se refere mais especificamente ao comunitarismo reflorescente, de caráter inovador, ou seja aos novos movimentos localistas que poderiam ser identificados com um ideário glocalista.

De uns anos para cá, notadamente a partir do final da década de 1960 e, sobretudo, nos anos 90 do século passado, muita coisa mudou no mundo. Mas mudou “por baixo”, subterraneamente, na base da sociedade. Essa mudança se revela no comportamento de comunidades e organizações.

Parece que está em curso uma grande revolução silenciosa, que está alterando os padrões de relação entre o Estado e a sociedade. É a revolução do local.

Já é possível juntar evidências dessa revolução do local que está alterando padrões de organização e modos de regulação

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na periferia do mundo, empoderando molecularmente as populações, aqui e acolá, sem que as pessoas situadas no centro tenham ainda se dado conta do que está acontecendo.

Parece que estamos sendo contemporâneos de uma grande mudança cujos estímulos ou “perturbações” estão partindo da periferia do sistema e não do centro... Em uma sociedade em rede, tais perturbações podem ser amplificadas por laços de realimentação de reforço e podem vir a transformar o sistema como um todo ao alterar o comportamento dos agentes.

Não se trata de um movimento social ou político tradicional. O que está acontecendo agora nada tem a ver com movimentos de massas impulsionados por palavras de ordem do tipo: “O povo unido jamais será vencido”. Não são “massas”, não são totalidades indiferenciadas conduzidas monotônicamente por líderes carismáticos, senão constelações de diferenças, arranjos móveis de peculiaridades... O que está acontecendo hoje talvez afirme o lema inverso daquele tão caro aos candidatos a condutores de rebanhos. Como alguém disse: “O povo desunido jamais será vencido”!

Já existe farta documentação de casos concretos de mudanças moleculares nos padrões de relação Estado-Sociedade que estão acontecendo nos mais distantes rincões do planeta. E já podem ser selecionados numerosos cases de protagonismo local, de pessoas e comunidades que se empoderaram, que ao invés de ficarem esperando uma solução “de cima”, tomaram a dianteira na solução dos seus problemas de forma inovadora.

Caberia agora focalizar o esforço de análise naquelas experiências que contribuíram para alterar as relações políticas, que inauguraram novas formas de organização (mais rede e menos pirâmide) e novos modos de mediar conflitos (mais democracia e menos autocracia). Ou seja, casos concretos de alterações mais explícitas de relações políticas, de comunidades onde pessoas estão exercitando a sua capacidade de sonhar e de fazer diferente,

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compartilhando seus sonhos e cooperando na busca de objetivos comuns, exercitando seu protagonismo para alavancar seus próprios recursos na solução de problemas locais, conectando-se horizontalmente – peer to peer – e tecendo redes de desenvolvimento comunitário, democratizando decisões e procedimentos e inaugurando novos processos democráticos participativos de caráter público.

Os novos agentes da mudança

Quem são os novos agentes dessa significativa mudança, ainda invisível para muitos, que já está acontecendo?

Esses novos agentes são, em geral, de dois tipos: a) pessoas comuns, que moram e trabalham nas milhares de localidades, muitas vezes periféricas, que passaram a desempenhar o papel de animadores e catalizadores de mudanças sociais na vida das suas comunidades; e b) integrantes de organizações governamentais, empresariais e da sociedade civil, em todos os níveis, que se apaixonaram pela perspectiva de induzir ou promover o desenvolvimento humano e social sustentável pela via do empoderamento molecular das pessoas comuns, que moram e trabalham nas milhares de localidades, em geral periféricas, em todas as regiões do globo. Em suma, pessoas que assumiram e estão realizando seu compromisso com o desenvolvimento comunitário, da sua própria localidade ou de outra localidade qualquer.

O número desses agentes de desenvolvimento cresceu consideravelmente nos últimos anos, acompanhando a expansão daquela parte do terceiro setor dedicada a finalidades públicas, a descentralização e as mudanças introduzidas no desenho dos programas governamentais, as propostas de responsabilidade social empresarial e, inclusive, em virtude de um certo desapontamento ou desencantamento com as formas tradicionais de militância sindical e político-partidária. De sorte que não se trata mais

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de um contingente reduzido de militantes e profissionais outsiders, como eram vistos, por exemplo, os velhos comunitaristas ou os novos “localistas”, no mesmo bolo dos ambientalistas e das feministas (para citar os três exemplos de movimentos contemporâneos de resistência aos rumos da globalização excludente, considerados por Manuel Castells) (2).

Não se pode saber exatamente quantos são. O “exército” desses novos militantes – ou, melhor, o anti-exército desses novos participantes –, se incluirmos os agentes locais (e, mesmo assim, na pior estimativa, apenas um pequena porcentagem dos membros de fóruns, conselhos, agências de desenvolvimento locais e similares), deve perfazer um total considerável.

Os números serão significativos, não há dúvida. Dentro de alguns anos poderemos ter dezenas de milhares de agentes de desenvolvimento espalhados pelo mundo afora, indo aonde ninguém vai, vendo coisas que não vemos, testemunhando micro-mudanças peculiares e que só podem ser percebidas por quem imergiu, para valer, em configurações sociais peculiares.

O mais importante aqui, porém, não é a quantidade. O importante é conhecer as condições necessárias para o desencadeamento de processos inovadores que possam se replicar por si mesmos. O importante é compreender a nova “lógica” da mudança social que chamamos de desenvolvimento em uma sociedade-rede. Por isso, o mais importante agora é conhecer as novas características desses agentes.

Não são propriamente militantes. A palavra, aliás, não é boa. O conceito de militância evoca um paralelo militar. Seria melhor dizer que são participantes que, em sua grande maioria, carregam, das características da velha militância, o desprendimento e o espírito de doação próprios do voluntariado hodierno. Mas existem também entre eles novos

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profissionais vinculados a instituições governamentais e não-governamentais dedicadas à capacitação para a gestão-empreendedora de assuntos públicos e negócios privados. O importante é que, mesmo quando remunerados, o que os impulsiona é o desejo, o sonho e a visão: o desejo e o desejo de materializar o desejo; o sonho e a vontade de adquirir as capacidades requeridas para realizar o sonho; a visão e a disposição de desenvolver habilidades e competências para viabilizar a visão. Nesse sentido parece que a melhor maneira de caracterizá-los é dizendo que são, todos, empreendedores, inclusive e principalmente, novos empreendedores políticos.

Essa nova geração de agentes-empreendedores, diferentemente dos militantes à moda antiga, não caminham cantando uma mesma canção, com “a certeza na frente e a história na mão”. São, simplesmente, pessoas que começaram a acreditar na sua própria capacidade de fazer diferente e não de repetir uma fórmula qualquer.

Não são freqüentadores de assembléias estudantis ou sindicais. Não são levantadores de crachás em convenções partidárias. Não são animadores de comícios eleitorais.

Não são participantes de manifestações, repetidores de palavras de ordem. Como escreveu Pierre Levy (ainda em 1994, no livro “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço”), “quando os participantes de uma manifestação gritam as mesmas palavras de ordem, sem dúvida constituem um agenciamento coletivo de enunciação. Mas pagam por essa possibilidade um preço não-desprezível: as proposições comuns são pouco numerosas e bem simples, mascaram as divergências e não integram as diferenças que singularizam as pessoas. Além disso, a palavra de ordem em geral preexiste à manifestação. É raro que cada um dos participantes tenha contribuído para sua negociação ou seu surgimento. A manifestação, como o voto, só possibilita aos indivíduos construir para si uma subjetividade política pela pertença a uma categoria (“os que retomam as mesmas palavras de ordem”, ou “os que se reconhecem em tal

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partido” etc.). Quando todos os membros de um coletivo formulam (ou assim se supõe) as mesmas proposições, o agenciamento de enunciação coletiva encontra-se no estágio da monodia ou do uníssono” (3).

Ora, o que se busca agora é a sinfonia. “Este novo modelo musical – assinala Levy – poderia ser o coral polifônico improvisado. Para os indivíduos, o exercício é especialmente delicado, pois cada um é chamado ao mesmo tempo a: 1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma coexistência harmônica entre sua própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o efeito de conjunto. É necessário, portanto, resistir aos três “maus atrativos” que incitam os indivíduos a cobrir a voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte, a calar-se ou a cantar em uníssono. Nessa ética da sinfonia o leitor terá percebido as regras da conversação civilizada, da polidez ou do savoir-vivre – o que consiste em não gritar, em ouvir os outros, em não repetir o que eles acabam de dizer, em responder-lhes, em tentar ser pertinente e interessante, levando em conta o estágio da conversa...” (4). Isso poderia, conclui Levy, “assumir a forma de um grande jogo coletivo, no qual ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais cooperativos... os melhores produtores de variedade consonante... e não os mais hábeis em assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as massas anônimas em categorias molares” (5).

O fato é que esses novos agentes estão aprendendo (e estão nos ensinando) a ver as coisas de outro modo. O que os comove não são tanto as necessidades das populações, mas as suas potencialidades. Como não se acreditam predestinados a salvar o mundo, como não imaginam possuir a fórmula (única) para resolver todos os problemas, estão mais preocupados com as multifárias possibilidades e oportunidades, com as iniciativas de coletividades que contam com seus próprios ativos para superar os seus problemas.

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Uma realidade desconcertante

Já existe um número suficiente de evidências para apoiar a conclusão de que estamos vivendo agora em um tipo de sociedade onde a dinâmica da mudança social está, ela própria, mudando velozmente e onde o papel do empoderamento molecular das populações periféricas está adquirindo, pela primeira vez, uma importância decisiva em qualquer estratégia de mudança social.

Todavia, tudo parece tão novo – e, até certo ponto, tão desconcertante – que muita gente fica em dúvida e quer saber, com toda sinceridade, como isso poderia acontecer; ou seja, como é que, animando processos de desenvolvimento local em pequenas localidades periféricas, com PIB baixíssimo, fora dos circuitos por onde passam os grandes fluxos de capital do mundo globalizado, pode-se impulsionar uma mudança significativa no processo de desenvolvimento de países inteiros.

Muitas pessoas querem saber “qual é o milagre” pelo qual pequenas ações, diversificadas, fragmentadas e feitas, descentralizadamente, sem um comando unificado, envolvendo pouquíssimos recursos financeiros, podem vir a ter um impacto ponderável nas condições de vida de grandes contingentes populacionais.

Já abordei esse tema, de um ponto de vista mais abstrato e com um viés ainda inevitavelmente especulativo, ao tratar dos supostos de uma teoria sistêmica do capital social. A hipótese de trabalho que considerei foi a seguinte. Pequenas perturbações introduzidas na periferia dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio podem se amplificadas por laços de realimentação de reforço se espalhando para o sistema todo e modificando o comportamento dos agentes que interagem em termos de competição e de cooperação. Tenho defendido a tese de que essa propagação amplificada da perturbação ocorre na medida em que o sistema apresente

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a estrutura (ou “corpo”) de rede e que sua dinâmica (ou “metabolismo”) seja democrática.

Quanto mais rede, ou seja, quanto mais conexões horizontais forem estabelecidas entre os nodos (as pessoas e as organizações) – ou quanto mais múltiplos forem os caminhos (ou arestas) entre esses nodos (ou vértices) – e quanto mais democráticos (no sentido de mais diretos e participativos) forem os modos de regulação de conflitos adotados por uma coletividade humana estável, mais chances existirão de uma pequena ação ser amplificada, vindo a produzir um grande resultado, desde que essa ação introduza um novo tipo de comportamento no sistema e que seja, ela própria, feita de modo sistêmico.

Ou seja, desde que ela incida (ainda que tendo como foco inicial apenas uma sub-região particular do sistema) sobre os mecanismos ou processos pelos quais os comportamentos são mantidos e reproduzidos. Nas sociedades humanas esses mecanismos e processos se relacionam aos padrões de organização e aos modos de regulação, às maneiras como o poder se distribui e como os conflitos são resolvidos. Em outras palavras, desde que a mudança introduzida seja política. Esses casos são diferentes de muitos outros casos de sucesso onde um empreendedor individual conseguiu atingir seu objetivo e realizar um grande feito.

A diferença está na política. Se uma ação, mesmo pequena, limitada, circunscrita a um âmbito restrito da esfera pública, consegue alterar relações de poder e modos de regulação de conflitos (i. e., se for uma ação com conseqüências propriamente políticas) e se ela for capaz de introduzir um novo comportamento político, aumenta em muito a possibilidade do resultado dessa ação se expandir, desse novo comportamento introduzido contaminar o seu entorno e, mesmo, se replicar para outras regiões do espaço e, por incrível que pareça, até mesmo para outras “regiões do tempo” (e, nesse último caso, quando isso acontece é sinal de

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que ela pode estar inventando uma nova tradição). A possibilidade de uma intervenção política pontual, com tais características, se expandir, aumenta na razão direta do grau de “enredamento” (ou de reticulação) da sociedade.

Ora, se é assim, a tarefa principal daqueles que se propõem a promover ou induzir o desenvolvimento deveria ser a de articular redes sociais. Tudo indica que quem fizer isso estará construindo condições para o desenvolvimento com uma eficiência e uma eficácia muito maiores do que quem estiver preocupado apenas em impulsionar o crescimento econômico, estimular o aparecimento de empresas, aumentar o salário mínimo ou distribuir renda por meio de programas compensatórios estatais.

O motivo pelo qual as pessoas olham com desconfiança para pontos de vista como esse, é o mesmo motivo pelo qual existe uma realidade escondida, que quase ninguém vê. É o mesmo motivo pelo qual as pessoas não percebem a revolução silenciosa que está em curso neste momento, que está alterando os padrões de relação entre Estado e sociedade em localidades de todo o mundo.

Existe uma grande dificuldade das pessoas verem a revolução do local acontecendo porque existe uma grande dificuldade das pessoas entenderem e aceitarem esses novos pontos de vista. Fomos adestrados para perceber as coisas e não as relações e os processos. Intoxicados pela ideologia do crescimento, valorizamos apenas as mudanças de quantidade e sequer levamos em conta as mudanças de qualidade. Ainda achamos que uma mudança significativa no comportamento coletivo só pode ser desencadeada quando a maioria das pessoas aderir a um novo comportamento. Carregamos ainda o fardo de uma tradição política que via as sociedades como grandes massas a serem conduzidas por líderes ou vanguardas possuidoras de algum saber.

Não vemos as coisas “se-fazendo” e “se-mudando”. E não compreendemos a dinâmica pela qual as mudanças são

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transmitidas no interior daquilo que chamamos de sociedade. Manuel Castells nos ensina que, a cada dia que passa, as nossas sociedades estão adquirindo as características de uma sociedade-rede. Mas só muito recentemente tem se desenvolvido uma nova ciência, dedicada a análise das redes sociais.

As sociedades humanas tornam-se sistemas cada vez mais complexos, que estão adquirindo rapidamente características de sistemas adaptativos. A sociologia necessária para analisar essas coisas ainda precisa ser inventada (ou re-inventada). O caminho mais promissor são as novas teorias do capital social – sobretudo aquelas que tentam adotar um ponto de vista sistêmico e utilizar o instrumental das teorias da complexidade.

Novos atores institucionais

Um aspecto fundamental dessa questão é a emergência de novos atores institucionais que passaram a se dedicar à promoção do desenvolvimento. Com efeito, estão surgindo novos atores institucionais – ao lado do Estado e do mercado – e sem os quais não estaria sendo possível a emergência de uma nova concepção e de uma nova prática de mudança social.

Estou falando do chamado terceiro setor (que é uma denominação para a ‘nova sociedade civil’, aquela esfera da realidade social composta por entes e processos que não são estatais nem mercantis).

Antes de qualquer coisa é preciso deixar claro que nem todos os novos agentes de desenvolvimento que estão surgindo na atualidade pertencem ao terceiro setor. Muitos deles trabalham em governos, em todos os níveis ou em empresas privadas – o que é um sinal de que a mudança está alcançando todos os setores. Todavia, sem a participação do

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terceiro setor não estaria ocorrendo esse fenômeno que estamos chamando de revolução do local.

Por que? Porque o terceiro setor, pela sua diversidade, pela sua racionalidade e “lógica” de funcionamento, enfim, pela sua dinâmica própria, introduz elementos novos que reconfiguram os padrões de relação antes vigentes.

Dentre os elementos novos introduzidos pela participação do terceiro setor, destacam-se a capacidade de empoderar molecularmente os coletivos e a capacidade de juntar pessoas e organizações com base em relações de parceria.

Ora, o que significa esse primeiro elemento, a capacidade de empoderar molecularmente? Significa a “força da dispersão”. Em sistemas complexos como as sociedades humanas, ao contrário do que se acreditava, a força decisiva para realizar mudanças sociais não vem necessariamente da capacidade de um projeto de unir, em um todo homogêneo e coeso, vontades individuais e coletivas – mas sim da sua capacidade de se difundir, de se imiscuir, de se adaptar, de se modificar, de contaminar “viroticamente”.

O segundo elemento se refere à introdução de relações que, conquanto estabelecidas em sociedades onde existe conflito, não são baseadas, fundamentalmente, na disputa ou no confronto, ou em considerações de correlação de forças.

A nova sociedade civil (ou o terceiro setor) atua, freqüentemente, junto com o Estado e com o mercado. Mas não faz muito sentido buscar qualquer tipo de equilíbrio de forças entre essas três esferas da realidade social. Só teria sentido essa busca se estivéssemos falando da interação de sujeitos em conflito. Mas Estado, mercado e nova sociedade civil são esferas da realidade social, e não sujeitos políticos em conflito. Por outro lado, o conceito de equilíbrio não é bom para sistemas complexos como as sociedades. Sociedades são sistemas que só se desenvolvem se estiverem afastados do

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estado de equilíbrio. O que não quer dizer que não sejam sistemas estáveis. Mas estabilidade nada tem a ver com equilíbrio. Tudo indica que o que é necessário alcançar não é um "equilíbrio de forças", mas uma sinergia entre iniciativas provenientes desses três setores. Por quê? Porque nenhum deles, isoladamente, é suficiente para promover o desenvolvimento desse sistema complexo e estável, que só pode se desenvolver quando afastado do estado de equilíbrio, chamado de sociedade humana.

Mas não estou falando da “sociedade civil organizada”, nossa velha conhecida. Aliás, foi somente a partir de meados da década de 90 que parte dessa “sociedade civil organizada” (em geral corporativamente ou partidariamente) tomou consciência de que existia uma outra sociedade civil (“desorganizada”) muito maior do que ela e começou a desconfiar que, em sistemas complexos como as sociedades humanas (como escreveu Frank Herbert em 1969 em “O Messias de Duna”), “não reunir é a derradeira ordenação” (6). Estou falando mesmo da “força da dispersão”.

Ora, a “força da dispersão” quando combinada com a “força da parceria” constitui um fator irresistível para a mudança, pela base, dos comportamentos dos agentes que interagem em termos de competição e cooperação.

Isso explica a constatação de que os novos agentes de mudança estão, eles próprios, se comportando de modo bem diferente dos militantes políticos tradicionais. Como vimos, não estão muito preocupados em ocupar posições nos centros decisórios. Não estão sendo movidos pela vontade de denunciar e combater alguém. Estão sendo comovidos pela descoberta de potencialidades latentes, pelos imensos ativos que existem e que ainda estão escondidos. E estão buscando, cada vez mais, celebrar parcerias para dinamizar tais potencialidades.

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Não é, portanto, por acaso, que esses novos agentes de desenvolvimento que estão surgindo sejam, em grande parte, participantes de organizações do terceiro setor.

A “força da dispersão” e a “força da parceria”

Falei da “força da dispersão” e da “força da parceria”. Uma estratégia para induzir o desenvolvimento humano e social sustentável deve se basear em uma aposta no papel dessas “forças”. Seu objetivo deve ser liberar tais “forças”, o que pressupõe a avaliação de que elas ainda estão aprisionadas pelos sistemas políticos vigentes em nossas sociedades.

Pois bem. O que chamamos de revolução do local só está acontecendo porque, aqui e acolá, essas “forças” estão podendo agir mais livremente. Em outras palavras: tem gente se associando, com base na cooperação, para fazer coisas que nós não sabemos e não podemos controlar.

“O povo desunido jamais será vencido”

Percebo como tudo isso é difícil de entender e aceitar, sobretudo para aquela parte da minha geração que foi formada ouvindo lemas como “o povo unido jamais será vencido”, derrubando altares e entronizando no lugar dos velhos santos cooperativos e pacifistas (como Francisco ou Tereza) novos líderes bélicos competitivos (guerrilheiros românticos, como o Che, ou “senhores da guerra” condutores de povos, como Mao), nos quais passamos a depositar nossas melhores esperanças quando nos diziam que era preciso juntar e acumular forças para destruir os responsáveis pela bad society em que vivíamos. Se agora vem alguém dizendo o que parece ser exatamente o contrário – ‘o povo desunido jamais será vencido’, ‘desunido’ no sentido de não aglomerado como massa, não conduzido monotonicamente pelas mesmas diretivas (“de cima” ou “de fora”), porém disperso-e-conectado, tirando dessa dispersão e dessa

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conexão toda a sua força, por empoderamento molecular – ficamos no mínimo desconfiados ou inseguros.

Desconfiança e insegurança em relação ao que está acontecendo subterraneamente se explicam. São coisas que estão dentro da nossa cabeça. Uma cabeça ainda ocupada pela velha idéia de revolução dos séculos 19 e 20, para a qual a revolução do local simplesmente não existe porquanto não tem um plano, não tem um comando (uma direção revolucionária), não tem um ator central (um contingente organizado de agentes revolucionários submetidos a alguma disciplina) e não tem um programa.

Mas, como vimos na seção anterior, a revolução do local tem, in potentia, princípios éticos norteadores, uma concepção de quem deve governar, uma compreensão de quais são as reformas essenciais a serem feitas, uma visão de futuro desejada e uma modalidade de transformação política preconizada (e já praticada em muitas experiências). Evidentemente, na medida em que não existe um centro irradiador-condutor, tais características são atribuídas pela análise e não assumidas explicitamente pelos sujeitos (dispersos) como um programa comum. São, todavia, características conformes tanto às evidências da revolução do local (em termos subjetivos) quanto ao processo (objetivo) de localização atualmente em curso no mundo.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) “Pode portanto dizer-se que a política é guerra sem derramamento de sangue e, a guerra, política sangrenta”. Cf. Tsé-Tung, Mao (1936). “Problemas estratégicos da guerra revolucionária na China” in Escritos Militares. Goiânia: Libertação, 1981.

(2) Cf. Castells, Manuel (1996). O Poder da Indentidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

(3) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

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(4) Idem.

(5) Idem-idem.

(6) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Texto 12 | Offe e a sinergia entre Estado, mercado e comunidade

“Instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem beneficiários da) formação e acumulação de capital social no interior da sociedade civil”.

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Foi na conferência “Sociedade e Estado em Transformação”, realizada em São Paulo, em 1999, que Claus Offe pronunciou a interessante alocução intitulada “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade”. A intervenção foi publicada na coletânea “Sociedade e Estado em Transformação” (Bresser Pereira, L. C, Wilheim, Jorge e Sola, Lurdes (orgs.), Brasília: Enap, 1999).

A intervenção de Offe é tão importante, porque reestrutura a discussão com tal clareza, estabelecendo um novo referencial para posicionar os fenômenos observados na globalização e, inclusive, as escolhas políticas diante desse processo, que vale a pena reproduzir aqui a sua íntegra.

A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade (1)

“Sempre que falamos de mudança social, é necessário especificar em qual dos seus dois principais sentidos estamos empregando o conceito. As ciências sociais sempre analisaram mudanças sociais em dois níveis. Em primeiro lugar, mudança social (e “histórica”) é concebida como um conjunto de forças cegas e impessoais, tendências estruturais e contradições às quais os agentes humanos estão expostos como objetos, ou mesmo como vítimas passivas a quem a mudança “acontece”. Esse tipo de mudança social consiste em tendências (variando do aquecimento global a mudanças nos gostos dos consumidores) que não foram iniciadas por alguém, e tampouco podem ser paradas por alguém. Em segundo, mudança social é vista como algo que resulta de esforços deliberados e intencionais de agentes humanos racionais para dar conta, individual ou coletivamente, de necessidades e problemas que eles encontram na sua vida social, econômica e política. A mudança social, nesse segundo sentido, é “alcançada” e executada por agentes. Essa versão ativa e intencional do conceito enfatiza a subjetividade, a cooperação e a busca racional de interesses e valores – a

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“construção” da história ao contrário da exposição a forças e a destinos históricos anônimos.

A síntese dessas aparentemente incompatíveis formas de compreensão de mudanças sociais é classicamente sugerida por Karl Marx no seu 18 de Brumário e também em escritos posteriores sobre a economia política do capitalismo: as forças fatídicas da mudança social (2) que vitimam os agentes são desencadeadas e colocadas em movimento por ação humana e por seus efeitos agregados e não antecipados. A implicação crítica dessas forças é que as deficiências da ação humana e das formas convencionais de racionalidade que as guiam são as causas tanto das forças fatídicas quanto da incapacidade dos agentes de dar conta delas de forma sustentável e com resultados desejáveis.

A teoria que relaciona tais resultados com a cegueira e outras deficiências da ação humana é uma teoria das crises. Como é sabido, Marx e alguns marxistas acreditavam que as instituições que fazem com que os humanos não consigam prever as conseqüências de suas ações, podem elas próprias, ser alteradas através de uma forma especial de ação conceituada em termos de “revolução” ou “luta de classes”. Grande parte da evidência acumulada no século XX, entretanto, sugere que tipos revolucionários de ação de segunda ordem (ou sobre o quadro institucional que emoldura as ações) sofrem da mesma forma de cegueira e de deficiência que se considera que caracterizem a ação de primeira ordem.

Apesar disso, a mesma problemática de como os agentes falham e de como a agência pode ser reconfigurada é ainda central para muitos dos teóricos sociais de hoje, sejam eles orientados por paradigmas “institucionalistas” (3) ou da “escolha racional” (4) e “teoria dos jogos”. Nessas tradições de pesquisa política e social, duas questões-chave estão sendo tratadas, uma positiva e a outra normativa. A questão positiva é a seguinte: de que forma configurações particulares de agentes (por exemplo, os que encontramos em mercados,

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firmas e relações internacionais) se correlacionam com os resultados particulares de suas ações? A partir desta se desdobra a questão normativa: que mudanças na configuração dos agentes resultariam em conseqüências superiores aos observados em termos de critérios de avaliação como paz, sustentabilidade ou justiça social?

Esses são os termos de referência de nossos debates contemporâneos sobre o desenho institucional das relações Estado-sociedade. Na presente discussão sobre essas relações, procederei da forma que se segue. Em primeiro lugar, resumirei algumas trajetórias dominantes de mudança social que todos nós, quase independentemente do lugar do mundo de onde viemos, estamos expostos de forma direta. Segundo, passarei do modo passivo ao ativo para discutir os agentes (nominalmente, os cidadãos), assim como suas formas de ação (nominalmente, a civilidade), que podem vir a ser capazes de transformar as forças de mudança que inevitavelmente confrontaremos em resultados toleráveis e até mesmo desejáveis. Partindo da discussão da civilidade, finalmente, especificarei seis falácias que devem ser evitadas de forma que alcancemos uma configuração de ação capaz e adequada.

I - TRAJETÓRIAS ATUAIS DE TRANSIÇÃO

1. Democratização

Comecemos pela lembrança de que a mudança mais abrangente ocorrida nos últimos 25 anos em escala global, e que ainda continua a ocorrer, aconteceu no nível da ordem política, ou na forma de regime de muitas sociedades. Regimes autoritários de várias formas - ditaduras militares, regimes de socialismo de Estado, regimes teocráticos – desmoronaram em uma escala sem precedentes e deram lugar a democracias constitucionais liberais (ao menos nominalmente). Essas são definidas grosseiramente pela presença de direitos iguais de participação política para todos

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os cidadãos, a garantia de direitos humanos, civis e políticos e a accountability* das elites governantes. O fenômeno global de transição maciça para democracia foi impulsionado por propósitos inspirados em ideais associados com a forma democrática de regime, assim como por mecanismos causais. Consideremos de forma breve cada um desses fatores.

Quais foram as razões que levaram tantas pessoas – tanto massas como elites – à adoção de alguma forma de regime democrático? O que se supõe que a democracia seja capaz de alcançar e seja “boa para”? Quatro respostas cumulativas se apresentam. Primeiro, há o feito “liberal” dos direitos e liberdades serem garantidos e o registro de uma linha clara de demarcação entre o que pode ser contingente, com respeito aos resultados do processo político, os conflitos de interesse aí contidos, e o que não pode ser objeto de tais conflitos por estar registrado constitucionalmente. Vale a pena notar que, em uma democracia, a maior parte das condições que são de grande interesse para os cidadãos (por exemplo, quem pode sustentar quais opiniões ou possuir quais recursos) não é um objeto potencial de decisão coletiva de maiorias por estar definido constitucionalmente. Como conseqüência de que tanto os direitos quanto os procedimentos são garantidos e supostamente implementados através da operação diuturna do sistema judicial, as democracias dão ao conflito político um caráter não-violento, limitado e civilizado, assim como características incrementais às mudanças. O potencial de civilidade do regime democrático é provavelmente seu atrativo mais poderoso para aqueles que são oriundos dos horrores e terrores dos regimes predecessores.

Uma segunda razão para a atração normativa da forma de regime democrático é o seu feito internacional, normalmente expresso na hipótese da “paz democrática”, que data da famosa formulação de Kant em 1795. Segundo esta, as democracias não lançariam guerra a outras democracias.

A terceira atração dos regimes democráticos tem a ver com o chamado “progresso social”. As democracias se baseiam no

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governo da maioria e as maiorias são feitas tipicamente daqueles que não detêm privilégios econômicos e poder social. Além disso, o poder estatal democrático, apesar da rigidez dos pontos estabelecidos constitucionalmente, é um fato capaz de afetar o tamanho e a distribuição dos recursos econômicos de formas mais do que marginais (por exemplo, por meio de políticas de crescimento, cobrança de impostos e seguro social). Conseqüentemente, as democracias normalmente funcionarão para servir aos interesses dos segmentos menos privilegiados da população, promovendo direitos “positivos” ou “sociais” e, mais geralmente, crescimento, prosperidade e justiça social.

Por fim, vale destacar o feito “republicano” de transformar “sujeitos” em “cidadãos”, isto é, agentes capazes de empregar seus próprios recursos cognitivos e morais em formas deliberativas e inteligentes para solucionar problemas políticos de acordo com uma lógica de aprendizado coletivo, e lutando, como conseqüência, para servir ao “bem comum”.

Mas a democratização não é simplesmente explicada por essas razões e esperanças que se relacionam a ela. Sua disseminação no mundo foi também impulsionada por certos processos causais. A decomposição interna de formas autoritárias de regime e o seu fracasso em sustentar as funções de um Estado em confronto com os desafios domésticos e internacionais fizeram da forma democrática de regime a escolhida “por definição”. Democracias são criadas, tipicamente, como concessão recíproca firmemente estabelecida como segunda opção preferida de todos aqueles que são fracos demais para impor sua opção preferida respectiva (não-democrática). Como nem os líderes militares nem as elites partidárias podem com sucesso reivindicar soberania, “o povo” aparece como único portador de soberania. Essa opção foi forçada por dois tipos de agentes externos.

As democracias liberais foram, com freqüência, instaladas por meio de pressões e incentivos de outras nações liberais

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democráticas e suas organizações supranacionais. Além disso, investidores (cujo investimento é urgentemente necessário a novas democracias para desenvolvimento e recuperação econômicos) preferem sempre operar sob formas democráticas que apresentem as condições mínimas para o mando da lei, a segurança dos contratos e a accountability das elites políticas.

Considerados de forma conjunta, esses fatores de atração e pressão explicam o processo global de transição. Entretanto, os resultados combinados dos processos que deram base à transição maciça para a democracia experimentada por nós nas três últimas décadas são hoje freqüentemente observados com uma certa sensação de desencantamento. Enquanto a nova onda de democratização, que atingiu virtualmente todos os lugares, confirmou a hipótese de paz democrática, não chegou a redimir consistentemente as esperanças de uma proteção confiável dos direitos humanos, civis e políticos, de accountability das elites, de progresso econômico, de justiça social ou de virtude cívica praticada pelo conjunto dos cidadãos. Particularmente, não há evidências de que a prosperidade e a justiça social (em qualquer dos seus significados) sejam promovidas pela democracia como uma conseqüência direta (5).

A medida que o número de democracias cresce, sua qualidade parece decrescer (6), dando origem a reclamações bem fundadas de que as novas democracias parecem ter se degenerado em democracias meramente “eleitorais” ou “delegadas” (7) ou mesmo democracias defeituosas com “domínios reservados” (8) controlados como privilégio por elites não submetidas a nenhuma forma de accountability. Em resumo, podemos dizer que a forma democrática de regime é um pré-requisito indispensável, mas evidentemente não uma garantia automática das qualidades que foram associadas a ela pelos protagonistas da transição para a democracia.

2. Globalização

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Uma explicação para essas desapontadoras experiências de transições democráticas tem, até certo ponto, a ver com o enfraquecimento do Estado nacional e de suas capacidades de governo. Esse é o tema da interdependência global (ou, ao menos, interdependência macrorregional, como na União Européia). A presença de conexões transnacionais intensificadas constrange e marca o destino das sociedades. Esse processo traz para a vida social e econômica local forças que estão, em sua maioria, fora do controle das elites políticas nacionais, até mesmo das mais determinadas. À medida que as fronteiras são transpostas e tornadas permeáveis, o alcance do que pode ser feito coletivamente de maneira efetiva pelas forças políticas locais diminui (9), graças às repercussões negativas que a antecipação de qualquer “movimento errado" pode provocar na arena internacional externa. As fronteiras, ao que parece, perderam não apenas sua característica de limite, mas também sua característica protetora, e portanto capacitadora de respostas independentes e autônomas. A forma pela qual as ações de governo dos Estados nacionais são parcialmente incapacitadas pode ser resumida através da seguinte fórmula**: dinheiro, matemática, música, migração, força militar e meteorologia (ou clima):

=> Dinheiro, como meio de comércio e investimento: entre 1955 e 1989, o Produto Interno Bruto Mundial, medido em números-índice, passou de 100 para 350, enquanto as exportações mundiais cresceram de 100 para quase 1.100;

=> Matemática: universalização da cultura cognitiva e tecnologias nela baseadas, todas usando números arábicos, o único meio de compreensão verdadeiramente universal na comunicação escrita;

=> Música/cinema, assim como arquitetura: disseminação de meios não-verbais de expressão e comunicação. Esse processo teve como conseqüência a padronização de padrões de vida entre nações influenciada por essas formas estéticas e seus conteúdos éticos;

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=> Migração: como muitos Estados nacionais não podem proteger ou prover condições mínimas de vida e liberdade para todo o seu povo, muitos outros Estados recebem em sua população residente (e não têm, prática e legitimamente, como evitar receber) números crescentes de estrangeiros, refugiados, trabalhadores migrantes, residentes estrangeiros etc.;

=> Recursos militares: provavelmente uma minoria dos Estados dispõe de autarquia militar, já que a grande maioria deles integra alianças militares supranacionais (como a OTAN) e depende da defesa provida por outros Estados, ou é constrangido em suas políticas domésticas e internacionais pela presença direta de ameaças militares de outros Estados. Além disso, a associação entre “fragilidade estatal" e “capacidade militar" fica evidente no fato de que aquela capacidade de promover a guerra está crescentemente nas mãos de atores não-estatais (como exércitos separatistas, movimentos étnicos, grupos terroristas ou gangues armadas sob o comando de “senhores da guerra”);

=> Meteorologia: a quantidade e a qualidade do ar e da água são conhecidas como parâmetros básicos de vida humana e da atividade econômica. Suas variações em termos de temperatura, fIutuação regional, sazonal e de longo prazo não podem exceder limites estreitos, sob pena de colocar em risco a vida e as atividades econômicas. A disponibilidade desses recursos também é sabidamente dependente da estabilidade de um sistema imensamente complexo de interação que pode ser perturbado, em uma escala global, de uma forma totalmente independente de fronteiras nacionais por externalidades na produção e no consumo.

A resposta clássica ao risco de perda de capacidade de governo é a integração supranacional e a formação dos regimes transnacionais: União Européia, ASEAN, NAFTA e Mercosul, assim como várias alianças militares transnacionais e regimes de regulação. Igualmente importante, entretanto,

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parece ser a resposta inversa de recuo para unidades menores, subnacionais, para fazer frente à percebida fraqueza das capacidades estatais em controlar os seus destinos. Apenas aparentemente paradoxal, a globalização envolve incentivos para “comportamento de bote salva-vidas” e separação subnacional dos grupos e regiões (relativamente) mais ricos que, de forma bastante racional do seu ponto de vista, lutam para defender, explorar e isolar suas vantagens competitivas locais e regionais, em vez de dividir os avanços com outras (e supostamente mais vulneráveis) unidades do Estado ao qual elas pertencem. Isso tem se dado preferencialmente por meio de secessão e construção de estados separados (10) ou então por meio de amplas formas de autonomia fiscal do conjunto da federação.

O processo “multimídia” de globalização, juntamente com as duplas respostas transnacionais e subnacionais a ele associadas, leva a duas más notícias no que se refere à justiça distributiva. A primeira é uma má notícia que diz respeito aos países avançados: a performance do seu mercado de trabalho e de seu sistema de seguridade social é vista como causa de fundo da mobilidade do capital e das mercadorias para os países de baixos salários do Sul, com crescentes níveis de desigualdade social nos países avançados como uma das principais conseqüências. Esse fator de mobilidade é, no momento, dramaticamente aumentado pelas novas tecnologias de transportes e comunicações. Há ainda a má notícia recíproca dessa para os países mais pobres e economicamente menos desenvolvidos: os padrões de vida do Ocidente e o modo de vida que eles tentam atingir e imitar constituem um bem “posicional” que não pode ser universalizado (por razões de recursos ecológicos). Tão óbvia quanto o fato de que nem todos podem ganhar o dobro da renda média é a impossibilidade de universalização dos modos de vida, de consumo e de transportes do Ocidente em razão da limitação de recursos e da sustentabilidade ecológica. Mas como não há um modelo de moradia, transportes e consumo à mão que possa se apresentar como uma alternativa viável aos estilos ocidentais, as

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desigualdades distributivas ficarão maiores; alguns fora do mundo ocidental serão capazes de imitar os modelos ocidentais, mas a grande maioria não obterá sucesso. O resultado combinado das duas más notícias é o seguinte: o número de proprietários de automóveis de luxo e apartamentos com ar condicionado no que antes era o Terceiro Mundo tende a aumentar, mas da mesma forma se eleva o número de pessoas que procuram comida nas latas de lixo no que antes era o Primeiro Mundo.

3. Pós-modernização

Depois de ter relembrado algumas das trajetórias que têm conduzido à transição, tanto nas comunidades políticas – a assim chamada democratização –, como nas economias – a denominada globalização –, observemos de forma rápida a pós-modernização como uma força promotora de transformação cultural.

Três generalizações podem ser apresentadas, associadas às dimensões estéticas, cognitivas e político-morais da cultura. Primeiro, há tendências poderosas na direção da homogeneização transnacional da cultura. Ao menos no que diz respeito a grupos sociais urbanos e masculinos da sociedade global, os filmes, a música, a vestimenta do dia-a-dia, a comida e os estilos de vida estão em um processo de perda de grande parte do seu caráter distintivo e de seu enraizamento nas tradições culturais regionais e nacionais. De forma concomitante, o inglês está se tornando o idioma global. Mas, em segundo lugar, contratendências poderosas podem também ser observadas, levando à redescoberta e ao renascimento de tradições religiosas e estéticas locais que são adotadas como formas simbólicas de resistência à uniformidade da cultura global e que dão origem a uma política cultural pós-moderna da identidade e diferença. Em terceiro lugar, o impulso moral e político oriundo das idéias de libertação, justiça social e paz internacional parece ter perdido muito de sua atração e potencial para mobilização política. Isso se aplica particularmente a qualquer noção de progresso

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que envolva, como uma vez envolveram a teoria da modernização liberal, o marxismo revolucionário ou o zelo missionário da cristandade, uma noção universalista de fins desejáveis, na direção dos quais a história deveria se mover e pode realmente ser encaminhada por agentes históricos constituídos. Essa noção de progresso, na medida em que sobreviveu a todas as forças desorganizadoras da cultura pós-moderna, está hoje sendo reformulada: o progresso é agora concebido como a capacidade de evitar continuamente a recaída no barbarismo e em formas catastróficas de des-civilização.

II – INOVANDO NO DESENHO DAS RELAÇÕES ENTRE ESTADO, SOCIEDADE E COMUNIDADES

Se essas são as forças históricas altamente ambíguas e contraditórias, internamente nas quais a ação política está inserida e com as quais precisa lidar, o problema está em determinar que tipos de instituições são mais apropriados para dar conta da situação histórica presente. Nosso problema, definitivamente, não é o problema enfrentado por Lenin, como colocado em sua famosa frase “O que fazer?”. Nosso problema, ao contrário, pode ser formulado como a questão logicamente antecedente de “quem”, isto é, qual configuração de agentes pode ser capaz de fazer o “que precisa ser feito”. Questões de reforma institucional são convencionalmente postuladas em termos da determinação de quais esferas da vida deveriam ser governadas pelas autoridades políticas, por trocas contratuais no mercado, ou por autogoverno e por comunidades de responsabilidade e associações no interior da sociedade civil (11). No que diz respeito a essa divisão sempre conflituosa de domínios, cientistas sociais, tomando como base a sua experiência profissional, têm muito poucas idéias interessantes a oferecer. No máximo, eles podem elaborar, usando a observação empírica, a análise dos mecanismos causais, bem como de

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avaliações de consistência e viabilidade, alguns argumentos críticos que podem informar o julgamento nesses assuntos. O que evitar, no entanto, é bem mais óbvio do que o que fazer.

Antigas opções de desenho institucional estão obsoletas, não interessa se nós já sabemos disso ou se já estamos no processo de descobri-lo lentamente. As antigas opções de desenho são monísticas, baseando-se no Estado, no mercado ou na comunidade para garantir em última instância a ordem social e a coesão. Soluções mais promissoras são essencialmente “impuras”: não se deve utilizar nenhum dos três princípios da ordem social exclusivamente, mas a todos eles deve ser reservado um papel em um arranjo institucional complexo e composto. Esses são três componentes da ordem social em precária relação entre si: de um lado, eles se baseiam um no outro, já que cada componente depende do funcionamento dos outros dois; de outro, entretanto, a sua relação é antagônica, já que a predominância de um deles põe em risco a viabilidade dos outros dois (12).

Examinemos os componentes mais detalhadamente. O Estado, o mercado e a comunidade representam os modos ideais-típicos nos quais as pessoas vivem e interagem, os modos de coordenação dos indivíduos e suas ações (13). Cada um deles ativa, e de certa forma se baseia em uma das três capacidades coletivamente relevantes por meio das quais os seres humanos podem intervir no mundo social: razão, interesse e paixão.Da mesma forma que fizeram os teóricos políticos do século XVII, o Estado pode ser pensado como uma criatura construída pela razão humana, tanto em termos da sua instituição por meio de um contrato racional como pela sua operação diuturna “racional forma” através do governo burocrático (Weber). A razão é a capacidade dos indivíduos para encontrar e reconhecer o que é bom para todos. Nesse sentido, Hegel pode até equiparar o Estado à razão.

O mercado é, evidentemente, movido pelo interesse dos agentes humanos na aquisição de bens individuais sem

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nenhuma ou pequena consideração de, ou controle sobre, o que a busca dos propósitos de aquisição fará para outros ou mesmo para seus próprios futuros, seja no sentido positivo (como a riqueza das nações sendo promovida através da “mão invisível”) seja no sentido negativo (com crises, injustiças, conflito social ou danos ambientais como um resultado agregado que, como a lógica do mercado subentende, ninguém pode prever e ninguém assume a responsabilidade de ter acontecido).

Finalmente, há a noção de que a ordem social pressupõe, ou de alguma forma se beneficia, dos direitos e deveres que são associados aos membros das comunidades concretas. O cimento que integra os membros dessas comunidades é a paixão humana (como amor, honra, orgulho, ou um sentimento de crença). É dessas comunidades, sejam elas famílias, grupos religiosos, ou aquelas definidas por tradições étnicas compartilhadas, que nós derivamos nossa identidade, nosso sentimento de pertencimento e o compromisso com um modelo ético que informa nossos projetos de vida.

Cada um desses três tipos de capacidades humanas, gerando padrões correspondentes de ordem social, se especializa em maximizar um valor distinto. Esse valor é a igualdade de status legal, compreendendo direitos e deveres no caso dos Estados; a liberdade de escolha no caso dos mercados; e a identidade e a sua preservação (através de compromissos, solidariedade e lealdade) no caso das comunidades. Embora a justiça seja uma consideração importante em todos os três padrões de ordem social, o sentido operacional de justiça difere significativamente (14). No caso do Estado moderno, a marca da justiça é a extensão na qual os direitos, muito freqüentem ente os direitos iguais de todos os cidadãos sob uma constituição e o domínio do princípio da lei, são garantidos e feitos cumprir pelas agências estatais. Justiça do mercado, diferentemente, enfatiza a habilitação de parceiros nas transações do mercado em obter o que foi acordado entre eles em contratos que voluntariamente celebraram. Finalmente, justiça no interior de comunidades é um padrão

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definido de acordo com critérios de necessidade reconhecida. Os membros de comunidades são chamados a, em nome da justiça específica da comunidade, assistir os membros necessitados mesmo se eles de nenhuma forma “tenham ganho” a reivindicação para tal assistência através de contribuições feitas por eles ou através de titulações legais a eles orientadas por autoridades estatais. Nesse caso, o grupo decide, de acordo com padrões e tradições, quem tem a necessidade legítima à assistência de seus pares.

O objetivo desse breve exercício em sociologia básica é nos auxiliar a compreender a verdade dual que pretendo demonstrar com este artigo. Primeiro, a provisão de ordem social e estabilidade através de instituições não pode se basear somente em um desses padrões – Estado, mercado e comunidade. Qualquer desenho institucional monístico tende a ignorar (no plano teórico) e destruir (em suas implicações práticas) as contribuições que os outros dois componentes da ordem social têm para dar. Segundo, esse tipo de desenho não pode se basear nem mesmo na combinação de apenas dois desses padrões (isto é, excluindo o terceiro respectivo), sejam sínteses mercado-Estado, Estado-comunidade, ou comunidade-mercado. Precisamos de todos os três fundamentos da ordem social, e em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e os elimine (15). O problema do desenho apropriado de instituições pode então ser formulado como o de manter a distância apropriada dos extremos das soluções “puras” e, ao mesmo tempo, evitar o uso “muito reduzido” de qualquer um daqueles fundamentos.

As doutrinas puras são facilmente reconhecíveis. Primeiro, o estatismo social-democrata (embora essa seja a doutrina menos defendida como “pura” na filosofia pública nos dias que correm) enfatiza o uso ativo de capacidades de governo fortes como a chave para a ordem social e a justiça social. É o oposto do liberalismo de mercado, ou do libertarianismo, como uma doutrina que se propõe a tomar como base a coordenação social baseada quase somente em sinalizações

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de preço, defendendo, portanto, a privatização, a desregulamentação e a demolição do estatuto dos direitos, particularmente do estatuto dos direitos do trabalho. Finalmente, há as formas religiosas e não-religiosas de comunitarianismo e filosofias públicas conservadoras sociais que enfatizam significados repartidos, missão e identidade dos grupos e comunidades nacionais como a fundação última da coesão social. Esses são os três tipos competitivos de filosofia pública que estão presentes e em competição no fim do século XX. Desnecessário observar que os sistemas partidários de muitos países refletem a configuração dessas filosofias públicas, divididos que são em partidos socialistas/social-democratas, partidos liberais de mercado e partidos que vêem a ordem social em termos de identidades religiosas e étnicas.

O problema de desenhar e defender relações Estado-sociedade, no entanto, não está em simplesmente escolher um dos três padrões de forma simplista, mas de se engajar, ou, na pior hipótese, tolerar um processo de desenho processual, reajustamento e sintonização fina de uma mistura rica e adequada na qual os três blocos da ordem social tenham papéis variáveis que se limitem entre si. A capacidade de inventar, implementar e tolerar essas “colchas de retalho” de ordem social impura ideológica e substancialmente, é a marca da civilidade ou do “comportamento cívico”, isto é, a habilidade e a vontade dos cidadãos de utilizar deliberação aberta e pacífica, assim como métodos institucionais para enfrentar os conflitos sociais e políticos. O comportamento cívico e os recursos políticos garantidos pela democracia liberal nos permitem lidar com os dilemas colocados pelo fato de que vivemos para além do tempo em que bastavam (se não apenas aparentemente) os pronunciamentos de alguma “linha correta”, “doutrina governante”, “melhor forma” ou, nesse particular, do “Consenso de Washington”. O comportamento cívico, em outras palavras, pode ser concebido como o ponto de Arquimedes fora do centro de gravidade de qualquer dos três paradigmas da ordem social, a

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partir dos quais o seu escopo respectivo pode ser avaliado e reconfigurado.

Insistir na existência de qualquer “linha correta” é silenciar a voz democrática clamando por uma compreensão superior e privilegiada da realidade. Esse silêncio tem sido, por exemplo, o princípio epistemológico do thatcherismo com o seu slogan “Não há alternativa”, ridicularizado corretamente através da “regra de Tina”. A construção institucional que ocorre de acordo com a “linha correta”, entretanto, não pode mais ser conduzida por filósofos e ideólogos, já que nossa época superou os esquemas descritos por eles. O papel-chave para o desenho e a preservação da ordem social, portanto, deve ser ocupado pelos cidadãos e suas próprias associações cívicas. Em um mundo institucional essencialmente confuso, precisamos de julgamentos públicos informados e engajamento cívico deliberativo, ao invés de conhecimento especializado que apenas exerça autoridade no que diz respeito ao que fazer e ao que não fazer. Desnecessário enfatizar que esse julgamento será sempre o resultado de conflitos freqüentes e veementes de interesse, ideologia e identidade que a forma democrática de regime permite que surjam e que sejam solucionados de forma civilizada. Aparentemente, nos dias de hoje, tanto socialistas de Estado igualitários como comunitários sociais conservadores acabaram por reconhecer e prestar a devida atenção à necessidade de autolimitação na aplicação de seus respectivos princípios de ordem social herdados. Apesar disso, muitos liberais de mercado ainda se atrasam na arte de relativizar o seu próprio credo. Muitos deles ainda precisam superar sua crença quase “revolucionária" e reducionista no potencial salutar de uma liberação ainda mais inescrupulosa das forças de mercado.A única resposta correta a uma questão como “qual é o tamanho ótimo do governo” é: Ninguém sabe! Ou, ao invés disso, a resposta não é passível de ser dada na forma de um argumento econômico e filosófico, mas somente como resultado de uma deliberação democrática construída processualmente e bem informada, levada a cabo no interior

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de e entre os atores coletivos da sociedade civil, tanto formais como informais. Na verdade, a demonstração por métodos acadêmicos de inconsistências e impossibilidades pode ajudar o público a fazer escolhas mais bem informadas. Mas a resposta é, em última instância, uma questão de “voz”, e não de “prova”, ou de alguma medida objetiva de “racionalidade”. A relação e a demarcação da linha entre mercado, Estado e comunidade é ela própria uma questão de política (16). Como conseqüência, quase qualquer resposta à questão do papel adequado e do desejável tamanho relativo dos princípios macrossociais que organizam a economia política será controversa e essencialmente contestada.

III – AS SEIS FALÁCIAS

Se continuarmos ainda mais com a idéia de uma “mistura cívica” produzida de forma processual a partir dos vários ingredientes da ordem social em vez de uma imposição patrocinada pela elite de um único desses ingredientes, chegaremos a uma lista de seis abordagens patológicas para a construção de instituições sociais e políticas, ou ao que denominamos seis falácias. Três delas resultam da permanência de uma abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras três advêm da premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente deixado de fora na arquitetura da ordem social. É importante especificar rapidamente que essas várias falácias vão provavelmente diferir com relação à seriedade de seu impacto e a freqüência com a qual ocorrem sob o regime do atual Zeitgeist. No entanto, revisemos rapidamente cada uma delas.

1. A falácia do estatismo excessivo

Pode parecer que depois da queda do tipo de socialismo de Estado que reinou no império soviético, assim como depois do colapso da hegemonia intelectual do keynesianismo nos anos 80, a ortodoxia do estatismo excessivo se tornou uma aflição improvável. A queda do socialismo de Estado tornou obsoleto

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um modelo de proteção estatal autoritário e dirigismo produtivista, deixando para trás em muitos regimes pós-socialistas a busca de uma “economia de mercado sem adjetivo". (Essa é uma receita do antigo primeiro-ministro da República Checa, Vaclav Klaus, que propôs deslocar a especificação da economia de mercado como “social”.)Entretanto, parece muito importante manter viva na mente a diferença entre um Estado grande (medido em termos do tamanho de seu orçamento ou do número de seus funcionários públicos) e um Estado forte, isto é, um Estado cujas ações de governo têm um impacto significativo no nível e na distribuição das perspectivas de vida dos indivíduos na sociedade civil (17). Pode mesmo acontecer que um Estado seja ao mesmo tempo superdimensionado e pouco eficiente, e que os bens por ele gerados não sejam na verdade bens públicos, mas bens de certas categorias (ou “clubes”) apropriados pelo que tem sido chamado de “burguesia estatal”, que pode existir tanto em versões militares como civis. Entretanto, Estados grandes, freqüentemente, também tentam ser Estados “fortes”. Em vez de servir à sociedade civil de alguma forma tangível, eles exercitam controle oligárquico sobre atores na sociedade civil. Ainda está aberto o debate no interior das sociedades avançadas com respeito a que esferas da vida e da provisão coletiva deveriam ser adotadas ou mantidas pelas autoridades estatais, e quais deveriam ser deixadas de fora ou transferidas para mercados e comunidades.

Um antídoto saudável para a patologia da utilização de um Estado “forte” (em vez de “grande”) é pesquisar se a prática da governança realmente corresponde a uma versão estatista do ideal de justiça, entendida como a igualdade de condições e oportunidades garantida legalmente (18). Será que um aumento marginal na capacidade estatal aumenta de forma demonstrável o acesso dos cidadãos à provisão de bens básicos como o acesso a tribunais, proteção legal, provisão de serviços de saúde, educação, habitação e transporte? Ou será que, hipoteticamente, uma queda marginal no tamanho do aparato estatal e em suas responsabilidades serve melhor a

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esse objetivo? Se a resposta é sim, devíamos obter ainda “mais por menos”. O ônus da prova para responder a tais questões deve ser daqueles que defendem maiores gastos estatais e maior nível de empregos no setor público.

Os críticos liberais dos governos grandes merecem o crédito da demonstração de que estatismo excessivo freqüentemente inculca disposições de dependência, inatividade, procura de rendas e benefícios pessoais, clientelismo, autoritarismo, cinismo, irresponsabilidade fiscal, fuga de accountability, falta de iniciativa e hostilidade à inovação, se não diretamente a corrupção. Isso ocorre com freqüência também do outro lado da linha que divide a administração pública de seus clientes. Com o objetivo de evitar essas tentações que estão postas a altas autoridades públicas e a responsabilidades estatais, deve-se presumir que o pessoal do setor público é imbuído de um ethos e um compromisso altamente desenvolvidos, assim como de grande competência profissional, o que freqüentemente não é verdade. Todas essas questões tendem a ser desconsideradas indevidamente por aqueles (número que encolhe rapidamente) que ainda acreditam que maiores gastos públicos e mais empregos públicos são necessários para, e realmente resultarão em, uma melhor produção e uma distribuição mais eqüitativa dos bens públicos.

2. A falácia da capacidade de governo "pequena demais"

Mas devemos prestar igual atenção às patologias que aparecem quando o Estado é feito “desaparecer” sob o ataque feroz de forças políticas libertárias ou sob o impacto de crises fiscais severas. Como todos sabemos, o Estado, no seu mínimo, é chamado a proteger a vida, a propriedade e a liberdade dos cidadãos (Locke), com a conseqüência para a sociedade moderna que a maioria de cidadãos (adultos) que opera do lado da oferta dos mercados de trabalho não terá nem a sua “propriedade" (isto é, o poder do trabalho) nem a sua liberdade protegidas na ausência de escolas, treinamento vocacional, políticas de habitação, leis trabalhistas individuais

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e coletivas e seguridade social organizadas pelo Estado. Isso porque, na ausência desses serviços e desse estatuto de direitos que associamos com o Estado do Bem-Estar moderno, o mercado de trabalho se transforma naquilo que Polanyi (citando Blake) chamou de “moinho satânico”.

De forma similar, mercados para ativos financeiros, bens e serviços não podem se constituir nem mesmo continuar existindo quando já em funcionamento, sem a contínua geração e ajustamento de normas de lei civil, assim como a garantia organizada pelo Estado da aplicação dessas normas através de um sistema de tribunais nos limites da lei, para não nos referirmos às políticas industriais direcionadas para promover o crescimento em setores particulares da indústria. Muito disso se aplica à proteção da “vida” que os Estados têm que providenciar através da defesa militar, além de prover serviços básicos de saúde e proteção dos cidadãos da violência “civil” cometida contra eles por outros cidadãos (e, mais tarde, pelos próprios agentes estatais). Com o objetivo de levar a cabo essas funções que são essenciais para o Estado, os Estados devem ser capazes de extrair os recursos necessários para a performance dessas funções através de um regime de impostos que seja, e deve ser, ao mesmo tempo justo e efetivo.

Por todo o mundo desenvolvido, e não apenas na América Latina, as reformas do Estado são hoje vistas como o item máximo da agenda da política doméstica, e têm por objetivo a restauração das capacidades estatais em desmoronamento (19). Essas deficiências na performance dos Estados estão sendo diagnosticadas hoje com respeito a todos os aspectos já mencionados: proteção social, lei civil, lei e ordem e poder de extração de receitas. Aparentemente, temos sido mais ameaçados pela patologia das severas deficiências estatais do que pela patologia da hipertrofia estatal, embora os liberais de mercado de forma rotineira enfatizem a segunda. Colocando de outra forma, talvez estejamos sofrendo dos males combinados de um Estado superdimensionado com uma performance abaixo da necessária.

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3. A falácia da excessiva confiança nos mecanismos de mercado

Os mercados são arranjos institucionais muito peculiares, em que a alocação competitiva de fatores e resultados da produção é mediada através de sinalizações de preço. Alega-se que os mercados respondem a desejos individuais, como expressos através da demanda efetiva. Mas é bem documentado que mesmo resultados de mercados individuais altamente favoráveis não contribuem muito para a satisfação dos desejos das pessoas (20). Exceto para categorias de renda muito baixas, a satisfação da vida e a felicidade sentida pelos indivíduos são correlacionados de forma muito tênue com aumentos na renda do mercado e a subseqüente demanda efetiva que essa renda permite que seja transformada em bens e serviços. Quanto maiores são as rendas, menos elas são direcionadas para a satisfação de outras necessidades que não a “necessidade” de evitar uma perda relativa de renda, “necessidade” essa negativa e inteiramente induzida pelo mercado. Poucos discordariam que os prazeres não-comercializáveis jogam um papel importante para a satisfação geral da vida, incluindo, podemos sustentar, o prazer derivado da percepção de se viver em uma sociedade justa.

Também é verdade que o mercado premia eficiência, contanto que as vantagens competitivas venham como um prêmio por melhores métodos de produção e melhores produtos, e não como prêmio por melhores métodos de evasão de impostos, de enganar os consumidores e de reduzir parte dos custos de produção empurrando-os para o orçamento estatal ou para o público em geral. Mas a eficiência é valorizada exclusivamente em um ambiente onde os retardatários sejam punidos – em mercados. Essa é uma das razões por que os mercados têm sido comparados a uma “prisão” na qual somos obrigados a desenvolver atividades que não são relacionadas com nossas necessidades, enquanto somos impedidos de desenvolver outras que vão ao encontro delas (21). Fora dos

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mercados não há nenhum valor auto-evidente e absoluto associado a aumentos de eficiência. Sociedades sem mercado se sustentaram por séculos sem nenhum aumento observável de eficiência. Os mercados concedem prêmios para resultados que sejam medidos por eles como superiores em termos de eficiência. É importante ter em mente a lógica circular desse argumento. Se fizermos isso, ficaremos menos impressionados com o argumento tradicional de que os arranjos de mercado são preferíveis a outros arranjos porque eles levam a maior eficiência. Esse argumento é virtualmente tão poderoso quanto o argumento de que cerejeiras são preferíveis a todas as outras árvores porque elas dão cerejas.

Além disso, supõe-se que mercados sejam “livres”, mas as mesmas condições que fazem do mercado especial do trabalho um arranjo social tolerável (22) – o estatuto de direitos dos trabalhadores e a regulação protetora do emprego (sumariamente referida como “desmercantilização”) – impedem a abertura completa do mercado de trabalho e excluem números crescentes de potenciais trabalhadores da possibilidade de se tornarem verdadeiramente trabalhadores, particularmente depois que o nível de eficiência da produção foi elevado através da economia do trabalho possibilitada pelo avanço técnico. Essa exclusão infligida pelo mercado ao mercado de trabalho, entretanto, é, em si, uma das mais fortes causas conhecidas do declínio na satisfação da vida e da felicidade sentida pelas pessoas.

Mas os mercados são conhecidos por serem autodestrutivos ainda em outro sentido. Uma vez que eles são deixados a si mesmos, os atores racionais conspirarão no interesse de aumentar seus lucros individuais. Para escapar à ameaça competitiva posta por outros participantes do mercado, constituirão cartéis e monopólios, subvertendo, conseqüentemente, o ideal de “liberdade de escolha” em cujo nome os mercados são freqüentemente defendidos. Em outras palavras, só pelo fato de que mercados competitivos estejam funcionando, não podemos assumir de forma alguma que eles sejam competitivos na ausência de alguns agentes a

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eles externos que forcem que a competição seja mantida. Adicionalmente, os mercados são conhecidos por sua surdez e cegueira: são surdos às externalidades negativas por eles causadas, por exemplo de natureza ambiental, ao mesmo tempo que são cegos às conseqüências de longo prazo que as transações de mercado podem causar àqueles envolvidos com elas.

Finalmente, os mercados não apenas se ressentem da falta de mecanismos auto-reprodutivos, e tendem freqüentemente a se subverter em arranjos de poder monopolista, como também não contam com mecanismos auto-restritivos. Como não há forma de distinção entre os itens “mercantilizáveis” e “não-mercantilizáveis”, os mercados tendem a inundar todo o universo da vida social e mercantilizar tudo – a não ser que essa distinção seja imposta a eles de fora (novamente), através de uma proibição legal sobre seus limites (por exemplo, em algum grau, com relação a drogas e prostituição) e/ou através de padrões de bom gosto e comportamento apropriado estabelecidos e impostos pela ética das comunidades. Não deixa de ser irônico ver que os defensores dos mercados, comprometidos que são com a competição e a liberdade de escolha, tendam a fugir da apreciação da legitimidade de uma competição de segunda ordem entre o mercado e outros métodos de gerar e distribuir itens de valor.

Para ilustrar, comparemos o mercado hoje e em um momento histórico distinto. Tem sido dito que na Idade Média européia o escopo dos itens mercantilizáveis era muito mais amplo do que ele é realmente nas modernas economias de mercado. Essa afirmação, aparentemente despropositada, passa a fazer sentido se nos lembrarmos de que, na Idade Média, dentre os bens comercializados estavam, como objetos comuns de troca comercial, itens como a salvação da alma de alguém, a força militar, o direito ao casamento e outros bens que nós passamos a considerar “não-comercializáveis”. Aparentemente, encontramo-nos, no momento, em um caminho de volta à Idade Média, já que cada vez menos itens parecem de forma sólida ser imunes a ser colocados “a

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venda". Exemplos podem incluir títulos de doutor, atração física, atenção pública, decisões judiciais e até mesmo carreiras políticas (que podem ser adquiridas, respectivamente, através da compra dos serviços de algumas instituições acadêmicas, de cirurgiões plásticos, de tempo na mídia, de advogados caros ou de uma equipe de campanha). Como os mercados são estruturalmente intolerantes a métodos não-mercadológicos para gerar e alocar itens de valor, eles podem causar o que tem sido chamado de “armadilha de baixo nível”. Países (como os Estados Unidos) onde formas privadas comerciais de provisão são amplamente consideradas como resposta padrão às condições de necessidade social, e onde qualquer expansão dos orçamentos estaduais e federal é vista com o alarme costumeiro, são, ao mesmo tempo, aqueles onde provisões complementares do Estado do Bem-Estar, onde elas existem, são mais facilmente demolidas. A generalização até certo ponto paradoxal é que, quanto menor o Estado do Bem-Estar, quanto mais precários e vulneráveis seus arranjos residuais, mais facilmente qualquer tentativa de expandi-lo será frustrada (23).

Dadas todas essas características do mercado e seus mecanismos, é bem difícil invocá-lo como uma contribuição evidentemente superior à ordem social. Ao contrário, o mercado tem sido considerado acertadamente, de Marx a outros autores mais recentes, passando por Schumpeter, como um padrão “anárquico”, “subversivo”, “revolucionário” e “desorganizador” dos arranjos sociais. Na melhor hipótese, a contribuição do mercado à criação da ordem social é estritamente contingente da extensão em que este é inserido em constrangimentos, restrições, regulações, limitações, estatutos de direitos e normas sociais informais a eles impostas de fora, seja pelo Estado seja pela comunidade.

4. A falácia de uma limitação excessiva das forças de mercado

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Ainda assim, como muitas substâncias venenosas, os mercados são indispensáveis como poderosos remédios se administrados em doses razoáveis. Esse é o caso de mercados apropriadamente constrangidos e regulados. A retirada dos mecanismos de mercado de todas as esferas da vida social nos deixaria sem os efeitos salutares que os mercados podem trazer. Embora essa retirada seja raramente proposta hoje, é ainda útil lembrar por um momento o que os mercados são capazes de nos trazer. Quatro pontos vêm à mente. Primeiro, as trocas no mercado, se bem supervisionadas e policiadas, são usualmente pacíficas e não violentas, como os economistas políticos do século XVIII estavam bem cientes quando louvavam as virtudes do comércio (24). Essa defesa “pacifista” dos mercados, quando aplicada à história do século XX com sua experiência de conquista e defesa de mercados através de poderes imperialistas, pode certamente ser colocada em questão. Apesar disso, ela mantém grande parte de sua validade no nível micro. Pessoas que se relacionam entre si como parceiros potenciais ou reais nas trocas do mercado têm poucas razões para atacar os pescoços uns dos outros. Eles podem, ao contrário, até desenvolver algum sentido de “simpatia” entre si, como Adam Smith foi o primeiro a sugerir. Isso ocorre porque os resultados do mercado, isto é, os termos de troca do comércio (por exemplo, a renda ganha por hora trabalhada) não podem ser atribuídos de forma plausível a intenções (hostis) de qualquer ator, mas se devem a algumas causas anônimas para as quais o “eu” não tem ninguém para culpar a não ser a si mesmo. Os mercados são ambientes que se aprimoram e favorecem a auto-atribuição de resultados, tanto favoráveis como desfavoráveis, e no final acabam por produzir um quadro cognitivo de responsabilidades.

Uma outra dimensão positiva dos mercados está em que eles favorecem o aprendizado. Já se afirmou que os mercados, através da imposição contínua de sanções positivas e negativas sobre os participantes das transações, fazem as pessoas mais inteligentes do que elas seriam fora do contexto do mercado. Mas essa proposição deve ser qualificada, pois se

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aplica somente se as recompensas positivas e negativas vêm na forma de incrementos ou perdas relativamente moderados. Ao contrário, se as recompensas mudam aos saltos, as pessoas param de aprender e começam a confundir o mercado com uma loteria (25) (no caso dos grandes ganhos que não podem ser explicados em termos do comportamento individual) ou respondem de forma fatalista ou em pânico, no caso de grandes perdas, já que as proporções desastrosas de mudança excedem a capacidade individual para ajustamento inteligente (26). Finalmente, o mercado tem um poderoso potencial libertador, já que ele permite que o possuidor de ativos mercantilizáveis escape ao controle tanto das comunidades como de burocracias estatais (27). Na medida em que se pode efetivamente demonstrar que o mercado tem realmente potencial para redimir o espírito de interação pacífica e civilizada, de responsabilidade, de ajustamento inteligente e de liberação do controle do autoritarismo e dos poderes paternalistas, eles certamente não podem ser desconsiderados como blocos essenciais para a construção da estrutura institucional da vida social.

5. A falácia do comunitarianismo excessivo

Uma poderosa representação das realidades atuais é o multiculturalismo. Essa doutrina do pós-modernismo político tende a codificar as pessoas não em termos de cidadania, mas em termos de “identidade”. Ela enfatiza a “política da diferença”, uma diferença que não é sempre concebida como vencida ou reconciliada por interesses comuns nacionais, cívicos ou de classe. Ela reage ao fenômeno de massa, tanto presente quanto histórico, da migração transnacional, tanto voluntária como involuntária. No Atlântico Norte ocidental, a política da diferença e identidade é uma resposta filosófica ao amplo desencantamento com as premissas do individualismo liberal e sua forma concomitante de universalismo socialista. Para ser ciente de você mesmo, você deve descobrir, reconhecer e cultivar as distintivas “raízes” que o atam à sua família de origem e, para além dessa, às comunidades étnicas, lingüísticas e religiosas e suas formas de vida. O

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feminismo provê um outro mapa cognitivo que enfatiza identidades de gênero. A “política do corpo” (idade, comida, saúde, orientação sexual) é invocada mais à frente na construção de diferenças baseadas em características físicas, práticas e preferências (28).

Seguindo o modelo dos direitos de grupo concedidos aos afro-americanos em consideração à discriminação de longa duração imposta a seu status de cidadãos e a suas oportunidades de vida, a política da identidade se tornou uma estratégia amplamente copiada por parte de “grupos” autodeclarados para ganhar acesso a privilégios culturais e de outras naturezas. De forma similar, em países pós-comunistas, vemos um dramático crescimento de uma política de identidade étnica, religiosa e lingüística e um nacionalismo étnico e político que, entretanto, não é limitado em seu potencial ao separatismo violento do mundo pós-comunista: a Irlanda do Norte e o País Basco, e não somente a Chechênia e a Bósnia ilustram o potencial da política da identidade para o terror e o horror. Tanto no Leste como no Oeste, doutrinas de nacionalismo étnico quase sempre se desdobraram em tendências hostis e repressivas que interferem com cidadãos “divergentes” e direitos políticos e civis de “estranhos”. Mesmo em suas formas mais benignas (como em Quebec), a política comunitária da identidade e da diferença tende a ser exclusivista, antiigualitária e notoriamente difícil de reconciliar com os princípios cívicos da neutralidade e da tolerância. Mesmo que não seja abertamente exclusivista, a ênfase em características e solidariedade de grupo viola os padrões igualitários pelo simples fato de que nem todos fazem verdadeiramente parte ou se identificam com o grupo definido daquela forma. Mesmo aqueles que compartilham as características imputadas aos que supostamente fazem parte do “grupo” podem optar por “pular fora” de sua rede de solidariedade por causa dos padrões freqüentemente autoritários e paternalistas que esses grupos quase tribais tendem a desenvolver.

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As tensões existentes entre a política da identidade e os princípios igualitários de cidadania podem ser explicadas pelas dificuldades particulares encontradas pela tentativa de resolução civilizada dos conflitos de identidade quando comparados com a resolução dos conflitos de classe (29). A identidade, ou a identificação apaixonada com alguma comunidade, é quase por definição inalienável e não negociável. Enquanto conflitos de classe são levados a cabo entre atores coletivos que dependem uns dos outros (mesmo se assimetricamente), e por essa razão carregam algum interesse, ao menos implícito, no bem-estar dos seus oponentes, os protagonistas dos conflitos de identidade, ao menos na sua versão mais radical, tendem a retratar não-membros como pessoas cuja ausência da “nossa" comunidade ou território nacional é uma condição para o preenchimento de “nossas” aspirações de “pureza”. Esse tipo de aspiração com freqüência tem levado a práticas e justificativas de limpeza étnica.

6. A falácia de negligenciar comunidades e identidade

Mas aqui, novamente, esse é apenas um lado do debate. Do outro lado se afirma, com alguma razão, que as comunidades e identidades nas quais somos “nascidos” são as mais poderosas fontes geradoras de compromissos e capacidades morais. Comunidades como famílias, associações religiosas ou nações étnicas oferecem aos indivíduos uma sensação de sentido e missão, assim como sentimentos de orgulho, confiança, amor, culpa, honra, compromisso etc. que talvez somente possam ser alcançados em comunidades. Estas representam um papel importante e único na reprodução das tradições culturais e valores étnicos. Somente comunidades podem gerar, ou pelo menos assim afirma o argumento comunitário, indivíduos fortes que desejam ser considerados responsáveis por seus atos e pensamentos, em oposição a oportunistas sem firmeza de caráter. E essa não é a única contribuição que se presume que as comunidades possam dar para resolver problemas da ordem social e de integração social. Elas também merecem reconhecimento e proteção

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através de políticas de Estado porque, quase como caldo genético da cultura de uma sociedade, não podem ser manufaturados ou reproduzidos artificialmente. A necessidade de proteger as culturas comunitárias se aplica especificamente, ou ao menos é isso que se afirma, quando elas são vistas como expostas ao risco de extinção pelo mercado ou pelas forças políticas da modernização.

Em qualquer medida, grande parte da evidência demonstra que coletividades circunscritas por características comuns baseadas em identidades religiosas, de gênero, de idade, regionais e étnicas, entre outras, com as quais as pessoas “nascem com”, têm provido energias morais que impulsionam inovações de interesse público e avanços sociais e políticos. O mesmo pode ser dito de identidades relativamente permanentes mas menos baseadas em características, que sejam baseadas no pertencimento das pessoas a comunidades locais ou categorias profissionais (30). Os novos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 estão entre esses casos (31). Em inúmeros lugares, movimentos de estudantes, mulheres e minorias étnicas e raciais, assim como comunidades locais foram os promotores pioneiros dos direitos civis e tornaram mais sensível o reconhecimento político e moral de questões de liberação, tolerância, justiça social e preocupações ambientais e ecológicas. A cessão e a garantia do necessário espaço para a ação política e social dessas comunidades e para que possam promover suas práticas associativas (em vez de substituí-Ias por ação estatal paternalista e/ou repressiva) aparecem como uma pré-condição necessária para o aprofundamento do uso benéfico coletivo dessas forças comunitárias e modos de ação.

IV – CONCLUSÃO

As três antinomias da ordem social e política que discutimos não podem ser resolvidas pelos esquemas grandiosos que filósofos ou ideólogos políticos podem produzir. O que nos sobrou foi um repertório de argumentos e observações

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complementares, em parte contraditórios, que podem ser trazidos à baila sob a crítica e a reconstrução dos arranjos institucionais existentes. Isso porque não existem instituições ou relações Estado-sociedade somente racionais. Ao contrário, essas antinomias e rivalidades ideológicas devem (e eu acredito que possam) ser resolvidas através de uma cultura de civilidade que se desdobre entre os pólos de nosso triângulo conceitual de soluções “puras", em grande parte obsoletas.

As três forças, ou opções de construção institucional que discutimos anteriormente de forma bastante esquemática, tendem a se entrecortar (32). Elas também dependem umas das outras. Como nenhuma delas é dispensável, a necessidade de autolimitação dos proponentes de cada uma delas se torna evidente. Formas institucionais de ação pública recentes enfatizam as limitações necessárias entre as três forças da construção institucional, mesmo que apenas através da negação. Por exemplo, falamos de organizações “não-governamentais” ou do setor “sem fins lucrativos”. Por razões tão boas quanto essas, devíamos nos referir a organizações “não-sectárias”, isto é, tipos de comunidades não-exclusivistas ou não-discriminatórias. Essas três negações combinadas são, ou ao menos assim parece, uma aproximação conceitual muito boa da idéia de associativismo cívico e de capital social que capacita as pessoas a se engajarem em práticas associativas.

O uso cívico do capital social e das práticas associativas nas quais ele se manifesta pode estar fadado a ser um caminho harmonioso e idílico para se escapar ao dilema da ordem social. Defensores de tais práticas com freqüência parecem ignorar ou diminuir as realidades do poder social e da impotência. Categorias de atores sociais podem ter interesse racional na disseminação dos discursos hegemônicos que favorecem as versões de ordem social centradas na comunidade, no Estado ou baseadas no mercado. Os cientistas sociais não compreendem ao certo quais estratégias, condições e percepções orientam esses discursos

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hegemônicos que realmente conseguem privilegiar um modelo de ordem social em prejuízo de suas alternativas desacreditadas efetivamente. Nós também não entendemos as transformações, às vezes abruptas, que dão origem a novos discursos hegemônicos, como o da ortodoxia do mercado livre, e à rápida desmobilização de modelos de ordem social institucionalizados previamente. Tudo o que podemos talvez dizer é que as lutas de classe semânticas que levam à disseminação e à consolidação dos quadros cognitivos hegemônicos e intuições morais estão sujeitas, assim como seus resultados, à formação de julgamentos e ao confronto autônomo de padrões de avaliação e experiência que podem se originar nas associações cívicas. Nesse sentido, o capital social não é neutro com respeito ao poder, mas a própria essência da capacidade da sociedade civil é desafiar e limitar o seu alcance.

É um truísmo que essa cultura de civilidade não surja automaticamente com a queda dos regimes autoritários e com a transição para a – ou mesmo a consolidação da – forma democrática de regime. A sintonia fina, processual, crítica e flexível, ao mesmo tempo que a recombinação imaginativa dos três componentes da ordem institucional separados é conduzida pelo “capital social” (33) disponível no interior da sociedade civil, amplamente referido na ciência social contemporânea como uma fonte de energia que “faz a democracia funcionar”. Pelo termo “capital social” queremos denominar o conjunto de disposições cognitivas e morais dos cidadãos que os leva a estender a confiança a outros cidadãos anônimos (assim como às autoridades políticas que, em última instância, são investidas pelos cidadãos do poder político), à prática da “arte da associação” (34) e a estarem atentos aos problemas e às questões públicas (em oposição às questões estreitas circunscritas a seus próprios grupos). Instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem beneficiários da) formação e acumulação de

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capital social no interior da sociedade civil. As forças associativas são mais capazes de definir e redefinir de forma constante a “mistura correta" de padrões institucionais do que qualquer autoproclamado especialista ou protagonista intelectual de uma das doutrinas “puras” da ordem social”. (Tradução: Eduardo César Marques).

NOTAS E REFERÊNCIAS DE CLAUS OFFE

* Neste e em outros momentos do texto o autor utiliza a palavra inglesa “accountability”, que não apresenta tradução direta na língua portuguesa. Trata-se de uma característica do sistema político que implica transparência dos atos dos governantes e capacidade de sanção destes pelos governados, que têm os instrumentos para acompanhar o comportamento dos primeiros e responsabilizá-los por seus atos. (N. T.)

** No original em inglês o autor denomina o conjunto de fatores como a fórmula dos seis M, referindo-se à letra inicial das seis palavras. Na tradução para a língua portuguesa, a denominação da “fórmula” perdeu o sentido e foi retirada.

*** A “regra de Tina” designa a idéia veiculada de forma freqüente, recentemente, de que não há alternativas para a atual situação internacional globalizada e para o receituário neoliberal de ajuste, A palavra Tina se origina das iniciais da frase inglesa “There Is No Alternative”; literalmente: "Não há alternativa”.

(1) Para a realização deste artigo, o autor se beneficiou de comentários úteis feitos por David Abraham, John Ballard, Robert E. Godin, Stephen Holmes e Osvaldo Sunkel.

(2) Em vez das forças desejáveis e diretas descritas pela “mão invisível” de Adam Smith!

(3) Ver Hall & Taylor (1996).

(4) Conferir o titulo revelador da coletânea organizada por Barry & Hardin (1982).

(5) A escola “estruturalista” dos teóricos da democracia costumava sustentar que uma economia avançada seria um determinante ou um pré-requisito para a democracia, e que a democracia iria aumentar da mesma forma o potencial para crescimento e prosperidade. Nenhum dos

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lados desse modelo de feedback é apoiado pela maior parte da evidência histórica recente.(6) Ver Beetham (1994).

(7) Ver O'Donnell (1995).

(8) Ver Linz & Stepan (1996).

(9) Como alguns autores têm afirmado, isso tem ocorrido até o limite de tornar a democracia inútil. Ver Guéhenno (1993).

(10) Qualquer que seja o critério, de Katanga (província do Congo rica em minerais) no inicio dos anos 60, ao crescimento das demandas catarás por independência nos anos 80, passando pela independência do Estados Bálticos, assim como pela Croácia e pela Eslovênia no período pós-soviético no início dos anos 90, foram sempre as regiões subnacionais mais ricas dos Estados preexistentes que tiveram motivos fortes para se retirar das unidades anteriores.

(11) Ver Streeck & Schmitter (1985).

(12) Streeck & Schmitter, op. cit., p.119.

(13) Ver Etzioni (1961) para uma conceitualização similar dos modos de coordenação através de normas sociais, poder de coerção e incentivos materiais. Ver também Schuppert (1997)

(14) Ver Miller (1979).

(15) Os casos clássicos dessa superposição e deslocamento mútuo são, de um lado, o "Estado dependente" cuias capacidades regulatórias e de governo são reduzidas por mercados monetários nacionais e internacionais e pelas decisões de investidores e, de outro, a economia “super-regulada”. Ver também a noção de “depleção da herança moral” pela modernização política e econômica em Hirsch (1976).

(16) Stretton & Orchard (1994).

(17) Ver World Bank (1997).

(18) Por exemplo, pode ser facilmente demonstrado que o sistema de educação terciária na Alemanha, um sistema quase totalmente estatal, serve à classe média alta profissional e seus filhos muito melhor do que a qualquer outro estrato social da sociedade alemã. Ao contrário, o sistema de universidades privadas poderia ser facilmente regulado em formas que dessem maior peso a considerações de igualdade social.

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(19) Ver Kaufman (1997a, b).

(20) Ver Lane (1991); e Oswald (1997).

(21) Lindblom (1982).

(22) Ver o argumenro do "moinho satânico" em Polanyi (1944).

(23) Há também, é verdade, o paradoxo reverso da “armadilha do alto nível”, como os “grandes” Estados do Bem-Estar (como o da Holanda) impedindo revisões que signifiquem reduções e apresentando grande inércia.

(24) Hirschman (1977).

(25) Essa visão de como os mercados operam pode ser encontrada em grande escala nas economias pós-socialistas com sua rápida e notável explosão de “novos ricos’.

(26) Isso é bem ilustrado por uma história que se contava na Polônia no contexto da transição econômica. Suponhamos que o preço do carvão dobre durante um inverno rigoroso. As pessoas iriam economizar em aquecimento e trabalhar mais (o que já em si as aquece), de forma a ganhar o adicional necessário de renda para comprar carvão. Agora, suponhamos que o preço do carvão quintuplique. Qual seria então a resposta? As pessoas desistiriam e simplesmente permaneceriam na cama.

(27) É essa experiência de escapar ao controle dos detentores do poder que os jovens que entram no mercado de trabalho experimentam pela primeira vez “ganhando seu próprio dinheiro” e, conseqüentemente, escapando ao controle dos pais. Também é o que clientes de empresas de telefonia recentemente privatizadas experimentam quando lhes é dada a chance de organizar seu próprio pacote, em vez de serem forçados a pagar pelo que a antiga monopolista pública oferecia como único pacote existente. Devemos notar, entretanto, que a experiência de tais sensações entusiásticas de libertação pode ser mais do que um fenômeno transitório associado ao estado estático das rotinas do mercado, No entanto, o desejo tanto dos Estados como das comunidades de estender o controle autoritário ou paternalista sobre indivíduos pode apenas ser impedido mantendo permanentemente abertas as opções de saída do mercado.

(28) Heller (1996).

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(29) Ver Offe (1998).

(30) Tendler (1997).

(31) Ver Marwell & Oliver (1993).

(32) Streeck & Schmitter (1985).

(33) Putnam (1993).

(34) Tocqueville (1961).

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Epílogo | Localização e desenvolvimento

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Globalização, glocalização, localização

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e desenvolvimento humano e social sustentável

A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

Intoxicados pela ideologia econômica dos dois séculos passados, em geral relacionamos o conceito de desenvolvimento com processos de crescimento de uma parte dos bens e serviços que são produzidos por um tipo determinado de sociedade, particularmente por uma sociedade separada das demais pelas fronteiras do Estado-nação. Economistas heterodoxos – como Hazel Henderson (1) – vêm nos alertando, há muito, para as incongruências desse tipo de abordagem. Todavia, tais economistas, ao que parece, ainda não se libertaram completamente da visão reducionista daquilo que, na língua inglesa, se chama de “economics”.

Alguns, como a própria Henderson, criticam a identificação de desenvolvimento com crescimento do PIB, entre outras coisas porque o processo de cálculo do PIB não leva em conta uma série de atividades ‘socialmente produtivas’ (como o trabalho doméstico e o trabalho voluntário) e ambientalmente necessárias à sustentabilidade da sociedade humana (como a absorção dos custos da poluição e a reciclagem de efluentes) (2). Outros, como Paul Ormerod (1994) indo mais a fundo, criticam os fundamentos da economia ortodoxa, quando observam que “a idéia de que a sociedade é constituída por indivíduos que agem a partir do cálculo racional de seus interesses pessoais impregna as teorias modernas... [a tal ponto que] na verdade, para um economista, assim como para Mrs. Thatcher, isso que chamam de sociedade é algo que não existe, só existem os indivíduos que a constituem” (3).

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Há quem, cavando ainda mais fundo, tente mostrar que a economia ortodoxa é uma economia que só vale para o modelo de crescimento, podendo haver, entretanto, um modelo estacionário (de ‘crescimento zero’), supostamente – sob certas condições ambientais latu sensu – mais sustentável para as sociedades humanas.

Por último, nos anos 90, apareceram aqueles que, como Brian Arthur (1996), tomando a sociedade (e a economia) como um sistema complexo, questionam dogmas universalmente aceitos, como a famosa Lei dos Retornos Decrescentes de Turgot (1767), mostrando que tais retornos podem sim ser crescentes e, muito além disso, abrindo um novo referencial conceitual e introduzindo novos instrumentos analíticos para estudar as múltiplas interações (e retroalimentações) que se dão nesse tipo de sistema (4).

Desenvolvimento não é a mesma coisa que crescimento

Não é a hora, nem o lugar, de fazer um inventário mais sistemático desses questionamentos aos fundamentos ideológicos ou teóricos do pensamento econômico ainda predominante. Basta observar que eles são predominantes, como fez Ormerod, quando constatou que, se os economistas raramente se põem de acordo, todas as suas dissensões “dizem respeito ao comportamento da economia no nível global, no macronível, e não no micronível do comportamento individual. O micronível é que é descrito pelo modelo de equilíbrio da economia marginal e que é fundamental para a visão de mundo dos economistas ortodoxos, independentemente de quaisquer diferenças que possam ter sobre a condução da política macroeconômica” (5).

É assim que, por exemplo, freqüentemente se observa que (quase) todos os economistas, não obstante sua opção partidária ou coloração ideológica, prescrevem receituários extremamente parecidos quando se trata de indicar aos

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governos (sua tarefa preferida) como eles devem se comportar para promover o desenvolvimento das nações. A solução universal é sempre o crescimento que, por virtude de mecanismos intraeconômicos, traria como conseqüência o desenvolvimento humano e social. Depois eles discordam em quase tudo sobre a posologia. O remédio, contudo, é consensual.

Isso não ocorre por acaso. O crescimento é um fenômeno típico da revolução industrial. É uma invenção do século 18. E a economia é uma disciplina construída para explicar um fenômeno que não existia de modo significativo nos milênios anteriores.

Só para dar um exemplo, estima-se que entre 500 e 1.500 d. C, o PIB do mundo cresceu em média apenas 0,1% ao ano, se é que tanto. A coisa só começou a exigir explicação no século 18, quando a Grã-Bretanha passou a crescer a taxas, dramáticas, de 1% ao ano (6). Foram pessoas fascinadas com esse fenômeno – como Adam Smith (1776) e Thomas Malthus (1798), entre tantas outras – que revolveram inventar uma ciência para explicá-lo. Por isso, a ciência econômica vigorante é uma ciência do crescimento. Surgiu para explicar uma coisa e, a partir daí, se pôs a explicar todas as coisas através de uma coisa (o crescimento). E por isso é legítima a dúvida de Melvin Reder (1998), da Universidade de Chicago, de se a economia é realmente uma ciência ou uma “ideologia disfarçada” (7).

Assim, existem muitas teses que são dadas como certas pelo pensamento econômico, mas que não estão “provadas” por critérios científicos e se assemelham mais a crenças. Vejamos alguns exemplos.

Um primeiro exemplo é a confiança absoluta “na primazia do mecanismo de mercado ao supor que as preferências dos consumidores são reveladas por suas escolhas de bens e serviços e que o mecanismo de mercado garante a satisfação dessas preferências”. Isso só se verifica sob certas condições

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ideais que, em geral, não se reúnem perfeitamente em sociedades reais. Além disso, as escolhas individuais freqüentemente não são apenas racionais, mas dependem de expectativas de recompensa emocional. E, ainda, os “átomos de interesse” são condicionados por padrões de comportamento coletivos (das “moléculas de convivência”) que se replicam pelo simples fato de que são replicáveis culturalmente e não em virtude de qualquer maximização voluntária e racional da satisfação de interesses individuais. Se não fosse assim não se explicaria porque se gasta, nos Estados Unidos, cerca de 60 bilhões de dólares em produtos de beleza e, no Reino Unido, mais de 1 bilhão de libras em comida para animais de estimação, enquanto que as pessoas resistem tanto a investir em sistemas de saúde e educação ou, mesmo, na melhoria do ambiente social e natural onde vivem, o que, racionalmente, aumentaria a qualidade da sua vida e de suas famílias (8).

Um segundo exemplo pode ser dado pela crença de que “a mão invisível do mercado” possa promover mais equidade em sociedades onde todas as (ou várias das) variáveis do desenvolvimento (como o conhecimento e o poder ou empoderamento, para além da renda e da riqueza) estão concentradas.

Um terceiro exemplo é a ênfase atual na idéia de ‘competitividade sistêmica’ como se fosse uma verdade inquestionável ou uma descoberta universalmente aceita e demonstrada pela ciência contemporânea, quando tal conceito não passa de um modo-de-ver, de uma interpretação. Nada contra as dinâmicas competitivas características do mercado, da sua “lógica” e racionalidade próprias, mas tal idéia freqüentemente faz transbordar a dinâmica mercantil (competitiva) para a dinâmica social levando à perigosa concepção de que sociedades devem ser competitivas, quando, ao que parece, sociedades competitivas não constituem bons ambientes para mercados competitivos. Pelo contrário, todas as evidências mostram que uma economia competitiva consegue se sustentar melhor em

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sociedades cooperativas. Ou seja, a economia pode – e deve – ser “de mercado”, mas a sociedade não.

E, para citar um quarto e último exemplo, o argumento – prisioneiro de uma circularidade fatal – de que crescimento leva inexoravelmente à desenvolvimento; ou de que crescimento econômico leva à desenvolvimento social e redução da pobreza se houver distribuição da renda. Ora, como já argumentei no meu livro “Pobreza e Desenvolvimento Local” (Brasília: AED, 2002), “para distribuir a renda em um patamar que, supostamente, seja suficiente para promover o desenvolvimento social necessário para sustentar o crescimento é necessário ter um nível de crescimento a altas taxas e mantê-lo durante um certo tempo. A pergunta é: como fazer isso, se o alcance e a manutenção dessas taxas exigem níveis de desenvolvimento social que só podem ser atingidos quando tais taxas forem praticadas por certo tempo? Repetindo... a circularidade do argumento econômico é a seguinte: como fazer crescer o PIB a altas taxas, continuadamente e por um tempo suficiente, para que seja possível uma distribuição significativa da renda, se, para tanto, é necessário partir de patamares de capital humano e de capital social que [para tal raciocínio] só seriam alcançados com um crescimento continuado do PIB a altas taxas?” (9).

Ao final da primeira década da segunda metade do século 20 foi colocada a questão da sustentabilidade do crescimento, ou melhor, da própria sociedade humana no modelo do crescimento. Grande parte do então nascente movimento ambientalista se constituiu a partir da constatação de que não poderia haver crescimento ilimitado em um mundo finito. O que coloca um limite para a economia enquanto ciência do crescimento. Seria uma “ciência temporária”, ou seja, suas hipóteses só seriam válidas enquanto não se chegasse ao limite dos recursos, limite a partir do qual nem a explicação nem a receita do crescimento seriam válidas ou aceitáveis.

Só muito recentemente as pessoas (diante de realidades como a pobreza e a desigualdade em certas nações, que

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teimam em não diminuir em virtude do crescimento) começaram a se perguntar sobre os objetivos do crescimento, sobre ‘para quê’ e ‘para quem’ ele deveria ser promovido. Foi assim que começou a entrar em debate a temática do desenvolvimento humano. E, mais recentemente ainda, a temática do desenvolvimento social.

Desenvolvimento humano não é a mesma coisa que desenvolvimento social

Absorver a temática do desenvolvimento humano não foi tão difícil assim para uma parte dos economistas. Afinal, o fator humano pode sempre ser visto como um fator individual, pilar sobre o qual se assenta toda a construção econômica ortodoxa: são indivíduos que, agindo a partir do cálculo racional de seus interesses egoístas, ao fim e ao cabo constituem a sociedade. Portanto, de um ou outro modo, são os (ou alguns dos) indivíduos que, ao se desenvolverem (no caso, ao prosperarem economicamente em seus empreendimentos – como donos, sócios, acionistas ou empregados – ou ao auferirem marginalmente os resultados do crescimento geral da economia) desenvolvem as nações e, ao mesmo tempo, se desenvolvem a si próprios em termos humanos (aumentando seus níveis de renda, de escolaridade, de saúde, de expectativa de vida e de outros fatores que porventura se queira introduzir na composição do chamado “capital humano”).

Todavia, absorver a temática do desenvolvimento social não está sendo tão fácil, na medida em que a compreensão de que “o comportamento do sistema pode ser bem diferente daquilo que é possível prever a partir da extrapolação do modelo de comportamento dos indivíduos” exige uma certa superação da abordagem mecanicista que ainda predomina entre os economistas e em todos aqueles cuja consciência foi colonizada pela sua visão de sociedade.

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Quando os economistas falam em desenvolvimento social estão, em geral, pensando em desenvolvimento humano a partir de uma racionalidade econômica. E quando os policymakers (cuja consciência foi colonizada pelos economistas) falam em desenvolvimento social estão falando em usar superavits de crescimento (recolhidos em geral na forma de impostos) para fazer investimentos em saúde, educação, saneamento, habitação, alimentação e nutrição, transporte, segurança, emprego e renda e estão falando na perspectiva de que o Estado, ao fazer isso, estaria promovendo as condições necessárias e suficientes para que as pessoas pudessem ter acesso ao mundo do desenvolvimento econômico. Não estão tratando exatamente de desenvolvimento social, mas de igualdade de oportunidades para os indivíduos a partir de uma racionalidade econômica.

Ademais, em geral as pessoas confundem desenvolvimento humano com desenvolvimento social porquanto imaginam que o que chamamos de social seja apenas um sinônimo para ‘coletivo de gente’, denominação para um conjunto de elementos humanos (indivíduos) co-presentes sobre um território por longo tempo. Não percebem que o conceito de ‘social’ se aplica a um sistema complexo (a sociedade), que não significa apenas a reunião ou a soma dos indivíduos e cujas funções (que explicam o chamado comportamento social) não podem ser derivadas daquelas que são desempenhadas pelos indivíduos.

O primeiro requisito para compreender o que se chama de desenvolvimento social é partir da premissa de que a sociedade existe. É por isso que é tão difícil para o pensamento econômico ortodoxo aceitar a idéia de desenvolvimento social (na medida em que ele se baseia em uma premissa contraditória com a premissa da existência da sociedade ao supor que o comportamento do sistema econômico como um todo possa ser inferido da mera soma das suas partes individuais). Ora, como o pensamento

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econômico ortodoxo virou uma espécie de “religião laica”, cujos dogmas são ensinados nas escolas e reproduzidos em toda a parte, sobretudo pelos noticiários da mídia, em geral as pessoas são conduzidas a pensar nos seus termos.

Desenvolvimento é sempre desenvolvimento sustentável

As mesmas dificuldades para compreender o desenvolvimento social (empregando o termo ‘social’ para designar os sistemas complexos que chamamos de sociedade humana) se revelam em relação à compreensão do desenvolvimento sustentável. Porque a sustentabilidade é uma função de integração, é um comportamento emergente em um sistema complexo que viabiliza a conservação da sua adaptação ao meio.

Os ecologistas chegaram a essa compreensão a partir da observação do comportamento dos organismos vivos e, sobretudo, a partir do estudo dos ecosistemas. Começaram a ver que o que mantinha vivos tais sistemas era o resultado de miríades de atividades em uma rede reguladora e não da condução exercida centralizadamente por um centro diretor. Tais atividades visavam estabelecer e restabelecer, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio. Se essas congruências fossem rompidas – ou seja, se a adaptação não fosse conservada – o organismo não permaneceria vivo e, portanto, o sistema não seria sustentável.

Aqui também se revela, portanto, a impotência do pensamento mecanicista para compreender e operar sistemas complexos. O importante não é fazer crescer as variáveis do desenvolvimento e sim fazê-las atingir valores ótimos (ou, mais precisamente, flutuar em intervalos mutuamente correspondentes em torno de valores ótimos) para que o efeito de conjunto possa ser a capacidade de conservar a adaptação.

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Assim, para o desenvolvimento sustentável, o relevante é a configuração dos fatores do desenvolvimento em seu conjunto (como a renda, a riqueza, o conhecimento, o poder ou o empoderamento e a interação com o meio ambiente natural) e não os valores dessas variáveis tomados isoladamente. Maximizar isoladamente o valor de uma dessas variáveis levará por certo à insustentabilidade – hipótese muito difícil de ser aceita pelos ideólogos do crescimento, para os quais a coisa funciona sempre na base do ‘quanto mais melhor e não importa o resto’. Mantidos os padrões atuais de produção e consumo (cuja conformação tem a ver com a relação entre vários outros fatores do desenvolvimento), uma renda per capita, por exemplo, de 100 mil dólares, poderia levar uma sociedade ao colapso, como qualquer pessoa inteligente pode desconfiar, mas para eles seria algo assim como o céu.

Do ponto de vista da sustentabilidade o desenvolvimento é, assim, sempre uma espécie de “coevolução”, de desdobramento de um condomínio interativo de fatores. E torna-se inclusive redundante utilizar a expressão ‘desenvolvimento sustentável’ na medida em que um desenvolvimento que não fosse sustentável poderia até ser crescimento (de uma ou de várias variáveis) mas não seria desenvolvimento.

Desenvolvimento local não é apenas desenvolvimento econômico

As dificuldades de compreensão do desenvolvimento como um fenômeno sistêmico também se revelam em relação ao chamado desenvolvimento local. Como tudo foi pensado para uma localidade (quer dizer, para um único tipo de localidade), particular e separada das demais, ou seja, aquela contida pelas fronteiras do Estado-nação, muitas pessoas não vêem sentido na expressão desenvolvimento local. Ou melhor, compreendem o desenvolvimento local (quando se trata de localidades sub-nacionais) sempre como um resultado decorrente do (ou intimamamente associado ao)

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desenvolvimento nacional. Ontem, Adam Smith escreveu sobre “a riqueza das nações” e não sobre a riqueza de uma localidade qualquer. Hoje, já no declínio da era das nações-Estado, as pessoas continuam considerando apenas o desenvolvimento nacional, se bem que agora como o resultado de políticas macroeconômicas acertadas (que levem à estabilidade e ao crescimento), mas cujas medidas não podem ser tomadas em nível sub-nacional, em pequenas localidades pelas quais não trafegam os grandes fluxos de recursos do mundo econômico. Não é a toa que essa gente ande tão nervosa nos últimos anos, ao constatar que o processo de globalização retira também boa parte da autonomia macroeconômica do Estado-nação, que, em alguns casos, vira uma localidade tão periférica no mundo econômico global quanto os pequenos municípios do interior que sempre desprezaram.

As pessoas em geral têm dificuldades para compreender como é que promovendo o desenvolvimento de localidades periféricas e com baixíssimo PIB pode-se lograr um impacto ponderável no processo de desenvolvimento do País. Comparece aqui, por certo, além do preconceito econômico original (o “pecado original” do pensamento econômico, que identifica crescimento com desenvolvimento), o preconceito macroeconômico (ou dos policymakers econômicos) segundo o qual a unidade que deve ser desenvolvida é o Estado-nação e que, portanto, só existe uma localidade que conta de fato. Ora, isso é uma escolha política (motivada por uma visão ideológica: o estatismo como ideologia legitimadora da construção política chamada Estado-nação) que nada tem a ver com qualquer coisa que se queira chamar de ciência. Por quê não se pode pensar em uma localidade supra-nacional (em uma união de países, como, por exemplo, a União Européia)? E se a prática mostra que se pode pensar, nestes termos, em uma unidade de desenvolvimento supra-nacional, por quê não se poderia pensar em uma unidade infra-nacional (como uma micro-região ou um município)?

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O mesmo preconceito também se verifica entre os que aceitam a idéia de desenvolvimento local (aplicada a unidades infra ou sub-nacionais) sem terem se livrado ainda da ideologia econômica. Dentre estes há os que sustentam, por diversos caminhos argumentativos, que o fundamental é promover o desenvolvimento econômico das localidades, seja para fortalecer o mercado interno, seja para aumentar o volume ou promover a distribuição da riqueza pela multiplicação do número de proprietários produtivos, seja para – em uma época de globalização – se refugiar em espaços ainda não devastados pelos fluxos financeiros do capitalismo global para, ali então, nesses pequenos “esconderijos da história”, iniciar processos virtuosos de acumulação primitiva de capital autóctone.

Ora, a simples ênfase da palavra ‘econômico’ na expressão ‘desenvolvimento econômico local’ revela, em geral, uma incompreensão do desenvolvimento como fenômeno sistêmico. Revela aquele preconceito economicista, tão comum nas cartilhas dos dois séculos passados, segundo o qual é o econômico que “puxa” o resto, que o econômico, portanto, deve ser o ponto de partida, pois que é ele que determina o comportamento das demais variáveis do desenvolvimento (e isso quando se admite que existam outras variáveis na equação do desenvolvimento, uma vez que, em geral, todos os demais fatores, além do capital físico e financeiro, são tratados como externalidades e, quando são assim tratados, são considerados também como não-centralidades). Muitas pessoas que pensam dessa maneira em geral assumem o desenvolvimento local quando se convencem de que isso será útil para gerar trabalho e renda.

Mas não se trata de multiplicar experiências de geração de trabalho e renda a partir de uma racionalidade exclusiva ou predominantemente econômica, como ocorreu nos anos 80 e em boa parte dos anos 90 do século passado. Como disse Caio Márcio Silveira (2003), “o grande diferencial das experiências de desenvolvimento local, iniciadas ao final da década [de 1990], é justamente constituir uma matriz de

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projetos no território (o que chamo de "usina social de projetos"), onde se combinam articulação interinstitucional e participação social (ou novos "arranjos sócio-institutucionais" ou "novas institucionalidades", vinculando ampliação da esfera pública e oferta de serviços territorializados). Como sabemos, este diferencial de ambiente não é apenas um "aspecto contextual", mas é o núcleo do processo, é aí que se dá o salto do pontual para o sistêmico” (10).

Todas as dificuldades de compreensão comentadas acima têm a ver com a ausência de visão sistêmica na medida em que, sem essa visão, não é possível perceber as múltiplas interações entre as localidades e, nem mesmo, o que significa ‘local’ – e isso para não falar da percepção do processo em curso de localização no sentido “forte” do conceito e da hipótese que o sustenta. Ademais, sem a visão sistêmica não se consegue perceber as múltiplas interações entre os diversos fatores de desenvolvimento dentro de cada localidade.

Do ponto de vista sistêmico, cada localidade é única porquanto apresenta uma combinação particular de fatores do desenvolvimento, um arranjo próprio de diversos capitais; para usar uma linguagem metafórica: o capital físico-financeiro e o capital empresarial – i. e., a propriedade produtiva –, o capital humano, o capital social e o capital natural. Assim, para caracterizar um lugar, desse ponto de vista, as configurações particulares dos fatores de desenvolvimento devem ter a durabilidade necessária para gerar um padrão capaz de replicar. Ou seja, as variáveis devem flutuar, durante um tempo suficiente, em torno de certos valores relativos e, portanto, é isso o que caracteriza o desenvolvimento daquela localidade como já comentei no capítulo anterior.

Para a visão sistêmica não há, portanto, nenhuma variável a ser maximizada isoladamente e nem há qualquer variável que possa ser responsabilizada por produzir o efeito de conjunto chamado desenvolvimento. Em determinada localidade o

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valor da variável ‘capital humano’ pode ser muito maior do que em outra e isso não significa que tal localidade é mais desenvolvida do que a outra. Valores menores de ‘capital humano’ podem ser “compensados” por valores maiores de ‘capital social’. Se não fosse assim o Brasil seria um país muito menos desenvolvido do que a Argentina. Ou valores menores do PIB podem ser “compensados” por altos valores do ‘capital humano’. Se não fosse assim a Islândia ou a Suiça seriam países muito menos desenvolvidos do que os Estados Unidos. As pessoas que não vêem isso em geral confundem desenvolvimento com pujança econômica ou, às vezes, infelizmente, com capacidade político-militar de se impor ao mundo, unilateralmente, a partir de posições e argumentos de força. Ora, estamos falando de desenvolvimento ou de capacidade de dominar e de mandar nos outros? Se ambas são a mesma coisa, ou se uma leva inexoravelmente à outra, então se poderia medir o grau de desenvolvimento de uma localidade pelo número de ogivas nucleares e mísseis balísticos operacionais que possui em estoque e não deveríamos ficar perdendo tempo e quebrando a cabeça com a elaboração de índices humanos, sociais ou ambientais de desenvolvimento. Mas não me consta que apesar de seu número de ogivas e mísseis intercontinentais alguém em sã consciência prefira viver na Rússia do que no Canadá baseado no cálculo de que lá, na primeira, exista mais desenvolvimento.

Mas há um fator ou variável na equação do desenvolvimento que, quando se trata de desenvolvimento local (quer dizer, quando queremos olhar o desenvolvimento como desenvolvimento local, encarando, portanto, o fenômeno real que acontece sempre em uma localidade concreta e não no mundo abstrato da “máquina econômica” inventada pelos economistas), se distingue dos demais, não pela sua capacidade de determiná-los (papel que se atribui tradicionalmente ao fator econômico em virtude, entre outras coisas, da (com)fusão entre crescimento e desenvolvimento) e sim pelo seu papel “ambiental”, por assim dizer; ou seja: pelo fato de estar implicado na própria geração daquilo que

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chamamos de localidade. Tal fator é o capital social, ou o ‘poder social’ ou a capacidade de um coletivo humano estável de se mover, de alterar suas relações internas (compreendendo que, se desenvolvimento implica sempre mudança, tal mudança é também, sempre, uma mudança social, uma vez que o conceito de desenvolvimento se aplica a sociedades humanas e não a quaisquer outros sistemas ou coleções de objetos vivos ou inanimados).

Para compreender esse ponto de vista é preciso ver as relações intrínsecas entre localização e desenvolvimento.

O nexo conotativo entre localização e desenvolvimento

Uma tentativa de sistematização das hipóteses e definições utilizadas neste livro para construir uma argumentação capaz de estabelecer um nexo conotativo entre localização e desenvolvimento poderia ser apresentada de modo sucinto da seguinte maneira:

1 – Sociedades são coletivos humanos estáveis, afastados do estado de equilíbrio, que adquirem características de sistemas complexos adaptativos a medida que assumem a morfologia de redes.

2 – A forma e o comportamento culturais manifestam-se como propriedades que emergem da dinâmica complexa das redes sociais.

3 – Sociedades geram (por repetição) padrões de comportamento, ou seja, unidades culturais (programas), capazes de se replicar (por imitação).

4 – O sistema (a rede social) funciona como amplificador dos estímulos recebidos/emitidos por seus componentes e como processador capaz de realizar múltiplas operações em

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paralelo simultaneamente por meio desses componentes (humanos).

5 – Localidade (ou ‘local’, no sentido “forte” da hipótese) é uma realidade social criada pelo processo de localização.

6 – Localização é o processo de geração de identidade e de replicação de suas características realizado por uma sociedade.

7 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) for uma localidade e quanto mais conectada para fora ela estiver, maior será o seu ‘poder’ de gerar padrões replicáveis de comportamento.

8 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) é uma localidade, menor ela é (adquirindo o status de ‘mundo pequeno’).

9 – Quanto menor o mundo (no sentido de mais tramado por redes sociais ou da existência de mais caminhos entre seus nodos) mais potente socialmente ele é (small is powerful).

10 – A localização diminui o ‘tamanho do mundo’ e aumenta o seu ‘poder social’.

11 – Quanto mais ‘poder social’ tem uma localidade, mais capacidade ela tem de usinar unidades culturais imitáveis (softwares replicáveis, capazes de “rodar” em outros hardwares, ou seja) em outras localidades.

12 – É o sistema como um todo (a rede social) que confere ‘poder social’ ao seus componentes (humanos).

13 – Todo ‘poder social’ é empoderamento humano.

14 – Comunidades são ‘mundos pequenos’ que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social.

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15 – Comunidades são sociedades com mais ‘poder social’ para usinar padrões de comportamento (programas).

16 – O processo de localização cria comunidade.

17 – A ampliação social da cooperação, que dá origem ao (ou co-origina o) fator do desenvolvimento designado pelo conceito de capital social (e que é o conteúdo do que chamamos de ‘poder social’), ocorre (ou exclusivamente, ou predominantemente) em comunidades.

18 – Quanto mais conectada para fora estiver uma comunidade mais condições ela terá de exportar padrões de comportamento (programas) que serão adotados, por imitação, por outros coletivos humanos.

19 – Chamamos de desenvolvimento ao grau de desenvolvimento desses programas (que dá a medida da sua capacidade de induzir comportamentos em virtude do seu ‘poder social’ de gerar e replicar seus próprios padrões).

20 – Quanto menor (e, portanto, mais potente socialmente) é um mundo, mais chances terão de se propagar mudanças de comportamento ensaiadas por seus componentes (ou seja, mais susceptível ele será à mudança social).

21 – Quanto mais localizado estiver um mundo mais apto a experimentar o desenvolvimento ele estará.

22 – Desenvolvimento é uma classe de mudança social.

23 – A classe de mudança social que interpretamos como desenvolvimento é aquela caracterizada pela conservação da adaptação (ou pela “co-evolução” com o meio; ou, ainda, pelo que se chama de sustentabilidade).

24 – Não há desenvolvimento sem cooperação.

25 – Todo desenvolvimento é local.

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26 – Todo desenvolvimento é humano.

27 – Todo desenvolvimento é social.

28 – Todo desenvolvimento é sustentável (ou seja, só se pode chamar de desenvolvimento às mudanças sociais que contribuam para a sustentabilidade do sistema).

29 – Todo desenvolvimento local (humano, social e sustentável) só se define completamente pelas suas relações com o global.

Justificativas para as proposições acima já foram apresentadas, de modo a-sistemático, ao longo do presente texto e reproduzi-las aqui seria cansativo. Resta ver o que tudo isso tem a ver com a chamada revolução do local e por quê se afirma que a volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

A revolução do local como promoção do desenvolvimento

O objetivo da revolução do local não é tomar o poder político e sim aumentar o ‘poder social’ das comunidades que estão (re)florescendo em uma época de globalização. É por isso que ela é uma revolução social stricto sensu (e não uma revolução política feita “em nome” de uma revolução social).

Como vimos, enquanto as velhas comunidades eram comunidades herdadas (ou comunidades de passado), as novas comunidades que estão surgindo, durante o processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos humanos estáveis.

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Na velha concepção de revolução estatal-nacional os revolucionários são reformadores de conteúdos político-ideológicos e não de estruturas e dinâmicas sociais. Mesmo declarando o contrário – e se apresentando como transformadores sociais – na prática logram apenas trocar o “recheio” do Estado. Pregam, muitas vezes, a mudança do “caráter de classe” do Estado e outras besteiras semelhantes que significam, sempre, ao fim e ao cabo, remover (por meios violentos ou pacíficos) os velhos ocupantes para ocupar o seu lugar, via de regra mantendo, entretanto, inalterados, as estruturas piramidais (hierárquicas), os processos centralizados (e burocratizados de comando) e sobretudo, o padrão, vigorante há milênios, de relação do Estado com a sociedade.

Na nova concepção de revolução do local, os revolucionários são inovadores, experimentadores de micro-mudanças de comportamento que alteram padrões de organização (mais rede e menos hierarquia) e modos de regulação (mais democracia e menos autocracia), podendo transformar de fato o padrão de relação entre Estado e sociedade.

Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento no sentido em que o conceito foi redefinido aqui. São agentes políticos, por certo, mas naquela outra acepção apontada por Platão em “As Leis”; ou seja, não são os conhecedores da “ciência do estrategista” e sim os praticantes da “arte do tecelão”. São tecelões de redes sociais. E são experimentadores de processos democrático-participativos.

Ora, o conteúdo da expressão ‘poder social’ é o próprio conceito de ‘capital social’. Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento porque são construtores de capital social, artífices de programas de investimento em capital social. Por quê? Porque, como vimos, o capital social é um fator sem o qual não pode ocorrer o que chamamos de desenvolvimento.

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Mas assim como, em geral, economistas e policymakers ainda não se deram conta das relações entre desenvolvimento e democracia, nem mesmo os teóricos do capital social parecem ter se dado conta das relações entre a produção de capital social e o processo de democratização, ou melhor, de democratização da democracia.

A relação entre revolução do local e radicalização ou democratização da democracia

Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que os modos de regulação de conflitos sejam não-violentos. Do ponto de vista da radicalização ou da democratização da democracia, não basta que esses modos sejam não-violentos, porquanto é necessário que eles sejam cada vez menos adversariais e cada vez mais cooperativos (“pazeantes” ou construtores de paz). Ou seja, enquanto a democracia que temos (representativa | política | formal) se conforma com a regulação majoritária da “inimizade política” (pela via da prevalência da vontade da maioria em eleições), uma democracia em processo de radicalização (representativa participativa | política social | formal substancial) almeja transformar a “inimizade política” em “amizade política”.

Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que haja renovação periódica do poder político do Estado-nação. Do ponto de vista da radicalização ou da democratização da democracia, isso não basta, sendo necessário que cada vez mais pessoas tenham oportunidade (por livre escolha ou voluntariamente) de participar do poder político, sobretudo naqueles âmbitos que afetem diretamente as suas vidas (i.e., nas suas localidades). Para que seja possível efetivar tal participação não basta um regime formal de liberdades políticas (asseguradas por lei), mas é preciso que as sociedades locais empoderem seus componentes. Ou seja, é necessário que exista um ‘poder social’

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ensejando/viabilizando a participação dos cidadãos na polis (entendida como comunidade política).

A democracia realmente existente é uma dinâmica competitiva, voltada para a disputa pela condução (o ‘governo político’, latu sensu) do Estado-nação (em quase todos os seus poderes e em todos os seus níveis), que visa a estabelecer pactos de convivência (na medida em que todos aceitem suas regras ou sejam compelidos a aceitá-las, uma vez que tais regras, unificadas, são sancionadas na forma de lei pelo Estado). A democracia em processo de democratização introduz novas dinâmicas que visam a construção, para além de pactos de convivência, de pactos de cooperação na esfera pública para promover aquilo que Tocqueville chamou de “governo civil” (11) das comunidades (e as regras, nesse caso, são diversificadas na medida em que emergem sempre de configurações sociais peculiares).

Ora, esse “governo civil” de Tocqueville é o antepassado em linha direta do conceito de capital social e é, assim, uma expressão daquele ‘poder social’ cujo incremento só pode se dar no local – incremento que constitui, aliás, o próprio objetivo da revolução do local.

A revolução do local e a transformação das relações políticas e sociais de dominação

Chegamos assim à última das hipóteses deste livro sobre a revolução do local. Em uma época de globalização, a volta ao local, para promover o desenvolvimento comunitário – entendido como desenvolvimento humano, social e sustentável –, é uma revolução. Essa revolução é diferente do que foi assim chamado (e praticado) nos últimos cem ou cento e cinqüenta anos, porquanto, na prática, não tem como objetivo e, na teoria, não considera como momento decisivo, a troca de elites no poder do Estado-nação. Ela é diferente porque visa ao empoderamento de pessoas e comunidades e porque não imagina que seja possível fazer isso

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centralizadamente, por meio de um comando unificado, de uma mesma diretiva emitida “de fora” e “de cima”, porém sustenta que tal empoderamento deva ser molecular, a partir “de dentro” e “por baixo”. Ela parte da idéia de que o empoderamento molecular é a única maneira de se subtrair aos padrões hierárquicos e aos modos autocráticos que ainda predominam nas sociedades humanas.

É uma revolução com significado global que, entretanto (ou por isso mesmo), só pode ser feita no âmbito local. Atinge a todos na medida em que é realizada em um; ou melhor, estabelece que o caminho para a transformação do todo é aquele que passa pela transformação de um. Um a um.

Há quem ache que isso não é possível, sobretudo em uma época de globalização que dissolve, dispersa, fragmenta... Mas é exatamente o contrário. Isso só é possível em uma época de globalização. É preciso dissolver mais, dispersar mais, fragmentar mais. Por quê? Porque é preciso globalizar mais para localizar mais.

Por isso, estou cada vez mais convencido de que grande parte de nossos problemas não decorre de excesso e sim de falta de globalização, no sentido em que o termo é empregado aqui, ou seja, como um dos aspectos de um processo de mudança social global que implica também localização. Neste sentido, o que chamamos de dominação só ocorre por insuficiência de glocalização; ou melhor: existe dominação na medida inversa da existência de globalização-e-localização, uma vez que não se conhece na história nenhum sistema ou prática de dominação que tenham conseguido se implantar na ausência de padrões hierárquicos de organização (e de modos autocráticos de regulação, que parecem lhes ser próprios).

E, por isso, faz sentido a expressão ‘revolução do local’. A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de desenvolvimento que promete transformar seculares, melhor dizendo, milenares

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relações políticas e sociais de dominação. Ora, se isso não é uma revolução, não sei o que poderia ser assim chamado.

De uns anos para cá muitas pessoas e organizações vêm tentando estimular essa revolução por meio de estratégias de investimento em capital social. Mas só muito recentemente estão sendo elaborados argumentos teóricos mais consistentes e reflexões mais sistematizadas sobre as milhares de experiência práticas que estão em curso, para tentar mostrar o que está “por trás” de tudo isso, ou seja, para explicitar uma “filosofia” capaz de justificar o que estamos chamando aqui de revolução do local.

Baseadas em estratégias de investimento em capital social, algumas metodologias foram construídas para induzir o desenvolvimento humano e social sustentável. Pelo menos uma parte dessas metodologias poderia ser justificada por uma argumentação como a seguinte:

a) temos evidências de que a melhoria das condições de vida e convivência social dos seres humanos depende de certas mudanças sociais que interpretamos como desenvolvimento;

b) essas mudanças coimplicam a capacidade de uma sociedade de produzir e reproduzir capital social;

c) a capacidade de produzir e reproduzir capital social é tanto maior (ou melhor) quanto mais padrões de organização em rede e modos de regulação democrático-participativos forem praticados;

d) como todo desenvolvimento é desenvolvimento social e como desenvolvimento social é mudança social e como mudança social é uma questão política, tudo depende – muito mais do que, às vezes, imaginamos – de não reproduzir uma atuação política intervencionista, verticalista e centralizadora, pois é esse tipo de atuação que extermina capital social e impede que pessoas e comunidades valorizem e desenvolvam seus próprios ativos, aproveitando oportunidades que são

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sempre únicas e encontrando suas próprias soluções para resolver seus problemas, da sua maneira, afirmando a sua identidade. Portanto, para uma estratégia de investimento em capital social, induzir o desenvolvimento humano e social sustentável como forma de estimular a revolução do local é manter a esperança centrada no empoderamento molecular das populações, para que elas próprias se emancipem.

Esse trabalho de tecelão, de construir, pacientemente, a autonomia dos coletivos, da “comunidade que faz”, não pode ser substituído pela vontade política de um “chefe que faz” (por maior que seja o seu poder) e nem mesmo pela confiança em um líder (por maiores que sejam seu carisma e sua gravitatem). Uma comunidade que conseguiu aproveitar uma oportunidade ou superar uma adversidade a partir de seus próprios esforços criativos, de sua própria inteligência coletiva, significa muito mais para o desenvolvimento humano e social sustentável do que transferências maciças de recursos “de cima” ou, mesmo, do que grandes mobilizações propagandísticas, rebanhos marchando, bandeiras desfraldadas – enfim, tudo aquilo que representa a monotonia (e a monodia) das manifestações de massa próprias de um mundo da “segunda onda”.

Como desencadear a revolução do local: a questão da “massa crítica”

Algumas pessoas ainda não conseguem ver como a revolução do local poderia ser desencadeada em âmbito global (isto é, no mundo inteiro) e no âmbito local (quer dizer, no interior de cada localidade). E isso ocorre porque essas pessoas, ou imaginam que seria necessário realizá-la em todas as (ou na maioria das) localidades do mundo, ou acreditam que seria preciso conseguir a adesão de todas as (ou da maioria das) pessoas de uma (e de cada) localidade.

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Ora, em primeiro lugar é preciso ver que a revolução do local já está acontecendo.

Em segundo lugar é preciso ver que não é necessário (nem seria possível) “fazer” a revolução do local no (espaço abstrato do) mundo. A revolução do local (como o nome, aliás, está dizendo) é “feita” no local.

Em terceiro lugar é preciso ver que, para que o processo de localização se desencadeie em uma localidade qualquer, é necessário apenas que uma parcela da sua população conectada entre si segundo um padrão de rede e regulando seus conflitos de modo democrático-participativo o assuma cooperativamente. Ou seja, não é necessário engajar a população toda de uma localidade, nem conquistar a maioria dessa população.

Isso tem a ver com o que chamamos de ‘poder social’, com o ‘tamanho de mundo’ de uma localidade, com o grau de “tramatura” social, com a capacidade de mediar conflitos de modo democrático-participativo, com os níveis de confiança e cooperação existentes e, portanto, com o “estoque” ou fluxo disponível de capital social.

Sob certas condições (objetivas e subjetivas, incluindo o padrão de relação Estado-sociedade vigorante) determinados programas que instruem a construção de comportamentos favoráveis à localização, se forem ensaiados por uma pequena parcela de agentes de uma localidade, podem se amplificar e se replicar de sorte a atingir o sistema como um todo. Ou seja, uma mudança de comportamento, mesmo periférica, ensaiada em um ‘mundo pequeno’, tem mais chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o comportamento dos outros agentes que o compõem, porquanto mundos pequenos são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos grandes.

Deve haver algo como um “ponto de desequilíbrio” a partir do qual um processo de “contaminação” mais vigoroso se

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desencadeie. Algo assim como uma “massa crítica” detonadora. Mas, certamente, para cada configuração particular haverá uma quantidade e uma qualidade mínimas dessa “massa crítica”. E, mesmo para uma configuração particular, talvez nunca possamos conhecer, completamente e de antemão, nem os valores nem as características dessa “massa crítica” para que o processo seja detonado.

Entretanto, uma nova disciplina científica dedicada a análise das redes sociais vem avançando bastante ultimamente. Não é improvável que, daqui a algum tempo, possamos justificar o insight de Jane Jacobs (1961) (12), de sorte a estabelecer uma relação “forte” entre ‘tamanho de mundo’ (ou ‘extensão característica de caminho’ ou ‘comprimento de corrente’) e capacidade de replicação de programas que instruem a construção de comportamentos, dentro de uma mesma localidade e entre localidades diferentes conectadas em rede.

Como comentei em meu livro “Capital Social” (Franco, 2001), “Jacobs estava preocupada com os fatores que tornam "viva" uma localidade, que fazem com que ela se torne aquilo que chamava de uma "Entidade real", com a teia de relações tramada por pessoas humanas reais, que vivem naquela localidade: ela escreveu que “as inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico... São as relações ativas entre pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública local para além da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes” (13).

Jane Jacobs está tratando de algo muito mais profundo... Ela investiga a formação do "ser social", que chama de "Entidade real" (com 'E' maiúsculo): "É necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam

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ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas em uma população mil vezes maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para descobrir umas às outras, para investir em colaboração proveitosa – e também para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de interesse específico" (14) (Jacobs, 1961: 147).

Surpreendentemente a passagem acima não gerou nenhuma reflexão mais fecunda, nem por parte dos leitores-admiradores de Jacobs, nem por parte dos teóricos do capital social. Mas aqui talvez esteja, ao meu ver, uma das pistas para desvendar a complexa dinâmica das sociedades humanas” (15).

Por outro lado, como vimos no Texto 6, (muito embora o recentíssimo experimento de Duncan Watts (2003) e outros não tenha confirmado essa hipótese) (ver Texto 7), “mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1 por cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de caminho serão baixas. Isso ocorre porque a transitividade faz com que tais indivíduos ajam como atalhos, ligando comunidades inteiras umas às outras. Um atalho não beneficia apenas um único indivíduo, mas também todos os que estão ligados a ele e todos ligados àqueles ligados a ele, e assim por diante. Todos podem beneficiar-se do atalho, em muito encurtando a extensão característica de caminho. Por outro lado, mudar uma conexão local para uma de longo alcance tem apenas um efeito pequeno sobre o coeficiente de agrupamento” (16).

As investigações atuais ainda não são conclusivas e o assunto permanece em discussão em um círculo muito restrito de pesquisadores. Atualmente, porém, creio que já temos elementos suficientes para dar como certa uma coisa: quanto mais elementos ela englobar, quanto mais tramada “por dentro” e conectada “para fora” estiver uma localidade, mais chances teremos de que o processo venha a acontecer.

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Talvez bastasse isso... Talvez estejamos perdendo tempo... Estimule as redes – e o “metabolismo” que parece lhes ser próprio: a democracia interativa – e tudo o mais virá. Ou não virá. Mas se não vier não é por nossa culpa e não podemos fazer nada para que venha, a não ser sucumbir à tentação de levar as coisas prontas, a partir de uma intervenção exógena, a partir de uma lógica heterônoma. E aí não vai adiantar, porquanto não conseguiremos fazer isso sem afetar negativamente o “corpo” e o “metabolismo” das redes endógenas, sem reintroduzir ou reforçar padrões hierárquicos de organização e modos autocráticos de regulação, interrompendo (ou retardando), então, o processo de localização.

O que não fazer?

Neste sentido, para “fazer” a revolução do local, é preferível não fazer do que fazer. Aliás, a célebre pergunta que deu origem ao catecismo revolucionário do século 20 (“Que Fazer?”: Lênin, 2002) deveria agora ser refeita, trocada pela sua negativa: ‘o que não fazer?’. Porque no nosso afã por realizar grandes feitos e deixar a nossa marca ou pelo desejo de moldar as sociedades de acordo com um modelo ideal em que acreditamos ou de uma verdade que julgamos possuir, muitas vezes assumimos a condição de condutores de rebanhos. E aí queremos “juntar o rebanho” para levá-lo, unido, para ali ou acolá e nos transformamos, invariavelmente, em agentes de reprodução de uma idéia e de uma prática de ordem (imposta e prefigurada de antemão) que impede o empoderamento molecular das populações e a manifestação da inteligência coletiva das comunidades.

Assim, quando nos acreditamos “ungidos” ou predestinados a fazer algo pelo povo, seja a partir de posições de poder conquistadas eleitoralmente nas instituições e aparelhos do Estado-nação, seja quando tentamos, por qualquer meio, reconhecido ou não como democrático, derrubar os titulares

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dessas instituições e aparelhos para ocupar o seu lugar em nome de um ideal generoso e igualitário, via de regra não fazemos mais do que manter (e freqüentemente até reforçar) as estruturas iníquas que queríamos transformar.

Isso não significa que não devamos participar do processo democrático realmente existente ou que não seja importante, para a democracia, a disputa eleitoral em todos os níveis e para todos os cargos do Estado. Mas a ascensão aos poderes de Estado não ajuda a transformação da sociedade – se, digo: se – não procurarmos transformar também o padrão de relação entre Estado e sociedade, começando por zelar pela qualidade da “atmosfera democrática” (para que as pessoas possam ter “ar” para respirar e, assim, possam inventar e experimentar coisas diferentes daquelas que imaginamos, nós, os que queremos conduzi-las) e por estabelecer procedimentos democráticos que evitem (ou, pelo menos, atenuem) o intervencionismo, a centralização, o paternalismo e o clientelismo. E, sobretudo, se nossa atuação não for inibidora das iniciativas locais. Já seria muito se os ocupantes do Estado se esforçassem por não fazer essas coisas.

Em geral, porém, os que ocupam cargos no Estado com o intuito sincero de ‘fazer alguma coisa pelo povo’ não compreendem que, mesmo que existissem recursos orçamentários disponíveis para transferir para a população por meio de programas compensatórios, mesmo neste caso, isso não deveria ser feito dentro do padrão ainda vigorante de relação entre Estado e sociedade. Porque, fundamentalmente, o problema não é econômico, nem micro, nem meso, nem macroeconômico. O problema é político. Noventa por cento das políticas sociais voltadas para o enfrentamento da pobreza são políticas que se alimentam da pobreza e são, ao fim e ao cabo, políticas para manter a pobreza. Por motivos politicamente óbvios.

O que não é tão óbvio assim é que quanto mais bilhões você injetar a partir do Estado, mais capital social exterminará se – digo: se – os desenhos das políticas não forem alterados; ou

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seja, se o padrão de relação entre Estado e sociedade não for modificado. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Ocorre que desenvolvimento parece não ter mesmo muita coisa a ver com o que pensa boa parte dos economistas e dos policymakers. Um pequeno Estado árabe produtor de petróleo, com altíssimo PIB per capita, poderá promover a educação superior de todos os habitantes e médico em casa para todos os habitantes e residências de luxo para todos os habitantes etc. etc. E poderá mandar todos os caras estudar em Oxford. Pergunto: é isso? Esse hipotético Estado alcançou um patamar, desejável por nós, de desenvolvimento?

Se entendermos que todo desenvolvimento é desenvolvimento social e que desenvolvimento social é mudança social, a resposta para a pergunta acima não poderá ser afirmativa. Por mais que pareça óbvio que as pessoas devam poder sobreviver e realizar seu direito ao bem-estar material, há uma diferença entre comunidades humanas e, por exemplo, coletividades de animais. Ao gado confinado holandês, já se disse, também nada lhe falta em termos de condições sobrevivenciais. Mas, certamente, não é isso o que queremos para os seres humanos. Porque, ao contrário do que tanto se repete, não se trata apenas de melhorar condições de vida e sim de melhorar também as condições de convivência social.

Nunca é demais repetir. O ser humano, como ser individual-e-social, só se desenvolve na medida em que pode alterar condições herdadas a partir de sua própria identidade. Desenvolvimento é o poder de afirmar uma nova identidade no mundo em virtude de poder tornar dinâmicas novas potencialidades. Uma localidade deve encontrar seu próprio caminho, isto é, afirmar sua própria identidade no mundo ao realizar suas vocações e ao dinamizar suas potencialidades, que são únicas no sentido de que são próprias àquela particular coletividade.

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Para concluir, não se percebe que desenvolvimento é um fenômeno sistêmico, próprio de sistemas complexos – como o são as sociedades humanas. Ora, não existe outro meio de operar tais sistemas senão pela política. Pode-se, através da política – e, nos regimes democráticos, unicamente através dela – manter ou alterar as configurações dos sistemas sociais.

Por isso, se queremos encontrar uma alternativa de desenvolvimento, o fundamental é que a política seja alterada. Se não se souber como, há uma saída: basta não fazer o que vem sendo feito. Esta já seria uma contribuição inestimável dos velhos atores políticos institucionais à revolução do local.

Os que ocupam posições políticas institucionais no Estado-nação, sobretudo nos governos, em todos os níveis, poderiam, por certo, fazer algo mais, se abrissem espaços – por meio de parcerias e de regulamentações adequadas – para que os novos movimentos sociais que geram comunidades de projeto e as organizações da sociedade civil constituídas em torno das temáticas inovadoras desses movimentos, pudessem se fortalecer e se multiplicar gerando, cada vez mais, novas institucionalidades e novas redes participativas, ao invés de criar dificuldades ou de querer controlar ou cooptar ou absorver ou usar instrumentalmente tais movimentos para conquistar mais poder ou para se manter pelo maior tempo possível no poder.

Mas o caminho da revolução do local parece ser mesmo o da “contaminação”. E não temos como saber quanto tempo levará o processo. Em alguma medida, ele já está acontecendo. E talvez seja pensar com uma velha cabeça esperar que haja algum desfecho grandioso, um momento crucial e decisivo.

O tempo, aliás, é função da taxa de crescimento ou da velocidade de propagação das mudanças moleculares. Se há mudança, o tempo está correndo. Quanto mais mudança

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houver, mais tempo estará sendo ganho a favor da revolução do local.

Há muito mais coisa envolvida na revolução do local...

Entretanto, como vimos neste livro, há muito mais coisa envolvida na revolução do local.

A medida que o ‘ser social’ vai sendo reconhecido e ganhando um estatuto próprio, a medida que se vai compreendendo que as comunidades de projeto são mundos verdadeiramente humanos, a medida que nossa “mente coletiva” se concentra no local, ela pode se expandir para o planeta inteiro, antecipando, quem sabe, aquilo que, ao longo da história humana, tem aparecido em nossos melhores sonhos de futuro: a tão almejada ecumene planetária.

Com efeito, em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local pode assumir características tão holográficas que...

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Henderson, Hazel (1999). Além da globalização: modelando uma economia global sustentável. São Paulo: Cultriz/Amana-Key, 2003.

(2) Idem.

(3) Ormerod, Paul (1994). A morte da economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

(4) Arthur, W. Brian (1996). “Increasing returns and the new world of business”, Harvard Business Review, jul-ago.

(5) Ormerod; op. cit.

(6) Idem.

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(7) Cit. por Henderson (1999). Cf. Reder, M. (1999). Economia: a cultura de uma ciência controversa. Chicago: Chicago University Press, 1999.

(8) Ormerod; op. cit.

(9) Franco, Augusto (2002). Pobreza & Desenvolvimento Local. Brasília: AED, 2002.

(10) Comunicação pessoal ao autor.

(11) Tocqueville, Alexis (1835-1840). A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

(12) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

(13) Jacobs; op. cit. em Franco, Augusto (2001). Capital Social. Brasília: Instituto de Política / Millennium, 2001.

(14) Jacobs; op. cit.

(15) Franco (2001); op. cit.

(16) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (org.). Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.

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