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INTROUÇÃO Escrita pelo poeta grego Homero, provavelmente durante a segunda metade do século VIII a. C., preservada pela transmissão oral durante séculos antes de ter sido escrita, A Odisseia é uma das grandes obras da literatura mundial. A sua influência em escritores, poetas e pintores tem sido imensa e não dá sinais de desaparecer. Os acontecimentos da história são tão vividos que locais de todo o Mediterrâneo têm sido ligados à lenda e têm sido feitas tentativas, por viajantes modernos, para seguir o rasto de Ulisses e da sua tripulação. O Apelo intemporal de A Odisseia é notável mas não é difícil de entender. Apesar de ter já cerca de dois mil anos, é uma inebriante aventura marítima, uma lenda sobre terras exóticas, tempestades terríveis, calmarias felizes e monstros horríveis. Tem uma atmosfera dominadora e sobrenatural onde deuses saem dos seus reinos com modestos disfarces para se envolverem nos problemas dos humanos. São feitos encantamentos, lançadas terríveis maldições e cumpridas estranhas previsões. Mas, talvez o mais notável de tudo, a história tem, no próprio Ulisses, um herói simpático, complexo e muito humano, um homem que, acima de tudo e como iremos ver, jamais quis deixar a sua bem - amada esposa, o filho e a pátria.

A odisseia - resumo da obra

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INTROUÇÃO

Escrita pelo poeta grego Homero, provavelmente durante a segunda metade

do século VIII a. C., preservada pela transmissão oral durante séculos antes de ter

sido escrita, A Odisseia é uma das grandes obras da literatura mundial. A sua

influência em escritores, poetas e pintores tem sido imensa e não dá sinais de

desaparecer. Os acontecimentos da história são tão vividos que locais de todo o

Mediterrâneo têm sido ligados à lenda e têm sido feitas tentativas, por viajantes

modernos, para seguir o rasto de Ulisses e da sua tripulação.

O Apelo intemporal de A Odisseia é notável mas não é difícil de entender.

Apesar de ter já cerca de dois mil anos, é uma inebriante aventura marítima, uma

lenda sobre terras exóticas, tempestades terríveis, calmarias felizes e monstros

horríveis. Tem uma atmosfera dominadora e sobrenatural onde deuses saem dos

seus reinos com modestos disfarces para se envolverem nos problemas dos

humanos. São feitos encantamentos, lançadas terríveis maldições e cumpridas

estranhas previsões. Mas, talvez o mais notável de tudo, a história tem, no próprio

Ulisses, um herói simpático, complexo e muito humano, um homem que, acima de

tudo e como iremos ver, jamais quis deixar a sua bem - amada esposa, o filho e a

pátria.

Capítulo 1

SER UM HERÓI

Ulisses não queria ser um herói. A guerra chegava, negra e poderosa como

uma trovoada. Mas Ulisses queria ficar em casa. Amava a sua esposa Penélope, o

filhinho Telémaco e os pais já velhinhos. Gostava da sua bela casa e da quinta

situada na rochosa ilha grega de Ítaca. Porque haveria ele de navegar pelo mar

furioso para atacar a bem muralhada cidade de Tróia? O grande oráculo tinha

profetizado que, se o fizesse, não voltaria a casa durante vinte anos. E porquê

arriscar a vida para resgatar Helena, a bela noiva do rei grego Menelau, que tinha

fugido com um príncipe troiano?

Mas Menelau precisava do bravo e forte Ulisses no seu exército. Por isso

trepou desde o mar até à quinta rochosa, com o seu amigo Palamedes, decidido a

recrutar Ulisses, o mais astuto dos gregos.

Ulisses tinha visto a chegada dos barcos. Decidiu enganá-los fingindo ter

perdido o juízo e estar demasiado louco para ir à guerra.

Emparelhou um burrito e um enorme touro para puxarem o arado. Enfiou o

cachorro Argus no bolso do avental de couro, pôs um ridículo chapéu na cabeça e

começou a lavrar, andando às arrecuas.

O rei Menelau estava espantado por ver Ulisses a tropeçar pelo campo,

cuspindo areia e semeando mãos-cheias de sal em vez de sementes.

Palamedes não tinha tanta certeza. Conhecia Ulisses e os seus estratagemas

e decidiu testá-lo. Arrebatou o pequeno Telémaco dos braços da sua ama Euricleia

e colocou-o no chão, à frente do arado que avançava. Penélope gritou. Ulisses

voltou-se e viu o filho prestes a ser esmagado. Puxou as rédeas com todas as suas

forças, fazendo com que o burro e o touro parassem. Menelau riu-se.

- Se estás são para salvar o teu filho, também estás para lutar contra os

Troianos.

Do mesmo modo, Ulisses acabou por se rir. E assim, teve que dizer adeus à

família e ao lar.

Velejou para a guerra distante, pensando estar de volta antes da próxima

colheita. Mas a guerra foi muito longa. Por mais que batalhassem, o exército grego

não conseguia penetrar na cidade fortificada de Tróia.

O cerco da cidade durava há dez sangrentos anos. Então o esperto Ulisses

inventou um gigantesco cavalo de madeira. Foi deixado como um presente para os

Troianos, que o conduziram para dentro da cidade. Mas o cavalo tinha no seu

interior Ulisses e os principais guerreiros gregos. Naquela noite eles desceram da

barriga do cavalo, pegaram fogo à cidade de Tróia e a longa guerra terminou.

Ansiando por regressar a casa tão depressa quanto possível, Ulisses zarpou

com uma armada de doze belos barcos.

Capítulo 2

OS LOTÓFAGOS

UM FORTE VENTO MARÍTIMO LEVOU Ulisses e a sua frota para a cidade de

Ismarus, na costa da Trácia. Os Trácios tinham lutado contra os Gregos na guerra

de Tróia. Atracando com o luar, os navegadores vingaram-se na cidade, matando e

pilhando toda a noite.

Mas Ulisses mandou poupar Marão. Ele tinha sido sacerdote de Apolo e era

ajuizado evitar ofender os deuses. Agradecido, Marão presenteou Ulisses com ouro,

prata e doze jarros do mais fino vinho tinto.

Ulisses achou que era altura de deixarem a cidade. Mas a maior parte da sua

tripulação estava bêbeda e a ressonar pelas ruas. Entretanto, os Trácios acordaram

os seus primos, os Homens peludos das Montanhas, uma tribo selvagem e

guerreira. Arremessando uma saraivada de lanças de bronze, os Homens Peludos

fizeram com que Ulisses e os seus homens fugissem para os barcos e se fizessem

ao mar. Naquela noite Ulisses perdeu setenta e dois dos seus homens.

Os barcos dirigiram-se à pátria, mas levantou-se uma terrível ventania, que

os desviou do rumo e rasgou as velas em farrapos. Quando a tempestade amainou,

os homens regozijaram-se ao verem uma ilha deserta, verde e amarela, adormecida

sob um céu azul de Verão.

Três montanhas com neve elevaram-se acima de densas florestas. Do alto

das colinas, correntes de água caíam em cascata como fumo a descer. Ulisses

enviou três dos seus homens para examinarem aquela terra prometida.

Atravessada a praia, encontraram um sorridente grupo de homens e

mulheres com olhos castanhos que lhes deu as boas-vindas, convidando-os a

sentarem-se com eles na areia e a comerem o fruto do lódão.

Os navegadores não sabiam que quem provasse aquele fruto, com sabor a

mel, perdia todo o desejo de ir para casa. Tudo o que queria era ver o pôr do Sol no

mar e a Lua a subir para o seu lugar entre as estrelas, enquanto descansava e se

banqueteava com o lódão para o resto da vida, pois enchia o seu cérebro de

imagens coloridas e música doce. Rapidamente o mundo real era esquecido como o

sonho da última noite.

Aqueles homens estariam perdidos para sempre. Mas Ulisses seguiu-os em

terra. Os seus velhos camaradas fitaram-no como a um estranho. Uma mulher alta

ofereceu-lhe um prato da resplandecente fruta. Mas Ulisses empurrou-a para o lado.

- Voltem para os barcos – exclamou.

Mas os homens sorriam, riram de troça e inclinaram a cabeça para a música

dos Lotófagos.

Ulisses tirou o cinto de couro. Brandiu-o à volta dos três sonhadores e

arrastou-os de volta à praia. Apesar dos seus gritos de protesto, puxou-os para

bordo do barco e ordenou à frota que navegasse. E só os largou quando ficaram

fora da vista do ouvido da enganadora ilha dos Lotófagos.

Capítulo 3

OS CICLOPES

O VENTO AMAINOU e parou. Os homens vogavam sobre o espelho azul do

mar. Depressa chegaram a uma arborizada ilha, enxameada de cabras -selvagens.

Os marinheiros saltaram para terra, com compridas lanças na mão.

Rapidamente, os corpos esfolados e gordurosos de uma centena de cabras estavam

a assar.

Ulisses e os seus homens banquetearam-se todo o dia. Mas o agradável

fumo das cabras, impelido para o ar, passou pela entrada de uma grande gruta e

chegou às narinas de uma criatura monstruosa. E o monstro aspirou, roncou e

caminhou pesadamente para a entrada da sua gruta…

Na manhã seguinte, Ulisses apontou para a colina.

- Bons amigos – disse - , fiquem a bordo enquanto levo doze homens para

explorar esta terra e ver se as pessoas são hostis ou amigáveis.

Então, ele e os seus homens treparam a encosta, onde viviam os Ciclopes,

transportando comida e um odre cheio de forte vinho tinto, presente do sacerdote

Marão.

Atravessaram um rebanho de mansos carneiros e cabras e encontraram-se

na escura entrada de uma gruta. Acenderam uma tocha, entraram cuidadosamente

e olharam em volta.

A caverna era como que uma escura e espantosa leitaria. Havia ali queijos

grandes como rodas de carroça e enormes baldes de soro de leite. Num canto

estava um montão de ossos secos – ossos de carneiro, ossos de cabra e ossos

humanos.

A maior parte dos marinheiros queria conduzir os carneiros e as cabras para

os barcos e partir.

Então sentaram-se e comeram algum queijo. Mas desencadeou-se um

barulho parecido com um terramoto. Um gigante irrompeu na gruta conduzindo

carneiros e cabras na sua frente, picando-os com um cajado com o triplo do

tamanho normal.

No momento em que a imensa criatura entrou na claridade da entrada,

Ulisses e os homens verificaram que era um Ciclope, um gigante com um só olho,

um olho que brilhava no meio da sua frente.

O gigante fechou a entrada da gruta com uma enorme e sólida rocha.

Sentou-se e ordenhou as ovelhas e as cabras, cantando horrivelmente para si

próprio. Colocou os baldes bem cheios num charco frio. Depois sentou-se com um

suspiro e acendeu uma fogueira. E à luz das chamas viu Ulisses e os seus homens.

- Estrangeiros! – bramiu o Ciclope. – Quem ser vós?

- Somos gregos – respondeu-lhe Ulisses. – Navegámos para casa, mas

perdemos o rumo. Sabes que o grande Zeus ordena que os estrangeiros tenham

direito à hospitalidade, isto é, devemos ser bem recebidos e alimentados.

- Homem estrangeiro – disse o Ciclope - , tu ser doido. Nós Ciclopes cuspir

em Zeus. Nós cuspir em todos os deuses. Ciclopes mais fortes que deuses. Eu

mostrar-te quanto forte. Eu mostrar-te ladrão de queijo!

De um salto o Ciclope pôs-se em pé. Arrebatou dois homens pelos pés,

volteou-se no ar e esmagou-lhes os crânios, como ovos, no chão de pedra da gruta.

Depois, com as mãos cortou-os em dois bocados antes de os devorar, com carne,

sangue, ossos e tudo. Por cima bebeu um balde de soro de leite, deitou-se ao lado

da fogueira e começou a ressonar como dez leões juntos.

Ulisses apalpou a espada.

Talvez pudesse rastejar para cima do gigante adormecido e dar-lhe uma

estocada no coração. Mas, nesse caso, ele e a tripulação morreriam de fome,

fechados para sempre pela grande roda de pedra que tapava a gruta. Porque só um

gigante ou um deus poderiam afastar aquela pesada pedra.

Ulisses permaneceu acordado durante toda a noite, a planear a vingança e

fuga. Na manhã seguinte, o Ciclope acendeu a fogueira, ordenhou os animais do

seu rebanho e, mais uma vez, entoou a terrível canção. Depois, sorrindo como uma

sepultura aberta, apanhou mais dois homens, grelhou-os no fogo, mastigou-os e

engoliu-os.

A seguir, conduziu os carneiros e as cabras para fora da gruta, e bloqueou a

entrada atrás de si com a grande roda de pedra. Os navegantes ouviram o estrondo

das suas passadas descendo a caminho dos prados. Ulisses olhou em volta da

tenebrosa gruta, recusando-se a desesperar. Subitamente notou que o Ciclope tinha

deixado o seu enorme cajado na gruta. Era feito de madeira de oliveira verde e

comprido como o mastro de um grande barco. Dele, Ulisses cortou um pedaço da

altura de um homem.

Ordenou aos homens que o torneassem como uma lança. Com a lâmina da

espada aparou uma perigosa ponta e endureceu-a no fogo. Depois escondeu essa

lança debaixo do esterco que cobria a maior parte do chão como se fosse um

tapete malcheiroso.

Ulisses sorriu para os seus aterrorizados homens.

- Vamos esperar até que ele adormeça esta noite – sussurrou -, e então

daremos o golpe.

Quando o sol vermelho se pôs, o gigante voltou. Levou para dentro o

rebanho, colocou a roda de pedra como porta e ordenhou as ovelhas e as cabras.

Depois, arreganhando os dentes como uma caveira trucidou mais dois homens e

comeu-os.

Ulisses encheu uma tigela de madeira com vinho tinto de Marão e ofereceu-

lho.

- Ouve, Ciclope, experimenta regar a tua refeição com algum do nosso bom

vinho. Eu trouxe-to como um presente, na esperança de que nos ajudarias a

encontrar o nosso caminho para casa.

- Não ir para casa. Mas ser bom vinho – disse o Ciclope, bebendo-o de um

trago.

- Bebe mais – insistiu Ulisses, voltando a encher a tigela.

- Muito bem – concordou o Ciclope, bebendo a grandes tragos, lambendo os

grossos beiços e sentindo-se subitamente amistoso. – Meu nome ser Polifemo. Dar

mais vinho. Dizer teu nome. Eu dar-te bom presente.

Ulisses mais uma vez encheu a tigela e respondeu:

- O meu nome é ninguém.

- Ninguém? – disse o Ciclope. – Muito bem. Polifemo comer todos os outros

primeiro. Ninguém será o último. Este ser teu bom presente.

O Ciclope riu com um som semelhante ao da queda de um grande pinheiro.

Depois, saciado de carne humana e de vinho forte, adormeceu.

Logo que o Ciclope se deitou, de barriga para o ar, com o seu enorme olho

fechado, Ulisses retirou a lança afiada debaixo do esterco. Aqueceu-a no fogo até

ficar ao rubro. Depois, ele e os seus companheiros agarraram a lança e espetaram-

na bem fundo no olho do Ciclope.

A lança silvou como um ferro em brasa metido num balde de água. Polifemo

gritou e arrancou a estaca do olho. Foi aos tropeções para a entrada da gruta.

- Socorro – bramiu o Ciclope, cego. – Ajudar-me, irmãos ciclopes!

Desordenadamente, vociferou e gritou com violência até os outros ciclopes,

que viviam ali perto, se dirigirem com estrépito para a gruta.

- Que se passa, Polifemo? – disparou o chefe deles, Arompe. – Estávamos

todos a dormir descansadamente. Acordaste-nos com os teus gritos. Estão a roubar

os teus carneiros? Querem matar-te? Que se passa?

Polifemo gritou-lhes:

- Ninguém me está a matar!

- Então contra quem estás a lutar?

- Ninguém está a atacar-me! – bramiu Polifemo na sua agonia.

- Oh, então está tudo bem – disse Arompe. – Vamos.

- Não, fiquem – gritou Polifemo. – Fiquem e apanhem Ninguém.

- Deves estar doente, Polifemo – disse Arompe. – É melhor orares ao teu pai,

Posídon, o senhor dos Mares.

E retiraram-se zangados para as grutas.

Ulisses e os seus homens continuavam presos na gruta. Podiam enganar o

gigante cego durante algum tempo, mas como poderiam escapar?

Eles viram Polifemo aninhar-se ao lado da entrada. Abriu um pouco a sua

roda de pedra para deixar sair os carneiros, apalpando-lhes as costas lanudas para

ter a certeza de que nenhum homem os cavalgava ou caminhava a seu lado.

Naquela noite, Ulisses ficou a pensar. Ao amanhecer, ainda com o gigante a dormir,

Ulisses amarrou as ovelhas em grupos de três e prendeu os homens por baixo

delas. Agarrou o carneiro maior e mais forte e pendurou-se na pele por baixo da

barriga. Todos ficaram à espera. Quando finalmente, o gigante tocou o seu rebanho

para fora da gruta não podia adivinhar que os prisioneiros estavam a caminho da

liberdade. Mais abaixo, nos prados, Ulisses desamarrou os seus amigos.

Rapidamente conduziram o rebanho pelo monte e meteram-no no barco. À

medida que os remos afastavam o barco da terra dos ciclopes, Ulisses subiu à proa

e gritou de alegria para o gigante ferido.

- Ó Polifemo! Eu bem te disse que divertisses os estrangeiros em vez de os

comeres. Zeus vingou-se dos teus insultos brutais!

No alto de um monte sobranceiro ao barco, Polifemo esbracejava de fúria.

Apanhou do chão uma enorme rocha e arremessou-a na direcção da voz de Ulisses.

A pedra caiu no mar a poucos metros do barco, provocando uma grande vaga que

fez balançar toda a frota.

Ulisses riu-se e voltou a gritar:

- Ciclope, perdeste-nos. Agora escuta! Se alguma vez alguém perguntar

quem te cegou, diz-lhe que o teu repugnante olho foi arrancado por Ulisses, de

Ítaca.

Então o Ciclope clamou por vingança a seu pai, Posídon, o deus dos Mares.

Ergueu as mãos e pediu, o mais alto que podia:

- Pai Posídon, deus dos Oceanos e dos Terramotos, o teu filho pede-te que

Ulisses nunca chegue a sua casa na Ítaca. Mas se realmente chegar, se tiver que

chegar, que seja daqui a muito tempo. Torna-o infeliz, com todos os seus tripulantes

mortos e problemas no seu próprio lar.

Foi isto que Polifemo implorou na sua dor. Ulisses e os companheiros

ouviram estas palavras e estremeceram. Posídon, o deus dos Mares, também as

ouviu – levantou o seu tridente e jurou atender o pedido do seu filho cego.

Capítulo 4

A ILHA DOS VENTOS

ULISSES E OS SEUS HOMENS navegaram em frente até que avistaram a ilha

flutuante de Eólia. Estava cercada por um muro de bronze, brilhante e aquecido

pelo sol.

Aqui vivia Éolo, que tinha sido nomeado deus dos Ventos por Zeus. Saudou

amavelmente Ulisses, e ele, mais a sua mulher, os seis filhos e seis filhas distraíram

Ulisses e a sua gente com festas e música durante um mês inteiro.

Quando já era tempo de continuar viagem, Ulisses pediu um favor ao rei:

- Precisamos do Vento Oeste para nos empurrar para nossa casa na Ítaca –

disse. – Poderás evitar que os outros ventos nos desviem do rumo?

- Fico feliz por poder ser agradável - disse o rei dos Ventos. Apanhou um

grande saco de couro, feito da pele de um enorme touro. Depois assobiou e os

Ventos do Norte, do Sul e do Leste voaram para ele como se fossem dóceis pombos.

O rei apanhou aqueles ventos, encheu o grande saco com eles e fechou a

sua abertura com um fio de prata. A seguir, chamou o Vento Oeste, que veio pousar

no seu punho como um pombo manso.

- Bom Vento Oeste – disse Éolo -, leva o bravo Ulisses e os seus marinheiros,

em segurança, para sua casa em Ítaca.

Então a frota iniciou novamente a viagem.

Depois de dez dias a vogar ao sabor daquele vento amigo, estavam tão

perto da sua terra natal, Ítaca, que podiam ver, em terra, as pessoas sentadas ao

lado das fogueiras.

Perto de casa! Ulisses, cheio de felicidade, deixou-se adormecer na coberta

do seu barco. Mas os tripulantes não estavam assim tão contentes. Pensavam que o

grande saco de couro estava cheio de tesouros fabulosos.

- Que rico capitão nós arranjámos – murmurou um marinheiro para os seus

companheiros. – O rei dos ventos deu-lhe um saco cheio de ouro e prata, mas tudo

o que ele deixa para levarmos para casa são algumas ovelhas sarnentas.

- Vamos abrir o saco – disse um outro.

Cautelosamente, desamarraram o fio de prata. Os Ventos do Norte, do Sul e

do Leste soltaram-se para fora do saco, rodopiaram num remoinho e romperam

numa imensa tempestade.

Os barcos eram arremessados através das águas, e Ulisses despertou com a

visão da sua terra natal, Ítaca, a desaparecer ao longe.

Toda a sua frota andava num badanal, como folhas vermelhas no Outono, de

volta para a ilha de Eólia.

- Eu dei-vos tudo o que um homem poderia precisar – bradou o rei dos

Ventos. – Vocês deitaram tudo fora. Devem ser os homens mais infelizes da Terra. É

evidente que os deuses vos odeiam. Deixem a minha ilha imediatamente!

Capítulo 5

A ILHA DOS CANIBAIS

A FROTA DE DOZE BARCOS CONTINUOU tristemente sua viagem até que foi

dar a uma terra do extremo Norte.

Encontraram aqui um porto natural, um círculo de altas falésias no qual

apenas se podia entrar por um estreito canal. Onze dos barcos navegaram para o

interior e ancoraram nas águas abrigadas.

Mas Ulisses amarrou o seu barco mesmo fora da enseada a mandou três

homens investigar em terra.

Ao lado de uma borbulhante nascente encontraram uma jovem alta que ia

buscar água. Perguntaram-lhe quem era o rei daquele país. Ela apontou para uma

casa ali perto.

- O meu pai é o bom rei Antífates – disse -, venham comigo e ele recebê-los-

á calorosamente.

Eles seguiram-na alegremente, mas quando o pai dela apareceu para os

saudar, viram que Antífates era um gigante canibal, com a barba toda suja de

sangue.

Ele deu uma gargalhada, deitou as garras a um dos três homens e começou

a comê-lo vivo. Os outros dois correram para os barcos.

Mas o rei Antífates correu toda a sua cidade, chamando os seus amigos

canibais:

- Vamos caçar os estrangeiros – disse -, e esta noite festejaremos!

Uma multidão de gigantes gulosos enxameou as falésias ao redor da

enseada. De pé, em ambos os lados do canal que conduzia ao mar aberto,

começaram a bombardear os barcos com pedras do tamanho de lobos.

Levantaram-se terríveis sons, como o estrondo dos penedos estilhaçando os

conveses e os gritos dos homens que morriam. Alguns gigantes arremessavam das

falésias arpões amarrados a cordas, arpoando presas humanas como se fosse

peixe.

Ulisses viu que não havia fuga para aqueles onze grandes barcos e para as

suas corajosas tripulações.

Puxou da espada e cortou o cabo que amarrava o seu próprio barco no

exterior do porto de morte. Depois, ele e os seus marinheiros, remaram para longe

da ilha dos Canibais até esgotarem as forças. Só então conseguiram olhar uns para

os outros e chorar a morte dos amigos.

O deus dos Mares, Posídon, estava já a atender as preces do seu filho, o

Ciclope cego. Agora a frota de Ulisses tinha apenas um barco.

Capítulo 6

CIRCE

O SOLITÁRIO BARCO navegou, navegou, até que chegou à ilha de Eeia.

Ulisses e os companheiros encontraram-se numa praia dourada. Aí ficaram,

desolados e exaustos, durante dois dias e duas noites.

Na terceira manhã, Ulisses trepou a uma pequena montanha. De lá podia ver

a rebentação a toda a volta daquela ilha verde. Viu então alguns sinais de vida,

uma espiral de fumo cinzento que subia do interior de uma floresta.

Ulisses agia de uma maneira cautelosa. Tinha encontrado demasiados

gigantes canibais ultimamente. Voltou para os companheiros e ordenou ao nobre

Euríloco que pegasse em metade do grupo, vinte e dois homens, e fosse verificar

quem vivia naquela floresta.

Euríloco e os seus homens tomaram uma vereda sinuosa, por entre as

árvores, até que chegaram a um alto castelo de pedra branca situado numa

clareira.

Vagueando ao redor da casa havia lobos e leões da montanha. Os

marinheiros iam fugir, mas os lobos e os leões sacudiram as caudas e começaram a

esfregar-se nas pernas dos homens, tal como fazem os gatos domésticos. Por isso

não eram animais selvagens mas sim homens que tinham sido transformados por

meio de encantos e poções mágicas.

Do interior do castelo vinha o som de uma voz cristalina que cantava. Um

dos homens chamou. A porta de marfim do castelo abriu-se devagar. Lá

encontrava-se uma mulher. Era bela como uma deusa, e o seu manto brilhante

estava cravejado de jóias multicolores.

- Eu sou Circe – disse com um sorriso. – Bem-vindos ao meu castelo.

Os homens seguiram-na para dentro. Só Euríloco, suspeitando de um

estratagema, ficou para trás e espreitou por uma janela.

Ele viu Circe e as suas donzelas prepararem uma refeição de queijo, cevada

e mel dourado. Observou como a tripulação, vorazmente, a engoliu de um trago.

Depois beberam todo o vinho que ela lhes ofereceu e gritaram por mais.

- Dar-vos-ei ainda mais que aquilo que pedis – disse Circe docemente. – Para

isso têm que se portar como porcos no meu castelo.

Ela levantou a varinha e tocou cada um dos homens. E eles transformaram-

se, num instante, em vinte e dois porcos.

Circe riu-se e levou-os para fora do castelo a grunhir e a farejar por bolotas

na lama. Euríloco correu de volta para Ulisses e desesperado disse-lhe:

- Os homens foram transformados em porcos.

Capítulo 7

A ENCANTADORA ENCANTADA

ULISSES PEGOU NA espada e avançou para o bosque. Mas na vereda sinuosa

encontrou Hermes, o mensageiro dos deuses e amigo de todos os viajantes,

disfarçado de jovem.

- Pobre Ulisses – disse Hermes. – A deusa Atena, que vela pela tua vida

atribulada, enviou-me para te ajudar. Mostrar-te-ei como libertar os teus homens do

encantamento.

Hermes arrancou da terra uma flor branca com raiz preta.

- Esta erva chama-se alho - dourado – disse. - Come-a, e o vinho mágico de

Circe não terá poder sobre ti. Podes brandir a tua espada e obrigá-la a libertar os

teus homens.

Ulisses agradeceu a Hermes e continuou o caminho, mastigando o alho

mágico. No castelo, Circe saudou-o, fê-lo sentar, deu-lhe a beber do vinho mágico e

observou-o cuidadosamente.

Mas Ulisses não se transformou num porco como ela tinha planeado.

Continuou como homem, um homem forte e furioso que a fitava.

- Bruxa – gritou. – Transformaste os meus homens em porcos. Fá-los voltar à

forma humana ou obrigar-te-ei com a minha boa espada.

Então Circe saiu e tocou cada um dos porcos com a sua varinha.

Os pelos deles caíram, puseram-se de pé e voltaram a ser homens, mas

todos mais jovens e formosos que nunca.

Circe parecia encantada por Ulisses, e este apreciou a sua companhia

amorosa. Ela convidou-o, assim como aos seus homens, para ficarem a viver no

castelo maravilhoso. E aí permaneceram, festejando com ela e com as suas aias.

Entretanto, na Ítaca as famílias deles não os tinham esquecido. Penélope, a

esposa de Ulisses, estava preocupada. Desde a queda de Tróia havia rumores de

que Ulisses teria sido morto em combate ou devorado por gigantes.

Cada vez mais e mais homens, velhos e novos, pretendiam casar-se com

Penélope, recusando-se a sair até que ela escolhesse um deles. Penélope e o seu

jovem filho Telémaco eram impotentes para expulsar os pretendentes.

Por isso, eles alimentavam-se da comida dela, bebiam o seu vinho e

atormentavam-na todas as tardes com a pergunta:

- Com qual de nós queres casar?

Por fim, ela disse-lhes:

- Estou demasiado ocupada para pensar em casamento até ter acabado de

tecer uma mortalha para Laertes, o pai de Ulisses. Quando a tiver terminado,

decidirei.

Mas intimamente Penélope acreditava que Ulisses estava vivo. Todos os dias

tecia um pouco da mortalha. E todas as noites desmanchava o que tinha tecido

durante o dia. Penélope resistiria tanto quanto pudesse.

Capítulo 8

A TERRA DOS MORTOS

DEPOIS DE UM ANO NO CASTELO mágico de Circe, os gregos estavam

ansiosos por regressar a casa.

- Não é assim tão fácil – disse Circe a Ulisses quando estavam sentados a

comer pavões assados e bolos de mel. – Posídon odeia-te. Se queres evitar a sua

vingança deves aconselhar-te. Navega para as terras para além do rio chamado

Oceanus. Deixa aí o teu barco e sem medo caminha na terra dos Mortos. Ali, entre o

rio das Chamas e o rio das Lágrimas, faz um sacrifício sangrento. Isso levantará o

fantasma do velho profeta Tirésias. Deixa esse nobre fantasma beber um pouco de

sangue e ele poderá dizer-te como viajar para Ítaca.

Na manhã seguinte, Ulisses despertou os homens e prepararam-se para

navegar. Apressaram-se a embarcar, levando um carneiro e uma ovelha pretos para

o sacrifício. Circe levantou a sua varinha e o Vento Norte encheu as velas.

Velejaram até ao fim do mundo, na densa escuridão do rio chamado Oceanus.

Deixaram o barco e caminharam, aterrorizados, na Terra dos Mortos.

Entre o rio das Chamas e o rio das Lágrimas cavaram uma comprida vala.

Espalharam nas suas margens leite doce, vinho dourado e água fresca. A seguir

polvilharam-nas com farinha de cevada.

Ulisses, tal como Circe lhe tinha dito, pegou no carneiro e na ovelha pretos e

cortou-lhes as gargantas para o sacrifício. O seu valioso sangue brotou e encheu a

vala. Ulisses sentou-se, com a espada em guarda, para que nenhum outro fantasma

pudesse chegar e provar o sangue antes do profeta Tirésias.

Por fim o fantasma de Tirésias apareceu, tal como uma árvore alta, branca e

agitada. Ulisses permitiu que o grande profeta bebesse do sangue da vala, porque

só depois ele seria capaz de falar.

À medida que o sangue vermelho escorria pela sua barba, Tirésias falou,

com a voz musical de um verdadeiro profeta:

- Ulisses, a tua viagem de retorno a casa será difícil e perigosa. O deus dos

Mares, Posídon, odeia-te por teres cegado o seu querido filho. Tu e os teus amigos

podem ainda chegar a Ítaca. Mas atenção! Evitem a ilha do deus do Sol, cujos olhos

tudo vêem. Se desembarcarem lá, lembrem-se de que é mortal tocar no seu gado

sagrado.

O fantasma do profeta continuou a dar os seus avisos a Ulisses:

- Se alguma vez chegares a casa, encontrá-la-ás cheia de problemas.

Resolvidos eles ainda terás mais trabalhos pela frente. Deverás viajar para o interior

da ilha com um comprido remo ao ombro. Caminha sozinho até encontrares

pessoas que nunca tenham visto nem ouvido falar do mar. Então crava o teu remo

na terra e faz um bom sacrifício em honra do deus Posídon. Só então o deus dos

Mares e dos Terramotos deverá perdoar o teu crime.

Tirésias desapareceu como o fumo no ar. Quando o fantasma seguinte se

aproximou, Ulisses quase deixou cair a sua espada na vala de sangue. Porque

estava ali o fantasma da sua própria mãe, Anticleia.

Ulisses pôs-se de pé e gritou:

- Mãe! Ninguém me disse que tinhas morrido. Quem te matou? Ou foi

alguma doença que te levou?

- Ninguém me matou e não apanhei nenhuma doença – respondeu-lhe a

mãe. – Foi a dor do meu coração sempre que pensava em ti, meu ajuizado e gentil

Ulisses, foi essa dor que acabou com a minha vida. Mas o teu pai, o bom Laertes,

ainda está vivo.

Por três vezes Ulisses, cego pelas lágrimas, tentou tomar a mãe nos braços.

Por três vezes, como uma sombra querida, ela lhe deslizou pelos braços e se

desvaneceu como a neblina do rio pela manhã.

Então outros fantasmas tomaram o seu lugar, e já eram uma centena, e

passaram a ser um milhar pululando em redor – homens, mulheres, crianças e

bebés. Havia reis e sacerdotes, soldados e mercadores, pedintes e escravos,

dezenas de milhares deles agora, enchendo o ar com lamentos, pragas e perguntas.

Ulisses entrou em pânico. Voltou-se e fugiu, por entre um nevoeiro de chorosos

fantasmas, para a segurança do seu barco. A tripulação bateu os compridos remos

em direcção à ilha de Circe.

No seu castelo, Circe recebeu-os como heróis. Tinha-se apaixonado por

Ulisses e por isso alertou-o para os perigos e ensinou-lhe maneiras secretas para se

desviar. Depois Circe e Ulisses despediram-se tristemente.

Durante a partida do barco, Circe vagueava só pela sinuosa vereda, entre os

bosques e o castelo, cantando uma canção mágica para ajudar Ulisses no seu

caminho e passando a mão, distraidamente, pelas cabeças dos seus leões e lobos

domesticados.

Capítulo 9

AS SEREIAS

O BOM BARCO deslizou através do mar calmo e acinzentado em direcção a

uma ilha de prados inclinados, dourados ao sol. Toda a tripulação queria

desembarcar, mas Ulisses sabia mais do que eles.

- Aquela é a ilha das Sereias – disse-lhes: - Circe avisou-me que fugisse dela,

porque as sereias são belas mas mortais. Elas sentam-se na beira do oceano,

penteando os longos cabelos dourados, e cantam para os marinheiros que passam.

Mas qualquer um que ouça essa canção é enfeitiçado pela sua doçura. São atraídos

para aquela ilha como o aço para um íman. Os seus

Barcos esmagam-se nas rochas afiadas como lanças. Esses marinheiros irão juntar-

se às muitas vítimas das sereias num campo cheio de esqueletos.

Ulisses apanhou um grande bocado de cera de abelhas, um presente de

Circe. Partiu-o em pequenos pedaços e deu-os a cada um dos seus homens,

dizendo-lhes que os amassassem e colocassem nos ouvidos, de modo que não

pudessem ouvir a canção das sereias.

Mas ele queria ouvir a canção e ficar vivo. Por isso, ordenou aos seus

marinheiros que o amarrassem firmemente ao mastro. Feito isto, e já com os

tampões de cera dos ouvidos no lugar, os homens remaram ao longo da ilha.

Assim, Ulisses escutou a canção mágica das Sereias, que flutuava sobre as

águas de Verão:

“Ulisses o mais bravo dos heróis,

Aproxima-te de nós, na nossa verde ilha,

Ulisses, dar-te-emos sabedoria,

Dar-te-emos amor, mais doce que o mel.

As nossas canções aliviam as mágoas,

E nos nossos braços serás feliz.

Ulisses, o mais bravo dos heróis,

As nossas canções dar-te-ão paz”.

Esta canção encantou o coração de Ulisses.

Ansioso por mergulhar nas ondas, nadar para a ilha e abraçar as sereias,

puxava violentamente as cordas que o amarravam até elas golpearem fundo a

carne dos braços e das costas. Fazia sinais com a cabeça e franzia as sobrancelhas

para os homens de ouvidos tapados, implorando-lhes que o libertassem. Mas eles

apenas faziam, cada vez mais, força nos seus remos.

Para Ulisses, enfeitiçado pela canção, as sereias pareciam tão belas como

Helena de Tróia. Mas para a tripulação surda, elas assemelhavam-se a monstros

famintos com garras aduncas e traiçoeiras.

O barco avançou em frente e depressa a canção das sereias não era mais

que um eco dos ecos. Só então a tripulação parou de remar e destapou os ouvidos.

Euríloco desamarrou o seu agradecido capitão, que já tinha voltado ao seu juízo e já

dava conta de mais perigo pela frente, vendo uma ofuscante nuvem de espuma do

mar e ondas impetuosas que chocavam entre dois altos penhascos.

Capítulo 10

CILA E CARÍBDIS

AGORA O BARCO TINHA que navegar entre dois penhascos, onde a água

espumante batia como uma torrente da montanha.

Isso pareceu bastante perigoso à tripulação. Mas só Ulisses, graças a Circe,

conhecia concretamente o perigo.

Do lado esquerdo do estreito agitava-se o terrível remoinho Caríbdis. Numa

alta gruta, no penhasco do lado direito, morava um monstro de seis cabeças

chamado Cila. Cada uma das cabeças, tipo serpente, balançava na ponta de um

pescoço longo e escamudo. Tinham prazer em arrebatar marinheiros dos conveses

dos barcos com os dentes compridos e pontiagudos ou com os seus doze longos

tentáculos.

Dirigir o barco para a esquerda e ser engolido por Caríbdis? Ou dirigi-lo para

a direita e ser devorado por Cila?

Ulisses sabia que tinha pouco tempo para decidir. Imponente na sua

armadura, agarrando duas compridas lanças, tomou posição na proa do barco.

Depois, com toda a confiança que pôde demonstrar, ordenou aos seus homens que

navegassem ao longo do penhasco do lado direito. Eles obedeceram radiantes

porque, embora pudessem ver nitidamente a espuma agitar-se ao redor da boca do

remoinho, nunca tinham ouvido falar de Cila, o monstro terrível que se ocultava na

sua gruta, à escuta do batimento de remos que se aproximavam.

Enquanto os marinheiros olhavam espantados para o tempestuoso círculo da

garganta do remoinho, as seis cabeças de Cila saltaram da escura gruta. Seis dos

tripulantes foram agarrados e levantados no ar, gritando ao seu capitão para que os

salvasse. Mas os gritos depressa foram abafados pelas mandíbulas do monstro. O

barco atravessou a garganta para o mar aberto.

Ulisses e os companheiros lamentaram a perda dos seus camaradas, tendo

como único consolo o amargo pensamento de que todos eles se teriam afogado se

tivessem tentado passar por Caríbdis.

Não passou muito tempo até os sobreviventes chegarem à ilha onde Hélio, o

deus do Sol, guardava a sua sagrada manada de gado. Ulisses disse aos seus

marinheiros:

- Tirésias, o grande profeta, avisou-me para que evitasse esta ilha.

Mas Euríloco zangou-se e disse:

- Todos sabemos que és um homem de ferro, capitão, mas nós estamos em

muito mau estado e feridos. Moremos de fome e precisamos de descanso.

Toda a tripulação o aplaudiu e Ulisses teve que ceder. Mas fê-los jurar que

não tocavam em qualquer animal da manada do deus do Sol.

Naquela noite houve uma enorme tempestade e Ulisses partiu sozinho para

terra, a subiu às montanhas, para pedir ajuda aos deuses. Entretanto, Euríloco e a

tripulação esfomeada desembarcaram, mataram dois animais da sagrada manada,

assaram-nos e comeram-nos na praia.

Hélio, o deus do Sol, resplandeceu de cólera. Gritou:

- Grande Zeus, estes marinheiros mataram e comeram do meu santo gado.

Castiga-os ou descerei ao Hades e brilharei só para os mortos.

Zeus sorriu:

- Deixa-te estar no céu azul, deus do sol. Esmagarei o barco deles em

pedacinhos.

Levantou um dedo. Um vento cortante como um machado derrubou pela

base o mastro do barco que caiu como uma grande árvore.

Zeus arremessou o seu raio e partiu o casco do barco. A tripulação afundou-

se. Só Ulisses sobreviveu. Equilibrava-se numa simples prancha, enquanto o

desmantelado barco era tragado pelas furiosas correntes. De súbito, uma onda

lançou-o ao ar e depositou-o no ramo de uma figueira, por cima do remoinho.

Agarrou-se como um morcego. Olhando para baixo pôde ver Caríbdis, uma

horrível garganta verde com vontade de o engolir. Arfava com o terror da morte. Os

seus músculos ardiam e o ramo inclinava-se cada vez mais.

Nessa altura a boca do remoinho pôs de fora o mastro do barco.

Apontava para o alto como uma lança. Ulisses seguiu-lhe o trajecto e saltou

para ele quando já parecia que iria cair ao mar, consciente da mortífera espiral do

remoinho.

Trepou, encavalitou-se no mastro e olhou em volta. Todos os seus amigos

tinham desaparecido. Com um suspiro, impeliu-se com as suas fortes mãos de

lavrador, para longe do perigo, mas para novas adversidades.

Capítulo 11

A ILHA DE CALIPSO

O MASTRO DO BARCO BALOUÇAVA sobre as ondas como um cavalo -

selvagem galopando em colinas onduladas. Ulisses agarrava-se bem, abrindo muito

a boca para respirar. Uma grande onda apanhou o mastro e arrastou-o durante uma

milha antes de atirar com ele para uma ilha com florestas de cheiros doces e flores

coloridas.

Aí ficou Ulisses, deitado de barriga na areia. Sentia-se vazio, perdido e

abandonado, como um fantasma no seu primeiro dia. Aí foi encontrado por Calipso,

a gentil e bela deusa que vivia numa maravilhosa gruta da ilha. Levou-o para a sua

casa mágica e tratou dele até ficar bom. Alimentava-o, cantava para ele e amava-o.

Mas sempre que ele falava em voltar para casa, os seus olhos tornavam-se dois

frios diamantes e Ulisses tinha medo.

Por isso ficou com Calipso na sua ilha por sete longos anos.

Ela estava muito feliz, mas Ulisses ansiava por voltar a ver o fumo a subir da

sua casa em Ítaca, e assim passava o tempo, triste e silencioso. A deusa Atena teve

piedade dele e convenceu Zeus a enviar Hermes, mensageiro dos deuses, para falar

com Calipso. Hermes saltou nas suas sandálias douradas de asas nos calcanhares e

voou desde o monte Olimpo.

Mergulhou no mar através das ondas, como um corvo – marinho a caçar

peixes submersos. Chegou à ilha de Calipso e caminhou até á grande caverna onde

a deusa vivia.

A entrada da gruta era protegida por faias e ciprestes. Muitas árvores faziam

ninhos nestas árvores: mochos e falcões, e os tagarelas papagaios-do-mar. Videiras

carregadas de cachos vermelhos rodeavam aquela entrada. De uma fogueira

escarlate vinha o perfume da lenha de zimbro e cedro.

Calipso convidou Hermes a sentar-se numa resplandecente cadeira e deu-lhe

para comer uma taça dourada de ambrósia, o alimento dos deuses, e um copo de

rubro néctar para beber.

Depois o mensageiro explicou a missão dele:

- Calipso, o meu pai Zeus diz que tens aqui um homem que tem sido muito

infeliz. Lutou durante dez anos na guerra de Tróia, e no regresso a casa perdeu

todos os seus marinheiros. Está na altura de o deixares regressar a Ítaca.

À medida que Calipso ouvia, começava a tremer de medo e de cólera.

- Quão cruéis e ciumentos sois vós, deuses! – gritou. – Não suportais ver uma

deusa feliz com um mortal. Eu salvei-o, tratei dele, cheguei até a ter a esperança de

o tornar imortal como eu – lamentou-se. –Mas eu sei que ninguém pode

desobedecer ao grande Zeus.

Hermes acenou que sim com a cabeça.

- Muito bem. Manda-o então para casa agora, ou Zeus ficará descontente.

Hermes partiu rapidamente para não ver as lágrimas de Calipso.

Calipso caminhou vagarosamente em direcção ao mar e foi até Ulisses,

sentado na areia, olhando através das águas escuras em direcção a Ítaca. Colocou a

mão no ombro dele.

- Meu triste amigo – disse, é tempo de deixares a minha ilha. Se fizeres uma

jangada, fornecê-la-ei de comida e bebida e enviarei um vento obediente que te

transporte a casa.

Ulisses estava desconfiado.

- Doce deusa, prometes-me que isso não é um estratagema para me

manteres aqui?

Calipso sorriu-lhe e fez, com a mão, uma carícia no queixo moreno dele.

- Ulisses, nem toda a gente pode ser um velho e astuto trapaceiro como tu.

Deixo-te ir porque tenho pena de ti. Mas diz-me, essa Penélope, essa esposa que tu

estás ansioso por ver, é tão bela como eu?

É perigoso ofender uma deusa. Ulisses pensou antes de responder.

- A tua juvenil beleza nunca poderá desaparecer, Calipso – disse -, Penélope

é uma simples mortal. Mas eu tenho o anseio natural de um homem pela sua

própria casa.

No dia seguinte, Calipso deu a Ulisses um machado de bronze; ele deitou

abaixo vinte árvores e começou a construir a jangada. Depois de cinco dias de

trabalho, lançou-a a um mar calmo. Calipso presenteou-o com uma capa e uma

túnica perfumadas e acenou-lhe um adeus com a mão enquanto a jangada

navegava serenamente para longe.

Ulisses navegou durante dezassete dias. Ao décimo oitavo viu uma ilha

coroada por picos nevados.

Mas Posídon, o deus do Mar, viu a frágil jangada e lembrou-se de com o

Ulisses tinha cegado o seu filho, Polifemo, o Ciclope.

Por isso levantou o seu tridente, lançando para baixo todos os quatro ventos

numa tempestade tenebrosa. Uma onda ergueu-se como uma montanha de vidro

verde. Enrolou-se por cima de Ulisses e precipitou-se para baixo, esmagando a

jangada e lançando-o para o mar encapelado.

Ulisses nadou desesperadamente sob a água, puxado para baixo pelo peso

das suas roupas encharcadas. Com os pulmões a arder, arrancou as roupas e lutou

para alcançar a superfície. Com as mãos, apanhou um bocado partido da jangada e

agarrou-se a ele com desespero. Depois de três dias e três noites, uma grande onda

levou-o e atirou com ele para uma praia.

Cambaleou ao longo da areia até que encontrou uma corrente de água

fresca. Aí bebeu até não poder mais. Depois, na terra fofa, fez uma cova com as

mãos, cobriu-se de folhas e adormeceu profundamente.

Capítulo 12

NAUSICA

ULISSES DORMIA NU DEBAIXO da pilha de folhas numa praia da

desconhecida terra da Feácia, enquanto a bela princesa Nausica e as suas aias

jogavam à bola ali perto.

Um dos lançamentos da Nausica foi parar mais longe. A bola esparrinhou no

rio e todas as mulheres riram, acordando Ulisses.

“O que é isto? – interrogou-se. – Serão os gritos de caça de canibais? Ou gente

delicada e gentil? Será melhor ir ver.”

Apanhou um ramo com um tufo de folhas para esconder a sua nudez. Tinha

ainda um aspecto selvagem, com o seu corpo coberto de costas de sal branco, a

barba suja e os cabelos no ar.

Todas as mulheres, excepto Nausica, fugiram. A princesa tinha sido ensinada

a não ter medo de nenhum homem. Ela manteve-se de pé. Ulisses falou-lhe a uma

distância respeitosa:

- Não sei se és uma deusa ou uma mulher mortal, mas escuta-me por

piedade. Sofri muito nas guerras e nas minhas viagens. Lutei contra a pouca sorte,

gigantes e monstros. Perdi todos os meus amigos. Por favor dá-me qualquer coisa

para vestir, comida e bebida, porque sou estrangeiro. E que os deuses te dêem

tanta felicidade como a que desejas.

Nausica sorriu e disse:

- Gentil estrangeiro, bem-vindo à Terra dos Feácios. Sou a filha do bom rei

Alcino.

Deu-lhe a sua longa capa para lhe cobrira a nudez e depois Nausica e as aias

conduziram-no a palácio dourado do rei Alcino.

O rei deu uma grande festa para Ulisses nos jardins do belo palácio, por

entre estátuas de cães de bronze, laranjeiras, fontes borbulhantes e milhares de

flores de aromas doces.

O rei Alcino ordenou a cinquenta jovens que preparassem um barco para

Ulisses. Na manhã seguinte, Nausica e a família despediram-se quando Ulisses se

foi embora num barco conduzido por cinquenta remos feácios, a toda a velocidade

pelo mar escuro cor de vinho.

Chegaram a terra, a luar, numa baía da costa de Ítaca. Ulisses dormia. A

tripulação feácia transportou-o cuidadosamente para terra e deitou-o na areia. A

seguir navegaram de regresso. Ulisses, completamente só, dormiu profundamente

sob uma Lua que parecia uma moeda de prata acabada de cunhar.

Capítulo 13

O REGRESSO A CASA

ULISSES ACORDOU, ESPREGUIÇOU-SE, BOCEJOU e olhou em volta. A

princípio julgou estar numa nuvem.

Depois percebeu que a praia estava coberta por uma espessa neblina,

colorida de rosa pelo amanhecer.

No meio da neblina movia-se na sua direcção a figura alta de um pastor que

saudou Ulisses, mas, à medida que falava, a sua imagem mudava, brilhando, até

que se transformou na bela e majestosa deusa da Sabedoria.

Ulisses levantou-se de um pulo:

- Poderosa deusa Atena! Por favor diz-me onde estou. É um país amistoso ou

perigoso?

- É igualmente amistoso e perigoso – disse a deusa -, porque aqui estão aqueles que

tu mais amas e aqueles que te odeiam. Esta é a famosa terra rochosa de Ítaca.

Ulisses sentiu o coração a saltar-lhe no peito.

- Ítaca! – gritou. Finalmente em casa!

Ulisses inclinou a cabeça. Atena levantou a mão direita.

A neblina dissipou-se e o bravo viajante pôde ver as colinas da sua terra,

douradas sob a luz do sol. Ajoelhou-se e beijou a terra.

Que devo fazer? – perguntou.

Atena falou:

- Encontrarás a tua casa cheia de vilões. Estão por lá há três anos, a

importunar a tua nobre esposa Penélope, comendo e bebendo do seu vinho. Todos

disputam o casamento com ela. Até agora ela tem conseguido mantê-los afastados

dizendo-lhes que casará com um deles quando tiver acabado de tecer a mortalha

para o teu pai. Enganou-os, durante algum tempo, tecendo a mortalha de dia e,

desmanchando o trabalho de noite. Mas eles já descobriram a trapaça e insistem

em que ela deve desposar um deles. Tens que agir rapidamente para a salvar, e eu

estarei a teu lado quando os castigares. Deves ir para casa disfarçado, não

deixando ninguém saber quem és, nem mesmo a tua esposa.

Olha – a deusa levantou a mão esquerda -, vou engelhar a pele macia do teu

corpo, pôr brancas no teu cabelo e vestir-te de andrajos!

E assim aconteceu, no lugar do forte Ulisses apareceu um velho mendigo.

- Agora já podes começar – disse Atena.

- O primeiro homem que deves visitar é Eumeu, o criador de porcos.

Ulisses apressou-se pela vereda em direcção à cabana do criador de porcos.

- Devagar – disse Atena sorrindo.

- Lembra-te que agora és um velho pedinte.

Quatro ferozes cães correram de trás da cabana do criador de porcos.

Atacaram Ulisses, que parecia um mendigo, a ladrar e a rasgar os seus trapos com

os dentes amarelos. Mas o criador de porcos Eumeu deixou cair a sandália que

estava a preparar, gritou e atirou com pequenas pedras aos cães até que eles se

afastaram encolhidos.

- Entra na minha cabana e partilha o meu pão e o meu vinho – disse Eumeu.

– Já o meu antigo amo dizia que estrangeiros e mendigos devem ser tratados como

filhos de Zeus.

- Quem era esse teu antigo amo? – perguntou Ulisses.

- Era Ulisses, o melhor dos amos e o mais bondoso dos homens – disse

Eumeu. – Mas ele já há muito que partiu, se perdeu e morreu.

Ulisses colocou a mão no ombro tremente do criador de porcos.

- Não chores – disse – porque eu juro que Ulisses regressará a casa.

Nesta altura um jovem alto entrou na cabana.

Ulisses fitou-o, repetidamente.

O Jovem inclinou a cabeça para ele e disse para o criador de porcos:

- Eumeu, de onde veio este teu hóspede?

- De muito longe, para lá dos mares – replicou Eumeu. – por favor senta-te a

seu lado, que eu tenho que ir dar de comer aos porcos – e arrastou-se para fora da

cabana.

Atena escolheu aquele momento para sussurrar ao ouvido de Ulisses:

- Este é o teu filho Telémaco, Diz-lhe quem és. Depois poderão traçar os

vossos planos juntos.

- Sou o teu pai Ulisses – exclamou o herói. – Atena disfarçou o meu corpo e,

por isso, pareço um pedinte. Mas eu sou o homem que regressa a casa após muitos

anos de guerra, pouca sorte e aventuras.

Telémaco lançou os braços em volta do pai. Ambos se comoveram e

choraram. Passou ainda muito tempo antes que começassem a planear vingar-se

dos pretendentes.

- Parte para casa antes de mim, mas não digas à tua mãe que regressei.

Chegarei depois, ainda disfarçado de mendigo. Aqueles pretendentes vão insultar-

me, mas não te metas. Atena indicar-me-á quando for a altura de agir. Então far-te-

ei sinal. Mas primeiro terás que tirar todas as armas dos pretendentes do salão e

fechá-las noutro lado.

Combinaram todos os pormenores da luta que se aproximava, e Telémaco

voltou para casa, parecendo mais forte e feliz do que nunca. Um pouco mais atrás,

um pedinte esfarrapado caminhava aos tropeções com um pequeno pássaro verde

empoleirado no seu ombro. Ou talvez fosse Ulisses, acompanhado por Atena.

Capítulo 14

A VINGANÇA DE ULISSES

O VELHO MENDIGO PAROU E FICOU a olhar os degraus de pedra que

conduziam ao grande salão da casa de Ulisses. Mais em baixo, na terra e na sombra

dos degraus, um velho cão arrebitou as orelhas e levantou a cabeça.

Um velho cão chamado Argus, cachorrinho ainda quando vira Ulisses pela

última vez há dezanove anos atrás. Agora estava velho, cego e com o pêlo cheio de

pulgas, mas reconheceu o cheiro do seu dono. Sacudiu debilmente a cauda a agitou

as orelhas, mas não tinha forças para se pôr de pé. Ulisses ajoelhou-se a seu lado.

Pegou nele ao colo, com pulgas e tudo.

O velho cão lambeu o sal do queixo do dono. O seu coração leal encheu-se

de felicidade e morreu. Ulisses lembrou-se que tinha de fingir de pedinte.

Delicadamente pousou o corpo do seu cão na fria sombra, para o sepultar mais

tarde, subiu os degraus a coxear e entrou na algazarra do salão.

O grande salão estava apinhado de pretendentes bêbedos, a comer como

lobos, a cantar como corvos e a bailar como patos. Clamavam por mais vinho e

batiam nas servas que o traziam. Atiravam com comida uns aos outros, caíam sobre

os bancos, vomitavam e riam como hienas. Quando o mendigo pediu migalhas da

mesa, escarneceram dele e um deles, Antinoo, atirou um banco de madeira que

magoou muito Ulisses num ombro.

Quando Penélope ouviu dizer que estava no salão um pedinte estrangeiro,

que vinha do outro lado dos mares, mandou chamá-lo. Algum estrangeiro haveria

ter notícias do marido. Ulisses foi trazido à sua presença, mas ela não o

reconheceu. Ele ficou silencioso, porque não tinha confiança em si próprio para falar

sem revelar a sua identidade.

Tinham passado vinte anos desde que a vira pela última vez. Mas a beleza

de Penélope era ainda notória, e a voz dela era ainda uma música que ia direita ao

coração. Penélope chamou a velha ama, Euricleia, para dar banho ao pedinte, untá-

lo todo com azeite e dar-lhe para vestir algumas das roupas do marido. A velha foi

buscar uma bacia e começou a lavá-lo. Mas quando enxaguava as suas pernas

reconheceu uma cicatriz numa delas, onde um javali ferira o jovem Ulisses durante

uma caçada.

Passou a mão pela cicatriz, desfez-se em lágrimas e disse:

- Tu és Ulisses, o meu menino!

- Chiu! – pediu Ulisses. – Ninguém deve sabê-lo ou seremos ambos mortos.

Nem uma palavra, doce ama. – Beijou-a e ela sorriu. Depois, secou-o e embrulhou-o

numa toalha tal como fazia quando ele tinha quatro anos.

Depois de Ulisses estar vestido, a velha ama levou-o de novo a Penélope

que, embora não o reconhecesse, confiou nele.

- Já não consigo afastar mais aqueles pretendentes – disse. – Descobriram o

meu truque da tecelagem e vão tirar à sorte a quem caberá a minha mão. Mas eu

sou Penélope, e não um prémio de lotaria! Sugeri um teste de habilidade e força.

Quem conseguir esticar o grande arco de Ulisses e atirar uma seta através dos

buracos de uma fila de doze ferros de machado, como o meu marido fazia, levar-

me-á como sua noiva.

Ulisses sorriu e disse:

- Boa senhora, realiza esse torneio logo que possível. O velho e astuto

Ulisses estará aqui muito antes que esses incapazes consigam esticar o arco.

Nessa mesma noite teve lugar o concurso. Telémaco colocou os doze

machados em linha ao longo do grande salão enquanto os pretendentes se

banqueteavam. Entretanto Ulisses chamou Eumeu e o vaqueiro para o seu lado,

disse-lhes quem era e recrutou-os para a luta que se ia seguir.

Penélope entrou no salão, carregando nos seus longos braços o poderoso

arco e uma aljava de setas mortais. Os pretendentes fizeram silêncio quando ela

anunciou:

- Se algum de vocês conseguir esticar este arco e atirar através de doze

ferros de machado, eu irei com ele, deixando esta casa de que tanto gosto. Eumeu,

pega no arco.

Ela abandonou o salão e o criador de porcos tomou conta do que se ia

seguir. A seguir veio o grande Eurímaco, que aqueceu o arco no fogo para o tornar

mais flexível. Mas falhou ao esticá-lo e, irado, atirou com ele ao chão.

Nesta altura Antínoo propôs um intervalo para beberem mais vinho. Mas o

astuto Ulisses lançou a confusão:

- Dêem-me o arco, meus senhores –exclamou, - Deixem-me ver se há ainda

alguma força nestes meus velhos braços.

Os pretendentes riam e gritavam. Mas a um sinal de Telémaco, Eumeu

avançou, pegou do chão no arco e entregou-o a Ulisses.

Ulisses tomou o seu lugar. Com as mãos, experimentou o arco. Depois, tal

como um músico dedilha a lira, curvou o arco e esticou-o. A mão direita fez vibrar a

corda, que cantou como uma andorinha.

No silêncio que se seguiu, apanhou uma seta, colocou-a na corda, puxou-a

atrás e largou-a. Veloz, a seta atingiu a fila dos doze machados. Ulisses voltou-se

para o seu filho Telémaco e disse:

- O concurso terminou. Acabou o banquete. Agora vamos à dança.

Ulisses fez um aceno de cabeça. Era o sinal. Atena levantou a mão direita e o

pedinte mostrou-se a todos como o poderoso Ulisses.

- O concurso está terminado e ganho! – gritou. – Agora experimentemos um

novo alvo.

Apontou uma seta a Antínoo, que estava a bebericar de uma taça dourada

de vinho. O dardo silvou no ar e trespassou a garganta do homem.

Os pretendentes coraram e olharam em volta, mas Telémaco escondera-lhes

as armas. Ouviram uma voz de trovão:

- Eu sou Ulisses. Ontem comestes a minha comida, bebestes o meu vinho e

insultastes a minha esposa. Mas hoje morrereis.

O grande Eurímaco tentou reunir os pretendentes e recebeu uma seta no

peito. A seguir Anfínomo, com a espada, atacou Ulisses, mas Telémaco tombou-o

com uma lança enfiada entre as omoplatas.

Com rápida seta após seta, Ulisses atingiu os pretendentes um a um. E

quando as setas se esgotaram pegou em duas enormes lanças e começou a lutar

com elas.

Entretanto, o criador de porcos e o vaqueiro cortavam a eito com as espadas

de ambos os lados de Telémaco. Por todo o salão havia pilhas de pretendentes

moribundos.

Seis dos pretendentes encontraram as suas lanças e dirigiram-se a Ulisses.

Mas, empoleirada numa viga e disfarçada de mocho, Atena levantou a sua asa

esquerda, e as seis lanças partiram-se inofensivamente no chão.

A matança continuou até que Atena, subitamente, apareceu em pessoa,

caminhando majestosamente no ar. Quando viram a grande deusa, os poucos

pretendentes ainda vivos fugiram do salão como uma manada de gado

enlouquecido pelos moscardos.

Capítulo 15

MARIDO E MULHER

A VELHA AMA CORREU PELAS ESCADAS acima a dar a boa notícia à sua

senhora, gritando:

- Acorda, Penélope, minha menina, o teu marido Ulisses regressou a casa e matou

aqueles vilões que te fizeram sofrer em silêncio na tua própria casa.

- É verdade – ripostou aos protestos de Penélope. – Aquele pedinte no

salão… era ele disfarçado!

Penélope estava confusa. Desceu para o salão que nessa altura estava

repleto de corpos. Ulisses, sentado ao lado do fogo, fitava as chamas.

Penélope sentou-se do outro lado. Houve um longo silêncio.

“Tantos anos – pensou Penélope para si mesma. – Não sei o que dizer nem o

que fazer. Mas se realmente este homem é Ulisses, depressa o descobrirei”.

- Que mulher é esta! – falou finalmente Ulisses. – Nenhuma outra resistiria a

tocar no seu marido depois de dezanove anos de separação. Se já não te interessas

por mim, diz à minha velha ama que me arranje uma cama onde eu durma sozinho.

- Muito bem, - disse Penélope, experimentando-o. – Euricleia! Vai buscar a

cama que Ulisses construiu. Trá-la aqui para o pé da lareira!

- Em nome de Hades – berrou Ulisses -, como pode ela ir buscar tal cama? Eu

esculpi-a a partir de uma árvore viva, é a única cama no mundo com raízes e

ramos!

Ele conhecia o segredo. Penélope tinha a certeza que era o marido. O seu

coração amoleceu.

Lançou-lhe os braços em redor do pescoço e beijou-o repetidamente. Ele

chorava e mantinha-a apertada nos braços. Depois caminharam devagar para a

grande cama que tinha sido feita de uma árvore. Sentiam-se mais felizes que

nunca.

Mas, na manhã seguinte, Ulisses tinha que partir para a sua peregrinação à

procura de um lugar onde as pessoas nunca tivessem ouvido falar do mar.

Caminhou muitas semanas com um longo e pesado remo ao ombro. Por fim,

encontrou uma aldeia onde um lavrador o chamou:

- Eh! Estrangeiro, que estranha enxada é essa que carregas?

Ulisses parou e verificou que os aldeões nunca tinham ouvido falar do mar.

Então fincou o remo na terra. Da quinta trouxe um belo carneiro, um touro e um

porco. Sacrificou os três ao deus dos Mares, Posídon, pedindo perdão por ter cegado

Polifemo. Posídon, finalmente, ficou satisfeito. Ulisses comprou um forte cavalo e

montou-o de regresso a casa.

Quando chegou, reuniu-se, feliz, com o seu velho pai Laertes, escondido

durante anos por Eumeu, depois de maltratado pelos pretendentes. Laertes estava

cheio de alegria por ver o filho, há tanto tempo perdido, e comportava-se mais

como se tivesse oito anos e não como um homem de oitenta. Tudo corria bem até

que Telémaco viu, aproximando-se da casa de Ulisses, um pequeno exército de

homens bem armados. Eram parentes dos pretendentes trucidados, dispostos à

vingança.

Cantavam o seu ódio a Ulisses. Telémaco convocou todos os criados. Até

mesmo o velho Laertes empunhou uma espada e brandiu-a ameaçadoramente para

as forças que avançavam.

Parecia que o resultado do primeiro massacre iria ser outro massacre. E, a

seguir, talvez houvesse um terceiro para vingar o segundo? E por aí fora. Na

residência dos deuses, no monte Olimpo, Atena intercedia junto do grande Zeus:

- Estes horrores vão continuar para sempre?

Zeus sorriu.

- Atena, se puderes fazer um acordo de paz entre eles, fá-lo.

Então, mesmo quando os guerreiros estavam prestes a chocar as espadas

numa terrível colisão de metal e carne humana, a deusa Atena surgiu entre eles

como se fosse uma estátua saída da luz do Sol e ordenou-lhes com um grande grito.

- Não! Pousai as vossas armas! Já houve mortes bastantes!

Ambos os campos atiraram com as espadas e lanças para o chão,

amedrontados e admirados com aquela voz forte.

Atena tinha tomado a forma de Mentor, o mais sábio dos homens.

Todos os guerreiros, de ambos os lados, se reuniram em volta e escutaram

atentamente enquanto Mentor os persuadia e estabelecia a paz entre os dois

partidos.

Penélope correu para fora, tomou a mão de Ulisses e sorriu para ele.

- Finalmente – disse. – Já podes deixar de ser um herói para seres um

lavrador e viveres com a tua família.

Ulisses beijou-a e sorriu.

FIM