Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 2 (2013), pp. 75-116
Partindo para o lado cultural: Valor, patrimônio cultural e precarização na história dos sistemas sonoros de Belém do
Pará*
Darien Vincent Lamen**
Resumo: Na cidade de Belém do Pará, Amazônia brasileira, sistemas
sonoros animam a vida social da periferia urbana há mais de
sessenta anos. Técnicos, engenheiros e marceneiros autodidatas
encontraram meios de viver da sonorização na economia informal,
acumulando até um patrimônio material. Porém, a partir dos anos
1990 vários fatores contribuíram para a marginalização de seu
trabalho e a precarização de seu patrimônio, levando muitos a
procurar uma outra forma de articular o valor de suas vidas.
Através das histórias de vida de uma família de trabalhadores de
som, esse artigo tem como objetivo investigar a relação entre
subjetividade, trabalho e valor sob regimes de precariedade.
Palavras-chave: Aparelhagem; Valor; Precariedade.
Abstract: In Belém do Pará, Brazil, locally-assembled sound systems have been
animating social life on the urban periphery for over half a century.
Self-taught sound system engineers, builders, and technicians have
found livelihoods in an unstable informal economy by crafting
sound and designing stage spectacle. Since the 1990s, however,
several factors have conspired to render their trade increasingly
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marginalized and their patrimony increasingly precarious, leading
some to emphasize the value of their life’s work in other terms. By
examining the way one family of sound system workers has
navigated shifting valuations of cultural labor, this paper
contributes to larger discussions of the relationship of subjectivity,
work, and value under regimes of precarity.
Key-words: Sound System; Value; Precarity.
“Tempo é dinheiro”, respondeu Milton Almeida
Nascimento ao meu pedido por uma entrevista
etnográfica. Do outro lado da grade de ferro na
frente de sua casa sob o sol forte de uma tarde
amazônica em 2009, eu tinha acabado de me
apresentar e explicar de forma bastante esotérica
minha pesquisa sobre o valor cultural dos sistemas
sonoros, também conhecidos como aparelhagens,
aos quais ele tinha se dedicado durante todo seu
trajeto profissional como técnico, engenheiro e
proprietário de som. Apesar de não recusar
explicitamente o pedido que eu tinha lhe feito, ele
deixou claro que achava suspeitos os motivos dos
assim chamados “pesquisadores,” dizendo que um
jornalista à procura de informações tinha aparecido
recentemente na porta de sua casa e acabou
sumindo com vários documentos de valor pessoal e
histórico.
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Na hora em que eu bati na porta, Milton estava
ocupado na sua oficina, localizada no porão da casa
onde mora na periferia de Belém do Pará. Cercado
por prateleiras de alto-falantes, peças para
amplificadores e discos de vinil abrangendo mais de
50 anos, Milton continua consertando e
reformando equipamentos eletrônicos como
“hobby” deixando a maior parte do trabalho que
ainda sustenta a empresa familiar e a marca Alvi
Azul para três dos filhos que moram ou na parte
superior da casa ou na vizinhança. O mais novo,
Milton Júnior, estava em casa aquele dia em 2009 e
parecia ansioso para intermediar a conversa que
acontecia pela grade de ferro e propôs uma troca.
Sem perder tempo, ele tentou me recrutar como
colaborador para um projeto—um termo agora
ubíquo advindo do jargão burocrático de estado—
que idealizava há anos. “De repente,” disse ele,
“poderíamos trabalhar junto para mostrar a
contribuição cultural que os locutores, controlistas
e técnicos de sistemas sonoros fizeram à sociedade
urbana amazônica. De repente poderíamos
publicar um livro ou documentário para ajudar a
preservar o legado da família. De repente
poderíamos até montar um sonoro de amplificação
valvulada, para mostrar como era na época, o
encanto daquela tecnologia...”
Esse artigo tem como objetivo abordar a relação trabalho-valor-
precariedade entre duas gerações que vivem da economia de
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“sonorização” em Belém do Pará. O fato de muitos trabalhadores da
primeira geração terem ficado às margens do mercado atual os leva a
perguntar-se o que restará de seu patrimônio quando falecerem, seja em
bens materiais ou legado imaterial? Afinal quanto vale o reconhecimento
popular e o reconhecimento institucional? Como medir o valor de algo
que nem o mercado capitalista nem a burocracia do estado sabem
valorizar?
Diante das mudanças econômicas que provocam tamanha incerteza,
alguns trabalhadores de segunda geração (geralmente os filhos e sobrinhos
da primeira) procuram oportunidades para traduzir o valor do ofício
familiar para as economias de cultura novas que têm surgido na
encruzilhada entre mercado e estado com base na produção e
gerenciamento de patrimônio cultural. Porém, a tentativa de “partir para
o lado cultural”, conforme Júnior, pode representar mais do que uma mera
estratégia econômica. Sua formulação também procura elaborar um tipo
de valor que ultrapassa ou transborda tanto a economia de sonorização,
com seu desprezo pelo “trabalho morto” do passado, como o que
chamarei de indústria do patrimônio cultural, com sua tendência a
“reificar” o trabalho cultural, sujeitando-o ao gerenciamento burocrático.
Esse artigo dialoga com debates teóricos nas ciências sociais sobre o
valor, sua produção e contestação e sua transmissibilidade entre
“regimes”1 e “hierarquias”2 de valor. Partindo do trabalho do antropólogo
David Graeber, farei uso de uma distinção heurística entre “valor no
sentido econômico” e “valores no sentido sociológico.”3 Enquanto o
valor econômico se define em relação ao valor de troca de algo, valor
sociológico se manifesta através do peso moral relativo dado, por
exemplo, ao trabalho em relação ao lazer, a autonomia individual em
relação à manutenção da hierarquia social, a acomodação em relação à
preservação e etc. Sem dúvida, existe certa correspondência entre valor
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econômico e valor social na medida em que, conforme observa Arjun
Appadurai, valor econômico “nunca é uma propriedade inerente de
objetos; é uma avaliação feita sobre eles por sujeitos”4 coletivamente e,
por outro lado, valores sociológicos são determinados em parte pelo
sistema econômico no qual esses sujeitos se encontram. No entanto, faz-
se uso dessa distinção como heurística para ajudar na identificação dos
momentos de maior disjunção entre o econômico e o sociológico, pois é
justamente nesses momentos, digamos, de “torção” que se torna
disponível à subjetividade um tipo de valor, muitas vezes mal definido,
que transborda ou ultrapassa o regime de valor constituído. Como
veremos a seguir, essa mais-valia pode nortear uma crítica do status quo que
acaba por potencializar a reconfiguração da política na luta sobre valor e
trabalho no sistema capitalista.
Esse artigo tem como base as histórias de vida reconstruídas através
das entrevistas formais e informais concedidas entre 2009 e 2013 pelo
técnico e engenheiro de som Milton Almeida, sua primeira esposa Júlia e
o filho mais novo deles, Milton Júnior. A história de vida, ferramenta
bastante utilizada na metodologia etnográfica, se tornou extremamente útil
na elaboração do presente argumento pois representa um meio de articular
valor, trabalho e subjetividade através da narração. Através da análise de
suas biografias, procuro esclarecer a relação entre valores sociológicos
específicos que surgem de modos de produção históricos e as formas de
auto narração através das quais tais valores são compreendidos
subjetivamente. A primeira parte do artigo entrelaça a história política
econômica com as histórias de vida de Milton e Júnior e sua narração do
trabalho e valor. Procuro destacar os momentos em que a auto narração
heroica e confiante-de-si-mesma se desmorona e a subjetividade parece
frustrada ou até mesmo ameaçada, pois são esses os momentos em que os
regimes de valor dominantes que costumam nortear nossos desejos e
ações se tornam visíveis e alvo de questionamento crítico. Como explica
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Judith Butler em seu livro Giving an Account of Oneself (“Prestando contas
de si mesmo”):
Quando o “eu” procura prestar contas de si mesmo,
contas que devem incluir as condições de seu
próprio surgimento, deve por necessidade virar um
teórico social. (...) A desapropriação pode ser a
condição para o inquérito moral, a condição sobre
a qual surge a moralidade em si. Se o “eu” não se
conforma com as normas morais, isso significa que
o sujeito deve deliberar sobre essas normas e uma
parte da deliberação abordará uma compreensão
crítica de sua gênese social e significado. Nesse
sentido, deliberação ética tem a ver com a operação
da crítica.5
O recorte etnográfico com o qual iniciei esse artigo mostra as
implicações do meu trabalho com a cultura musical de Belém na
reprodução ou contestação de regimes de valor locais. Appadurai explica
que “a política de valor é em muitos contextos uma política de
conhecimento”6 e, assim sendo, o “trabalhador de conhecimento” (até
mesmo um acadêmico de credenciais institucionais precários como o
autor) está inserido inevitavelmente na política de valor de seu campo de
pesquisa. Nesse sentido, pude perceber que meu interesse pela questão da
relação subjetividade-precariedade não era apenas “intelectual” mas
também pessoal, sobretudo no que diz respeito à ontologia do trabalhador
(de cultura) e à política de valor. Consciente da impossibilidade de “me
manter limpo” dessa política, desenvolvi em parceria com Milton, Júnior
e outros trabalhadores de som um projeto criativo e colaborativo paralelo
Revista Estudos Amazônicos • 81
à minha própria produção acadêmica que segue as normas tradicionais
(isto é, a publicação de artigos). O processo colaborativo que narrarei a
seguir me levou a refletir sobre duas tendências relacionadas e cada vez
mais comuns tanto no hemisfério norte como no hemisfério sul. A
primeira é a narração da precariedade com o discurso nostálgico da
“perda” e a segunda é a confusão de precariedade econômica com
precariedade existencial ou ontológica. A esquerda tradicional tende a
narrar a precariedade com o discurso da perda, enfocando a erosão de
assistência pública, o desmantelamento do sindicalismo e a desintegração
da sociedade civil em si. Aliás, nas sociedades do trabalho onde
subjetividade e trabalho costumam se confundir (como mostra a pergunta
ubíqua à qual rotineiramente sujeitamos crianças e adolescentes — “o que
você quer ser quando crescer?”), essa perda econômica também se vivencia
como uma perda ontológica. Conforme observam Conti et al, “O abismo
da desregulamentação da sociedade do risco se abre diante de nós e, pars
pro toto, a precariedade de trabalho se torna a precariedade da existência, a
possibilidade concreta de não sair-se dessa, apesar de toda a boa
vontade.”7
A partir dessas reflexões pude repensar o processo de pesquisa como
um processo criativo potencializador de novas narrativas e novas
subjetividades. Sem reproduzir a ideologia neoliberal que “chama
precariedade com o nome falso de flexibilidade,”8 quero frisar a exigência
política de procurarmos maneiras alternativas de narrar a precariedade,
mais especificamente como condição de possibilidade, primeiramente,
para uma crítica de regimes de valor hegemônicos, e em seguida, para a
elaboração de uma política que não se contente com nostalgia nem deseje
retornar aos “tempos áureos” que, para muitos sob cujas costas esse
passado foi construído, nem foram tão dourados assim. A intensificação
da precariedade e a propagação da miséria no capitalismo contemporâneo,
82 • Revista Estudos Amazônicos
tanto no hemisfério norte como no hemisfério sul, fazem com que essa
questão se torne cada vez mais urgente em todo planeta.
Milton Almeida Nascimento e o surgimento da economia de
sonorização de Belém
Os sistemas sonoros comerciais de Belém surgiram em meados do
século XX, no fluxo de várias ondas de migração rural-urbana que
proporcionou à Amazônia a maior proporção de população urbana a rural.
Entre 1950 e 1980, a população de Belém aumentou de 242.000 para
827.000 habitantes devido à migração de uma população cabocla regional,
entre outras, que até então subsistiam de agricultura familiar e extrativismo
nas terras de seus patrões mas que vinham para a cidade à procura de
trabalho assalariado e oportunidades escolares. Segundo Mitschein,
Miranda e Paraense, uma maioria dos migrantes eram
(...) produtores agro extrativos nos moldes da
tradicional agricultura cabocla, vivendo, via de
regra, uma desapropriação ‘silenciosa’ gerada pela
sucessiva degradação das suas condições de
produção (...) [e pela] clara tendência de
concentração da propriedade fundiária.9
Com a estagnação da economia regional extrativista, a monetização
veio a representar uma proteção contra a volatilidade dos ciclos
produtivos, o poder econômico desproporcional do regatão (comerciante
ambulante e atravessador rural) e a autoridade do patrão que se mantinha
através de valores sociais paternalistas.10 A oportunidade, ou melhor
dizendo, a obrigação que o trabalho assalariado representava nessa
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conjuntura fez das cidades regionais polos de atração onde migrantes
esperavam encontrar uma maior densidade de emprego formal e acesso a
serviços públicos. A urbanização amazônica se deu também dentro de um
contexto nacional marcado pela industrialização capitalista, o crescimento
de um proletariado urbano e o surgimento do populismo Varguista e
Baratista.
A economia de Belém, até então a maior cidade da Amazônia, dependia
de sua função de entreposto regional ligando o interior, os portos
internacionais e as cidades metropolitanas do litoral brasileiro. Tudo
indica que a maior parte dos migrantes rurais que chegavam à cidade não
foram incorporados no mercado de trabalho formal, no sentido de prestar
serviço “mediante contrato jurídico e (...) garantias trabalhistas e
previdenciárias, incluindo (...) a possibilidade de sindicalização.”11 Pelo
contrário, migrantes eram obrigados a improvisar seus meios de vida às
margens da economia formal, às vezes juntando trabalho assalariado com
atividades comerciais informais como descarregamento de barcos,
revenda de alimentos básicos para suas vizinhanças, serviços domésticos
para famílias burguesas e assim por diante. Para pessoas engenhosas que
conseguiram descobrir os segredos da eletrônica (e mantê-los escondidos),
a sonorização — esfera de trabalho midiático englobando tanto funções
publicitárias como sociais de lazer — representava mais uma fonte de
renda e, para alguns, até mesmo a possibilidade de capitalização modesta.
Tony Leão da Costa observa que embora a teoria social tenda a retratar
a cidade grande como “o lugar da desagregação das relações sociais
tradicionais e desenvolvimento de um individualismo cada vez mais
hegemônico,” as cidades “também eram espaço de desenvolvimento de
laços culturais e identitários alternativos dentro do mundo disperso e
fragmentado.”12 Os sistemas sonoros eram os principais responsáveis por
animar espaços sociais através dos quais assentamentos periféricos
urbanos foram transformados em bairros e comunidades socialmente
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coesos. As primeiras sedes que compunham o circuito de festas
“sonorizadas” também funcionavam como clubes sociais, futebolísticos,
profissionais e beneficentes, assim servindo de infraestrutura para o
florescimento do que poderíamos chamar, seguindo o Norman Stolzoff
em seu estudo sobre o dancehall jamaicano, de “contra-mundos culturais.”13
Esses contra mundos desfrutavam de certa autonomia na música ouvida
— muitas vezes de procedência caribenha — em relação ao resto da cidade
e do Brasil, pois virou costumeiro entre os sistemas sonoros rodar discos
de vinil “exclusivos” que não tinham sido lançados no Brasil, mas que
vinham nas malas dos viajantes, comerciantes e contrabandistas que
atracavam nos portos da região.14 Nesse sentido, os sistemas sonoros
fizeram um papel instrumental não somente na construção de mundos
mais socialmente coesivos nas margens da cidade e de sua economia. Os
sonoros também contribuíram para a criação de uma vida cultural vibrante
para além da mera sobrevivência ou “reprodução social.” Essa mais-valia
se manifestava nos passos ligeiros e estilo vistoso dos dançarinos; no
ecletismo cosmopolita da música tocada; no design engenhoso e cada vez
mais futurista dos sistemas sonoros; e assim por diante. Em outras
palavras, os sistemas sonoros de Belém, além de serem uma fonte de renda
ou emprego, eram produtores de valor social e mais-valia cultural.
Dentro desse cenário, vários técnicos, marceneiros, locutores e outros
encontravam meios de vida e maneiras de contribuir para a vida social nas
periferias urbanas de Belém. Entre eles está Milton Almeida Nascimento,
nascido em 1939 na Ilha do Marajó, na desembocadura das águas
amazônicas. Seu pai, Manoel Gildo Nascimento, possuía um barco e um
mercado no povoado de Soure. Ele trabalhava como comerciante
ambulante, abastecendo os interiores com mercadoria em troca de ouro
garimpado nos barrancos. Durante uma de suas viagens, Manoel faleceu
e foi enterrado no interior por pessoas da tripulação. Uma semana depois,
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a notícia chegou à mãe do Milton, Nazaré de Almeida Nascimento, que
seu marido tinha falecido de febre amarela, mas boatos de “jogo sujo”
circulavam pela comunidade. O patrimônio da família, desde o mercado
até os barcos, foi dividido entre os irmãos masculinos do Manoel,
deixando Nazaré “sem nada.”
Por volta de 1946, Nazaré se mudou para Belém com suas duas filhas,
sua mãe e Milton para procurar emprego e matricular seus filhos na escola.
Graças a uma pequena poupança de pepitas de ouro, a família conseguiu
comprar uma casa de cavaco no bairro do Marco. A avó do Milton,
conhecida como “Finada Pastora,” era responsável por manter a ordem
doméstica enquanto Nazaré saía a trabalho monitorando o uso de energia
elétrica para a companhia estatal, Pará Elétrica. Sob a insistência da
Nazaré, Milton e suas irmãs frequentaram várias escolas privadas, mas
Milton não chegou a terminar seus estudos. Segundo ele, seus deveres
escolares sempre ficaram em segundo plano pois sua mãe dependia dele
para ajudar a completar a renda de casa. Depois do turno escolar, Milton
trocava de roupa e atravessava a cidade para tomar conta de um comércio
informal que Nazaré matinha. Lá Milton vendia café, pão, leite e cigarros
até dez da noite, o horário em que sua mãe encerrava seu trabalho com a
Para Elétrica. Juntos eles retornavam para casa.
Essa rotina dura compunha o pano de fundo sob o qual o Milton
narrou a descoberta de seu “dom” de “mexer com eletrônica.” Ele citou
dois episódios como exemplos de sua engenhosidade diante da
precariedade. No final da década de 1940, a produção de energia elétrica
na cidade mal supria a demanda em casa. Milton disse que seus vizinhos
ficaram impressionados quando inventou um modo de iluminação
doméstica colocando lâmpadas de lanterna, fios e pilhas velhas dentro de
um tubo de taboca. Durante o mesmo período, Milton improvisou seu
primeiro “picarpe” (do inglês pick-up), montando um rádio elétrico dentro
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de uma caixa de fruta e ligando tudo a um toca-discos de 78 rotações, que
seus vizinhos vinham alugar para animar festas de aniversário no bairro.
O dom do Milton continuou chamando a atenção e ganhando a
admiração dos outros. Aos 17 anos, Milton se alistou no serviço militar,
mas lá descobriu que a linha que separa reconhecimento de exploração
podia ser tênue. Enquanto soldado da 5a Companhia da Guarda de Belém,
Milton era encarregado de fazer conserto de rádios e geradores que eram
mandados para a fronteira com as Guianas. Apesar de trabalhar
principalmente por tentativa e erro, Milton se destacava na eletrotécnica e
percebia que sua habilidade até ultrapassava a dos seus superiores. Aos
poucos Milton começou a ressentir da autoridade sobre ele.
Ao mesmo tempo, Milton disse ter afeto de filho para pai por um major
que o incentivava a fazer curso para cabo sargento. Entretanto, depois de
“levar uma bronca” pública de um tenente capitão e na frente de sua
namorada, ele resolveu desistir da carreira militar e pediu para sair do
exército. Milton explicou que o major o aconselhou a tentar se-acalmar,
dizendo, “Olha rapaz, militar é um patrimônio para filhos e netos. Presta
bem a atenção! Tu tá com meio passo pra subir.” Anos depois no cinema
Cine Paraíso, Milton encontrou por acaso o soldado que tinha sido
terceiro colocado nos exames para cabo sargento no qual Milton tinha
conseguido segundo colocado. Milton disse ter se arrepiado ao descobrir
que o soldado tinha subido para o posto de tenente-coronel. “Eu corri
minha vida, só que [aquilo] era um patrimônio eterno né? Agora ele tá
aposentado como coronel (...) mas eu não” disse Milton com um tom de
remorso nada típico de seu modo de auto narração. No momento
seguinte ele pareceu dominar seu arrependimento, canalizando novamente
sua indignação em um discurso com peso moralista. “Fui viver das minhas
mãos. Tenente coronel, coronel não faz nada nêgo. Nada nada. Só faz
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dar ordem. Aí passei a trabalhar das minhas mãos, da minha vista e minha
mente.”15
Figura 1 - “Passei a trabalhar das minhas mãos, minha vista e minha mente”
Aos 70 anos, Milton Almeida Nascimento conserta alto falantes em sua oficina,
agosto 2013
Fonte: Foto pelo autor
Existem continuidades entre o regime de valor militar, centrado nos
valores de hierarquia e obediência, e o regime de valor paternalista
tradicional no qual a economia regional extrativista se baseava. Com a
decadência dessa economia e a ascensão do capitalismo industrial urbano,
o empreendedorismo—isto é, “trabalhar das mãos, vista e mente”—veio
a representar uma alternativa às indignidades tanto do sistema extrativista
como do regime de trabalho assalariado na imaginação de uma classe
urbana emergente. A realidade cotidiana que Milton vivenciou na sua
juventude chamou sua atenção para o fato de que o trabalho assalariado
do tipo que sua mãe desempenhava não proporcionava autonomia nem
garantia proteção contra precariedade. Apesar de sua ambivalência diante
do fato de ter renunciado a um possível “patrimônio eterno” em um
momento impetuoso de insubordinação ao regime de valor militar, Milton
deixou de narrar sua vida como perda de outro presente possível. Através
de um discurso heroico e individualista que corresponde ao regime de
valor “empreendedorista” em ascensão durante a segunda metade do
século XX, ele insistiu com argumentos moralistas no valor da produção
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criativa em oposição ao trabalho não-produtivo dos militares e o trabalho
alienado dos assalariados.
Em Belém, muitos trabalhadores que vivem de sonorização se dizem
obrigados a viver segundo a “lei do mais esperto.” Diferente da “ética
protestante” weberiana, a lei do mais esperto implica numa ética que
valoriza não somente sacrifício pessoal e ganhos incrementais, mas a
engenhosidade, a artimanha e até uma certa malandragem. Em sua
etnografia sobre o sistema de aprendizagem artesanal em Creta, Grécia,
Michael Herzfeld oferece uma série de observações sobre a proximidade
de artesania e artimanha com relevância para nossa análise da auto
narração do Milton. Para muitos artesãos em Creta,
(...) a aquisição até da técnica mais básica vira objeto
de uma luta sobre a posse de conhecimento. Ao
ponto mais extremo desse idioma heroico de
orgulho masculino se encontra o raro artesão que se
gaba de nunca ter sido aprendiz—um homem que
nunca aceitou a autoridade de outro sobre ele e
sempre dependeu de sua própria esperteza. Ele
triunfa sobre seus colegas como um todo pelo
simples artifício de ter furtado deles sua expertise sem
se sujeitar a ninguém.16
Embora Milton reconheça a contribuição de outros técnicos e colegas
para seu aprendizado inicial, ele insistiu no fato de ter sido sempre um
aprendiz sem mentor. O fato das pessoas “sabidas” esconderem os
segredos da eletrotécnica dificultava a vida dos novatos, fazendo com que
Milton tivesse que “roubar” seu conhecimento nos moldes de um
Prometeu paraense:
Revista Estudos Amazônicos • 89
Maior parte desses técnicos de hoje em dia não lê,
não sabe ler cores [de resistência]. Que agora vem
o número né. Naquele tempo não. Vinha em cores
né, como em número mas aí se raspava os número,
já era! Pra não dar o segredo! Mas eu era sagaz. Eu
pegava, aí eles tinham isso aqui raspado, eu levava
lá no centro (...) Manuel Barata. Aí [um colega]
media no teste. “Olha, mediu tanto.” Eu escrevia.
Aí eu montava assim, até pegar macete. Foi uma
luta. Eu lutei muito.17
Gabar-se da sagacidade ou esperteza faz da necessidade uma virtude,
mas frequentemente a “lei do mais esperto” se manifesta como uma
tendência à auto maximização sem escrúpulos e solidariedade. Até certo
ponto, medo de “olho gordo” costuma servir de mecanismo social através
do qual uma “sociedade da esperteza” coloca em cheque o egoísmo
individual. Mas segundo Milton, ganância e falta de solidariedade são
problemas endêmicos da economia de sonorização em Belém. Ele se
deparou com uma realidade paralela mas bem distinta na cena de radiola
em São Luís do Maranhão ao passar três anos lá em “exílio” com sua
aparelhagem Trovão Azul:
Olha, lá tinha um dono de aparelhagem doente.
Acamado. As grandes se reuniu pra fazer uma festa
em prol daquele, daquele proprietário. (...) Me
falaram de ir, eu: “não, eu vou.” Pra tocar, pra dar o
dinheiro pra ele. Aqui, eles faz é pisar em cima de
ti! (...) [Como se pensassem] “É um a menos!” (...)
Eu falava aqui isso. “Vocês deveriam pegar o bril
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de São Luís olha.” Pegaram porra nenhuma. Só
ganância.18
Seu cinismo em relação à classe de proprietários de aparelhagens de
Belém reflete as dificuldades Milton enfrentou ao longo dos três mandatos
que passou como presidente da Associação Profissional dos Proprietários
de Aparelhagens Sonoras do Estado do Pará (APASEPA). Em 1978, um
consórcio de mais de cem proprietários de aparelhagem estabeleceu a
associação para defender seus interesses econômicos e exercer sua
influência social diante de políticos que caçavam votos, policiais que
procuravam propinas e oficiais que tentavam impor impostos. A
associação resolveu impor padrões de tamanho e decibel sobre todos os
sócios na tentativa de se proteger das autoridades que ameaçavam multar
e confiscar sonoros aleatoriamente. Ao mesmo tempo, a APASEPA
começou a emitir contratos oficiais para combater segundo eles a
“concorrência desleal,” impedindo que festeiros (organizadores e
produtores de eventos) colaborassem com sonoros novos para rebaixar
preços e prejudicar as aparelhagens de maior porte.
Milton fazia parte de um bloco minoritário da associação que apoiava
a ideia de transformá-la em sindicato para representar tanto os interesses
dos proprietários como dos empregados da categoria. Porém, a iniciativa
se esbarrou na oposição forte de proprietários que entendiam a
formalização das condições de trabalho até dos carregadores de caixa
como uma ameaça ao patrimônio que tinham acumulado até então.
Narrando sua tentativa de sindicalizar o setor como mais um exemplo de
sua vontade heroica, embora mal sucedido, Milton disse:
Quando nós metemos, eu disse “vamos legalizar os
funcionários (...) se tenho quatro homens, eu
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legalizo os quatro homens.” Né? Pra ganhar seu
salário certo. [Os outros proprietários diziam] “Tu
é doido! E se um cara desse te joga na justiça? Não
trabalho só pra pagar...” Me derrubaram. Cada
coisa que eu criava com essas ideias como
presidente. (...) [Eu dizia] “Vamo botar (...) médico,
pra atender os filhos do funcionário. Nós temo
local [a sede da associação] pra fazer isso. Um
advogado pra defender os cesto... vocês vão ser
sócios do sindicato das aparelhagem.” Não
aceitaram nêgo. Aí nós metemo, não passou lá em
Brasília. Perguntaram quantos funcionários a gente
tinha. “Nenhum!” Com’é que pode virar
sindicato?19
O compromisso do Milton para com a classe de empregados informais
de aparelhagens pode ser compreendido com relação ao paternalismo
mencionado acima. O tipo de relacionamento que Milton procurava
cultivar com seus empregados se espelhava no relacionamento que seus
benfeitores-patronos (como o major citado acima) cultivavam com ele na
ausência de um patrimônio próprio. Por exemplo, a primeira
oportunidade que Milton teve de gerenciar um sistema sonoro surgiu
quando um conhecido de camada social mais alta herdou um sonoro
mono, Sonoro Barbosa, de seu pai. A partir do momento em que o
conhecido pediu ao Milton “tomar conta para nós dois,” ele virou o
principal responsável por aperfeiçoar o som, agendar eventos e inovar o
nome (mudando primeiro para “O Conversível” e depois para “Alvi Azul”
em homenagem ao clube de futebol Paysandu). Anos depois, Carlos
Aguiar, homem de família com influência política e social na cidade, dava
preferência a Milton na hora de distribuir discos de vinil “exclusivos” de
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música caribenha que trazia das viagens para o exterior. De forma
parecida, Milton explicou como procurava manter um bom
relacionamento com seus empregados ou “meninos,” fazendo visitas em
suas casas, patrocinando excursões anuais a praia, dividindo hospedagem
com eles quando Alvi Azul tocava no interior e promovendo uma festa
todo final de ano em que os empregados dividiam o lucro entre si.
A mistura de afeto e arrogância implícita no uso culturalmente
específico do termo “meninos,” até mesmo com referência a homens com
mais idade, exemplifica as contradições inerentes do paternalismo. Por
um lado, o paternalismo enquanto sistema social pode impor certos limites
aos comportamentos mais abertamente mercenários do tipo justificado e
autorizado pela “lei do mais esperto.” A “ética” paternalista exige um
compromisso material do patrão com seus peões como se obrigado por
ligações familiares. Por outro lado, o paternalismo mistifica a autoridade
e naturaliza divisões rígidas e hierárquicas por sexo, raça e classe,
organizando sociedade e o lugar de trabalho segundo uma mesma lógica—
a da família chefiada pelo homem geralmente de descendência europeia.
A capacidade do Milton se narrar como empreendedor heroico e
autônomo dependia do trabalho subvalorizado desses “meninos” assim
como de sua primeira esposa Dona Júlia. No auge das atividades
comerciais dos sistemas sonoros da franquia Alvi Azul, Júlia era a principal
responsável por questões financeiras e contratuais. Ela contribuiu
também para a criação da imagem profissional da empresa, costurando os
uniformes da equipe e as capas para as caixas e mesa de som. Porém, seu
trabalho acontecia fora do olhar público e não contava com o mesmo tipo
de reconhecimento nem remuneração. Resumindo, a subjetividade plena
do empreendedor autônomo é subsidiada pelo trabalho de seus
subordinados e subordinadas, aqueles que não contam na visão da
sociedade paternalista e capitalista como agentes.
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Embora Milton Almeida narre sua história de vida de uma forma que
o apresenta como o arquétipo do homem que se fez sozinho, a fundação
econômica que potencializou essa narrativa aos poucos se desfez,
obrigando-o a enfrentar, às vezes dolorosamente, a contingência de sua
subjetividade heroica assim como a precariedade de seu patrimônio
material e imaterial. A decadência de Belém como principal centro urbano
da região Norte no final do século XX contribuiu para a estagnação da
economia em geral. Ao mesmo tempo, a disponibilidade de equipamentos
eletrônicos baratos fabricados em Manaus e São Paulo prejudicou o
mercado local de construção, adaptação e conserto de sistemas sonoros.
Somado a esses fatores externos, a consolidação de um monopólio sobre
o circuito festeiro entre algumas dinastias de aparelhagem e seus sócios em
boates, produtoras de eventos e distribuidoras de cerveja também
contribuiu para a queda de demanda para aparelhagens novas. Circulam-
se até boatos alegando que os novos lançamentos tecnológicos das
dinastias sonoras são financiados com dinheiro sujo investido por
empresários nordestinos. Mesmo que não sejam verdadeiros, esses
comentários funcionam como meio de tentar pôr em cheque a acumulação
desproporcional de poder econômico e social entre seus conterrâneos.
Muitas vezes ouvi essas acusações desembocarem em um lamento mais
amplo sobre a erosão do valor de viver “das mãos, vista e mente.” Às
vezes, esses lamentos até se transformavam em declarações sobre o “valor
cultural” ou “criativo” da sonorização, dessa forma apontando para além
de um desejo reacionário pelos “tempos áureos” em um regime de valor
constituído, para um princípio constituinte de valor. Dessa forma, como
argumenta Judith Butler, a desapropriação pode se tornar a condição que
possibilita o inquérito moral e o questionamento crítico.
Júnior Almeida e a partida para o lado “cultural”
94 • Revista Estudos Amazônicos
Diante das mudanças recentes no ramo de sonorização, os três filhos
atualmente envolvidos com o dia a dia da empresa familiar tiveram que
diversificar suas atividades comerciais para sobreviver dela. Embora um
cliente ou outro ainda procure a oficina Alvi Azul para encomendar uma
aparelhagem nova destinada para campanhas políticas ou publicitárias no
interior, as atividades cotidianas das quais os irmãos dependem abrangem
consertos de equipamento, trabalhos pontuais para produtoras como
técnico de som, trabalhos freelance como DJ para bares e eventos fechados
entre outros. Aqui enfocamos os trabalhos desenvolvidos pelo filho mais
novo de Milton e Júlia, sobretudo aqueles relacionados com seu sonho de
valorizar o legado de seu pai em termos de sua importância social e
cultural.
Milton Almeida Nascimento Júnior, o mais novo dos seis filhos de Júlia
e Milton, nasceu em 1971. Ele foi criado durante um período que ainda é
lembrado pelos pais como o auge da empresa Alvi Azul. No entanto,
Júnior ainda era jovem demais para participar dos negócios e dos deveres
de casa que ocupavam seus pais e irmãos. Na sua juventude, o único
trabalho relacionado à sonorização que Júnior exercia era a seleção e
gravação de fitas personalizadas a pedido de fãs do Alvi Azul, atividade
que contribuiu para sua formação na música. Em 1987, aos dezesseis anos
de idade, Júnior entrou mais a fundo no ramo das aparelhagens. Mas
diferentemente das outras dinastias sonoras da época que treinavam os
filhos do proprietário para assumir o posto de DJ e função de cara pública
da empresa, Júnior e seus irmãos trabalhavam sempre “nos bastidores.”
Embora Júnior desenvolva atualmente vários trabalhos freelance como DJ,
ele deixou a entender que não se identificava o suficiente com a cena das
festas de aparelhagem para virar o DJ do Alvi Azul.
Revista Estudos Amazônicos • 95
Como a gente trabalhava muito nos bastidores,
assim, o meu primo que era DJ. Papai na verdade
fez ele. Nilsinho (...) gostava também do mesmo
som que eu gostava mas gostava do movimento de
aparelhagem... pra tocar. Por que aparelhagem,
você tem que gostar. Tem que se identificar. E a
gente já trabalhava nos bastidores.20
Como um dos membros da família mais introvertidos, com habitus e
gosto musical mais intelectualizados, Júnior disse se identificar mais com
os lugares fechados frequentados por um público menos agitado. Ele
justificou isso também pelo fato desses espaços proporcionarem maior
liberdade de tocar uma variedade de estilos musicais não aceitos em festas
de aparelhagem atuais, e também pelo fato de não ter que “animar a
plateia” no microfone.
Devido às dificuldades associadas com o mercado atual de
aparelhagens, Júnior optou por uma vida mais sossegada afastado do
circuito de grandes festas. Durante o período dessa pesquisa, ele
trabalhava de dia prestando serviço para a loteria “Carimbó dá sorte” e
fazia “publicidade volante” com seu carro-som nos bairros periféricos da
cidade. Apesar de que ainda sonhe em algum dia voltar para o mercado
de aparelhagem com o nome de Alvi Azul, Júnior explicou que seu serviço
atual tinha a vantagem de ser regular. Terminado seu serviço às 18 horas,
Júnior podia passar tempo com sua família e trabalhar freelance como DJ
no bairro. Ao mesmo tempo, o trabalho regular não necessariamente
significa emprego seguro. Devido aos pagamentos mensais que precisava
fazer para financiar a caminhonete velha que usava no trabalho, dinheiro
não costumava sobrar em abundância. Durante dezembro de 2013, a
caminhonete apresentou um problema mecânico e ficou por mais de uma
semana na oficina do vizinho. Enquanto não conseguia consertar o
96 • Revista Estudos Amazônicos
veículo, o irmão do Júnior era obrigado a cobrir seu turno para evitar que
fosse demitido. Diante de tal precariedade, Júnior esteve sempre alerto
para oportunidades novas de completar a renda de casa, mas também não
deixou de sonhar com projetos “culturais” como meio de atenuar a
mesmice do trabalho cotidiano, esperançoso de avistar um horizonte além
da precariedade do presente.
Do ponto de vista de Júnior, os caminhos que mais parecem levar para
a renovação do sonho e legado do Alvi Azul são os que “partem para o
lado cultural.” Partir para o lado cultural significa, em primeiro lugar,
romper com o regime de valor dominante entre as aparelhagens “de
ponta,” sobretudo a supervalorização da novidade tecnológica e o lucro
acima do trabalho vivo e a sociabilidade. Em segundo lugar, partir para o
lado cultural também significa refutar um discurso classista que caracteriza
o ramo como meramente e universalmente alienado, mercenário e
mercadológico—isso é, sem valor “cultural.”
Por mais eficaz que o discurso de “valor cultural” seja como defesa da
sonorização contra o capitalismo selvagem e o elitismo, ao partir para o
lado cultural corremos o risco de acabar por afirmar um regime de valor
burocrático, elitizado em torno do que poderíamos designar de Cultura-
maiúscula. No contexto neoliberal de hoje a Cultura-maiúscula se forma
na encruzilhada entre os interesses burocrático-estaduais e capitalista-
mercadológicos. Cultura-maiúscula segue a lógica economicista para a
qual George Yúdice apontou no seu livro sobre a “conveniência da
cultura,”21 transformando-se em um recurso a ser gerenciado, cultivado e
investido “por cima” e ao mesmo tempo instrumentalizado, mobilizado e
trocado por reconhecimento, benefícios ou prestígio institucional “por
baixo.”
Júnior percebe com sagacidade o crescimento de uma economia
cultural em torno da produção e gerenciamento de “patrimônio cultural”
Revista Estudos Amazônicos • 97
como uma abertura que talvez permita a valorização de seu legado familiar
dentro de um regime de valor em aparente ascensão. Apropriando-se de
discursos com ampla circulação institucional, Júnior chama atenção para
o trabalho “artesanal” que seu pai desenvolvia numa tentativa de
reformular o valor de seu trabalho em termos de uma contribuição ao
“patrimônio cultural” do estado do Pará. Porém, manejar o discurso do
patrimônio cultural com êxito requer certas concessões ao poder,
conforme alerta o Michael Herzfeld. Na sua etnografia sobre os desafios
que os artesãos de Creta encontram ao tentar valorizar seu trabalho numa
sociedade cada vez mais dominada por valores tecnocratas burgueses,
Herzfeld diz que uma das poucas opções à sua disposição é transformar
seu trabalho-vivo em um objeto estático e legível por instituições estaduais
e indústrias culturais como “tradição.” Esse processo implica a entrega de
uma cultura viva para a “hierarquia global de valor” que “claramente acede
aos valores disseminados mundialmente pelos poderes coloniais europeus
de outrora”22:
Em todo lugar, desde a França com seu patrimoine
até a Tailândia com seu conceito análogo de moradok
(…) vemos a noção generalizada em todo planeta
que, da mesma forma que a cultura é a propriedade
do indivíduo coletivo conhecido como nação,
heritage [“patrimônio”] é sua realização enquanto
transferência de propriedade coletiva entre
gerações. Heritage nesse sentido se substitui por
história, da mesma forma que cultura se substitui
por sociedade: em ambos os casos, o processo
temporal é ocluído pela percepção de uma
eternidade coletiva.23
98 • Revista Estudos Amazônicos
Implícito nesse processo de transformar cultura em Cultura é o
trabalho secundário de uma camada que chamarei de “pós-produtores de
cultura.” Na etnografia do Herzfeld, o trabalho de pós-produção não
“entra em cena” em nenhum momento, contribuindo para a mistificação
do processo através do qual a transformação cultura-Cultura se dá. É
preciso analisar produção e pós-produção cultural como um conjunto para
esclarecer como funciona a divisão do trabalho da qual depende a
“indústria do patrimônio cultural.” A supervalorização do trabalho do
pós-produtor de cultura nessa conjuntura reflete e ao mesmo tempo
produz uma distinção de classe social. Segundo Herzfeld, tal distinção
pressupõe a priori o valor social elevado de “uma mente que é autônoma e
externa à encarnação física do ego e a um sistema social controlador ao
qual o ego está obrigado a se submeter.”24 Os artesãos de Creta que
apostariam na transformação de seu trabalho em patrimônio cultural
nacional como estratégia para sobreviver à imaterialização da economia e
manter sua subjetividade intacta se encontram obrigados por um tipo de
pacto faustiano, como explica Herzfeld:
O custo de subir no sistema de classes é abandonar
costumes habituais de fala e gesto que fazem da
“tradição” um elemento essencial e internalizado do
ego; [uma vez abandonada] a tradição se torna
objetivada e comodificada ao lado de fora daquele
ego. Virando assim um objeto de gerenciamento e
autoria, as pessoas que continuam a guardar [a
tradição] “dentro” de si mesmas permanecem
marginalizados do mainstream da modernidade.25
Revista Estudos Amazônicos • 99
Em outras palavras, Herzfeld argumenta que aceder à hierarquia global
de valor implica tanto a imobilização e objetivação daquele trabalhador
que “encarna” a cultura tradicional dentro de si como a nova subjetivação
concomitante de um gerente ou pós-produtor de cultura cujo trabalho é
supervalorizado em função de sua abstração da produção cultural em si.
Milton se mostrou ciente dos problemas e possibilidades provocados
pela patrimonialização da cultura e a correspondente divisão do trabalho
cultural, mas tentou manejar o discurso de patrimônio cultural de forma
“sagaz,” navegando as contradições de um sujeito que busca se autenticar
como a encarnação do patrimônio cultural sem deixar de se afirmar como
autor de si mesmo. Veja por exemplo como ele tentou se posicionar em
relação a um mestre venerado de carimbó (tradição musical percussiva que
começou a conquistar reconhecimento oficial a partir dos anos 1970) não
só como colega mas também como um empresário:
[Aparelhagem] é um patrimônio... paraense. Porque
ela surgiu de muitos e muitos anos né. Antes de
mim, surgiu vários. Só que não evoluíram. Foram
construindo e acabando, construindo [e acabando],
sem chegar ao ouvido dos políticos. E eles acharam
[numa recente decisão legislativa] que não é um
patrimônio histórico. Com’é que o carimbó foi?
Por quê? [Mestre] Verequete, seu Verequete pegava
apoio das aparelhagem. Pra poder conhecer o
carimbó dele. Trabalhei um tempo com ele aqui,
fazia show né. A gente saía. Eu tinha um carimbó.26
Júnior, por sua vez, demonstrava receio de assumir o papel de pós-
produtor do legado de seu pai, reconhecendo que o mercado de
patrimônio cultural hoje exige capacidades técnicas e equipamentos caros
100 • Revista Estudos Amazônicos
muito além dos que tem ao seu dispor. Ademais, na visão do Júnior a
elaboração de um projeto sobre a história e contribuição cultural das
aparelhagens não é motivada pela busca de retorno financeiro nem
necessariamente prestígio institucional. Para Júnior, conhecer e entrevistar
a “velha guarda” foi especialmente significante pela oportunidade que
representava de entrar mais profundamente na história de sua família e seu
pai como co-narrador e co-criador, em vez de apenas observar
passivamente o seu decorrer desde as margens como na sua juventude.
Usando a metodologia etnográfica como ferramenta para trabalhar a
memória viva, buscamos desenvolver um projeto que evitasse a reificação
do passado que costuma assombrar projetos desse tipo. Como narrarei a
seguir, mesmo sem conseguirmos patrocínio oficial nem do setor privado
nem do setor público — ou, talvez melhor dizendo, justamente por não
termos sido obrigados a prestar contas para um patrocinador oficial —
pudemos dar início a um processo social de comemoração e
questionamento sobre trabalho, valor e subjetividade, criando assim as
condições de possibilidade para a descoberta e formulação de outros
princípios de valor social além dos valores legitimados pelo mercado ou o
estado.
Para além da saudade? O trajeto do Projeto Sonoro Paraense
Ao começo de nossa colaboração, Júnior e eu falávamos em montar
um “museu popular da aparelhagem,” conceito que fez estranhar muitos
patrocinadores que consultamos devido ao costume entre aparelhagens de
grande porte de vender ou jogar fora discos, tecnologias e outros afins
Revista Estudos Amazônicos • 101
com cada lançamento novo. Também enfrentamos o cinismo até de
alguns membros da família, que criticavam Júnior por correr atrás de um
mero sonho, de colocar sua caminhonete mesmo em estado precário à
disposição de uma pesquisa sem fins lucrativos e assim arriscar seu meio
de locomoção e de sustento. Enquanto isso, os interlocutores do poder,
diferente dos que caucionavam com boa vontade que o passado não tinha
valor econômico, diziam em má fé que o passado dos sonoros e da geração
que os fizeram não tinham valor econômico, cultural nem social, já que
interessava apenas a um público restrito “de coroa de periferia.” Até
mesmo alguns veteranos do ramo de sonorização questionavam os
motivos da pesquisa, como o próprio Milton tinha questionado os meus.
Perguntavam de qual forma pretendíamos tomar proveito de suas
memórias, se não íamos nos apropriar do patrimônio modesto imaterial
que lhes restava. Não obstante, a maior parte da velha guarda da qual nos
aproximamos partilhou suas histórias e narrou suas vidas com muito gosto
e generosidade, tornando-se assim parceiros do projeto, como explico
abaixo.
Um dos pontos de partida para o que acabamos chamando de “Projeto
Sonoro Paraense” eram os poucos projetos para os quais já tinham
conseguido patrocínio público ao “partir para o lado cultural” dos
sonoros. Destacaram-se dois projetos realizados por Suely Nascimento,
filha de Sebastião Nascimento (b.1928, d.2010) do Sonoro Diamante
Negro, incluindo um filme de curta metragem lançado em 2003 com uma
Bolsa para Pesquisa em Arte do Instituto de Artes do Pará, e um livro
fotográfico elaborado a partir do mesmo material e publicado em 2010
com o apoio da “Conexões Artes Visuais”, iniciativa do Ministério da
Cultura.
As atividades profissionais de Suely enquanto jornalista fotográfica
assim como sua formação em comunicação contribuíram para seu
domínio tanto da linguagem gráfica como da linguagem verbal que são
102 • Revista Estudos Amazônicos
reconhecidas pela indústria de patrimônio cultural. Seu filme —um ensaio
fotográfico com música — é composto de fotos tiradas entre 1997 e 2003
nas festas promovidas pelo sonoro de seu pai. As imagens retratam
momentos íntimos antes, durante e depois da festa entre casais, dançarinos
e amigos. O livro apresenta as mesmas fotos em formato de disco de vinil,
objeto emblemático desse “passado áureo.” O fato de muitas das fotos
em preto e branco mostrarem sedes quase vazias contribui para a beleza
assombrosa dos trabalhos e para a melancolia do projeto enquanto
homenagem póstuma a Sebastião Nascimento.
A linguagem gráfica e verbal mobilizadas nesses projetos ajuda a
construir o imaginário nostálgico de um passado que vem a ser
“resgatado,” preservado e convertido em memória pública justamente no
momento em que (nos dizem que) ele está quase para se perder. A
justificativa do projeto ganha força e se torna legível às fontes
patrocinadoras por reproduzir a relação de identidade entre família e
nação, patrimônio familiar e patrimônio cultural:
Acredito que o livro vai resgatar e divulgar uma
parte da memória de Belém, da história do
‘Diamante Negro’ e dos dançarinos que
frequentavam essas noites meio de sonho. E o
‘Sonoro Diamante Negro’ pode ter, assim, uma
obra brasileira que preserve a sua história.27
A identidade pressuposta entre o intangível—cultura e memória—e a
precariedade faz da objetivação de um passado em desaparecimento uma
preocupação pública urgente.
Revista Estudos Amazônicos • 103
Figura 2 – Dançarinos anônimos em preto e branco, baile do Sonoro Diamante
Negro
Fonte: Foto por Suely Nascimento28
Porém, o projeto de transformar a memória popular em memorial
público corre o risco de marginalizar e objetivar justamente aquelas
pessoas das quais se apropria a memória dita “precária,” perdendo a
oportunidade de renovar as redes sociais que as sustentavam e as
sustentam. Na coleção de ensaios intitulada de Memory Against Culture
(“Memória contra cultura”), o antropólogo Johannes Fabian desafia o
leitor a imaginar um tipo de memória insubmissa que resiste à reificação e
controle dentro de regimes de valor institucionalizados, sejam estaduais,
sejam acadêmicos:
Memória popular é popular desde que não seja
coletada, canonizada ou promovida por instituições
ou entidades políticas. Pode manter sua
contraposição às pretensões governamentais—ou
acadêmicas—de controlar e ditar a memória desde
que não seja (ou desde que não seja apenas ou
principalmente) memória num sentido que
corresponde ao conceito alemão de Erinnerung:
tomar, apropriar-se, concentrar ou procurar um
centro.29
104 • Revista Estudos Amazônicos
Refletindo sobre a relação entre essa “memória no sentido de coletar”
e uma “memória coletiva,” ele faz a seguinte colocação:
Embora pareça plausível que coletar quase sempre
e naturalmente seja vinculado à
memória/recordação (...), [a proposta] inversa deve
ser tratada com cuidado: a memória/recordação
precisa ser vinculada à coleta? (…) Pode-se ter um
“agente coletivo” da coleta e, caso sim, como
teríamos que imaginar a forma de engajamento
desse agente na coleta?30
Com essa pergunta ecoando em meus ouvidos, viemos a reformular o
projeto para evitar que a lógica do resgate dirigisse o projeto. Procuramos
meios de engajar a “velha guarda” dos sonoros não como objetos em um
processo de coleta ou Erinnerung, mas como agentes em um processo que
começamos a elaborar a partir do conceito de “co-memoração.”
Iniciamos a primeira fase do projeto em 2010 com o lançamento de
um arquivo etnográfico virtual que contém depoimentos de pessoas que
protagonizavam o início da história das aparelhagens. 31 Lá postávamos
trechos de áudio e vídeo editados, junto com fotos e outros materiais dos
primeiros quarenta anos de sonorização popular em Belém. Apesar das
barreiras de acesso à internet em Belém limitarem o alcance desse formato,
um site nos permitia publicar materiais de forma mais rápida e dinâmica
em comparação à temporalidade glacial e o formato não-interativo de
outras formas de publicação. O site bilíngue passou a receber centenas de
visitas, dezenas de contribuições, postagens e contatos novos e também
serviu de inspiração e fonte primária para outros acadêmicos e pós-
Revista Estudos Amazônicos • 105
produtores de cultura.32 Porém, viemos a questionar seu valor e utilidade
para a própria velha guarda. O site do Projeto Sonoro Paraense não seria
apenas um exemplo mais “high-tech” de Erinnerung, que acabava trocando a
conveniência da Cultura-maiúscula pela conveniência do Conhecimento-
maiúscula?
Em julho de 2013, eu, Júnior e outros colaboradores discutimos a
possibilidade de organizar uma série de encontros da “velha guarda” no
intuito de “socializar” o processo de comemoração, sem por enquanto
exigir qualquer resultado definido. Através desses eventos pretendíamos
engajar mais a participação daquele agente coletivo que acena o Fabian,
passando a pensarmos o Projeto Sonoro Paraense como um pretexto para
reanimar a sociabilidade entre pessoas da velha guarda que costumavam
se encontrar com mais frequência na oficina, na porta de casa ou na
APASEPA, e ao mesmo tempo engrossar e ampliar essas redes sociais,
convidando outros trabalhadores de cultura paraense para participar.
Chamamos as pessoas que tinham concedido entrevistas e materiais para
contribuir para a programação da primeira edição na sede histórica do
bairro periférico de Terra Firme com discursos, músicas e vídeos-
homenagens. Edições futuras contariam com um comitê organizador que
planejaria encontros itinerantes que passariam por vários bairros,
resistindo a obrigação de canalizar o social em objeto de Cultura
“comodificável” ou gerenciável que obedecesse a lógica da
“conveniência.”
106 • Revista Estudos Amazônicos
Figura 3 – 1o “Encontro Sonoro” na sede do Terra Firme Esporte Clube,
dezembro 2013
Pres. João Monteiro e no microfone controlista Sebastião Meireles
Fonte: Foto pelo autor
Contudo, antes de concluir, cabe aqui uma breve ressalva final sobre a
importância dos objetos como mecanismos ou veículos necessários para
o processo de subjetivação e realização do valor além dos limites de
tempo, espaço e geração. Como teoriza David Graeber,
Quando você reconhece o valor de um objeto, você
vira um tipo de ponte sobre o tempo. Isto é, você
reconhece não somente a existência de uma história
de desejos e intenções passados que contribuíram
para a forma do objeto no presente, mas essa história
também se estende através de seus desejos, sonhos e intenções,
mobilizados novamente naquele ato de
reconhecimento (...) Objetos de fetiche viram
espelhos para as intenções manipuladas do
observador. E de certa forma a própria noção de
desejo requer essa fetichização.33
Durante uma conversa preliminar em que discutíamos as possíveis
finalidades da nossa pesquisa, fiquei preocupado com a maneira em que
Júnior insistia em dar uma forma tangível ao legado da velha guarda, pois
parecia aceder nitidamente à hierarquia global de valor em que o escrito se
valoriza mais do que o oral, a história mais do que a memória, o fato mais
do que o sonho.
Revista Estudos Amazônicos • 107
As pessoas antigas ficaram aí. Estamos andando aí
com essa pesquisa, viu que ficaram só com sonho
na mente. Alguns tão morrendo sem nenhum
reconhecimento. (...) O que eu queria desse projeto
é não deixar que essa história acabe. A história que
eu falo do início da aparelhagem. Que ela não passe
despercebida né, que ela não vire um comentário de
bar... aquela coisa assim “você se lembra?” Não,
quero que vire um fato mesmo. Então meu
trabalho não é de hoje, é de muito tempo. Tenho
esse sonho [de] deixar uma coisa criada pra eles. (...)
A minha preocupação aqui é que eles tenham
alguma história de fato. Montada em áudio ou
vídeo ou livro ou alguma coisa.34
Ao longo de nossa parceria, Júnior insistia com certa frequência na
ideia de construir junto com seu pai um sistema sonoro amplificado à
válvula para servir de destaque do projeto, “igual como era na época” antes
da chegada do transistor, momento hoje visto como divisor das águas
entre os modestos sonoros que cumpriam uma função social, e as
estrondosas aparelhagens que passaram a cumprir uma função mais
mercadológica a partir do fenômeno Antônio Maurício Dias da Costa
chama da “corrida tecnológica.”35 Sem querer entrar no mérito dessas
críticas (que por sua vez correm o risco de estigmatizar mais ainda os
jovens que frequentam as festas de aparelhagem hoje), o ponto relevante
para ressaltar aqui é a capacidade que o objeto “encantado” tem para
provocar o questionamento de valores dominantes e possibilitar uma
reconfiguração do desejo, inclusive uma subversão da vontade heroica e
masculina. Considera por exemplo a linguagem típica com a qual Milton
descreve a tecnologia valvulada:
108 • Revista Estudos Amazônicos
Você tem que escutar o som à válvula. A diferença
é muita! Não é pouca. Tu vai sentir a música parece
que é mais viva... KT 66. O nome de válvula [boa],
é bojuda assim, a grade dela é de ouro. (...) Quando
a válvula tá legal, de noite fica tudo azulado dentro,
sabe, aquele azul bonito, oscilando. Aquilo é
música passando! Tu te impressiona de ver aquilo
trabalhando, quando ela está bem equilibrada.
Quando ela tá mal equilibrada, ela fica vermelha. Aí
depois de um mês não presta. A válvula cansa. O
transistor não cansa. Mas assim foi modificando.36
Embora a tecnologia do transistor se alinhe mais com os valores
dominantes de poder, longevidade e progresso, ela é menosprezada por
não ter a mesma vitalidade do som à válvula. A forte atração exercida por
esse objeto, mesmo caracterizado pelo desgaste, convida o ouvinte a
questionar os valores dominantes que têm orientado o desejo
individual(ista) sob a lei do mais esperto.
Conclusão: para uma outra narração da precarização
Ao longo das últimas décadas, diminuiu bastante a demanda para a
construção e adaptação de sistemas sonoros em Belém. A desvalorização
do trabalho ao qual Milton e outros se dedicaram durante tantos anos
representa para ele não somente uma precarização econômica mas
também uma precarização ontológica que às vezes se expressa como
nostalgia conformada, outras vezes como ressentimento e uma vez até
como desespero. Em verão de 2013, durante uma viagem de ônibus de
Revista Estudos Amazônicos • 109
volta de uma entrevista no município de Marituba, Júnior disse ter
encontrado seu pai recentemente no seu quarto sozinho, abatido, falando
de suicídio. Milton lamentava o fato de que “ninguém valoriza mais a
criação.” Júnior tentou consolar seu pai, afirmando que tinha
testemunhado, através da pesquisa etnográfica e as ligações e visitas que
recebia em resposta ao projeto, o fato de que “sua história continua” nas
histórias que os outros contam “em todo canto, por aí.” Por isso achei
comovente ouvir o Milton falar que o respeito e o reconhecimento que
seu nome comanda serve, de certa forma, como seu patrimônio mais
precioso:
Tá aí meu patrimônio. Isso aqui foi tudo com suor
(...) Hoje você pode perguntar em todo Belém.
Falar em Alvi Azul... meus filho se passam, “Égua
papai!” É uma porta pra eles. Eles vão fazer um
troço, eles [dizem] “sou filho do Seu Milton do Alvi
Azul.” “Óia tu és filho do Milton?” Pronto. Foi
isso que ganhei.37
Apesar da acumulação de um patrimônio material representar a
principal medida de valor de uma vida de trabalho segundo valores
paternalistas e capitalistas, das margens da economia de sonorização atual,
Milton é obrigado a elaborar um princípio de valor alternativo a partir do
reconhecimento social.
Ao decorrer da pesquisa etnográfica, fui percebendo que a minha
aproximação aos “pesquisados” assim como meu envolvimento em suas
vidas, lutas e sonhos cotidianos contribuíram para minha própria
subjetivação enquanto trabalhador de conhecimento, trabalhador de
cultura e, de certa forma, trabalhador “precário.” Na medida em que os
laços profissionais e pessoais foram ficando mais estreitos, produzindo até
110 • Revista Estudos Amazônicos
relações de amizade em excesso do tipo de relação economicista que é
considerada normativa entre “pesquisador” e “pesquisado,” percebi não
somente o potencial mas também a exigência de desenvolver um papel
solidário para com esses outros trabalhadores de cultura que passavam por
um processo de desprezo e desvalorização de seu trabalho, enfrentando
depressão e incerteza num contexto de precarização neoliberal que
abrange não somente as “periferias” do Brasil e do hemisfério sul mas cada
vez mais os “centros” do hemisfério norte também.
Já que o pesquisador não pode “se manter limpo” da política do
conhecimento, como observa Johannes Fabian, falta definir qual a nossa
visão de mudança política e agência coletiva. No que diz respeito à
pesquisa etnográfica da memória, Fabian insiste que “devemos evitar
prosseguir nas nossas investigações como se pudéssemos manter o
pensamento e o conhecimento acadêmico e popular (e, claro, a memória)
a uma distância segura um do outro, ou, pior ainda, tentar evitar o
problema, tratando a memória como um objeto moral ou estético.”38 Por
minha parte, passei a vislumbrar no processo de pesquisa colaborativa
etnográfica uma possível ferramenta para trabalhar as contradições de
precarização econômica-ontológica, fazer as pazes com o passado e
reanimar a dimensão social que dá sentido às nossas ações. No livro The
Problem with Work (“O problema com o trabalho”) que trata a política “pós-
trabalhista” e o papel da esperança e o ressentimento na subjetivação do
trabalhador, Kathi Weeks escreve:
O primeiro passo para [construirmos] uma
temporalidade nova e mais esperançosa (...)
necessita que antes possamos arrancar um presente
viável do passado, que possamos alterar nossa
relação com um passado que ameaça transformar a
Revista Estudos Amazônicos • 111
gente nos artefatos, em vez dos autores, do presente
(...) A solução é “redimir o passado” querendo-o,
ou, como descreve Nietzsche, transformar todo
“foi assim” em “mas assim eu quis! Assim hei de
querer!” Mas o ponto que quero frisar: precisamos
entender essa vontade que “quer o passado” como
uma vontade criativa; a afirmação do presente (...)
não é simplesmente uma autorização ou uma
ratificação de tudo produzido pelo passado, mas
uma intervenção ativa em nossos meios de habitar
o passado.39
Nesse sentido, contar sua própria história de vida e ouvir sua história
contada por outros pode ajudar a geração do Milton amenizar a melancolia
e até o desespero diante de uma história que foge de seu controle e autoria
e parece ser autora dela. Juntar as histórias de vida do ramo de sonorização
pode até contribuir para uma história popular regional “vista de baixo.”
Uma história popular desse tipo funcionaria como intervenção importante
na representação calcificada da população cabocla como mero “resquício”
de processos históricos de colonização e urbanização. Segundo essas
representações, na melhor das hipóteses a população cabocla sobrevive,
na pior das hipóteses ela sofre uma perda irremediável de cultura, memória
e comunidade.40
Porém, antes de trilhar o caminho da afirmação cultural, trajeto
conhecidíssimo entre várias vertentes de Estudos Culturais, comunicação
e etnomusicologia, devemos nos perguntar como podemos contribuir,
enquanto trabalhadores de conhecimento, para um modo de produção de
valor que não se contente com a recuperação do sujeito heroico autor-de-
si-mesmo, nem com a validação do regime de valor capitalista ao qual essa
forma de subjetividade correspondeu. Pois, conforme mencionado acima,
112 • Revista Estudos Amazônicos
essa forma de subjetividade era subsidiada pelo trabalho subvalorizado de
mulheres e “meninos” que, segundo a ideologia hegemônica, eram
excluídos da categoria de sujeito pleno no meio da sonorização. Por isso,
a afirmação do passado e as formas de subjetividade que ele produziu sem
uma perspectiva crítica não basta. Como finaliza Weeks
Afirmar-se como um agente (...) significa se abrir
para a possibilidade de deixar de existir também. (...)
O que significaria respondermos à possibilidade de
deixar de existir em um futuro diferente, um futuro
em que nem nós nem nossos filhos (...) existiríamos,
e respondermos, aliás, com alegria e esperança em
vez de medo e ansiedade?41
Ao encarar o processo doloroso de objetivação e marginalização na
economia cultural atual, o que seria necessário para a primeira geração de
trabalhadores de sonorização poder largar o desejo de retornar a um
passado idealizado e perdido? O que seria necessário para encarar a
precarização sem nostalgia e sem medo de deixar de existir enquanto
sujeitos heroicos autores-de-si-mesmos? Como obviar a ligação entre a
precarização presente, a ética da lei do mais esperto e a história da corrida
tecnológica, fazendo com que a impossibilidade de um “retorno” se torne
evidente?
Em vez de narrar o passado com o discurso da perda, devemos
entender a precarização como uma condição de possibilidade para a
identificação de novos horizontes na luta sobre trabalho e valor. Pois
como observou Júnior, é justamente das margens, através do processo de
desapropriação, que uma formulação alternativa de valor pode se tornar
visível.
Revista Estudos Amazônicos • 113
A gente sempre tinha aquela visão de dentro [da
aparelhagem] né. A gente carregava, instalava,
participava das festas. A gente sobrevivia dela,
então a gente tinha que fazer ela tocar bem, pra
ganhar dinheiro pra sobreviver. De um tempo pra
cá, uns dez anos mais ou menos, eu comecei a vê-la
de outra forma. Pra ver... a criação né. Como a gente
‘tava envolvido com a parte financeira, de fazer ela
tocar pra ganhar dinheiro pra gente viver, (...) a
gente não via a parte técnica. A gente passava por
ela assim só. (...) Aí de um tempo pra cá, cheguei a
ver a criação deles, de todos eles da época. (...) Eles
tinham que criar coisas aqui no Norte que vinham
de fora mas que tinham que se adequar com o
público paraense. Então desde a criação da parte
técnica até o móvel, a parte das caixas... era criação
deles.42
Por um lado, enfatizar o aspecto criativo que norteava o trabalho de
sonorização serve como meio de refutar o consenso elitista que a
aparelhagem enquanto instituição é uniformemente alienada,
mercadológica e imediatista, ou seja, que é sem valor cultural e social. Por
outro lado, reconhecer a importância daquilo que Júnior chama de criação
pode fortalecer uma crítica da supervalorização da evolução constante e o
lucro no meio de sonorização, desde que seja, antes de tudo, uma
autocrítica. A partir do trabalho criativo e colaborativo, passei a ver a
importância de começarmos a narrar a precariedade de outra forma —
sobretudo, como uma condição de possibilidade e uma provocação que
pode nos levar não somente ao questionamento crítico como também a
114 • Revista Estudos Amazônicos
uma reconfiguração da agência coletiva que a confiança cega no valor de
um ego heroico e autor-de-si-mesmo ou de um estado paternalista ou de
uma carreira profissional a todo custo antes impedia.
Artigo recebido em setembro de 2014
Aprovado em outubro de 2014
NOTAS
* Quero agradecer a American Council of Learned Societies (ACLS) por apoiar essa
pesquisa.
** Etnomusicólogo, Professor do Institute for Research in the Humanities da University of
Wisconsin-Madison, Wisconsin-EUA.
1 APPADURAI, Arjun. Commodities and the Politics of Value. In: Idem. The
Future as Cultural Fact: Essays on the Global Condition. London: Verso Press,
2013, pp.20-21. 2 HERZFELD, Michael. The Body Impolitic: Artisans and Artifice in the Global
Hierarchy of Value. Chicago: Chicago University Press, 2004, pp.17-18. 3 GRAEBER, David. Toward an Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our
Own Dreams. New York: Palgrave, 2001, p.1.
4 APPADURAI, 2013, p.9. Todas as traduções de inglês para português são minhas.
5 BUTLER, Judith. Giving an Account of Oneself. New York: Fordham University, p.7-8.
Tradução Livre.
6 Idem, p.12.
7 CONTI, Antonio, Anna Curcio, Alberto De Nicola, Paolo Do, Serena Fredda,
Margherita Emiletti, Serena Orazi, Gigi Roggero, Davide Sacco, Giuliana Visco.
The Anamorphosis of Living Labour. Ephemera: Theory and Politics in Organization.
Vol. 7, fasc.1, 2008, p.83. 8 Idem, Ibidem.
Revista Estudos Amazônicos • 115
9 MITSCHEIN, Thomas; MIRANDA, Henrique; PARAENSE Mariceli.
Urbanização Selvagem e Proletarização Passiva na Amazônia: O Caso de Belém. Belém:
CEJUP NAEA/UFPA, 1989, p.62. 10 Sobre a erosão do sistema de aviamento, veja MCGRATH, David. Parceiros
no crime: o regatão e a resistência cabocla. Novos Cadernos NAEA, Vol. 2, fasc. 2,
1999, pp.57-72. 11 MITSCHEIN, 1989, p. 35.
12 LEÃO DA COSTA, Tony. Música de subúrbio: Cultura popular e música popular
na hipermargem de Belém do Pará. Tese de doutorado, História Social,
Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2013, p.91. 13 STOLZOFF, Normal. Wake the Town and Tell the People: Dancehall Culture in
Jamaica. Durham: Duke University, 2005, s.p.
14 LAMEN, Darien. Claiming Caribbeanness in the Brazilian Amazon: Lambada,
Critical Cosmopolitanism, and the Creation of an Alternative Amazon. Latin
American Music Review. Vol. 34, fasc. 2, 2013, pp.131-161. 15 ALMEIDA NASCIMENTO, Milton. Entrevista. Julho 2013. Belém do Pará. 16 HERZFELD, 2004, p. 92. Tradução livre. 17 ALMEIDA NASCIMENTO, 2013. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem.
21 YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
22 HERZFELD, 2004, p.2.
23 Idem, p.198. Tradução livre. 24 Idem, p.195. 25 Idem, Ibidem. 26 ALMEIDA NASCIMENTO, 2013. 27 NASCIMENTO, Suely. Do sonoro de Belém às artes de Carajás. O Liberal,
Belém do Pará, 27/07/2010. 28 NASCIMENTO, Suely. Sonoro Diamante Negro. Rio de Janeiro: Conexão Artes
Visuais/FUNARTE, 2010, s.p.
29 FABIAN, Johannes. Memory Against Culture: Arguments and Reminders.
Durham: Duke University Press, 2007, p.104. Tradução Livre. 30 Idem, p.105. 31 PROJETO SONORO PARAENSE. Disponível em www.sonoroparaense.com.
Acesso em 01/08/2014.
32 Veja por exemplo Leão da Costa 2013; MEIRELES, Maurício. Projeto registra
a história das primeiras aparelhagens do Pará. O Globo. 17/03/2014. Disponível
116 • Revista Estudos Amazônicos
em http://oglobo.globo.com/cultura/projeto-registra-historia-das-primeiras-
aparelhagens-do-para-11894876. Acesso em 07/09/2014; Projeto quer guardar
história das aparelhagens. Diário do Pará. 05/01/2014. Disponível em
http://www.diarioonline.com.br/entretenimento/cultura/noticia-268865-
projeto-quer-guardar-historia-das-aparelhagens.html. Acesso em 07/09/2014;
Evolução das aparelhagens inspira pesquisadores. Programa É do Pará da TV
Liberal da Rede Globo. 22/03/2014. Disponível em
http://redeglobo.globo.com/pa/tvliberal/edopara/noticia/2014/03/evolucao-
das-aparelhagens-inspira-pesquisadores.html. Acesso em 07/09/2014. 33 GRAEBER, 2001, p.115, grifos meus.
34 ALMEIDA NASCIMENTO JÚNIOR, Milton. Entrevista. Novembro 2009.
Belém do Pará.
35 DIAS DA COSTA, Antonio Maurício. Festa na cidade: o circuito bregueiro em Belém
do Pará. 2a edição. Belém: EDUEPA, 2009, p. 81.
36 ALMEIDA NASCIMENTO, Milton. Entrevista. Outubro 2009. Belém do
Pará. 37 ALMEIDA NASCIMENTO, 2013. 38 FABIAN, 2007, p.100. 39 WEEKS, Kathi. The Problem with Work: Feminism, Marxism, Antiwork Politics,
and Postwork Imaginaries. Durham: Duke University Press, 2011, pp. 199, 200-
201. Tradução livre. 40 Para uma perspectiva “clássica” sobre a “des-caboclização” e a migração urbana,
veja os ensaios em PARKER, Eugene (org). The Amazon Caboclo: Historical and
Contemporary Perspectives. Williamsburg, VA, EUA: College of William and Mary,
1985, pp.xvii-li. Para respostas críticas à historiografia dessa população, veja ADAMS,
Cristina; MURRIETA, Rui; NEVES, Walter; HARRIS, Mark (orgs.). Sociedades
Caboclas Amazônicas: Modernidade e Invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006 e
NUGENT, Stephen. Coordinates of Identity in Amazonia: At play in the fields of
culture. Critique of Anthropology vol.17, fasc.1, 1997, pp.33-51.
41 WEEKS 2011, p. 202.
42 ALMEIDA NASCIMENTO JÚNIOR, 2009.